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Hip Hop de leste a oeste de Manaus: quatro cabeças de uma Hidra
Urbana e um bumerangue africano
SIDNEY BARATA DE AGUIAR1
RESUMO: Este artigo tem por objetivo principal resgatar a história recente do
Hip Hop organizado na cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas, através da
trajetória de quatro personagens exponenciais. Para tanto, coletei os depoimentos destes
fundadores e protagonistas do que chamamos M.H.M. (Movimento Hip Hop Manaus).
Com uma escrita didática, apresento e represento esta cultura gestada, criada e
desenvolvida nas ruas como uma Hidra Urbana, pela sua capacidade de renovação e
envolto pela teoria do Bumerangue Africano que subsidia com a circularidade de
informações regionais e culturais e que contribui com o enfrentamento dos problemas
sociais e políticos das periferias locais e que utiliza os espaços urbanos para sobreviver,
criar-se e recriar-se nas “quebradas”, nas vielas e arrabaldes manauaras.
PALAVRAS-CHAVE: Hip Hop, Hidra Urbana, Manaus.
ABSTRACT: this article aims to rescue the main recent history of Hip Hop
organized in the city of Manaus, capital of Amazonas State, through the course of five
characters exponentials. To this end, I collected the testimonies of these founders and
protagonists of what we call M.H.M. (Hip Hop Movement Manaus). With a didactic
writing, present and represent this culture conceived, created and developed on the streets
as a Hydra, by your ability to renew and wrapped by theory of Boomerang African who
subsidizes with the circularity of regional information and cultures and that contributes
with the confrontation of social and politicals problems of local peripheries and that uses
1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA) da
Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Mestre em História Social pelo Programa de Pós-graduação
em História (PPGH) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Especialista do Programa de Pós-
graduação Lato Sensu em Desenvolvimento, Etnicidade e Políticas Públicas na Amazônia (DEPPA) do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Estado do Amazonas (Campus Manaus/Zona
Leste). Professor das redes públicas de educação do Estado do Amazonas e do município de Manaus.
Contato: aguiar_sidney@yahoo.com.br
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the urban spaces to survive, create and recreate the "broken", in the alleys and environs
from Manaus.
KEYWORDS: Hip Hop, Urban Hydra, Manaus.
A Hidra Urbana e o Bumerangue Africano
Os debates na disciplina Seminário: Escravidão, Raça e Etnia do Programa de
Pós-Graduação em História (PPGH/UFAM), as reflexões e as leituras dos escritos do
historiador Flávio dos Santos Gomes e outros pensadores da temática negra e da
escravidão no período colonial da Amazônia foram de enorme produtividade.
Neste sentido, desenvolvi meu artigo final da disciplina. Este artigo transformou-
se em capítulo chamado Hip hop de leste a oeste de Manaus: Quatro cabeças de uma
Hidra urbana publicado no livro O Fim do Silêncio: presença negra na Amazônia,
organizado pela professora Patrícia Melo Sampaio. Defendo o hip hop como fenômeno
das cidades que teima em resistir como verdadeiras “hidras urbanas” (AGUIAR, 2011, p.
191-217).
Ao debruçar sobre a cultura afrodescendente na cidade de Manaus, encontramos
traços desta, nas práticas religiosas e culturais. O hip hop, enquanto prática cultural,
nascida e desenvolvida nas ruas e definido por seus próprios protagonistas como
movimento aglutinador de jovens e que se identificam com a cultura afro.
A ideia principal que permeia o citado capítulo bebe na fonte do professor Flávio
dos Santos Gomes. O pesquisador, ao discutir a resistência dos escravos negros à opressão
e a busca pela liberdade em suas diferentes formas de enfrentamento, revela uma valiosa
experiência. Para o europeu colonizador os quilombos e mocambos foram entendidos
como Hidras. Enquanto as autoridades agiam violentamente e imaginavam ter destruído
definitivamente estes refúgios, eles ressurgiam mais fortificados e assustadores (1995/96,
p. 41-42). Estas comunidades de fugitivos negros não ocorreram apenas no Brasil
colonial, segundo Flavio dos Santos Gomes em outros escritos:
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Nas Américas, as comunidades de fugitivos receberam diferentes
nomes: cumbes, na Venezuela, e palenques, na Colômbia; na Jamaica,
em Antígua e no sul dos Estados Unidos, eram conhecidas por
marrons; em São Domingos e outras partes do Caribe francês, o termo
era maronage; em Cuba e Porto Rico, cimaronaje. No Brasil, ficaram
conhecidas como mocambos e depois quilombos, termos que, na
maioria das línguas bantas da África Central, significam
acampamento¨ (2011, p.9).
Neste sentido, também lançamos mão do tropo de linguagem da Hidra dos
pântanos de Lerna, figura monstruosa com forma de cachorro e cabeças de cobra
sustentadas em longos pescoços, que enfrentou Héracles em um de seus Doze Trabalhos,
ordenados por Eristeu e descritos na mitologia grega. Héracles, a quem os povos latinos,
denominam de Hércules, foi filho do deus Zeus com a princesa mortal Alcmene de Tebas
(GRAVES, 1992, p. 61-70).
Durante o embate, a cada investida do semideus sobre a criatura, uma cabeça era
decepada ou esmagada, rapidamente, outra ressurgia do corte, mais feroz e peçonhenta.
Esta mesma capacidade de renovação de suas partes será utilizada por mim para retratar
cada cabeça da Hidra como um elemento que compõe o hip hop: dj, graffiti, break e o
rap. Neste sentido, tomamos posse da ideia da refrega mitológica entre a Hidra de Lerna
e Hércules para transformar o monstro na representação de uma tradição antinômica
(contradição, do destoante). O hip hop como parte integrante da cultura negra americana
e hoje, espalhado pelos quatro cantos do planeta, tem esta característica de se modificar,
sempre levando em conta as peculiaridades de onde ele é colocado em prática.
Grande parcela da população manauara, não tem a menor ideia do que seria o
hip hop, apesar de ouvir a música rap nas ondas do rádio, deparam-se chocados com as
linhas do graffiti nas paredes abandonadas e ficam admirados com as performances da
dança break nas calçadas. Na realidade, quando se fala desta parcela jovem da população,
associa-se imediatamente, a um ideário de juventude envolvida com o mundo da
marginalidade. Mas na nossa percepção, estes são, as principais vítimas e/ou
protagonistas da violência ocorrida nas periferias, além do consumo indiscriminado de
drogas ilícitas e/ou legalizadas. Para o cientista social Howard S. Becker:
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Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em certos momentos e
em algumas circunstancias. Regras sociais definem situações e tipos de
comportamento a elas apropriados, especificando algumas ações como
certas e proibindo outras como erradas. Quando uma regra e imposta,
a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo
especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras
estipuladas pelo grupo. Essa pessoa e encarada como um outsider
(2008, p. 15)
Antropólogos, historiadores e pesquisadores de diversas áreas científicas vêm ao
longo das últimas décadas ampliando seu campo de atuação e objetos de pesquisa na
região amazônica, principalmente quando nos referimos a espaços urbanos, isto se deve,
ao fato da inclusão da cidade como temática relevante como defende Gilberto Velho
(2003). O hip hop ao longo dos últimos dez anos, vem recebendo uma atenção maior das
ciências humanas e os trabalhos acadêmicos vêm ganhando espaço e reconhecimento da
sociedade. Este artigo segue fazendo a travessia para esta nova fronteira de temas
singulares. O hip hop como produto das ruas, demonstra uma tremenda capacidade de
renovar seus conceitos, sua linguagem, reinventando modelos sonoros e estéticos e isto
talvez, explique sua longevidade e força, uma verdadeira Hidra urbana. Além de se
apoderar deste bumerangue africano, que segundo Peter Linebaugh (1983) e minha tese
é da existência de trocas de experiências, mistura ritmos, influências, internacionais,
nacionais e informações regionais que estão sendo desenvolvidas, criadas e
ressignificadas na cidade de Manaus, capital do Amazonas.
Estas linguagens do hip hop, comumente são ligadas a uma apologia à violência,
mas não podemos esquecer que estas expressões são frutos de sentidos de uma realidade
social, que é uma construção histórica e social. Os hip hoppers (adeptos do hip hop) tem
em suas linguagens, mensagens que tentam criar uma mudança social radical. Neste
embate ideológico da vida cotidiana, onde o “teatro de guerra” são as “quebradas” do
Brasil, entendo esta linguagem como uma força contra hegemônica à estrutura burguesa
imposta, assim como defende Antônio Gramsci (1986).
Ao longo de algumas décadas, as Ciências Sociais vêm criando teorias que se
debruçam e se preocupam sobre a realidade social de sua época. Utilizo as leituras e
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críticas aos mecanismos de reprodução das estruturas sociais e as contribuições de Pierre
Bordieu (1996), que me chama a atenção o conhecimento e construção de mundo,
realidade apresentada que não existe uma homogeneidade de linguagens.
O Hip Hop como Hidra Urbana envolto em um Bumerangue
Africano
O hip hop é atualmente um fenômeno de amplitude mundial. Casas noturnas em
volta do globo tocam os sucessos dos maiores rappers (cantores de música rap) da
atualidade, que vendem milhões de cópias de seus álbuns. A indústria de vestuário e
calçados investem pesado na chamada streetwear (moda de rua). Rádios comunitárias e
comerciais em todo o território brasileiro têm em suas programações musicais, o estilo de
música rap.
O hip hop nasceu no início da década de 1970 nas ruas de cidades norte-
americanas, principalmente Nova Iorque e Los Angeles e foi batizado por um dos seus
pioneiros, o dj Afrika Bambaataa. Hip hop significa em uma tradução livre, mexer os
quadris. O hip hop é formado por quatro elementos básicos: o dj, o m.c., o break e o
graffiti.
DJ: é o músico que utiliza os pick-ups (par de toca-discos) para criar sons e
ritmos para animar as festas.
RAP: O M.C. Mestre de Cerimonias em uma tradução livre, mas alguns utilizam
o termo Mic Controller (Controlador do Microfone) ele ou ela representam o canto, a voz
e as mensagens da música rap. O rap, sigla das palavras Rythm And Poetry (ritmo e
poesia) e a música predileta dos adeptos e admiradores do movimento hip hop. O rap
nasceu na Jamaica e tem como característica mais relevantes as batidas pesadas,
aceleradas e as mensagens expressas através de discursos organizados em formas de
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rimas. A juventude trocava as armas de fogo pela poesia e ódio mortal pelo inimigo pela
autoestima, modificando desta maneira, o significado de nascer e crescer em uma
realidade pouco favorável para os menos privilegiados. A falta de oportunidades, o
sentimento de inferioridade seria suplantado pelo sentimento de dignidade e orgulho da
periferia.
As festas dançantes e a diversão foram muito decantadas, mas paulatinamente
este espirito deu lugar a mensagens de denúncias das mazelas econômicas, as
desigualdades e injustiças sociais, as arbitrariedades da polícia e o preconceito racial são
os temas prediletos dos rappers.
BREAK: Representa a dança e os movimentos corporais singulares e seus
praticantes são os b.boys (breakers boys) e b.girls (breakers girls). Na década de 1960, a
música negra tinha um papel significativo nos guetos norte-americanos e a dança sempre
foi um aspecto diferenciado neste período, basta lembrar as performances enlouquecidas
e enlouquecedoras de James Brown. Na década seguinte o estilo b.boyng desenvolvido
em Nova York e Popping dançado nas ruas de Los Angeles e o Locking executado na
cidade de Fresno também na Califórnia formou o que denominamos de Breakdance.
Juntando influências da Soul Music, da Funk Music, filmes de Kung-fu, dança indiana,
acrobacias da ginástica artística, influências africanas e no Brasil, a inclusão de
movimentos provenientes da Capoeira.
Para os b.boys e b.girls demostrar seu talento nas rodas de breakdance é
necessário demonstrar flexibilidade, precisão, leveza, técnica apurada, força e
criatividade.
Esta apresentação corporal e rítmica espalhou-se pelo mundo através de vídeo
clipes de Lionel Ritchie e Michael Jackson, além de películas como Wild Style (1983),
Flash Dance (1983), Beat Street – A loucura do ritmo (1984) e Break Dance (1984).
GRAFFITI: Desde sua pré-história o homem já colocava suas mensagens e
representações gráficas do mundo e da natureza nas paredes das cavernas. Na Roma
antiga seus habitantes já faziam uso do carvão para deixar recados, ideias, palavras
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proféticas e ordens das autoridades expostas. No Brasil durante o período militar (1964-
1985) os estudantes, trabalhadores fizeram uso da lata de tinta spray para demonstrar a
insatisfação pela falta de democracia, torturas ocorridas nas delegacias, presídios e
quarteis.
Na década de 1980 do século XX, artistas oriundos das ruas ganharam bastante
notoriedade, a exemplo de Jean Michel Basquiat e Keith Herring. Seus trabalhos forma
expostos em grandes galerias e ainda hoje são lembrados pela criatividade e qualidade
artística.
A palavra Graffiti vem do termo italiano Graffito, que significa inscrição em
muros, segundo Celso Githay (1999). A arte do graffiti começou com os tag’s, que são
assinaturas muito utilizadas pelas gangues de rua como códigos de demarcação de
territórios dentro dos bairros pobres. O graffiti desenvolveu-se junto com o Hip hop e é
um dos seus elementos mais controversos. Alguns ainda hoje, o posicionam no campo do
puro vandalismo e o desmerecem como arte e outros defendem a tese de sua importância
como manifestação artística urbana. Mas uma coisa e certa, a juventude pobre passa a
intervir no ambiente urbano e transformam muros sujos, casas abandonadas, espaços
ociosos em cenários de contestação ou apenas poesia visual. A necessidade de mostrar
seus pensamentos fez do espaço decadente da cidade a grande tela para a manifestação
da arte criada com rolinhos de pintura e tintas spray, porque no graffiti as paredes gritam.
A Hidra Urbana em terras brasileiras
No início da década de 1980 no Brasil, estudantes, ativistas, esportistas, artistas,
cantores, trabalhadores e políticos consagrados declaravam o apoio à redemocratização
do país depois de duas décadas de regime de exceção (1964-1985).
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Nas periferias das maiores cidades brasileiras, dezenas de jovens arquitetavam
também conquistar seus espaços. Precisavam sair de um processo imposto de
invisibilidade histórica, necessitavam ter suas reivindicações no mínimo ouvidas,
debatiam o preconceito racial e social sentidos por eles. Pois, segundo Hannah Arendt
(1993), a exclusão envolve a negação da própria condição humana, não permitindo a
possibilidade da ação, dificultando a própria realização como sujeitos sociais.
Nos bairros pobres, a voz da juventude negra, parda, menos privilegiada que
diariamente tinham seus direitos básicos negados (ROSE, 1997, p. 202) espalhava um
rastilho de pólvora. A “luta armada” estava prestes a ser declarada, municiados com
microfones, toca-discos, latas de tinta spray e o próprio corpo, explodiria nas ruas. Este
exército não aceitaria um armistício enquanto houvesse exclusão social, violência
policial, a falta de políticas públicas sérias e principalmente, a existência de uma pobreza
extrema. Segundo Yves Pedrazzini, “a pobreza é a última violência das sociedades
pacificadas e democráticas, mas é a mais terrível, porque o castigo imposto pelas camadas
dominantes não a elimina” (2006, p. 18). O hip hop “permitiu à juventude negra sentir-se
capaz de expor seus ideais e se orgulhar da sua origem e cultura” (SOUZA, FIALHO,
ARALDI, 2008, p. 19).
Para Marco Aurélio Paz Tella, o rap “é um instrumento de contestação da
realidade social” (ROCHA, DOMENICHI, CASSEANO, p. 31). Para o filósofo Lionel
K. McPherson em estudos sobre Thomas Hobbes e hip hop, sugere que o rap é
politicamente revolucionário (2006, p. 172).
Podemos considerar o hip hop como resultado visível do processo da diáspora
africana e forma concreta de resistência negra em todo o continente americano.
Compreendido como um instrumento de ligação e construção, reconstrução identitária
individual e coletiva de grupos afrodescendentes transportados pelas águas do oceano
Atlântico para o “Novo Mundo” para servirem de mão de obra para um sistema escravista
feroz (GILROY, 2001).
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O hip hop é um fenômeno nascido e criado nas periferias das cidades e não deve
mais ter omitida sua importância para uma parte da juventude manauara que tem seus
códigos, símbolos, estéticas, relações de poder, formas próprias de sociabilidade e, claro,
constroem suas identidades, utilizando e apropriando-se destes espaços urbanos.
A Hidra Urbana domina a cidade de Manaus
No ano de 1985, centenas de pedestres que observavam as promoções
estampadas nas vitrines das lojas de confecções e eletrodomésticos na Avenida Eduardo
Ribeiro, no centro da cidade de Manaus, deparava-se com uma nova e curiosa forma de
atrair a atenção dos consumidores. Alguns jovens ligavam um enorme som estéreo,
comprado na pujante Zona Franca e “quebravam” os ossos em movimentos curiosos,
imitavam robôs e caminhavam na gravidade lunar. Dançavam embalados pela trilha
sonora de Rock it, de Herbie Hancock, Sequencer, de Al di Meola, e os sucessos de
Michael Jackson. Caracterizados com calças esportivas, sapatilhas pretas, bonés
coloridos, luvas brancas e óculos escuros. Conseguiam ajudar os vendedores e recebiam
ainda, boas gorjetas.
Desta maneira, foram dados os primeiros passos da dança break em terras
manauaras. A onda da dança break virou febre em várias capitais brasileiras e Manaus
não foi diferente como ressalta Simão Pessoa (2000). A juventude influenciada pelos
vídeos e filmes estrangeiros (ROCHA, DOMENICHI E CASSEANO, 2001, p. 49/50),
mesmo de uma forma amadora e improvisada começaram a praticar as iniciantes
coreografias desta inusitada forma de expressão corporal.
As casas noturnas de Manaus em meados da década de 1980, como Bancrevea
Clube e Cheik Clube, transformaram-se nos pontos de encontro desta “galera” praticante
da dança. A Praça da Saudade e a Praça da Matriz foram os espaços prediletos para as
apresentações e disputas entre o b. boys (breakers boys como também são chamados os
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praticantes do breakdance) manauaras. Desta maneira, os b. boys aravam o território e
plantavam as sementes do que viria a florescer como o chamado M.H.M (Movimento Hip
Hop Manaus) na capital do Estado do Amazonas em 1994. Sigla que abrange grupos de
rap, crews (equipes) de breakdancers (dançarinos de break), grafiteiros, dj’s e Posses
(galeras). Ao longo de mais de vinte anos de existência o M.H.M continua sua luta pela
divulgação e promoção de projetos sociais voltados para a juventude pobre das periferias
de Manaus. Insistindo em preparar shows para a comunidade e organizar trabalhos
beneficentes como acontece em diversas cidades brasileiras.
O hip hop pode ser percebido espalhados pelos muros do centro velho de
Manaus, em viadutos, postes de iluminação pública, representado pelos traços e pelo
colorido dos graffitis e por suas mensagens plásticas, que ao olhar descuidado ou não
habituado a esta linguagem visual, os confundem na maioria das vezes com a pixação (os
pichadores preferem utilizar este termo, pois foge do convencional que está nos
dicionários), rejeitando o talento destes jovens artistas que sentem a necessidade de
transmitir suas ideias e faz uso do espaço urbano, que se apresenta como uma grande tela
para as manifestações da arte criada com rolinhos de pintura e tinta spray, por que no
graffiti as paredes falam.
Ainda hoje, centenas de jovens reúnem-se para divertirem-se e trocar
experiências nos chamados “bailes”, ¨rodas de rimas¨ e ¨batalhas de b.boys¨ que
acontecem todos os finais de semana nas periferias mais distantes da cidade de Manaus.
As vozes desta Hidra Urbana
A construção e a História recente do movimento hip hop em terras manauaras é
sem dúvida alguma, a minha principal defesa e reforço isto com alguns trechos de
entrevistas recolhidas no ano de 2010.
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Manuel Frank Silva Matos e mais conhecido pelo epiteto Mano FK, nasceu e se
criou na Zona Leste de Manaus. Hoje patrocina festas com estrelas de renome nacional
na nossa cidade.
E o hip hop para mim naquela época foi uma grande forca, tipo assim,
eu consegui ouvindo rap, no hip hop viver uma realidade sem ter visto,
a experiência, eu não preciso viver o mundo das drogas para mim ter
esta experiência. O rap já mim transmitia isso e com isso já conseguia
mim afastar e consegui enxergar um novo horizonte, um novo rumo a
seguir, comprar livros, procurar uma profissão, um trabalho. Seguir
uma trajetória certa e não parar em uma penitenciaria.
O paraense Rogério Arab, é considerado um dos melhores grafiteiros do
Amazonas, mas sua carreira começou com os primeiros traços sendo expostos na cidade
de Belém. Segundo ele seu envolvimento com o hip hop se inicia no final da década de
1980:
A minha história com o graffiti, com a escrita urbana, ela vem de 1988,
mais precisamente 1989, através da pichação. Porque na capital onde
eu nasci e morei durante toda a década de 1980 era Belém e a cultura
da pichação sempre foi muito forte e na época que eu comecei a me
entender na adolescência já existia essa cultura lá. Já era uma coisa
que dominava praticamente todos os bairros e, então tinha tios, primos
colegas que tinham sido pichadores e estavam envolvidos no
movimento, então foi uma influência muito forte, muito próximo do que
a gente via.
S. Preto e um dos maiores rappers da cidade de Manaus, oriundo da cidade de
Autazes e quando veio procurar uma vida mais digna e emprego na capital, logo conheceu
a street dance (Dança de Rua).
S. Preto narra os primeiros contatos com o rap nacional no ano de 1994:
O rap falado, a gente vinha conhecendo Thaide e Dj Hum, Racionais
Mc’s, essas coisas todas aí, pessoal muito importante no movimento, e
aqui a gente formou o DMD, grupo de dança e depois veio o canto,
cantar, rimar, essa coisa toda e em 2000 veio a banda Cabanos.
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Os Cabanos são um grupo de rap com muito sucesso e em 2008 gravaram o Cd
A ideia Não Morre com os rappers Mv. Guila, Nego Elio, Juca e o Dj Marcos Tubarão.
O Dj marcos Tubarão e um ícone da cultura hip hop manauara. Marcos da Silva,
iniciou sua carreira como dançarino de breakdance e hoje toca nos maiores eventos da
cidade e do país.
O disque-jóquei relata como ficou sabendo sobre o hip hop nos seus primórdios:
A gente não sabia o que era o hip hop. Estas informações vieram
através da televisão, com filmes do naipe de Breakdance, o Beat Street
Wild Style, então estes três filmes que projetaram a dança por meio do
cinema. Mas ressalta que no “Brasil mesmo teve aquele estouro do
breakdance, a partir de uma novela de 1984 que passava na Globo
chamada Partido Alto, a própria abertura trazia uma coreografia de
Break.
Falar de Marcos Tubarão é falar também do grupo de rap Cabanos, que evoca
os eventos históricos ocorridos na província Grão-Pará e Maranhão em meados do século
XIX conhecida como Cabanagem. Movimento armado que lutou contra tropas do Império
na região que hoje chamamos de Amazônia brasileira. Desta forma, conclamam:
E a nova batalha começou em 2000/ Passaram-se mais de 170 anos da
Revolução/ E o que mudou no norte do país?/ Nada mudou no norte do
país![...] Mas simplesmente tomar o exemplo dos antigos
rebeldes/Para que a gente possa originalmente/Reencontrar as nossas
próprias raízes [...]
Além destes ícones apresentados, posso citar alguns destaques da cena hip hop
de Manaus atualmente.
O grafiteiro que assina seus trabalhos com o epíteto Raiz que traz para a
sociedade manauara mensagens de cunho ecológico. Demonstra uma preocupação com
os destinos da humanidade no que diz respeito, a preservação da natureza.
A dupla Dj Carapanã & Jander S/A em registro fonográfico, Num vale 1 real
traz em suas letras e ritmos um certo regionalismo amazônico, principalmente na música
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Revolta de Ajuricaba onde temos uma crítica a música norte-americana que toca em todos
os cantos de Manaus, assim temos: Ajuricaba já conhece o calor de Manaus/ Apesar do
vento norte/ Aqui não tem vendaval/ Passa mal ouvindo Avril Lavigne na balsa/ Pendura
nela a placa/ Cópia da Alanis falsa [...].
À GUISA DE CONCLUSÃO
No início da década de 1990, chegou em minhas mãos um LP (Long Play) de
um grupo de música rap norte-americano chamado Fat Boys. Na capa do disco de vinil
havia três enormes afrodescendentes, trajando jeans, tênis e apresentavam uma atitude
desafiadora. Mas, o que mais chamou a minha atenção, foram os cartazes em preto em
branco colados na parede de tijolos que serviam de cenário. Pixadas com tinta e com
cartazes da campanha Free Mandela. Eram anos de luta pelas liberdades políticas na
África Sul e o combate ao sistema discriminatório do Apartheid (ideário político de
segregação praticada pela minoria branca em detrimento de uma maioria negra), era pauta
de debates e a música não deixou de dar a sua contribuição em prol da libertação de
Nelson Mandela.
Venho ao longo de alguns anos escrevendo sobre o tema, debruçando-me sobre
o hip hop e sobre o movimento negro como dirigente da UNEGRO (União de Negros
pela Igualdade) em nosso município. Contribuindo para a discussão sobre ações
afirmativas como o sistema de cotas sociais e raciais nas universidades brasileiras,
reconhecimento de comunidades quilombolas, a defesa do livre exercício dos cultos
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religiosos de matriz africana, a implantação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei n° 12.
288, sancionada pelo Governo brasileiro, em 20 de outubro de 2010) e a promulgação da
Lei n° 10. 639 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n°
9.394, de 1996) incluindo no currículo escolar do Ensino Fundamental e Médio a
obrigatoriedade de ensino de História e Cultura Afro-brasileira.
Fica claro, que o movimento hip hop na cidade de Manaus tem novas propostas
e a academia como espaço de debates não pode deixar de analisar esta juventude da
periferia que clama por espaço e fazem da arte uma válvula de escape.
O hip hop sobrevive por torna-se uma Hidra Urbana, renova-se com os tons, as
cores, os sons, os gestos, a musicalidade, as batidas, a arte da oralidade da ancestralidade,
as referências Caboclas, Negras, Indígenas, Ribeirinhas, Quilombolas, culturas que
circulam levadas por um Bumerangue Multiétnico que não reconhece fronteiras de
conceitos, preconceitos e muito menos, barreiras físicas.
Dê-nos ouvidos!
Referências Bibliográficas
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