democracia de cooptacao - mauro iasi
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Democracia de cooptação e o apassivamento da classe trabalhadora
Mauro Luis Iasi1
“O Nada de qualquer coisa é uma nada determinado”
Hegel (Grande Lógica)
O capital cumpriu sua tarefa, mundializouse, monopolizouse, estendeu suas garras
dissolvendo as mais ternas ilusões românticas no frio calculo egoísta, subordinou ou campo à
cidade, a ciência à indústria, a estética ao mercado, mercantilizou todas as esferas da vida. Na
sua forma madura e parasitária, bemdiversa daquela pela qual os ideólogos liberais projetavam
seus mitos futuros, o capital assume a forma de sua negação tornandose um enorme entrave à
vida humana.
Bom, então... “o invólucro rompese, soa a hora da propriedade capitalista” e... Nada!
Os expropriadores continuam expropriando e ideologicamente se produz uma inversão
fantástica: é o projeto socialista e revolucionário que parece perder a atualidade sendo
apresentado como pura anacronia.
O capital em sua forma madura, parasitária, exige que seu domínio implique emumgrau
cada vez maior de cooptação e apassivamento do proletariado. Nas palavras de Gramsci, um
“transformismo”, ou seja, uma “absorção gradual mas contínua, e obtida com métodos de
variada eficácia, dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo dos adversários e
que pareciam irreconciliáveis inimigos” (Gramsci, 2011: 318).
É certo que pelo centro do sistema, nos EUA e Europa, os trabalhadores andam
agitados e indignados, saindo as ruas e protestando, mas a ordem parece resistir à seus sinais
de agonia e a esquerda declama Saramago numa profética sentença: “a juventude não sabe o
que pode e os velhos não podem fazer o que sabem”.
1 Mauro Luis Iasi é professor Adjunto da ESS da UFRJ, coordenador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do Núcleo de Educação popular 13 de Maio e do CC do PCB. Autor de O Dilema de Hamlet, o ser e o não ser da consciência (Boitempo/Viramundo, 2002), Ensaios sobre consciência e emancipação (Expressão Popular, 2007), Metamorfososes da Consciência de Classe (Expressão Popular, 2006), entre outros.
Por aqui as coisas são mais prosaicas. O capital alcança taxas de acumulação
inimagináveis (a Petrobrás lucrou R$ 35.189 bilhões em 2010, com elevação de 17% ante o
ano anterior; o Bradesco obteve um lucro líquido de R$ 10 bilhões em2010, resultado 25, 1%
maior que o registrado em 2009, a Vale triplicou seu lucro chegando a 30,1 bilhões no mesmo
ano) que refletem uma intensificação brutal da taxa de exploração acompanhada dos ajustes
necessários à boa saúde das relações capitalistas, flexibilizando direitos e impondo perdas
históricas aos trabalhadores. No entanto, diante de talmassacre, estamos no ponto mais agudo
de uma defensiva da classe trabalhadora que parece respaldar os rumos da ordem capitalista,
anestesiada, apassivada. Nada!
A mesma classe trabalhadora que entre o final da década de 1970 e boa parte dos
anos 1990 equilibrou a correlação de forças e impôs patamares de resistência à acumulação de
capitais, garantiu direitos e os inscreveu na ordem constitucional consagrada em 1988, parece
assistir passiva ao desmonte destas garantias e direitos, emprestando, ainda que de forma não
ativa, seu respaldo à atual forma de acumulação que se implantou no início do século XXI. A
mesma classe que resistiu ao desmonte do Estado e das Políticas Públicas, aliase aos seus
antigos adversários para desarmar a classe trabalhadora diante da disputa do fundo público
agora colocado a serviço da acumulação privada, em nome de um mito revivido: o
desenvolvimento.
O principal trunfo do setor político que se mantêm no poder é o controle e o
apassivamento da classe trabalhadora. O senhor Michel Temer, então candidato à vice
presidente na chapa de Dilma Rousseff, acalmando uma platéia de investidores estrangeiros,
declarou que o pais estava pronto para receber investimentos, uma vez se trata de um pais
“internamente pacificado”, no qual se “os movimentos sociais não estivesses pacificados, se os
setores políticos não estivessem pacificados (...) se aqueles mais pobres não estivessem
pacificados (...) isto geraria uma insegurança” (Folha de São Paulo, 27 de agosto de 2010,
caderno A, p. 8).
Evidente que esse juízo geral não pode esconder a saudável e honrada resistência de
vários setores da classe que se negam ao amoldamento, assim como as formas não explícitas
de resistência, como por exemplo a apatia e a forma pouco séria com que os trabalhadores,
com razão e prudência, tratam as coisas da pequena política. No entanto, devemos analisar
aqui o sentido geral que marca o período e esse parece ser o do apassivamento.
Como já nos dizia Hegel em sua Grande Lógica, “todo Nada é umnada determinado”,
portanto, o que se nos impõe neste momento é perguntar sobre as determinações deste “nada”.
A critica à estratégia Democrática Nacional: o imperialismo e a luta de classes
Quando estudamos o comportamento político da classe trabalhadora precisamos de
partida evitar duas armadilhas: compreendêlo como mera intencionalidade subjetiva, ou,
inversamente, como simples determinação de uma objetividade dada. No primeiro registro o
amoldamento da classe trabalhadora à ordem que queria enfrentar se explica por umdesvio de
direção que leva os trabalhadores ao pântano do pacto social; no segundo as determinações
objetivas da crise, dos desenrolar dos fatos históricos dramáticos (a reestruturação produtiva
do capital, a crise nos países em transição socialista, etc.), os momentos de crescimento
econômico e as migalhas jogadas aos trabalhadores, explicariam a apatia e o amoldamento.
Acreditamos que as coisas não são tão simples, tratase de uma síntese de fatores
subjetivos e objetivos, mas é preciso refletir sobre a objetividade contida nos ditos fatores
subjetivos, da mesma forma que a maneira como a ação política da classe e suas direções
incide concretamente no desenho final da objetividade que determinou esta ação. Por isso,
quando falamos de um determinado comportamento da classe trabalhadora, devemos
relacionálo à uma estratégia determinante em um certo período histórico, não como uma
escolha arbitrária de uma certa direção ou vanguarda, mas como uma síntese que expressa a
maneira como uma classe buscou compreender sua formação social e agir sobre ela na
perspectiva de sua transformação.
É assim que no ciclo histórico que marca a luta da classe trabalhadora brasileira entre
os meados da década de 1940 até o golpe empresarial militar de 1964, a estratégia
determinante foi a chamada Revolução Democrática Nacional e sua principal expressão política
foi o PCB (Mazzeo, 1999; Koval, 1982). Isso não significa que apenas o PCB estava preso a
esta formulação, ela consiste um universo programático fundado naquilo que Caio Prado Jr
(1978) denominou de uma forma consagrada de compreender a revolução brasileira, “prejuízos
herdados do passado que se consolidaram em concepções rígidas, verdadeiros dogmas, que
contando como contam com tão longa tradição, se tornam por isso mesmo altamente
respeitáveis” (idem: 30). Tal concepção acaba por se impor a todos, mesmo àqueles que
empreendem o árduo caminho de criticar a visão “consagrada”.
Em sua essência, esta maneira consagrada, reside na certeza que a formação social
brasileira, pela sua história colonial e sua inserção no moderno sistema capitalista mundial,
assumia uma contradição principal entre a prevalência de uma estrutura agrária tradicional e o
imperialismo, por um lado, e os vetores que apontavam para o desenvolvimento de uma
capitalismo nacional, por outro. Nessa leitura, tanto o imperialismo como o latifúndio
(expressão mais nítida da estrutura agrária arcaica), impediam o desenvolvimento do
capitalismo brasileiro. Assim, as demandas de uma suposta burguesia nacional por um
desenvolvimento autônomo do capitalismo brasileiro a faria se chocar com os interesses do
imperialismo e de seus aliados internos, as oligarquias tradicionais, abrindo espaço para a
aliança com o proletariado.
Conclui, então, Caio Prado Jr.: “A sua etapa revolucionária seria, portanto, sempre
dentro do mesmo esquema consagrado, o da revolução “demoráticoburguesa”, segundo o
modelo leninista relativo à Rússia tzarista” (idem: 36). No caso particular da formação social
brasileira esta “etapa” assumiria a forma de uma luta “agrária”, “antifeudal” e “antiimperialista”.
Ainda nas palavras de Caio Prado Jr., agrária por se contrapor os supostos “restos feudais”
que se apresentavam no corpo da estrutura agrária tradicional, antiimperialista “porque oposta
à dominação das grandes potencias ‘capitalistas’ (idem: 37).
Aqui cabe um parêntesis que nos parece importante. Alemda conhecida critica sobre a
impropriedade de se falar em feudalismo no Brasil, há um aspecto que fica obscurecido pela
quase evidência desta primeira incorreção: a forma como se define imperialismo. Este
obscurecimento pode levar a compreensão, ao meu ver equivocada, que a formulação da
revolução democrática nacional é contraditório porque, por um lado erra ao identificar a
estrutura agrária conservadora como feudal, ainda que acerte na luta antiimperialista. Nos
parece que há um erro também aqui. Como acontece em outros casos, a posição
autoproclamada como “leninista” é pouco leniniana.
Lênin, em seu famoso trabalho de divulgação sobre o tema do imperialismo, combate
uma postura que considera teoricamente insustentável e com conseqüências práticas
extremamente nocivas. Resume, citando o autor da formulação equivocada, da seguinte forma:
O imperialismo é um produto do capitalismo industrial altamente desenvolvido.
Consiste na tendência de toda nação capitalista industrial a submeter ou anexar,
cada vez mais, regiões agrárias mais extensas, qualquer que seja a origem étnica
de seus habitantes (Kautsky apud Lênin, 1976: 461).
Ora, esta não é em absoluto a posição de Lênin sobre o imperialismo, mas a de
Kautsky. Seguindo o raciocínio kautskiano a formulação da “etapa democrático burguesa” faz
sentido. O interesse do imperialismo, que aqui se transforma emuma “tendência”, emumopção
política, é de anexar áreas agrárias em busca de suas matérias primas e de mercado para seus
produtos. Nesse ponto coincide com os interesses dos setores oligárquicos ligados à produção
de produtos primários e daí a aliança sugerida que garantiria o poder oligárquico, mas impediria
o desenvolvimento de relações propriamente capitalistas nestas formações sociais e, assim,
ferindo os interesses de uma burguesia nacional.
No entanto, a definição de Lênin é outra. Para ele “o imperialismo é o capitalismo em
sua fase de desenvolvimento na qual toma corpo a dominação dos monopólios e do capital
financeiro, na qual adquire especial importância a exportação de capitais” (Lênin, 1976: 460).
Diante da precisão do conceito de Lênin, a definição de Kautsky, nas palavras do líder
bolchevique, “não serve absolutamente para nada”.
O ponto mais problemático não é exatamente a ênfase à tendência a anexação, de fato
uma tendência verificável, quando mais se considerarmos o início do século XX, momento em
que Kautsky escreve. O ponto que Lênin destaca, curiosamente é outro. Diz Lênin: “a
particularidade do imperialismo não é o capital industrial, mas sim o financeiro”(idem: 462).
Esta abordagempermite ao marxista russo relacionar o rápido crescimento do capital financeiro
com uma intensificação da política anexacionista no final do século XIX. Lembremos que para
Lênin, seguindo a definição de Hilferding, capital finaceiro não é o mesmo que capital bancário,
mas a fusão do capital industrial com o capital bancário, formando o traço essencial da etapa
imperialista: o capital financeiro.
Como sabemos o imperialismo, assim entendido, é a expressão do capitalismo
monopolista plenamente desenvolvido. O auge da livre concorrência, por volta das décadas de
1860 e 1870, coincide com a formação, ainda embrionária dos monopólios, na crise 1873 e
seus desdobramantos posteriores eles se tornammais sólidos, mas é apenas no inicio do século
XX com a crise de 1900 a 1903 que os monopólios se consolidam e se tornam “a base de
toda a vida econômica” e o “capitalismo se transforma em imperialismo” (idem: 389).
O que nos chama a atenção é que, partindo da definição de Kautsky, o imperialismo se
apresenta como um fator de entrave ao desenvolvimento das relações capitalistas nas áreas em
que se impõe; ao passo que compreendendo o fenômeno a partir da definição de Lênin, o
imperialismo se torna um fator de generalização das relações capitalistas. Por este ângulo
alterase substancialmente o caráter da revolução. Para Kautsky tratase da revolução
nacional, para Lênin da antesala da revolução socialista.
O que caracterizava o “velho capitalismo”, continua Lênin, o capitalismo própria da
livre concorrência, era a exportação de mercadorias, enquanto o que “caracteriza o capitalismo
moderno, no qual impera os monopólios, é a exportação de capitais. Talvez nemmesmo Lênin
tenha tirado todas as conclusões possíveis desta afirmação. A exportações de capitais revela
uma determinação mais profunda que é aquilo que Marx denominou de “queda tendencial da
taxa de lucro” (Marx, s/d, livro III, vol. 4: 242) e, mais precisamente, uma das contratendências
para enfrentála. Em poucas palavras os fatores que atuamno sentido de frear a queda na taxa
de lucro, causada em última instância pela alteração contínua da composição orgânica do
capital em favor do capital constante, são a) o aumento da exploração do trabalho; b) a
redução dos salários; c) o barateamento dos elementos do capital constante; d) a formação de
uma “superpopulação relativa”; e) ampliação do mercado externo; f) e aquilo que Marx
denominou do aumento do capital em ações e que aprofundou no livro seguinte como formação
do capital portador de juros.
Aqui nos interessa dois aspectos: primeiro que comos elementos que Marx dispunha a
ampliação dos mercados era vista pelo ângulo do controle de fontes de matérias primas e
espaço de realização dos produtos, ao passo que Lênin pode ver agora este movimento como
a partilha de áreas de influência para onde exportar capitais (ou seja, não apenas dinheiro, mas
inclusive processos produtivos inteiros); segundo que a base das contratendências à queda da
taxa de lucro se fundamentam na intensificação da exploração, no rebaixamento dos salários e
na superpopulação relativa. Esse segundo aspecto nos leva diretamente à nossa questão: a
intensificação da exploração não levaria ao acirramento da luta de classes?
Essa questão temque ser respondida levando emconta os dois aspectos indicados, isto
é, a exportação de capitais e a conseqüente partilha do mundo, e a intensificação da exploração
dos trabalhadores. O primeiro aspecto permite ao capitalismo monopolista e imperialista
intensificar a exploração nas áreas de expansão, ao mesmo tempo que negocia os termos de
convivência com o proletariado no centro do sistema levando àquilo que Lênin denominou de
uma “aristocracia operária”. Diz o revolucionário russo no prólogo à edição francesa de sua
obra sobre o tema:
É evidente que os gigantescos superlucros (já que se obtêm sobre os
lucros que os capitalistas extraem de seus operários em seu próprio país)
permite corromper os dirigentes operários e a camada superior da
aristocracia operária. Os capitalistas dos países “adiantados” os
corrompem, e o fazem de mil maneiras, diretas e indiretas, abertas e
ocultas (Lênin, 1976: 379).
Uma leitura desatenta nos levaria a acreditar que se trata de um problema moral, ou
seja, de uma corrupção direta pela compra das lideranças ou o oferecimento de benesses, mas
logo adiante o autor oferece outros elementos que nos parecem pistas importantes. Na
seqüência Lênin caracteriza este setor como formado por “operários aburguesados”,
inteiramente “pequenos burgueses por seu gênero de vida, por seus vencimentos e por toda sua
concepção de mundo” (Lênin, idem, ibidem) de maneira que na luta de classes acabampor se
colocar ao lado da burguesia através de toda manifestação de reformismo e chovinismo.
Por esse ângulo a estratégia Democrática Nacional pode e deve ser criticada por um
aspecto por vezes secundarizado. Tal estratégica se fundamento numa falácia: o crescimento do
capitalista que rompe com seus entraves não capitalistas (sejam ou não identificados com
resquícios feudais, formas oligárquicas ou imposição “imperialista”) levaria ao desenvolvimento
de um “capitalismo autônomo” que interessaria tanto à burguesia “nacional” como ao
proletariado. No que cabe ao proletariado parece indicar que o desenvolvimento das relações
capitalistas levaria ao crescimento do proletariado que diante das contradições do sistema se
colocaria em luta por seus objetivos históricos socialistas. Aí se encontra a falácia, o
crescimento das relações capitalistas vem acompanhado dos meios políticos próprios do
capitalismo desenvolvido, seja na sofisticação de seu Estado seja através dos meios, diretos e
indiretos, de amoldamento da classe trabalhadora à ordem do capital, levando ao
“aburguesamento” descrito por Lênin ou ao “transformismo” nas palavras de Gramsci.
A estratégia democrática nacional encontrará seu ponto crítico na própria dinâmica da
luta de classes, no golpe de 1964. As classes e setores de classe não se posicionaram como
imaginavam as formulações idealmente impostas emdetrimento da análise dor real. A burguesia
brasileira se aliou ao latifúndio e ao imperialismo contra o proletariado, naquilo que Florestan
Fernandes chamou de uma “contrarevolução preventiva”.
Os germes da concepção democrático popular
Brecht dizia que a nova carne é comida comos velhos garfos. Isto significa que a crítica
a uma concepção só pode ser feita com as ferramentas que de uma forma ou de outra compõe
o universo cultural e teórico da formulação que é criticada. A lua nova carrega uma noite inteira
a lua velha nos braços, dizia o mesmo poeta. Quando se realiza a critica à concepção
democrática nacional se aponta para uma síntese que será hegemônica no período que se
abriria.
Destacaremos aqui duas formulações que por sua importância e pertinência acabam
sendo representativas deste duplo movimento, ou seja, ao mesmo tempo que criticam a
concepção vigente apontam, germinalmente, para os elementos que constituirão a formulação
que se tornará determinante. Trabalharemos aqui as contribuições de Caio Prado Jr. ( 1978) e
Florestan Fernandes ( 1976).
Caio Prado Jr., após criticar os elementos daquilo que chamou de “verdades
consagradas” e ponderar sobre pressupostos metodológicos que partiam de a priores
abstratos, afirma em sua obra que a teoria e o programa de revolução brasileira deve vir da
correta análise da conjuntura presente e do processo histórico que resulta, pois é nisso que
consiste o fundamento do método dialético, em suas palavras, um “método de interpretação, e
não receituário de fatos, dogmas, enquadramento da revolução histórica dentro de esquemas
abstratos preestabelecidos” (Prado Jr., 1978: 19).
Os esquemas abstratos aos quais se refere Caio Prado dizem respeito às formulações
do VI Congresso da Internacional Comunista, em 1928, que afirmava que a passagem para a
ditadura do proletariado não seria Possível em países classificados como “como coloniais e
seminicoloniais”, sem que fosse necessário transitar por uma série de “etapas preparatórias”,
em outros termos, “por todo um período de desenvolvimento da revolução
democráticoburguesa” (VI Congresso da IC, apud Prado Jr.: 65).
Lembrando que não há uma mera imposição de tais formulações, mas umprocesso de
absorção que leva em conta os interesses e o próprio desenvolvimento das organizações
políticas no Brasil, é fato que o PCB (IV Congresso, 1954, apud Prado Jr, op. cit. : 67) iria
sustentar sua estratégia levando em conta esta “verdade estabelecida”. O capitalismo no Brasil
estaria entravado pela permanência de relações “précapitalistas” ou “semifeudais”,
materializadas em uma estrutura agrária tradicional fundada no latifúndio e na monocultura e,
por outro lado, pela presença do imperialismo, com a ressalva anteriormente apresentada.
Como sabemos, o autor criticará a pertinência de identificar as relações próprias da
estrutura agrária brasileira como “feudais” ou “semifeudais”, apontando para aquilo que
denomina de “sentido da colonização” de maneira que, por meios variados, as relações aqui
vigentes deveriam ser vistas não como “o latifundiário ou proprietário senhor feudal ou
semifeudal de um lado, e o camponês do outro; e sim respectivamente o empresário capitalista
e o trabalhador empregado, assalariado ou assimilável econômica e socialmente ao assalariado
(Prado Jr, 1978: 105).
Em resumo, o autor afirma que, considerando as relações de produção determinantes,
ainda que existam formas diferenciadas e eventuais que se subordinar as determinantes, as
formas de propriedade e o sentido da produção agropecuária, só poderíamos concluir pela sua
caracterização como “em essência e fundamentalmente, capitalista” (idem: 107).
Caio Prado criticará da mesma forma a relações que se estabelece entre a permanência
desta estrutura agrária tradicional e o atraso da industrialização. A produção industrial
brasileira, até por sua relação com o capitalismo imperialista, apresentou um desenvolvimento
de seu nível tecnológico e de sua capacidade produtiva, ainda que um ou outro setor se
apresente limitado em seu crescimento por “interesses estranhos ao país” (idem: 121). Ainda
que isso ocorra e eventualmente uma iniciativa “nacional” tenha sido prejudicada “pela
concorrência de empreendimentos ligados ao imperialismo”, isso não teria gerado uma
“oposição política de classe entre a burguesia brasileira e o imperialismo” (idem: 120), isto pelo
fato de que os eventuais problemas ou atritos entre a burguesia brasileira e os setores
imperialistas “podem perfeitamente (se) ajustar dentro do sistema do imperialismo” (idem: 121).
Por tudo isso o autor afirma que:
Em suma, embora a burguesia brasileira, ou antes, alguns de seus
representantes possam individualmente entrar em conflito com a poderosa
concorrência de empreendimentos estrangeiros, e esse conflito se traduza
eventualmente em ressentimentos contra o capital estrangeiro, não se
verificam na situação brasileira circunstâncias capazes de darem a tais
conflitos um conteúdo de oposição radical e bem caracterizada, e muito
menos de natureza política. A “burguesia nacional”, tal como é
ordinariamente conceituada, isto é, como força essencialmente
antiimperialista e por isso progressista, não tem realidade no Brasil, e não
passa de mais um destes mitos criados para justificar teorias
preconcebidas; quando não pior, ou seja, para trazer, com fins políticos
imediatistas, a um correlato e igualmente mítico “capitalismo
progressista”, o apoio das forças políticas populares e de esquerda (idem,
ibidem).
Além da correção da análise e da antecipação dos equívocos hoje em voga daqueles
setores que ainda se abraçam ao mito de um “capitalismo progressista” ou um
“desenvolvimento de caráter social”, o fundamento da elaboração alerta para o desdobramento
político de tal concepção, ou seja, a aliança de classes com a suposta “burguesia nacional”.
Neste ponto, coerente com os pressupostos que assume, o autor sentese obrigado a
definir um desenho do programa da revolução brasileira que se contraponha à formulação
democráticanacional. Não se trata apenas de afirmála como socialista, ainda que, destaca o
autor, “é claro que, para um marxista, é no socialismo que irá desembocar afinal a revolução
brasileira”, mas isso seria uma “previsão histórica sem data marcada nem ritmo de realização
prefixado” e, acrescenta, “sem programa predeterminado” (idem: 16). Essa prudência se
explica por dois motivos, um de natureza metodológica, ou seja, não impor modelos
preconcebidos aos fatos e à dinâmica real e histórica da luta de classes em uma determinada
formação social dada, outro um pouco mais complexo e problemático.
Caio Prado Jr. acreditava que a implantação do socialismo no Brasil na situação
histórica em que se encontrava era algo “irrealizável” por faltarem “condições mínimas de
consistência e estruturação econômica, social, política e mesmo simplesmente administrativa,
suficientes para a transformação daquele vulto e alcance” (idem: 165).
Vejam, após desconstruir a lógica etapista e a transposição de modelos como a
priores abstratos a serem impostos à realidade, depois de criticar impiedosamente a alternativa
democrática nacional e sua aliança comuma suposta burguesia nacional que levasse ao mito de
um “capitalismo progressista”, o autor cai em um aparente paradoxo: a revolução democrática
nacional tal como apresentada pelo PCB leva à conciliação de classes e a conseqüência derrota
dos trabalhadores (confirmada em 1964), mas a revolução socialista, entendida classicamente
como socialização dos meios de produção e formação de um Estado do Proletariado e seus
aliados, é irrealizável pelos motivos apontados. Isso o leva a uma solução que nos interessa
diretamente aqui.
Para o autor o mito do desenvolvimento capitalista como forma de enfrentar as
demandas reais que emergem das classes trabalhadoras se explica por uma associação entre
“desenvolvimento”, geração de lucros e daí recursos para enfrentar estas demandas. É esta
associação que será criticada. Segundo Caio Prado, se o lucro foi um fator extremamente
fecundo do desenvolvimento nos países centrais, ou seja, o lucro leva ao incremento do
mercado que faz crescer a demanda e daí um nova dinâmica de desenvolvimento, a inserção
real do Brasil no sistema imperialista e seus “vícios orgânicos” quebra esta relação. Os
monopólios alcançam sua lucratividade sem que precisem responder às demandas dos bens
que constituem o fundo de consumo do trabalho e suas demandas por condições de vida e
trabalho, pelo contrario, é o constante delapidar de tais condições que constituem as chamadas
“vantagens competitivas” para reproduzir a acumulação de capitais aqui nas condições do
capitalismo monopolista e imperialista mundial. Por isso conclui:
No Brasil e nas condições atuais, a questão se propõe de forma diferente,
porque falta aqui, por efeito precisamente dos vícios orgânicos de nossa
estrutura econômica e social que apontamos (...), uma demanda suficiente
em consonância com as necessidades fundamentais e gerais, e capaz por
isso de permanentemente incentivar uma atividade produtiva que, em
ação de retorno, viesse ampliála ainda mais (Prado Jr., idem: 164).
Qual, então, a solução? É o autor que nos responde:
Há de essencialmente se atacar a reforma do sistema a fim de
impulsionar o seu funcionamento no sentido de um desenvolvimento geral
e sustentado. É do aumento da demanda solvável, e sua articulação com
as necessidades gerais e fundamentais do país e de sua população, que se
há de partir para o incentivo às atividades produtivas que em seguida
incentivarão a demanda. Não é possível, repetindo o ocorrido no
desenvolvimento capitalista originário, ir no sentido contrário, isto é, da
produção para o consumo e a demanda (idem: 164) (grifos meus).
Na conclusão do autor deveríamos constatar que “a iniciativa privada, que temno lucro
e somente nele a sua razão de ser, não é suficiente assim para assegurar o desenvolvimento
adequado” (idem, ibidem). Lembremos que segundo o juízo do autor uma transformação
socialista é irrealizável, portanto, ele é levado a concluir que nas condições da formação social
brasileira as atividades econômicas devem ser “controladas por fatores além e acima da
iniciativa privada” (idem, ibidem). Isso implica que:
Não se pretende com isso eliminar a iniciativa privada, e sim unicamente
a livre iniciativa privada que, esta sim, não se harmoniza com os
interesses gerais e fundamentais do país e da grande maioria de sua
população, por não lhe assegurar suficiente perspectiva de progresso e
melhoria de condições de vida (idem: 165).
Eis que surgem os germes de uma formulação que seria determinante no ciclo que se
abriria com a crise da Ditadura Militar e empresarial inaugurada em1964. Uma transformação
social que tenha que se contrapor a um bloco conservador formado pelo latifúndio, pela
burguesia imperialista/monopolista e pela burguesia brasileira que a ela se associa
subordinadamente, que se sustente numa ampla aliança dos trabalhadores assalariados da
cidade e do campo (lembremos que para ele a luta pela terra não se propunha de forma
generalizada e “menos ainda em termos revolucionários” (idem: 139)), junto aos aliados
formados pelas massas urbanas que lutam por suas condições de vida, ou seja, um chamado
campo “popular”.
Para que se complete a formulação é necessário responder a uma questão essencial.
Como este bloco popular irá impor suas demandas que dirigiram o desenvolvimento em um
sentido “alem e acima da iniciativa privada”? A resposta é simples: através de uma correlação
de forças que lhes permita chegar e controlar o Estado. Os elementos essenciais estão assim
delineados: a negação da estratégia nacional democrática e sua aliança com a burguesia leva a
afirmação de um desenvolvimento que se sustente nas demandas da maioria da população,
ainda não socialista, mas não mais acreditando no mero desenvolvimento de um capitalismo
nacional e a lógica do lucro e da iniciativa privada como vetores de um desenvolvimento que
enfrente as demandas populares.
Há uma ausência importante na formulação de Caio Prado e se trata exatamente da
caracterização deste elemento essencial para o desfecho de uma estratégia popular: o Estado.
Será Florestan Fernandes que nos dará as pistas sobre este aspecto fundamental.
As reflexões que constituem o livro A Revolução Burguesa no Brasil foramproduzidos
em momentos diferentes (entre 1966 e 1973) e copilados para a publicação, mas são, de certa
forma, contemporâneos aos estudos de Caio Prado, não no sentido de ter havido uma
profunda troca intelectual entre ambos, mas que partilham do mesmo momento e enfrentamos
mesmos dilemas, chegando, por caminhos distintos, a conclusões semelhantes.
Começando por questionar a propriedade de se falar de burguesia e revolução
burguesa no Brasil, Florestan afirma que se pode afirmar a existência de uma burguesia no
Brasil e de uma Revolução Burguesa desde que não façamos uma análise mecânica que
transporte estas categorias sem as mediações necessárias para nossa formação social e sua
história. Dito de outra forma:
A questão estaria mal colocada, de fato, se se pretendesse que a história
do Brasil teria de ser uma repetição deformada e anacrônica da história
daqueles povos (EUA e Europa). Mas não se trata disso. Tratase, ao
contrário, de determinar como se processou a absorção de um padrão
estrutural e dinâmico de organização da economia, da sociedade e da
cultura. Sem a universalização do trabalho assalariado e a expansão da
ordem social competitiva, como iríamos organizar uma economia de
mercado de bases monetárias e capitalistas? (Fernandes, 1976:20)
Desta maneira, em grande parte partindo de pressupostos weberianos, o autor afirmará
que o que se dá no Brasil é que um setor da aristocracia somado a outros setores diversos,
formam uma congiérie social (literalmente um aglomerado de setores diferentes) que acabam
por assumir um padrão de civilização burguesa baseados no lucro, na empresa racional e no
mercado, assim como a valorização do urbano sobre o rural. Um “tipo de atitude” voltada ao
lucro e a acumulação de riqueza, ligado à inovação, ao talento empresarial, organização de
grandes empreendimentos econômicos, entre outros aspectos.
Evidente que o setor da aristocracia rural que iria cumprir este papel seria aquele que
por sua natureza estabelecia nexos com as ferrovias, os portos, as empresas de comércio
exterior, os bancos e daí com a realidade urbana e o padrão civilizatório burguês. O autor
destacará o setor dos cafeicultores e setores da imigração, evidente não aquele que constituirá
parte do proletariado, mas aquele ligado aos primeiros momentos da industrialização.
Esta origem e desenvolvimento da burguesia brasileira marcará as formas pelas quais se
implementam aqui a Revolução Burguesa. Desde já salta aos olhos, no mesmo sentido já
apontado por Caio Prado, que a inserção do Brasil na moderna era do imperialismo não foi
fator de atraso, mas a forma pela qual se produziu um tipo de desenvolvimento do capitalismo.
Diz Florestan:
Sob esse prisma, o neocolonialismo eregiuse em fator de modernização
econômica real, engendrando várias transformações simultâneas da ordem
econômica interna e suas articulações aos centros econômicos hegemônicos do
exterior. O principal aspecto da modernização econômica prendiase,
naturalmente, ao aparelhamento do país para montar e expandir uma economia
capitalista dependente, sob os quadros de um Estado nacional controlado,
administrativa e politicamente, por ‘elites nativas’”(idem: 93).
Naquilo que aqui nos interessa, este setor ou setores de classe que assumemo padrão
burguês, encontrará nas velhas oligarquias e no Estado oligárquico umpólo não de contradição,
mas uma aliança essencial ao seu desenvolvimento. A unidade deste bloco, segundo o autor, se
dará não apenas pela intersecção de seus interesses (oligarquias tradicionais, setores burgueses
e imperialismo), como sua unidade política fundamental se encontra na confrontação dos de
baixo. Desta maneira a revolução burguesa no Brasil não pode ser vista nas formas clássicas,
ou seja, uma aliança da burguesia revolucionária com o proletariado visando a luta contra uma
nobreza feudal.
O que é característico do estado que desta forma particular de dominação deriva é que
o conjunto das classes e setores de classe que se beneficiam desta dominação e que precisam
fazer valer seus interesses constituem um segmento pequeno no conjunto da população e que
encontra sua legitimação internamente no interior deste pequeno circulo de interesses, levando
àquilo que o autor denomina de uma “autocracia”. O domínio burguês não precisou se enfrentar
com a velha ordem oligárquica, pelo contrario, encontrou nesta forma os meios de manter e
legitimar o domínio burguês. Os saltos e qualidade deste processo, no sentido de consolidação
do poder burguês, como no período getulista (19301954), chega ao seu ponto culminante
com o golpe e a consolidação da autocracia burguesa.
Assim a Revolução Burguesa no Brasil assume a forma de uma “contrarevolução
preventiva” (Fernandes, 1976: 217). A conseqüência direta desta forma concreta de
desenvolvimento da revolução burguesa brasileira é que dois elementos de sua constituição
aparecem aqui divorciados. Classicamente, pelos motivos indicados, a revolução burguesa
assume a forma simultânea de uma revolução nacional e democrática, mas aqui, emuma forma
não clássica, ela se dá pela aliança da burguesia, na verdade um setor oligárquico aburguesado,
com a própria ordem arcaica, ou seja, realiza a revolução burguesa, mas não seus aspectos
nacionais e democráticos. Nos termos de Florestan tratase de uma revolução dentro da ordem
e não fora da ordem, ou se preferirem, de cima e não de baixo.
Não basta contrapor um modelo clássico à chamada via prussiana, nos termos de
Lênin, uma vez que parece que estamos falando de uma via não clássica da via não clássica.
Mais do que uma revolução que implementa a ordem burguesa e cria as condições de
desenvolvimento das relações capitalistas de produção a partir do Estado, tratase de uma
revolução que cumpre este objetivo inserida no quadro geral da dominação imperialista e,
portanto, não para desenvolver qualquer tipo de capitalismo autônomo, mas para inserir a
formação social como área de influência da dominação imperialista, isto é, como área de
exportação de capitais.
Isso implicará que o desenvolvimento da ordemburguesa não ocorra pressionada pelas
demandas dos de baixo, pelo contrario, a condição exigida pelo padrão de acumulação é o
sufocar destas demandas diante das necessidades dos monopólios e seus aliados internos e
externos. O resultado é que:
a massa dos que se classificam dentro da ordem é pequena demais para fazer da
condição burguesa um elemento de estabilidade econômica, social e política,
enquanto que o volume dos que não se classificam ou que só se classificam
marginalmente e parcialmente é muito grande”(idem: 330).
Assim é que a forma do Estado só pode ser a de uma autocracia, nos termos que
define o autor:
Um poder que se impõe sem rebuços de cima para baixo, recorrendo a quaisquer
meios para prevalecer, erigindose a si mesmo em fonte de sua própria
legitimidade e convertendo, por fim, o Estado nacional e democrático em
instrumento puro e simples de uma ditadura de classe preventiva (idem: 297).
Abrese desta maneira um importante paradoxo para o nosso tema ligado ao problema
da legitimação. A ordem burguesa, nestes termos apresentada, tem enormes dificuldades de
legitimarse perante os setores não burgueses, fundamente, àqueles ligados à classe
trabalhadora, o que leva ao aspecto repressivo como fundamental e que de fato se confirma
com a própria ditadura e o insubstituível papel dos setores militares na política brasileira. Isso
não significa, no entanto, que o Estado se restrinja aos aspectos repressivos e que não opere
elementos de formação de “consenso”, mesmo considerando a forma da ditadura aberta do
capital como no período militar. Aspectos de cooptação, de forte poder ideológico e mesmo
de envolvimento através de elementos de hegemonia, nunca deixaram de ser praticados e
tiveram papel importante na sustentação da autocracia burguesa. Isso fica evidente na forma
getulista (nas leis trabalhistas, no DIP, na organização ideológica da cultura, entre outros
exemplos), mas também na Ditadura empresarialmilitar inaugurada em 1964, não apenas pela
intensa ação ideológica, mas pelos meios de consentimento criados pelo crescimento
econômico acelerado que marcou o período.
No entanto, é evidente que o aspecto repressivo se impõe levando os autores que
analisam a formação do estado no Brasil a considerar este aspecto como “estrutural”. Não é
diferente emFlorestan. Ele considera que o fato da formação social brasileira, inserida de forma
dependente na ordem do capitalismo tardio, manifestar a contradição essencial entre um ciclo
restrito à ordemburguesa que se auto legitima nas formas da autocracia e uma maioria daqueles
que se localizam fora desta ordem ou apenas parcialmente incluídos, dá umcaráter estrutural à
autocracia como forma do Estado burguês no Brasil.
O grande problema de legitimação encontrado no caminho da consolidação da ordem
burguesa em nosso país é que uma ordem autocrática, por sua natureza, é sempre uma saída
temporária, mas as características estruturais de nossa formação social acabam por impor à
autocracia burguesa uma longevidade muito além do que uma forma transitória. Diz o autor:
Os recursos de opressão e de repressão de que dispõe a dominação burguesa no
Brasil, mesmo nas condições especialíssimas seguidas ao seu enrijecimento
político e à militarização do Estado, não são suficientes para ‘eternizar’ algo que
é, por sua essência (em termos de estratégia da própria burguesia nacional e
internacional) intrinsecamente transitório” (idem: 321)
Ao mesmo tempo o desafio da ordem burguesa na busca de sua estabilidade, cedo ou
tarde acabaria por exigir o esforço na direção de uma consolidação de sua hegemonia o que
implica superar os limites de uma “autonomia de classe para dentro”, no sentido de
autoreferenciada no restrito campo dos interesses burgueses, por uma “autonomia de classe
para fora”, ou seja, envolvendo seus aliados (Fernandes considera que nos termos da
autocracia a burguesia se apresenta intolerante mesmo às manifestações do radicalismo
burguês), assim como seus oponentes na luta de classe como elemento essencial da chamada
“revolução passiva” (Gramsci, 2011: 317319).
Devemos considerar que o problema da legitimação não se resume a um problema
político ou ético. Como nos lembra José Paulo Netto (2006) é na passagem para a forma
monopólica que a ordem do capital passa a exigir do Estado um conjunto de ações, diretas e
indiretas, através das quais a acumulação pode encontrar as condições de sua continuidade,
alertando para o fato que:
O que se quer destacar, nessa linha argumentativa, é que o capitalismo
monopolista, pelas suas dinâmicas e contradições, cria condições tais que
o Estado por ele capturado, ao buscar legitimação política através do jogo
democrático, é permeável a demandas das classes subalternas, que
podem incidir nele seus interesses e suas reivindicações imediatos. E que
este processo é todo tensionado, não apenas pelas exigências da ordem
monopólica, mas pelos conflitos que faz dinamar em toda a escala
societária (Netto, 2011: 29).
De certa forma, Fernandes afirma que ao garantir as condições da acumulação
capitalista, a autocracia, ao mesmo tempo, dinamiza suas contradições e tende a reapresentar a
questão da legitimação do poder burguês perante outros setores e classes que compõe a
sociedade brasileira. Neste ponto o autor abre duas possibilidades para aquilo que chama de
crise da autocracia burguesa, lembrando que escreve já nos momentos que antecedem a
chamada abertura política e o início da transição democrática. Um primeiro cenário seria uma
espécie de autoreforma da autocracia na direção de incorporar aqueles setores naquele
momento não diretamente envolvidos no restrito círculo do poder burguês; um segundo cenário,
dado o caráter estrutural das determinações que se encontramna base da autocracia burguesa,
seria a continuidade e o fortalecimento da autocracia burguesa no Brasil.
Antes de mais nada é preciso considerar que Fernandes não guarda nenhuma ilusão
quanto a possibilidade daquilo que chama de uma “revolução dentro da ordem”, neste caso
indicando uma autoreforma da autocracia. Para ele a burguesia havia perdido todo seu caráter
revolucionário. Estaríamos em suas palavras, entre duas revoluções, uma que vinha do passado
e chega neste momento sem maiores perspectivas (a revolução burguesa) e outra que “lança
raízes sobre a construção do futuro” (Fernandes, 1976: 295).
Tornase, assim, muito difícil deslocálas politicamente através de
pressões e conflitos mantidos ‘dentro da ordem’; e é quase impraticável
usar o espaço político, assegurado pela ordem legal, para fazer explodir
as contradições de classe”(idem : 296).
O fundamento desta descrença se encontra no fato já citado que para ele as
determinações estruturais criam um impasse. A massa daqueles que são colocados fora do
círculo do poder burguês apresentam demandas que se chocam com os interesses da
continuidade da acumulação de capitais, não por que sua natureza em si coloque estas
demandas fora da ordem do capital, não é o caso, mas pelo fato que o poder burguês aqui se
articula com a totalidade da acumulação do capital mundial e seu papel na lógica das
contratendências à queda da taxa de lucro é operar como áreas de superexploração que
sustentam o centro do sistema, assim como as classes dominantes locais, tornando tais
demandas uma ameaça a ordem.
Desta maneira Florestan Fernandes chega a uma categoria que nos parece
importantíssima para compreender o momento atual. Considerando que o possível de ser
ofertado como caminho que aplainasse o apassivamento dos trabalhadores em uma ordem
burguesa desta natureza, seria muito, muito pouco, Fernandes denomina este caminho de uma
“democracia de cooptação” (idem: 363). No contexto da crise da autocracia burguesa
reapareceria o velho dilema da revolução burguesa no Brasil e de como equacionar o problema
político da hegemonia burguesa, agora sob a necessidade de “entrelaçar os mecanismos de uma
democracia de cooptação coma organização e o funcionamento do Estado autocrático”(idem,
ibidem).
Para o autor, naquele momento de sua análise, este caminho seria pouco provável, uma
vez que “parece fora de dúvida que as classes burguesas mais conservadoras e reacionárias
considerarão exagerado o preço que terão que pagar à sobrevivência do capitalismo
dependente, através da democracia de cooptação”(idem: 365), concluindo que:
Até onde pudemos chegar, por via analítica e interpretativa, não padece
dúvida de que as contradições entre a aceleração do desenvolvimento
econômico e a contrarevolução preventiva só podem ser resolvidas,
“dentro da ordem”, não pela atenuação, mas pelo recrudecimento do
despostismo burguês” (idem, ibidem).
De fato, se considerarmos o desenvolvimento imediato dos fatos que seguiram à
publicação do livro A revolução burguesa no Brasil, a história parece ter dado razão à
Fernandes. Vivemos uma democratização tutelada, uma abertura sob controle na qual os
conteúdos mais próximos às demandas populares foram sempre adiados, assim como a
permanência indisfarçável de todo o aparato político e jurídico da ditadura como sustentáculo
do poder político burguês que se perpetuou. No entanto, a história guardaria, como veremos,
uma surpresa.
Sinteticamente podemos afirmar que a posição de Fernandes é que a Revolução
Burguesa se realizou no Brasil, não em sua forma clássica, portanto divorciada de seu caráter
nacional e de seus elementos democráticos, o que leva a determinação da forma do Estado
burguês como autocrático e sua revolução como, de fato, uma contrarevolução preventiva
permanente. Ora esta será a base sobre a qual se erguerá outra dimensão fundamental da
chamada estratégia democrática popular.
Uma vez que a ordem burguesa é impermeável às pressões dos setores radicalizados
da burguesia e às demandas das camadas populares e, assim como para Caio Prado ainda que
por outros motivos , Florestan também acredita que uma revolução socialista seria naquele 2
momento impossível, a apresentação das demandas democráticas não realizadas pela burguesia
e que coincidissem com os interesses dos trabalhadores, levaria a um impasse cuja solução
apontaria para a ruptura socialista.
É nesta equação que nascerá a famosa formulação de Fernandes sobre a necessária
combinação de uma “revolução dentro da ordem” com uma “revolução fora da ordem” . Ora 3
esta é, por assim dizer, a alma da formulação democrática popular.
O PT e a estratégia democrática popular
É bom dizer logo de início que o PT enquanto experiência histórica não nasceu da
adesão a uma leitura teórica, muito menos atribuir a responsabilidade pelos desvios presentes a
este ou aquele formulador ou intelectual. Como bons analistas que eram, tanto Caio Prado
como Florestan captaram elementos do devir, estavam inseridos emuma conjuntura histórica e
ao dar respostas às questões de seu tempo acabaram por indicar elementos que o
desenvolvimento histórico confirmaria como sendo determinantes no período que se abriu. O
PT como partido político e como parte integrante do movimento que a classe trabalhadora
empreendeu no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, expressa este mesmo cenário e se
tornará o protagonista da estratégia democrático popular e seu ocaso, assim como o PCB em
relação à estratégia democrática nacional.
A identidade do PT em seu início passava por uma clara diferenciação em relação ao
PCB, não apenas pela disputa própria do movimento sindical, mas pela necessidade de
2 Fernandes, que parte da afirmação do fim do ciclo histórico da revolução burguesa e que estamos na
era da revolução socialista, destaca a correlação de forças e o fato de que a superação da autocracia burguesa
exigia a constituição do proletariado enquanto um sujeito político, primeiro como protagonista de um amplo
movimento de caráter socialista e para tanto capaz de mobilizar os trabalhadores e demais setores por
demandas imediatas. Ver, por exemplo, Movimento Socialista e Partidos Políticos (Fernandes, F. , Editora Hucitec:
São Paulo, 1980)3 É necessário notar aqui que, neste momento, o autor já se refere a dois momentos de uma revolução proletária e não mais à característica própria da revolução burguesa discutida na obra que analisamos e o faz não na intenção de reapresentar o etapismo, mas de uma revolução permanente.
afirmação que inaugurava um período diferente na história brasileira. É assim que em seu V
Encontro (1987) afirmara explicitamente que:
O PT rejeita a formulação de uma alternativa nacional e democrática que o PCB
defendeu durante décadas, e coloca claramente a questão do socialismo. Porque
o uso do termo nacional, nessa formulação, indica a participação da burguesia
nessa aliança de classes – burguesia que uma classe que não tem nada a
oferecer ao nosso povo (Resoluções do V Encontro Nacional – 1987, in Almeida,
J. ; Vieira, M.A.; Canceli, V., 1997:322).
Já nos documentos de fundação do PT estão expressas as intenções de independência
de classe que aqui se reapresentam. É, entretanto, no V Encontro que a estratégia democrático
popular ganha sua forma mais acabada e que pode ser vista nesta formulação:
Nas condições do Brasil, um governo capaz de realizar as tarefas democráticas e
populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopolista – tarefas
não efetivadas pela burguesia –, tem duplo significado: em primeiro lugar, é um
governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa,
portanto um governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá
viabilizarse com uma ruptura revolucionária; em segundo lugar, a realização das
tarefas a que se propõe exige a adoção concomitantemente de medidas de
caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfraquecimento da
resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não
representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa
democráticopopular, e, o que é mais grave, criando ilusões, em amplos setores,
na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática popular
(V Encontro... op. cit: 322).
Como se vê, neste momento, a estratégia democrático popular é mais uma afirmação
de independência do que caminho para a conciliação de classe. No mesmo encontro, a
estratégia propriamente dita se delineia de forma ainda mais clara.
Para extinguir o capitalismo e iniciar a construção da sociedade socialista, é
necessária, em primeiro lugar, uma mudança política radical; os trabalhadores
precisam transformarse em classe hegemônica e dominante no poder de Estado,
acabando com o domínio político exercido pela burguesia. Não há qualquer
exemplo histórico de uma classe que tenha transformado a sociedade sem colocar
o poder político – Estado – a seu serviço (idem: 312).
A radicalidade com se apresentava tal proposição vinha combinada comumesforço de
introduzir esta “ruptura” em um longo processo de acúmulo de forças, diferenciando as
atividades destinadas à tomada do poder, propriamente dito, daquelas que preparam as
condições para isso, diferença na qual se insere a distinção de reforma e revolução, entendidas
pelos formuladores não como antagônicas. A luta por reformas só seria um erro quando
“acabam em si mesma”, ressaltando que “quando ela serve para demonstrar às grandes massas
do povo que a consolidação, mesmo das reformas conquistadas, só é possível quando os
trabalhadores estabelecem seu próprio poder”, então a luta por reformas se combinaria comos
processos de transformação social (idem: 313).
O que parece ficar evidente é que este momento inicial da formulação democrática
popular parte de uma pressuposto semelhante ao que foi expresso por Florestan, isto é, a
suposta impermeabilidade da burguesia brasileira e de seu Estado diante das demandas
populares (matéria prima da luta por reformas), ou como as formulações e o próprio sociólogo
brasileiro afirmarão, as chamadas “tarefas democráticas em atraso”, ou “tarefas não efetivadas
pela burguesia”. Desta maneira podemos supor que o essencial à formulação emquestão é que
a apresentação de tais demandas pelos trabalhadores e a resistência do poder burguês em
incorporálas, seriam o momento dentro da ordem que prepararia a possibilidade da ruptura,
na verdade a legitimaria perante a maioria da população.
Ainda que esta formulação tenha cumprido umpapel importante na dinâmica da luta de
classes e tenha significado um poderoso instrumento de mobilização, luta e organização dos
trabalhadores que refletiu em patamares significativos na constituição de uma consciência de
classe (aliás, o mesmo pode ser dito da estratégia democráticonacional); seu desfecho
produziu algo muito distinto daquilo que se esperava.
Não é o caso de apontar todo o processo pelo qual esta metamorfose se processou , 4
mas apenas indicar o fato de que nesta transformação a principal vitima foi a independência de
classe. Pensada inicialmente como um longo processo de acúmulo de forças que combinaria um
braço de ação junto aos movimentos sociais e sindicais, ligados às lutas da classe trabalhadora
e outro que refletiria este crescimento de lutas através de patamares institucionais (sindicatos,
organizações da sociedade civil e espaços institucionais conquistados via eleitoral nas
administrações e parlamentos), processo este que deveria culminar na conquista do governo
federal para que se desencadeasse reformas de caráter “antiimperialista, antilatifundiário e
antimonopolista”; esta propsta sofreria uma inflexão significativa entre o VI e VII Encontros
Nacionais do PT.
De forma sucinta podemos afirmar que três processos se combinaram nesta inflexão.
Primeiro que a dinâmica da luta de classes se acentuou no governo Sarney levando à
possibilidade concreta de que uma vitória eleitoral ocorrer mais cedo do que se previa (de fato
já um ano depois, em 1988, esta proposta se colocou). No entanto, paradoxalmente,
exatamente neste momento outros dois fatores interviriam para minar as bases daquele amplo
movimento de caráter socialista que deveria ser a sustentação de um suposto governo
democrático e popular que realizaria as reformas propostas.
A reestruturação produtiva implantada entre o final dos anos 1980 e durante a década
de 1990, quebraria a força do movimento operário independente em sua própria base, ao
mesmo tempo em que a crise nas experiências de transição socialista em curso, notadamente a
URSS, entravam em rápido colapso. Estes vetores se combinam para gerar um resultado
inesperado: a possibilidade de chegar ao governo federal, mas sem a correlação de forças que
permitiria a implantação das reformas democráticas e populares.
A solução encontrada, ainda dentro do campo de uma estratégia democrática e
4 Para tanto ver As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento (Iasi, Expressão Popular: São Paulo, 2006)
popular, é que seria possível e desejável seguir o acúmulo de forças agora dentro deste espaço
institucional estratégico, assim como já se supunha se realiza nos espaços institucionais menores
conquistados nesse processo (administrações municipais, mandatos parlamentares, máquinas
sindicais, etc.).
Vejam que há um raciocino estranho aqui. Não se poderia pensar em uma ruptura
socialista por conta de uma certa correlação de forças insuficiente acompanhada de uma
consciência de classe igualmente insuficiente. Por isso as reformas democráticas e populares.
Agora se trata de uma correlação de forças ainda mais precária que impede até mesmo estas
reformas, fazendo com que o programa tenda a um horizonte apenas “democrático”.
No entanto, não se trata aqui de pura intencionalidade que se joga no vazio, mas de
uma luta de classes. Lembremos que isso tudo se dá no momento emque a burguesia sofre seu
próprio paradoxo expresso no dilema entre uma autoreforma nos termos de uma democracia
de cooptação ou um aprofundamento da autocracia, alternativa que neste momento se aplica e
que parece alimentar o processo de luta de classes e fortalece seu adversário.
A metamorfose, ou o transformismo se preferem, se dá no processo pelo qual acabam
por se chocar dois interesses que até então formavam uma unidade: os interesses da classe
trabalhadora retomando seu processo de luta com a crise da autocracia, e os interesses de uma
camada burocrática que se especializou na gestão dos espaços institucionais ocupados (partido,
sindicatos, espaços governativos ou parlamentares). Tal contradição se materializa na questão
das eleições presidenciais e nas sucessivas derrotas de Lula (em 1989, 1994 e 1998) o que
leva a um setor do PT a defender a tese segundo a qual seria necessário ampliar as alianças, o
que implicaria em uma moderação programática, para que fosse possível ganhar as eleições .5
A vitória eleitoral de 2002 que leva Lula à presidência consagra esta inflexão. O
encontro nacional que a antecede é esclarecedor do caminho inverso percorrido no sentido do
desmonte da independência de classe, em suas resoluções podemos ler:
5 Esta tese foi defendida já no VIII Encontro Nacional, mas foi suspensa com a vitória de uma coligação de esquerda que dirigiria o PT neste período e retomada no X Encontro (1995) com a vitória de José Dirceu para a presidência do partido.
Um novo contrato social, em defesa das mudanças estruturais para o país, exige o
apoio de amplas forças sociais que dêem suporte ao Estadonação. As mudanças
estruturais estão todas dirigidas a promover uma ampla inclusão social – portanto
distribuir renda, riqueza, poder e cultura. Os grandes rentistas e especuladores
serão atingidos diretamente pelas políticas distributivistas e, nestas condições, não
se beneficiarão do novo contrato social. Já os empresários produtivos de
qualquer porte estarão contemplados com a ampliação do mercado de consumo
de massas e com a desarticulação da lógica financeira e especulativa que
caracteriza o atual modelo econômico. Crescer a partir do mercado interno
significa dar previsibilidade para o capital produtivo (XII Encontro Nacional, 2001)
.6
Eis que uma força política própria da classe trabalhadora passa ao campo moderado,
primeiro rumo ao centro do espectro político e depois com o desenvolvimento dos
compromissos de governabilidade, para uma aliança de centro direita. Este “transformismo de
grupos radicais inteiros, que passam para o campo moderado” (Gramsci, 2011: 317) não
restringe seu impacto ao próprio grupo ou à direção destes grupos, mas produz umefeito sobre
a classe de onde emergiram inicialmente. Como diz Gramsci:
Neste sentido (a absorção gradual mas contínua de adversários que pareciam
irreconciliáveis inimigos), a direção política se tornou um aspecto da função de
domínio, uma vez que a absorção das elites dos grupos inimigos leva à
decapitação destes e a sua aniquilação por um período frequentemente muito
longo (idem: 318).
Intencionalidades e luta de classe
Este é um processo político complexo que passa por questões éticas mas não se
6 Resoluções do 12.º Encontro Nacional (2001). Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, São Paulo, 2001, p. 38.
restringe a elas. Ainda que possam ter havido pequenas e grandes traições, e de fato houveram,
os protagonistas deste processo não necessariamente agem como “terratenentes da burguesia
no movimento operário”, na expressão de Lênin, de forma consciente. Eles podem seguir
acreditando que estão executando ummomento tático de sua estratégia, acumulando forças até
que um dia retomem as condições para a mítica ruptura socialista, transformada em horizonte
que sempre se afasta quanto mais dele nos aproximamos. Não se trata de meras intenções, mas
de interesses de classe. A burguesia precisava resolver seus problemas de hegemonia e para
isso tinha que enfrentar uma contradição: dado o caráter estrutural da exploração na forma
como a acumulação de capitais poderia chegar no máximo a uma democracia de cooptação
diante da qual os trabalhadores se negariam a receber tão pouco e a burguesia se recusaria a
pagar um preço que consideraria muito alto.
O cenário se agrava na medida em que a burguesia precisa realizar isso no bojo de
ajustes que apontavam para o desmonte do Estado e das políticas públicas, a intensificação da
mercantização e das privatizações, uma interação mundial de mercados e fluxos financeiros que
solapam qualquer esforço de autonomia nacional, ou seja, era necessário retomar as bases de
um consentimento da classe trabalhadora, mas sem o retorno do Estado do Bemestar Social,
que na verdade aqui nunca existiu, mas que no contexto europeu foi o principal instrumento do
amoldamento do movimento operário e socialista.
O interesse expresso na trajetória recente do PT e de sua experiência no governo
federal em umgoverno de coalizão de classes, numa composição de centro direita, rendese ao
pragmatismo político: vencer, governar e se reeleger. O expresidente do PT, José Genoino,
parece indicar o campo deste pacto social e seu impacto sobre a questão do programa:
O programa de governo que a candidatura Lula levou às ruas em 2002 contém
eixos estratégicos para o Brasil. Um projeto estratégico, qualquer que seja, é
sempre a projeção ideal que um agente político – no caso o PT – formula em
relação à sua visão de futuro. Projeto político não pode ser entendido como
algo que necessariamente se realizará. Tratase apenas de um deverser, de
uma das possibilidades em relação ao futuro. Na medida em que existem vários
projetos interagindo e que a ação de execução de um projeto interage com a ação
de outros sujeitos, o resultado final da ação implementadora de um projeto nunca
será igual à intenção inicial do agente. O mesmo ocorre com programas de
governo. O que importa, na ação dos partidos, é que suas ações correspondam a
programas e projetos. Resultará daí algo mais ou menos aproximado da
formulação inicial, dependendo sempre da capacidade de execução, das
condicionantes da realidade, das circunstâncias e dos agentes interativos
(Genoino, 2003).
Notem que a resultante expressa no governo é produzida pelo concurso de “vários
projetos interagindo”, mas seria interessante perguntar quais. O PT apresentou às eleições
“seu” projeto, mas já vimos que ele já estava devidamente desfigurado por uma inflexão que o
retira de um campo fora da ordem para um campo que a aceita como limite que não pode ser
superado. Mas, vamos supor apenas para fins de exposição, que este representa os interesses
táticos dos trabalhadores. Com que outros projetos terá que interagir? Certamente não são
aqueles motivados pela intensa participação popular e da classe trabalhadora, uma vez que os
mecanismos de participação direta foram devidamente travados, quando não criminalizados.
Em se tratando de uma sociedade de classe, tratase dos interesses muito bem organizados
através dos loobies dos diferentes setores da burguesia monopolista e estes não precisam
moderar suas demandas para parecer aceitáveis ou serem compreendidos pela consciência
comum da maioria da população. A ingenuidade genuinamente apresentada pelo expresidente
do PT, exdeputado e exsocialista, chega ao ponto de considerar, na perspectiva dita
republicana que ele hoje assume, que a interação entre estes “projetos” é neutra,
desconsiderando, por exemplo, que parte destes projetos são acompanhados de vultuosas
contribuições de campanha ou bancadas inteiras que podem viabilizar ou inviabilizar a
sustentação de um governo.
Por fim, o pacto nos termos apresentados de uma democracia de cooptação, permite
disciplinar a luta de classes. Os pontos de “acordo”, o que resulta desta paciente e
habbermasiana ampliação das esferas de consenso, são “acidentalmente” os interesses
essenciais da acumulação de capital: garantir o crescimento econômico, realizar as reformas e o
ajuste do Estado, garantir a “sustentabilidade” e evitar as políticas “irresponsáveis” e
“demagógicas”, e finalmente, oferecer o fundo publico como alvo da valorização do capital
estrangulado por sua crise.
A condição política para que este “ajuste estrutural” ocorra é o desarmar da classe
trabalhadora, mas isso não pode ser conseguido pelos meios clássicos da social democracia,
pelo contrario, será a camada melhor remunerada do proletariado que terá que pagar pelo
ajuste. A forma encontrada é a viabilizada pelo pacto com a pequena burguesia política,
formada com base naquela burocracia descrita, que negocia em nome da classe para
implementar uma política contra seus verdadeiros interesses.
A base da democracia de cooptação é a focalização das ações sociais visando
amenizar a pobreza absoluta ao mesmo tempo que oferece condições para o crescimento
econômico e, portanto da acumulação privada, aumentando a pobreza relativa.
A democracia de cooptação, genialmente antecipada por Florestan, mas por ele
descartada como possibilidade, não veio da autoreforma da autocracia, mas, inesperadamente,
do desenvolvimento da estratégia democrática popular madura que desloca para o governo um
setor que emerge da classe trabalhadora e dela se afasta para negociar em seu nome o pacto
que acaba por resolver os problemas de hegemonia que faltava à consolidação do poder
burguês no Brasil. Querendo evitar os equívocos de um socialismo sem democracia, o PT
acaba por implementar o pesadelo de uma burocracia sem socialismo.
Assim como na social democracia européia (Przeworski, 1989), a estratégia
democrática popular que havia sido pensado como uma caminho alternativo para se chegar ao
socialismo, tornase mais um eficiente meio de evitálo.
Referencias Bibliográficas
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