dissertacao frederico cid soares
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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
FREDERICO CID SOARES
PRODUO CIENTFICA SOBRE COMENSALIDADE NO
BRASIL: ESTUDO DOCUMENTAL DE TESES E
DISSERTAES (1997-2011)
So Paulo
2014
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FREDERICO CID SOARES
PRODUO CIENTFICA SOBRE COMENSALIDADE NO
BRASIL: ESTUDO DOCUMENTAL DE TESES E
DISSERTAES (1997-2011)
Dissertao de Mestrado apresentada Banca
Examinadora, como exigncia parcial para a
obteno do ttulo de Mestre do Programa de
Mestrado em Hospitalidade, rea de concentrao
em Hospitalidade: Processos e Prticas da
Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientao
do Prof. Dr. Luiz Octvio de Lima Camargo.
So Paulo
2014
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FREDERICO CID SOARES
PRODUO CIENTFICA SOBRE COMENSALIDADE
NO BRASIL: ESTUDO DOCUMENTAL DE TESES E
DISSERTAES (1997-2011)
Dissertao de Mestrado apresentada Banca
Examinadora, como exigncia parcial para a
obteno do ttulo de Mestre do Programa de
Mestrado em Hospitalidade, rea de
concentrao em Hospitalidade: Processos e
Prticas da Universidade Anhembi Morumbi,
sob a orientao do Prof. Dr. Luiz Octvio de Lima Camargo.
Aprovado em
Prof. Dr. Luiz Octvio de Lima Camargo/Universidade Anhembi Morumbi
Prof. Dr. Alexandre Panosso Netto
Profa. Dra. Mirian Rejowski
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minha famlia, especialmente minha me Maristela e meu irmo Gustavo.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a minha me e meu irmo pelo grande apoio.
Ao meu orientador Luiz Octvio de Lima Camargo pelos ensinamentos e apoio nos
momentos de maior dificuldade durante o mestrado.
Aos professores do mestrado Airton Jos Cavenaghi, Elizabeth Kyoko Wada, Maria do
Rosrio Rolfsen Salles, Marielys Siqueira Bueno, Mirian Rejowski e Snia Regina Bastos pelos
ensinamentos e apoio durante o mestrado.
Aos professores de gastronomia Tibrio Alfredo e Joo Batista.
Aos amigos do mestrado Borges, Daniela Oliveira, Eliane Norgang, Fabiana Padovez,
Fabi Ribeiro, Flvia Matos, Jeferson Mola, Jotta Neves, Jussara Abhika, Leo Costa, Luciana
Gonzales, Luiz Carlos Terra, Marcelo Bertoldi, Marina Gimenez, Moacir Sobral, Nanci
Agnello, Vera Cristina de Arajo.
Aos amigos da graduao Cristina Zanzoni, Eduardo Monteiro, Eunaides Chaves,
Galego, Gustavo Sad, Kika Pitella, Ludmila Lombello, Victor de Lucca.
Especial agradecimento ao grande amigo da graduao e parceiro nos estudos e artigos
Yury Tom Keith Ferreira Feliciano.
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES
pela bolsa concedida.
A todos os outros amigos no mencionados aqui que me apoiaram nesses anos
de estudo.
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"We ate the food, we drank the wine
Everybody having a good time..."
Paul David Hewson, 1991
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RESUMO
O presente trabalho aborda a produo acadmica de dissertaes de mestrado e teses de
doutorado disponibilizadas no Banco de Teses da Coordenao de Aperfeioamento de
Pessoal de Nvel Superior CAPES sobre o tema da comensalidade. A metodologia empregada foi o tratamento desses materiais a partir de referncias como o ano de
produo, o tipo de universidade, o nmero de teses e dissertaes por universidade, as
reas de estudo e financiamento. Posteriormente foram analisadas categorias nas quais
os trabalhos se enquadram. Os resultados mostraram que o estudo da comensalidade
vem aumentando significativamente nos ltimos anos, sendo mais presente em
universidades pblicas. As universidades que mais abordaram o tema foram a
Universidade Federal de Santa Catarina e a Universidade Anhembi Morumbi. Tambm
foi verificado que as reas de abrangncia predominantes foram Antropologia, Cincias
Sociais Aplicadas, Nutrio e Teologia. O tema j tem chamado a ateno dos
organismos oficiais de financiamento. A anlise das categorias mostrou que o estudo da
comensalidade tem sido explorado de diferentes formas, abordando etnias, aspectos
nutricionais, religiosos e situaes diversas.
Palavras-Chave: Hospitalidade. Comensalidade. Produo cientfica.
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ABSTRACT
The present work discusses the academic production about theme commensality in
dissertations and PhD theses available in Theses Database Coordination of
Improvement of Higher Education Personnel - CAPES. The methodology employed
was the treatment of these materials from references as the year of production, the type
of university, the number of theses and dissertations by university areas of study and
financing. Were subsequently analyzed categories in which the work is framed. The
results showed that the study of commensality has increased significantly the last few
years, being more present in public universities. The universities have been more
covered the theme are Santa Catarina Federal University and Anhembi Morumbi
University. It was also verified that the coverage areas were predominant Anthropology,
Applied Social Sciences, Nutrition and Theology. The theme has already caught the
attention of the official agencies for funding. The category analysis showed that the
study of commensality has been explored in different ways, addressing ethnic,
nutritional, religious and diverse situations.
Keywords: Hospitality. Commensality. Academic production.
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LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 - PALAVRAS CHAVES UTILIZADAS NOS TRABALHOS ......................................... 52
LISTA DE ILUSTRAES
GRFICO 1 - NMERO DE TESES E DISSERTAES POR ANO ............................................... 48
GRFICO 2 - NMERO DE TESES E DISSERTAES POR IES ................................................ 48
GRFICO 3 - TIPO DE UNIVERSIDADE ............................................................................... 49
GRFICO 4 - ENTIDADE FINANCIADORA ........................................................................... 50
GRFICO 5 - REAS DE ESTUDO ....................................................................................... 50
GRFICO 6 - REPERCUSSO DOS TRABALHOS .................................................................... 51
GRFICO 7 - CATEGORIAS ................................................................................................ 53
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADVENIAT - Entidade alem que presta ajuda a igreja da Amrica Latina
ANVISA - Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria
CAPES - Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
FAPERJ - Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
FUNAI - Fundao Nacional do ndio
FUNASA - Fundao Nacional de Sade
IES - Instituio de Ensino Superior
PUC - Pontifcia Universidade Catlica
UAM - Universidade Anhembi Morumbi
UEPG - Universidade Estadual de Ponta Grossa
UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFBA - Universidade Federal da Bahia
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UFC - Universidade Federal do Cear
UFF - Universidade Federal Fluminense
UFG - Universidade Federal de Gois
UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFPA - Universidade Federal do Par
UFPR - Universidade Federal do Paran
UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina
UMSP - Universidade Metodista de So Paulo
UNB - Universidade de Braslia
UNIFAI - Centro Universitrio Assuno
USP - Universidade de So Paulo
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SUMRIO
INTRODUO ............................................................................................................. 12
1 COMENSALIDADE NA HISTRIA ........................................................................ 16
1.1 PR-HISTRIA E ANTIGUIDADE ......................................................................... 16
1.2 IDADE MDIA E IDADE MODERNA .................................................................... 20
1.3 IDADE CONTEMPORNEA ................................................................................... 26
2 DDIVA, HOSPITALIDADE E COMENSALIDADE ............................................. 34
2.1 DDIVA................................................................................................................... 34
2.2 HOSPITALIDADE ................................................................................................... 36
2.3 RELAES ENTRE DDIVA, HOSPITALIDADE E COMENSALIDADE ............ 40
3 ANLISE DOS DADOS SOBRE A PRODUO BIBLIOGRFICA .................... 46
3.1 METODOLOGIA ..................................................................................................... 46
3.2 CARACTERIZAO GERAL ................................................................................. 47
3.3 ANLISE DAS CATEGORIAS TEMTICAS ......................................................... 52
3.3.1 COMENSALIDADE E ETNIAS ............................................................................ 53
3.3.2 COMENSALIDADE E RELIGIO ........................................................................ 56
3.3.3 COMENSALIDADE E NUTRIO ...................................................................... 59
3.3.4 ESPAOS E LUGARES DE COMENSALIDADE ................................................. 62
CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................ 66
REFERNCIAS.............................................................................................................. 69
APNDICE A TABELA DE EXCEL ........................................................................... 77
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INTRODUO
Se reno numa mesa apenas homens de gosto (esteticamente ligados)
que tm o propsito de desfrutar juntos no apenas uma refeio, mas
tambm uns aos outros [...] essa pequena sociedade tem de se propor
no apenas satisfao do corpo, como tambm com o contentamento
social, para o qual aquela tem de parecer ser apenas o veculo (KANT,
2006, p.175).
Na apresentao do livro Por uma nova fisiologia do gosto (VINCENT &
AMAT, 2006) Camargo afirma que a alimentao terreno de pesquisas e de aplicao
do conhecimento acumulado por vrias cincias biolgicas, sociais e sociais aplicadas.
A biologia estuda o comensalismo (animal que se alimenta dos restos de alimentos de
outros animais, sem prejudicar a alimentao dos mesmos, como o caso do tubaro e
da rmora) e o parasitismo (uma espcie que se alimenta da outra, em prejuzo desta,
como ocorre na relao entre vermes, carrapatos, etc. e o ser humano).
Nesta mesma rea do conhecimento, a medicina e o nutricionismo devem ser
lembrados. Foram os primeiros a tentar criar uma diettica, um conjunto de prescries
alimentares com vistas boa sade, hoje essenciais para a espcie humana e outras
espcies animais. No estudo do impacto da alimentao, as comidas tornam-se calorias,
protenas, vitaminas, carboidratos, toxinas, etc. No est em questo o princpio do
prazer, ainda que aqui e ali se faam algumas concesses ao alimento tambm
gostoso, cheio de gosto... bom!
A gastronomia a segunda rea de aplicao do conhecimento cientfico sobre
os alimentos. Veio para mostrar que o alimento deve ser gostoso e que, para essa
finalidade, h que se pensar em verdadeiras combinaes qumicas. o reduto dos
chefs-de-cuisine ou simplesmente chefs. A bioqumica, da mesma forma que foi o
campo cientfico de suporte dos nutricionistas, mostrando ao mesmo tempo a
composio qumica dos alimentos e a resposta do organismo a esses diferentes
componentes, tambm veio em ajuda da gastronomia, estudando as melhores
combinaes do ponto de vista dos aspectos visuais, gustativos e olfativos dos
alimentos. Na gastronomia esto presentes no apenas categorias cientficas como
estticas, donde a questo se ela no seria tambm uma arte e se os chefs no poderiam
ser autnticos artistas.
Mais recentemente, outro campo de estudos vem intrometer-se na discusso, a
comensalidade e, com isso, as cincias humanas encontram a sua forma de contato com
o tema. Pode-se separar o prazer do alimento do prazer da companhia que se tem para o
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alimento, do prazer da conversao batons rompus, da conversa jogada fora que,
para Kant, o exerccio mais nobre do ser-estar humanos?
Neste caso, a comensalidade pode ser entendida como um tempo e um espao da
hospitalidade humana.
O comensal assume, antes de tudo, a figura do hspede. Ele se
identifica, desse modo sob o termo genrico de convidado (isotomia
da recepo) ou, de maneira mais especfica, de conviva (isotopia da
refeio) porque a noo de comensalidade condensa os traos da
hospitalidade e os da mesa (BOUTAUD, 2011, p. 1213).
Da decorre que a comensalidade traz embutidas duas dimenses da noo de
hospitalidade humana, uma horizontal e outra vertical.
O eixo horizontal a fora de agregao e da coeso que a
comensalidade alimenta. A comunidade se forma, se encontra, se
reconhece; expressa sua unidade, seus vnculos, sua capacidade de
intercambiar, de se abrir, de se relaxar e de se divertir. No caso do
eixo vertical, a comensalidade convida ao respeito das hierarquias, dos
lugares, dos papis (BOUTAUD, 2011, p. 1213).
J existe uma extensa bibliografia internacional sobre o tema da comensalidade,
que ser descrita e analisada no referencial terico. Com a evoluo desses estudos
tambm no Brasil de se perguntar: como andam essas pesquisas? qual a sua situao
atual? quais as perspectivas apontadas? Com base nesse problema, elege-se como
objetivo central a configurao da pesquisa cientfica em comensalidade no Brasil e o
conhecimento nela produzido.
Da decorrem os seguintes objetivos especficos:
- a caracterizao cronologia, universidades, programas e reas de produo dos
estudos, constelao de palavras-chave do conhecimento cientfico produzido nas
dissertaes e teses brasileiras sobre comensalidade.
- a definio e anlise das categorias temticas das pesquisas em comensalidade.
- A investigao dos fundamentos tericos e metodolgicos nos quais se assentam as
pesquisas produzidas.
Esta pesquisa tinha inicialmente como objetivo propor um estado da arte da
produo bibliogrfica sobre o tema da comensalidade. Laranjeira (2003) considera
inadequada a utilizao deste termo em pesquisas feitas em lngua portuguesa, pois a
traduo para o portugus do termo State of Art no d conta de comunicar na nossa
lngua complexidade que de fato existe em pesquisas que se utilizam desta
metodologia. Isto posto optou-se neste artigo pela utilizao de anlise da produo
acadmica a nvel de ps-graduao stricto sensu.
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Sobre as limitaes desta metodologia, existe a dificuldade de verificar a
assertividade dos resumos de teses e dissertaes presentes nos bancos de dados e
catlogos bibliogrficos. Desta forma muitos so os resumos que no apresentam um
quadro claro do contedo da pesquisa. Assim, Ferreira (2002) prope dois momentos na
pesquisa: primeiro levanta-se a produo acadmica, atravs da qual o pesquisador
quantifica e identifica o material colhido; num segundo momento, devem-se traar:
Tendncias, nfase, escolhas metodolgicas e tericas, aproximando
ou diferenciando trabalhos entre si, na escrita de uma histria de uma
determinada rea do conhecimento. Aqui, ele deve buscar responder
alm das perguntas quando, onde e quem produz pesquisas num
determinado perodo e lugar, aquelas questes que se referem a o qu e o como dos trabalhos (FERREIRA, 2002, p.265).
O propsito aqui , ento, repita-se, algo mais modesto: uma reviso
bibliogrfica de teses e dissertaes e, ainda assim, apenas aquelas que constam do
Banco de Dissertaes e Teses da CAPES. Se estas no representam a totalidade do
conhecimento existente, como seria a pretenso de um verdadeiro estado da arte, traz,
em contrapartida, os horizontes do tema no Brasil e para onde caminham as pesquisas.
Afinal, as dissertaes e teses constituem as fronteiras da pesquisa cientfica, que do
origem ao surgimento de novos autores e de novos temas.
Trata-se, pois, de aplicar a tcnica de investigao sobre o tema comensalidade.
Para a realizao do levantamento do material a ser analisado, optou-se por utilizar o
Banco de Teses da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
(CAPES), por se tratar do registro mais completo dentro da produo acadmica de ps-
graduao stricto sensu no Brasil.
Inicialmente, demonstra-se necessrio verificar a produo bibliogrfica sobre
comensalidade como forma de expor os conhecimentos construdos na rea de mestrado
e doutorado, auxiliar os pesquisadores de maneira a avanar na construo de
conhecimento e no desenvolvimento de pesquisas neste setor.
Nesta parte inicial, busca-se o mapeamento dessa produo cientfica, de molde
a possibilitar a compreenso do conhecimento sobre o assunto e a categorizao das
temticas de interesse dos pesquisadores, o que pode contribuir para outras pesquisas
sobre o tema.
Esta parte inicial possui carter descritivo, pois pretende mostrar por meio de
grficos e tabelas pontos relevantes acerca da produo bibliogrfica sobre
comensalidade nos nveis de mestrado e doutorado.
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15
A tcnica utilizada nessa fase do estudo foi a bibliometria, tcnica quantitativa
e estatstica de medio dos ndices de produo e disseminao do conhecimento
cientfico (ARAUJO, 2006, p.12).
Dentre os procedimentos operacionais da pesquisa procedeu-se o acesso ao site
do Banco de Teses da CAPES, utilizando como termo de busca o vocbulo
comensalidade no campo assunto, registrando-se em arquivo do Programa Excel todos
os dados disponveis. Os dados registrados foram ano de produo, nome do autor,
ttulo do trabalho, palavras-chave, universidade, rea de estudo, entidade financiadora, e
resumo.
O resultado da busca listou 88 teses e dissertaes com a palavra comensalidade,
mas percebeu-se que nem todos os documentos referiam-se comensalidade como o ato
de comer junto. Na verdade, notou-se que o levantamento no distinguiu comensalidade
e comensalismo. Como j se notou acima, comensalidade um termo que faz mais parte
das cincias sociais e humanas, pois se refere ao ato de comer junto com outras pessoas.
J comensalismo um termo que vem das cincias exatas, sobretudo da biologia, que
significa a associao de carter mais ou menos ntimo em que duas espcies subsistem
regularmente associadas, sem que uma viva s expensas da outra (COELHO e
CARVALHO, 2005, p.24).
O levantamento dos trabalhos resultou num universo de 32 dissertaes e teses
sobre o tema. Para a descrio e anlise dos resultados, so consideradas: a)
caracterizao geral das pesquisas (ano, tipo, instituio produtora); b) anlise das
categorias (temas e subtemas).
A pesquisa inicialmente trata da produo bibliogrfica sobre comensalidade no
Brasil. Posteriormente so selecionadas quatro categorias, caracterizando e analisando
as dissertaes e teses produzidas sobre a temtica no perodo de 1997 a 2011. Ao final
so destacados os principais resultados e contribuies da pesquisa e sugestes de
estudos futuros.
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1 COMENSALIDADE NA HISTRIA
A comensalidade ao longo da histria vista em trs dimenses: enquanto
cimento da hospitalidade e do vnculo humano, enquanto ingrediente essencial na
comemorao de datas e festividades e enquanto ato de purificao espiritual.
Diversos autores tratam da comensalidade atravs dos tempos. O ato de partilhar
o alimento alimenta a sociabilidade do homem desde a pr-histria, tendo passado por
todos os estgios de evoluo da humanidade. Trazem-se aqui vrios autores falando
sobre como a comensalidade fez parte da histria do homem e sua importncia nas
relaes humanas.
1.1 PR-HISTRIA E ANTIGUIDADE
Raros so os relatos da comensalidade na pr-histria, devido s escassas
informaes deixadas por nossos antepassados. E a histria comeou h apenas uns
cinco mil anos (por volta de 3000 a.C.), no momento que o homem passou a utilizar-se
da escrita para contar a sua prpria histria (SAMPAIO, 2009, p.31).
Para Carneiro (2004), comer a origem da socializao, pois, nas formas
coletivas de se obter comida, a espcie humana desenvolveu diversos utenslios
culturais, podendo at mesmo ter desenvolvido a linguagem. A comensalidade a
prtica de comer junto, partilhando a comida. Sua origem to antiga quanto a espcie
humana.
Flandrin (1998) diz que, desde 500 mil anos a.C., os antropoides passaram a usar
diariamente um fogo coletivo para cozinhar. Isso favoreceu o consumo em comum, a
funo social da refeio e o desenvolvimento da comensalidade.
Boff (2008, p.3) acrescenta um aspecto da comensalidade:
Os etnlogos e arquelogos nos acenam para um fato singular: quando nossos
antepassados antropoides saam a coletar frutos, sementes, caas e peixes no
comiam individualmente o que conseguiam reunir. Tomavam os alimentos e os
levavam ao grupo. E a praticavam a comensalidade.
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Verifica-se a importncia da prtica da comensalidade aps as caadas e coleta
de frutos. A unio do grupo e a partilha do alimento mostravam-se importantes para a
sociabilidade dos grupos. No bastava simplesmente comer, mas tambm a diviso do
alimento com os membros do grupo.
Flandrin (1998) afirma que no paleoltico superior havia uma organizao
estruturada de vrias famlias que caavam juntas. Isso implicava uma partilha da carne
entre as famlias que participaram do abate. Depois dessa caa, provvel que grandes
festas reunissem essas famlias para consumirem juntas as carnes conseguidas.
Brillat-Savarin (1995, p.168) faz um comentrio sobre as reunies familiares no
passado, com membros da famlia compartilhando o alimento e ajudando os mais
frgeis do grupo:
As refeies, no sentido que damos a essa palavra, comearam com a
segunda idade da espcie humana, ou seja, no momento em que ela
cessou de se alimentar apenas de frutos. O preparo e a distribuio de
carnes fizeram a famlia se reunir, os pais distribuindo aos filhos o
produto da caa, e os filhos adultos prestando a seguir o mesmo
servio a seus pais envelhecidos.
Essa afirmao relevante no aspecto da ajuda ao prximo, ao mais frgil. Os
mais jovens e os mais idosos, apesar de no participarem das caadas por condies de
sade e energia, desfrutavam do alimento junto com os demais. A comensalidade vista
aqui no s como ato de socializao, mas tambm como um ato de solidariedade.
Flandrin (1998, p. 52) cita que:
Como resposta s necessidades individuais, a alimentao torna-se
progressivamente elemento essencial da estruturao dos grupos, de
expresso de uma identidade prpria e origem de um pensamento
simblico. Esta evoluo manifesta-se muito claramente, do ponto de
vista arqueolgico, nas prprias opes pelos alimentos e na maneira
de consegui-los.
Tanto Flandrin quanto Brillat-Savarin ratificam que a comensalidade foi de
fundamental importncia para a formao de laos sociais, sendo a diviso do alimento
um instrumento de unio entre as pessoas.
A comensalidade vista tambm como um momento de comemorao entre
povos. Exemplos de banquetes, festas e grandes reunies em torno do alimento so
citados por vrios autores. Os motivos dessas comemoraes so bem variados, por
motivos religiosos, datas comemorativas, etc.
Grandes refeies feitas em conjunto so verdadeiras celebraes de datas e
festividades, celebraes de negcios e rituais de passagem. Esses banquetes tm
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acompanhado diversos povos h sculos, transformando o ato de comer em verdadeiras
festas e comemoraes.
Segundo Joanns (1998), acordos solenes que renam indivduos e grupos
familiares concretizam-se pela realizao de uma refeio em comum. A refeio une os
participantes em concluses de contratos e, sobretudo, por ocasies de um casamento.
Refeies partilhadas pelos familiares da noiva e do noivo criam laos entre as famlias
dos noivos.
O autor cita que:
Na Assria do fim do terceiro milnio, o fato de untar a cabea de uma
moa livre ou organizar um banquete de npcias bastava para
legitimar um casamento. Um documento de contabilidade babilnico
do princpio do segundo milnio mostra que, durante um casamento, o
pai da noiva encarregava-se de distrair seus convidados e os do noivo,
at que este partisse com sua mulher, depois de terem recebidos
presentes, dentre os quais produtos alimentares durante a festa. A
cerimnia em si comportava, entre outras coisas, uma troca simblica
de iguarias dispostas em uma mesabandeja, que eram consumidas,
uma aps a outra, pelas famlias da noiva e do noivo, criando assim
um lao suplementar entre eles (JOANNS, 1998, p.56).
O autor tambm cita grandes refeies em conjunto patrocinadas pelo rei
mesopotmico para celebrar acontecimentos, como a inaugurao de um palcio ou de
um templo, a celebrao de uma vitria, a recepo de uma delegao estrangeira
(JOANNS, 1998).
Percebe-se que banquetes so vistos como uma forma de estreitar as relaes da
populao de uma determinada localidade, como tambm uma maneira dos governantes
expressarem poder, conquistas e aumentar a popularidade perante seus sditos. A
grandiosidade das refeies impressionava:
[...] Desses banquetes, o mais gigantesco foi o que Assurnasrpal II1
ofereceu aps a concluso do palcio de Kalhu, convidando 69.574
pessoas para um festim que durou dez dias. A lista dos vveres
consumidos estende-se por muitas dezenas de linhas e enumera
quantidades gigantescas: mil bois gordos, 14 mil carneiros, mil
cordeiros, muitas centenas de diversos tipos de cervdeos, aves (por
exemplo, 20 mil pombos), 10 mil peixes, 10 mil gerbos2, 10 mil ovos,
sem contar milhares de jarras de cerveja e outras tantas de vinho
(JOANNS, 1998, pp. 62-63).
A partilha do alimento e a comensalidade tambm so tratados como ato de
purificao espiritual pelo autor. Um indivduo que foi submetido a uma cerimnia de
1 Assurnasirpal II foi um rei assrio, filho de Tukulti-Ninurta II. Governou a Assria de 884 a.C.
a 859 a.C. 2 Pequeno roedor.
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exorcismo deve, aps libertar-se de impurezas e voltar ao seu domiclio, passar por uma
taberna e juntar-se aos clientes, reintegrando-se assim, simbolicamente, na sociedade
humana (JOANNS, 1998).
Os rituais de comensalidade uniam no s os homens como uniam tambm os
deuses a eles. Banquetes e grandes comemoraes com muita comida e bebida faziam
parte de agregao do homem aos deuses. Nas origens, deuses e homens ficavam lado
a lado no banquete (PANTEL, 1998, p.158).
Ainda sobre banquetes realizados com deuses, Flandrin (1998, p. 52) afirma que:
Se realmente, como acreditavam os mesopotmicos, a sociedade
divina reproduziu algumas caractersticas da sociedade humana, ,
sem dvida, nas descries dos banquetes de que as divindades
participam que este paralelo pode ser mais bem estabelecido. Com
efeito, tanto o esprito quanto a forma dessas reunies ilustra, de
maneira clara, a funo deste tipo de festejo na Sumria, na Babilnia
ou na Assria. Vrios textos literrios fornecem-nos detalhes
reveladores em relao a isso. Muitas vezes, a assembleia dos grandes
deuses, em que so tomadas decises importantes, acontece durante
um banquete. O banquete aparece como uma das principais marcas da
solidariedade que une esse grupo, ao mesmo tempo em que ilustra as
delcias da vida divina, segundo a concepo humana.
Brillat-Savarin (1995, p.170) tambm fala dos banquetes dos deuses, das festas de
pessoas comuns e tambm de mercadores, fortalecendo a amizade entre eles e selando
acordos comerciais:
A partir do incio do terceiro milnio na Sumria ou, no mais tardar,
no segundo milnio, em outras regies da Mesopotmia e da Sria,
inmeros textos comprovam a existncia de banquetes com ritos
precisos. Embora eles descrevam principalmente os banquetes dos
deuses ou dos prncipes, refere-se tambm s festas das pessoas
comuns. Comer e beber juntos j servia para fortalecer a amizade
entre os iguais, para reforar as relaes entre senhor e vassalos, seus
tributrios, seus servidores e, at, os servidores de seus servidores. Da
mesma forma, em um nvel social mais baixo, os mercadores selavam
seus acordos comerciais na taberna, diante de uma panela.
A ligao entre a comensalidade e a f tambm so retratadas na vida de Jesus.
Crossan (1994, p. 381) afirma que:
Para Jesus, a comensalidade era mais do que uma simples estratgia
para sustentar a misso. Isso podia ser feito atravs de esmolas, da
cobrana de uma remunerao ou da obteno de um salrio. Podia-se,
por exemplo, mendigar ao estilo dos cnicos. A comensalidade na
verdade, era uma estratgia para reconstruir a comunidade camponesa
sobre princpios radicalmente diferentes daqueles ditados pelo sistema
de honra e vergonha, apadrinhamento e clientelismo. Ela estava
baseada no ato de compartilhar de forma igualitria o poder espiritual
e material, no nvel mais popular.
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Isso mostra que viver do alimento fornecido por um protetor ou ser o fornecedor
do alimento constituam uma vergonha que no atingia necessariamente os que
mendigavam por necessidade. A comensalidade de Jesus era uma forma de estreitar
laos de amizades por onde passava, ao invs de criar uma imagem ruim de
mendicncia, que muitas vezes no bem recebida por outros.
Corbier (1998) comenta que os romanos eram uma sociedade que no concebia a
alimentao como um prazer solitrio. O jantar era, antes de qualquer coisa, uma
ocasio para conversas, um encontro que caracteriza o acesso conviviabilidade, ainda
que a comida seja frugal.
Examinando as afirmaes de Corbier, verifica-se que o prazer de partilhar o
alimento comum, mesmo que no sejam realizados suntuosos banquetes. Mesmo
refeies mais simples so realizadas em conjunto, o que ratifica a importncia da
comensalidade.
Conforme visto, os rituais de comensalidade desde a pr-histria at a
antiguidade foram bem marcantes para os povos. Diversos foram os motivos para
reunies em torno do alimento. Mas a partilha do alimento tomou propores maiores
ainda a partir da Idade Mdia, na qual ficaram famosos muitos banquetes e
comemoraes regadas a muita comida e vinho, como veremos a seguir.
1.2 IDADE MDIA E IDADE MODERNA
A comensalidade na Idade Mdia e na Idade Moderna mostrou-se presente para
estreitar laos de paz e conviviabilidade. Tambm foram vistos motivos religiosos e de
comemoraes. Em algumas circunstncias, estratos sociais se distinguiam de acordo
com o lugar mesa ou ao tipo de alimento que era consumido.
Durante a maior parte da Idade Mdia a refeio e o banquete
(convivium) constituam o mais eloquente smbolo que se dispunha
para expressar o compromisso de manter relaes baseadas na paz e
na concrdia. A palavra chave nesse caso compromisso, porque comer e beber junto era uma forma de obrigar-se a satisfazer as
condies que esse tipo de lao implica (ALTHOFF, 1998, p.300).
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Althoff (1998) tambm afirma que as refeies coletivas na Idade Mdia eram
organizadas em diversas ocasies, quando indivduos selavam a paz, quando grupos
celebravam a continuidade de seus laos, quando um acontecimento particular, como
batismo ou casamento exigia que as relaes fossem explicitadas e reforadas por um
comportamento adequado.
O autor demonstra a importncia da refeio coletiva:
Depois de falar sobre o importante papel das refeies e das reunies
em que se bebia na vida coletiva medieval, h que se insistir em outro
ponto: o mais importante era comer e beber junto, e no o que se
comia e o que se bebia (ALTHOFF, 1998, p.304).
Novamente percebe-se a comensalidade como cimento social, pois a importncia
de comer e beber junto se mostra como um vis de sociabilidade entre as pessoas. No
importa o que se come, mas com quem se come.
As refeies coletivas tambm foram vistas no povo judeu na idade mdia:
Arrumava-se a casa colocando toalhas brancas (tovajas) limpas e
novas e aumentando a iluminao habitual. A celebrao comea com
o jantar de vspera, que se faz antes do cair da noite depois de uma
minuciosa preparao religiosa (DOLADER, 1998, p. 360).
Percebe-se que a importncia de refeies coletivas descrita com o preparo
cuidadoso, usando-se toalhas brancas, limpas e novas para os convidados. A
religiosidade est tambm atrelada comensalidade, mostrando que essa unio
caracterstica tambm dos judeus.
Celebraes festivas como casamento tambm exploram a comensalidade nos
judeus da idade mdia:
O banquete nupcial se realizava depois do anoitecer, em companhia
dos ntimos e daqueles que tinham oferecido um presente, mas s
vezes, se oferecia uma pequena recepo na qual eram servidas
guloseimas tais como roscas aucaradas e tarales, roscas grandes
base de farinha, leo e acar. As refeies eram invariavelmente
acompanhadas de msica e danas (DOLADER, 1998, p. 363).
O autor tambm descreve atos de comensalidades dos judeus envoltos em certos
rituais mesa, como se v a seguir:
A reunio em volta da mesa obedece a um certo cerimonial, porque
no se trata apenas de um lugar onde se come, mas tambm de um
microespao para onde convergem os diversos atores unidos por laos
de parentesco ou amizade (DOLADER, 1998, p. 378).
Sabe-se que a comensalidade nos mosteiros era acompanhada por uma das suas
principais caractersticas que era a mesa farta e o conviva sentava-se mesa com os
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monges para participar da refeio, para se mostrar, ainda que de uma forma passageira,
sua incluso no grupo.
A comensalidade como ato de purificao espiritual vista em diversos
acontecimentos no Brasil colonial. Inmeras festas catlicas aconteciam de norte a sul
do pas aproximando a populao da religiosidade em momentos de comemoraes que
muitas vezes eram acompanhados de comida e bebida.
Suzuki (2007, p. 61-62) relata que:
A exemplo da chegada da imagem do Senhor Bom Jesus do Cuiab,
em 1729, quando ocorreram muitos festejos organizados pelos
moradores da Vila Real. A imagem foi trazida em procisso do Porto
Geral, e em seguida levada igreja matriz, onde ficou alojada em um
altar. Houve missa cantada e sermo pregado pelo padre Jos Angola,
religioso franciscano. As manifestaes profanas foram compostas por
representaes de duas comdias, banquetes e fogos de artifcio, que
duraram quatro dias, por conta das pessoas principais da vila.
Percebe-se a presena da comensalidade na festa religiosa atravs dos banquetes
que so oferecidos populao. Muitas vezes a comensalidade e a oferta de alimentos
acaba funcionando, tambm, como uma atrao especial para que mais pessoas possam
comparecer festa religiosa.
Amado & Anzai (2006) relatam a festa do Santssimo Sacramento no Brasil
colnia, no qual houve uma missa e a exposio do Santssimo Sacramento, alm de
procisso. O governador ofereceu um jantar pblico, alm de espetculos de teatro e
pera.
Percebe-se, novamente, a comensalidade presente em atos religiosos, alm da
festa propriamente dita, com apresentao de espetculos artsticos. Verifica-se tambm
a presena da ddiva, com o oferecimento de um jantar populao, embora o motivo
principal destes oferecimentos pblicos seja a autopromoo e interesses dos
governantes.
Um relato da comensalidade ligada religiosidade foi o sermo do Padre
Antnio Oliveira, feito em 31 de maio de 1750:
Na Mesa do Santssimo Sacramento [se formava] uma nova oficina de
Divindade; e que a comida de to soberana Ceia faz Deuses aos
homens, que chegando a ela homens, ficam Deuses; e com tanta
soberania, que se pudera haver excesso Mesa da Santssima
Trindade, s parece que o haveria na Mesa do Sacramento; por que
sendo as trs Divinas Pessoas um s Deus, Deuses ficam todas as
pessoas, que dignamente recebem o Santssimo Sacramento. E para
chegarmos soberania de to alta Mesa, e vermos os prodgios de
tanta Divindade, vistamo-nos primeiro do ornamento nupcial da
Divina graa (Oliveira, 1752, p. 5, traduo nossa).
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A diferenciao segundo estratos sociais nas festas da Idade Mdia era evidente.
Os alimentos mais nobres, como aves, eram servidos s pessoas mais importantes,
seguidos de carnes de vitelo e por ltimo carne de porco.
No banquete de casamento de Nannina deMedici e Bernardo
Rucellai, em 1466, serviu-se vitelo aos convidados dos domnios
rurais dessas duas famlias, enquanto os convivas de nvel mais alto se
deliciaram com capes, frangos e outras aves de criao. [...] O porco
ocupava o escalo mais baixo [...] porque se tratava da carne mais
acessvel s classes inferiores (GRIECO, 1998, p.475).
Quanto mais alto o estrato social, maior o consumo de carne. Os nobres
medievais comem a carne assada contrastada com pratos temperados e doces que
proviam alvio ao paladar. A cozinha nobre medieval resulta de uma composio
curiosa entre o passado romano e a proximidade rabe, uma combinao que Mennel
(1996) associaria cozinha indiana nos dias de hoje (DUTRA, 2007).
Alm da diferenciao dos tipos de alimentos em classes sociais diferentes, o
modo como se faziam as refeies tambm era uma distino social de classes. Quanto
menor fosse o estatuto social menor o nmero de pratos servidos. Enquanto os mais
abastados consumiam trs tipos de pratos diferentes numa mesma refeio os menos
favorecidos consumiam apenas um (MARQUES, 1987).
Essas diferenciaes sociais ficavam ainda mais evidentes em festividades,
como se verifica atravs desta afirmao:
Se ao nvel do tipo e frequncia de alimentos consumidos eram j
evidentes as diferenas entre as classes sociais do Portugal medieval, e
sendo estas discrepncias ainda mais notrias durante as refeies e
protocolos que as envolviam, a distino mais marcada surge, sem
dvida, em ocasies festivas. Isto no significa que as classes sociais
mais pobres no festejassem certos acontecimentos com alimentao
mais abundante e diversificada. A diferena era sobretudo marcada
pela grandiosidade dos banquetes servidos pelos nobres (FERREIRA,
2008, p.112).
As distines nos atos de comensalidade no se baseavam apenas nas classes
sociais. A importncia dos membros da famlia tambm era evidenciada de acordo com
o lugar que as pessoas ocupavam mesa. Pessoas mais importantes ocupavam lugares
com maior destaque: O lugar central ocupado, por conseguinte, pelo convidado de
honra e pelo chefe da casa. A mulher s tem direito a ele numa ocasio: seu casamento
(ALEXANDRE-BIDON, 1998, p. 526).
Grieco (1998) tambm fala a respeitos dos banquetes, que aconteciam com
frequncia e no s eram celebrados pelos mais abastados. As pessoas de classe mais
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baixa tambm participavam dos banquetes, ocupando lugares diferentes mesa e tendo
uma alimentao diferenciada dos ricos.
Um relato visto na comensalidade na Idade Mdia:
O prprio fato de se sentar mesa com convivas de religio diferente
visto com desconfiana pela mentalidade medieval, quando no
explicitamente proibido; participar de um banquete , com efeito, um
sinal de comunho e identidade; fazer parte do mesmo grupo
(FLANDRIN, 1998, p. 313).
Isso mostra que a comensalidade na poca medieval era vista como uma
identidade entre as pessoas. Indivduos com diferenas religiosas, inimizades e
desavenas no podiam sentar-se juntos mesa, embora, quando uma amizade era
refeita, a partilha do alimento era um sinal de selar o pacto de paz.
Althoff (1998, p.301) diz que dentre a gama de meios de comunicao no
verbais da Idade Mdia, a refeio era um dos principais sinais que permitiam dar e
conhecer decises, inovaes e mudanas.
Essas refeies eram organizadas quando havia acontecimentos marcantes,
como, por exemplo, quando indivduos selavam a paz e faziam alianas e tambm em
atos de passagem como casamento e batismo, sagrao de um cavaleiro, comemorao
de vitrias em batalhas e outros acontecimentos importantes para as pessoas da
sociedade (ALTHOFF, 1998).
O autor tambm afirma que muitas refeies coletivas eram realizadas para
fortalecer amizades e selar relaes associativas. At os ltimos tempos da poca
medieval essas refeies marcaram esses atos solenes. Na vida posterior do grupo o
banquete acontecia de forma permanente e era realizado em intervalos regulares
(ALTHOFF, 1998).
As tavernas foram locais de comensalidade que se multiplicaram na Europa da
Idade Mdia. Esses locais iam alm da prtica da comensalidade entre amigos. Eram
tambm recintos onde novas amizades eram feitas, fazendo com que pessoas que nunca
haviam tido um contato comeassem a se conhecer:
Quando o homem entrava no recinto, encaminhava-se diretamente ao
bar, pagava um penny3, era avisado, se nunca estivesse estado l
anteriormente, sobre os regulamentos da casa (no cuspir nesta ou
naquela parede, no brigar perto das janelas, etc.) e ento se sentava
para se divertir. Isto, por sua vez, consistia em conversar com outras
pessoas, sendo a conversa comandada por uma regra cardinal: a fim de
que as informaes fossem as mais completas possveis, suspendiam-
se temporariamente todas as distines de estrato social; qualquer
3 Penny, sendo tradicionalmente traduzida para dinheiro, o nome da moeda de um centavo.
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pessoa que estivesse sentada num caf tinha o direito de conversar
com quem quer que fosse, abordar qualquer assunto, quer conhecesse
as outras pessoas, quer no, quer fosse instada a falar quer no. Era
desaconselhvel fazer referncias s origens sociais das pessoas com
quem se falava no caf, porque isso poderia ser obstculo ao livre
fluxo da conversa (SENNETT, 1998, p.106).
A comensalidade tambm uma forma de se despedir de entes queridos em
banquetes funerrios na Idade Mdia.
Depois das cerimnias de adeus os familiares, amigos, membros do
clero e pobres que a elas assistiram renem-se na casa do morto a fim
de participar de uma refeio ritual, que visa restabelecer a coeso no
seio da comunidade depois do desaparecimento de um dos seus
membros (RIERA-MELIS, 1998, p.407).
Althoff (1998, p.305) tambm cita os banquetes que se relacionavam a ocasies
fnebres, que tinham como objetivo um lao entre os vivos e os mortos: Comia-se e
bebia-se em memria dos defuntos, estreitando assim a comunho entre vivos e mortos,
a qual assegurava principalmente a perenidade da lembrana.
Os rituais de comensalidade eram muitas vezes acompanhados de vinho e
cerveja. O lcool, alm de ser uma forma de socializar as pessoas, tambm era uma
ferramenta usada como assepsia, devido ao medo da transmisso de doenas pela gua
que muitas vezes era contaminada:
Para o homem da Idade-Mdia, o vinho e a cerveja no eram um luxo,
mas uma necessidade. As vilas ofereciam uma gua impura muitas vezes perigosa para a sade Cumprindo papel antissptico, o vinho constitua um elemento da medicina rudimentar da poca.
Enciclopdia Larousse do vinho (2007. p. 17).
Do mesmo modo que no incio dos tempos, a comensalidade foi um lao social
na Idade Mdia e na Idade Moderna. Foram observados diversos exemplos de como a
comensalidade foi um fator marcante nessa poca. Tambm foi constatado que as
classes sociais tinham modos diferenciados de comer junto, apesar de que as festas e
comemoraes eram desfrutadas por todas as pessoas.
No carter religioso, verificou-se que a comensalidade na Idade Mdia foi bem
marcante. Os atos de comensalidade eram vistos em festas religiosas e celebraes
fnebres que tinham como objetivo estreitar laos entre os vivos e os mortos.
Apesar de algumas diferenas na comensalidade nos primeiros tempos e na
Idade Mdia e Idade Moderna, a verdadeira revoluo da comensalidade se consolidou
na Idade Contempornea, com mudanas drsticas nos rituais de comensalidade.
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1.3 IDADE CONTEMPORNEA
No curto perodo contemporneo, que tem pouco mais de duzentos anos, as
transformaes na comensalidade foram bem significativas. As grandes transformaes
ocorridas nesses anos fizeram com que algumas prticas de comensalidade fossem
quase ou totalmente extintas.
Apesar dessas grandes transformaes, ainda se v a comensalidade fortemente
ligada sociabilidade das pessoas e o estreitamento de laos familiares. As atividades
religiosas tambm so muito relacionadas ao ato de partilhar o alimento, exemplificado
em inmeras festas religiosas ao redor do mundo. Alm disso, comemoraes, ritos de
passagem e grandes negcios so realizados com grandes eventos nos quais a
comensalidade claramente evidenciada.
Os banquetes, muito famosos na Idade Medieval, tiveram continuidade na poca
contempornea:
Nos jantares de cerimnia, a mesa farta era uma tradio herdada dos
portugueses. Leites assados, cabritos ou mesmo lebres e perdizes,
faziam as honras da casa. Na casa da rua do Carmo, a Marquesa de
Santos, uma das principais damas da sociedade paulistana, casada com
o Brigadeiro Tobias desde 1842, os convidados eram saudados por um
assado que fazia a fama das cozinheiras do solar. (MONTELEONE,
2008, p. 52).
Verifica-se que os imigrantes portugueses continuaram a tradio de realizar
grandes atos de comensalidade em virtude de comemoraes, alm de se utilizar de
grandes banquetes e festas comemorativas para firmar uma posio de destaque na
sociedade.
A comensalidade fora do lar teve um grande impulso com a popularizao de
cafs e restaurantes no Sculo XIX. Muitas pessoas podiam se encontrar diariamente
com amigos e companheiros de trabalho para discutir assuntos diversos.
Monteleone (2008, p. 72) afirma sobre alguns cafs do sculo XIX:
Da mesma maneira que o lugar estabelecia um novo tipo de
sociabilidade os homens importantes da cidade iam discutir poltica, saber das novidades, conversar sobre os problemas urbanos ao redor
de uma xcara de caf os cafs ainda possuam funes e sabores antigos. Conversava-se ao redor de uma xcara de caf, uma bebida
dos novos tempos e no em um armazm de secos e molhados, como
nos velhos tempos. Para acompanhar a nova bebida, o caf, comiam-
se petiscos e merendas antigas bolos de fub, broinhas de polvilho, bolinhos de tapioca.
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A autora tambm faz o seguinte relato sobre outros lugares que se popularizaram
na poca:
Os cafs, botequins, bares e confeitarias acolhiam e davam lugar a
uma nova sociabilidade urbana, capaz de abrigar todos (que podiam
pagar) debaixo de um mesmo teto, bebendo, conversando, trocando
experincia. De uma maneira muito semelhante, os hotis tambm
fizeram parte dessa transformao da cidade, sob o impacto da
industrializao (MONTELEONE, 2008, p. 75).
Percebe-se uma mudana da comensalidade como cimento social. No s os
lares eram palco de rituais de conviviabilidade entre as pessoas. As ruas tambm se
tornaram um lugar de partilha do alimento. Mas o aspecto nutricional pouco importava,
o que era importante era se sociabilizar.
A comensalidade tambm continuou muito ligada religiosidade na sociedade
contempornea, dando continuidade a este forte lao desde o incio dos tempos. Amaral
(1998, pp. 263-264) cita essa ligao na festa religiosa do Crio de Nossa Senhora de
Nazar:
O almoo reproduz a experincia vivida na procisso. O indivduo se
insere no grupo familiar reunido (parentes distantes que vm festa
pagar promessas ou simplesmente compartilhar a presena de todos
nesta reunio anual). Famlias nucleares e extensas, normalmente
distanciadas pela geografia ou pelas atividades dirias, renem-se,
reconstituindo, ao menos durante o almoo do Crio, seu cl.
A comensalidade e a f tambm so citadas por Abdalla (2011, p. 143), em um
estudo sobre tradies de pequenas comunidades do interior do Brasil:
Reunies mensais com finalidade religiosa, no mbito das
comunidades, tambm foram narradas. No chegam a ser
propriamente festas. Os catlicos da fazenda Rancharia se renem no
primeiro domingo do ms para celebrao de missa ou para rezar o
tero. Em seguida, servem um almoo que consiste em churrasco com mandioca, salada ou vinagrete, tutu e arroz ou um lanche, com quitandas e caf.
Percebe-se que essas reunies religiosas so peridicas, acontecendo todo ms, e
que a partilha do alimento um elemento sempre presente. Sendo um farto churrasco ou
uma refeio simples, a comensalidade retratada nas celebraes religiosas da
comunidade.
Nessas mesmas comunidades, atos de comensalidade esto aliados ddiva,
com a populao praticando atos de solidariedade entre amigos e parentes, com a
presena do alimento para celebrar a sociabilidade e ajuda mtua entre as pessoas:
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Nas memrias coletadas no sudeste goiano destacaram-se, de modo
especial, os relatos sobre a antiga prtica de mutires4 ou traies5 nas
comunidades rurais. Momentos de solidariedade vicinal e trabalho
coletivo que associavam ajuda mtua alegria e cantoria e, ao final
do trabalho, ocorriam as festas chamadas de brincadeiras, forrs ou
pagodes e muita comilana. Desta forma, foi possvel perceber a
importncia da prtica como fator de reforo dos laos sociais entre
vizinhos e parentes nos municpios estudados. (ABDALLA, 2011, p.
135).
Conforme visto anteriormente, a oferta de alimentos aos mais necessitados, que
ocorre desde os tempos antigos, pode ser observada nas festas catlicas, onde a f e a
ddiva esto unidas, conforme observa Rodrigues (2006, p. 110).
As festas do catolicismo popular so momentos de distribuio e
equilbrio de alimentos, se constituem em cerimnias dramticas de
troca e retribuio, sobretudo de carne. Alm disso, muitas pessoas
doentes comem o alimento oferecido, pois acreditam em seus poderes
teraputicos na cura de enfermidades. [...] Portanto, a distribuio de
alimento, no por acaso, um ritual encontrado na maioria, seno em
todas, das festas religiosas.
O ato de compartilhar o alimento em comemoraes religiosas visto como
sociabilizante, unindo laos afetivos entre famlia e amigos, afirma Pereira (2010, p.99),
em um trabalho que relata a festa da SantAna, na cidade de Ponta Grossa PR:
Posteriormente missa solene das 10h, que era realizada pelo bispo D.
Antonio Mazzarotto, era realizado o almoo comunitrio, no qual era
vendido o churrasco, a populao comprava, e tinha as opes como
explica Maria M. M. Indizeichak: O ato de comer juntos
intrinsecamente sociabilizante, assim membros de uma mesma
famlia, juntamente com alguns amigos, sentavam-se prximos uns
dos outros para compartilhar a refeio.
A importncia da presena do alimento e da comensalidade em festas religiosas
se confunde com a ddiva. Os organizadores de uma festa religiosa em uma comunidade
rural do interior de Minas gerais, denominados festeiros, preparam um grande banquete
para a populao como forma de agradecimento a uma graa alcanada, conforme
observa Paiva (2004, p. 3):
O banquete uma etapa do ritual da Festa de Nossa Senhora do
Rosrio e encontra-se dentro dos limites da fartura, da boa mesa e do comer em coletividade. No banquete podemos observar as dimenses de imagens e significados, papis sociais, hierarquia,
sistema de trocas e ddivas: os reis do Rosrio (os festeiros) fazem o banquete para pagar suas promessas e os congadeiros danam e
4 Auxlio mtuo que se prestam os agricultores, a servio de um deles, por um dia ou mais. 5 Espcie de mutiro organizado por um fazendeiro que quer prestar auxlio a um vizinho que se
encontra em ocasio de aperto de trabalhos agrcolas, o qual, em companhia dos trabalhadores,
faz uma surpresa ao amigo, na vspera do dia do trabalho, a altas horas da noite, despertando-o,
geralmente ao som de cantos.
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cantam agradecendo ao dono da casa, comunidade e aos reis pela
comida oferecida.
Apesar dos relatos da comensalidade ser uma forma de estreitar laos com a
religiosidade, alguns autores deixam claro que alguns membros da populao
participam dos ritos religiosos mais interessados na parte profana da festa. Segundo
Britto (2010, p. 68):
Como se trata de uma festa, e entendendo que em todas as formas de
religiosidade brasileira h um caminho ou meio de se chegar a Deus,
existe a parte religiosa, a venerao e o agradecimento de forma
alardeante nesse caso com procisso fluvial e terrestre, ritos sagrados como os batizados e as missas campais realizadas nos bairros
onde esto os mastros votivos, foguetrio e msica. Para o povo esta
a obrigao, a outra parte da festa a diverso, pois esto inseridas as
danas, msicas, bebidas e comidas, que no deixam de ser outra
forma de agradecimentos vida.
Mas, sem sombra de dvida, um dos atos de f e comensalidade mais
expressivos que existem a celebrao eucarstica. O auge da celebrao catlica o
oferecimento do corpo de Cristo aos fiis, que comungam juntos e, em seguida, se
ajoelham e tm um momento de remisso dos pecados. O relato de Rech (2006, p.70)
elucidante:
O ato de comer junto o po eucarstico sinal mais visvel da real
presena de Jesus na comunidade reunida e unida. Tal ao deve,
progressivamente, levar transformao pessoal e coletiva, e permite
aprofundar sempre mais a relao com Jesus, com outros seres
humanos e com o cosmos. Estabelecendo assim autnticas relaes de
amor e fraternidade. [...] Pela comensalidade eucarstica,
continuamente, somos impulsionados/as a agirmos criativamente com
as ddivas divinas dadas por Ele, e assim criarmos e recriarmos novas
relaes, na reciprocidade, na solidariedade e amor, e um mundo de
mais justia e paz.
Sobre a comensalidade no incio do Sculo XX, DEMETERCO (1998, p.96)
afirma que:
A vida familiar nas primeiras dcadas do sculo girava em torno da
cozinha, do fogo lenha e da mesa farta e variada, especialmente de
doces. O momento das refeies tornava-se, no nvel da
domesticidade, a ocasio propcia para a conversa com o marido
(mesmo que muitas vezes escassa...) e deste com os filhos. A refeio
familiar seria ento estratgica tambm para a aprendizagem das boas
maneiras, alm de se constituir num dos momentos em que a famlia
se rene.
Isso mostra que a comensalidade era fortemente ligada a casa e famlia, sendo
o calor em volta do fogo lenha o palco das reunies familiares e tambm de
ensinamentos dos pais aos filhos.
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Entretanto, comearam a acontecer muitas mudanas nas prticas de
comensalidade alguns anos mais tarde, em virtude de modernizaes tecnolgicas e
mudana nos hbitos das famlias, como evidenciado por Casotti (2002, p.32):
Muitas mudanas nos alimentos e nos hbitos de alimentao
ocorreram a partir da Segunda Guerra Mundial: novidades
tecnolgicas, como freezer e forno de micro-ondas, a melhoria de
qualidade dos alimentos, o aumento de quantidade e variedade, a
convenincia das embalagens e comidas pr-prontas, a propagao do
hbito de comer fora.
A modernizao e industrializao de alimentos tambm so retratadas por
Poulain (2004, p.51):
Paralelamente, a transformao culinria se industrializa. A mudana
da valorizao social das atividades domsticas leva as indstrias agro
alimentcias a se desenvolver no espao de autopromoo que
representava a cozinha familiar. Propondo produtos cada vez mais
perto do estado de consumo, a indstria ataca a funo socializadora
da cozinha, sem, no entanto, chegar a assumi-la. Assim, o alimento
visto consumidor como sem identidade, sem qualidade simblica, como annimo, sem alma, sado de um local industrial no identificado, numa palavra, dessocializado.
Essas afirmaes mostram que as reunies familiares do comeo do sculo XX
em torno da cozinha foram ficando cada vez mais escassas. O tempo de preparo dos
alimentos foi significantemente diminudo em virtude de aparatos modernos e
preparaes industrializadas pr-prontas.
A funo da cozinha e da sala de jantar como local de comensalidade tambm
foi diminuindo em virtude de um estilo de vida mais corrido, onde as pessoas ficam
pouco tempo em casa, no tendo oportunidade de se reunir em volta da mesa para
partilhar o alimento. Para tanto contribuiu tambm a progressiva diminuio dos
espaos domsticos de uso social como a sala e a transferncia da sociabilidade para os
chamados espaos gourmet. Novos locais comearam a ser usados cada vez mais para a
alimentao:
Dickson e Lider (1998) comentam a tendncia de jornalistas e
analistas sociais anunciarem e lamentarem o declnio da refeio
familiar, que estaria morrendo nos sofs assistindo TV e, com ela, o declnio da famlia, que estaria literalmente se despedaando. Ao mesmo tempo, o sucesso da comida conveniente, em combinao com
o uso de freezer e fornos de micro-ondas, estaria proporcionando mais
tempo livre para as pessoas verem televiso, o que tambm
contribuiria para o declnio das refeies familiares, em que as
pessoas no compartilham apenas alimentos, mas conversas
(CASOTTI, 2002, pp. 31-32).
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Santanna (2003, p. 46) tambm evidencia tal fato dessas mudanas de hbitos
alimentares das pessoas:
A partir dos anos 70, os locais reservados ao ato de comer ganharam
uma mobilidade antes pouco usual para a maior parte da populao:
dentro de muitas moradias das classes mdias, por exemplo, passou-se
a almoar na cozinha, na sala, diante da televiso... usando como
assento cadeiras, bancos altos, almofadas, poltronas, camas e sofs.
Muitos comem sozinhos, ou com amigos e colegas de trabalho.
Relatos de donas de casa que perceberam essas transformaes na
comensalidade podem ser vistos em alguns trabalhos acadmicos sobre comensalidade
nos tempos atuais:
Rosa (36, A2) e Lcia (33 A1) mostram tambm seu conflito entre o
papel tradicionalmente associado mulher nas atividades culinrias e
o papel de profissional fora do lar. Ambas se referem comida
congelada, um dos smbolos da praticidade exigida principalmente
pela mulher que trabalha fora (CASOTTI, 2002, p. 107).
Percebe-se que a imposio do trabalho fora de casa impossibilita a mulher dos
dias de hoje de realizar muitas tarefas no lar, como o preparo do alimento e a espera da
famlia para praticar a comensalidade.
Tambm verificado que a falta de tempo da sociedade contempornea obriga a
ela comer o mais depressa possvel, no podendo perder o precioso tempo da correria do
dia a dia com o preparo do alimento.
Na viso de que no se deve perder tempo no preparo da comida, tudo
deve ser preparado rpido e sem perda de tempo, pois na verdade a
vida l fora corre depressa e voc tem que comer rapidamente tambm
(LEONARDO, 2006, p.43).
O mercado capitalista criou solues para esses problemas de tempo, com uma
exploso de restaurantes rpidos. O tempo que seria desperdiado na preparao do
alimento facilmente ressarcido com uma visita a um restaurante que possa oferecer o
alimento de maneira prtica e rpida.
Essa adaptao do estilo fast-food cultura nacional encontra um
exemplo interessante no Brasil com a comida por quilo. Essa frmula tipicamente brasileira acrescenta um aspecto novo rapidez e
estandardizao da alimentao. Este aspecto diz respeito
mensurao do consumo, ou seja, a unidade deixa de ser um bife, duas batatas, uma colher ou uma concha de alimento, e passa a ser o peso do total consumido. [...] A rapidez assegurada pelo display de
pratos prontos no buffet que antecede a pesagem (HECK, 2004,
p.143).
Rodrigues (2011, p.89) mostra que a famlia da atualidade dificilmente encontra
tempo para reunies familiares dirias em volta da mesa:
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Havendo uma comparao com os dias de hoje pode-se tambm
verificar que muitas famlias tm seus dias corridos e cheios de tarefas
o que os afasta de certa forma de uma unio e confraternizao, e havendo uma prtica de se alimentar em volta da mesa, todos juntos,
mantm-se a tradio de se utilizar este momento o momento de se alimentar como uma forma de unio e convivncia.
O autor tambm afirma que as pessoas sentem falta de praticar a comensalidade
em famlia, usando datas festivas e dias de folga para poder praticar essas reunies que
contribuem para a sociabilidade:
Ainda na atualidade entende-se que atravs de grandes reunies
familiares em volta da mesa (natal, aniversrios, ano novo, finais de
semana) que se consegue reunir a famlia, aumentando o grau de
intimidade, de convivncia e de unio, isso porque ainda hoje os
afazeres particulares de cada um os mantm de certa forma afastados.
Logo, no importando o tamanho e composio da famlia, muitos
paulistas ainda guardam o costume de usar o ato de se alimentar para
se reunir e se unir (RODRIGUES, 2011, p.123).
Mesmo com o declnio da comensalidade diria praticada por famlias durante
toda a evoluo humana, a comemorao de ritos de passagem, de grandes negcios,
acontecimentos e comemoraes em geral so demonstradas atravs da comensalidade,
como pode ser visto por Carvalho (2004, p.16).
Mesmo na sociedade burocratizada dos dias atuais, a comensalidade
continua tendo papel de legitimao de contratos sociais. Um grande
negcio conclui-se com um almoo ou jantar comemorativo. Uma
unio conjugal, aps sua formalizao religiosa ou civil, completa
pela realizao da festa que, independente de sua envergadura, com
pompa e presena numerosa, ou simples e restrita a poucos
convidados, referenda ao ato. As diferenas sociais espelham no
alimento suas formas de consumo.
Um dos primeiros ritos de comensalidade que foram vistos na histria da
humanidade permanece at os dias de hoje, sendo um dos principais momentos em que
as pessoas podem partilhar o alimento em um ato de sociabilidade. A partilha do
alimento ao redor da fogueira ganhou novas caractersticas na sociedade
contempornea. Ao invs de fogueira, usada uma churrasqueira, na qual so assadas
carnes, sendo praticada a comensalidade por amigos, familiares, conhecidos e at
mesmo desconhecidos.
Os churrascos so muitas vezes praticados simplesmente para sociabilizar
pessoas:
Ou seja, aparentemente, o churrasco pode tambm representar
meramente um motivo extra, uma desculpa, para reunir os amigos e festejar sem uma razo especial, atravs de uma refeio longa, que
todos apreciam, que celebra a cultura gacha e que os remete a coisas
boas em geral. Note-se que isto no implica, necessariamente, que a
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carne no tenha importncia para os participantes, mas conota, sim, a
sensao de que eles a utilizam como um meio para atingir a outros
objetivos (ALBRECHT, 2010, p.78).
O autor ainda afirma que neste sentido, a atividade social do churrasco tambm
cumpre um papel de aproximar as pessoas, tornando famlia os participantes
(ALBRECHT, 2010, p.65).
Verifica-se que o churrasco funciona tambm como uma autoafirmao da
masculinidade, como mostra Souza (2003, p.41):
O churrasco um espao de construo, afirmao e celebrao da
masculinidade. O churrasco compreendido por mim como um ritual
de reforo em que a masculinidade constantemente colocada
prova, pois ela uma construo social que precisa ser
constantemente (re)construda. E esta (re)construo feita atravs de
rituais de solidariedade e reciprocidade entre os pares, entre os
homens de verdade.
Conforme visto, a comensalidade na poca contempornea sofreu diversas
transformaes em virtude da modernizao da sociedade e dos equipamentos
tecnolgicos que a circundam.
A entrada da mulher no mercado de trabalho e a vida corrida das grandes
cidades fizeram com que os rituais domsticos de comensalidade que perduraram
durante sculos fossem pouco a pouco perdendo espao para a alimentao fora do lar e
preparos rpidos feitos por qualquer membro da famlia.
A lgica desses novos espaos fast-foods, restaurantes por quilo - no a do
incentivo ao desfrute em grupo do alimento. Ao contrrio, sua essncia consiste em se
alimentar rapidamente e ceder espao a outros.
Os lugares da casa tpicos de prtica da comensalidade, como a sala de jantar e a
cozinha esto sendo modificados por sofs, em frente a televisores e outros lugares onde
a famlia no mais se rene para a partilha do alimento.
Apesar dessas grandes transformaes, as pessoas ainda procuram praticar a
comensalidade em comemoraes religiosas, oportunidades festivas, datas
comemorativas, dias de folga e ritos de passagem.
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2 DDIVA, HOSPITALIDADE E COMENSALIDADE
O objetivo deste captulo estudar as relaes entre os conceitos de ddiva,
hospitalidade e comensalidade. A ddiva est estreitamente ligada hospitalidade e
comensalidade. Em verdade, como se ver nos autores abaixo, toda hospitalidade uma
ddiva. Receber algum, oferecer uma cama, oferecer um alimento ou entreter os
hspedes so ddivas que algum faz a outrem.
V-se atravs da teoria de Mauss (2003) que a trplice obrigao de dar, receber
e retribuir, que para o autor constitui a base para a formao dos vnculos sociais e
alianas, est presente nos rituais de comensalidade. Na reunio de amigos, familiares
ou at mesmo desconhecidos ao redor de uma mesa, o ato de compartilhar o alimento
cria situaes favorveis para que a hospitalidade e a ddiva se concretizem.
Com essa estreita relao entre ddiva e hospitalidade verifica-se que ambas
esto relacionadas. A ddiva remete hospitalidade e vice-versa. Isso tambm pode ser
observado com a ddiva e a comensalidade. O ato de compartilhar o alimento tambm
comea com uma ddiva, o oferecimento do alimento, o convite a se juntar mesa para
a refeio e estas aes so essenciais dentro da cena hospitaleira.
No por acaso que receber algum est sempre associado no apenas a oferecer
o seu espao para receber algum como implica tambm oferecer algum tipo de
alimento, mesmo que seja um copo de gua ou um modesto cafezinho.
2.1 DDIVA
Marcel Mauss analisando um completo material etnogrfico, percebeu que
habitantes de sociedades arcaicas totalmente diferentes praticavam um intercmbio de
prestaes e de contraprestaes denominadas por ele de prestaes totais que se
caracterizavam pela oferta voluntria de presentes (MAUSS, 2003).
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Atravs do material antropolgico reunido por Mauss nesse seu ensaio, percebe-
se que essa troca acontece naturalmente, fazendo com que a ddiva exista em
sociedades e localidades totalmente distintas.
Para Mauss (2003, p.211), o objetivo da ddiva produzir um sentimento de
amizade entre as duas pessoas envolvidas. Isso nos mostra que a troca de prestaes
estreita laos de amizade e estimula rituais de apaziguamento e pactos de paz.
Segundo Godbout (1999, p.19), a ddiva por si s pode vencer praticamente e
no apenas no imaginrio e na ideologia a oposio entre o indivduo e o coletivo,
fazendo das pessoas membros de um conjunto concreto mais vasto.
O autor mostra que a principal caracterstica da ddiva o vnculo de relaes
sociais, que no exige retorno:
Pois a ddiva serve, antes, de mais nada, para estabelecer relaes. E
uma relao sem esperana de retorno, uma relao de sentido nico,
gratuita, nesse sentido, e sem motivo, no seria uma relao
(GODBOUT, 1999, p. 16).
A ddiva tudo aquilo que circula a fim de promover, criar e manter os laos
sociais. Esses laos sociais so criados atravs da trplice obrigao de dar, receber e
retribuir (GODBOUT, 1999).
A ddiva representada atravs de presentes, servios prestados, beneficncia,
convites de diversos tipos, doao de um rim ou de sangue, herana, hospitalidade,
ddiva da vida, relao com os filhos e mais inmeros atos. Essas formas de
intercmbio social so vistas no cotidiano das pessoas e tm muita importncia nas
relaes sociais (GODBOUT, 1999).
Camargo (2011, p. 54) afirma que:
A ddiva consiste na proposio de ligaes, acordos de
apaziguamento e estabelecimento de vnculos. Ao pensarmos neste
conceito, referimo-nos a trocas no necessariamente materiais, mas
falamos de relao social.
O autor tambm menciona que o contato humano comea com uma ddiva que
parte de algum. A retribuio uma nova ddiva que implica um novo receber e
retribuir, gerando dons e contradons, num processo sem fim (CAMARGO, 2004,
p.16).
Percebe-se que a ddiva no s faz com que se inicie um relacionamento entre
indivduos, mas tambm alimenta os vnculos de amizade. Quando um presente
recebido, a pessoa sente-se na obrigao de retribuir a ddiva ocorrendo, assim, a troca
de dvida.
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Lanna (2000, p.175), atravs das correlaes do Ensaio sobre a ddiva, de
Marcel Mauss, relata algumas caractersticas da ddiva:
[...] a ddiva produz a aliana, tanto as alianas matrimoniais como as
polticas (trocas entre chefes ou diferentes camadas sociais), religiosas
(como sacrifcios, entendidos como um modo de relacionamento com
os deuses), econmicas, jurdicas e diplomticas (incluindo-se aqui as
relaes pessoais de hospitalidade). [...] Ela inclui no s os presentes
como tambm visitas, festas, comunhes, esmolas, heranas, um sem
nmero de prestaes.
Para Flach (2006, pp.180-181), a ddiva um elemento que ajuda nos laos
sociais entre as pessoas:
H uma dialtica inerente ddiva que cria a sociabilidade. O dom
vincula as pessoas com as coisas. Ou nas relaes que criamos, ns
nos vinculamos ao outro. o que cimenta a vida em sociedade, o
que cria o lao social, o vnculo, o que funda a sociedade como fato
social total.
Atravs das teorias dos autores, verifica-se que a ddiva ocorre em culturas
diferentes e nveis sociais distintos. A ddiva tambm contribui para que novos laos de
amizade sejam formados e se mantenham. Dar, receber e retribuir um processo que
acontece infinitamente entre indivduos.
Resta mencionar que, embora Mauss no escreva especificamente sobre
hospitalidade, a maior parte dos exemplos citados no seu ensaio podem ser includos
nessa rubrica. J na sua primeira citao, ele menciona que no conhece pessoa que
receba que no goste de ser recebido.
2.2 HOSPITALIDADE
O tema hospitalidade tem uma extensa produo terica. Vrios autores a
estudam como parte da trplice aliana de dar, receber e retribuir. Alguns conceitos
podem ser listados, como Gotman (2001, p.66):
Hospitalidade fundamentalmente o ato de acolher e prestar servios
a algum que por algum motivo esteja fora de seu local de domiclio.
A hospitalidade uma relao especializada entre dois protagonistas,
aquele que recebe e aquele que recebido por algum.
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V-se atravs dessa definio que a hospitalidade est relacionada ao
acolhimento. E esse acolhimento ocorre muitas vezes entre duas pessoas estranhas,
fazendo com que esse ato crie laos sociais entre os indivduos.
A chegada de um estrangeiro a uma localidade desconhecida exemplifica essa
afirmao de Gotman. O anfitrio acolhe o hspede fornecendo abrigo, alimento ou
outros bens no palpveis, como uma conversa amiga e at mesmo informaes
necessrias para que ele possa seguir viagem.
Derrida (2003, p.15) faz consideraes sobre o acolhimento a um estrangeiro. O
autor afirma que o estrangeiro , antes de tudo, estranho lngua do direito na qual est
formulado o dever de hospitalidade, o direito ao asilo, seus limites, suas normas, sua
polcia, etc.
O autor tambm fala sobre a hospitalidade incondicional:
A hospitalidade absoluta exige que eu abra minha casa e no apenas
oferea ao estrangeiro (provido de um nome de famlia, de um estatuto
social de estrangeiro, etc), mas ao outro absoluto, desconhecido,
annimo, que eu lhe ceda lugar, que eu o deixe vir, que o deixe
chegar, e ter um lugar no lugar que ofereo a ele, sem exigir dele nem
reciprocidade (a entrada num pacto) nem mesmo seu nome
(DERRIDA, 2003, p.23).
Analisando Derrida, percebe-se que a hospitalidade incondicional uma ddiva,
na qual o abrigo deve ser oferecido ao estrangeiro sem exigncia de contraddiva,
apesar de que o estrangeiro acaba ficando em dvida e por fim oferea uma
contraddiva. Essa contraddiva pode ser observada em diversas ocasies, como, por
exemplo, quando uma pessoa se hospeda na casa de um amigo ou parente, prontamente
se oferece para fazer um jantar, lavar a loua ou ajudar em algumas tarefas domsticas
do cotidiano.
Baptista (2002, p.162) afirma que:
A hospitalidade no dever ficar circunscrita disponibilidade para
receber o turista, o visitante que chega de fora e est provisoriamente
na cidade. Pelas razes de ordem tica enunciadas anteriormente,
necessrio alargar a atitude de acolhimento e de cortesia a todo o
prximo, seja ele o vizinho, o colega de trabalho ou qualquer outro
que no dia-a-dia cruza o nosso caminho.
Verifica-se que as prticas da hospitalidade devero marcar todas as situaes da
vida. A hospitalidade incondicional e no depende de relaes passadas para que
ocorra.
A autora tambm fala sobre a quebra do egosmo na presena da hospitalidade:
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A hospitalidade permite, precisamente, romper com o ciclo egosta,
porque a partir do momento que outrem faz a sua entrada na esfera do
mesmo, o egosmo s possvel como conscincia e escolha
deliberadas, portanto, como egosmo no inocente (BAPTISTA, 2002,
p. 160).
Lashley (2004, p. 5) afirma que a hospitalidade remete a alguns atos de
altrusmo e beneficncia:
Embora evolues posteriores possam se preocupar com o medo em
relao aos forasteiros e a necessidade de cont-los, a hospitalidade
envolve, originalmente, mutualidade e troca e, por meios dessas,
sentimentos de altrusmo e beneficncia.
Outra afirmao do autor a obrigao de ser hospitaleiro. A inospitalidade
motivo de uma condenao social:
[...] atuar com generosidade enquanto anfitrio e proteger os visitantes
era mais do que uma questo deixada ao gosto dos indivduos. As
crenas a respeito da hospitalidade e as obrigaes em relao aos
outros estavam fixadas em ideias e vises sobre a natureza da
sociedade e ordem natural das coisas. Assim, qualquer falha em agir
de modo adequado era tratada com condenao social (LASHLEY,
2004, p.7).
Verifica-se atravs dessa afirmao que a ddiva e a hospitalidade caminham
juntas. As relaes de acolhimento entre indivduos conhecidos ou desconhecidos, o ato
de receber o estranho em seu lar e a obrigao de acolher o estrangeiro so formas de
relacionar a ddiva hospitalidade. O no cumprimento de leis no escritas de acolher o
prximo tambm visto como um ato condenatrio.
Alguns conceitos de hospitalidade, apesar de simples, mostram explicitamente
como ela se manifesta. Atravs desses conceitos tambm fica claro o significado da
inospitalidade, que nada mais do que a hostilidade. Gotman (2001, p. 493) afirma ser a
hospitalidade um processo de agregao do outro comunidade e a inospitalidade o
processo inverso.
Segundo Selwyn (2004, p. 26):
A funo bsica da hospitalidade estabelecer um relacionamento ou
promover um relacionamento j estabelecido. Os atos relacionados
com a hospitalidade obtm este resultado no processo de troca de
produtos e servios, tanto materiais quanto simblicos entre aqueles
que do hospitalidade (os anfitries) e aqueles que a recebem (os
hspedes).
Percebe-se atravs dessa afirmao que, atravs da hospitalidade, relaes
sociais so iniciadas ou as j existentes so fortificadas. O combustvel para o
fortalecimento dessas relaes sociais a troca de favores materiais ou simblicos entre
anfitrio e hspede.
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As origens mticas da hospitalidade incondicional podem ser observadas atravs
de Bueno (2010, s.p.):
Na mitologia grega os mortais receavam no receber bem ao hspede,
visto que poderia ser um deus disfarado. Na habitao reina Hstia:
personifica o interior, deusa do lar, preside as refeies, representa a
vigilncia e o princpio da permanncia.
Percebe-se, assim, que a chegada do outro que bate porta pode ser mais do que
simplesmente um estranho pedindo abrigo. Pode, na verdade, ser um Deus disfarado
que, como qualquer outro hspede, deve ser bem recebido e tratado com o que o
anfitrio tem de melhor em sua casa.
H definies sobre hospitalidade que na verdade repetem as frmulas vazias de
um dicionrio como, por exemplo, Champlin (2002, p. 166) para quem a hospitalidade
se baseia em uma cortesia que oferecemos a algum hspede ou convidado, o que nos
indica tratar bem o prximo que acolhemos.
Note-se que, diferentemente dos autores anteriores, a hospitalidade para ele um
dever do anfitrio, sendo que essencial na teoria da hospitalidade consider-la como
uma cena em que dois autores tm participao ativa, aquele que recebe e aquele que
recebido.
Camargo (2004, pp. 17-18) nos d a seguinte definio de hospitalidade:
Da decorre a noo de hospitalidade como um conjunto de leis no
escritas que regulam o ritual social e cuja observncia no se limita
aos usos e costumes das sociedades ditas arcaicas ou primitivas.
Continuaram a operar e at hoje se exprimem com toda fora nas
sociedades contemporneas.
Esse conjunto de leis no escritas remete ao acolhimento ao prximo, ao convite
ao estranho em integrar nosso meio, s ddivas e contraddivas que ocorrem num
encontro entre duas pessoas sendo eles estranhos ou no.
A hospitalidade, pois, baseia-se numa troca de ddivas entre dois personagens: o
anfitrio e o hspede. Nem sempre o hspede uma pessoa conhecida do anfitrio,
muitas vezes um estranho que, nas leis da hospitalidade, deve ser acolhido pelo
anfitrio.
A trplice obrigao de dar, receber e retribuir fundamental para a
hospitalidade. O abrigo oferecido pelo anfitrio uma ddiva que gera uma
contraddiva do hspede, e esta por sua vez gera outra contraddiva do anfitrio.
Segundo Camargo (2004) a hospitalidade envolve diferentes tempos dentro da
cena. A hospitalidade implica no apenas no receber e ser recebido por algum, como
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no hospedar e ser hospedado, entreter e ser entretido e, elemento importantssimo dentro
de todo o processo, alimentar e ser alimentado. A alimentao dentro da hospitalidade
tem o nome de comensalidade, pois sempre uma situao em que se divide o alimento
com outra pessoa que convidamos, seja para a nossa casa, seja para um encontro.
Entende-se, ento, que a hospitalidade tem uma forte ligao com a ddiva e a
comensalidade. As relaes entre ddiva, hospitalidade e comensalidade sero vistas a
seguir.
2.3 RELAES ENTRE DDIVA, HOSPITALIDADE E
COMENSALIDADE
A ligao entre ddiva e hospitalidade citada por Godbout (1997, p.5):
O que o dom pode nos ensinar sobre hospitalidade? Este fenmeno
social complexo com certeza no diz respeito unicamente ao domnio
do dom. Mas podemos perguntar se possvel falar em hospitalidade
quando esta dimenso estiver totalmente ausente.
Percebe-se atravs dessa afirmao que a hospitalidade est diretamente
relacionada ddiva. O acolhimento ao prximo, que indica hospitalidade, est
certamente ligado a dar, receber e retribuir.
As relaes entre ddiva e hospitalidade esto intimamente ligadas. A
hospitalidade uma ddiva por si s. O acolhimento ao estranho, mesmo que totalmente
desconhecido, uma lei no escrita da hospitalidade.
Bueno (2003, p.3) afirma que vrios estudos sobre hospitalidade tm apontado
para suas articulaes com a noo da ddiva e da amizade e sua atuao no
fortalecimento do tecido social. Bueno v a hospitalidade como uma dimenso da
ddiva e a ligao entre ambas. A autora refora a criao de laos sociais com a
hospitalidade sendo fruto de uma ddiva.
Baptista (2002, p.157) tambm v a hospitalidade como uma dimenso da
ddiva. Ele define a hospitalidade como um modo privilegiado de encontro
interpessoal marcado pela atitude de acolhimento em relao ao outro. Esse encontro
interpessoal se d muitas vezes entre indivduos desconhecidos, fazendo com que a
ddiva de acolher o estranho seja vista como um ato de hospitalidade.
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Uma observao de Camargo (2004, p.16) sobre a relao de ddiva e
hospitalidade aponta que em um determinado momento o hspede se torna o anfitrio e
vice versa, fazendo com que o processo de dons e contradons se perpetue:
[...] O hspede numa cena converte-se em anfitrio, numa segunda
cena, e essa inverso de papis prossegue sem fim. Neste sentido, a
hospitalidade o ritual bsico do vnculo humano, aquele que o
perpetua nessa alternncia de papis.
O autor tambm observa que a ddiva desencadeia o processo de hospitalidade
atravs do ato de dar-receber-retribuir:
Convidar algum para ir sua casa, oferecer abrigo e comida a
algum em necessidade so ddivas expressas por gestos que se
inserem dentro da dinmica do dar-receber-retribuir. A ddiva
desencadeia o processo de hospitalidade, seja ou no precedida de um
convite ou de um pedido de ajuda, numa perspectiva de reforo do
vnculo social (CAMARGO, 2004, p. 19).
Essas afirmaes de Camargo sugerem que a hospitalidade nada mais do que
uma consequncia natural da ddiva, ou seja, pelo simples fato de uma pessoa oferecer
dons a outra, ela acaba a inserindo em seu meio, fazendo com que vnculos sociais
sejam reforados e, num determinado momento, os papis se invertam.
Outra observao do autor a situao de inferioridade que a pessoa que recebe
a ddiva fica com o doador. Essa situao muitas vezes constrangedora, podendo, a
ddiva, ser recusada em algumas situaes:
A hospitalidade sempre assimtrica. Receber algo de presente resulta
na conscincia de uma situao clara de desvantagem. Quem recebe a
ddiva deve manifestar alegria mesmo sentindo que assume um dbito
para com aquele que doou. O donatrio fica a merc do doador. Por
isso, esse ato de receber no to simples e tantas ddivas so, s
vezes, recusadas. A ddiva traz implcito um dbito. Tudo se passa
como se o donatrio recusasse no a ddiva, mas a dvida, a obrigao
de retribuir implcita no gesto de receber (CAMARGO, 2004, pp. 22-
23).
Alm da relao da ddiva com a hospitalidade, h tambm uma ligao de
ambas com a comensalidade. Como veremos a seguir, a comensalidade feita atravs
de uma ddiva de oferecer o alimento e compartilh-lo.
No so todos os estudos que relacionam ddiva, hospitalidade e comensalidade.
Dentro dos estudos ligados ao turismo e a hotelaria a alimentao simplesmente um
servio que se oferece a algum, do qual ele pode gostar ou no.
J foi visto que as ligaes entra ddiva e hospitalidade so muito fortes. Isso
indica que tambm h uma correlao destas com a comensalidade, pois a partilha do
alimento se v presente em atos de ddiva e hospitalidade.
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Atravs de uma releitura bibliogrfica destes assuntos, podem-se destacar
algumas pertinentes afirmaes de autores que demonstram a ligao da ddiva,
hospitalidade e comensalidade.
Lameiras (1997, p.5) indica uma forte relao entre a ddiva e a comensalidade,
mostrando a importncia da partilha do alimento atravs de um ato de generosidade:
A ddiva feita sob a forma de alimentos continua a desempenhar um
papel de grande importncia no relacionamento social dos moradores
com a vizinhana, o exterior e a divindade. De uma maneira geral, o
sistema de prestaes alimentares define-se por duas motivaes: a
necessidade de dividir os alimentos com aqueles que so considerados
como parte do prprio grupo; a vontade de obter prestgio,
demonstrando uma grande generosidade, e ostentando uma riqueza,
verdadeira ou falsa, muitas vezes constituda pela grande quantidade
de alimentos oferecidos.
Joanns (1998, pp. 56-57) lembra que a ddiva da partilha at mais importante
que o ato de se alimentar.
sobretudo a partilha que importa, mais do que a prpria composio
da refeio, na medida em que se trata, no presente caso, dos
alimentos e bebidas mais elementares. O que funda a refeio ou o
banquete esta comensalidade entre participantes, que remete
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