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FACULDADE DE SÃO BENTO
JOSIEL AMARAL DA SILVA
O DIVERTIMENTO COMO FUGA DE SI
NUMA PERSPECTIVA PASCALIANA
São Paulo
2018
JOSIEL AMARAL DA SILVA
O DIVERTIMENTO COMO FUGA DE SI
NUMA PERSPECTIVA PASCALIANA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
como exigência parcial para obtenção do título de
Licenciatura em Filosofia na Faculdade de São
Bento de São Paulo.
Orientador: Prof. Dr. Joel Gracioso
São Paulo
2018
JOSIEL AMARAL DA SILVA
O DIVERTIMENTO COMO FUGA DE SI
NUMA PERSPECTIVA PASCALIANA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
como exigência parcial para obtenção do título
de Licenciatura em curso de Filosofia na
Faculdade de São Bento de São Paulo.
Orientador: Prof. Dr. Joel Gracioso
Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado
pela banca examinadora: em __/__/____
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Joel Gracioso
______________________________________________________________________
Prof. Dr.
______________________________________________________________________
Prof. Dr.
Dedico esse trabalho em honra e louvor à Santíssima Trindade
e à Santíssima Virgem Maria.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus pelo dom da vida e por me conceder a graça de conviver com
pessoas, que citarei aqui, que no meu entender, são sinais da presença de Deus.
Agradeço à minha mãe Maria Eunice, minha flor e meu amor, mulher guerreira a qual
dedico este trabalho. Também agradeço os meus irmãos, Josemar, Joseane e Jocymara.
À comunidade Boanerges e ao fundador desta, Washington Andrade, um santo
homem. Agradeço por me acompanhar e acolher com carinho paterno.
À Comunidade Unidos em Cristo, especialmente Luiz e Eneida (meus paizinhos), que
me dão força para continuar a minha caminhada através do seu testemunho. Sei que são
santos em nossos dias. Agradeço também, de todo coração à tia Sônia e ao tio Roberto.
Agradeço à minha querida amiga e psicóloga Paula, por sempre me ajudar e ser sinal
da presença do amor de Deus em minha vida. Se não me incentivasse e ajudasse, talvez eu
não desse continuidade aos meus estudos.
Ao tio Bartolomeu, um homem que foi usado por Deus para despertar em mim a
vocação, e a toda família Amaral, que me ensinou a guardar e expressar a alegria de Deus em
meio às dificuldades.
Ao grande irmão Wellington, bibliotecário da Faculdade São Bento, tive a
oportunidade de tê-lo como chefe e amigo. Este é um exemplo de pessoa que ama o que faz e
serve a qualquer pessoa sem interesses pessoais.
Ao Professor Joel Gracioso, que me introduziu no mundo da filosofia e que me
orientou neste trabalho. Professor e amigo na fé, que se preocupou e, se preocupa, para que eu
tenha uma formação ortodoxa. Que Deus abençoe muito a sua família e missão.
Aos professores Franklin Leopoldo e José Carlos Bruni, exemplos de humildade.
Ao Dom João Baptista, que me acolheu na biblioteca e me deu a oportunidade de fazer
este curso. Acolhe-me agora, como irmão de comunidade e me ensina a cultivar a sabedoria
monástica.
Ao Dom Abade Matthias e Dom Camilo pela confiança, testemunho e carinho.
Aos meus amigos da Biblioteca, Solone e Eliabe. Pessoas do bem e amantes de Deus.
Ao Dom João Marcos pelo o carinho e apoio.
Ao amigo Luan, sempre presente nas minhas alegrias e tristezas.
À professora e amiga Cristina, que muito tem nos ajudado na caminhada monástica.
Ao amigo Clóvis, uma grande figura que nos contagia com a sua alegria.
Na verdade, eu não me envergonho do evangelho:
ele é força de Deus para a salvação de todo aquele que crê. (Romanos 1, 16)
RESUMO
O presente trabalho trata do divertimento na interpretação do filósofo e matemático Blaise
Pascal. Conceito cujo sentido não se reduz a uma mera distração ou entretenimento, entendida
aos moldes da linguagem atual, mas é um conceito enraizado no século XVII, que carrega
consigo uma amplitude que alcança as várias formas de ocupações, sejam elas vivenciadas de
modo concreto ou por vias imaginárias, eficazes em nos exilar de nós mesmos, interferindo
em todas as possibilidades dos indivíduos viverem de forma harmônica consigo mesmo e se
autoconhecer. Ao analisar as causas e razões de nossa infelicidade, pretende-se, a partir do
auxílio Divino, uma via para ser feliz, resistir ao imperativo do divertimento e habitar consigo
mesmo.
Palavras-chave: tédio, divertimento, desespero, miséria, natureza, orgulho, grandeza, ócio,
insuficiência, paixão, graça, alienação.
ABSTRACT
This final paper deals with the enjoyment in the interpretation of philosopher and
mathematician Blaise Pascal. A concept whose meaning is not reduced to a mere distraction
or entertainment, but is a concept rooted in the seventeenth century that carries with it an
amplitude that reaches the various forms of occupation, whether they are experienced in a
concrete way or by means of imaginary; effective in exiling ourselves, interfering with all
possibilities of the individual to live in a harmonious way with himself and knowing himself.
In analyzing the causes and reasons for our unhappiness, Divine help is intended as a way to
be happy, to resist the imperative of enjoyment and to dwell with oneself.
Keywords: boredom, enjoyment, despair, nature, misery, pride, greatness, idleness,
insufficiency, passion, grace, alienation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 9
CAPITULO I - A INFELICIDADE NATURAL.............................................................. 11
1. A APOLOGIA PASCALIANA ............................................................................... 14
2. A TRANSCENDÊNCIA E A IMANÊNCIA............................................................ 16
3. A CONSCIÊNCIA E EXPERIÊNCIA TRÁGICA................................................... 18
4. A DUPLA FACE DA INQUIETAÇÃO................................................................... 21
CAPÍTULO II - O DIVERTIMENTO.............................................................................. 24
CAPÍTULO III - A PAIXÃO PELO JOGO..................................................................... 35
1. O JOGO COMO MODELO EXISTENCIAL........................................................... 42
2. O NADA EXISTENCIAL......................................................................................... 44
CONCLUSÃO...................................................................................................................... 47
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................. 51
9
INTRODUÇÃO
A partir do pressuposto que todos os homens almejam à felicidade, Pascal se deterá
em observar a causa de infelicidade do gênero humano. Não obstante, o conhecimento de
causa e efeito não dá conta de abarcar os problemas inerentes à natureza humana bem como, o
que pode nos fazer feliz. É justamente por isso que, um novo método deve ser considerado no
processo desta investigação: a razão dos efeitos. Somente este novo elemento integrado por
Pascal nos permitirá analisar com mais precisão as realidades das quais estamos sujeitos, a
saber: angústia, tédio e infelicidade.
A busca do repouso e do ócio sempre foram apreciados pelos sábios e filósofos,
inclusive, são considerados elementos fundamentais como meio para alcançar a felicidade. No
entanto, é verdade que não nos sentimos felizes quando temos a oportunidade de estarmos
sozinhos e aí desfrutarmos da solidão. Sempre desenvolveremos alguns mecanismos para não
ficarmos sozinhos no silêncio.
Ao contrário do que todos afirmam, quando dizem que precisam de repouso, na
perspectiva pascaliana que vamos apresentar, investigaremos se de fato é o repouso que
buscamos e o por que temos a necessidade de fugirmos dele quando temos a possibilidade de
o possuirmos. Para constatarmos este fato, basta pensarmos no que fazemos com o nosso
tempo livre, e veremos o quanto nos contradizemos.
Buscando maior esclarecimento do mecanismo alienante do divertimento, o tema deste
trabalho é o divertimento como fuga de si numa perspectiva pascaliana, analisada pelo viés
da doutrina agostiniana e jansenista. No entanto, não adentraremos em temáticas como a
predestinação e a graça. Temáticas muito debatidas e retomadas no agostinianismo do século
XVII.
Este trabalho foi estruturado em três seções principais. A primeira seção destina-se em
demonstrar que há no homem uma realidade paradoxal, ou seja, dois instintos; um procedente
da queda adâmica e outro sinalizando os vestígios da nossa primeira natureza. E que houve
uma experiência trágica na história humana. Razão pela qual temos os dois instintos e uma
grande desordem na nossa maneira de usufruir os bens temporais e passageiros.
Em seguida, o processo de tal investigação nos conduzirá a uma proposta de
autoconhecimento que, de nenhuma maneira, deva ignorar a primeira característica
encontrada e mais evidente em nosso ser, que é essencial para a visão antropológica
pascaliana, isto é, a miséria humana, e, concomitantemente, a sua insuficiência. Em
10
contrapartida, para restaurar o homem na sua totalidade, que é tão enferma e miserável, o
filósofo agostiniano vê como seu ofício conciliar as esferas rompidas para devolver a todos a
sua dignidade, ou seja, a relação indispensável que há entre transcendência e imanência, tão
negligenciada pela razão filosófica moderna.
Do mesmo modo, pretendemos analisar com critérios as instâncias que aparentemente
são contraditórias e tirar delas verdades que são fundamentais para a nossa existência. Não
obstante, mostraremos que está além de nossas próprias forças, restaurar este ser tão
contraditório e tão paradoxal que é homem. E, isso significa que toda a possibilidade de
resgate está numa força curadora que se encarnou num determinado momento da história e
que veio restaurar todo gênero humano.
Na segunda seção, não só adentraremos na temática do divertimento como fuga de si,
mas abordaremos as suas causas e a sua natureza. Também nos propusemos analisar as várias
formas de divertimento e o escopo dos homens quando as procuram.
Por fim, na terceira seção, verificaremos a partir da nova apologia a hipótese do quanto
somos inclinados para o divertimento e que há na natureza humana uma paixão para o jogo.
Para tanto, ampla pesquisa foi efetuada a nível da literatura, objetivando aprofundar esta
pulsão tirânica presente nos fragmentos de Pascal, bem como na sua importante argumentação
em defesa do Cristianismo.
11
CAPÍTULO I
A INFELICIDADE NATURAL
Ao colocar-se no eixo da discussão em torno da temática da felicidade, Pascal
identifica que a vida é marcada por um caráter trágico e que a natureza humana é
naturalmente frágil e infeliz. A única coisa que nos resta é buscar consolo nas coisas efêmeras
e temporais, com a tentativa de nos esquecer das desgraças e o tédio que nos cercam, mesmo
com a consciência de que, estes remédios são paliativos e insuficientes quando nos
confrontamos com o nosso eu, com a nossa mais pura e dramática realidade. De fato, não
podemos negar:
Todos os homens procuram ser felizes. Isso não tem exceção, por mais diferente que
seja os meios empregados. Todos tendem para esse fim. O que faz com que uns vão
para a guerra e que outros não vão é esse mesmo desejo que está em ambos
acompanhados de diferentes visões. A vontade nunca faz o menor movimento que
não seja em direção desse objetivo. É o motivo de todas as ações de todos os
homens até daqueles que vão se enforcar1.
Se interrogarmos a qualquer um o que seja a felicidade, incluindo o atual estado que se
encontram, prontamente responderão que desejam ser felizes, mesmo que não saibam definir
sobre essência deste estado de vida. De qualquer modo, desejam um estado de vida melhor, e
quando se detém sobre este raciocínio, logo lhes advém uma vida sem sofrimentos e fadigas,
levando-os a pensar numa vida privada de agitações e preocupações.
Muitos foram os pensadores que no decorrer da história se posicionaram sobre um
possível estado de vida feliz, bem como, seus requisitos. E, no entanto, há tantos anos,
ninguém sem a fé, chegou a esse ponto a que todos continuamente visam2. Quer seja por vias
morais, que seja por vias teóricas, ocuparam-se em sintomas que são inerentes ao próprio
homem: angústia, inquietude e desespero. Com tudo, Pascal, não tem como objeto de estudo
entreter-se nesses itens, pois, no seu raciocínio, são apenas sintomas de um estado privativo e
a temática fundamental do pensamento de Pascal prende-se ao princípio e ao fim da
existência humana3 sem, no entanto, desconsiderar esses sintomas. Evidentemente, o que de
antemão aqui se propõe é o conhecimento de causa; do contrário, o seu conhecimento seria
superficial. Este ilustre filósofo, pretende nada ignorar da realidade humana buscando
1 PASCAL, B. Pensamentos. p.59.
2 Ibid., p. 60.
3 TREVISAN, R. M. Pascal. p. 217.
12
compreender a razão dos efeitos de nossa mísera condição. Angústia, desespero e inquietude
são efeitos e não causa.
A palavra mais apropriada para exprimir o que Pascal quer dizer sobre a condição
humana é o que chamamos de miséria. Neste sentido, miséria não é nada mais que um estado
de privação de certos privilégios, de nossa verdadeira natureza e de uma realidade que nos era
própria:
A grandeza do homem é tão miserável que ela se extrai até mesmo de sua miséria,
pois aquilo é natureza nos animais, chamamos miséria no homem, e por aí
reconhecemos que, sendo a sua natureza hoje semelhante à dos animais, ele está
decaído de uma natureza melhor que lhe era própria anteriormente.
Pois quem se acha infeliz por não ser rei a não ser um rei possuído? Acaso achavam
que Paulo Emílio era infeliz por não ser cônsul? Pelo contrário, toda agente o
julgava feliz por tê-lo sido, pois a sua condição não era de sê-lo sempre. Mas achava
Perseu tão infeliz por não mais ser rei; é porque a sua condição era de sê-lo sempre
que achava estranho que ele suporta-se a vida. Quem se acha infeliz por ter se não
uma boca e quem não se acharia infeliz por só ter um olho? Talvez a gente nunca
tenha pensado em afligir-se por não ter três olhos, mas fica-se inconsolável se não se
tiver nenhum4.
Se enxergarmos o atual estado de miséria, também perceberemos que há em nós certa
grandeza que surge pelo simples fato de reconhecermos miseráveis. Esta é uma certeza que
nos é necessária como pressuposto para buscar a verdade sobre o nosso ser, visto que, ao
encontrarmos como primeira instância quando reconhecemos e aceitamos o que somos: a
grandeza do homem é grande por ele conhecer-se miserável; uma árvore não se conhece
miserável. É então ser miserável se conhecer (-se) miserável, mas é grande conhecer que se é
miserável5.
A grandeza de reconhecermos miseráveis também consiste em não fugir daquilo que
provavelmente nos levaria a nossa verdadeira grandeza, e de nos privar daquilo que temos de
mais nobre. Do mesmo modo, estamos diante de um fator trágico: a perfeição inicial e a
corrupção atual6. Isto pressupõe uma duplicidade de natureza, ou melhor dizendo, uma
natureza verdadeira e uma condição; grandeza e miséria. Certamente são realidades
paradoxais e contraditórias. A esfera da corrupção não é nada mais que um estado de
ignorância e de afastamento, de uma não-natureza. Disso decorre que a única coisa que
sabemos é que somos um ser contraditório, induzidos a fixar unicamente na imanência de
maneira que hoje, o homem tornou-se semelhante aos animais, e num tal afastamento de mim
que apenas lhe resta uma luz confusa do seu autor, de tal forma se extinguiram ou
4 PASCAL, B. Pensamentos. p. 40-41.
5 Ibid., p. 40.
6 SILVA, F.L. Fé e razão na apologia da religião cristã. p, 376.
13
perturbaram todos os seus conhecimentos!7 Assim, o homem não só ignora a verdade de si
mesmo como também, a verdade da sua origem.
A confusão é tamanha que não sabemos quem somos e nem qual será o nosso fim. Isso
se evidencia pelos inúmeros tratados filosóficos e falsas religiões que tentam dar respostas
sobre estas questões. Como muitas delas são insatisfatórias, a questão ainda permanece. Quem
é o homem? Quem sou eu? Para onde vamos? Equivocam-se ainda aqueles que confiam nas
suas próprias faculdades, de por si mesmos construírem suas verdades. Aliás, a causa da
significativa desgraça está justamente no fato de, segundo Pascal, o homem quer se tornar
centro de si buscando a felicidade independentemente de seu verdadeiro bem:
Uma prova tão longa, tão contínua e tão uniforme deveria por certo nos convencer
de nossa impotência para chegar ao bem por nossos próprios esforços. Mas o
exemplo pouco nos instrui. Ele nunca é tão perfeito semelhante que não haja alguma
delicada diferença e é por isso que nós esperamos que nossa expectativa não seja
frustrada nesta ocasião com a outra, e assim, como o presente nunca nos satisfaz, a
experiência nos engana e, de desgraça em desgraça, leva-nos até a morte, que é seu
arremate eterno.
Que nos brada, pois, essa avidez e essa impotência se não que houve outrora no
homem uma felicidade verdadeira, da qual só lhe resta agora a marca e o vestígio
totalmente vazio que ele inutilmente tenta preencher com tudo aquilo que o cerca,
procurando nas coisas ausentes o socorro que não encontra nos presentes, mas que
são todas incapazes de fazê-lo porque esse abismo infinito não pode ser preenchido
senão por um objeto infinito e imutável, isto é, por deus mesmo?
Só ele é o verdadeiro bem e desde que o abandonou, é uma coisa estranha que nada
exista na natureza que seja capaz de ocupar, astros, céu, terra, elementos, plantas,
repolhos, alhos-porós, animais, insetos, novilhos, cobras, febre, peste, guerra, fome,
vícios, adultério, incesto. E, desde que perdeu o verdadeiro bem, tudo pode
igualmente lhe parecer tal, até a sua própria destruição, embora tão contrária a Deus,
à razão e a natureza juntos8.
Com isso, na tentativa de se colocar como centro de si, através presunção, a natureza
humana, se corrompeu reduzindo-se a um estado de miséria. Ferida esta natureza, necessita-se
de ser restaurada. Mas como pode ser curada esta chaga aberta, uma vez que tal afastamento
tem como efeito a ignorância e a cegueira? Será que pelas próprias faculdades poderemos
efetivar uma antropo-redenção? E se não há no homem a capacidade de se regenerar sem uma
teo-redenção? Diante disso, não podemos fugir do fato de que há uma desordem em nossa
natureza como forças contrárias, rivalizando-se com a própria razão, predominando na
concupiscência.
No caso de uma antropo-redenção, na visão do filósofo eremita de Port-Royal, isso
não é possível, pois todas as nossas faculdades foram ofuscadas e não pode o homem, de
7 Ibid. p. 376.
8 PASCAL, B. Pensamentos. p. 60-61.
14
maneira alguma, salvar-se a si mesmo. O máximo que pode ocorrer é equivocar-se, perdendo-
se na imanência. Certamente, a única via que temos deixada na própria natureza humana é a
grandeza inerente à nossa primeira natureza que nos permite conhecer a nós mesmos como
decaídos, de modo que só assumimos verdadeiramente quem somos se temos consciência do
que perdemos9. Se a possibilidade de nossa redenção está no princípio de identificar em nós
uma grandeza, equivale confirmar que realmente houve uma queda e, ao mesmo tempo, uma
corrupção. Logo, nos vem o questionamento sobre este estado, pois, como poderíamos
encontrar sinais sensíveis que nos direcionariam para a nossa redenção, uma vez que estamos
corrompidos e as nossas faculdades ofuscadas? Com toda certeza a natureza humana é
corrompida. Felizmente esta corrupção não é total. É justamente este fato que nos permite
encontrar em nós um pequeno lampejo de luz, mesmo confusa, como guia; e ainda nos resta
um instinto impotente de felicidade.
Este instinto consiste simplesmente numa lembrança turva da primeira natureza, ou
ainda, movimentos de grandezas balbuciando no fundo da nossa miséria, algo que nos pode
conduzir. No entanto, ele é ainda impotente quando se trata de nos direcionar para a
felicidade, pois no estado que nos encontramos, da segunda natureza, a felicidade não é um
estado natural porque estamos afastados do verdadeiro ser que nos proporciona a felicidade.
1. A APOLOGIA PASCALIANA
O instinto, que já esboçamos anteriormente, sinaliza que existem na condição humana
sinais que a fazem trágica, como diz Goldmann:
Porque a memória da primeira natureza nos põe diante de algo que não podemos
alcançar, como se houvesse no homem um impulso para uma meta que ela jamais
atingirá, impulso ao qual, paradoxalmente, os seus próprios movimentos não podem
corresponder10
.
A princípio ecoa estranho aos nossos ouvidos a ideia de duas naturezas. É certo dizer
que a verdadeira natureza foi criada por Deus e a felicidade humana está somente nele. A
segunda natureza, ou seja, este estado de privação tornou-se natural, pois do primeiro estado
há um afastamento incomensurável, e deste, temos apenas uma vaga lembrança.
Consequentemente, devida à sua ignorância, habituou-se o Homem sobre o império da
9 PASCAL, B. Pensamentos. p. 9.
10 SILVA, F. L. Fé e razão na apologia da religião cristã. p. 377.
15
concupiscência acreditando ser o segundo estado a sua verdadeira natureza, buscando a
felicidade pela sua própria fraqueza. Mas o impulso da primeira natureza revela ao menos que
somos seres contraditórios, que almejamos algo e, ao mesmo tempo, não somos capazes de
alcançar.
Diferentemente das outras apologias, a apologia pascaliana não parte das realidades
suprassensíveis do céu para a terra. Ela tem como pressuposto um conhecimento do homem
em sua realidade trágica, aquilo que muitos apologistas ignoraram: a fragilidade humana com
sua miséria e angústias. Assim, para Dimitry Merejkovski:
os pensamentos de Pascal começam por uma antropologia, - «conhecimento do
homem». Para constituírem uma verdadeira «apologia», os Pensamentos
precisavam, efetivamente, de partir do homem, com suas misérias e limitações, para
a realidade suprema de Deus, com suas grandezas e sublimidades [...].11
Grandeza-miséria, finitude-infinitude, natureza-condição, existência-transcendência,
Deus-Homem; a natureza humana é “constituivelmente” contraditória, nada mais terrível para
a razão. Por um lado, sabemos que somos insuficientes e limitados, tão frágeis que, a qualquer
momento estamos sujeitos às adversidades da vida como perdas, doenças e morte. É
angústiante saber que somos contingentes! Por outro, carregamos em nós o desejo do infinito,
do eterno, de ser felizes. Vivemos nos deleitando no prazer corpóreo apegando-nos aos bens
deste mundo, com a única certeza de que tudo se esvai. E como não podemos trocar o certo
pelo duvidoso, não temos certeza acerca do minuto que nos precede. A solução é aproveitar o
máximo daquilo que são apreendidos pelos nossos sentidos e que é fonte de prazer, mesmo
que sejam momentâneos, pois, seria uma perda de tempo não viver o tempo presente.
O conhecimento que devemos ter a priori acerca de nós mesmo é que somos
miseráveis. E, para que haja o reconhecimento da grandeza é necessário, ao mesmo tempo,
sanar esta chaga aberta. Mas esta grandeza é objetiva, e totalmente outra:
Só Deus possui a verdadeira grandeza; ora o homem possui a verdadeira miséria;
logo tem que reconhecer que ao seu nada só é possível resgatar-se pela graça. E
Deus atua nos corações pela graça; corresponder à graça é antes de tudo, reconhecer
a própria miséria12
.
Reconhecer a própria miséria é um ato da inteligência na medida em que corresponde
com a graça de Deus. Só obtemos o conhecimento da verdadeira miséria que há em nós com o
auxílio da sua graça. Isso mostra não só a nossa insuficiência em falar a verdade para nós,
11 PASCAL, B. Jesus Cristo, p. 6.
12 Ibid., p. 7.
16
como nos revela que, só retemos o conhecimento verdadeiro sobre nós, através da graça.
Qualquer conhecimento sobre a realidade humana enunciada pela a razão sem a graça são
pretensões que tendem a agravar o nosso estado miserável, pois o conhecimento da miséria
sem a graça gera desespero e o conhecimento de uma grandeza sem a graça é puro orgulho.
Grandeza e miséria são verdades que a princípio se contrapõe e se divergem, em todo
caso, o erro nasce de nos apegar a verdades que são parciais e a razão jamais buscaria um
princípio de explicação na contradição. Ora, reconhecer que necessitamos do auxílio de
divino para colher verdades sobre nós, não significa que o filósofo-apologista está opinando
para o irracionalismo ou fideísmo, mas o que se propõe, é a necessidade da humildade da
inteligência quando se defronta com realidades além da razão.
Ao contrário dos filósofos racionalistas, Pascal não acredita na primazia da razão; pois
a razão não pode ir além de si mesma, ela pode ao menos reconhecer esse limite, e de alguma
maneira compreender que é racional submeter-se àquilo que ela não pode dominar pelos
seus próprios meios13
. Constatamos que o homem é um ser paradoxal e que é um desafio para
razão quando se depara com contradições. A dificuldade maior repousa no fato de que, nas
contradições nos confrontamos com o incompreensível e o incrível. Ora, o incompreensível
existe. Ainda que a razão não compreenda que somos um ser complexo e contraditório, não
significa que as contradições em nós não existam. Consequentemente, mesmo sem
compreendermos a existência de Deus, não podemos concluir que Ele não exista. O que deve
ser colocado em questão não é só a existência daquilo que não compreendemos, mas
principalmente o porquê da nossa razão não poder abarcar o incompreensível pelos próprios
meios. Pela incompreensibilidade racional, obtemos uma base mais sólida que a razão, pois se
trata da relação entre Deus e o homem14
.
2. A TRANSCENDÊNCIA E A IMANÊNCIA
Pascal, ao se posicionar na certeza do auxílio de um Deus como única fonte de
restauração do gênero humano, defende para o próprio homem a única possibilidade de seu
resgate trazida por Jesus Cristo. Afasta-se, portanto, das demais doutrinas filosóficas que
usam as fantasias e o desespero como justificativa da frustração humana. Além do mais, a
13 PASCAL, B. Pensamentos. Introdução p.11.
14 Cf. SILVA, F. L. Fé e razão na apologia da religião cristã. p. 379.
17
apologia do nosso filósofo solitário, identifica precisamente que o homem trocou a
transcendência pela imanência, e essa troca se reflete nas agruras de sua existência. Por isso
a função da apologia seria a de recompor a relação com a transcendência, a partir de uma
compreensão mais lúcida da existência15
.
Não nos resta dúvidas que Pascal seja um homem de visão, pois na sua apologia,
entreve o princípio que determinadas correntes filosóficas engendrarão no erro, no que se
refere à troca da imanência pela transcendência. A verdadeira concepção antropológica do ser
Homem, bem como a dignidade deste ser, só poderá ser mantida quando houver conciliação
entre imanência e transcendência. Do contrário, todos os conceitos e teses sobre o Homem e o
mundo, estarão inclinados a uma cosmovisão superficial. Neste sentido, quando se toma
somente a esfera imanente, está cortada toda a possibilidade de felicidade, e se arisca cair num
reducionismo, bem como, numa mera animalidade. Além do mais, uma vez que se faz uma
ruptura das duas esferas (este movimento, para Pascal, deve conciliar e não romper),
tomaremos como verdadeiro na imanência aquilo que não somos, isto é, na sua mais pura
carência. E ainda, abarcaremos apenas a miséria e assim estaremos sujeitos ao desespero,
pois, o qual grandeza e bondade encontraremos no Homem? As nossas misérias são os
aspectos mais evidentes que se apresentam em nós, e não precisamos de nenhuma ajuda para
enxergar o quanto somos miseráveis. Assim, mesmo sem perceber, já estamos imersos num
pessimismo avassalador e que traz consigo um grande problema: a descrença, quer seja em
relação as nossas capacidades e potências, quer seja em relação a um ser divino do qual todos
necessitamos. Isso também explica a relutância de estarmos sozinhos, na necessidade de
desviar os pensamentos que realçam as nossas fragilidades.
Por outro lado, se buscarmos um conhecimento sobre nós, que não esteja em harmonia
entre as duas esferas, e se neste delinear encontrarmos alguma grandeza, correremos o perigo
de atribuí-la a nós mesmos, o que consequentemente nos posicionaria como autossuficientes.
Não obstante, Pascal ao descrever o Homem como substancialmente insuficiente,
também apresenta os riscos que emanam deste conceito. Ou seja, ele é totalmente dependente
de Deus, pois a causa da queda adâmica estaria no fato de se reafirmar como suficiente, vale
dizer, uma independência em relação ao seu Criador16
.
15 Ibid., p. 378.
16 Cf. PONDÉ, L. F. O Homem insuficiente. 2001.
18
Todas as vezes que buscamos nos apoiar unicamente em nossas faculdades
intelectivas, não reconhecemos a necessidade da graça de Deus, rompendo com o nosso
verdadeiro bem.
3. A CONSCIÊNCIA E EXPERIÊNCIA TRÁGICA
Como em vários períodos da história, o século XVII possui uma consciência trágica
que se caracteriza mediante a compreensão de um novo mundo criado pelo relativismo
individualista. Este tempo é marcado pelo triunfo do racionalismo filosófico adjunto do seu
mecanicismo científico.
Obviamente, todos os períodos históricos possuem sua visão de mundo que, de suas
esferas filosóficas, implicarão em regras éticas e morais. Não obstante, o mundo de ideias que
rodeia Pascal, se trata de um ideal de vida que tem suas bases a partir do indivíduo, ou seja,
todo conhecimento e métodos devem partir das faculdades do próprio Homem como meio
mais seguro da veracidade do conhecimento. Pascal percebe que estas mudanças decorrem
pelo fato da modernidade aspirar romper com toda a realidade suprassensível. Assim,
podemos compreender o projeto pascaliano de começar a sua apologia pela antropologia,
visto que no seu contexto predominava uma consciência fundamental de eleger o mundo
como única perspectiva do Homem.
Neste sentido, é de salientar que a característica comum que encontramos nos diversos
períodos em relação a consciência trágica é que todas elas expressam uma profunda crise
entre as relações dos homens, o mundo social e o mundo cósmico. E, no século XVII, o
filósofo apologista se coloca diante de uma consciência trágica mediante suficiência e
insuficiência do homem, bem como, presença e ausência de Deus como centro mesmo da
tragédia:
Pero ni sinquiera con estas observaciones hemos alcanzado todavia el verdadero
sentido de «Dios oculto». Existir siempre sin aparecer jamás continua siendo una
situación lógica y aceptable (aunque no aceptada) para buen sentido cartesiano; hay
que añadir que el ser del Dios oculto es para Pascal, como para el hombre trágico en
general, una presencia permanente más importante y más real que todas las
presencias empíricas y sensibles: se trata de la unica presencia esencial. Un Dios
siempre ausente y siempre presente es el centro mismo de la tragedia17
.
17 GOLDMANN, L. El hombre y lo absoluto. p. 52.
19
Na visão do grande apologista da modernidade, a temática da presença-ausência de
Deus são pilares fundamentais no que tange a consciência trágica da modernidade e a base de
sua reflexão. E disso decorre o modo de vida de cada pessoa, pois, se negamos a existência de
Deus, a única coisa que nos resta é uma vida mundana; se afirmamos a sua presença,
implicará num modo de vida que rejeita toda possibilidade de amizade com o mundo. O
mundo e Deus, na visão dos jansenistas são realidades que não andam juntas; ou se entrega
totalmente a Deus e se rejeita o mundo com todos os seus prazeres, ou se vive uma vida
mundana e renuncia a sua amizade com Deus. Além do mais, para Pascal, Deus não é uma
ideia ou coisa que possui um significado, mas ele É. Só a Sua presença é realmente
necessária.
Para os inimigos da verdadeira religião, a existência de Deus não é tão evidente como
afirmam os seus eleitos. E, se este Deus não se mostra, logo se deve concluir que ele não
existe e concomitantemente não é necessário. Todavia, Pascal refuta este pensamento dizendo
que se Deus é oculto e se a maioria dos homens não o percebe, isso se dá pela indignidade dos
próprios homens e não pela inexistência de Deus:
Se nunca nada tivesse se mostrado de Deus, essa privação eterna seria equívoca e
poderia tanto referir-se à ausência de toda divindade como à indignidade em que
estariam os homens para conhecê-la; mas, o fato de ele mostrar algumas vezes, e não
sempre, elimina qualquer equívoco, Se ele se mostra uma vez, ele existe sempre; e
assim só se pode concluir que existe um Deus e que os homens são indignos dele18
.
De fato, o essencial para Pascal é a existência de Deus. E se não o abarcamos, o
problema reside na nossa ignorância e no afastamento de Deus. A final de contas, esse Deus
para o filósofo é sempre presente e sempre ausente; ele é o Deus absconditus. Assim, tanto
para Pascal, quanto para o homem trágico em geral, se trata de uma presença permanente
mais importante e mais real que todas as realidades empíricas e sensíveis19
. Indubitavelmente,
o homem só será capaz de conhecer a Deus pela faculdade que lhe é sensível, isto é, o
coração. Pois, é o coração que sente a Deus e não a razão. Eis o que é a fé. Deus sensível ao
coração e não à razão20
.
Como já descrevemos, o fato de reconhecer-se miserável é apenas uma verdade que
encontramos como primeira instância. De um lado reconhecemos miseráveis, por outro,
concebemos também um sentimento de verdadeira grandeza quando correspondemos com
18 PASCAL, B. Pensamentos. p. 179.
19 GOLDMANN, L. El hombre y lo absoluto. p. 52.
20 PASCAL, B. Pensamentos. p. 164.
20
aquilo que está além das nossas próprias possibilidades, e desta realidade muitos procuram se
esquivar. O que se esboça aqui é uma miséria no sentido mais profundo, num sentido
metafísico-teológico.
A fim de elucidar quão profunda é a miséria do homem, o filósofo polemista se utiliza
frequentemente de imagens que nos chama a atenção:
Pois quem se achava infeliz por não ser rei a não ser um rei despossuído? Acaso
achacam que Paulo Emílio era infeliz por não ser cônsul? Pelo contrário, toda gente
o julgava feliz por tê-lo sido, pois a sua condição não era de sê-lo sempre que
achavam estranho que ele suportasse a vida. Quem se acha infeliz por não ter senão
uma boca e que não se acharia infeliz por só ter um olho? Talvez a gente nunca
tenha pensado em afligir-se por não ter três olhos, mas fica-se inconsolável se não
tiver nenhum21
.
Podemos entender o rei destronado, a cujo filósofo se refere, certamente como uma
analogia feita em relação ao primeiro homem criado, possuidor de uma coroa que, por amor a
si, perdeu o seu glorioso trono, isto é, decai o homem, perdendo o seu verdadeiro estado de
natureza, ofuscando a suas faculdades. Como consequência, resta-lhe uma condição que se
resume em inconstância, tédio, inquietação22
. Após a queda, somos inteiramente
inconstantes, procuramos, sobretudo, a felicidade divagando por lugares e bens que não
podem nos realizar, e possuindo os bens, por menor que sejam, apegamo-nos neles como se
fossem a nossa felicidade. Em relação à inquietação, Pascal parte do princípio agostiniano,
da inquietude humana: Criaste-nos para vós, senhor, e o nosso coração vive inquieto,
enquanto não repousar em vós23
. Vivemos inquietos procurando a nossa coroa, que é o maior
dos bens, isto é, Deus. Aliás, é justamente desta miséria radical que estamos falando: a
miséria do homem sem Deus.
A angústia, por sua vez, é um estado permanente da perda de Deus; angústia-se o
homem por experimentar no seu ser uma perda profunda que se traduz num profundo vazio
interior, grande quanto o infinito. Uma vez que as suas faculdades intelectivas e volitivas
foram atingidas pelo pecado, o drama humano intensifica-se depositando toda a sua confiança
e estabilidade naquilo que é transitório e relativo, aumentando assim a sua frustração e a falta
de sentido. Um rei sem coroa é um rei sem poder e glória; um rei sem poder e glória é um rei
desesperado!
O desespero é a característica fundamental daqueles que não tem em quem confiar ou
esperar, pois depositou e esperou demasiadamente naquilo que é contingente. Fomos eleitos
21 Ibid. p.40.
22 Ibid..,p.8.
23 TREVISAN, R. M. Pascal, O apologista da inquietude. p. 218.
21
para ser rei e denominar as coisas, ou seja, deveríamos manter um olhar equilibrado
colocando cada coisa nos seus respectivos lugares; no entanto, comportamo-nos de modo
diferente; ao invés de ser senhor, vivemos como escravos de coisas mais insignificantes que
seja.
4. A DUPLA FACE DA INQUIETAÇÃO
Longe de menosprezar os efeitos, o pensamento pascaliano considera relativamente
importante o caráter da inquietude, na qual a suposta natureza humana é marcada. Como
pensador, o conhecimento deve-se deter não só nas causas, mas nas razões dos efeitos, pois do
contrário, seria grande o prejuízo e não conseguiríamos sanar a enfermidade da natureza.
Como na filosofia agostiniana, considerando que todo gênero humano afastou-se do
seu único e verdadeiro bem, inquieto e à procura do seu verdadeiro repouso, Pascal retém e se
debruça no conceito de angústia para que volte o homem àquele do qual se afastou, que é a
sua única e verdadeira felicidade. Na sua filosofia, o homem também não só foi criado por
Deus; mas para Deus, visto que estamos falando de um filósofo que acreditava radicalmente
em Deus e que, sem demora, defendia a sua existência e sua crença. Sem Ele, isto é, sem
Deus, a vida é marcada pela infelicidade que, efetivamente, surge da necessidade de um
retorno.
Não podemos entender o conceito de angústia como aflição e ansiedade de caráter
opressivo. O termo usado no século XVII, que geralmente traduzido por angústia ou tédio
originalmente do francês é ennui. Não é uma simples angústia, mas uma angústia essencial,
associada à impossibilidade de sair de tal estado, como uma espécie de patologia
espiritual24
. Desta enfermidade espiritual, intrínseca a todos os homens, independente do grau
que se manifesta, gera infortúnios e influencia as nossas escolhas. Elegendo, então, como
essenciais as coisas transitórias e efêmeras. Tal estado de alma se intensifica à medida que
usufruímos das coisas apegando-nos a elas. Enferma nossa natureza, necessita-se da graça
Divina para que se levante o homem caído, voltando-se para o seu absoluto, pois deste estado
não pode o homem se levantar por suas próprias forças.
24 PONDÉ, L. F. O homem insuficiente. p. 7.
22
A angústia compreendida como inquietude, não se limita a uma esfera puramente
negativa – como um fator opressivo que adoece o homem – mas, em uma angústia capaz de
indicar o seu verdadeiro estado:
Existe, porém, a angústia, a verdadeira inquietude que salva o homem, levando-o a
Deus. Trata-se de uma angústia totalmente diversa da anterior, pois, embora também
dolorosa, já proporciona um certo bem; dir-se-ia ser a antecâmara da felicidade. É a
inquietude do homem que conhece a o fenômeno humano da harmonia original, da
ruptura desarticuladora e da necessidade existencial do retorno; é a inquietude do
homem consciente do seu destino dramático e que desvenda a natureza de seu anseio
incôndito de felicidade, pretendendo, com todas as suas forças, dar-lhe seu fim
natural (ou sobrenatural); é a inquietude do homem que caminha peregrinante no
tempo e no espaço para a integração existencial de valores que transcendem os
limites da transitoriedade e do perecível: «os que buscam gemendo», diz Pascal25
.
Mesmo que verdadeira e autêntica, a angústia nos proporciona dores e agitações. É a
inquietação que grita nos recônditos do íntimo humano insatisfeita com o seu estado atual.
Insatisfação e inconstância são as palavras precisas para delimitar tal inquietação. A própria
experiência nos demonstra que as coisas, com as quais nos deleitamos, são incapazes de nos
satisfazer. Por estarem sujeitas a transitoriedade, logo cobiçamos outras coisas como se elas
nos fizessem retornar a quietude, mas, de fato, não acontece. Cientes da inquietude e das
agitações que elas nos provocam, somos conduzidos a elevar os nossos sentidos enfermos,
procurando nos bens transitórios a satisfação. Uma vez que esta vida terrena é marcada por
sofrimentos e agitações, a intenção do Homem se objetiva em esquecer as adversidades que
roubam a paz.
Esta mesma inquietude que o filósofo Agostinho retrata nas Confissões, é rebuscada e
fundamental para a pensamento pascaliano. Neste sentido, esta angústia, genuína, nos conduz
a almejar o repouso. Por mais incompreensível que pareça este raciocínio, esta angústia-
inquietude possui uma grandeza, talvez, a melhor grandeza que possuímos. Nela está a via
que nos conduzirá para o nosso verdadeiro ser, pois é ela que nos insatisfaz diante dos bens
que elegemos como nosso fim. É ela que, paradoxalmente, contém as luzes do Criador, que
nos move e nos tira das trevas para a luz; movimento incansável que não dorme e nem
cochila; sede insaciável e inesgotável que chega a se rachar como uma terra árida e seca.
Quem é capaz de saciá-la? Quando e quem será o repouso do nosso ser? Só a origem de tal
angústia – da perda de Deus – poderá nos dizer quem é o nosso repouso.
Com tudo, não é o repouso compreendido como tranquilidade e tempo livre na
concepção do homem contemporâneo. Como o vocábulo repouso faz referência à palavra
25 TREVISAN, R. M. Pascal, O Apologista da Inquietude, p. 219.
23
latina otium (ócio), em primeira instância, nos confundimos e nos remetemos a inação. Para
os filósofos antigos, o ócio é bem diverso do que concebemos atualmente; estava vinculado
com a felicidade e de modo algum era entendido como inatividade. Na doutrina do filósofo de
Port-Royal, ele não só concorda com a ideia da felicidade e quietude no repouso-otium como
também, o repouso consiste num estado. Sendo mais preciso, o repouso é um movimento
permanente em direção a Deus. E disso se segue que o ser humano nunca repousará enquanto
não se voltar para Deus.
24
CAPÍTULO II
O DIVERTIMENTO
O divertimento é considerado como qualquer evento com que nos distraia e que nos
desvie de pensar em nós mesmos. Como por exemplo, os jogos de azar e de cartas, bailes,
convenções sociais, bens materiais, honrarias, ciência, filosofia, caçadas, espetáculos, guerras.
Tais eventos não são ruins em si mesmos, mas o são quando, a partir deles, fugimos do tempo
presente. Todas essas formas de divertimento são características do tempo de Pascal.
Atualmente, são outras as formas de divertimentos, cinema, shopping-center, clubes, futebol e
muitos outros. A sua essência, contudo, permanece a mesma: nos desviar da verdade. Por
mais que os tempos mudem, o divertimento permanece com as suas múltiplas faces, que seja
como as tragédias gregas; as discussões filosóficas; as lutas de gladiadores; os espetáculos no
Coliseu; as recitações poéticas. Enfim, tudo deverá acabar em pão e circo, nos mantendo
distraídos. Sempre haverá em toda história aqueles que investirão nos divertimentos, para
manter um povo alienado. De fato, não há povo com suas diferentes classes que não
desenvolveu sua própria forma de distração.
Nem mesmo um rei, possuidor de muitos bens, seria feliz se não tivesse o bobo da
corte para distraí-lo; um rei sem divertimento seria um rei profundamente triste. E por mais
hilário que pareça, um dos seus súditos que nada possui, quando se diverte possui a
felicidade:
[...] submeta-se isso à prova, deixe-se um rei a sós, sem nenhuma satisfação dos
sentidos, sem nenhuma preocupação no espirito, sem companhias e sem
divertimentos, pensar em si totalmente à vontade, ver-se-á que um rei sem
divertimento é um homem cheio de miséria. Assim, evita-se isso cuidadosamente e
nunca falta ao redor da pessoa do rei muita gente que cuida de fazer com que o
divertimento suceda aos negócios e que fica a observar todo o seu tempo de ócio
para fornecer-lhe prazeres e jogos de modo que não haja nenhum vazio. Quer dizer
que eles são cercados de pessoas que tem maravilhoso cuidado para evitar que o rei
fique sozinho e em estado de pensar em si, sabendo perfeitamente que ele ficará
miserável, muito em bora seja rei, se pensar em si. Nada falo em tudo isso dos reis
cristãos como cristãos, mas somente como reis26
.
Se investigarmos a fundo, veremos que nos enganamos ou queremos nos enganar,
quando declaramos que o repouso é nosso fim último. Em contrapartida, é de se considerar
que a nossa natureza é essencialmente dinâmica. Ela tem o movimento como constituinte do
nosso próprio ser. Nada mais terrível para o homem, quando se depara com a solidão, e, ao
26 PASCAL, B. Pensamentos. p. 56.
25
nos depararmos com ela, quão difícil e repugnante é, pois na solidão, involuntariamente ou
não, nos ocupamos dos nossos próprios pensamentos e eles não são tão belos como
gostaríamos que fossem. Certamente, todos os pensamentos que nos advêm quando estamos a
sós não são simples pensamentos, mas são carregados de paixão, ou seja, eles são
acompanhados de emoções, como ira, medo, ansiedade, entre outras. Umas são causadas por
coisas que nos aconteceram, quando delas nos lembramos, outras são frutos da nossa
imaginação. Em todo caso, elas gerarão em nós o estado que denominamos tédio.
Por um lado, temos uma natureza agitada que continuamente desvia o seu olhar para
fora de si, buscando sempre descarregar sua força. Por outro, temos uma necessidade
intrínseca de buscar um repouso para esta vida agitada e cheia de fadigas. Impressiona-nos a
posição de Pascal quando nos diz, a princípio, que a infelicidade do homem consiste em não
saber ficar só:
Quando às vezes me pus a considerar as diversas agitações dos homens, e os
perigos, e as penas a que se expõem na corte, na guerra de onde nascem tantas
desavenças, paixões, ações ousadas e muitas vezes maldosas etc., repeti com
frequência que toda a infelicidade dos homens provém de não saber ficar quieto num
quarto. Um homem que possui bens suficientes para viver, se soubesse ficar em casa
com prazer, não sairia para ir pelo mar ou ao banco de uma praça: não se pagaria tão
caro por uma patente no exército a não ser que se achasse insuportável não sair da
cidade, e não se buscam as conversações e os divertimentos dos jogos a não ser que
não se tenha prazer em ficar em casa27
.
Se conduzirmos por este leme de pensamento, não resta dúvida que é remar contra a
corrente, pois sempre atribuímos que nossa felicidade está numa realização de vida, em
termos de conquistas e uma vida ausente de sofrimentos. Como já ressaltado, o pensador de
Port-Royal, em primeiro momento, alude que a nossa infelicidade é causada por não sabermos
ficar sozinhos. Consequentemente, a problemática se intensifica quando somos conduzidos,
desde a infância, a aspirar a bens, a honras e a grandes posições sociais:
Sobrecarregam os homens desde a infância com o cuidado de sua honra, dos bens,
dos amigos, e ainda, dos bens e das honras dos amigos; cumulam-nos de afazeres,
do aprendizado das línguas e de exercícios e se lhe dá a entender que não
conseguiram ser felizes sem que a sua saúde, honra e fortuna, e as de seus amigos
estivessem em bom estado, e que a falta de uma única coisa dessas os tornará
infelizes. Assim, são-lhes dados encargos e afazeres que os fazem quebrar a cabeça
desde o raiar do dia. Aí está, uma estranha maneira de torna-los felizes; que se
poderia fazer de melhor para torná-los infelizes? Como o que se poderia fazer?
Bastaria retirar-lhes todas essas preocupações, porque então eles se veriam,
pensariam naquilo que são, de onde vêm, para onde vão, e assim nunca é demais
ocupá-los e desviá-los disso. E eis por que, depois de preparar-lhes tantos afazeres,
27 Ibid. p.50.
26
se ainda tiverem algum tempo livre, aconselha-se que o empreguem em si divertir, e
jogar, e ocupar-se sempre por inteiro.
Como o coração do homem é oco e cheio de lixo28
.
Associamos, assim, que uma vida feliz só será possível se estivermos imersos em
várias ocupações e, de algum modo, essas escolhas despertem a estima alheia. Todavia, a
questão a ser levantada é se amo aquilo que escolhi, mesmo que não seja plausível aos outros.
Se pensarmos com sinceridade, teremos consciência de que a maioria das nossas escolhas,
principalmente profissionais, não são por amor de si, mas o são por estima, pois ela move as
nossas escolhas e decisões:
A vaidade está tão ancorada no coração dos homens que um soldado, um criado, um
cozinheiro, um carregador se gaba e quer ter admiradores e mesmo os filósofos
querem tê-los, e aqueles que escrevem contra, querem ter a glória de ter escrito bem,
e aqueles que os leem querem ter a glória de tê-los lido, e eu que estou escrevendo
isto tenho talvez à vontade, e talvez os que a lerem...29
.
O fragmento que acabamos de citar sobre a estima, nos revela que o tema é muito caro
para Pascal. Não podemos discordar que, de fato, gostamos de ser estimados, entre outras
palavras, gostamos de ser honrados, louvados, principalmente amados, mesmo que a função
desempenhada nos esgote. O essencial é deleitar-se nos louvores alheios e sermos amados a
todo custo.
Parece simples o caminho que nos foi proposto. Basta entrarmos num quarto, e habitar
consigo mesmo para sermos felizes. Contudo, a primeira resistência que encontramos ao
voltar-se para o quarto, é deixar justamente de ser estimado pelos outros. Quando nos
referimos à palavra quarto, ela nos indica a renúncia aos louvores alheios, ou seja, não são as
honras e realizações profissionais que me levarão ao estado de vida feliz, mas a busca de estar
consigo mesmo.
O problema nesse processo é justamente a nossa hipocrisia, pois, não gostamos que
nos digam a verdade. O fato é que a nossa vida não passa de um teatro, ainda que, o que
digam sobre nós sejam mentiras, pois, precisamos nos comprazer das estimas dos outros. O
homem não é, portanto senão disfarce, mentira e hipocrisia, tanto em si mesmo como para os
outros30
. No entanto, a felicidade buscada na solidão não é tão fácil o quanto parece.
Inclusive, para o homem moderno, nada pior que a palavra solidão para lhe causar
repugnância, porque o habitar consigo os conduz à consciência da própria miséria e à
28 Ibid.,56-57.
29 Ibid., p. 60.
30 Ibid., p. 79.
27
evidência do seu nada. Em todo caso, se faz necessário odiar a si mesmo e ter a coragem de
buscar a verdade sobre si, ainda que este conhecimento não passe do plano imanente.
Odiar a si mesmo é a verdadeira conversão para Pascal. Para ele a expressão “ódio de
si” se trata de um aspecto em relação à vivência da prática cristã, pois só há amor onde existe
ódio. No entanto, odiar-se nessa perspectiva é também odiar os disfarces que impusemos e
distorcem o que somos. Não devemos odiar o Homem enquanto possuidor de uma dignidade
de filho de Deus em Jesus Cristo. Odiar a si mesmo é, por sua vez, arrancar as máscaras para
que de fato haja um encontro verdadeiro consigo. Mesmo que contraditório, odiar-se consiste
no verdadeiro amor; desviar o olhar das criaturas para amar o Criador; odiar a natureza que
prefere a si mesma para amar aquele que nos amou. A filosofia agostiniana acentua a
desordem interna no que tange o objeto a ser amado: o que eu amo quando amo? Não
obstante, o objeto deste amor desordenado é o amor de si. Amamo-nos tanto, que preferimos
sempre a nós mesmos, mesmo que essa forma de amar nos escravize e prejudique. Já na
doutrina do filósofo apologista, este amor desordenado se manifesta como estima, isto é,
como o “amor de ser amado”. Tudo gira em torno do Homem que quer ser objeto de desejo,
de ser admirado, do centro das atenções e de todo amor.
Apressar um juízo e simplesmente afirmar que é estupidez não buscar “o repouso”, e
disso emanar toda a nossa infelicidade, seria insensatez como primeira conclusão. Ademais,
não somente Pascal reconhece a necessidade do repouso, como também os sábios
privilegiaram o ócio como meio importante para adquirir sabedoria, principalmente numa
sociedade imbuída de conhecimentos da cultura greco-romana. Nesse sentido, a sentença
conheça-te a ti mesmo é ainda contemplada entre os seus contemporâneos. Entre os ditos
“filósofos”, cometeu-se frequentemente o erro, ao censurarem as frivolidades humanas por
estarem voltadas para a exterioridade. Até mesmo entre eles encontraremos o que chamamos
de conversão, no que se refere ao movimento contrário de voltar para a interioridade e tirar os
olhos das coisas:
Estamos cheios de coisas que nos projetam para fora. O nosso instinto faz-nos sentir
que é preciso buscar a nossa felicidade fora de nós. As nossas paixões nos empurram
para fora, mesmo quando os objetos não se oferecessem para excitá-las. Os objetos
exteriores nos tentam por si mesmo e exercem um apelo sobre nós, ainda que não
pensemos neles. E assim não adianta dizerem: entrai dentro de vós mesmos, aí
encontrareis o vosso bem; não se acredita neles, e aqueles que acreditam são os mais
vazios e os mais tolos.31
31 Ibid.,p. 58.
28
Como profundo conhecedor das misérias humanas, Pascal está completamente ciente
das forças que as paixões exercem em nossa carne, como um movimento que nos impulsiona.
Não basta simplesmente dizer: entrai dentro de vós mesmos, aí encontrareis o vosso bem para
encontrá-lo; ou se ainda: saí fora e procurai a felicidade num divertimento. Na verdade, são
teorias superficiais que não resolvem as pulsões que nos assolam. E, quando ele pensa nos
“filósofos”, dois se destacam: Epíteto e Montaigne; [...] estes nomes têm uma significação
simbólica32
. Todavia, esses falsos juízos ocorrem por desconhecerem a verdadeira natureza
humana ao censurarem suas frivolidades.
Não serão simples conceitos ou teorias que darão conta de sanar as nossas fragilidades.
Não será também um simples adentrar em si mesmo para resolver todos os problemas. Alguns
poderiam pensar que bastaria enveredar-se num solipsismo, ou seja, num conjunto de hábitos
que um indivíduo solitário desenvolve na busca de seu verdadeiro bem. Ou na hipótese de que
poderemos encontrá-lo fora de nós. Quanto a isso, já sabemos que pegaríamos uma via
também errada. Com razão, Pascal denuncia o erro dos filósofos, pois eles ignoram as
necessidades inerentes ao próprio Homem, como a sua própria natureza:
[...] eis tudo que os homens puderam inventar para se tornar felizes, e aqueles que, a
respeito disso, bancam os filósofos e acreditam que o mundo é bem pouco razoável
se passa o dia a correr atrás de uma lebre que não gostariam de ter comprado, não
conhecem nada da nossa natureza [...]33
A negligência denunciada por Pascal, por parte dos filósofos, ocorre justamente
porque eles tomam a falsa natureza como se fosse a verdadeira. O que eles assumem como
natureza, como ponto de partida para as suas observações, não passa de um hábito, de uma
não natureza, na qual encarnamos de tal maneira que acreditamos ser esse o nosso verdadeiro
ser e nossa verdadeira vida. Sendo assim, este estado habitual tem em si uma necessidade vital
de esquecer sua condição, exercendo qualquer atividade que o desvie de pensar em si mesmo.
O que não seria necessário se não estivéssemos afastados da nossa natureza original. Por isso,
qualquer verdade enunciada pela inteligência só será válida se partirmos da primeira natureza
que foi criada por Deus e restaurada em Jesus Cristo, a imagem do Homem perfeito.
É próprio da natureza humana este movimento que se demonstra paradoxal; ora temos
a necessidade de repouso, ora precisamos de nos lançar para fora de nós e buscarmos alguma
coisa que nos divirta. E por mais contraditório que tudo isso pareça, é uma verdade que
culmina na nossa felicidade; ela depende de um lugar, que esteja fora ou dentro nós. E onde a
32 GASTON, H. G. Blaise Pascal: conversão e apologética. p. 268.
33 PASCAL, B. Pensamentos, p.50-55.
29
encontrarmos, uma vez que temos uma natureza que nos impele para dentro e para fora? Se
está nas coisas, então, essa felicidade não é estável, pois a experiência nos ensina que elas não
são capazes de nos realizar e o sentimento de insatisfação diante delas permanece. Outra
situação captada pelos nossos sentidos é que todas as coisas são transitórias, efêmeras e
passageiras. Obviamente, não as encontraremos simplesmente no repouso de forma tão
imediata, fazendo uma introspecção nos conteúdos que encontramos em nós. Certamente, as
coisas mais evidentes que aí poderemos encontrar serão nossas misérias e medos, pois nunca
estaremos num estado presente:
Nunca ficamos no tempo presente. Lembramos o passado; antecipamos o futuro
como lento demais para chegar, como para apressar o seu curso, ou nos lembrarmos
do passado para fazê-lo parar como demasiado rápido, tão imprudentes que erramos
em tempos que não são nossos e não pensamos no único que nos pertence, e tão
levianos que pensamos naqueles que nada são e escapamos, sem refletir, do único
que subsiste. É que em geral o presente nos fere. Escondemo-lo de nossas vistas
porque nos aflige e, se ele nos é agradável, lamentamos que nos escape. Buscamos
mantê-lo mediante o futuro e pensamos em dispor as coisas que não estão em nosso
poder por um tempo ao qual não temos a menor certeza de chegarmos.
Examine cada um os seus pensamentos. Vai encontrá-los a todos ocupados com o
passado e com o futuro. Quase não pensamos no presente, e se nele pensamos é
somente para nele buscar a luz para dispormos do futuro. O presente nunca é nosso
fim.
O passado e o presente são os nossos meios; só o futuro é o nosso fim. Assim não
vivemos nunca, mas esperamos viver e, sempre nos dispomos a ser felizes, é
inevitável que nunca o sejamos34
.
A importância de estar no tempo presente é fundamental, pois os amigos do mundo
sempre acusam os cristãos de viverem em função de uma realidade futura, isto é, o céu. No
entanto, esse tipo de argumento não passa de pensamentos levianos que tentam se justificar
devido aos seus apegos ao mundo. Os que nos acusam, são os mesmos que não suportam o
tempo presente e necessitam de toda espécie de divertimento para fugir da própria consciência
trágica. Eles não buscam o divertimento para viver o presente, e sim, porque não são capazes
de suportá-lo. Ademais, não há quem suporte o presente a não ser aqueles que, mediados por
Cristo conseguem enxergar grandezas em meio a tantas misérias.
O bem que procuramos não o encontraremos fora ou dentro. Ele está numa instância
superior a nós, em que podemos encontrá-lo tanto fora quanto dentro, ou seja, em Deus. Dele
depende toda a nossa felicidade. Ao dizer que a nossa felicidade está em Deus, sem dúvida
alguma, foi o modo encontrado para salvar o intravi in intima mea de Agostinho, que não se
deve separar das duas palavras que seguem: duce te. Entrei na intimidade de meu coração
34 Ibid. p.17.
30
[Senhor], e eras tu meu guia35
. O voltar-se para si não pode emergir de técnicas que busquem
um esvaziamento dos conteúdos mentais que nos atormentam, mas deve ser um movimento
que nos levará à verdade que habita em nós, a grandeza que possuímos e que, por sua vez, só
se realiza em Deus. No entanto, nos é necessário esclarecer que não se trata de qualquer deus,
nem mesmo do deus dos filósofos, mas o Deus vivo, o Deus dos patriarcas que libertou o
povo da escravidão. Este Deus não é um mero conceito, uma ideia que a nossa mente possa
conceber, ou uma realidade em que encontramos seus pedaços em toda natureza criada. Ele é
um ser pessoal, que podemos experimentar como um fogo que arde dentro de nós sem nos
consumir. É um Deus real, que se dá a conhecer por Jesus Cristo e, mesmo que o conheçamos,
a sua natureza permanecerá oculta.
O que dizer desta natureza paradoxal quanto ao duplo movimento de repouso e
divertimento? De acordo com Pascal, os filósofos não têm razão quando recriminam as
frivolidades dos homens, pois não enxergam que possuímos uma necessidade vital de
esquecer a nossa condição, exercendo uma atividade que nos desvie de pensar em nós
mesmos:
(Dizer a um homem que fique em repouso, é dizer-lhe que viva feliz. É aconselhar
ter uma condição totalmente feliz e que possa considerar com calma, sem nela
encontrar motivo de aflição. (-não é, pois, ouvir a natureza).
Assim os homens que sentem naturalmente a sua condição não evitam nadam tanto
quanto evitam o repouso; nada há que não façam para buscar a agitação.
Assim tem-se dificuldade em recriminá-los; seu erro não está em buscarem o
tumulto. Se não o buscassem como divertimento, mas o mal está em que eles buscam
como se a posse das coisas que buscam devesse fazê-los verdadeiramente felizes, e é
aí que se tem razão de acusar a sua busca de vaidade, de maneira que em tudo isso,
tanto aqueles que recriminam como aqueles que são recriminados não ouvem a
verdadeira natureza do homem.) E assim, quando os censuram porque aquilo que
buscam com tanto ardor não seria capaz de satisfazê-los, se respondessem, como
deveriam fazer, se refletissem um pouco, que não buscam nisso senão uma ocupação
violenta e impetuosa que os desvie de pensar em si e que é por isso que se propõem
um objeto atraente que os encante e os atraia com ardor, deixariam os seus
adversários sem réplica... - a vaidade, o prazer de mostrá-la aos outros. - A dança, é
preciso evidentemente pensar onde se vai colocar os pés- mas eles não respondem
isso porque não conhecem a si mesmos. Não sabem que é só a caça e não a presa
que eles buscam [...].36
Como está claro, trata-se de uma necessidade de fugir de si mesmo para evitar de
pensar em si. O fato de sermos atraídos e movidos pelas coisas não significa que fomos feitos
para elas. O problema se instala quando ocorre uma inversão quando delas usufruímos, que se
acentuou nesta nossa condição após a queda adâmica. O estar consigo mesmo tornou-se
35 GASTON, H. G. Blaise Pascal: conversão e apologética. p. 272.
36 PASCAL, B. Pensamentos. p. 50-55.
31
entediante; o movimento que nos conduz para fora, para a relação com todo o cosmo, tornou-
se apenas instrumento de fuga e, deste modo, evidencia uma inversão na forma como
buscamos o bem.
De maneira alguma se condena aqui o divertimento, visto que tocamos numa
necessidade para esta nossa natureza após a queda adâmica. São condenáveis os divertimentos
e os seus artifícios que usamos como fuga. E, mesmo que consideremos as diversões como
uma coisa boa no que tange em aliviar as nossas fadigas e nos desviar do tédio, ainda assim,
para Pascal é a pior das misérias:
A única coisa que nos consola de nossas misérias é a diversão. E, no entanto, é a
maior de nossas misérias. Porque é ela que nos impede principalmente de pensar em
nós e que nos põe a perder insensivelmente. Sem ela ficaríamos entediados, e esse
tédio nos levaria a buscar um meio mais sólido de sair dele, mas a diversão nos
entretém e nos faz chegar insensivelmente à morte37
.
É inevitável que neste estado não nos divirtamos, e que todos estamos sobre este
império da segunda natureza que parece que nos obriga a nos divertir. Porém, não fomos
criados para o divertimento. Surge a hipótese de ir contra o império desta natureza. Mesmo
que nos pareça irresistível, o deleite no divertimento, não somos determinados por este estado.
Ao dizer “meio mais sólido”, Pascal não só nos sugere um caminho seguro, mas que é
possível ir contra esta natureza; é possível ir contra os hábitos e vícios que o divertimento nos
impõe. Ademais, um homem convertido, auxiliado pela graça, será “liberto” do império
alienante do divertimento e não verá mais sentido nos prazeres do mundo. Não queremos
dizer com isso que os que foram tocados por Deus não podem se divertir e que estes possuem
a capacidade natural de recusar os divertimentos, ou de sentirem prazeres nestas distrações.
Certamente, há outros deleites maiores que os divertimentos não proporcionam! Se faz
necessário salientar que um verdadeiro fiel, na lógica deste raciocínio, considera a própria
insuficiência. Pois, sua esperança repousa naquele que o conduziu, sem se desesperar, neste
caminho árduo. Não há mais a necessidade de fugir de si, pelo divertimento, considerando que
é na insuficiência que está a porta de acesso ao divino.
Assim sendo, é de se esperar que o Homem que não foge de si (aquele convertido)
possui a capacidade de dizer não a si, como também, de refrear os impulsos desta natureza
corrompida. O convertido, então, encontra deleites de grau mais elevado, que não o aliene,
pois se trata da verdadeira natureza. Logicamente, um homem convertido tem a necessidade
de se divertir, e não de viver para o divertimento. Uma vez que ele se contemplou a partir de
37 Ibid., p. 157.
32
Deus, e, mesmo consciente da desordem que há em sua natureza, encontra a possibilidade de
viver uma nova ordem do amor.
Viver em função da diversão é viver alienado, isto é, uma vida que não nos é própria,
procurando colocar algum sentido alheio a ela. É viver num movimento contínuo de fuga de
si, e isto, para o filósofo solitário, é a pior desgraça. É possível, com toda esta caminhada
filosófica pascaliana, nos autoconhecermos, e de fato, reconhecer quem verdadeiramente
somos. Sem dúvida, temos nessa filosofia um meio seguro que pode nos levar à verdade
acerca de nós mesmos. O doloroso e difícil de aceitar é a impossibilidade de encontrar a
verdade face a face com o nosso eu, o mesmo que dizer, não fuja da solidão! Fugir da solidão
é fugir de Deus, e fugir de Deus é fugir de si mesmo.
O erro em que facilmente os filósofos e sábios caem, consiste na análise das coisas
buscadas nas diversões. Razoavelmente aceitamos a hipótese de que, na diversão, sempre
estamos em direção a alguma coisa com o desejo de possuí-la. Se um caçador, por exemplo,
se expõe a todos os perigos e aventuras numa caçada, logicamente concluiremos que é a lebre
que ele deseja possuir. Ou, se um atleta se esforça com todas as suas forças numa competição,
aceitaremos a ideia de que é o troféu que ele tanto almeja. Contudo, este pensamento para
Pascal é ilusório e superficial pois, se déssemos a lebre que o caçador tanto deseja e, se
entregássemos o troféu ao atleta, reconhecendo nele a competência necessária para ganhar
qualquer disputa, facilmente se entediariam:
Tal homem passa sem tédio jogando todos os dias coisa de pouca conta. Dai-lhe
todas as manhãs o dinheiro que ele pode ganhar a cada dia, sob a condição de ele
não jogar, ireis torna-lo infeliz. Dir-se-á talvez que o que ele busca é a brincadeira
do jogo e não o ganho. Fazei então com que jogue não jogue a dinheiro: ele não se
animará e se aborrecerá. Não é então só a diversão que ele busca. Uma diversão
desanimada e sem paixão o entediará38
[...].
Sabemos que em ambos os casos há o desejo de não só possuir a lebre ou o troféu,
como também a necessidade de ser reconhecido em seus esforços. A propósito, os filósofos
investigaram todo tipo de problema com o desejo de serem reconhecidos como sábios;
escreveram inúmeros livros com o desejo que fossem lidos. Isto não quer dizer que Pascal
despreze a busca pela verdade como uma forma de divertimento-alienação, mas se trata do
valor da verdade em si e o lugar da busca dessa verdade na mecânica psicológica39
.
38 Ibid., p. 54.
39 PONDÉ, F. L. O homem insuficiente. p. 241.
33
Seguindo na doutrina pascaliana, o conceito adequado para designar com objetividade
o “divertimento” é a delectatio. A expressão implica, também em dizer que não fugiremos de
uma situação que nos causará prazer. Uma diversão inexpressiva, sem nenhuma força
prazerosa, não nos atrairá, e logo cairemos no risco de nos entediarmos. Assim, dentre as
distrações, o divertimento que mais nos seduz é aquele carregado de paixão. Numa viagem,
por exemplo, não há graça de contá-la aos outros, caso não se padeça riscos e aventuras; um
bom jogo é aquele que ainda não temos certeza da vitória, mas que se arrisca com toda
adrenalina. Neste caso, os divertimentos que mais buscaremos serão aqueles que conterão
maior violência, que nos manterão longe da nossa consciência.
Sobre este ponto de vista comumente aceito, ainda não chegamos ao cerne da questão,
afinal, o que buscamos quando nos distraímos? Se apreçássemos o juízo, responderíamos que
é a lebre, no caso do caçador, ou os louvores dos seus admiradores, por parte do atleta. Em
todo caso, não podemos desconsiderar que, de fato, quando se caça, também é a lebre que se
busca; quando se disputa, é o troféu que se almeja acompanhado, é claro, de ser estimado.
Sobre este prisma, ainda não é a resposta encontrada pela filosofia pascaliana, pois não
buscamos nunca as coisas, mas das coisas40
, ou seja, nesta matize de pensamento, o desvio
consiste primordialmente no processo prazeroso do divertimento, e não na posse de um objeto
que aparentemente a diversão iria fornecer:
[...] dai-lhe todas as manhãs o dinheiro que ele pode ganhar a cada dia, sob a
condição de ele não jogar, ireis torna-lo infeliz. Dir-se-á talvez que o que ele busca é
a brincadeira do jogo e não o ganho. Fazei então com que jogue a dinheiro: ele não
se animará e se aborrecerá. Não é então só a diversão que ele busca. Uma diversão
desanimada e sem paixão o entediará41
.
Quando procuramos alguma forma de diversão é tão somente o divertimento que
buscamos: o prazer está no processo, e não no objeto, o que reforça a ideia do
«divertissement» como mecanismo de constituição da subjetividade operacional42
.
Pois bem, quando nos divertimos, a finalidade não é outra se não de nos divertirmos,
de vivermos exilados do tempo presente. Mesmo se enxergarmos a felicidade como pano de
fundo, nesse processo, indubitavelmente o que está em questão é a felicidade no divertimento.
Não há como desvencilhar felicidade do divertimento no estado de natureza habitual, o que
para nós parece absolutamente normal. Todavia, para a filosofia pascaliana, é um dos piores
40 LEBRUN, G. Blaise Pascal. p. 19.
41 PASCAL, B. pensamentos. p. 54.
42 PONDÉ, L. F. O homem insuficiente, p. 241.
34
modos de ser feliz. De fato, não há muito sentido em dizer que é feliz e viver fugindo de si
mesmo em todo tempo.
35
CAPÍTULO III
A PAIXÃO PELO JOGO
É notável nos escritos de Pascal a descrição das várias formas de divertimentos que o
homem contemporâneo busca para desviar-se de si. Entre estas atividades podemos destacar
as seguintes: o ser rei, a atração pelo jogo, as mulheres, as guerras, a caça, as profissões, as
obsessões dos doutos e os homens plenos de perturbações do cotidiano43
. Não obstante,
parece-nos que, entre as outras formas de divertimento o jogo ocupa um lugar privilegiado no
pensamento pascaliano. As estruturas que compõe um jogo são usadas na nova apologia para
explicar, convencer e converter.
Quando falamos em jogo, pensamos de modo concreto, como o jogo de azar, bolinha
de gude, cartas, etc. Em geral, todo tipo de jogo possui a mesma natureza, a incerteza da
vitória. Do contrário, não seria tão prazeroso. Estas formas de jogos estavam em alta na sua
época. E se a ideia de Pascal em tomar o jogo de azar como modelo da existência, não é com
o único desígnio de lisonjear a paixão pelo jogo de alguns dos seus amigos44
, mas em
demonstrar que por traz do jogo, há o interesse matemático que o levou em 1654 a resolver a
Regra dos Partidos.
Chama-nos a atenção o fato de que o nosso filósofo matemático, após a sua conversão,
dá continuidade à sua amizade com dois libertinos: os cavaleiros de Méré e de Mitton45
.
Tomamos este ato como um fato peculiar e destacável; pois, como sabemos, na mentalidade
dos adeptos da doutrina de Cornelius Jansenius, do século XVII, provavelmente, essa conduta
é reprovável, pois encontramos entre estes convertidos uma aversão a tudo o que é do mundo.
Basta elucidar a criação das Escolinhas em Port-Royal para nos conscientizar da radicalidade
destes convertidos jansenistas. Nesta ideia de educação, segundo as escolinhas, a proposta era
manter as crianças no estado de graça recebidas no Batismo. Uma das formas metodológicas
postulava que a aulas deveriam ser efetivadas nos campos ou em mosteiros46
.
Outro ponto que nos interessa, a respeito da relação de Pascal com os libertinos,
principalmente após a sua conversão, é justamente a posição destes últimos. Se atribui a esses
libertinos a ideia de indiferença à religião e tinham um modo de vida com influências nos
costumes, privilegiando a liberdade de crenças. São eruditos, e talvez, influenciados por uma
43 MARTINS, A. V. Do reino nefasto do amor-próprio. p. 223.
44 LEBRUN, G. Blaise Pascal. p. 111.
45 Cf. GOUHIER, H. Blaise Pascal. p. 187.
46 ARNOULD, A.; LANCELOT, C. Gramática. p. 23.
36
filosofia pagã que diverge grandemente da moral cristã jansenista. O que nos chama a atenção
a estes dados é principalmente o seu estilo de vida e a paixão pelo jogo. Obviamente, não
encontramos de maneira sistemática e conceitual esta noção de paixão pelo jogo no
pensamento pascaliano. Contudo, podemos afirmar esta tese com base no seguinte fragmento:
Eles têm um instinto secreto que os faz buscar o divertimento e a ocupação exterior,
que vem do sentimento de suas misérias contínuas. E tem um outro instinto secreto
que restou da grandeza de nossa natureza primeira, que os faz conhecer que a
felicidade não está de fato se não no repouso e não no tumulto. E desses dois
instintos contrários formam-se neles um projeto confuso que se esconde da sua vista
no fundo da alma que os leva a tender para o repouso pela agitação e a imaginar
sempre que a satisfação que não possuem lhes virá se, superando algumas
dificuldades com que se defrontam, puderem abrir para si a porta do repouso47
.
Se observarmos atentamente a fragmento acima, Pascal diz que os homens possuem
um instinto secreto que os fazem buscar divertimentos. Este instinto tem a sua origem na
miséria. A palavra instinto não é nada mais que uma pulsão irracional que exerce uma força
tirânica sobre nós. E ainda, que instinto e razão, são marcas de duas naturezas48
: uma
natureza procede de Deus, a outra da queda adâmica. Ao contrário das outras antropologias
que negam a existência de instinto na natureza humana, na antropologia pascaliana são
detectados dois instintos que divergem entre si. De qualquer modo, isso só reforça a
existência de uma desordem nos homens. Assim, interpretamos este instinto, que surge da
miséria humana, como paixão. Paixão esta cujo o ápice do prazer reside na ação de estar
alheio à própria vida. Esta paixão é tão avassaladora que consegue minimizar a dor mais
profunda que o homem pode experimentar, como a perda de pessoas queridas:
Aquele homem tão aflito com a morte da mulher e do filho único, que tem essa
grande disputa que o atormenta, de onde vem que neste momento ele não está triste
e que seja visto tão isento de todos os pensamentos penosos e inquietantes? Isso não
é de admirar. Acabam de passar-lhe uma bola e é preciso que ele a lance a seu
companheiro. Ele está ocupado em apanhá-lo ao cair do telhado para ganhar um
lance. Como quereis que ele pense em seus problemas tendo este outro problema
para cuidar? Eis aí, um cuidado digno de ocupar essa grande alma e de lhe tirar
qualquer outro pensamento do espírito. Esse homem nascido para conhecer o
universo, para julgar todas as coisas, para reger um estado ei-lo ocupado e todo
tomado pela tarefa de apanhar uma lebre. E se ele não se rebaixar a isso e quiser
estar sempre tenso será ainda mais tolo, porque pretenderá elevar-se acima da
humanidade e ele não passa de um homem afinal de contas, isto é, capaz de pouco e
de muitos, de tudo e de nada. Ele não é nem anjo nem bicho, é homem49
.
47 PASCAL, B. Pensamentos. p. 53.
48 Ibid., p. 39.
49 Ibid., p. 239.
37
Nota-se o jogo como poderosa forma de divertimento, o qual contém em si um poder
desmedido de desviar toda a nossa consciência do presente. Esta paixão, não se localiza na
relação do corpo com a alma, como as outras paixões descritas pelos filósofos antigos e
medievais, nem mesmo mediante a um prazer de possuir algo, mas consiste num movimento
da alma cuja eficácia reside em estar fora, exilada de toda unidade do presente.
O interesse do filósofo penitente para com estes libertinos não possui uma questão de
contrapor uma filosofia a outra, ou a sua sabedoria com erudição mundana, mas com fins de
conversão pela sua apologia: libertinos, católicos frios na fé, ateus e ímpios, com toda certeza
estes são os visados pela nova apologética. O gênero apologético, de caráter relevante para
Pascal, fora considerado um instrumento não plausível para os jansenistas. Maurice Blondel
observou: se Pascal escreve uma obra apologética, é que ele não é jansenista50
. Sem evocar o
fato de que os jansenistas acreditassem piamente na doutrina da predestinação, nos levaria a
questionar a eficácia de uma apologética, sendo que são predestinados pelo desígnio Divino.
Sem sombra de dúvida, essa atitude teológica é inovadora e, mesmo que Pascal apreciasse os
escritos de Jansenius, não significa que ele não tivesse o seu próprio modo de pensar e refletir
sobre a doutrina. Assim, precisamos tomar cuidado quando conceituamos Pascal como um
simplório jansenista. Ainda que ele tivesse vivido de maneira profunda a sua espiritualidade
em Port-Royal, ele não se limitou a viver uma fé cega, perdendo a sua individualidade, nem
tão pouco deixou de se dedicar à ciência, como muitos pretendem afirmar.
Como já descrevemos, a apreciação ao jogo por parte de Pascal inclui, sobretudo,
interesses matemáticos. No entanto, na nossa chave de interpretação, não nos resta dúvida de
que é perceptível a existência de uma pulsão na natureza humana que nos afasta de todo tipo
de interioridade. E nosso filósofo que percebe essa inclinação, inclusive por parte dos
libertinos (sendo alguns deles seus amigos), julga com máxima importância este meio, pois, o
uso do jogo, na sua apologia, é uma arma de infalível convencimento. Ele se desempenha com
toda intensidade escrevendo um importante argumento que comumente conhecemos como a
aposta pascaliana. Sobre este prisma, enxergamos não só o esplendor de suas habilidades
como um exímio observador dos impulsos humanos, mas suas sutilezas de pensamentos
empregados como um importante instrumento de conversão, uma vez que todos os homens
são apaixonados pelo jogo. De modo geral, todos somos jogadores: apostamos no finito ou no
infinito.
50 GOUHIER, H. Blaise Pascal. p. 159.
38
Apesar de sua interessante investigação, Pascal não é o único a observar, na condição
humana, o amor pelo jogo. No século IV, o grande Agostinho de Hipona, convertido ao
cristianismo, lança um olhar retrospectivo sobre algumas fases de sua vida e produz uma das
obras mais lidas da literatura universal as Confissões. Surpreendentemente, o Agostinho
filósofo, descreve no primeiro livro das suas Confissões, ainda na sua infância, uma
inclinação para o jogo, bem como o desejo de ser estimado:
[...] digo-te e confesso-te, meu Deus, aquilo em que era elogiado por aqueles:
agradar-lhes era então para eu viver honestamente. Pois não via o abismo da torpeza
em que era lançado longe do teu olhar. Mesmo entre eles que havia de mais abjecto
do que eu, quando também a esses desagradava, enganando com inumeráveis
mentiras o pedagogo, os professores e os meus pais por amor da brincadeira, pelo
desejo de ver espetáculos frívolos e imitá-los com folgazã excitação? Também
cometia furtos na despensa e na mesa dos meus pais, ou porque a gula o exigia, ou
para ter que dar aos rapazes que me vendiam o seu jogo, embora se divertissem
também muito com ele. Nesses jogos muitas vezes obtinha vitórias fraudulentas,
sendo eu próprio vencido pela vã ambição de superioridade. Mas que coisa havia
que eu não quisesse tanto sofrer e que tão atrozmente repreendesse, se o descobrisse,
como aquilo que fazia aos outros? E, se fosse repreendido quando era descoberto,
antes queria ser castigado do que ceder. É essa a inocência das crianças? [...]51
Ao lançar um olhar retrospectivo sobre sua vida, como podemos perceber a partir do
fragmento citado, Agostinho considera relevante estes fatos que ocorreram durante o seu
tempo de escola. Ele reconhece ter furtado unicamente por causa do amor ao jogo e para
conquistar a amizade dos colegas. Por causa deste mesmo amor, ele engana seus mestres e
pais por meio de trapaças. O bem visado nestes jogos é a vitória e a conquista de ser estimado,
nem que esta vitória não seja conquista pelo próprio esforço; trapacear e enganar são
plausíveis, desde que não seja repreendido por ninguém. De fato, quase todos gostamos de
enganar. Porém, ninguém gosta de ser enganado e, mesmo fora do jogo, há circunstâncias que
muitas vezes nos obriga a trair, enganar ou ganhar uns dos outros. Do mesmo modo, é obvio,
que todos quando jogamos, queremos ganhar, e não se entra num jogo para perder; pois, ainda
que as chances sejam mínimas, sempre existe a esperança da vitória. E se houver, por parte de
um jogador, a certeza de que vai perder? Indubitavelmente, um bom jogador não deixará de
jogar, pois ao jogar é atraído pelo seu deleite. Ademais, há algo que sempre o impulsiona a
jogar, levando-o a crer que se pode ganhar.
Precisamos também salientar que sempre temos a propensão de considerar as crianças
como inocentes e puras. No entanto, percebemos que há em nós uma tendência maliciosa, que
a carregamos desde o ventre materno: inveja, ciúmes, trapaças e vaidades. São essas
51 AGOSTINHO. Confissões. p. 49.
39
manifestações que ocorrem em qualquer criança, ainda que tenha a melhor das educações.
Sobre este ponto, o bispo Agostinho se interroga se de fato as crianças são inocentes. O seu
realismo nos conduz a dizer que todos temos uma natureza corrompida voltada para os
divertimentos. A única diferença entre uma criança e um adulto, no que tange estas
inclinações, são os meios necessários, que talvez as crianças ainda não possuam. Mas os
padrões de conduta são os mesmos, ainda que sejam em menor grau.
Semelhante episódio é narrado de maneira satírica na obra Um Jogador do escritor
Dostoiévski. De gênero romântico, nessa obra o autor observa atentamente o cenário de uma
sala de jogos entorno à uma roleta, bem como o fenômeno psicológico dos jogadores. De
modo geral, todos são iguais diante de uma roleta: ricos, pobres, ingleses, franceses, alemães e
mulheres. Todos se sentem no direito de jogar e não consideram esta atividade como impura.
Ademais, há algo fascinante no jogo que nos envolve por completo, de modo que não é
possível ocultar todas as nossas emoções, em poucas palavras, “perdemos a cabeça quando
jogamos”.
Sem muitos esforços, é possível observar a indignação de um jogador, por mais
experiente que seja diante de uma perda. Não há como se conter diante de um jogo,
independentemente da idade ou se exerce a mais nobre das profissões. No desenrolar da obra
de Dostoiévski, um fato inesperado acontece. Alguns personagens, estando em Rolenteburgo,
aguardavam ansiosamente a notícia do falecimento da avó – muito rica, pois se encontrava
enferma –, para se aproveitarem da herança. O brilhante aparecimento dela em cadeira de
rodas, não só os pegaram de surpresa, mas algo enigmático acontece, pois ela também é
atraída pelo jogo:
- Que absurdo! Potápitch! Potápitch! Espera, eu também trouxe dinheiro, está aqui!
– Apanhou do bolso um porta-níqueis repleto e tirou dele um friedrichsdor. – Toma,
coloca já no zero.
- Vovó, o zero saiu agora mesmo – disse eu. – Quer dizer que vai passar muito
tempo até que saia de novo. A senhora vai perder muito; ao menos, espere um
pouco.
- Ora, não é verdade coloca aí!
- Como queira, mas talvez não sai até o anoitecer, e a senhora vai perder até mil
vezes, isto já aconteceu aqui.
- Ora, bobagem, bobagem! Quem teme o lobo não vai à floresta. O quê? Perdeu?
Coloca mais!
Perdeu-se também o segundo friedrichsdor; apostou-se um terceiro. A avó mal
conseguia ficar sentada, mergulhada inteiramente os olhos abrasados na bolinha que
saltava pelas chanfraduras da roda em movimento. Perdemos também o terceiro. A
avó ficava fora de si, não conseguia permanecer no lugar, deu até um soco na mesa,
quando o crupiê anunciou trente-six, em lugar do esperado zero.
- Que coisa! Irritava-se a avó. – Será este zero amaldiçoado, não sai nunca? Não
quero mais viver, se não aparecer esse zero! O maldito crupiezinho de cabelo crespo
é que manobra assim, e este lance nunca vai com ele! Aleksiéi Ivânovitch, coloca
40
duas moedas de ouro de uma vez! Acaba-se perdendo tanto que, mesmo saindo o
zero, não se ganha nada.
- Vovó!
- Aposta, aposta não é teu.
- Apostei dois fridrichsdors. A bolinha voou por muito tempo sobre a roda, por fim
começou a pular sobre as chanfraduras. A avó ficou petrificada, comprimiu-me a
mão e, de repente, bumba!
- Zero - anunciou o crupiê.
- Estás vendo, estás vendo! – Radiante, ela voltou-se depressa para mim. – Bem que
eu te disse! Bem que eu te disse! E foi o senhor, ele mesmo, que me levou a apostar
duas moedas de ouro. Bem, quanto vou receber agora? Por que não estão pagando?
Potápitch, Marfa, onde estão eles? Para onde foram todos os nossos? Potápitch,
Potápitch!
- Vovó, mais tarde – murmurei. – Potápitch está junto à porta, não o deixarão entrar
aqui. Veja, vovó, estão-lhe pagando, receba!
Atiraram para a avó um pesado rolo envolto em papel azul contendo cinquenta
friedrichsdors e contaram-lhe mais vinte, separadamente. Tudo isso eu puxei com
uma pazinha para junto da vovó.
- Faites le jeu, messieurs! Faites le jeu,messieurs! Rien ne va plus? – Gritava o
crupiê, convidando a apostar e preparando-se para girar a roleta.
- Meu Deus! Ficamos atrasados! Vão fazer girar a roleta neste instante! Aposta,
Aposta! – Afanou-se a vovó. – E não te atrases, mais depressa – estava ficando fora
de si e empurrava-me com toda a força52
.
De modo fictício e crítico, Dostoiévski ressalta, neste episódio, o quanto a nossa
natureza é miserável e inclinada para o jogo, independentemente da idade. Impressiona-nos o
modo como ele retrata o fascínio humano; de como é incapaz de controlar a suas emoções e se
refrear no envolvimento do fenômeno do jogo, como também a ambição pelo ganho. Tanto
Agostinho como Dostoiévski, apesar da distância e circunstâncias que são muito diferentes
entre ambos, converge no que tange a nossa inclinação para o jogo. O primeiro destaca a
nossa corrupção existencial; o segundo assinala esta miserabilidade e pré-disposição para um
vício. Neste sentido, o próprio Dostoiévski sofria com o vício do jogo e é questionável se não
haveria uma inspiração na sua própria vida ao criar esta obra, visto que, sobre pressão e por
dívidas, teve que desenvolvê-la em poucos dias53
. Não temos aqui a pretensão de examinar se
existem influências do filósofo Agostinho sobre o grande escritor do século XIX. Porém, não
podemos fugir da atualidade do pensamento agostiniano e a perspicácia psicológica na obra
de Dostoiévski. São evidentes suas semelhanças relativas à corrupção da natureza humana.
No entanto, essa corrupção não anula a liberdade do Homem.
Se for possível fazermos uma relação entre Agostinho, Pascal e Dostoiévski, vemos o
quão grande é a miséria humana. Eles não mediram esforços em destacar a esfera da
corrupção humana. Percebemos claramente, ao entrarmos em contato com suas obras, como
52DOSTOIÉVSKI, F. Um Jogador, p. 111-113.
53 Ibid., p. 217.
41
somos aptos a sermos escravos dos nossos impulsos, independentemente da idade ou nível de
intelectualidade.
O episódio da aparição da avó escrita por Dostoiévski ainda não é o auge deste
fascinante romance. Na cidade de Hamburgo, afastado de sua amada Polina, pela qual
Aleksiéi se dizia loucamente apaixonado, imerso no jogo, encontra-se inesperadamente com o
seu velho amigo Mister Astley que parecia estar ali por acaso. E algo inesperado acontece de
modo a nos chamar atenção:
- Isto são absurdos torpes... porque, porque... saiba de uma vez! – Disse Mister
Astley com voz trêmula e olhos cintilantes. – Saiba de uma vez, homem ingrato e
indigno, insignificante e infeliz, que cheguei a Hamburgo intencionalmente, por
encargo dela, a fim de encontrá-lo, para conversar com o senhor longamente de todo
o coração, e dar depois a ela o relato de todos os seus sentimentos, ideias, esperanças
e... recordações!
- Será possível? Será possível?! – Exclamei, e lágrimas jorraram-me dos meus olhos.
Não pude contê-las e aquilo acontecia-me, ao que parece, pela primeira vez em
minha vida.
- Sim, homem infeliz, ela o amava, e eu posso revelar-lhe isso, porque o senhor é um
homem perdido! Mais ainda, mesmo que lhe diga que ela o ama até hoje, mesmo
assim vai ficar aqui! Sim, o senhor se destruiu. Tinha algumas capacidades, um
temperamento vivo, era uma pessoa nada má; podia ser mesmo último a sua pátria,
que tanto precisa de gente, mas há de ficar aqui, e a sua vida acabou. Não estou
culpando. Ao meu ver, todos os russos são assim ou têm uma tendência para se
tornarem assim. Se não é a roleta, é outra coisa semelhante. As exceções são
demasiadamente raras. O senhor não é o primeiro a compreender o que é o trabalho
(não estou falando do seu povo). A roleta é um jogo russo por excelência. Até agora,
o senhor foi honesto e preferiu torna-se criado a roubar... Mas eu tenho medo de
pensar no que pode acontecer no futuro. Chega, adeus! O senhor, naturalmente,
precisa de dinheiro, não? Aqui tem, da minha parte, dez luíses de ouro; não darei
mais porque, de qualquer modo, vai perdê-los no jogo. Tome-os, e adeus! Aceite
mesmo!
- Não Mister Astley, depois de tudo que o senhor acabou de dizer...
- Tome! Gritou ele. – Estou convencido de que ainda tem caráter nobre, e dou-lhe o
dinheiro como um amigo o pode dar a outro amigo de verdade. Se eu pudesse estar
certo de que o senhor largaria imediatamente o jogo, Hamburgo, e iria para a sua
pátria, estaria pronto a dar-lhe no mesmo instante mil libras, para o início da sua
nova carreira. Todavia, não lhe dou mil libras, mas apenas dez luíses, agora, são
exatamente para o senhor; de qualquer modo, há de perdê-los. Tome-os e adeus54
.
A intrigante conversa com Mister Astley esboça a mudança e degradação de Aleksiéi.
Antes, Aleksiéi se dizia tão apaixonado por Polina que, segundo ele, era capaz de fazer
loucuras, até tirar a própria vida se fosse preciso. A sua paixão se assemelhava a uma louca
escravidão. Agora, intencionalmente, este quadro mudou: a sua paixão pelo jogo é maior do
que seu amor por Polina que aguardava notícias do seu amado perdido no jogo. Deste modo,
ele desdenha uma vertente humana sujeita a vícios e ao caos. Enfim, o ser homem é capaz do
pior. Em relação ao pensamento de Pascal, Dostoiévski não contempla um homem tocado
54 Ibid., p.214.
42
pela graça, mas uma um ser que, mergulhado no vício do jogo, tem o desejo de ser
ressuscitado, ainda que não encontre em si mesmo forças para quebrar o jugo que lhe oprime:
São apenas palavras, palavras e mais palavras, mas é preciso ação! O principal agora é a
Suíça! Amanhã mesmo; oh, se fosse possível partir amanhã mesmo! Nascer de novo,
ressuscitar [...]55
. Tanto maior a paixão, maior dificuldade se encontra para se desvencilhar de
tal estado. Em todo caso, não significa dizer que é impossível sair do vício, o que, para Pascal,
está em nossa capacidade dizer não para a alienação do divertimento, contando com o auxílio
Divino. Certamente, Dostoiévski, também tem a intenção de abordar uma questão trágica em
seu romance. Num certo sentido, esta realidade escapa à nossa capacidade de controlar e
prever imprevistos trágicos que atingem drasticamente a nossa realidade terrena. De modo
geral, estamos imersos no caos e, nesta vida, somos todos jogadores.
1. O JOGO COMO MODELO EXISTENCIAL
Talvez, alguém pode objetar a tese de que não é inclinado para nenhum tipo de jogo.
No entanto, na compreensão pascaliana, o jogo não se restringe a uma mera atividade, é
essencialmente um modelo de existência, e, neste sentido, é impossível não jogar ou ficar
neutro. No jogo da existência, sempre apostamos no finito ou infinito, e nossa forma de viver
revela, e muito, em quem estamos apostando.
Tomar uma decisão no nível cotidiano, entre poder fazer isto ou aquilo, também faz
parte deste jogo existencial, mas essa é umas das partes mais elementares do jogo a que nos
referimos. Assim sendo, não podemos desprezar esta esfera como inútil; pois, nos nossos
afazeres, sempre realizamos uma aposta conduzida pelo poder do costume, que, por sua vez,
nos faz acreditar que todas as nossas intenções poderão dar certo, por exemplo, quando
saímos de casa para trabalhar, sempre acreditamos que iremos chegar ao nosso local de
trabalho, o que a rigor, não temos nem garantia ou certeza que lá chegaremos. De modo geral,
as nossas relações e atividades são sempre baseadas em crenças, pois como dizia Pascal, há
três modos de crer: a razão, o costume, a inspiração56
. Esta primeira fase, como já foi dito, é
uma das partes mais ingênuas da arte de jogar, visto que todos nós somos jogadores.
55 Ibid., p. 215.
56 PASCAL, B. Pensamentos. p. 319.
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No seu diálogo muito conciso, desenvolvido na aposta, Pascal quer nos conduzir à
consciência de que, o jogo, se trata de uma questão vital que perscruta a nossa própria
existência. Infelizmente, muitos, erroneamente, reduzem a aposta pascaliana a uma esfera de
medo, em que um Deus poderá conceder o céu para aqueles que apostarem na sua existência,
ou o inferno para aqueles que o recusarem. Mas a questão abordada é outra: dada a incerteza,
determinar qual é a esperança de cada jogador, conforme aposte na existência de Deus ou
contra ela, e, em consequência, constranger o incrédulo a reconhecer que a busca da fé é o
comportamento mais rentável57
. Dito de outro modo, dada à incerteza (pois o objeto da nossa
aposta possui uma natureza oculta e não é passível de experimentação), a argumentação
pascaliana tem, como primeira instância, delinear o que devemos fazer, e não em que devemos
crer. O comportamento mais adequado é apostar na existência de Deus, e essa aposta não tem
como fim provar ou não a existência de Deus.
Não estamos mais naquele primeiro estágio em que se há de se decidir qual rumo se
deve tomar, ou qual o melhor caminho para se chegar com toda a segurança e certeza ao local
de trabalho. Neste ponto, de modo quase imediato, a crença fundada no costume ocupa um
papel condutor. O cenário agora é outro: dado o incerto, exige-se uma postura de fé, que
difere e muito da crença. Esta postura distingue claramente um homem de fé de um homem
mundano: o primeiro aposta em Deus e o outro aposta na sua não existência. Neste sentido, o
ponto auge do jogo, ao qual nos referimos, consiste sempre numa forma permanente de agir
diante da incerteza que já temos:
Porque de nada adianta dizer que é incerto que se vai ganhar e que é certo que se
arrisca, e que a infinita distância que medeia entre a certeza daquilo que expomos e a
incerteza daquilo que se ganhará iguala o bem finito que expomos certamente ao
infinito que é incerto. Isso não é assim. Todo jogador arrisca com certeza para
ganhar com incerteza e, no entanto, arrisca certamente o finito, sem pecar contra a
razão. Não há infinidade de distância entre essa certeza daquilo que se expõe e a
incerteza do ganho; isto é falso. Há, na verdade, infinidade entre a certeza de ganhar
e a certeza de perder, mas a incerteza de ganhar é proporcional à certeza do que se
arrisca segundo a proporção das possibilidades de ganho e de perda. E daí vem que
existem tantas possibilidades de um lado quanto do outro, a partida está para ser
jogada de igual para igual. E então a certeza do que se expõe é igual à incerteza do
ganho, faltando muito para que esteja infinitamente distante dela. E assim nossa
proposição está numa força infinita, quando há o finito para arriscar, em um jogo em
que existem iguais possibilidades de ganho e de perda, e o infinito a ganhar58
.
A resistência por parte do ateu em não querer apostar se baseia na argumentação de
que é irracional apostar numa instância cuja existência é incerta e que a razão não oferece
57 GÉRARD, L. Blaise Pascal. p. 113.
58 PASCAL, B. Pensamentos. p. 161.
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nenhuma garantia de certeza. Então, a melhor postura seria se posicionar inteiramente neutro.
Contudo, abster-se de jogar seria a postura mais perigosa, visto que o jogo se trata de uma
necessidade, isto é, aquilo que não pode deixar de ser: é impossível não jogar. Tornar-se
neutro é assumir a posição mais irracional, pois se assumiu a posição mais perigosa. O critério
seguido pelos ditos “racionais” se baseia unicamente em toda garantia fornecida pela razão.
No entanto, sem pecar contra a razão, arriscamos numa infinidade de jogos por uma quantia
finita, que também é incerta. Planejamos numerosas viagens e aventuramos em perigosas
guerras sem termos nenhuma garantia de vitória. O que cada lado traz consigo é apenas a
esperança de ganho. Percebe-se aqui uma contradição: os ditos “racionais” apostam, ainda
que sejam nas coisas finitas. Portanto todos nós jogamos e apostamos, mas o que retém os
ateus a supostamente não apostarem são os apegos às coisas finitas e são elas que os
paralisam a apostarem no infinito.
2. O NADA EXISTENCIAL
Imbuído de noções da física moderna, no início da aposta, Pascal escreve com sua
pena, conceitos como vácuo. Na sua linguagem teológica, o vácuo possui também o sentido
de vazio ou nada. Na matemática pascaliana, o nada equivale ao zero, que em primícias não
possui nenhum valor. Ora, em relação aos números, sabemos que são infinitos, e é certo que
ignoramos a sua natureza: não sabemos se são par ou ímpar. Assim, o zero, tomado em si
mesmo, é um “puro nada”, todavia, na ordem dos números infinitos não deixa de existir. Este
vácuo-vazio não é um corpo no espaço, e também não é matéria, e, ainda que encontremos
dificuldades para definir à luz da razão, ele também não deixa de existir.
De início, a argumentação usada na aposta parece não ter nexo: a unidade
acrescentada ao infinito não o aumenta em nada, não mais que um pé a uma medida infinita;
o finito se aniquila na presença do infinito e se torna um puro nada [...]59
. Isso posto,
adentramos também numa área existencial, a questão a saber é: o que é o finito diante do
infinito? E quem é o homem entre o finito e o infinito? Comparando o finito com o infinito,
há uma distância imensa no qual o finito se aniquila. Já o homem é um puro nada entre o
finito e o infinito. A ideia do nada é central como chave de entendimento para a
espiritualidade e filosofia pascaliana e, neste sentido, a resposta não pode ser outra que não
59 Ibid., p. 158.
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seja nada. Intencionalmente, este conceito deve ser o leitmotiv e modelador profundo de
qualquer consciência que se questiona sobre o seu eu em comparação ao infinito.
Não obstante, o nada por aniquilamento não fica apenas na esfera de uma ideia que
possamos ter por comparação. Cada pessoa faz a sua experiência do nada, isto é, de aniquilar-
se diante do infinito, ou em presença de um ser que se opunha como superior a nós. Quem
nunca se sentiu um nada perante questões que coloquem em xeque a própria vida? Quem
nunca se sentiu finito diante do infinito do oceano? Todavia, nada por aniquilamento ao qual
nos referimos, é o nada que Pascal pretende incutir na nossa consciência com sua aposta. De
fato, não haverá uma verdadeira conversão se não passarmos por esta experiência e dela
consentirmos. Somente esta experiência que nos permite observar o demasiado valor que
atribuímos às coisas finitas e, a partir disso, abrimo-nos à existência de Deus:
«Infinito, nada, ... o infinito se aniquila na presença do infinito e se torna um puro
nada», redução decisiva que conduz à antítese: «ganho infinito», de um lado, «perda
do nada», do outro; antítese que não permite à razão permanecer indiferente à
possibilidade da existência de Deus60
.
A consciência do nosso nada nos possibilita a abrirmo-nos à existência de um Ser
absoluto. O cerne da antítese infinito e nada cria na razão um certo desconforto,
possibilitando a abertura provável da existência de um Ser infinito. Chama a atenção esse
ponto, pois, de modo algum, se afirma que estes argumentos provem a existência de Deus ou
façam com que alguém creia. Mas, a partir da ideia pessoal do próprio nada, possibilitar uma
abertura à existência de um ser divino. Ou melhor, se a razão não escolheu em apostar
cegamente num dos partidos (considerando que todos nós somos jogadores e apostamos
apaixonadamente no finito) é completamente cabível à razão pensar na possibilidade da
existência do Ser infinito. E, se a possibilidade é uma abertura à existência deste Ser, a razão
não pode ficar indiferente. Em todo caso, a resistência que alguém possa pensar na
possibilidade da existência do absoluto, já revela que este alguém escolheu em quem apostar e
não quer, de modo algum, mudar de lado.
Existem, porém, acusações em relação aos crentes, no que diz respeito a conceber uma
ordem natural entre o finito e infinito. E em atribuir, a esta ordem, uma hierarquia. O erro,
segundo tais acusadores, seria que os cristãos acreditariam existir um Ser maior nesta ordem,
e que, por sua vez, eles estariam abaixo de Deus (Ser maior). Concomitantemente, ao
reconhecerem que são maiores de uma pedra ou um animal, os cristãos seriam movidos pelo
60 GOUHIER, H. Blaise pascal. p. 69.
46
orgulho. No entanto, o conceito de aniquilação refuta toda esta ideia. Ora, a pedra ou os
animais não têm a capacidade de se reconhecerem um nada, e, mesmo que outros seres
possuíssem esta capacidade, não é o mesmo que se reconhecer e se aceitar como um nada.
Embora sintamos um impacto ao assumir que somos nada, é neste mesmo nada que reside a
grandeza do homem. Da mesma forma, ela nos permite enxergar as nossas paixões pelas
coisas finitas. Neste jogo metafísico, somos convidados a abrirmos à grandeza do amor de
Deus que nadifica todas as coisas. Eis, em poucas palavras, a verdadeira conversão para
Pascal: amar o que é verdadeiramente digno de ser amado e nadificar todas as coisas diante de
Deus. E, se consentimos a possibilidade da existência de Deus, já ganhamos o infinito.
47
CONCLUSÃO
O pensamento filosófico de Blaise Pascal contém grande influência da filosofia
agostiniana que se fundamenta no princípio e no fim da existência humana. Ele nos oferece
uma noção de natureza humana que traz consigo a perfeição inicial e a corrupção atual, ou
seja, a temática de duas naturezas. A condição atual da natureza humana é denominada por
miséria, a miséria do homem sem Deus. Deste modo, a nova apologia empregada por Pascal
parte das enfermidades enraizadas na alma, na qual é impossível ao homem curá-las pelas
suas próprias forças.
Ao contrário das outras apologias, que partem de uma ontologia, o pensamento de
Pascal baseia-se às feridas mais insuportáveis do homem moderno, como tédio, angústia e
desespero. O tédio humano não se reduz aqui a uma inatividade, mas uma das mais graves
doenças espirituais que consiste na incapacidade de se contemplar e de abitar consigo mesmo.
Estas esferas da qual, todos nós estamos submersos, não são visadas como barreiras, mas
como portas de acesso ao Divino. Contudo, todo o conhecimento quer seja sobre o cosmo,
quer seja sobre próprio homem, deve proceder da mediação por Jesus Cristo; do contrário,
tomaremos o falso como verdadeiro, a criatura como se fosse o criador. E é bem provável que
a miséria encontrada em nós, sem esta mediação, gerará o desespero; e a grandeza que aí
encontramos gerará o orgulho. A primeira grandeza que constatamos indispensável para o
nosso reestabelecimento é a consciência da nossa miserabilidade, e se encontrarmos alguma
grandeza sem passar pela miséria, esta grandeza provém de outro Ser, e não de nós mesmos.
Assim, o homem não passa de um ser contraditório entre grandeza e miséria, finito e
infinito, cuja razão encontra seus limites para abarcar qualquer verdade que provém de uma
destas contradições. E embora ela resista alguma verdade com sua gênese em algum
paradoxo, é racional reconhecer aquilo que a razão não pode resolver pelos seus próprios
meio61
s. Por outro lado, a razão não é o único meio para captarmos a verdade; existem
verdades que são abarcadas pelo coração e não pela razão pois, como sabemos, “o coração
tem razões que a razão desconhece”. Além do mais, o coração é um conceito central e
unificador do projeto pascaliano, que a nosso ver, contém toda a sua visão filosófica sobre o
homem. Este também é o ponto de partida para resgatar todo o rompimento feito pela
modernidade entre a transcendência e imanência, que também está no seu projeto apologético,
61 PASCAL, B. Pensamentos. Introdução p.11.
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cujo conceito, no seu bojo, não permite uma primazia da razão, nem mesmo uma cisão entre o
Divino e o Homem. O coração não é só um órgão, mas o lugar onde Deus habita e revela as
suas verdades ao homem. Na compreensão pascaliana, o coração exprime uma integração que
não permite somente a razão do homem aproximar-se da religião e fazer interpretações para
entender o real, mas abarcar o homem como um ser que tem uma necessidade ontológica de
Deus.
Não podemos deixar de afirmar com toda certeza, que somente Deus pode nos dizer
realmente quem somos, e só Nele e a partir Dele seremos felizes. Infelizmente, somos
arrastados pela correnteza do divertimento, em busca de felicidade. Mas nossa felicidade não
está nas agitações, nas honras, no efêmero, em sermos estimados, mas em Deus. Neste
sentido, condição necessária para encontrar o nosso repouso consiste em não mais exilar-se de
si mesmo, ou seja, não devemos seguir os impulsos que nos levam a fugir de nós mesmos, o
que nos impede de estar cara a cara com o nosso ser fragmentado. O silêncio e a quietude
tornaram-se hostis ao homem, e o habitar consigo mesmo, é tão doloroso que nos lançamos
em toda sorte de divertimento para esquecer as nossas misérias e, é visível que após a queda
adâmica, tornamo-nos estranhos a nós mesmos, alienados. Pascal não é determinista, pois, na
sua visão, está sobre o nosso poder dizer não ao império do divertimento, dizer não aos vícios
que nos escravizam.
Por se tratar de uma necessidade, o filósofo matemático não condena as formas de
divertimento, mas condena quando delas nos guiamos para fugirmos de um tão grande bem,
que consiste em de saber quem verdadeiramente somos. Com toda certeza, é condenável uma
suposta felicidade no divertimento. Dizer que se é feliz no divertimento sem dúvida alguma é
a pior das misérias. O erro que frequentemente os filósofos cometem ao jugar as frivolidades
dos homens consiste em desprezar a natureza do próprio divertimento, pois quando um
homem se diverte, independente da maneira que ele se distrai, não quer outra coisa que não
seja divertir-se e esquecer-se da realidade com máximo deleite. O cume do divertimento está
na própria realização da mecânica do divertimento, e não numa posse pela qual a diversão nos
proporcionou.
A intenção de Pascal, ao compor a sua apologia, não se direcionava especificamente
aos filósofos, contrapondo a sua filosofia às outras, mas visava tão somente a conversão dos
libertinos, recobrar o fervor dos católicos frios na fé, e defender a fé católica de todo
relaxamento moral de sua época. Entre estes ditos libertinos, é observado uma paixão pelo
jogo, na qual se fundamenta todo esquema da aposta pascaliana.
49
Podemos observar que todos os seres racionais e irracionais são dados aos jogos. Algo
semelhante é observado nas crianças; como elas gostam de se divertir e brincar, e quão é
difícil mantê-las nos estudos. Às vezes, para mantê-las no amor às Letras, usa-se todo o “tipo
de força” contra o seu querer acompanhado de toda sorte de estima como a forma mais eficaz
de educação, o que ocorre bem diferente em relação aos jogos.
Além das questões matemáticas, o jogo é considerado pelo nosso filósofo, como
modelo existencial da vida. Talvez uma das questões que levou Pascal a tomar o jogo como
modelo da existência, foi justamente porque não se pode negar a sua existência e o seu
fascínio. Podemos negar facilmente a existência de coisas não palpáveis como a beleza, a
alma e o anjo. Mas negar que todos somos inclinados para o divertimento, e que gostamos de
jogar, é uma coisa bem difícil. Outra questão digna de nota é a seriedade que levamos em
relação aos jogos e diversões. Talvez, levamos os jogos mais a sério do que a própria vida.
Basta lembrarmos das descrições de Dostoiévski para percebermos o quanto os jogadores
levavam a sério uma aposta, e como inconscientemente ou não, assumem o jogo como um
modo de vida. A grande questão a ser considerada, além da própria paixão pelo jogo, é o que
está em jogo. De um lado, temos uma distância do finito e o infinito, do outro, o homem, que
é um puro nada em relação a esta distância incomensurável. Neste prisma, é a ideia do nada e
do tudo que está em jogo.
Não raramente jogamos e apostamos em coisas finitas. E por que não jogar e apostar
no infinito? A razão de não jogarmos e apostarmos em Deus, não é pelo simples fato de não
termos certeza da sua existência; aliás, nesta vida não temos “certeza de nada”, e quem joga,
joga porque não se tem certeza da vitória, senão deixaria de ser um jogo prazeroso e cheio de
tensão, como o jogo de azar. Jogar naquele ou naquilo, cuja existência não temos certeza, não
é uma falta contra a razão; ao contrário, através de um exercício racional, apostamos na
existência do provável com o máximo de chance, ademais, cotidianamente realizamos uma
variedade de apostas, sem pecar contra a razão, e sem termos garantia da vitória. E mesmo
sabendo que é um jogo, não deixamos de levar a sério a ponto de ficarmos frustrados no caso
de uma perda, ou radiantes em face a uma vitória. Nota-se que entrelaçado ao prazer pelo jogo
há no homem uma necessidade de se fazer amado, estimado pelos outros por via e em
proveito do próprio jogo. Neste sentido, a aposta pascaliana nos induz a jogar e não a crer, e
nessa mecânica não há como abster-se ou ficar neutro.
Acreditamos, portanto, que a filosofia de Pascal, não só é sutil, mas deu um golpe
preciso, deixando marcas na história da filosofia ao elaborar a sua doutrina sobre a mecânica
do divertimento. Com efeito, o que seria da nossa geração e das gerações passadas sem o
50
barulho e distrações? O que seria dos nossos jovens sem os seus inúmeros aparelhos para
distraí-los? Como diz o próprio Pascal: mas tirai-lhes a diversão, vós os vereis secar de
tédio... porque é ter muita infelicidade estar numa tristeza insuportável, logo que se fica
reduzido a contemplar a si mesmo sem disso se divertir62
. E, na visão de Jean-Luc Marion, a
doutrina das três ordens é o fator primordial para estabelecer Pascal na história da filosofia
quando ele realiza a ultrapassagem ao desqualificar a metafísica como filosofia primeira63
. O
que de certo modo não concordamos, pois no projeto pascaliano a intenção não era de fazer
filosofia, mas uma nova apologia, que assumiu como ponto de partida uma antropologia. Em
todo caso, a grandeza do pensamento filosófico pascaliano nos permite enxergar, por meio de
suas críticas, que não há uma realização humana sem antes nos aniquilarmos. E este
aniquilamento deve iniciar principalmente pela razão, ou qualquer presunção que nos
configure independentes de Deus.
62 Ibid., p. 11.
63 PONDÉ, L. F. O homem insuficiente. p. 37.
51
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