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Dois modos de pensar a cultura para a história

Leandro Vizin Villarino

leandro.villarino@usp.br

“Quando o sábio aponta para a lua, o idiota olha para o dedo.”

1

Dois conceitos de cultura

• Esfera de existência – domínio delimitado entre outros domínios da realidade humana (sociedade, economia etc.). Produção cultural (artística/intelectual/midiática) ou significados e valores (esquemas simbólicos). Construção ou convenção.

• Condição de compreensão – ordem simbólica que permite e fundamenta nosso acesso à realidade (linguagem, simbólico, discurso). Condição geral.

2

Um problema

• Logics of History, William H. Sewell Jr.

• Balanço historiográfico

• Síntese: esquemas simbólicos x recursos materiais

• “os recursos, poderíamos dizer, são lidos como textos de modo a recuperar os esquemas culturais que eles objetificam [instantiate]” (Sewell, 2005; p. 136)

3

Outro problema

• Cultura e razão prática, Marshall Sahlins

• Continuidade entre as sociedades “primitivas” e “modernas” dada pelo predomínio da razão simbólica

• Diferença no modo de reprodução cultural

• Fundamentos “materiais” da diferença: dominação da natureza, produtividade industrial, distribuição de renda, fatores de produção e, em certo sentido, economia e sociedade como loci institucionais

4

Objetivos da exposição

• Desenvolver a concepção de cultura como condição de modo a conseguir subsídios para evitar esses problemas semânticos

• Reconhecer certo “esgotamento” do culturalismo, pós-estruturalismo

• Reconhecer contribuições metodológicas do pós-estruturalismo

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Percurso

• Contribuições metodológicas (Foucault, Arqueologia do saber)

• Crítica teórica a tais contribuições, buscando repensar e requalificar o estatuto do discurso a partir de certos elementos da psicanálise

• Significado social desses elementos e alguns exemplos com base em Žižek

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Reconsiderações teóricas: três possibilidades

• Empatia – Adorno (Teoria estética)

• Provocação – Hegel (Fenomenologia)

• Estranhamento – Psicanálise (Lacan)

7

Textos fundamentais

• Apropriação estratégica das noções de simbólico e desejo, não uma abordagem lacaniana

• “O simbólico, o imaginário e o real”, Nomes-do-pai(1953)

• “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, Escritos (1960)

• http://nosubject.com/

8

Arqueologia foucaultiana

• “Não tomar como objeto primário, original e já dado noções como soberano, soberania, povo, sujeitos, o estado, sociedade civil [...]”

• Vamos supor que os universais não existam”, Nascimento da

biopolítica, p. 2-3

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Construções discursivas

• Loucos x Loucura

• Enredar as particularidades em dispositivos de classificação e intervenção.

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Enunciado

• Unidade de análise arqueológica

• Loucos x enunciado da Loucura

• Outro nível: loucos por um motivo, passíveis de determinado tratamento, estabelecido conforme certos critérios científicos

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Um exemplo econômico

• Definição do dicionário: inflação – “aumento geral dos preços”

• “O governo tem que aumentar os juros porque a inflação está em 10%”

• Enunciado :causa, medição, julgamentos, intervenção, ator

• Construção de objetividades, prescrição de modos de atuação, delimitação de um campo de intervenção

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Função enunciativa• Concepção trivial de enunciado (materialidade preservada:

escrita, gravação etc.)

• Enunciado foucaultiano (função, além da frase, da materialidade)

• “Modalidade de existência” própria, que o torna “algo diferente de um objeto qualquer fabricado pelo homem” (Arqueologia do saber, p. 121).

• “[...] gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras próprias da prática discursiva” (p. 54-5)

13

Formação discursiva

• Como se constituem campos específicos (discurso médico, discurso psiquiátrico, discurso econômico etc.)

• Sistema de dispersão de enunciados

• Limitação do campo de polêmicas possíveis

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Positividade do discurso

• Função enunciativa (unidade) x formação discursiva (sistema) = positividade do discurso

• Todo discursivamente determinado

• Domínio relativamente autônomo que perfaz o campo empírico por excelência

15

Lacan

• Releitura da psicanálise freudiana sob influxos estruturalistas (Saussure e Lévi-Strauss), entre outros

• Pensar questões clínicas

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O Simbólico

• Exemplos:

• Senha (não reconhecimento, mas constituição do grupo; linguagem desprovida de significação)

• Parentesco (termos como relações reais)

17

O Simbólico

• Lápide

• “A lápide ou qualquer outro sinal de sepultura merece exatamente o nome de ‘símbolo’.”

• “O que caracteriza a espécie humana é justamente cercar o cadáver de algo que constitua uma sepultura, de sustentar o fato de que isso durou” (“O simbólico...”, p. 36)

• Elemento temporal problemático

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O Simbólico

• O símbolo “é o objeto encarnado em sua duração, separado de si próprio e que, por isso mesmo, pode estar de certa forma sempre presente para você, sempre ali, sempre à sua disposição”

• “Tudo o que é humano é conservado como tal”

• “Quanto mais humano, mais preservado do lado movediço e descompensante do processo natural” (p. 36)

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O Simbólico• Ausência de significação (função)

• Constituição de relações

• Constituição social

• Presença na ausência

• Duração

• Conservação20

Estruturação

Tempo

Saussure

Lévi-Strauss

“Algo de problemático”

A simbolização e o desejo

• “O sujeito humano é especialmente exposto [...] ao surgimento de uma vertigem, e, para afastá-la, ele experimenta a necessidade de fazer algo transcendente” (p. 26)

• Exposição/desemparo/desespero

• Necessidade de atribuir um significante

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A simbolização e o desejo• Não uma construção (Foucault), mas uma reação, uma

condição, um desejo

• “[...] o símbolo não é uma elaboração da sensação, nem da realidade. [...] A criação dos símbolos realiza a introdução de uma realidade nova na realidade animal” (p. 47)

• “As satisfações ilusórias do sujeito são evidentemente de ordem diversa das satisfações que encontram seu objeto no real puro e simples”

• “[...] a economia das satisfações ali envolvidas [na neurose] era de outra ordem e infinitamente menos ligada a ritmos orgânicos fixos, embora comandando uma parte deles” (p. 16-7)

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A simbolização e o desejo• “O que a psicanálise nos demonstra no tocante ao desejo [...]

não é apenas que ele está submetido, em sua instância, sua apropriação, em suma, em sua normalidade, aos acidentes da história do sujeito (ideia do trauma como contingência)”

• “[...] tudo isso exige o concurso de elementos estruturais que, para intervir, prescindem perfeitamente desses acidentes”

• Elementos estruturais “cuja incidência desarmônica, inesperada, difícil de reduzir, realmente parece deixar na experiência um resíduo que conseguiu arrancar de Freud a declaração de que a sexualidade devia trazer a marca de alguma fissura pouco natural” (“Subversão do sujeito...”, p. 826-7, grifo meu) 23

A simbolização e o desejo

• Estrutura (Lévi-Strauss): simbólico, sistema de necessidades, inconsciente, determinante

• Lacan: “incidência dersarmônica, inesperada, difícil de reduzir”, deixa um “resíduo”, abre uma “fissura pouco natural”

• “[...] a insciência que o homem tem de seu desejo é menos insciência daquilo que ele demanda –que, afinal, pode ser cingido – do que insciência a partir da qual ele deseja” (p. 829)

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O grande Outro

• O Imaginário e o Simbólico

• Simbólico, estrutural correspondem ao que Lacan chama de “grande Outro”

• Lugar do universal, lugar da Verdade

• Determina o lugar da particularidade no interior de um sistema

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A falta no Outro

• Porém:

• “[...] não há Outro do Outro” (p. 833)

• “[...] não existe metalinguagem que possa ser falada, ou, mais aforisticamente, não há Outro do Outro”

• Estrutura é falha

26

A falta no Outro

• O que isso quer dizer? ¯\_(ツ)_/¯

• A ordem simbólica, a estrutura, produz um duplo processo de determinação

• Determinação positiva: o lugar do sujeito, da particularidade no sistema, sua “autoidentidade” e a “identificação” dos outros e das coisas; regularidades sociais (Imaginário)

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A falta no Outro• Determinação negativa

• A estrutura não tem um sistema superior que a delineie como um domínio fechado

• Ela é aberta, lacunar, incompleta, não recobre toda a realidade

• Ela produz“incidência desarmônica, inesperada, difícil de reduzir”

• “Determina” o desejo, a neurose, a irregularidade, a contingência (Real)

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“Não existem universais”

• Foucault tinha certa razão ao pressupor que os universais não existem, mas não como um vazio que permite construções discursivas arbitrárias

• O universal não existe como lugar simbólico bem estabelecido

• O universal é uma indeterminação fundamental a que as particularidades constituem uma reação

29

“Não existem universais”

• O universal “não é o receptáculo geral do conteúdo particular, o meio ou pano de fundo específico para o conflito de particularidades; [...] é o lugar de um antagonismo ou autocontradição insuportável e (a multitudede) suas espécies particulares são, em última instância, nada mais que muitas tentativas de ofuscar/reconciliar/dominar esse antagonismo”

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“Não existem universais”

• “Em outras palavras, o Universal nomeia o lugar de um Impasse-Problema, uma Questão premente, e os particulares são tentativas fracassadas de Respostas a esse Problema” (Žižek, Menos que nada, p. 470)

• Exposição/desamparo/desespero (Problema fundamental insuportável)

• Desejo: necessidade de atribuir um significante (um “discurso concreto”) para mascarar esse Problema

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“Não existem universais”

• Proposições metodológicas de Foucault sob uma nova dimensão

• Enunciado: não apenas descrever as particularidade de um determinado documento

• Colocar em questão os problemas fundamentais aos quais essa particularidade responde

• Problemas de formulação

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Psicanálise e sociedade

• Lacan – técnica psicanalítica: resolver ou explicar problemas clínicos

• Século XX: relação da psicanálise com a sociedade

• Escola de Frankfurt (marxismo x Freud)

• Foucault (antropologia x psicanálise)

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Psicanálise e sociedade

34

Psicanálise e sociedade

• A psicanálise lacanina já tem uma teoria social implícita nessa releitura da antropologia estrutural

• Não relacionar psicanálise com marxismo ou antropologia enquanto domínios separados

• Mas compreender os problemas tradicionais do marxismo como problemas simbólicos

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Psicanálise e sociedade

• Crítica cultural como acesso privilegiado às contradições fundamentais da sociedade

• Vampiros x zumbis

• Gatos x cachorros

• Liberalismo x fundamentalismo

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Psicanálise e sociedade• Ideologia atua sobre a função simbólica de Lacan ou a função

enunciativa de Foucault

• Não mascarar a realidade

• Mas, sim, limitar o campo de possibilidades implícitas, de componentes simbólicos da “realidade”

• Falso antagonismo: multiculturalismo liberal x fundamentalismo islâmico

• Verdadeiro antagonismo: liberalismo/fundamentalismo x política emancipatória radical

• Promete democracia sem fundamentalismo e entrega democracia sem participação popular

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Questões metodológicas

• Os exemplos de Žižek às vezes soam arbitrários, postiços, quando não se limitam ao humor

• Esclarecem posições teóricas sem preocupação com fundamentos empíricos

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Questões metodológicas• Nesse sentido, a positividade do discurso

foucaultiana pode dar mais substancialidade a esse tipo de enfoque

• Compreendendo sua construção discursiva não apenas enquanto constituição de objetos em estratégias de poder

• Mas como expressão de impasses simbólicos condicionantes que estão além das construções estratégicas e as problematizam

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Questões metodológicas

• Crítica do pós-estruturalismo capaz de preservar suas contribuições metodológicas

• Campo novo de investigação

• Problemas inerentes às práticas simbólicas, discursivas

• Mas também levar essas contribuições metodológicas às últimas consequências

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Questões metodológicas

• O estatuto e os limites desse campo novo

• Prescindir do fundamento material

• O que não quer dizer que tal abordagem não possa tratar de problemas fundamentais e abrangentes

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Questões metodológicas

• Problemas de Sahlins e Sewell

• Não levar a cultura como condição simbólica a suas últimas consequências

• Não perceber que ver a cultura como condição é olhar para outro nível de realidade que o da cultura como esfera de existência

• Não atentar para a polissemia do termo cultura, que abrange dois conceitos diferentes

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Questões metodológicas

• Estrutura linguística ou simbólica

• Não um meio de compreender as “coisas no mundo”

• Um meio de compreender as condições do discurso sobre as “coisas no mundo”

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Questões metodológicas

• Ao tratar de problemas culturais, distinguir:

• Cultura em sua dimensão pragmática/referencial (imbricações sociais, econômicas, geográficas, materiais)

• Cultura em seu nível simbólico (“autonomia”, problemas próprios; as determinações específicas são efeitos)

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Epílogo

Mas e a história?

45

Mas e a história?

46

Estruturação

Tempo

• Ausência de referente/significação

• Constituição de relações

• Constituição social

• Presença na ausência

• Duração

• Conservação

Saussure

Lévi-Strauss

“Algo de problemático”

Algo de histórico

Mas e a história?

• Algo de histórico

• Temporalidade: presença na ausência, duração, conservação > humanização

• História e condição humana

• Identificar uma dimensão simbólica das fontes históricas

47

Mas e a história?• História e Simbólico: “algo de problemático”

• Weber/Elias/Sewell/Novais – história x ciências sociais

• Ciências sociais: conceitos, rigor, sistematização, sincronia, delimitação de esferas de existência

• História: particularização, variedade metodológica, dinâmica temporal, infinitude do objeto

48

Mas e a história?

• Pensar esses problemas com base no estatuto das fontes

• Ciências sociais: fontes como referências da realidade

• Tudo nas ciências sociais conspira para esconder a dimensão temporal de suas fontes

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Mas e a história?

• O historiador não tem essa possibilidade

• Elaboração das fontes

• Temporalidade: problema central

• Distância da referência: a história trabalha com o que efetivamente “já foi”

• Mais sujeito à condição simbólica

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Mas e a história?

• Infinitude da história

• Não uma infinitude quantitativa (o “objeto indelimitável”)

• Mas uma infinitude qualitativa (a impossibilidade de fechamento do significado)

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