conversa com ferreira gullar
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ferreiragullar
arieljiménez
conversa com
tradução Vera Pereira
Introdução
Uma poesia universal, Weydson B. Leal
Ferreira Gullar conversa com Ariel Jiménez
Sobre os autores
Créditos das imagens
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introdução
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Neste livro, Ferreira Gullar narra sua descoberta casual da poe-
sia, quando era adolescente. Tudo o que ele realizou ao longo
de mais de seis décadas, desde essa descoberta fortuita, não é
menos impressionante.
Primeiro título publicado no Brasil da série in Conversation
with / en Conversación con, editado e produzido pela Funda-
ción Patricia Phelps de Cisneros, Ferreira Gullar conversa com
Ariel Jiménez apresenta um retrato vívido de um poeta cujas
contribuições à atmosfera cultural brasileira têm sido de vital
importância, ainda que às vezes mal interpretadas ou mesmo
negligenciadas. As conversas entre Gullar e Ariel Jiménez reve-
lam um escritor sempre empenhado em dialogar criticamente
com outros autores e cuja influência nas artes plásticas e na
teoria da cultura já se tornou lendária.
Autodidata de profunda erudição, Gullar diz que “sua vida in-
teira é uma improvisação”. Dono de uma notável capacidade de
adaptação a novas circunstâncias, ele demonstra uma resistên-
cia quase emersoniana às “coerências tolas”, quando desafiado
por fatos que claramente contradizem uma de suas crenças
prévias. De fato, até em seus momentos mais polêmicos, Gullar
dá provas de uma honestidade intelectual e de uma flexibilidade
que o impedem de cair no erro básico de tentar adaptar a reali-
dade à teoria.
Criador do Manifesto Neoconcreto, de 1959, Gullar acabou
por se distanciar da vanguarda, chegando inclusive a assumir
uma postura de clara oposição, quando finalmente admitiu as
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limitações desse movimento. Analogamente, suas crenças mar-
xistas alteraram-se depois que ele estudou a filosofia e a prática
comunistas na ex-urss; e concluiu que seu idealismo é admirá-
vel, mas falho. Em meio a revoltas políticas, e vivendo muitas
vezes na condição de exilado, Gullar reinventou-se com firmeza
numa refletida resposta às circunstâncias estéticas, ideológicas
e políticas. Aliás, sempre questionou sua própria prática pessoal,
criando e destruindo sem medo as barreiras que se interpu-
nham em seu caminho a fim de reconstruir as bases necessárias
à sua obra artística. Em consequência, Gullar se manteve como
uma figura vibrante e vital, não alheia a controvérsias tenazes.
Sou muito grato a Ferreira Gullar e a Ariel Jiménez por sua
dedicação à elaboração deste volume, o mais extenso relato até
esta data sobre o trabalho e as ideias de Gullar ao longo de uma
existência tão fértil. Quero felicitar Ariel Jiménez, ex-curador
chefe da Colección Patricia Phelps de Cisneros (cnpp), por ter
seguido sua intuição de localizar Gullar e convencê-lo a partici-
par deste projeto.
gabriel pérez-barreiro
Diretor da Colección Patricia Phelps de Cisneros
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uma poesia universal Weydson B. Leal
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Se o poeta é um pensador que usa as palavras para revelar as
percepções mais sensíveis da experiência humana, Ferreira
Gullar está no ápice de uma tradição que desde Homero, pas-
sando por Dante, Shakespeare, Camões e Whitman, compreen-
deu a condição humana. Paradoxalmente, no cânone da poesia
contemporânea, sua posição é incontestável. Com uma bio-
grafia que se iniciou em 1930, na pequena cidade de São Luís,
capital do estado do Maranhão, no Nordeste do Brasil, Ferreira
Gullar construiu sua trajetória de vida e obra pelo desenvolvi-
mento de um talento singular e de convicções estéticas, políti-
cas e ideológicas firmes e combativas, principalmente a partir
do momento em que começou a viver no Rio de Janeiro, na dé-
cada de 1950. Sua poesia, seu teatro, seus ensaios sobre arte e
artigos em jornais constituem um registro contundente de um
homem de seu tempo que também pensa no futuro. Por isso
Ferreira Gullar pode ser considerado, além de um dos maiores
poetas da língua portuguesa, um dos grandes humanistas dos
séculos xx e xxi.
A grande poesia é atemporal e independe do lugar onde foi
escrita. Não importa o idioma ou a idade do poeta, o país ou o
século em que ele nasceu. A grande poesia transcende os mo-
vimentos estilísticos, historiografias, modismos, revoluções
e vanguardas. Isso porque a verdadeira arte poética, seja na
Grécia Antiga, na Itália do século xiii ou na América do século
xix, continua a transmitir o pensamento e o sentimento de um
povo por meio da palavra que atravessa gerações. O poeta e
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diplomata brasileiro Vinicius de Moraes não exagerava quando
escreveu, em um artigo de 1976, que, graças à tríade formada
por Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e
Ferreira Gullar, a poesia brasileira estava pronta para apresentar-
-se a qualquer leitor do mundo. Ao lado de Manuel Bandeira e do
próprio Vinicius, esses autores foram responsáveis pela grande
poesia escrita no Brasil desde o começo do século passado. O
amplo sucesso de crítica que a obra poética de Ferreira Gullar
conquistou – com teses universitárias, ensaios e artigos publi-
cados por críticos, poetas, estudiosos e intelectuais do porte de
José Guilherme Merquior e Alfredo Bosi – ratifica os argumen-
tos de Vinicius. No artigo de 1976, Vinicius de Moraes referiu-se
ao aparecimento do “Poema sujo” – longo poema escrito por
Gullar em seu exílio em Buenos Aires, durante a ditadura militar
brasileira. Vinicius declarou que “Poema sujo” era um dos mais
importantes e emocionantes poemas que já lera em todos os
idiomas que conhecia. Também afirmou que o “Poema sujo” era
“seguramente o mais rico, generoso (e paralelamente rigoroso) e
transbordante de vida de toda a literatura brasileira”.
Como crítico de arte e pensador, Ferreira Gullar está entre os
mais lúcidos e cultos escritores do mundo atual. Colunista ou co-
laborador de jornais e revistas no Brasil, seus textos têm a clareza
e a sagacidade dos que indicam caminhos e denunciam falácias,
quer se revelem em discursos político-ideológicos, quer nos sa-
lões das bienais de arte. Como defensor das liberdades democrá-
ticas que dão a todo cidadão o direito de agir e de expressar-se,
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Gullar não tem medo de estabelecer limites ou de indicar novos
rumos – e mais, nunca sentiu esse medo, mesmo quando a per-
seguição política e a vigilância ideológica o empurraram ao exílio.
Prova disso está no fato de, sendo também artista plástico, apre-
sentar seus trabalhos em livros e exposições, abrindo a janela do
artista à crítica alheia. Sua coragem como pensador ultrapassa as
fronteiras da arte e da literatura, pois se debruça sobre importan-
tes questões sociais, suas colunas publicadas em jornais e revistas
obtêm enorme repercussão e não raro suscitam polêmicas. Seus
artigos e ensaios são sempre garantias de veracidade, coragem e
convicção. Em um caso recente, que marcou a história do jorna-
lismo, ele escreveu um artigo na Folha de S.Paulo a respeito dos
erros, equívocos e contradições do tratamento da esquizofrenia
no Brasil. Devido ao avassalador apoio que recebeu por parte da
opinião pública, dias depois seu rosto apareceu na capa da revista
de maior circulação do país, cuja reportagem principal tratou do
problema que ele havia trazido à baila com uma argumentação
incontestável. O motivo de sua manifestação foi o fato de ele
mesmo ter um filho esquizofrênico, que sofreu durante muitos
anos as consequências dos erros de tratamento médico para
os quais Gullar chamara a atenção no jornal. Ele nunca se sentiu
constrangido de tornar públicos seus problemas pessoais ou fa-
miliares, desde que as situações pudessem afetar qualquer pes-
soa, e a razão disso talvez esteja em um incomparável senso de
solidariedade e do bem coletivo. Seu humanismo também é ação.
A poesia de Ferreira Gullar é fruto de uma sensibilidade eru-
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dita, lírica e social. Sua poética é capaz de traduzir, além das
angústias do homem contemporâneo, os fecundos silêncios
que alimentam seus próprios conflitos, inquietações e alegrias
cotidianos com uma riqueza de percepções que florescem em
luminosas sinestesias. A mesma sensibilidade capaz de apreen-
der, no “Poema sujo”, a morte que “se propagou por toda a rua, /
se misturou com as árvores da quinta, / penetrou na cozinha
de nossa casa, / se impregnou do cheiro de carne que se assava
na panela / e ficou brilhando nos talheres / dispostos sobre a
toalha / na mesa do almoço” ,1 também é visionária em “O jas-
mim”, onde o perfume de uma flor é “um silêncio a inventar-se
nas plantas / vindo da terra escura / como caules talos ramos fo-
lhas / o aroma / que se torna o arbusto jasmineiro” .2 Como toda
poesia que, ao submergir-se e elevar-se, alcança o coração do
homem comum, está presente na obra de Gullar a solidariedade
fraterna e o inconformismo com as injustiças sociais, a indigna-
ção com o sofrimento alheio e o deleite lírico, características
que, no plano internacional, colocam-no ao lado de Baudelaire,
Rilke, Rimbaud, Whitman, T. S. Eliot e Maiakóvski, poetas origi-
nais e universais que alcançam o sublime e o humano. Isso nos
remete ao componente linguístico da poesia de Ferreira Gullar.
1 Ferreira Gullar, “Poema sujo” in Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000,
pp. 233-91
2 Ferreira Gullar, “O jasmim” in Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José
Olympo, 2010, pp. 33-34
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Ao escrever em português, as mesmas portas da latinidade que
o identificam com os sentimentos de seu povo – que o reveren-
cia com merecido reconhecimento – também lhe dão acesso,
mediante inúmeras traduções, a leitores de outras nacionalida-
des, anunciando-o como um exemplo perfeito de clássico mo-
derno. Sua poesia foi traduzida e publicada em países como Es-
tados Unidos, Venezuela, Argentina, Colômbia, Cuba, Equador,
Itália, México, Peru, Portugal, Canadá, Suécia, Holanda, Vietnã,
entre outros. O alcance de sua poesia nos lembra o que T. S. Eliot
escreveu em seu discurso para The Virgil Society, em 1944:
Pode-se concluir então que o clássico perfeito deve ser
aquele no qual se encontra latente, ou completamente ex-
posto, o gênio inteiro de um povo, e que somente se mostra
em uma linguagem que permita que todo seu gênio esteja
presente ao mesmo tempo. Deve-se acrescentar, portanto, à
nossa lista das características do clássico, a exaustividade. O
clássico deve, dentro de suas limitações formais, expressar o
máximo possível da gama completa de sentimentos que re-
presenta o caráter do povo que fala esse idioma. Desse modo,
ele será sua melhor representação e será apreciado ampla-
mente; e entre o povo ao qual pertence conseguirá obter res-
posta entre pessoas de todas as classes e condições.3
3 T. S. Eliot, “What is a Classic”, discurso proferido na Virgil Society, em 16 de ou-
tubro de 1944.
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Penso que a conclusão de Eliot traduz a posição de Ferreira
Gullar na história da literatura brasileira e justifica a ampla di-
versidade de seus leitores em tantas partes do mundo.
Desde seu primeiro livro de poemas, de 1949, Um pouco
acima do chão – obra da adolescência, não incluída pelo autor
em suas primeiras antologias –, percebe-se o ímpeto criador de
um poeta que, embora ainda buscasse uma linguagem própria,
já revelava força e inventividade. A partir do segundo livro, A
luta corporal, de 1954, sua poesia encontra a grandeza renova-
dora que deixou seus primeiros analistas sem parâmetros de jul-
gamento. Daí por diante, ele vai fazer experiências e renovar-se
em cada publicação, numa impressionante sequência de obras-
-primas como: Dentro da noite veloz, 1975, Poema sujo, 1976, Na
vertigem do dia, 1980, Barulhos, 1987, Muitas vozes, 1999, e Em
alguma parte alguma, 2010 – este último, uma antologia de poe-
mas que se inclui entre os melhores livros de poesia brasileira
contemporânea. A obra de Ferreira Gullar é tão rica quanto mul-
tifacetada: além de livros de poesia, escreveu artigos e ensaios
sobre artes plásticas, peças de teatro, dramaturgia para televi-
são, contos, crônicas, traduções, uma autobiografia e livros de
poesia infantojuvenil. Recebeu os mais importantes prêmios da
literatura brasileira em diversas categorias. Nas últimas décadas,
como intelectual intensamente envolvido no contexto sociocul-
tural brasileiro, entre 1992 e 1995 presidiu o Instituto Brasileiro
de Arte e Cultura (ibac), vinculado ao Ministério da Cultura do
Brasil, por indicação do então presidente da República Itamar
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Franco. Em 2000, foi escolhido “Intelectual do ano” em um con-
curso nacional, após a exposição “Ferreira Gullar, 70 anos”, uma
grande retrospectiva de sua vida e obra no Museu de Arte Mo-
derna do Rio de Janeiro (mam-rj). Em 2010, sua mulher, a poeta
Claudia Ahimsa, organizou no Museu Nacional de Belas Artes do
Rio de Janeiro (mnba) uma segunda exposição comemorativa,
agora de seus oitenta anos. Nesse mesmo ano, foi laureado com
o Prêmio Camões, o mais importante prêmio para escritores de
língua portuguesa, outorgado pelos governos de Portugal e do
Brasil a autores que contribuem para o enriquecimento do pa-
trimônio literário e cultural do idioma. A indicação de Ferreira
Gullar, em 2002, para o Prêmio Nobel de Literatura, ocasião em
que obteve o apoio de vários intelectuais brasileiros e estran-
geiros, é um fato especialmente indicativo da importância dele
para a cultura contemporânea. Depois que o primeiro Prêmio
Nobel para a língua portuguesa foi concedido, merecidamente,
ao romancista português José Saramago, não seria surpresa se
uma segunda premiação para esse idioma fosse dada à poesia
e ao Brasil, por intermédio de Ferreira Gullar. Prestes a comple-
tar 83 anos, a vitalidade desse poeta, cujas obra e biografia são
exemplos de dignidade intelectual e humana, nos dá a sensação
de estarmos na presença de um homem que está sempre reco-
meçando o trabalho de sua vida: a poesia que reúne todos os
homens em um só.
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ferreiragullar
arieljiménez
conversa com
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inventar a si mesmoO descobrimento da poesia
Como adultos, passamos a vida inteira compensando nossa infân-
cia. Completando-a, sentindo saudade dela, fugindo dela também.
Em todo caso, aquele momento – e aquele lugar – em que abrimos
os olhos para o mundo, quando ainda somos um amontoado de
sentidos, sem conceitos, sem palavras, define grande parte de nossa
estrutura psíquica. O que chegaremos a ser, a maneira como rea-
gimos aos estímulos e escolhas da vida provêm, em grande medida,
desse universo da infância e dos poucos anos seguintes até o nasci-
mento de uma consciência pessoal. Todos nós, sem exceção, quer
o saibamos ou não, respondemos a esse ditame. Contudo, é nas
pessoas que trabalham sua memória com mais constância, como
os escritores, que esse primeiro contato com o real se torna fecundo
e duradouro, e pode ser percebido em suas obras do começo ao fim.
Ali, para quem sabe observar, encontra-se escondido, se não toda a
obra de um autor, seu primeiro estímulo, o conjunto de problemas
aos quais ele tentará responder por toda a vida.
tudo isso em ti
se deposita
e cala.
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
26
(que o poema dispara)
chama
esses fósseis à fala.
Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.1
ferreira gullar Nasci em São Luís do Maranhão
no dia 10 de setembro de 1930, numa família de classe
média baixa. Batizaram-me com o nome de José Riba-
mar Ferreira, mas depois resolvi mudá-lo. Um poeta da
cidade (muito medíocre), chamado Ribamar Pereira,
escreveu um poema horrível que publicaram com meu
nome. Aquilo me irritou de tal maneira que decidi mudar
o meu nome para sempre. Usei meu sobrenome paterno,
Ferreira, e o sobrenome francês de minha mãe, Goulart,
que transformei para chamar-me Ferreira Gullar.2 Em São
Luís, meu pai era dono de uma quitanda, onde vendia ar-
roz, feijão, verduras, frutas e produtos desse tipo. Nossa
1 Ferreira Gullar, “Muitas vozes”, in Toda poesia. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2000, pp. 453-54.
2 Comentário de Ferreira Gullar: “Minha mãe vem de uma família me-
tade francesa, metade indígena. A cor da minha pele e meu cabelo liso vêm do
ramo indígena da família”.
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1 Ferreira Gullar (centro) com a mãe e os irmãos, c. 1936.
família era muito grande. Éramos dez, entre irmãos e ir-
mãs, e eu [1]. Além disso, não tínhamos muitos livros em
casa, apenas as histórias policiais que meu pai gostava
muito de ler numa revista chamada X-9. Ele tinha sido
jogador de futebol, era esse o mundo dele, e, quando eu
28
era garoto, me levava junto para assistir aos jogos. Talvez
seja por isso que, de início, eu quisesse ser jogador de fu-
tebol. Comecei jogando bola com meus colegas nas ruas
de chão batido até que, por fim, entrei para o time juvenil
do Sampaio Correia. Mas a paixão acabou rapidamente,
tão logo recebi um chute nas costas que me fez voar a uns
dois metros de altura. Quando caí no chão, pensei que as
vértebras da minha coluna tinham entrado umas dentro
das outras. Nunca mais voltei a jogar.
ariel jiménez Qualquer pessoa que leia sua poesia
percebe de imediato que esse cenário quase rural da infân-
cia tem um papel fundamental em sua obra de adulto. Dali
provêm esse assombro, essa estranheza diante da opaci-
dade 3 do mundo que a caracteriza.
fg São Luís era uma cidade pequena naquela época,
e as famílias geralmente viviam em casas. Quase não ha-
via edifícios e apartamentos. Nós morávamos numa des-
3 Quando usamos aqui o conceito de “opacidade do mundo”, refe-
rimo-nos especificamente a essa oposição central na poesia de Ferreira Gul-
lar entre linguagem e realidade à qual a linguagem remete. Uma coisa sem um
nome, sem nenhum conceito com o qual possamos abordá-la, é opaca para
a inteligência humana. Nomeá-la, descrevê-la, determinar suas características,
seus usos possíveis, é fazê-la transparente ao nosso entendimento. A poesia
de Gullar provém, em grande parte, da vontade explícita de tratar dessa opaci-
dade primordial das coisas a fim de descrevê-las em palavras, se não novas, ao
menos rejuvenescidas.
<entra imagem p. 15>
<legenda> 1. Ferreira Gullar (centro) com a mãe e
os irmãos em São Luís do Maranhão, c. 1936.
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era garoto, me levava junto para assistir aos jogos. Talvez
seja por isso que, de início, eu quisesse ser jogador de fu-
tebol. Comecei jogando bola com meus colegas nas ruas
de chão batido até que, por fim, entrei para o time juvenil
do Sampaio Correia. Mas a paixão acabou rapidamente,
tão logo recebi um chute nas costas que me fez voar a uns
dois metros de altura. Quando caí no chão, pensei que as
vértebras da minha coluna tinham entrado umas dentro
das outras. Nunca mais voltei a jogar.
ariel jiménez Qualquer pessoa que leia sua poesia
percebe de imediato que esse cenário quase rural da infân-
cia tem um papel fundamental em sua obra de adulto. Dali
provêm esse assombro, essa estranheza diante da opaci-
dade 3 do mundo que a caracteriza.
fg São Luís era uma cidade pequena naquela época,
e as famílias geralmente viviam em casas. Quase não ha-
via edifícios e apartamentos. Nós morávamos numa des-
3 Quando usamos aqui o conceito de “opacidade do mundo”, refe-
rimo-nos especificamente a essa oposição central na poesia de Ferreira Gul-
lar entre linguagem e realidade à qual a linguagem remete. Uma coisa sem um
nome, sem nenhum conceito com o qual possamos abordá-la, é opaca para
a inteligência humana. Nomeá-la, descrevê-la, determinar suas características,
seus usos possíveis, é fazê-la transparente ao nosso entendimento. A poesia
de Gullar provém, em grande parte, da vontade explícita de tratar dessa opaci-
dade primordial das coisas a fim de descrevê-las em palavras, se não novas, ao
menos rejuvenescidas.
<entra imagem p. 15>
<legenda> 1. Ferreira Gullar (centro) com a mãe e
os irmãos em São Luís do Maranhão, c. 1936.
sas casas tradicionais, com um quintal cheio de galinhas,
galos, ervas e plantas diversas. Ali passei grande parte
do tempo brincando com meus irmãos e irmãs, no meio
de animais e rodeados de um monte de pintinhos. Tudo
isso fazia parte de nosso cotidiano e ficou gravado na mi-
nha memória como uma experiência essencial que res-
surge com frequência na minha poesia, porque faz parte
do que me constitui, do que me ajudou a ser o que sou.
Afinal de contas, somos feitos dessas coisas ínfimas que
vão se acumulando lentamente em nós. Meu poema “O
formigueiro”, por exemplo, que é um dos primeiros poe-
mas neoconcretos que escrevi no fim dos anos 1950, tem
origem nessas experiências infantis no quintal de casa.
Há uma lenda popular no Maranhão que diz que onde há
formigas há ouro enterrado. Um dia, vimos formigas no
quintal e logo nos pusemos a cavar o chão em busca do
ouro. Já tínhamos cavado um buraco enorme quando
caiu um desses fortes aguaceiros tropicais e inundou
tudo. Assim acabou nossa aventura, esquecemos do ouro
e das formigas, mas o episódio ficou guardado para sem-
pre na minha memória.
Houve também acontecimentos importantes na ci-
dade e no país que me marcaram de maneira duradoura,
como a Segunda Guerra Mundial. Eu tinha nove anos
de idade quando a guerra começou e me lembro bem
das manchetes enormes dos jornais, dizendo: “Polônia
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invadida!”, e os jornaleiros gritando: “Guerra! Guerra!”,
e é claro que eu não sabia muito bem o que significava
aquilo, mas a agitação e a preocupação das pessoas nas
ruas, e na minha própria casa, me deixavam muito as-
sustado. Todos falavam disso, em todos os lugares, de
maneira que a guerra passou a fazer parte de nossa vida
cotidiana. Ouvíamos falar dela pelo rádio, nos noticiá-
rios, e meu pai comentava em casa, conosco e com os
amigos dele. Lembro-me de que quando estava ouvindo
as notícias pelo rádio, e entravam aqueles ruídos de es-
tática, meu pai começava a gritar: “São tiros, são tiros!”.
Pode ser que ele imaginasse que o rádio estava transmi-
tindo diretamente da frente de batalha e pensasse que
os ruídos fossem rajadas de metralhadoras. Eu escutava
tudo aterrorizado e, é claro, acreditava em todos os co-
mentários. Como não tinha a menor ideia de onde aquilo
estava acontecendo, se era perto ou longe de São Luís, a
guerra se tornou para mim uma coisa ameaçadora que
podia estar logo ali, um pouco além do horizonte visual
da cidade. Eu tinha medo de que a Gestapo chegasse até
nós, ou que os aviões alemães bombardeassem nossa
casa. Mais tarde, comecei a compreender onde as coisas
se passavam, mas essa primeira impressão me marcou
de maneira indelével.
A situação ficou mais tensa quando submarinos
alemães torpedearam navios brasileiros, o que levou o
31
Brasil a declarar guerra à Alemanha.4 Algumas pessoas de
São Luís tinham morrido naqueles navios afundados, e
esse fato deu origem a um clima de grande desconfiança
entre os moradores da cidade. De toda aquela época tu-
multuada, lembro-me do caso da filha de um negro que
trabalhava no cais do porto. Ela fora uma das vítimas dos
ataques, e, como a Itália era aliada dos alemães, o pai dela,
desesperado, foi até a praça da cidade onde um italiano
vendia jornais e o matou a punhaladas. Situações seme-
lhantes ocorreram com alemães ou seus descendentes,
como os meninos que começaram a ser hostilizados pelos
colegas na escola. Enfim, aquilo tudo foi lamentável.
Por outro lado, para mim pessoalmente, houve uma
consequência mais feliz dos ataques aos navios brasileiros,
porque naquele momento as mercadorias começaram a es-
cassear, e meu pai achou que poderia ganhar muito dinheiro
trazendo-as de outros lugares. Foi assim que ele se tornou
vendedor ambulante. Não foi muito longe – só até Teresina,
mas outros chegaram a viajar até o Rio de Janeiro. A boa
nova foi que meu pai resolveu me levar junto com ele, talvez
4 Em agosto de 1942, após o afundamento de uma série de navios da
marinha mercante brasileira, o governo declarou guerra contra a Alemanha e
seus aliados, dando efeito ao Tratado de Neutralidade que fora assinado em Ha-
vana, em 1940. O tratado estipulava que qualquer ato de agressão contra um país
americano seria considerado uma agressão a todos os países do continente.
32
por ser o caçula entre os filhos homens. O trem saía de ma-
drugada e, na minha imaginação, eu o via como um imenso
dragão metálico que respirava soltando fumaça pelas nari-
nas. Eu era garoto, devia ter uns dez ou doze anos, e o trajeto
de São Luís a Teresina naquele monstro mecânico me pare-
cia fascinante [2].
E como era grande o mundo:
há horas que o trem corria
sem nunca chegar ao fim
de tanto céu tanta terra
de tantos campos e serras
sem contar o Piauí 5
Nós saíamos da cidade e atravessávamos uma região panta-
nosa chamada Campo das Perdizes, com imensos alagados
e milhares de pássaros voando e cantando por todos os la-
dos. E essa visão dos pássaros sobre a água, de manhãzinha,
era deslumbrante, tanto assim que quando ouvi pela pri-
meira vez “O trenzinho do caipira”, das Bachianas brasilei-
ras n. 2, de Heitor Villa-Lobos,6 associei uma coisa à outra.
5 F. Gullar, “Poema sujo”, in Toda poesia, op. cit., pp. 233-91.
6 “O trenzinho do caipira”, de 1930, faz parte da segunda série das Ba-
chianas brasileiras, cujo tema é o movimento ritmado de um trem no interior
do país.
33
Imediatamente me lembrei das viagens que fazia com meu
pai e inclusive tentei escrever uma letra, mas não consegui.
Durante vinte anos fiz várias tentativas, nunca deu certo.
Anos mais tarde, quando estava no exílio em Buenos Aires,
2 Ferreira Gullar aos doze anos, São Luís, 1942.
34
e enquanto escrevia o Poema sujo, que é um extenso poema
no qual evoco minha infância, aconteceu o contrário. Da
primeira vez que ouvi a Bachiana recordei-me das viagens
da minha meninice. Agora, ao evocar no poema as viagens
que fazia com meu pai, lembrei-me da música de Villa-Lo-
bos, e, na hora, a letra que não consegui escrever em vinte
anos de tentativas me surgiu em escassos vinte minutos:
Lá vai o trem com o menino
lá vai a vida a rodar
lá vai ciranda e destino
cidade e noite a girar
lá vai o trem sem destino
pro dia novo encontrar
correndo vai pela terra
vai pela serra
vai pelo mar
cantando pela serra do luar
correndo entre as estrelas a voar
no ar, no ar, no ar.7
Essa letra foi logo gravada e é muito conhecida no Brasil;
de alguma forma ajudou a popularizar a Bachiana. Hoje é
7 Letra de “ O trenzinho do caipira”, escrita por Ferreira Gullar, “Poema
sujo”, in Toda poesia, op. cit., pp. 245-46.
35
uma das mais tocadas, não só por meu texto, obviamente,
mas porque é uma das mais belas, e porque a letra facilita o
acesso do público à música.
Foi assim a minha infância em São Luís. Fora isso, fui
um menino que brincava na rua, vivia livre na cidade. Junto
com outros dois amigos da minha idade fazíamos nossas
travessuras: pescando, preparando armadilhas para pegar
camarões, jogando bilhar, e até coisas proibidas, como rou-
bar cocos na esquina ou as galinhas do quintal dos outros.
Minha alfabetização, aliás, não se realizou numa escola
formal, mas em casa, com professores particulares. Mais
tarde, sim, fui estudar na melhor escola privada da cidade,
o Colégio São Luís Gonzaga. Era um bom aluno, estudioso,
aplicado, mas pouco tempo depois meu pai começou a
passar por dificuldades financeiras e tive que ir para uma
escola pública, a Escola Técnica de Formação Profissional,
que formava alfaiates, sapateiros, marceneiros. Talvez es-
perassem que eu acabasse aprendendo algum desses ofí-
cios, caso não conseguisse me formar numa profissão que
exigisse estudos universitários. Pois foi lá na escola técnica
que, por acaso, descobri a poesia e a ela me dediquei. Eu
devia ter uns treze anos de idade, e um dia a professora nos
passou, como dever de casa, uma redação sobre o Dia do
Trabalho. Escrevi um texto a respeito do fato peculiar de
que justamente no Dia do Trabalho as pessoas não traba-
lhavam. A professora gostou da redação; achou-a tão inte-
36
ressante e bem escrita que a leu em público na frente dos
meus colegas de classe. Apesar disso, ela não me deu dez,
a nota máxima, porque eu havia cometido alguns erros de
ortografia. A partir desse dia, eu disse a mim mesmo que
talvez pudesse me tornar um escritor, e para isso precisava
aprender as regras corretas da língua e da gramática.
Tal como o efeito borboleta na teoria do caos, um pequeno gesto – o
comentário simpático e encorajador da professora – definiu uma
vida inteira e uma obra, que hoje é imensa. Sem esse gesto, o me-
nino Ferreira Gullar poderia ter se orientado ou para a pintura, ou,
quem sabe, para o teatro. O fato é que dentre as múltiplas possibili-
dades que se ofereciam para um jovem talentoso, somente uma, na-
quele exato momento, respondeu às suas necessidades mais íntimas.
fg Eu não sabia o que fazer da vida, vinha tendo mui-
tos problemas na escola onde estudava, de maneira que,
quando vi que a professora tinha gostado da minha reda-
ção, imaginei que eu talvez desse para aquilo, mas como sa-
ber? Nessa idade, um menino tem inúmeras possibilidades
abertas; pode se tornar muitas coisas, e tem que inventar a
si mesmo. É claro que, para ser escritor, era preciso saber
gramática; então passei dois anos lendo livros de gramática,
entre 1943 e 1945. Fiz isso sozinho, em casa, porque nesse
mesmo período deixei a escola, e minha família não podia
fazer nada para me ajudar. Pois bem, uma dessas gramáticas,
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a Gramática expositiva de Eduardo Carlos Pereira, continha
uma antologia de poetas portugueses e brasileiros. Havia
poemas de escritores portugueses como Luís de Camões e
Bocage, e também de brasileiros como Gonçalves Dias, Cas-
tro Alves e Olavo Bilac. Foi ali, naquele livro, que descobri a
poesia. Lembro-me perfeitamente deles, primeiro comecei
a decorá-los, e depois passei a ler a poesia de Gonçalves Dias,
os pensamentos de Bocage e de Camões. Enfim, comecei a
me interessar por esse tipo de produção literária. Só estra-
nhava que todos esses poetas estivessem mortos. A poesia
me parecia ser uma profissão de defuntos, mas mesmo as-
sim eu queria ser poeta. Finalmente descobri que os poetas
existiam e que tinha um bem perto da minha casa. Era o pai
de Iracema, uma amiga de minha irmã.
Esse senhor, de sandálias e camiseta, não correspon-
dia em nada à imagem idealizada que eu havia feito dos poe-
tas, mas era membro da Academia Maranhense de Letras e,
quando soube que eu também queria ser poeta, emprestou-
-me um livro, Tratado de versificação. Depois, me levou ao
centro da cidade, à praça João Lisboa, onde havia muitos
outros poetas, coisa difícil de imaginar para mim, que vivia
cercado de galinhas e galos no quintal de casa, e eu não fazia
ideia que houvesse um mundo maior. Lá no centro da cidade,
descobri poetas vivos e compreendi que existia uma vida li-
terária, com jovens como eu que se dedicavam àquele traba-
lho. Assim, comecei a conviver com eles, a trocar ideias com
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os jovens e também com os escritores mais velhos – poetas
como Manuel Sobrinho, que foi quem me levou até lá, e Cor-
rêa de Araujo, um poeta muito engraçado, muito gozador [3].
Em suma, minha vida literária começou com eles. A partir
desse momento, tornei-me um verdadeiro expert no verso
hendecassílabo.
aj Imagino que para uma pessoa de personalidade in-
quieta como a sua, a escola e o regime de aulas devem ter sido
como uma camisa de força.
fg Na verdade, a maior dificuldade que tive no colé-
gio foram as oficinas de ferreiro, com aqueles martelos enor-
mes e pesados que eu não conseguia levantar, e os cursos de
educação física. Nas oficinas me mandavam martelar o ferro
incandescente sobre as bigornas, e a verdade é que eu não
tinha força para levantar aquelas ferramentas. Por isso pedi
que me transferissem para outras oficinas, como a de sapa-
teiro, onde o cheiro dos materiais, a cola, as tintas, a cera e
o couro, me agradava. Sempre tive uma relação muito forte
com os cheiros que me cercavam: das flores, das frutas, da
terra. Mas o que realmente me fez abandonar a Escola Téc-
nica foram os cursos de educação física e seu professor, uma
pessoa de pouquíssima sensibilidade e que não entendia o
que estava fazendo. Pedir a um rapazote como eu, de escas-
sos trinta quilos, que carregasse um cara de oitenta quilos
era um absurdo completo. Eu reclamava, porque não podia
fazer aquilo, mas ele não ouvia e me ignorava totalmente.
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3 Ferreira Gullar (esq.), Corrêa de Araujo (centro) e Lago Burnett, São
Luís, c. 1950.
Por isso deixei de ir às aulas de educação física, e é claro que
o professor me deu zero. O mais absurdo de toda a situação
é que eu havia tirado boas notas em português, matemática,
física e também nas outras disciplinas, mas tudo era tão iló-
gico nesse colégio que, apesar de minhas notas altas, e sem
me chamarem para perguntar o que tinha acontecido, me
reprovaram por causa daquele zero. Foi aí que decidi aban-
donar a escola. Meu pai não tinha recursos para pagar outra,
e eu simplesmente não queria – não podia – voltar para a Es-
cola Técnica. Desse momento em diante, aos treze anos, me
tornei autodidata, e foi nos livros, em leituras solitárias, que
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encontrei as respostas exigidas pela minha curiosidade in-
telectual. Nunca mais voltei à escola, nem fui à universidade.
aj Não deixa de ser admirável a disciplina com que
você organizou seus estudos. É possível aprender sozinho,
mas chegar a uma formação tão coerente e profunda em qual-
quer área, sem nenhum tipo de orientação intelectual, é extre-
mamente complexo, quase improvável.
fg Não organizei nada, nunca o fiz. Minha vida toda
é um improviso. Simplesmente me interessava por um
tema e começava a estudá-lo. Literatura, poesia e filosofia
me atraíam. Passei muito tempo estudando na biblioteca,
pegando livros emprestados e pesquisando os problemas
que mais me intrigavam. Não seguia um método preciso,
nem uma orientação específica. É bem verdade que, no
início, só me interessava pela literatura do Maranhão. Na
biblioteca de São Luís, havia uma estante dedicada à lite-
ratura do Maranhão, e eu só lia os autores cujos livros es-
tavam nessa estante. Logo ouvi falar de outros escritores,
é claro, e fui ampliando minha gama de interesses. Essa
decisão inicial foi, sem dúvida, de grande ajuda, porque eu
não tinha orientação alguma, e a verdade é que me colocar
sozinho ante o mundo da literatura poderia ter se tornado
uma situação incontrolável e frustrante. De modo que o
fato de me limitar a ler os escritores da minha cidade e
do meu estado me deu disciplina e ajudou a orientar-me
nesse universo.
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Entre os primeiros livros que me lembro de ter lido,
e que não estava nessa estante, havia um de filosofia. Nem
sequer me lembro do nome do autor, talvez um italiano. Era
um livro velho, com as páginas cheias de mofo. Ali nasceu
meu interesse pela filosofia e com ele aprendi os elemen-
tos essenciais do léxico e desse tipo de pensamento lógico.
Logo depois, comprei outro livro em uma dessas livrarias
que vendem livros usados. O título era Lições de filosofia, e
me pus a ler sem nenhum método ou sistematicidade. Mais
tarde, por volta de 1950, interessei-me pela arte e pela poesia
modernas e, pouco a pouco, fui alargando meu universo in-
telectual. Recordo-me especialmente de um livro enorme de
Maurice Denis, que me motivou, junto com o estudo da poe-
sia francesa, a estudar esse idioma. Eu queria ler os livros de
arte que estavam na biblioteca, mas a maioria era em francês,
por isso resolvi estudar o idioma e pouco a pouco consegui
lê-los. O mais importante é querer aprender – o resto é uma
questão de tempo.
aj Certamente, mas não deixa de ser verdade que
aprender qualquer idioma, e aprendê-lo a ponto de ser capaz
de ler algo tão complexo quanto a poesia, exige uma disci-
plina surpreendente.
fg Talvez, mas eu o fiz por necessidade, porque de-
sejava ler esses livros. Comecei pelos livros sobre pintura e
escultura e em seguida passei a ler poesia, que me cativou
definitiva e completamente. Entre outros textos, encontrei
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uma antologia de poesia francesa, bilíngue, em português
e francês, o que me ajudou consideravelmente. Nesse livro
descobri Paul Valéry, Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e ou-
tros. Aos poucos, fui me familiarizando com os escritores
que são, digamos assim, a fonte histórica da poesia moderna,
e dessa maneira meu conhecimento sobre a pintura e a poe-
sia foi aos poucos se desenvolvendo.
aj No meio desse processo pessoal de educação, você
não só lia e estudava, mas escrevia suas primeiras tentativas
na poesia.
fg Em 1949 publiquei meu primeiro livro de poe-
mas, Um pouco acima do chão, que considero um livro
ainda imaturo, embora seja evidente que minhas preo-
cupações pessoais, minhas indagações mais íntimas, já
estavam ali presentes. Eu tinha dezenove anos, era muito
jovem, e ainda não conhecia a poesia moderna brasileira:
Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes.
Quando os descobri, em 1950, foi um tremendo choque.
Eu vivia imerso na poesia parnasiana, uma poesia rimada
e muito construída. Meio por brincadeira, meio a sério,
sempre disse que nesse período da minha vida eu falava
por hendecassílabos. E é verdade que, por momentos, uma
frase me saía rimada como versos escritos pelos poetas
parnasianos, que eu lia sem parar. Mas, quando descobri
Drummond e a poesia moderna, deparei-me com versos
que pareciam completamente absurdos e até feios. Havia
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um poema que dizia isto: “Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão. No prato, a sopa esfria, cheia de
escamas”.8 Aquilo me parecia de muito mau gosto... Sopa?
A poesia não pode falar de sopa, eu me dizia. Foi um cho-
que, porque minha visão da poesia era a de um universo
idealizado completamente estranho à vida cotidiana. Poe-
sia era outra coisa. Transformar em poesia a realidade ba-
nal e cotidiana, isso é ser moderno, e aprendi isso quando
descobri Drummond.
Não serei o poeta de um mundo caduco
também não cantarei o mundo futuro.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens
presentes,
a vida presente.9
Aquilo me surpreendeu desagradavelmente, sem sombra de
dúvida, mas teve um impacto tão forte sobre mim que tive
vontade de entender, e por isso comecei a ler esses poetas e
a fazer meus próprios exercícios literários. Imediatamente
compreendi que a poesia que eu vinha fazendo era bonita,
8 Carlos Drummond de Andrade, “Sentimental”, in Alguma poesia. Rio
de Janeiro: Record, 2010, p. 45.
9 C. Drummond de Andrade, “Mãos dadas”, in Antologia poética. Rio de
Janeiro: Record, 2009, p. 158.
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mas pertencia ao passado, aos poetas mortos. Aí comecei a
fazer uma poesia de natureza diferente, mais atual. Não imitei
Drummond, é claro, mas comecei a escrever por minha conta
algo distinto. Tanto assim que no mesmo ano, 1950, pouco de-
pois de conhecer a poesia moderna, ganhei o Prêmio Nacional
de Poesia, concedido pelo Jornal de Letras, que era a principal
publicação literária da época no Rio de Janeiro, de circulação
nacional. Esse prêmio me estimulou muitíssimo e foi um dos
fatores fundamentais para minha decisão de mudar para o Rio.
aj O poema com que você ganhou o prêmio contém
um detalhe interessante. Corresponde, de fato, a uma anedota
cotidiana e banal, mas não uma anedota qualquer; é sobre uma
coisa que aconteceu na sua infância, no quintal de sua casa.
fg Nesse caso específico, não foi assim. O primeiro
poema não é o mesmo que foi publicado na minha antologia,
é uma versão anterior que nunca saiu em livro. A primeira
versão foi inspirada por um anúncio de sal de frutas Eno que
estava espalhado pela cidade. O anúncio tinha a silhueta ne-
gra de um galo cantando com o bico aberto e um sol com seus
raios. O outro poema, “Galo galo”, que incluí na antologia, é
que fala de um animal de minha infância, esse que conheci no
quintal da minha casa, mas não tem nada a ver com o primeiro.
aj Contudo, o fato de ter usado um galo saído de uma
imagem publicitária como ponto de partida me parece ser
uma ideia mais radicalmente moderna.
fg Não diria que é mais radical. O primeiro tem uma
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forma bem mais apurada, mas o outro é muito mais pro-
fundo. Vai mais fundo na experiência de vida. É inclusive
mais complexo, porque o galo passeia cheio de garbo, como
se fosse um guerreiro medieval. Mas de quem ele se de-
fende? Contra quem esse galo guerreiro está lutando? Essas
perguntas, que são centrais, não surgem no outro poema,
que é mais descritivo e epidérmico. Além disso, há uma
identificação tácita entre o poeta – que sou eu – e o tema do
poema, que o torna muito mais denso.
De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.
Mede os passos. Para.
Inclina a cabeça, coroada
dentro do silêncio.
– que faço entre coisas?
– de que me defendo?
Anda
No saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.10
10 F. Gullar, “Galo galo”, in Toda poesia, op. cit., p. 11.
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