distraídos venceremos - paulo leminsni
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PAULO LEMINSKI
DISTRAÍDOS VENCEREMOS
2!' edição
\
editorabrasiliense
TRANSMATÉRIA CONTRASENSO
Nas unidades de Distraídos Venoeremos
(1983-1987), resultado do impacto da poesiade Capriohos e Relaxas (1983) sobre a fina egrossa cútis da minha sensibilidade lírica,oalmes bloos ioi-bas oh us d 'un désastre
obsour, cadeias de Markoff em direção auma frase absoluta, arrisco crer teratingido um horizonte longamentealmejado: a abolição (não da realidade,evidentemente) da referência, através dararefação.
Seria demais, certamente, supor que eunão precise mais da realidade.
Seria de menos, todavia, suspeitarsequer que a realidade, essa velha senhora,possa ser a verdadeira mãe destes dizerestão calares.
I'
É qu~ndo a vida vase.É quando como quase.'
Ou não, quem sabe.
Curitiba. janeiro de 1987
1NDICE, ÍCONE E SÍMBOLO
Distraídos venceremos 13Ais ou menos 65Kawa cauim 99
9
r AVISO AOS NÁUFRAGOS
Esta página, por exemplo,.. não nasceu para ser lida.
,Nasceu para ser pálida,Ufi mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,<1uem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,nasceu para ser última
a que' não nasceu ainda.
Palavras traz idas de longepulas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,V'0'1ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia'.tO que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedraonde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?
15
A LEI DO QUÃO
Deve ocorrer em breveuma brisa que leve
um jeito de chuvaà última branca de neve.
Até lá, observe-sea mais estrita disciplina.
A sombra máxima
pode vir da luz mínima.
16
MINIFESTO
ave a raiva desta noite&I..baita lasca fúria abrupta
louca besta vaca solta..uiva luz que contra o dia
tanto e tarde madrugastes
morra a calma desta tardemorra em ouro
enfim, mais seda .
l\ morte, essa fraude,quando próspera
viva e morra sobretudooete dia, metal vil,
surdo, cego e mudo,nele tudo foi e, se ser foi tudo,
já nem tudo nem seine vai saber a primavera
ou se um dia sabereique nem eu saber nem ser nem era
17
ADMINIMISTÉRIO
Vim pelo caminho difícil,a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.
QUàndo o mistério chegar,já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,outra metade, domingo.
Não haja som nem silêncio,quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundoque possa me sustentar.
Meia-noite, livro aberto.Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?Ou seria que os insetos
descobriram parentescocom as letras do alfabeto?
18 19
DISTÂNCIAS MÍNIMAS SAUDOSA AMNÉSIA
a um amigo que perdeu a memória
um texto morcegose guia por ecos
um texto texto cegoum eco anti anti anti antigo
um grito na parede rede redevolta verde verde verde
com mim com com consigoouvir é ver se se se se se
ou se se me lhe te sigo?
Memória é coisa recente;Até ontem, quem lembrava?
A coisa veio antes,ou, antes, foi a palavra?
Ao perder a lembrança,grande coisa não se perde;
Nuvens, são sempre brancas.O mar? Continua verde.
20 21
ICEBERG POR UM LINDÉSIMO DE SEGUNDO
Uma poesia ártica,claro, é isso que desejo.
Uma prática pálida,três versos de gelo.
Uma frase-superfícieonde vida-frase alguma
não seja mais possível.Frase, não. Nenhuma.
Uma lira nula,reduzida ao puro. mínimo,
um piscar do espírito,a única coisa única.
Mas falo. E, ao falar, provoconuvens de equívocos
(ou enxame de monólogos?).Sim, inverno, estamos vivos.
tudo em mimanda a mil
tudo assimtudo por um fio
tudo feitotudo estivesse. no cio
tudo pisando maciotudo psiu
tudo em minha voltaanda às tontas
como se as coisasfossem todas
afinal de contas
22 23
PASSE A EXPRESSÃO
Transar bem todas as ondas
a Papai do Céu pertence,fazer as luas redondas
ou me nascer paranaense.A nós, gent~, só foi dada
essa maldita capacidade,transformar amor em nada.
Esses tais artefatosque diriam minha angústia,
tem umas que vêm fácil,tem muitas que me custa.
Tem horas que é caco de vidro,meses qua é feito um grito,
tem horas que eu nem duvido,tem dias que eu acredito.
Então seremos todos gêniosquando as privadas do mundo
vomitarem de volta
todos os papéis higiê:q.icos.
2426
o MÍNIMO DO MÁXIMO ,'-SIGNO ASCENDENTE "-.,
Tempo lento,espaço rápido,
quanto mais pensá,menos capto.
Se não pego issoque me passa no íntimo,
importa muito?Rapto o ritmo.
Espaçotempo ávido,lento espaçodentro,
quando me aproximá,simplesmente me desfaço,
apenas o mínimoem matéria de máximo.
Nem todo espelhoreflita este hieroglifo.
Nem todo olhodecifre esse ideograma.
Se tudo existepara acabar num livro,
se tudo enigmaa alma de quem ama!
26 27
ALÉM ALMA
(UMA GRAMA DEPOIS)
+ PLENA PAUSA
Meu coração lá de longefaz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:NÃO TEM VAGA NEM LUGAR.
Pra que me serve um negócioque não cessa de bater? .
Mais me parece um relógioque acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero quem chora,se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá foracai macio dentro de mim?
Lugar onde se fazo que já foi feito,
branco da página,soma de todos os textos, I
foi-se o tempoquando, escrevendo,
era precisouma folha isenta.
Nenhuma páginajamais foi limpa.
Mesmo a mais Saara, Iártica, significa.
Nunca houve isso,uma página em branco. 1
No fundo, todas grita!m,pálidas de tanto. I
28
\~
91
29
30
MERD:A E OURO O PAR QUE ME PARECE
Merdaé veneno.No entanto, não há nada
que seja mais bonitoque uma bela cagada.
Cagam ricos, cagam padres,cagam reis e cagam fadas.
Não há merda que se compareà bosta da pessoa amada.
Pesa dentro de mim
o idioma que nã.o fiz,aquela língua sem. fim
feita de ais e de aquis.Era uma língua bonita,
música, mais que palavra,alguma coisa de hitita,
praia do mar de Java.Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.Tu40 era seu múltiplo,
verbo, triplo, prolixo.Gritos eram os únicos.
O resto, ia pro lixo.Dois leos em cada pardo,
dois saltos em cada pulo,eu que só via a metade,
silêncio, está tudo duplo.
31
ARTE DO CHÁ t PROEMA
ainda ontemconvidei um amigo
para ficar em silêncioco:rnigo
Não há verso,tudo é prosa,
passos de luznum espelho,
verso, ilusãode ótica,
verde,o sinal vermelho.
ele veiomeio a esmo
praticamente não disse nadae ficou por isso mesmo
Coisa
feita de brisa,de mágoa
e de calmaria,dentro
de um tal poema,qual poesia
pousaria?
32 33
DESENCONTRÁRIOS
Eu, hoje, aoordei mais oedoe, azul, tive uma idéia olara.
Só existe um segredo.Tudo está na oara.
Mandei a palavra rimar,ela não me obedeoeu.
Falou em mar, em oéu, em rosa,em grego, emsilênoio, em prosa.
Pareoia fora de si,a sílaba silenoiosa.
Mandei a frase sonhar,e ela se foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.Dar ordens a um exéroito,
para oonquistar um império extinto.
34 35
1
o QUE ,QUER DIZER UM METRO DE GRITO
(MÁQUINAS LÍQUIDAS)
lIara Haroldo de Campos,translator maximus
O que quer dizer, diz.Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outroo que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.
Leiam-se índices,mil olhos de lince,
entre meus filmes,leonardos da vinci.
Abri-vos, arcas, arquivos,súmulas de equívocos,
fechados,para que servem os livros?
Livros de vidro,discos, issos, aquilos,
coisas que eu vendo a metro,eles me compram aos quilos.
Líquidas lâminas,linhas paralelas,
quanto me dãopor minhas idéias?
36 37
CLARO CALAR SOBREUMA CIDADE SEM RUÍNAS
(RUINOGRAMAS)
sorte no jogoazar no amor
de que me servesorte no amor
se o amor é um jogoe o jogo não é meu forte,
meu amor?
Em Brasília, admirei.Não a niemeyer lei,
a vida das pessoaspenetrando nos esquemas
como a tinta sangueno mata borrão,
crescendo o vermelho gente,entre pedra e pedra,
pela terra a dentro.
Em Brasília, admirei.O pequeno restaurante clandestino,
criminoso por estarfora da quadra permitida.
Sim, Brasília.Admirei o tempo
que já cobre de anostuas impecáveis matemáticas.
Adeus, Cidade.O erro, claro, não a lei.
Muito me. admirastes,muito te admirei.
38 39
NOMES A MENOS
Carrego o peso da lua,Três paixões mal curadas,
Um saara de páginas,Essa infinita. madrugada.
Nome mais nome igual a nome,uns nomes menos; uns nomes mais.
Menos é mais ou menos,nem todos os nomes são iguais.
Viver de noiteMe fez senhor do fogo.
A vocês, eu deixo o sono.O sonho, não.
Esse, eu mesmo carrego.
Uma coisa é a coisa, PaI.' ou ímpar,outra coisa é o nome, par e par,
retrato da coisa quando límpida,coisa que as coisas deixam ao passar.
Nome de bicho, nome de mês,nome de estrela,
nome dos meus amores, nomes animais,a soma de todos os nomes,
nunca vai dar uma coisa, nunca mais.
Cidades passam. Só os nomes vão ficar.Que coisa dói dentro do nome
que não tem nome que contenem coisa pra se contar?
4140
VOLTA EM ABERTO O NÁUFRAGO NÁUGRAFO
Ambígua voltaem torno da ambígua ida,
quantas ambigüidadesse pode oometer na vida?
Quem parte leva um jeitode quem traz a alma torta.
Quem bate mais .na porta?Quem parte ou quem torna?
a letra A afunda no A
tlântiooe paoífioo oom
templo a lutaentre a rápida letra
e o ooeanolento
assimfundo e me afundo
de todos os náufragosná ugrafo
o náufragomais
profundo
42 43
BEM NO FUNDO
no fundo,. no fundo,bem lá no fundo,
a gente gostariade ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,aquela mágoa sem remédio
é considerada nulae sobre ela - silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,e nada mais
mas problemas não se resolvem,problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos passearo problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas
44
SEM BUDISMO
Poema que é boma.oaba zero a zero.
Acaba com.
Não como eu quero.Começa sem.
Com, digamos, certo verso,veneno de letra,
bolero. Ou menos.Tira daqui, bota dali,
um lugar, não caminho.Prossegue de si.
Heguro morreu de velho,e sozinho.
45
J
o amor, esse sufoco,agora há pouco era muito, .
agora, apenas um sopro
ah, troço de louco,corações trocando rosas,
e socos
46
o HÓSPEDE DESPERCEBIDO
Deixei alguém nesta salaque muito se distinguia
de alguém que ninguém se chamava,quando eu desaparecia.
Comigo se assemelhava,mas só na superfície.
Bem lá no fundo, eu, palavra,não passava de um pastiche.
Uns restos, uns traços, um dia,meus tios, minhas mães e meus pais
me chamarem de volta pra dentro,nu ainda não volte jamais.
Mas ali, logo ali, nesse espaço,In.Ae vai, exemplo de mim,
algo, alguém, mil pedaços,"lUla início, meio a meio, sem fim.
47
AÇO EM FLOR
para Xoji Sakaguchi,
portal amigo entre o
Japão 'eo Brasü
Quem nunca viuque a flor, a faca e a fera
tanto fez como tanto faz,e a forte flor que a faca faz
na fraca carne,um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viua ternura que vai
no fio da lâmina samurai,esse, nunca vai ser capaz.
48
A LUA NO CINEMA
A lua foi ao cinema,
passava :um filme engraçado,a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque.era apenasuma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,ninguém vai dizer, que penal
Era uma estrela sozinha,ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinhacabia numa janela.
A lua ficou tão tristecom aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:- Amanheça, por favor I
49
ANCH'IO SON PITTORE
fra angélicoquando pintava
uma madona cal bambinose ajoelhava e rezava
como se fosse um menino
orava diante da obra
como se fosse pecadopintar aquela senhora
sem estar ajoelhado
orava como se a obrafosse de deus não do homem
60
l
podem ficar com a realidadeesse baixo astral
em que tudo entra pelo cano
eu quero viver de verdadeeu fico com o cinema americano
51
LITOGRA VURA
Mão de estátua.
Templo. Coluna. Arco de triunfo.
Mil duzentos e cinqüenta.
Qualquer pedra na Europa
é suspeita de ser
mais do que aparenta.
Felizes as pedras da minha terra
que nunca foram senão pedras.
Pedras, a lua esfria
e o sol esquenta.
62
.RIMAS DA MODA l
63
1930 1960 1980
amor homem amador come cama
fome
eu ontem tive a impressãoque deus quis falar comigo
não lhe dei ouvidos
quem sou eu para falar com deus?ele que cuide dos seus assuntos
eu cuido dos meus
64
300.000 KMS POR SEGUNDO
De que música gostamos pernilongos?
De Schubert., de Wagner,de Debussy?
Não gostam de nada,a julgar por este aqui.
Apenas um solo de silêncio,tsso sim,
eu ouvi.
66
PARADA CARDÍACA
Essa minha securaessa falta de sentimento
não tem ninguém que segurevem de dentro
Vem da. zona escuradonde vem o que sinto
sinto muitosentir é muito lento
66
prazerda pura percepção
.-0S sentidos
sejam a críticada razão
como se eu fosse Júlio plaza
67
SORTES E CORTES
a linha clara
separa a folha
a tesoura traça
a folha
na folha branca
da forma a -forma
um diabo habita o branco do olho da página
claro oculto
o vazio passa
68
entre
e deixa
as claridades
uma saudade
IMPRECISA PREMISSA
(quantas curitibas cabem numa s6 Curitiba?)
Cidades pequenas,como dói esse silêncio,cantilenas, ladainhas,
tudo aquilo que nem penso,esse excesso
que me faz ver todo o senso,~mprecisa premissa,definitiva preguiça
com que sobe, indeciso,o mais ou menos do incenso.
Vila de Nossa Senhorada Luz dos Pinhais,
tende piedade de nós.
69
HARD FEELINGS
Oceans,emotions,
ships, ships,and other relationships,
keep us goingthrough thefog
and wandering mist.
What is itthat I missed?
60
(a riddle for Manha)
. SUJEITO INDIRETO
Quem dera eu achasse um jeitode fazer tudo perfeito,
feito a coisa fosse o projetoe tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadradoe o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,de ser, mim, indireto sujeito.
61
para que Ieda me leiaprecisa papel de seda
precisa pedra e areiapara que leia me Ieda
precisa lenda e certezaprecisa ser e sereia
para que apenas me veja
pena que seja Iedaquem quer você que me leia
Esse poema já f01 mus1cado duas vezes. Uma por MoraesMoreira, outra por Itamar Assumpção. Que tal você?
62
PAREÇA E DESAPAREÇA
Parece que foi ontem.Tudo parecia alguma coisa.
O dia parecia noite.E o vinho parecia rosas.
. Até parece mentira,tudo parecia algu:ma coisa.
O tempo parecia pouco,e a gente se parecia muito.
A dor, sobretudo,parecia prazer.
Parecer era tudoque as coisas sabiam fazer.
O próximo, eu mesmo. .
Tão fácil ser semelhante,quando eu tinha um espelho
pra me servir de exemplo.Mas vice versa e vide a. vida.
Nada se parece com nada.A fita não coincide
Com a tragédia encenada.Parece que foi ontem.
O resto, as próprias coisas contem.
63
AIS OU MENOS
,
AIS OU MENOS
(oração pela descrença)
Senhor,.peço poderes sobre o sono,
esse sol em que me ponhoa sofrer meus ais ou menos,
sombra, quem sabe, dentro de um sonho.Quero forças para o salto
do abismo onde me encontroao hiato onde me falto.Por dentro de mim, a pedra,
e, aos pés da pedra,essa sombra, pedra que se esfalfa.Pedra, letra, estrela à solta,
sim, quero, viver sem fé,levar a vida que falta
sem nunca saber quem é.
67
VOLÁTEIS~ COMO PODE?
Anos andando no mato,nunca vi um passarinho morto,
como vi um passarinho nato.
Soa estranho, esta manhã,tudo o que sempre foi meu, como pode?
Como pode que esse som lá fora,os sons da vida, a voz de todo dia,
pareça ficção científica?Onde acabam esses vôos?Dissolvem-se no ar, na brisa, no ato?
São solúveis em água ou em vinho? Como pode que ,esta palavra,que já vi mil vezes e mil_vezes disse,
não signifique mais nada,a não ser que o dia, a noite, a madrugada,
a não ser que tudo. não é nada disso?
Quem sabe, uma doença dos olhos. .
Ou serão eternos os passarinh"os?
Pode que eu já não seja mais o mesmo.Pode a luz, pode ser, pode céu e pode quanto.
Pode tudo o que puder poder.Só não pode ser tanto.
68 69
ROSA RILKE RAIMUNDO CORREIA
Marginal é quem escreve à margem,deixando branca a página
para que a paisagem passee deixe tudo claro à sua passagem.
Marginal, escrever na entrelinha,sem nunca saber direito
quem veio primeiro,o ovo ou a galin;b.a.
Uma pálpebra,mais uma, mais outras,
enfim, dezenasde pálpebras sobre pálpebras
tentando fazerdas minhas trevas
alguma coisa a maisque lágrimas
70 71
72
TRÊS METADES
Meio dia,um dia e me~o,
meio dia, meio noite,metade deste poema
não sai na fotografia,metade, metade foi-se.
impuro. espírito
raro respiroo ar que aqui tenta
arquiteto
um yago vôovampiro
Mas eis que a terça metade,aquela que é menos dosede matemática verdade
do que soco, tiro, ou coice,vai e vem como coisa
de ou, de nem, ou de quase.
Como se a gente tivessemetades que não combinam,três partes, destempestades,
três vezes ou vezes três,como se quase, existindo,só nos faltasse o talvaz.
73
o ATRASO PONTUAL
ai daqueles
que se amaram sem nenhuma brigaaqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga
Ontens e hojes, amores e ódio,adianta consultar o relógio?
Nada poderia ter sido feito,a não ser no tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.Bênçãos e desgraças
vêm sempre no horário.Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontroentre o tempo e o espaço
mais do que um sonho que eu contoou mais um poema que eu faço?
ai. daqueles que se amaramsem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voaporque não quer
não porque não.tem asa
74
Nem tudo envelhece.O brilho púrpura,
sob a água pura,ah, se eu pudesse.
Nem tudo,sentir fica.
Fica como fica a magnólia,magnífica.
76
SEGUNDO CONSTA
O mundo acabando,pOdem ficar tranqüilos.
Acaba voltandotudo aquilo.
Reconstruam tudosegundo a planta do~ meus versos.
Vento, eu disse como.Nuvem, eu disse quando.
Sol, casa, rua,reinos, ruínas, anos,
disse como éramos.
Amor, eu disse como.E como era mesmo?
77
peguei as oinoo estrelasdo oéu uma a uma
elas estrelas não vierammas na minha mão .
todas elasainda me perfuma
ASAS E AZARES
Voar oom asa ferida?Abram alas quando eu falo.
Que mais foi que fiz na vida?Fiz, pequeno, quando o tempo
estava ~odo do meu ladoe o que se ohama passado,
passatempo, pesadelo,só me existia nos livros.
Fiz, depois, donQ de mim,quando tive que esoolher
entre um abismo, o oomeço,e essa história sem fim.
Asa ferida, asaferida,
meu espaço, meu herói.A asa arde . Voar, isso não dói.
78 79
RAZÃO DE SER DESAP ARECENÇA
Escrevo. E pronto.Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,e as estrelas lá no céu
lembram letras no papel,quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.Tem que ter por quê?
Nada com nada se assemelha.
Qual seria a diferençaentre o fogo do meu sangue
e esta rosa vermelha?
Cada coisa com seu peso,cada quilômetro, seu quilo.
De que é que adianta dizê-Ia,isto, sim, é como aquilo?
Tudo o mais que acontece,nunca antes sucedeu.
E mesmo que sucedesse,acontece que esqueceu.
Coisas não são. parecidas,nenhum paralelo possível.
Estamos todos sozinhos.Eu estou, tu estás, eu estive.
80 81
Parece coisa da pedra,alguma pedra preciosa,
vidro capaz de treva,névoa capaz de prosa.
Pela pele, .é lírio,aquela pura delícia.
Mas, por ela, a vida,a mancha horrível, desliza.
82
DIVERSONAGENS SUSPERSAS
Meu verso, temo, vem do berço.Não versejo porque eu quero,
versejo quando conversoe converso por conversar.
Pra que sirvo senão pra isto,pra ser vinte e pra ser visto,
pra ser versa e pra ser vice,pra ser a'super-superfície
onde o verbo vem ser mais?
Não sirvo pra observar.Verso, persevero e conservo
um susto de quem se perdeno exato lugar onde está.
Onde estará meu verso?Em algum lugar de um lugar,
onde o avesso do inversocomeça a ver e ficar.
Por mais prosas que eu perverta,não permita Deus que eu perca
meu jeito de versej~r.
83
NARÁJOW
Uma mosca pouse no mapae me pouse em Narájow,
a aldeia donde veioo pai do meu pai, ;,
o que veio fazer a América,o que vai fazer o contrário,
a Polônia na memória,o Atlântico na frente,
o Vístula na veia.
Que sabe a mosca da feridaque a distância faz na carne viva,
quando um navio sai do portojogando a última partida?
Onde andou esse mapaque só agora estende a palma
para receber essa mosca,que nele cai, matemática?
84
PERGUNTE AO PÓ
cresce a viaacresce o tempo
cresce tudoe vira sempre
esse momento
cresce o pontobem no meio
do amor seu centroassim como
o que a gente sentee não diz
cresce dentro
86
V, DE VIAGEM
Viajar me deixaa alma rasa, .
perto de tudo,longe de casa.
Em casa, estava a vida,aquela que, na viagem,
viajava, belae adormecida.
A vida viajavamas não viajava eu,
que toda viagemé feita só de partida..
86
-- -----
LER PELO NÃO
.Ler pelo não, quem deral
Em cada ausência, sentir o cheiro fortedo corpo que. se foi,
a coisa que se espera.Ler pelo não, além da letra,
ver, em cada rima vera, a prima pedra,onde a forma perdida
procura seus etcéteras.Desler, tresler, contraler,
enlear-se nos ritmos da matéria,no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora,
navegar em direção às Índiase descobrir a América.
87
ÚLTIMO AVISO
Adeus, coisas que nunca tive,dívidas externas, vaidades terrenas,
lupas de detetive, adeus.Adeus, plenitudes inesperadas,
sustos, ímpetos e espetáculos, adeus.Adeus, que lá se vão meus ais.
Um dia, quem sabe, sejam seus,como um dia foram dos meus pais.
Adeus, mamãe, adeus, papai, adeus,adeus, meus filhos, quem sabe um dia
todos os filhos serão meus.Adeus, mundo cruel, fábula de papel,
sopro de vento, torre de babeI,adeus, coisas ao léu, adeus.
caso alguma coisa me acontecer,informem a família,
foi assim, assim tinha que ser
tinha que ser dor e doresse processo de crescer
tinha que vir dobradoesse medo de não ser
tinha que ser mistérioesse meu modo de desaparecer
um poema, por exemplo,caso alguma coisa me suceder,
vá que seja um indício
quem sabe ainda não acabei de escrever
88 89
DESPROPÓSITO GERAL
t
Esse estranho hábito,escrever obras-primas,
não me veio rápido.Custou-me rimas.
Umas, paguei caro,liras, vidas, preços máximos.
Umas, foi fácil.Outras, nem falo.
Me lembro dumaque" desfiz a socos.
Duas, em suma.Bati mais um pouco.
Esse estranho abuso,adquiri, faz séculos.
Aos outros, as músicas.Eu, senhor, sou todo ecos.
90
M, DE MEMÓRIA
Os livros sabem de cormilhares de poemas.
Que memórialLembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,Ul1sses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,o céu não vale uma história.
Um dia, o diabo veioseduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,ler não passa de uma lenda.
91
ATÉ MAIS INCENSO FOSSE MÚSICA
Até tu, matéria bruta,até tu, madeira, massa e músculo,
vodka, fígado e soluço,luz de vela, papel, carvão e nuvem,
pedra, carne de abacate, água de chuva,unha, montanha, ferro em brasa,
até vocês sentem saudade,queimadura de primeiro grau,
vontade de voltar pra casa?
isso de quererser exatamente aquilo
que a gente éainda vai
nos levar além
Argila, esponja, mármore, borracha,cimento, aço, vidro, vapor, pano e cartilagem,
tinta, cinza, casca de ovo, grão de areia,primeiro dia de outono, a palavra primavera,
número cinco, o tapa na cara, a rima rica,a vida nova, a idade média, a força velha,
até tu, minha cara matéria,lembra quando a gente era apenas uma idéia?
9392
,
gardênias e hortênsiasnão façam nada
que me lembre
que a este mundo eu pertença
À glória sucedeo que sucede à água:
por mais água que beba,. qual lhe sacia a sede?
Diverso o sucesso,basta-lhe. um verso
para essa desgraçaque se chama dar certo.
deixem-me pensarque tudo não passa
de uma terrível coincidên,cia
9495
96
OBJETO SUJEITO
~ I
você nunca vai saberquanto custa uma saudade
o peso agudo no peitode carregar uma cidade
pelo lado de dentrocomo fazer de um verso
um objeto sujeitocomo passar do presentepara o pretérito perfeito
nunca saber direito
você nunca vai sabero que vem depois de sábado
quem sabe um séculomuito mais lindo e mais sábio
quem sabe apenasmais um domingo
você nunca vai sabere isso é sabedoria
nada que valha a penaa passagem pra pasárgada
xanadu ou shangriláquem sabe a chave
de um poemae olha lá
POESIA: 1970
Tudo o que eu façoalguém em mim que eu desprezo
sempre acha o máximo.
Mal rabisco,não dá mais pra mudar nada.
Já é um clássico.
97
KAWA CAUIMdesarranj os florais
é.-
99
,'I
KAWA
o ideograma de kawa, "rio", em japonês, pictograma de umfluxo de água corrente, sempre me pareceu representar (navertical) o esquema do haikai, o sangue dos três versosescorrendo na parede da página...
litx ~(',.., 101
- HAI
Eis que nasce completoe, ao morrer, morre germe,
o desejo, analfabeto,de saber como reger-me,-
ah, saber como me ajeitopara que eu seja quem fui,
eis o que nasce perfeitoe, ao crescer , diminui.
10~
-- KAI
Mínimo templopara um deus pequeno,
aqui vos guarda,em vez da dor que peno,
meu extremo anjo de vanguarda.
De que máscarase gaba sua lástima,
de que vagase vangloria sua história,
saiba quem saiba.DESARRANJOS FLORAIS
A mim me bastaa sombra que se deixa,
o corpo que se afasta. ,'n
104
amei em cheiomeio amei-o
meio não amei-o
107
pelos caminhos que andoum dia vai ser
só não sei quando
meiodia três coreseu disse vento
e caíram todas as flores
108 109
I
abrindo um antigo cadernofoi que eu descobri
antigamente eu era eterno
o mar o azul o sábadoliguei pro céu
mas dava sempre ocupado
110 111
~I
enfim,viu-me,
e passou,como um filme
nu,como vim
112
11
era uma vez noite sem sonoo cachorro late
um sonho sem donoo sol nascenteme fecha os olhos
até eu virar japonês
114 11"
rio do mistério
que seria de mimse me levassem a sério?
choveuna carta que você mandou
quem mandou?
116 117
praias praias sinaisum olhar tão longe
esse olhar ninguém olhajamais
[.
118
entre os garotos de bicicletao primeiro vagal ume
de mil novecentos e oitenta e sete
119
sombrasderrubam
sombrasquando atreva
está madura
primeiro frio do anofui feliz
se não me engano
sombraso vento leva
sombranenhuma
dura
120 121
retrato de ladoretrato de frente
de mim me façaficar diferente
na torre da igrejao passarinho pausa
pousa assim feito pousasseo efeito na causa
122 123
entre
a águae o chá
desabrocha
o maracujá
124
1'I
-- --
ano novoanos buscando
um ânimo novo
125
alvorada
alvoroçotroco minha alma
por um almoço
temporal
fazia tempoque eu não me sentia
tão sentimental
126 127
cortinas de sedao vento entra
sem pedir licença
1ua à vistabrilhavas assim
sobre auschwitz?
128 129
hoje à noitelua alta
falteie ninguem sentiu
a minha falta
tudo dito,nada feito,
fito e deito
130 131
tarde de ventoaté as árvores
querem vir para dentro
tudo claroainda não era o dia
era apenas o raio
132
+
133
Sobre o AutQ.r
Paulo Leminski Filho, nascido em Curitiba, Paraná, em 1944. (24 deagosto, Virgo). Mestiço de polaca com negro, sempre t1veu no Paraná (in-fância no interior de Santa. Catarina).
Publicou: Catatau (prosa experimental), em 1976, Curitiba, ed. do au-tor. Não Fosse Isso e Era Menos / Não Fosse Tanto e Era Quase e Polonaise(poemas, 1980, Curitiba, ed. do autor). Publicou poemas, com fotos de Ja-que Pires, no álbum Quarenta Cl1ques, Curitiba, 1979, ed. Etcetera.
Ex-professor de História e Redação em cursos pré-vestibulares, foidiretor de criaçãoe redator depublicidade, colaborou no "Folhetim" da Folhade S. Paulo, resenhou livros de poesia na Veja.
Poemas e textos publicados em inúmeros órgãos (CorpoEstranho, Mu-da, Código, Raposa, ete.) de Curitiba, São Paulo, Rio e Ba.h1a.
Teve seus primeiros poemas publicados na revista Invenção, em 1964,então, porta-voz da poesia concreta paulista.
Faixa-preta e professor de judô, viveu em Curitiba com a poeta AliceRuiz, com a qual teve duas filhas.
Foram publicados pela Bras1l1ense:Cruz é Souza (Enca.nto Radical),1985; Caprichos e Relaxos (Cantadas Literárias), 1985; Matsuó Bashõ (En-canto Radic81), 1985; Jesus a.C. (Encanto Radical), 1984; Agora é que sãoelas (Circode Letras), 1984; Leon Trotsltl- A paixão segundo a revolução,1986; todos de sua autoria. Além das traduções de Folhas das folhas da rel-va, de Wh1tman, 1985; Supermacho, de Alfred Jarry, 1988; Satyricom, dePetrônio, 1988; Sole Aço,de Mishima, 1988 e Ma.loneMorre, de Samuel Bec-kett, 1986. Pela Criar Edições, o livro Anseios Crípticos, 1986 e pela Scipio-ne, Guerra dentro da gente (infanto-juvenil), além de muitos textos disper-sos.
Paulo Leminski morreu no dia 7 de junho de 1989.
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