haydÉe santamarÍa e a mitificaÇÃo de uma · uma “heroína da revolução cubana”, sob...
Post on 24-Jan-2019
215 Views
Preview:
TRANSCRIPT
HAYDÉE SANTAMARÍA E A MITIFICAÇÃO DE UMA
“HEROÍNA DA REVOLUÇÃO CUBANA”
CAROLINA DE AZEVEDO MÜLLER1
Este artigo visa analisar parte do processo de mitificação da heroína cubana Haydée
Santamaría pela memória oficial cubana. De forma breve, alguns eventos da trajetória política
de Haydée precisam ser destacados: ela atuou ativamente durante toda a luta insurrecional
cubana (de 1952-8); como enfermeira no ataque armado ao Quartel Moncada (1953);
imprimiu e divulgou o manifesto de Fidel Castro (1926-2016) A História me Absolverá
(1954); foi uma das fundadoras do Movimiento 26 de Julio (1955); trabalhou como uma
importante articuladora política, entre outras funções. Após a vitória dos rebeldes do M-26 em
janeiro de 1959, Haydée foi designada como presidente da recém-criada instituição cultural
cubana Casa de las Américas, que acabou se tornando muito importante no cenário cultural da
Ilha e da América Latina. Também foi uma das fundadoras do Partido Comunista Cubano
(PCC) em 1965, presidente da Organización Latinoamericana de Solidaridad (OLAS) em
1967, dentre outras atividades. Haydée cometeu suicídio em 1980, por razões não conhecidas
e, logo após isto, iniciou-se uma intensa produção textual em sua memória e homenagem,
sendo responsável por consagrar sua imagem como heroína nacional, em que atentamos a
construção de sua vida e caráter.
Estes textos produzidos em homenagem à Haydée compõem parte da memória oficial
cubana, em vista de que foram publicados em sites oficiais cubanos (revistas eletônicas) e na
Revista Casa de las Américas (em suas edições em papel), instituição oficial ligada à Casa de
las Américas2. No segundo periódico, os textos publicados são todos da década de 1980, já
nos sites oficiais cubanos, os textos são provenientes do século XXI (apesar de, muitas vezes,
não indicarem a data de publicação e/ou produção dos textos), especialmente a partir da
1 Graduanda em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Foi bolsista de IC da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) com a pesquisa Haydée Santamaría e a mitificação de
uma “heroína da Revolução Cubana”, sob orientação da Profa. Dra. Mariana Villaça, durante o período 2016-8.
2 Este órgão é chefiado por Fernández Retamar (Cuba, 1930-), um escritor e uma importante figura política em
Cuba. Desde 1965 é presidente da Revista Casa de las Américas e, desde 1986 (após o pintor cubano, Mariano
Rodríguez (1912-90), sair da presidência) também é diretor da Casa de las Américas.
década de 2010, com a publicação de diversos especiais em homenagem à Haydée ou de
celebração de eventos históricos da Revolução.
Os autores destes textos são provenientes, em sua grande maioria, da América Latina. São
ex-guerrilheiros, amigos de infância, familiares, artistas e/ou intelectuais que conheceram-na
por intermédio da Casa e por admiradores (este último grupo foi denominado desta maneira
devido que, após a análise de seus textos, foi possível concluir que eles não conheceram
Haydée em vida).
Os textos ao tratarem sobre Haydée realçam profundamente a passionalidade em sua
trajetória política. Os autores enfatizam que ela sempre foi uma mulher sensível, simples,
apaixonada, fiel ao Castro ao longo de toda sua vida, entre outras características passionais
que teriam designado-a à luta armada, e não reflexões políticas e/ou sociais (PRADO, 1999)3
sobre a ditadura de Fulgêncio Batista em Cuba (que concretizou o golpe de Estado em 1952).
Acerca da trajetória política e pessoal de Haydée, é importante salientar que muitos de
seus atos foram omitidos neste discurso oficial. Como sua atuação de articuladora política
para o M-26, que foi quase totalmente silenciada. Porém, seus atos pós-Revolução foram
quase todos omitidos, como suas atividades frente à Casa e demais ações até sua morte e,
essencialmente, se ela chegou a se posicionar contrariamente a alguma ação de Castro (como,
a título de exemplo, a aproximação da Ilha com a URSS). Isto reflete a “ilusão biográfica” do
sociólogo francês Pierre Bourdieu 4 (BOURDIEU, 1996:74-82), pois a memória oficial
cubana apagou possíveis incoerências na vida desta heroína, retrataram-na como uma mulher
cubana exemplar e acabam por significá-la como uma heroína da Revolução.
Em relação à aos atos de Haydée como presidente da Casa, muitas de suas atuações
efetivas foram silenciados por comentários que exaltam sua grande humanidade, sensibilidade
pela arte, que tratava todos como uma “mãe”, paixão pela Revolução e lealdade ao Castro.
Esta falta de informações sobre as atuações de Haydée não ocorreu apenas nos textos oficiais
e na bibliografia, mas também não temos materiais escritos pela própria, apenas poucas 3 Segundo a historiadora Maria Ligia Prado, a exaltação da passionalidade foi algo recorrente nas produções
biográficas sobre as mulheres que ataram nas Lutas de Independência latino-americanas no século XIX (PRADO,
1999).
4 De acordo com Bourdieu, a “ilusão biográfica” ocorre quando as produções biográficas estruturam a vida do
indivíduo biografado com começo, meio e fim já definidos, apagam as incoerências e atribuem um sentido
artificial à vida do mesmo (BOURDIEU, 1996).
entrevistas que acabam por realçar muitos dos aspectos defendidos pela historiografia oficial
cubana. Não deixa de ser significativo que quase todas as cartas escritas por Haydée foram
“misteriosamente” perdidas (RANDALL, 2015).
A questão de Haydée não ter trabalhado como artista em nenhum momento da sua vida
introduziu o questionamento se ela seria o indivíduo mais adequado para a posição de
presidência de uma instituição cultural. Acreditamos que por ser integrante do “círculo de
confiança” de Castro garantiu-a sua posição de destaque5, e, ainda, posto ser uma heroína da
Revolução, Haydée transparecia a imagem deste acontecimento histórico para a Casa
(MOREJÓN, 2010). Como ela não possuía conhecimentos ou habilidades artísticas de fato, os
textos, numa tentativa de “justificar” sua função na Casa, afirmam diversas vezes que Haydée
desde jovem teve grande “sensibilidade” à arte.
Também em relação à sua posição na Casa, acreditamos que Haydée não teve poder de
fato na instituição, dado que, como dito, não temos conhecimentos sobre suas ações efetivas
na Casa, nem nos textos ou na bibliografia. Ainda, a presença de Fernández Retamar como
presidente da Revista Casa (e, desde 1986 também da Casa) introduz o questionamento se não
era ele quem realmente definia as atividades da Casa enquanto Haydée ainda era presidente,
em vista de que era e ainda é uma figura política muito influente no cenário cultural cubano e
latino-americano. Nos especiais da Revista Casa em homenagem à ela foram publicados
diversas cartas em que artistas e intelectuais enviavam suas condolências. Entretanto, elas são
direcionadas a Fernández Retamar e não à Casa diretamente ou a Silvio Rodríguez (diretor da
Casa designado logo após a morte de Haydée).
Acreditamos que Haydée ficou “a margem” do poder em Cuba pós-Revolução e que isto
inclusive poderia ter incentivado seu suicídio em 1980. Porém, não podemos nos esquecer
que a Casa se tornou uma das duas entidades culturais mais importantes em Cuba
posteriormente a 1959, sendo o ICAIC a outra (VILLAÇA, 2010). Tal cargo a garantiu-a
grande influência em âmbitos culturais na América Latina com o contato com diversos artistas
e intelectuais, como atestado nos textos publicados na Revista Casa.
5 Como dito por Sílvia Miskulin, ocorreu a centralização do poder na mão dos guerrilheiros do M-26 (também
membros do PCC) a partir da disposição dos mesmos nos maiores cargos das principais instituições cubanas
(MISKULIN, 2009).
Outro aspecto presente no processo de mitificação de Haydée pela memória oficial
cubana se trata da construção generificada em torno da imagem dela. Isto foi estruturado
desde o movimento rebelde, em vista de que os jovens do M-26 desenvolveram uma norma de
comportamento para a luta armada, baseando-se nas concepções de gênero presentes nas
biografias dos heróis e heroínas independentistas cubanos e latino-americanos do século XIX.
Em função disto, as mulheres foram afastadas da primeira linha de batalha e apontadas para
atividades que tradicionalmente são designadas às mulheres, tendo que se submeterem a
estrutura patriarcal do movimento (SADDI, 2009).
Assim sendo, Haydée e Melba Hernández6, desejavam participar do Moncada, porém, os
homens do movimento rebelde não permitiram. Desta forma, elas peitearam para participar do
ataque armado e, segundo o texto de Marilys Suárez Moreno: “no falto el deseo de protegerlas.
Llevarlas al combarte resultaba penoso a la sensibilidade de Fidel”. Ambas criticaram tal
postura e exigiram participar do ataque, afirmando: “si estamos en pugna abierta contra
cualquier tipo de discriminación, ¿por qué establecer en esto distinciones?” (SUÁREZ
MORENO, s/d). Apesar delas terem debatido para participar do ataque, Fidel e Abel
continuaram discutindo sobre tal possibilidade e, enfim, outro homem foi quem definiu que
elas poderiam participar: o médico e guerrilheiro cubano Mario Muñoz (1912-53), para elas
auxiliarem no hospital como enfermeiras (e não no ataque armado).
Isto posto, quando do processo de mitificação das heroínas cubanas do século XX, a
imagem da mulher mambisa (atuante das Lutas de Independência cubanas do século XIX) foi
essencial para o processo. Isto foi incorporado especialmente na imagem da negra cubana
Mariana Grajales (1815-93), a combatente independentista que se tornou mais conhecida na
história cubana. A construção da imagem de Grajales em Cuba afirma que ela era corajosa,
fiel, determinada e capaz de sacrificar seus próprios filhos e a si mesma pela liberdade da
pátria. E, desta maneira, ela se tornou um mártir da nação cubana. A figura de Grajales se
tornou um dos maiores elos entre o passado, presente e futuro, da construção do caráter
6 Melba Hernández (Cuba, 1921-2014) foi uma guerrilheira do M-26 e atuou no ataque ao quartel Moncada em
1953. Após a Revolução foi uma das fundadoras do PCC, se tornou presidente do Comité Cubano de Solidaridad
con Vietnam del Sur, embaixadora de Cuba na República Socialista do Vietnã, entre outras atividades. Porém,
não teve grande atuação política pós-Revolução e em seu processo de mitificação pela memória oficial cubana,
sua atuação como guerrilheira é exaltado quase que unicamente e não há grandes comentários sobre suas ações
após 1959. Melba faleceu em Havana decorrente a diabetes.
nacional cubano: “resurrecting the mambisa figure and linking her to the Revolution was one
of the first acts of revolutionary mythmakers. Their mission was to root the 1959 Revolution
in an authentic past” (STONER, 2003:82).
Este mesmo personagem é exaltado no periódico Revista Mujeres, órgão oficial ligado à
outra instituição recém-criada pós-Revolução, a Federación de las Mujeres Cubanas (a FMC
foi dirigida por outra guerrilheira do M-26 que foi considerada heroína da Revolução, Vilma
Espín7). Esta revista foi o segundo periódico que mais publicou textos sobre Haydée, em que
enfatizam, quase que exclusivamente, seu papel como guerrilheira. Isto se trata, novamente,
de uma continuação histórica entre o XIX e o XX na história cubana.
As características atribuídas à personalidade de Grajales acima mencionadas também
apresentam-se nos textos sobre Haydée. A memória oficial cubana defende sua personalidade
como a de uma mulher que era fiel ao Castro ao longo de toda sua vida (nunca questionando
nenhuma de suas atitudes, nem na luta insurrecional e nem no pós-Revolução), corajosa ao
lutar, mesmo que isso custasse a vida de seus entes queridos (especificamente a de seu irmão,
Abel Santamaría e de seu noivo, Boris Santa Coloma8) e a questionar em seu julgamento no
tribunal os soldados bastianos que torturaram e assassinaram muitos rebeldes. Isto refere-se a
quando os soldados de Batista levaram um olho de Abel e os testículos de Boris para Haydée,
para tentar obrigá-la a falar sobre o movimento rebelde, porém, ela não revelou nada. Acerca
deste último aspecto, a ação de Haydée foi glorificada por Fidel Castro em seu manifesto A
História me Absolverá: Castro exalta como Haydée teria dito aos soldados que Boris “não
morreu, porque morrer pela pátria é viver”. E, para ele: ”o nome da mulher cubana jamais foi
colocado numa altura tão elevada de heroísmo e dignidade (CASTRO, 2011:65)”. Desta
maneira, Haydée foi exemplar e corajosa por defender bravamente a liberdade de Cuba.
7 Vilma Espín (Cuba em 1930-2007) foi uma guerrilheira atuante no M-26. Após o golpe de Estado de Batista
em 1952 Espín atuou ao lado do guerrilheiro Frank País em diversas atividades: participou do levantamento
rebelde em apoio a desembarque da embarcação do Granma, em 30 de novembro de 1956; foi integrante da
Dirección Nacional do M-26, e após a morte de Frank País, foi nomeada para Coordinadora Provincial da
província do Oriente, dentre outros trabalhos. Após a Revolução foi designada para a presidência da
recém-criada instituição Federación de las Mujeres Cubanas (FMC), integrou o Comité Central do PCC, entre
outras atividades. Faleceu devido a uma doença prolongada (a qual não foi divulgada).
8 Abel Santamaría (Cuba, 1927-53), irmão mais novo de Haydée, foi um dos grandes líderes do movimento
embrião do M-26. Boris Santa Coloma (Cuba, 1928-53) foi um guerrilheiro do mesmo grupo. Ambos foram
torturados e assassinados pelos soldados de Batista, no cárcere, após o fracasso ao assalto ao Quartel Moncada
em 27 de julho de 1953. Os dois rebeldes foram considerados mártires e heróis da Revolução após 1959.
Retomando, a imagem criada em torno da imagem da mulher mambisa era visada para
construir novos valores à nação cubana. A bravura, dedicação e seu sacrifícios dessas
mulheres se tornaram exemplos a serem seguidos (STONER, 2003). De forma semelhante, as
ações de Haydée foram descritas de forma romantizada para expressar sua trajetória política
como exemplar e assim influenciar as seguintes gerações. A autora cubana admiradora
Marilys Suárez Moreno afirma que:
[Haydée] no está físicamente entre los que aman y construyen el porvenir de
la patria. Más ella, que era ternura y sensibilidad, fortaleza y dignidad,
pervive aun después de su muerte, porque su nombre trasciende la proeza del
Moncada y se asienta definitivamente en la historia de la patria cubana
(SUÁREZ MORENO, s/d).
Esta concepção da mulher exemplar cubana e a imagem de Grajales também foi algo
presente após a Revolução. Durante o processo de legitimação do ideal do “homem novo”
cubano, defendido pelo guerrilheiro Ernesto “Che” Guevara9, em que os homens deveriam se
tornar legítimos revolucionários. Os ideias de justiça, coragem, honra e necessidade de
defender a pátria foram exaltados e a mulher foi vista como essencial para a construção dessa
nova sociedade cubana (SANTOS, 2013). Também, no discurso oficial pós-1959, verificou-se
a associação da mulher cubana como mãe e guerrilheira (SANTOS, 2010). Na glorificação da
imagem de heroína da Haydée, este ideal também apresenta-se fortemente, em vista de que
diversos textos realçam que Haydée se preocupava com todos como uma mãe, tanto enquanto
atuava como guerrilheira quanto foi presidente da Casa.
Além disso, após 1959 a historiografia oficial cubana também defendeu a mulher cubana
como heróica e forte, e atuante durante todo o percurso histórico cubano. Isto está relacionado
com a importância atribuída à mulher cubana que, posteriormente a Revolução, deveria
continuar lutando, agora dentro das perspectivas revolucionárias (VASSI, 2007). Este aspecto
também interliga-se com a imagem da mulher mambisa, dado que sua atuação nas Lutas de
Independência cubanas no século XIX foram vistas com o marco inicial da luta armada das
mulheres cubanas.
9 Che Guevara (Argentina, 1928-67) se uniu ao M-26 em 1956, quando conheceu alguns dos principais
guerrilheiros que estavam no México (aguardando para abarcaram no Granma e entrarem em Cuba). Atuou
politicamente de diversas formas no governo cubano pós-1959. Foi assassinado em 1967, na Bolívia, enquanto
estava lutando num movimento rebelde. É considerado um dos maiores líderes da Revolução Cubana.
O ideal do sacrifício pela pátria também era algo profundamente glorificado pelo discurso
oficial cubano desde do século XIX. Isto influenciou os rebeldes do século XX que também
exaltaram o ato e incorporaram-o na norma de conduta do M-26 (SADDI, 2009). Ao
sacrificar a si mesmo pela pátria, isto promovia o combatente do século XIX e o rebelde do
século XX ao status de mártir. Dentro deste aspecto, o suicídio de Haydée foi visto pela
memória oficial cubana, em alguns momentos, como um ato de martírio.
Haydée suicidou-se, aos 57 anos de vida, no dia 26 de julho de 1980, exatamente no 27º
aniversário do assalto ao Moncada. Haydée não era apenas uma figura importante da
Revolução, mas também foi considerada uma das “Heroínas del Moncada” (junto com Melba)
e, deste modo, seu suicídio implicou em ações específicas do governo cubano.
Para analisarmos o suicídio de Haydée nós utilizamos não apenas os textos que englobam
a memória oficial cubana mas, também, textos dos escritores cubanos Tania Díaz Castro10,
Roberto Jesús Quiñones Haces11 e Carlos Alberto Montaner Suris12, autores que já tiveram
problemas com o governo cubano e publicam em periódicos estadunidenses não ligados ao
mesmo governo13. Em função disto, é necessário ter cuidado ao analisar estes textos, devido a
posição exacerbada contrária ao governo cubano. Além disso, os testemunhos dos exilados
cubanos Guillermo Cabrera Infante14 e Carlos Franqui15 foram essenciais. Ao analisar tais
10 Tania Díaz Castro (Cuba, 1939-) é uma escritora que teve alguns de seus livros publicados pela Unión de
Escritores y Artistas de Cuba (UNEAC). Foi presa em 1989-90 por pedir um plebiscito contra Fidel Castro e
atualmente reside nos EUA.
11 Carlos Alberto Montaner Suris (Cuba, 1943-) é um escritor, jornalista e político que, em 1961 ele e outros
jovens foram aprisionados e condenados pelo governo cubano, acusados de integrar um grupo terrorista contrário
ao governo. Fugiu da prisão e da Ilha, indo morar na Espanha e nos EUA.
12 Roberto Jesús Quiñones Haces (Cuba, 1957-) é um escritor e poeta ainda residente em Cuba. É membro da
UNEAC e também escreve para o CubaNet.
13 Tais periódicos são CubaNet (conhecido por sua posição demasiada contrária ao governo da Ilha) e Neo Club
Press.
14 Guillermo Cabrera Infante (Cuba, 1929-2005) foi um escritor, romancista, roteirista, contista e jornalista
cubano. Após 1959 foi editor do periódico Revolución e construindo um suplemento do jornal, o Lunes de
Revolución, momento em que começou a ter desavenças com o governo castrista. Em 1962 se tornou dissidente
político e diplomata em Bruxelas e, em 1965 exilou-se em Madri e depois em Londres, local onde veio a falecer.
15 Carlos Franqui (Cuba, 1921-2010) atuou como guerrilheiro no M-26 e foi um dos fundadores do periódico
Revolución, órgão do M-26, e continuou a dirigir o jornal até 1963. Algumas de suas atividades pós-1959
envolveram também dirigir a Radio Rebelde em 1958 e o Congreso Cultural de la Habana em 1968, no mesmo
ano que rompeu com o governo cubano e exilou-se na Itália. Faleceu em Porto Rico.
textos pretendemos compreender sobre o ato da Haydée, posto que a memória oficial cubana
possui uma posição muito clara acerca disto.
A memória oficial cubana defendeu em 1980 e até os dias atuais apenas uma única razão
para o suicídio de Haydée: os traumas sofridos por ela após Moncada em 1953, quando Abel e
Boris, já aprisionados, foram torturados e assassinados pelos soldados de Batista. Os textos
afirmam que Haydée nunca teria superado tal evento e em 1980, após anos de sofrimento,
decidiu dar um fim à sua vida.
Os textos não mencionam que Haydée se suicidou e quase nunca nem chegam a comentar
que ela morreu. Existem alguns poucos textos que comentam que ela se suicidou, mas de
forma sutil. Quando estes poucos textos relatam que ela cometeu suicídio, não expressam
como foi o ato (com um revolver colocado dentro de sua boca (DÍAZ CASTRO, 2013) e
também não mencionam onde ela se suicidou, informação que também não é comentada pela
bibliografia. Cabrera Infante relatou que houve a especulação de que ela cometeu o ato em
seu escritório na Casa, e a escritora Margaret Randall16 mencionou que o filho mais velho de
Haydée, Abel Enríque Hart Santamaría17, encontrou o corpo de sua mãe, mas não informa
aonde (RANDALL, 2015:192). Isto demonstra o desejo do governo cubano de falar o mínimo
possível sobre o ato de Haydée.
A data também foi/é silenciada pela memória oficial cubana, posto que ocorreu numa
celebração de um evento de suma importância para a Revolução, o 27º aniversário em
homenagem ao Moncada (mesmo ano em que Fidel dedicou a celebração à memória de Abel
(FRANQUI, 1988:366). O governo cubano realizou a declaração oficial, afirmando que teria
16 Margaret Randall (EUA, 1936-) é uma escritora que se mudou para Cuba em 1969, viveu na Ilha durante
alguns anos (não temos conhecimento de quando ela deixou o país) e conheceu Haydée. Em 2015 ela publicou a
obra Haydée Santamaría, cuban revolutionary: she led by transgression em homenagem à Haydée. Randall
propõe-se nesta obra a ir contra os textos publicados sobre Haydée (os quais são nossas fontes, porém, a autora
não os compreendeu como parte da memória oficial cubana), todavia, acabou por reafirmar muito dos aspectos
defendidos por tais textos. Apesar disto, esta obra foi de profunda importância para o desenvolvimento desta
pesquisa, por nos trazer informações novas e diferentes testemunhos sobre Haydée..
17 Haydée casou-se com o guerrilheiro Armando Hart (Cuba, 1930-2017) ainda na luta insurrecional, em 1956.
O casal teve dois filhos: Abel Enríque Hart Santamaría (Cuba, 1960-2008), que se tornou advogado, e Celia
María Hart Santamaría (Cuba, 1963-2008), antropóloga, escritora e membro da IV Internacional (organização
comunista trotskista). Ambos dos filhos faleceram num acidente automobilístico em 2008. Celia María redigiu
alguns textos em homenagem à sua mãe.
ocorrido dias depois da comemoração, porém, isto logo se tornou insustentável e o governo
cubano manifestou que ocorreu no dia 26 (CABRERA INFANTE, 1996:180).
Algo que se tornou controverso foi o local em que ela foi velada, situação que não é
comentado por nenhum texto. O funeral da Haydée foi privado e restrito aos familiares e
amigos, e não realizado publicamente na Plaza de la Revolución, como no caso dos outros
heróis de 1959. Ainda para ocultar que foi um suicídio, cobriram o ferimento de bala no
crânio embrulhando sua cabeça com um lenço vermelho (IBIDEM). Ao analisar nossa
bibliografia, sabemos que o local do funeral de Haydée gerou questionamentos de alguns
indivíduos, como da sobrinha de Haydée, Niurka Martín Santamaría, e do próprio Fernández
Retamar (numa entrevista cedida à Randall e não em seu texto que engloba nossa
documentação (RANDALL, 2015:113). Além disso, segundo Cabrera Infante, Fidel não foi
ao funeral e nem declarou algo publicamente sobre o acontecimento (o escritor também
comenta que Haydée teria redigido uma carta para Castro se despedindo, todavia, seu
conteúdo nunca se tornou público (CABRERA INFANTE, 1996:280).
Acerca das razões para o ato de Haydée, Díaz Castro, Montaner Suris, Quiñones Haces,
Cabrera Infante e Franqui compreenderam-o como um ato político. Os três primeiros autores
ainda defendem que isto representou uma “falha” na Revolução. Todos esses cinco autores
também foram enfáticos em afirmar que o governo cubano empenhou/a-se significativamente
em silenciar o suicídio.
Um evento que foi considerado por Díaz Castro, Montaner Suris (MONTANER SURIS,
2011), Quiñones Haces (QUIÑONES HACES, 2015) e Franqui como uma das principais
razões para o suicídio da Haydée foi o Êxodo de Mariel. Este acontecimento refere-se a
quando 130 mil cubanos deixaram a Ilha em direção aos EUA por barcos no porto Mariel, em
torno de abril e outubro de 1980 (GOTT, 2006:302). Não deixa de ser peculiar que nenhum
texto de nossa documentação comentou sobre tal evento. Franqui chega a afirmar que Mariel
foi o ponto final para Haydée e que ela teria dado sua resposta final a Castro.
Haydée no pudo más. Protestó violentamente. Discutió con Ramiro Valdés y
Raúl Castro. El Mariel había ocurrido a fines de mayo. Un mês después,
ironías de la historia, Fidel dedica el 26 de julio de aquel año de 1980 a la
memoria de Abel Santamaría. Haydée entonces dio su respuesta al Mariel, a
Fidel Castro, al fracaso de la revolución. Para ella el 26 de julio era otra cosa.
Y para conmemorar la fecha se disparó una ráfaga de ametralladora. Y en
Cuba fue como si hubiese suicidado y muerto la revolución. (FRANQUI,
1988:366).
Desta forma, a memória oficial cubana silencia o suicídio de Haydée ao máximo e quase
nenhum texto menciona sobre o ato e quando comentam, detêm-se pouco no assunto. Em
função de pouco comentarem sobre, a memória oficial cubana, ao tentar “justificar” o
acontecimento (isto de maneira sutil, posto que não declaram diretamente que ela se suicidou
ou mesmo que faleceu), publicou diversos textos que afirmam que Haydée nunca superou os
traumas de Moncada e como a morte de diversos companheiros ao longo de sua vida também
afetou-a profundamente, como da outra ex-guerrilheira que também foi considerada heroína
nacional, Celia Sánchez18, em janeiro de 1980. Sánchez é descrita por alguns textos como
uma grande amiga de Haydée. Segundo a filha mais nova de Haydée, Celia María Hart
Santamaría, seu nome foi dado em homenagem à Sánchez (algo que atesta a grande amizade
entre ambas) e que a morte da mesma teria influenciado na ideia de Haydée cometer suicídio
meses depois (HART SANTAMARÍA, 2005).
Como comentado anteriormente, há certo desejo da memória oficial cubana em
transformar Haydée numa mártir da Revolução de 1959. Isto quando os textos defendem que
Haydée, em 1953, teria sacrificado seus entes queridos (Abel e Boris, sendo o primeiro mais
enfatizado que o segundo) pela liberdade da pátria e, posteriormente em 1980, a si mesma. A
jornalista cubana Marta Rojas, que conheceu Haydée ainda na luta insurrecional, afirmou que:
cuando [Haydée] murió también me preguntaron qué yo pensaba, hoy reitero
lo que respondí entonces: Haydée, en el fondo, fue también un mártir del
Moncada que durante un tiempo venció con creces su muerte, íntimamente
deseada aquel 26 de julio, junto a Abel y a Boris cruelmente torturados, por
eso fue dos veces ejemplar. (ROJAS, 2010).
Em alguns momentos do processo de construção da imagem como herói e mártir da
Revolução, é empregado um teor religioso cristão. Segundo a historiadora Mariana Villaça, ao
18 Celia Sánchez (Cuba, 1920-80) foi uma das principais líderes do M-26 e teve um grande papel na Sierra
Maestra. Após a Revolução, ela foi designada como secretária do Consejo de Estado, trabalhou no Parlamento,
foi membro do Comitê Central do Partido Comunista Cubano e integrou a Dirección Nacional da FMC, entre
outras funções. Faleceu devido a um câncer no pulmão. Sánchez é uma das heroínas de 1959 mais conhecida
internacionalmente. A historiadora Andréa Schactae analisa os ideias de feminilidade presentes nas produções
biográficas sobre Sánchez, ver: SCHACTAE, A. M. 'Mulheres Guerreiras': gênero e ideal de feminilidade na
biografia da cubana Celia Sánchez. Fazendo Gênero 10, 2013, Florianópolis, entre outros artigos.
analisar canções latinoamericanas em homenagem a Guevara, os compositores transmitiram a
ideia de sua imagem “como mártir, cristão generoso, solidário, sem vaidade alguma –
perceptível em “Hombre”, na qual Silvio Rodríguez constrói a idéia de Che como um homem
muito simples e piedoso que não tem sequer um sobrenome” (VILLAÇA, 2006:363). Valores
semelhantes são vistos nos textos sobre Haydée, ao descreverem que ela era uma mulher
generosa, sensível, justiceira, simples, piedosa e que não tinha muita vaidade. Tais atributos
constituem o apanhado geral que busca transformar Haydée numa mártir da Revolução.
Também é importante salientar que o suicídio não é visto como a morte esperada de um
herói, que precisa morrer em campo de batalha, defendendo sua pátria. Todavia, no caso de
Haydée, o ex-guerrilheiro negro do M-26 Juan Almeida19, escolhido para proferir o discurso
do funeral de Haydée (isto é algo peculiar, dado que nenhum texto ou obra bibliográfica
comentou sobre uma profunda relação de amizade entre ambos) defendeu que julgar o ato
dela seria injusto, visto que era conhecido seu sofrimento pós-Moncada. De acordo com
Almeida:
por principio, los revolucionarios no podemos estar de acuerdo con el
suicidio. La vida del revolucionaria pertence a su causa y a su pueblo, y debe
dedicarla a servirlos hasta el último átomo de energía y el último segundo de
existencia. Pero no podemos juzgar fríamente a la compañera Haydée. No
sería justo (ALMEIDA, 1980).
De todo modo, o suicídio de Haydée não poderia suscitar questionamentos de que poderia
ter sido um ato político, como uma resposta aos rumos da Revolução e das ações do governo
cubano. Portanto, seu sofrimento de décadas, devido as consequências do Moncada, foram
tomadas como a única razão para o ato de Haydée. Eventos como Mariel, a possível falta de
concordância dela com a aproximação da Ilha com a URSS, ou até o fato de seu marido desde
1956, Armando Hart, o Ministro da Educação20, ter deixado-a por outra mulher meses antes
de sua morte (isto, justamente para não deixar transparecer uma imagem negativa dessa
importante figura política do governo cubano), entre outros fatores, não são mencionados. De
qualquer modo, independentemente das razões que teriam levado Haydée a cometer suicídio,
19 Juan Almeida (Cuba, 1927-2009), guerrilheiro do M-26 que, posteriormente a 1959 foi considerado um dos
heróis da Revolução. Se tornou escritor e ganhou o prêmio literário da Casa de las Américas.
20 Armando Hart (Cuba, 1930-2017) tamb´me foi um guerrilheiro do M-26. Após a Revolução foi designado
como Ministro da Educação (cargo que, primeiramente, foi designado à Haydée, que recusou).
sejam elas políticas, pessoais ou o conjunto de ambas (o que acreditamos ter sido mais
provável, ainda mais devido a data escolhida por Haydée), as implicações de seu ato se
tornaram nitidamente políticas.
O processo de mitificação da Haydée pela memória oficial cubana, desde 1980 até os dias
atuais, se trata do desejo do governo cubano de exportar a imagem desta heroína (ainda mais
considerando que os textos são divulgados por meio da internet, algo que possibilita aos
estrangeiros conhecerem mais sobre a história dos heróis e heroínas cubanos). Ao afirmarem
que a Haydée era amável, sensível, leal durante toda sua vida ao Castro, apaixonada pela
Revolução, pela Casa de las Américas (silenciando possíveis atos que não teriam agradado o
governo, ou até se ela teria questionado as ações de Castro), pela liberdade e por Cuba, os
textos transmitem uma imagem positiva não só da Haydée, mas também da Revolução e das
demais heroínas cubanas.
Fontes citadas
ALMEIDA, Juan. Ante la muerte de la compañera Haydée Santamaría. Cuba: Revista Casa
de las Américas, n. 121, 1980.
DÍAZ CASTRO, Tania. El suicidio de Haydée Santamaría ¿Comprendería que asaltar el
Moncada fue una locura que segó la vida de su hermano y su novio?”. EUA: CubaNet, 2013.
HART SANTAMARÍA, Celia María. Este, el prólogo. Cuba: Cuba Debate, 2005.
MONANTER SURIS, Carlos Alberto. Alfredo Guevara y el suicidio de Haydée Santamaría.
EUA: Neo Club Press, 2011.
QUIÑONES HACES, Roberto Jesús. El suicidio más famoso de la revolución cubana.
Algunos suicidios significativos fueron los del comandante Félix Pena y Osvaldo Dorticós.
Aunque sin dudas, el más famoso de todos fue el de Haydée Santamaría. EUA: CubaNet,
2015.
ROJAS, Marta. La Haydée que conecí. Cuba: La Jiribilla, 2010.
SUÁREZ MORENO, Marilys. En la madrugada fundadora. Cuba: Revista Mujeres, s/d.
____. La pasión que los llevó al Moncada. Cuba: Revista Mujeres, s/d.
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: __. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Trad.
Mariza Corrêa. Campinas: Papirus, 1996,pp. 74-82.
CABRERA INFANTE, Guillermo. Mea Cuba. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
CASTRO, Fidel. A História me Absolverá. Trad. Pedro Pomar. 3ª. Ed. São Paulo: Expressão
Popular, 2011.
FRANQUI, Carlos. Vida, aventuras y desastres de un hombre llamado Castro. Barcelona:
Planeta, 1988.
GOTT, Richard. Cuba: uma nova história. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2006.
MISKULIN, Sílvia Cezar. Os intelectuais cubanos e a política cultural da Revolução
(1961-1975). São Paulo: Alameda, 2009.
MOREJÓN, Idália. Política y polémica en América Latina: las revistas Casa de las Américas
y Mundo Nuevo. México: Educación y Cultura, Asesoría y Promoción, S.C., 2010.
PÉREZ JR., Louis A. To die in Cuba: suicide and society. EUA: University of North Carolina
Press, 2005.
PRADO, Maria Ligia Coelho. A participação das mulheres nas lutas pela independência
política na América Latina. In: __. América Latina no século XIX: Tramas, Telas e Textos.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Bauru: Editora da Universidade do Sagrado
Coração, 1999
RANDALL, Margaret. Haydée Santamaría: cuban revolutionary, she led by transgression.
EUA: Duke University Press, 2015.
SANTOS, Giselle Cristina dos Anjos. Mulher e Revolução em Cuba. Anais do IV Simpósio
Lutas Sociais na América Latina, Londrina, 2010.
___. A revolução cubana e as representações de gênero. Revista Eletrônica da ANPHLAC,
n.14, jan./jun. 2013.
SCHACTAE, Andréa Mazurok. “Mulheres Guerrilheiras”: gênero e ideal de feminilidade na
biografia da cubana Célia Sánchez. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10,
Florianópolis, 2012.
SADDI, Rafael. O ascetismo revolucionário do Movimento 26 de Julho: o sacrifício e o corpo
na Revolução Cubana (1952-1958). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de
Goiás, Goiânia, 2009.
STONER, K. Lynn. Militant heroines and the consecration of the patriarchal state: the
glorification of loyalty, combat and national suicide in the making of Cuban National
Indentity. Cuban Studies, vol. 34, 2003.
VASSI, Cássia. A mulher cubana e sua sociedade: da independência à revolução. Dimensões,
n. 19, NPIH/Ufes, Vitória, 2007.
VILLAÇA, Mariana Martins. Mariana Martins. Cinema Cubano: Revolução e Política
Cultural. São Paulo: Ed. Alameda, 2010.
___. Representações de Che Guevara na canção latino-americana. Proj. História, São Paulo, n.
32, jun. 2006.
top related