celso antunes - marinheiros e professores
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CELSO ANTUNES
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CELSO ANTUNES
Marinheiros e Professores
Crnicas simples sobre escola,
ensino, disciplina, inteligncias
emocionais, criatividade,
construtivismo, inteligncias
mltiplas, professores, alunos...
Editora Vozes
Petrpolis
2001
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MARINHEIROS E PROFESSORES
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1998 Editora Vozes Ltda. Rua Frei Lus, 100 25689-900 Petrpolis, RJ Internet:
http://www.vozes.com.br Brasil
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida ou
transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrnico ou mecnico,
incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de
dados sem permisso escrita da Editora.
Primeira reviso: Erica Vitiello de Barros e Elizabeth Victorino Editorao e org.
literria: Cssia A.S. Magalhes Kirchner e Renato Kirchner
ISBN 85.326.1987-8
Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. - Rua Frei Lus, 100.
Petrpolis - RJ - Brasil - CEP 25689-900 - Caixa Postal 90023
Tel.: (0xx24) 237-51 12 - Fax: (0xx24) 231-4676.
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Busquei, para estas pequenas crnicas, personagens
que associassem a auto-estima com a alegria de viver,a ousadia com a coragem para desafiar seu preo e a
criatividade iluminada pela ternura de quem sabe se
fazer simples.
Dedico este livro a Wanda, Luli e Ceri.Dedico-o, tambm, a Anna Lcia e Andra, que
dividem comigo a sustentao dessa barra...
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Metfora: emprego de uma palavra em sentidofigurado, por efeito de comparao.
(Mini-dicionrio Luft, Editoras tica e Scipione)
Todas as histrias em que se inspiram estas crnicasso reais, mas com o esprito das metforas.
Possuem o sentido figurado e pretendem, portanto,dizer muito mais que na realidade dizem...
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Sumrio
Nada mais que um ttulo...
1 . Ainda bem que no era um certo professor
2. Mas eu adoro extrair vesculas...
3. Seu Walter
4. Por que no usar somente o bisturi?
5. Dentro dela mora um anjo
6. Palmas ao fracasso
7. A cor da felicidade
8. Eu o amo, querido...
9. Um exterminador do futuro
10. Ora... isso so detalhes
11 . Um ato de amor
12. Uma droga de dilogo
13. Ateno ateno
14. Aprendi a lio... j me odeio
15. Adriana banana
16. Festival gastronmico
17. Ah... e se no houvesse um incndio?
18. A vida sombra que passa...
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19. O mercado dos sonhos
20. A inveno definitiva
21. culpa do paciente. claro
22. Dona Geralda
23. A famlia pobre de Carolina
24. A Rainha
25. A fbula da professora e as uvas
26. Seu Janurio27. Entre o amor e a hipocrisia
28. Antes que o absurdo vire rotina... (I)
29. Antes que o absurdo vire rotina... (II)
30. Uma volta ao passado
31. bobagem deixar para amanh...
32. O Luizinho da segunda fila
33. Faz tua lio, Paulinho
34. Renato e Renatinho
35. Jefferson da Silva
36. O mau colesterol
37. O segredo de Mariana
38. A estupidez e o pecado
39. O av de Camila (I)
40. As velhas tartarugas do Atol
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41. O erro e a pessoa que errou
42. Alexandre e Vladimir
43. Mirian Nonato nasceu em Marab...
44. A histria verdica de Pedro S...
45. A noite do ano mil
46. O av de Camila (II)
47. Professor Tonico
48. O av de Camila (III)
49. O ratinho de Lobato e o construtivismo de Diana
50. Um professor, uma mulher, uma flor
51. Ainda existem estrelas no cu
52. Terezinha de Jesus
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Nada mais que um ttulo...
Por que esse ttulo? Por que no algo como Crnicas escondidas, ou ainda mesmo
Crnicas sobre escolas e ensino? Afinal, no se trata de um punhado de reflexes
sobre assuntos ligados ao dia-a-dia da aprendizagem e da educao?
No. No poderia ser qualquer um dos dois ttulos sugeridos. Em primeiro lugar,
porque poderia parecer plgio ao extraordinrio Estrias de quem gosta de ensinardo Rubem Alves, e existe a decente modstia deste professor em no tentar se
igualar quele mestre, e, tambm, porque um outro ttulo bateu de frente na idia,
no mesmo instante em que pensei em escrever estas linhas. E ttulo de livro assim
mais ou menos como nome de filho. Quando surge como idia fixa, no importam
os riscos futuros de sua execuo.
O ttulo que pensei foi Marinheiros e professores. Pensei nesse ttulo inspirado em
expresso oposta a dois gigantes da inteligncia brasileira. Um deles, Paulinho da
Viola, que menciona velhos marinheiros como os nicos que, em dias de nevoeiro,
sabem levar seu barco devagar. Nada melhor do que os velhos marinheiros de
Paulinho, para lembrar a figura incomensurvel do professor de hoje, levando seubarco em to tempestuoso oceano de mudanas e de contradies, que fluem desta
to difcil e imprescindvel profisso. Pensei tambm na oposio ao ttulo da genial
obra de Jorge Amado, profundo conhecedor dos segredos, das emoes e da cultura
das gentes deste nosso Brasil. Apoiado assim nesse smbolo da inteligncia musical
e neste outro mago fantstico da inteligncia lingstica, achei modestamente que
meu Marinheiros e professores no ofenderia a comparao com as velhas e
incrveis personagens de Paulinho e Jorge.
Creio que a mais importante profisso de todos os tempos, ainda que mal
remunerada e extremamente sacrificada, foi a de marinheiro nos sculos XV e XVI.Nada deveria igualar a alegria e a emoo de ser o primeiro, da proa, a avistar um
mundo novinho em folha que estava sendo descoberto. Ser marinheiro nessa poca
valia mais, muito mais, do que cortejar a nobreza ou honrar a poltica.
O professor o novo marinheiro dos tempos que chegam. No momento em que se
descobrem as verdades das inteligncias mltiplas e se configura o novo papel da
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educao, centrada em um aluno a ser descoberto em sua extrema singularidade,
emerge como o mais importante profissional do sculo, todos os que tm o extremo
privilgio de fazer surgir, deste novo aluno, um novo ser humano. Ser professor,
hoje, ser vtima de uma profisso difcil e mal compreendida, contudo com aextrema nobreza e dignidade daqueles que tm o privilgio nico de anunciar os
novos tempos.
Estas pequenas crnicas falam de erros e acertos, paixo e desalento dos novos
marinheiros, construtores de um sculo que ter o formato que a educao lhe dar.
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Ainda bem que no era um certo professor
Sentindo que as articulaes dos dedos incomodavam e que o cotovelo, alm das
dores normais, comuns a todo professor, queimava ao menor toque, procurou omdico.
- Ah, cido rico. No tenha dvidas. Mas, em todo caso, vamos fazer um exame
de sangue. Feito o exame, no deu outra. O ndice de cido rico, que deveria
situar-se entre 8 a 10 mg, estava beirando os 11 mg. O mdico foi drstico: regime e
comeando j.
Privou-o do torresminho assanhado, do churrasquinho de gato do final da tarde e,
quem diria, at mesmo dos gros de todo tipo. Agentou o regime por dois dias e foi
o bastante. Ao final do terceiro, acostumou-se dor e voltou saudoso aos pecadinhosda carne e dos gros.
Dias depois, encontrando o mdico, descobriu o que era ser drstico. Este, alm do
sonoro pito, proibiu-lhe o que antes j havia proibido e muitas outras coisas mais.
Para assust-lo, solicitou novo exame de sangue e, desta vez, percebeu que seu
ndice j ultrapassara os 12 mg. Muito preocupado, enfrentou o regime; desta vez,
por cinco dias. Mas, afinal, o sbado chegou e perder a feijoada do Marco, nem
morto. Aps a feijoada, acreditou que o regime tinha ido mesmo por gua abaixo e
esqueceu-se das recomendaes mdicas.
A a crise chegou. A gota, dura e perversa, inchou-lhe o joanete a ponto de noagentar nem mesmo chinelo. At o toque do lenol doa e, semi-entrevado, outro
recurso no achou seno que, envergonhado, procurar o mdico. Desta vez, o regime
e mais os remdios foram radicais. Assustado com a dor, cuidou de seguir todas as
prescries e, quinze dias depois, novo exame de sangue trouxe-lhe o conforto e os
parabns do mdico.
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- Agora sim. Conseguimos baixar o ndice e voc, com juzo, remdio e regime,chegou aos 8 mg. Voc est curado. Esquea a gota e goze a vida...
Ainda bem que quem o atendeu foi um mdico. Caso fosse um professor, certamenteestaria submetido a normas regimentais ou portarias oficiais, obrigando-o a refletirque a aprovao depende sempre de uma mdia; e como seu primeiro ndice,somado ao segundo e ao terceiro impunha um resultado ponderado, este certamenteindicaria o cumprimento da recuperao, mesmo estando literalmente curado. Onze,mais doze, mais oito indica a mdia 10,3 mg. cido rico demais e a recuperaoinevitvel. A cura detalhe.
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Mas eu adoro extrair vesculas...
O Diretor chama ao seu gabinete o jovem cirurgio, que h menos de duas semanas
est trabalhando no hospital.
- Bom-dia, doutor Marcelo. Tudo bem com o senhor? Como tem sido sua
experincia em nosso hospital? Tem sido bem atendido? Existe algo de que gostaria
de reclamar?
- No, doutor Carlos Alberto. Estou gostando muito desse meu novo emprego. Acho
todos aqui extremamente competentes, os suprimentos em ordem, as salas de
cirurgia excelentes e todas as enfermeiras muito atenciosas. Na verdade, estou
adorando...
- Fico feliz em saber. Este hospital minha vida e quero que todos sintam um
imenso prazer em exercer sua misso. Mas chamei-o aqui por outro motivo. Estive
analisando o pronturio de suas cirurgias e fiquei muito preocupado. Em dez dias, o
senhor fez quinze extraes de vesculas? Ser que no houve um exagero? Em
minha atividade como mdico, por dezenas de hospitais que passei, jamais percebi
to elevado ndice de cirurgias especficas e, ainda mais, feitas por um nico
mdico. Por favor, doutor Marcelo, o que est havendo?
- No est havendo nada de anormal. Adoro extrair vesculas. Foi minha
especialidade na rea mdica, fiz ps-graduao sobre esse tema e estou finalizando
minha tese. Leio tudo sobre o assunto. Tenho at um site na Internet, estouplugado no assunto. Sem extrair vesculas, minha vida profissional no teria o
menor sentido...
-Mas, diga-me uma coisa, doutor, e seus pacientes? Estavam com problemas na
vescula? Era necessrio extra-las?
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- Ora, doutor, sua pergunta irrelevante. Sei l se estavam ou no com problemas na
vescula. Isso um detalhe clnico, o que importa que fiz lindas cirurgias e isso s
pode engrandecer meu currculo e, claro, seu hospital. E agora, se o senhor me
permite, estou correndo para a cirurgia. Chegou uma nova paciente e com umavescula novinha em folha...
No poucas vezes, isso tambm acontece com alguns professores.
Ao invs de empenharem-se em ensinar o aluno a aprender, a construir
conhecimentos a partir de informaes presentes em seu cotidiano, apegam-se a um
superado conteudismo e passam a ensinar o que gostam e no o que
imprescindvel.
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Seu Walter
A professora Mrcia, responsvel pelas aulas de Redao das quintas e sextas sries,
tinha mesmo idias geniais. Os temas que escolhia permitiam profundos mergulhos
na alma dos alunos e as redaes, alm de refletir o conhecimento de suas tcnicas, a
riqueza do vocabulrio e a estrutura da lngua, abriam espao para que cada um
passasse a limpo suas alegrias, frustraes, mgoas, ansiedades, inseguranas e,
principalmente, fantasias. E quantas fantasias...
Desta vez, entretanto, o tema indicado parecia nada ter de original. Pedia aos alunos,
apenas, que descrevessem suas opes para A pessoa mais importante da minha
escola. Com certa expectativa, at mesmo porque o tema passado em aula no
abrigava a possibilidade recproca de consultas, ficou aguardando quem poderia
vencer o pleito. Com singela vaidade, pensou em si mesma, mas, depressa, afastou aidia. Deveria ser o Mrcio, professor de Histria, com seu jeito amigo, seu sorriso
simptico e a comovente ternura com que derretia os ansiosos coraes das meninas.
No seria, por acaso, o Srgio? Professor de Matemtica que alternava do mau ao
bom humor com freqncia, mas que amava os nmeros muito mais que a si mesmo.
E se fosse a professora Mirian, diretora e dona da escola e que, muito estimada pelos
pais, sabia fazer com sutil esperteza sua autopromoo?
Com sincera curiosidade, aguardou a resposta. Viu no jogo do contente da sua
vida essa busca, at mesmo como pretexto para tornar mais doce o fardo da
correo. As opinies dos alunos, em sua segura maioria, surpreendeu-a porm. Aescolha de trs em cada cinco alunos recaiu sobre a figura do seu Walter:
responsvel pelos dirios de classe, giz, apagador, retroprojetores, telas, mapas,
teles e um mundo mais; e ainda improvisado provedor de aventais, lanches
esquecidos, caixinhas de giz abandonadas, cadernos perdidos, romances secretos.
Sem acumular as informaes tcnicas dos mestres que por ele passam agitados,
sem o domnio das novidades que a crianada tem na ponta da lngua, Seu Walter
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acumula a pacincia da vida, a serenidade dos tempos, a sabedoria do sofrimento.
Felizes so todos quantos podem acumular o privilgio de perceb-lo.
Por alguns minutos ficou surpresa. Seu Walter? Quem diria? Pequeno, lacnico,simples, quase nada na viso utpica dos que buscam heris; pessoa importante de
verdade na sensibilidade pura de crianas, que descobrem que pessoas
imprescindveis no so as que surgem em momentos mgicos, mas a figura
constante, humilde, segura, serena, que garante a certeza de que o essencial no
precisa de qualquer artificialismo para ser descoberto.
Seu Walter era apenas um tijolo da monumental construo que o ensino; mas
so tijolos pequenos as peas imprescindveis que sustentam as catedrais do saber.
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Por que no usar somente o bisturi?
Acidente na madrugada. Saindo, nem to sbrio assim, da festa regada a usque e
champanha, o garoto sentiu-se em plena Frmula Indi e voou com o carro novinhoem folha com que o pai o presenteara por quase ter ingressado na Faculdade. Como
o poste da esquina no havia sido convidado para o circuito oval, a batida, de frente,
foi inevitvel e, embora sem grande gravidade, era necessrio buscar um mdico o
mais depressa possvel. Algum lembrou da mdica e, minutos depois, acordaram a
doutora Marlia, recm-sada da faculdade. Prontamente disposta a atender esse
caso, a doutora respondeu em um instante:
- Esperem um pouquinho, vou apenas vestir um moleton, passar o batom e j estarei
com vocs para ver o que possvel fazer. No mexam no paciente at minha
chegada e, rpido, acionem os bombeiros.
Cumpriu a palavra. Segundos depois, de moleton mal vestido, mas boquinha
pintada, l estava a doutora Marlia, pronta para atender um de seus primeiros casos.
Um dos implorantes estranhou:
- A doutora no trouxe sua maleta! No melhor ir apanh-la? O rapaz no est em
estado muito grave e um minuto a mais ou a menos parece no importar...
- Maleta? Que bobagem! Essa histria de maleta de mdico j era. Hoje eu uso
apenas um instrumento. Vamos l, que meu bisturi j est no bolso...
No caminho ainda tentaram argumentar. E se fosse necessrio outro instrumento
cirrgico? Uma pina, quem sabe... ou ainda se o caso exigisse uma sutura? Ser que
somente um bisturi poderia resolver todas as exigncias? Ser que outros
instrumentos, neste caso, no resolveriam melhor que o bisturi?
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Mas nada convencia a jovem doutora. Essa histria de conhecer outros recursos e
us-los conforme o caso era pura bobagem. Sabia usar somente o bisturi e, fosse
qual fosse o caso, haveria de us-lo. Desnecessrio dizer que o problema do
acidentado exigia tudo, menos um bisturi. A sorte foi que a equipe paramdicachegara junto e, com instrumentos certos para a situao, puderam salvar o garoto,
levando-o, com srias escoriaes, a um pronto-socorro.
Isso tambm acontece com alguns professores.
Passaram a vida escolar assistindo apenas aulas expositivas e imaginam que a nica
forma de construir conhecimentos atravs dessa tcnica. Esquecem que a aula
expositiva, como o bisturi, um excelente instrumento, mas que estudo dirigido,
jogos operatrios, tcnicas de sensibilizao e outros recursos, so instrumentos que
completam a construo do conhecimento e o treinamento das habilidades, que
apenas a aula expositiva nem sempre pode fazer.
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Dentro dela mora um anjo
ngela professora de Cincias. Poderia ser, tambm, de Ingls, Geografia,Matemtica, no importa.
ngela est arrasada. Preocupa-a seu filho, Rodrigo, com 14 anos, precisando de umpai sempre ausente e da me, nunca com tempo. Desespera-se em pensar que podeestar usando drogas e sente-se tristemente incapaz de conciliar seu carinhoinsubstituvel com o sustento do lar imprescindvel.
Alm de Rodrigo, preocupa-a sua me diabtica, desiludida e cansada e sua teimosiaem no seguir as prescries mdicas. Precisaria de mais tempo para a me. Deus docu, como precisaria! Seu casamento, em frangalhos, j apontava para pesada
escurido, quando teve ainda aquele infeliz acidente em que bateu o carro, tornandoo dinheiro mais curto e o trabalho muito mais difcil.
ngela descobre-se a ltima entre as mulheres. Sente-se horrvel.
Quando entra em aula, porm, alguma coisa acontece. Mal acaba a chamada esente-se envolvida por uma energia estranha, por um toque mgico que a desprendede todos os seus pequenos dramas. Envolve-se com seu ensino, fala, canta, ri,brinca, interage com os alunos e constri em cada um, dentro do universo mgico desua individualidade, a aprendizagem do que ensina.
Suas aulas so soltas, alegres, interessantes e a disciplina flui pela gostosa esperacom que cada classe a recebe. Ningum fica ausente de sua fala, ningum est asalvo de seu olhar carinhoso, meigo, atento. agitada, buliosa, vibrante. Suasaulas so assunto de toda a escola e suas tiradas, o papo inegvel de todo recreio. impossvel no ador-la!
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Quando, vez por outra, precisa faltar, a escola sente, os alunos reclamam, o diatorna-se murcho. J ouviu dizer que alguns, quando acordam, at murmuram:
- Que legal, hoje tem ngela! Se na sala de aula houvesse um espelho, ngelagostaria de se ver.
ngela a mais linda das mulheres.
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Palmas ao fracasso
Andra nunca soube dizer qual filho amava mais.Luciano, agora com quinze anos, um excelente aluno, timo filho e magnfico atleta.
Sem prejuzo de seu desempenho nas disciplinas curriculares, sempre foi vidradoem esportes de maneira geral e no vlei, de forma especfica. Por uma partida, pagaqualquer preo e, seja qual for a renncia que a mesma imponha, sabe cumpri-Iacom extrema dignidade e sem jamais reclamar.
Alexandre, com doze anos, deficiente fsico. Arguto, inteligente, extremamentecarinhoso e com empatia que chega s raias da paixo, segue sua vida limitada pela
cadeira de rodas. Da cintura para cima perfeito e, mesmo com suas deficinciasmotoras, consegue ser um verdadeiro dolo de seus colegas, sempre chamado paraqualquer festa e envolvido em todas as participaes e bagunas promovidas por suaturma.
Andra est vivendo com os filhos uma fase de euforia. Luciano, aps muita luta, foiconvocado para representar seu pas nos jogos internacionais de vlei que serealizar, no ms de julho, em Helsinki. Alexandre, aps exaustivos exerccios nasbarras paralelas, conseguiu, afinal, caminhar dois metros sem o uso da cadeira. ,ainda, muito pouco, mas com persistncia e muitas horas de fisioterapia conseguir,quem sabe um dia, manter-se em p por alguns minutos.
Qual dos dois sucessos empolga mais Andra?
Impossvel dizer. No existe como comparar a seleo brasileira de um e os doismetros vencidos pelo outro. O que a torna eufrica com o desempenho de seus doisheris so, essencialmente, seus progressos e no seus resultados. Luciano Luciano
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e Alexandre Alexandre e, jamais, o limite de um servir de parmetro para o limite
do outro.
Nem todos os professores pensam assim...
Avaliando seus alunos pelos rgidos limites de uma nota, descobrem apenas o ponto
mximo a que podem chegar e no a dimenso do progresso de cada um durante o
ano letivo. Se um de seus alunos cresceu muito durante o ano e a bagagem de
conceitos que domina o dobro dos que dominava h um ano, isso de nada vale
diante do parmetro absoluto e tirano de uma nota que define o limite da reprovao.
Para professores assim, apenas Lucianos interessam...
-Progrediu muito, mas no pode passar. No chegou mdia cinco. Parabns para
um outro colega que, durante o ano, apenas regrediu, mas cujo resultado ultrapassou
o absurdo nmero-limite.
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A cor da felicidade
Ana Cludia freqentava aulas no segundo colegial. Freqentava a palavra
correta, uma vez que seu interesse era mnimo e sua participao, a mais apagadapossvel. Ana Cludia era a mais clara expresso do desnimo, da apatia e chatice.
Como seu estado de humor gelava qualquer assunto e como sua constante irritao
afastava todo pretendente, Ana Cludia passava pelos dias sem entusiasmo, sem
amigos, sem ser percebida. Sua auto-estima s no era mais baixa que sua apatia e
seu desinteresse pelos colegas, funcionrios, professores. Ana Cludia era uma
sombra.
Um dia, na hora do intervalo, conheceu Caetano. Aluno novo, um ano mais velho.
Pouco sabia de sua fama e, buscando romper a insegurana de mais amplosrelacionamentos, procurou aquela garota de ar enfastiado para conversar. Tempos
depois, sem muito jeito, comearam a namorar.
Dois meses depois, Ana Cludia j era outra pessoa. Risonha, animada, falante,
sabia ouvir com simpatia e sugerir com ternura. Suas amizades cresceram e, pouco a
pouco, seus professores descobriram uma nova pessoa na aluna conhecida. Seu
interesse pelas aulas cresceu, as notas saltaram, mas, mais ainda que o progresso
intelectual, acendeu-se sua estrela e um brilho de amanhecer acompanhava, sempre,
sua expresso.
Em verdade, Caetano pouco ensinou namorada. Mostrou-lhe apenas que era umacriatura nica, singular, incomparvel. Dissera-lhe, certa vez, que as linhas de seu
polegar continham mais individualidade que todas as constelaes do espao. Ao
perceber-se nica, Ana Cludia descobriu-se mortal. Sentiu que cada segundo de sua
vida abrigava o segredo eterno de jamais repetir-se e, por ser assim, precisaria ser
vivido com intensidade, degustado com inefvel prazer.
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Com Caetano, Ana Cludia descobriu-se. Ao descobrir-se, identificou o outro,
integrou-se ao mundo, descobriu a cor da felicidade e aprendeu a navegar ao sabor
do tempo.
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Eu o amo, querido...
- Eu o amo querido... sempre o amarei.
- Amo por muitas coisas e, entre tantas, no sei dizer qual a mais importante. Amo
sua Ferrari vermelha com capota conversvel, amo seus ternos de cortes perfeitos,
feitos pelo Armani especialmente para voc, amo o agreste perfume exclusivo que o
Hugo Boss desenvolveu para a pessoa mais querida do mundo, amo seu castelo em
Campos do Jordo e, quer saber, amo at mesmo seus motoristas simpticos, seus
mordomos afveis, seus cozinheiros filipinos. Amo seu apartamento de cobertura em
Higienpolis, tanto quanto o amo pela manso do Guaruj...
- Eu o amo, querido... sempre o amarei.
- Amo-o por essa maneira simptica com que voc d gorjetas de cinqenta reais a
todo manobrista, adoro essa ousadia e coragem com que voc pilota seu avio de
recreio e amei-o, mais ainda, quando voc me falou de sua conta em bancos suos.
Amo seu jeito descontrado de pilotar o Jet Sky, sua adorvel simpatia de levar-me
apenas a restaurantes de primeirssima e, at mesmo, amo o provincianismo simples
de sua fazenda em Araraquara. Enfim, meu amor, no h nada que eu no ame em
voc.
- Mas, espera a. No ouvi voc falar de amor por meus sentimentos, pela minha
auto-estima, pela forma como amo e percebo voc. Nada ouvi at agora sobre
minhas emoes e por tudo quanto sou, independente das coisas que tenho. Gostariade ser amado menos pelas embalagens que carrego e muito mais por tudo ou o
pouco que sou. Existe algum amor em voc por esse meu lado?
-Para ser sincera, meu bem, nunca havia pensado nisso. Para mim, voc a
expresso dos seus resultados e essa expresso e esses resultados que aprendi a
amar. S sei amar desse jeito...
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Ainda existem alguns professores que vivem sua misso desse jeito. Encaram o
aluno apenas por seus resultados, pelo frio diagnstico de suas notas e pelo
desempenho em seus trabalhos.
No aprenderam a perceber o aluno, tambm, por suas emoes. Por seu entusiasmo
ou apatia, suas alegrias e tristezas, seus sonhos e sua insegurana. Suas aulas so
apenas dirigidas para tudo quanto o aluno pode ter, jamais para aquilo que
efetivamente o aluno .
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Um exterminador do futuro
Ana Lcia tem cinco anos. Adora fazer seus desenhos e, orgulhosa, constri com
pacincia um lindo cavalo azul.
Apresenta-o a seu pai:
-Ah, desculpe, filhinha. Isso no parece, de maneira alguma, um cavalo...
O pai de Ana Lcia, ainda que bem intencionado, no agiu de forma correta. No
percebeu que na idade da filha a janela da inteligncia pictrica, que a leva a
desenhar, insinua-se diante de sua inteligncia espacial, levando-a a fantasiar, e que
sua resposta representa forte desestmulo. Pode estar, sem perceber, sendo um
pequeno exterminador da linguagem grfica de Ana Lcia.
Deveria, ento, mentir? Deveria fingir que o desenho lindo, maravilhoso, elogiar a
filha e, desta maneira, cultivar a mentira, a insinceridade?
Claro que no. Se assim o fizesse, estaria substituindo o estmulo pela hipocrisia e,
um pouco mais tarde, Ana Lcia iria descobrir que seu pai no expunha um juzo
crtico e que, portanto, sua opinio era sempre uma farsa. Sua inteligncia espacial e
pictrica havia perdido a sensibilidade de um poderoso aliado na figura mgica de
um pai educador.
Como deveria, ento, agir?
Deveria, claro, elogiar. Mostrar filha que aceita com aplauso a maneira como ela
v um cavalo. Que respeita essa maneira e, pacientemente, mostrar como ele, o
pai, costuma ver e, portanto, ilustrar cavalos. Nem anulao do esforo, nem
mentira hipcrita, mas a singela percepo de que pessoas
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diferentes podem enxergar de formas diferentes os mesmos objetos. Ana Lcia,
certamente, estaria sendo estimulada a comparar sua maneira de perceber o mundo
com a do pai e, eventualmente, criar uma terceira maneira de ver cavalos...
O pequeno exemplo de Ana Lcia pode transportar-se da casa para a sala de aula.
Poderia tambm, se ambientado em uma sala de aula, ser transportado para a casa. O
que vale a conscincia do educador e no onde o mesmo est atuando.
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Ora... isso so detalhes
No suportando a violncia da dor de cabea e sua persistncia por mais de dois
dias, preocupada, professora Marianinha procurou o mdico:
- Ah, doutor. j no agento mais. No incio tomei apenas um comprimido. Como a
dor no passou, ouvi minha av. A ento, tomei ch de alho, mel com agrio, gua
com acar, alecrim amassado e melissa aos montes. Mas a dor no diminuiu.
Desesperada, fui conversar com uma amiga e ela me garantiu que minha dor era
apenas de natureza psicolgica. Indicou-me algumas leituras de auto-estima e, de
passagem, um tipo de orao aos anjos. Nada. Desesperada tentei gnomos, fadas,
pombagiras e tudo mais. Fui a terreiro de candombl, ouvi pregaes metafsicas,
dei pulinhos para Santo Anto, cortei o sal, engoli leo de rcino, passei um dia
inteiro apenas comendo laranja com berinjelas e... a dor no passa. Foi ento queresolvi procurar pelo senhor.
- Fez muito bem, minha filha. Deveria ter-me procurado antes e, assim, teria se
livrado de mezinhas e bobagens. Eu sou, alm de mdico, um cientista e jamais
poderia sugerir a um paciente qualquer remdio que no tivesse o valor
inquestionvel de uma comprovao. Esquea suas aventuras pela sade e tome este
remdio. Ver que em menos de meia hora sua dor de cabea desaparecer ou
sumir como afirma a propaganda. So trs colheres e trezentos reais. Pode ter
certeza...
-Tudo bem, doutor. Aceito o argumento. O preo alto, mas pela minha cura fao
tudo. Diga-me, apenas, de que maneira esse remdio atua em meu corpo, fazendo
passar essa dor de cabea que no termina?
-Ah, minha filha. Isso querer demais. Sei l como funciona o remdio. Isso
apenas um detalhe. A verdade que j prescrevi para mais de vinte pacientes e, todos,
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saram-se bem com o mesmo. Se fez bem a todo mundo, claro que vai curar sua
dor. Pague e pegue o remdio que eu tenho mais clientes para essa mesma receita...
Existem professores que agem dessa maneira...
Entregam-se ao ensino, dedicam-se intensamente s suas aulas, recomendam lies e
estudos dirigidos a seus alunos, aplicam provas sistemticas. Fazem todo trabalho
pedaggico porque acreditam que, assim como aprenderam, assim tambm seus
alunos aprendero. Infelizmente no se preocupam em descobrir como acontece a
aprendizagem, de que maneira o crebro processa e constri conhecimentos, porque
aprendemos como e para que aprendemos.
Ministram com esforo e dedicao o remdio, mas pouco se interessam pela cura.
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Um ato de amor
Hora do intervalo na escola estadual. L no ptio as crianas brincam, correm,
brigam, conversam, paqueram. Nasala de professores, coloca-se assuntos em dia.Uns atualizam seus dirios de classe, outros folheiam o jornal, a maioria conversa
sobre o salrio e tudo quanto ele jamais poder comprar. De repente, a conversa
interrompida pelo ingresso repentino de uma jovem, com roupa de enfermeira,
solicitando uma desesperada ajuda:
- Por favor. Ser que algum pode ajudar. Estamos l no hospital, aqui ao lado, com
um paciente aberto e o mdico desmaiou. O anestesista nega-se a continuar a
cirurgia e eu no sei o que fazer. Ser que algum dos professores pode ir at l e dar
continuidade operao?
No. Infelizmente no. O ato cirrgico um procedimento altamente profissional e
somente especialistas em sade podem promov-lo. O professor pode sentir extrema
solidariedade pelo paciente e at pela enfermeira em seu santo desespero. Mas, nada
pode fazer para ajudar. Nenhum professor especialista em atos cirrgicos.
No , tambm, especialista em atos jurdicos. Para isso existem advogados e, se
chamados a defender um ru, certamente teriam a dignidade de recusar. Toda
sociedade brasileira compreende que o ato cirrgico para o mdico, o ato
econmico, para o economista, o ato jurdico, para o advogado... e assim por diante.
Compreende, enfim, que cada profisso se expressa pela execuo de sua misso,
atravs do exerccio de um perito especialista no uso dessas habilidades.
Ser que compreende, mesmo?
Infelizmente compreende em parte. O ato pedaggico, o riais nobre dos gestos de
amor, ministrado por professores, mas muitos crem que tambm mdicos,
engenheiros, advogados, administradores, sapateiros, farmacuticos, mecnicos,
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meteorologistas e sabe-se l mais quem mais, podem dar uma aula. Afinal, basta
conhecer um assunto e ir l frente falar sobre o mesmo...
Infelizmente poucos sabem que a verdadeira aula consiste em ensinar a aprender,treinar a ateno, desenvolver habilidades, fazer do contedo um instrumento para a
descoberta de solues novas. A sociedade brasileira, com raras excees, ainda no
descobriu que, se existem aulas que no levam ningum a lugar algum, existem
outras que constroem o ser humano e exploram toda incrvel potencialidade de suas
mltiplas inteligncias.
A verdadeira aula um nobre ato. O ato pedaggico o ato do amor.
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Uma droga de dilogo
- Pois , meu filho, j fazia tempo que a gente no conversava. Eu at j estavasentindo falta e, claro, a culpa no sua, tanto que vrias vezes andou meprocurando para um papo e eu sempre sem tempo. Mas, desta vez, resolvi conversarcom voc. Adiei algumas coisas importantes, que no poderiam ser adiadas, quediabo! Voc tambm um pouco importante. Ento, tudo bem?
-Tudo, eu at...
- Bem, a escola como vai? E os amigos? Voc ainda brinca com o Zezinho? E ofutebol? Tem assistido? Ouvi dizer l no escritrio que voc anda jogando umboio! mesmo verdade? Se for, talvez um dia voc possa at se igualar ao craque
que fui, em meus tempos de menino. No havia melhor zagueiro em todo CampoBelo. Algumas vezes, cheguei at a pegar a bola em minha rea, sair driblando echegar at cara do gol adversrio. Bem, mas voltando ao nosso dilogo, eu bemque poderia trazer algumas revistinhas da banca l de frente do escritrio. Vocadora o Pateta e o Patinhas, no?
- Bem, pai, eu agora j estou com quinze anos...
- mesmo, filho! Como o tempo passa! s vezes at esqueo que voc j temquinze anos. Puxa vida! E o estudo, como vai? Em que srie mesmo voc est?Outro dia ainda, recebi um convite para ir a uma reunio em sua escola, mas voc
sabe como , a gente nunca tem tempo... Mas, voltando nossa conversa, euprecisaria saber se voc est precisando de alguma coisa. Voc sabe, a vida estdura, mas, caso precise, pode falar, pois se h um pai que quer sempre estarpresente, sou eu. Precisa de alguma coisa?
- , eu precisava...
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- isso a! Faa o seguinte: fale com sua me, pois eu no tenho tido tempo de falarcom ela. Veja o que voc precisa e eu deixo um cheque. Mas, voltando ao nossopapo, voc j arrumou alguma namorada? Eu, na sua idade, era o terror do Campo
Belo; sabe que no houve uma nica garota no bairro com quem eu no tivesse, pelomenos uma vez, arriscado uma paquera. Espero que voc seja como seu pai.
- ...
- Bem. O papo est gostoso, mas eu estou com pressa. Preciso ir tomar unsuisquinhos com o Srgio, que na semana que vem estar aniversariando. Adoreifalar com voc. Tchau.
O Senhor Arnaldo ficou uma fera quando soube que seu filho havia sido encontradocom droga:
-A senhora sabe, professora. um absurdo. Em casa, jamais faltou dilogo entre paie filho...
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Ateno ateno
- Preste ateno, Paulinho... Eu vou mudar a Adriana e a Melissa de lugar; juntas,
vocs jamais prestam ateno...
-Ateno alunos... Ateno... j falei... no ouviram? Se no prestam ateno, como
podem aprender? No sabem que somente os alunos atentos podem passar de ano?
Preste ateno, Raquel... Eu aqui falando sobre a importncia da ateno e voc
nada de prestar ateno...
- Prestem ateno porque isso cai na prova. Sem ateno, o zero inevitvel. Essa
classe um exemplo, existem aqui quatro alunos repetentes. Eu no vou falar o
nome, mas vocs todos sabem quem so, e por que repetiram o ano? Todos
sabemos: repetiram o ano porque no prestaram ateno.
- Bem, na quarta-feira haver uma reunio de pais e eu vou falar com a me ou o pai
de alguns de vocs. Vou dizer que suas notas esto baixas porque vocs no prestam
a devida ateno. Ateno, Marcelo! Eu aqui falando que vou conversar com seus
pais sobre a falta de ateno e voc no presta ateno... incrvel! Em resumo,
minha gente, sem ateno o aluno no sai da educao infantil. Se sair, garanto que
no conclui o ensino fundamental; se concluir, empaca no ensino mdio e, caso no
empaque, jamais entrar em uma faculdade. Eu mesmo conheo uma poro de
alunos que no prestaram ateno e fizeram um pssimo curso superior. Portanto,
vamos tratar de prestar ateno. Eu aqui falando e o Ramiro com o brao erguido h
meia hora. Pergunte, Ramiro, qual sua dvida, afinal?
- Bem, professora... eu gostaria de saber como prestar ateno. Eu sei que a ateno
importante, concordo com tudo
quanto a senhora falou, gostaria de prestar ateno mas, sinceramente, no consigo.
A senhora poderia, por favor, explicar como prestar ateno?
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- Ora, Ramiro, sinceramente... voc j est na stima srie e vem com uma pergunta
boba dessa. Tem cabimento um aluno no saber como prestar ateno? A ateno se
presta, prestando ateno. Imagine se eu, professora de Cincias, atrasasse meu
programa para ensinar alunos a prestar ateno. Tem cabimento? Sua pergunta boba demais. Vamos voltar aula...
- No tem mesmo jeito. Alessandra e Miguel, para fora, vocs no prestam ateno...
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Aprendi a lio... j me odeio
- Menino... tira a mo da... Menina... olha essa maneira de sentar...
- No suba na rvore... Saia j do muro... largue esse brinquedo ....
- Se voc falar de novo esse palavro, passo pimenta em sua boca. Onde vocaprendeu isso? Aqui em casa, garanto que no foi... um absurdo, uma vergonha,algum, assim to pequeno, com esse vocabulrio...
-Seu trabalho est bom, mas voc errou na introduo, essa capa est horrorosa e,onde j se viu escrever sexo, com q, u, i?
-Voc precisa ter mais cuidado quando anda, quando senta, quando come, quandofala. um estabanado e quem quer que seja que no o conhea, acaba pensando quevoc um dbil mental.
- No. j disse no mil vezes. No porque no e pronto. Meu no definitivo.
- Ser que voc poderia sair da frente dessa televiso? Parece um rob, o dia inteirogrudado diante dessa tela. Por que no vai brincar l fora?
-Voc quer fazer o favor de entrar. Pensa que sou lavadeira, ainda agora mesmovestiu essa roupa e veja como est. uma vergonha. Voc no ama mesmo sua me,
se a amasse manteria seu quarto em ordem, sua roupa limpa, sua mochila pendurada,seus cadernos encapados. Voc mesmo uma tragdia.
- Gastei quase uma caneta inteira corrigindo a prova dessa classe. Erros incrveis,alguns at que parecem feitos de propsito. Agora vou devolver as provas ecomentar os principais erros cometidos. Os principais, porque se fosse comentartodos, passaria o ano inteiro aqui na frente...
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As frases e expresses acima so ouvidas em toda parte, em corredores de escolas
ou em aposentos de casas. A pedagogia do erro prevalece e a criana e o adolescente
so percebidos pela falha, pela insegurana, pela indeciso, pelas mancadas. Sobre
o certo, o bonito, sobre a tentativa, sobre o esforo, raramente se fala. Filhos ealunos, em geral, so adestrados para serem olhados com menosprezo, pequenez,
vergonha. Querer-se bem parece ser pecado e a auto-estima, alm de no praticada,
vigiada e punida.
A infncia passa rapidamente, a adolescncia dura um instante e a prpria vida
escorre como gua pelos dedos. Mas, valorizando o defeito, esquecemos de
abrir-nos irresolutamente para o imenso amor em sentir-nos vivos e em perceber que
o instante que passa breve demais para no ser devorado com ilimitada paixo.
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Adriana banana
Adriana adorava falar sozinha. Afinal, aos seus seis anos, no havia nada mais
gostoso que inventar histrias e ir falando as coisas que vinham cabea. Nada erato bom quanto conversar com suas bonecas e, l do terrao, conversar com os
adultos que, apressados, passavam pelas ruas.
Nessas ocasies era repreendida, com aparente carinho e ternura, por sua me:
- No faa assim, Adriana. As pessoas no a conhecem... ns s podemos falar com
quem conhecemos e, alm do mais, voc j uma mocinha. Precisa perder essa
mania de falar sozinha. Somente as pessoas que no so boas da cabea conversam
com coisas que no tm vida...
Adriana no entendia direito esses conselhos. Suas bonecas, claro, tinham vida e
ela conhecia pessoas, mesmo que nunca as houvesse visto.
Na escola, Adriana adorava desenhar. Achava um dos momentos mais gostosos da
vida fazer elefantes vermelhos, cavalos roxos e flores azuis.
Sua professora nesses momentos, tambm supondo muito carinho, a corrigia:
- No, Adriana. No existem elefantes vermelhos e nem cavalos roxos. Por que voc
no faz lrios brancos, com folhas verdes?
Aos domingos, Adriana adorava passear com seu pai pelo parque. Tinha enorme
vontade de rolar pela grama e abraar as rvores que pareciam ter a altura do cu.
Seu pai, tambm com ilusria ternura, a aconselhava:
- No, Adriana, os caminhos no parque foram feitos para que respeitemos o
gramado, e abraar rvores suja a roupa e ainda te enche de formigas...
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Nesse ambiente de carinhos e de conselhos Adriana cresceu. Cresceu tmida,
murcha, opaca. Tornou-se uma adolescente sem graa, com medo de tudo e achando
qualquer pequena aventura urna loucura de suas amigas insensatas.
Estranho que crianas educadas com tantos e to bons conselhos como Adriana
pudessem evoluir para adolescentes vtimas de colegas impiedosos, que sempre a
agrediam com apelidos maldosos. Era muito triste saber que, por onde andava,
Adriana tinha que ouvir:
- Adriana banana... Adriana banana...
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Festival gastronmico
- Eu acho um verdadeiro absurdo. Contratei voc como cozinheira, verifiquei seu
currculo, que por sinal excelente, pago o salrio que voc pediu, aprovei todas assuas experincias culinrias e, agora, encomendo um prato e voc diz que no
capaz de fazer porque no sabe a receita? Voc ou no uma cozinheira?
- Eu sou cozinheira. Tenho orgulho de minha profisso, j trabalhei em inmeras
casas de famlia e at em um restaurante de hotel exerci meu trabalho. Sei tudo sobre
alimento, conservao, tempero, misturas e sei, de cor, dezenas e quem sabe at
centenas de receitas, mas no sei, no ouvi falar na receita desse prato indonsio que
a senhora comeu. Se, ao menos, eu tivesse experimentado ainda poderia arriscar.
- Isso que voc est me dizendo so desculpas esfarrapadas. Uma boa cozinheira fazqualquer prato, com ou sem receita. Receita coisa para cozinheiros inexperientes.
Para novatos em suas profisses. j fui tolerante demais. Voc tem meia hora para
preparar o prato que comi e cujo nome nem sei e, se no conseguir, vou despedi-la.
Ora, onde j se viu, querer receita para fazer um simples prato asitico?
Infelizmente, alguns diretores de escola pensam como a patroa. Acreditam que o
professor, por trazer um diploma, absolutamente capaz de conhecer todos os meios
e todas as estratgias que envolvem a administrao de um ato pedaggico. No se
preocupam em promover cursos, estimular leituras, criar, enfim, na escola, um
ambiente propcio e estimulador da troca
de experincias e, conseqentemente, o aperfeioamento de sua equipe docente.
A histria da receita est muito prxima da questo do controle da disciplina em sala
de aula. Alguns professores, que conhecem receitas, administram-na muito bem;
outros no a conhecem e raramente tm oportunidade para aprend-la. So criticados
por no manterem a classe em clima de envolvimento e aprendizagem. No porque
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no o querem, mas por ignorar certos procedimentos que seus colegas mais
experientes teriam prazer em ensinar. A maneira de tornar explcito o limite do
permitido e do no-permitido, a coerncia na cobrana desses limites, a forma de
usar a lousa sem deixar de acompanhar os movimentos da classe, os princpiosnorteadores do momento das perguntas, a mudana do estilo da aula e a variao de
estratgias ocasionam verdadeiros milagres no controle disciplinar da sala.
O dia em que algumas escolas descobrirem como podem crescer, aproximando, sem
preconceito e com autntica alegria, velhos marinheiros de marinheiros novos, as
receitas deixaro de ser domnio de poucos e todos crescero bastante. Ganha o
aluno, o professor e, naturalmente, ganha a escola.
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Ah... e se no houvesse um incndio?
Naquele escritrio, situado no 26 andar do moderno prdio da nova avenida,
ningum sabia seu nome. No sabiam tambm onde morava, se era casado ousolteiro, se tinha filhos. Ningum jamais teve tempo para perguntar o que lhe
causava alegria ou tristeza ou se, s vezes, vibrava com a vitria de qualquer time de
futebol. Tambm pudera! Belmiro no era um funcionrio importante diante das
magnas estrelas da poderosa multinacional.
Seu trabalho era apenas o de esvaziar cestos de lixo, separ-lo criteriosamente,
varrer salas e manter as dependncias limpas. Somente quando faltava e o lixo
acumulava que percebiam sua ausncia... Nessas ocasies, mal-humorados, os
auxiliares e executivos reclamavam a falta do cara.
Mas, uma tarde, uma tera-feira de doda lembrana, um violento incndio irrompeu
pelo escritrio. Voraz, assustador, em poucos minutos se alastrou da parte eltrica
para as persianas e o acmulo de papis fez-se combustvel favorvel. Desesperados,
alguns buscaram as janelas, outros a escada e outros lembraram-se
desesperadamente do heliporto, dois andares acima.
Belmiro no. Movido, sabe l Deus por qual sentimento, atirou-se sobre vidraas,
galgou mesas, tirou uma, depois outra e, finalmente, muitas pessoas da sala,
levando-as para locais aparentemente mais seguros. Cortou-se, sufocou-se vrias
vezes, mas, tomado de uma febre pela vida, desviou-se de pessoas aterrorizadas e
somente parou quando os bombeiros o seguraram. Um reprter, depois outro,souberam de seu gesto e, no dia seguinte, Belmiro transformou-se em heri. Os
jornais dirios traziam sua foto, mostrando a feio ensandecida e o pessoal do
escritrio passou a relatar, com incomensurvel orgulho, que o conhecia.
Descobriram que morava em um cortio da periferia e at uma vaquinha foi feita
para presente-lo.
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Mas, de toda a histria, resta uma dvida somente: E se no houvesse ocorrido o
incndio? Belmiro seria menos heri? A grandeza de sua alma seria, por acaso, mais
limitada? Seu desprendimento pelo outro, eventualmente, no existiria? Ser que
necessrio a exploso da tragdia para fazer de homens comuns homens especiais?
As dvidas se esparramam pela escola e pelas salas de aula de todo dia. Nessa
comunidade agitada, certamente, existem gigantes annimos, heris e heronas
escondidos pela falta de uma ocorrncia.
Ser indispensvel uma tragdia? Ou ser que pode existir um projeto que pretenda
resgat-los?
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A vida sombra que passa...
Bradbury nome de um genial escritor norte-americano. Seus contos navegam pelo
imaginrio e esse mestre faz das fantasias a matria-prima para reflexes profundasque encantam e emudecem. Em um de seus contos, relata a histria de uma
civilizao do futuro que havia criado uma mquina capaz de retornar ao mais
remoto passado, promovendo viagens tursticas a tempos esquecidos pelo prprio.
Nessas viagens pelo Jurssico, ou outros perodos distantes, os passageiros eram
seriamente advertidos de que somente poderiam apreciar, olhar com curiosidade as
mincias do drama da vida, mas estavam proibidos de tocar, matar animal ou planta,
mesmo que um minsculo inseto. Mas, em uma das viagens, um passageiro afoito
desrespeitou as regras e, inadvertidamente, esmagou com o p uma borboleta,
causando desespero no comandante. Tamanho desespero se justificava; ao chegarema seu tempo, descobriram atnitos que o pas de onde tinham partido mudara tanto
que mais parecia outra civilizao. No mais encontraram, ao voltar, a lngua e os
costumes que deixaram pouco antes de partir.
O que o conto de Bradbury nos faz sonhar imenso.
Destaca que a cadeia da vida se altera brutalmente quando desprezamos um ser,
mesmo o menor deles. Se matarmos um rato, significa que todas as famlias futuras
desse rato no nascero e que tambm no podero nascer as famlias que surgiriam
dessas famlias. Um rato morto representa, em algum tempo futuro, a morte de
centenas, milhares e, depois, milhes de ratos. As raposas que precisam de ratospara sobreviver no tero alimento e, para cada dez raposas a menos, bilhes de
seres
maiores, tempos depois, no podero viver. Milhes de anos aps, por exemplo, um
troglodita no acha caa alguma e morre faminto. A morte deste homem primitivo
pe fim aos filhos que teria e s mltiplas famlias que dele surgiriam. Por esse
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nico homem, responsvel por milhares de outros que nos milnios seguintes dele
nasceriam, pode ser que muito tempo depois Roma no se erga sobre suas colinas e,
quem sabe, a Europa fique uma floresta para sempre.
Ao matar um rato talvez tenha se esmagado o Capitlio ou o Coliseu.
Ser que em todas as nossas escolas existe a reflexo sobre essa delicada teia da
vida?
Ser que cada professor, pequenino em sua luta diria, ou cada aluno, annimo nas
lies de cada dia, so percebidos como elos que, desrespeitados, representam
desrespeitos brutais s pirmides do futuro?
Bradbury nos ensina que descuidar de uma nica pessoa, esquecer seu dirio direito
alegria e ao reconhecimento representar, quem sabe, a criao de vaziosinsondveis nos mapas geogrficos do futuro...
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O mercado dos sonhos
Foi um verdadeiro drama para a famlia de Cristiana. O pai, promovido em poderosa
transnacional onde era executivo de destaque, teve que mudar da pequena cidadeinteriorana para a maior megalpole da Amrica do Sul. Recompondo sua vida s
pressas, ainda teve tempo de procurar uma escola para sua nica filha. Com o novo
salrio que receberia e com a importncia do cargo assumido, tratou logo de buscar
a melhor escola, poderosamente encravada no bairro de caros apartamentos e
manses de sonhos. Ouviu lindos discursos pedaggicos e a funcionria responsvel
pelas Relaes Institucionais tratou de mostrar as salas limpssimas, os laboratrios
modernos e o material pedaggico escrito sob a mais rigorosa superviso de
Vigotsky Piaget e muitos mais. No teve dvidas, matriculou Cristiana na hora,
lamentando o tempo perdido na modesta escolinha do interior.
Mas, Cristiana teve srias dificuldades de adaptao. No teve problemas de
aprendizagem e, com surpreendente facilidade, rapidamente destacou-se como uma
das melhores alunas de sua classe. Os resultados eram excelentes e os elogios
imensos, mas ainda assim Cristiana transformou-se em uma criana infeliz. Sentia
saudade.
Saudade da escolinha onde, ao lado das Cincias, aprendeu a cozinhar, consertar
eletrodomsticos e olhar, pela primeira vez, um motor de automvel. Saudade da
Jlia, que, ensinando Artes, estimulava esculturas com o barro do riacho, cobria as
paredes de pinturas feitas por alunos e os fazia compositores de msicas que j no
mais ouvia na linda escola de agora. Cristiana, ao lado de profissionais andinos que
transitavam por srios problemas epistemolgicos, no podia esquecer o dia em que
sua classe
incorporou-se ao trabalho dos lixeiros e saiu pela cidade em uma campanha pela
vida e nem mesmo suas visitas a feirantes, policiais, mecnicos e enfermeiros.
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Cristiana no podia deixar de lembrar o jeito simples do Tonico, professor de
Geografia, que fazia excurses de bicicleta para ensinar relevo e os obrigava a
assistir o jornal Nacional para aprender agitos internacionais. -Meu Deus, onde
ficara aquela Histria dos conflitos de todo dia, a Qumica nos cosmticos e nosperfumes levados de casa e a Fsica dos arremessos de vlei ou corridas de Frmula
I?
Foi impossvel para Cristiana sepultar em sua lembrana os dias de sol de uma
escolinha onde o que de mais importante se aprendia, era o aprender a aprender.
Onde decifrou o que era uma pesquisa, diferenciou anlise de sntese e soube
aplicar, em problemas novos, solues conquistadas. Onde, pacientemente,
construiu inevitveis conexes entre a vida e as disciplinas escolares.
Na escola de sua saudade ficaram guardados para sempre os toscos caipiras que a
ensinaram a descobrir e que a estimularam a comparar, deduzir, classificar,
construir.
Nunca mais foi possvel em sua nova escola brincar de aprender. Aprender a brincar.
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A inveno definitiva
Castilho era um professor diferente. Ministrando aulas de Cincias no Colgio
Estadual, jamais aceitara troc-las, ainda que parcialmente, por um ou outro convitede escolas particulares. Vestindo invariavelmente seu mesmo casaco marrom, fosse
qual fosse a temperatura, com a impresso de uma barba sempre a fazer,
independente da poca do ano, vivia seu pequeno mundo, dentro desse imenso
mundo que o ensino. Poucos sabiam a seu respeito e, principalmente as alunas da
stima srie, cogitavam se seria casado ou solteiro, que fatos o faziam vibrar e se
tinha ou no um time de futebol querido.
O que ningum sabia, at mesmo porque o prprio Castilho disso fazia tumular
segredo, que o mestre era um inventor e que a quase totalidade de seus parcos
salrios iam para a aquisio de produtos essenciais para seu ltimo e definitivoprojeto. Castilho estava s margens de uma descoberta sensacional. Um pouco mais
de estudos e experincias e estaria inventando um aparelho mais til que a geladeira,
mais revolucionrio que o microondas ou, quem sabe, at mais avanado que o
computador ou o celular.
No o movia a perspectiva financeira de seus resultados. No pretendia ficar rico e
nem ser reconhecido. Aceitava, com a digna humildade de todo professor, o seu
grande papel, seu emprego e at mesmo as inevitveis gozaes de alguns colegas,
principalmente o Z Luiz, e de muitos alunos. O que na realidade sonhava (e como
sonhava), era ser til humanidade e fazer de suas pesquisas um instrumento de
felicidade.
A mquina absoluta, a inveno definitiva de Castilho era a mquina de desinventar.
Uma mquina que podia, com um simples acionar de uma tecla, fazer desaparecer
qualquer idia ou instrumento intil e, principalmente, as regras essenciais e o saber
para constru-lo. Fl humanidade no quer mais a bomba atmica? Pronto. Bastava
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escrever essa palavra no painel e o mundo passaria a existir sem essa inveno. Com
sua mquina, Castilho acabaria com o nazismo, inveja, racismo e, talvez, at mesmo
com cigarros, com nicotina e alcatro.
Esta histria to maluca que no precisa ter fim.
No importa saber se Castilho chegou ou chegar ao seu invento. O importante
imaginar o uso dessa mquina fantstica nas nossas escolas, de qualquer grau e em
qualquer lugar. Que coisas extraordinrias ela poderia desinventar?
Com essa mquina desapareceria o ensino robotizado, as decorebas inteis, a
vaidade perversa, o capital manipulador. Desapareceria a escola triste, a aula
opressiva, o aluno malcriado, o professor mal-humorado, o diretor prepotente.
Este sonho mesmo to maluco que no precisa ter fim...
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culpa do paciente. claro
- Voc sabe, Maria, eu estou desolada. Adoro o Rafael, descobri que ele o homem
da minha vida, e agora o mundo desaba sobre nossa cabea com esse malditoprocesso. Estou arrasada e com muito medo de que o meu Rafa v para a cadeia...
- Espera a. Eu estou fora do assunto. Por que esto processando o Rafael? O quehouve com seu trabalho na farmcia?
- Ah, Maria. Uma loucura causada por pessoas ignorantes. O Rafael, como vocsabe, adora fazer experincias com remdios. E no que, h mais ou menos umms, misturando certos sais com um xarope, ele acabou inventando um sensacionalremdio para provocar rpido emagrecimento. A descoberta extraordinria e, ainda
h poucos dias, fomos comemorar essa inveno que vai levar o Rafa para asprimeiras pginas dos jornais do mundo e, certamente, garantir-lhe um prmioNobel. E agora, com esses malditos a processarem-no, tudo pode desabar... Estouinconsolada.
- Mas, calma. A verdade sempre vence. Explique-me, por que o processo? Ospacientes no emagreceram com o remdio?
- Ah, isso impossvel saber. Todos os pacientes, logo aps as primeiras colheradasdo remdio, morreram e agora seus familiares querem processar o Rafael. umabsurdo, pois se morreram, como podem saber se o remdio fazia efeito ou no?
- Deus meu! Quantos pacientes usaram o remdio do Rafael?
- Nove, ao todo. Um, ainda ontem, estava em coma. Hoje j deve, como os outros,ter morrido. E no que seus parentes, estpidos, querem pr a culpa no remdio? ORafa timo, o remdio excelente, os pacientes morreram apenas porque so mauspacientes. Culpa deles, claro.
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Isso tambm acontece com alguns professores.
Existem os que acreditam que suas aulas so maravilhosas e que somente os maus
alunos no as aproveitam. Se ficam reprovados, esto certos que tal acontece porque
assim o querem ou porque no merecem a aprovao. Esquecem que a
aprendizagem uma conquista pessoal, e, o que fcil para alguns, nem sempre o
para todos. Acham que seus mtodos so perfeitos, os alunos so reprovados porque
so maus alunos. Tambm, culpa deles, claro.
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Dona Geralda
Dona Geralda chegou radiante favela onde morava... No via a hora de encontrar
as filhas, a vizinha ou, quem sabe, at mesmo o marido, para contar a grandenovidade. Finalmente, avistou a Romilda:
- Milda, voc no sabe onde arrumei emprego como diarista? Eu consegui trabalhona casa de uma pessoa muito importante. Voc nem pode imaginar quem . mesmo uma pessoa muito importante...
No. Romilda no imaginava. At que fez algumas tentativas lembrando artistas dateleviso, cantores de rdio ou polticos cujos nomes freqentavam o jornal.
Aps algumas tentativas, desapontou-se, quando Dona Geralda anunciou a novidadeque tanto a eletrizara:
- No, Milda. A pessoa no importante porque aparece na televiso. Para dizer averdade, ele importante pela profisso que tem. Imagine, Milda, que eu agoratrabalho na casa de um professor... uma pessoa que ensina as outras pessoas e que, lgico, deve saber muita coisa. Voc nem imagina a quantidade de livros que tem nacasa dele! Se ele leu a metade daquilo tudo, acho que sabe at mais que o Presidenteda Repblica. Eu at acho que fiquei mais importante porque estou trabalhando nacasa de uma pessoa assim, to importante...
Romilda no quis desapontar Dona Geralda. No quis dizer que j h muito passarao tempo em que os professores eram reconhecidos pela sociedade e respeitadospelos alunos. No quis dizer o que sabia por experincia familiar, pois sua sobrinhaestava tambm lecionando, sobre o salrio, as dificuldades, o desrespeito que amaior parte dos professores tinham que engolir. To poucas coisas faziam a boaGeralda vibrar, que no seria ela a desmancha-prazeres de convenc-la que nada de
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importante havia em se trabalhar na casa de um professor. Ainda se fosse um artista
de circo ou pai-de-santo reconhecido...
Talvez as outras pessoas a quem Dona Geralda tivesse contado a alegria de seusegredo pensassem como Romilda ou talvez no dessem qualquer importncia s
iluses da velha. A verdade que ningum procurou desapont-la e deixaram Dona
Geralda carregar, de l para c, a iluso de sua inefvel importncia. Nem mesmo
tratou de desiludi-Ia a esposa do professor, melhor que muitos, conhecedora das
rduas lutas e das imensas limitaes do cargo de seu marido. Em verdade, at
sentiu uma mistura de pena e vaidade com a iluso da nova empregada. O professor,
por sua vez, jamais imaginou o encantamento de sua profisso para to prosaica
servidora. Caso soubesse, seria o nico a corrigir, com humildade e brandura, as
iluses de Dona Geralda. Sabia-se professor, orgulhava-se de seus estudos e da
obsesso com que cada dia estudava ainda mais. Sabia o quanto sabia.
Sabia, sobretudo, o quanto o saber fragiliza.
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A famlia pobre de Carolina
Carolina ainda no completara o ensino fundamental.
Estudava em uma escola particular, carssima, no bairro de metro quadrado mais
caro, da mais cara cidade da Amrica do Sul. O preo da escola no importava para
Carolina que, em verdade, no sabia o quanto era rica e importava menos ainda para
seu pai, empresrio riqussimo, famoso pelo luxo que ostentava e pelas tenebrosas
transaes em que se envolvia.
O que em verdade importava muito para o pai de Carolina, era a segurana prpria
e, depois dele, a segurana da famlia. Vivia apavorado com a idia de seqestro e
sentia nessa ameaa o risco de perder, em minutos, fabulosa importncia ganha em
algumas semanas. Por esse motivo, sua bela casa era verdadeira fortaleza e bemarmados e nutridos guarda-costas protegiam e levavam, todas as manhs, Carolina
para a escola. Acordo mantido com a Direo, o veculo blindado de Carolina podia
adentrar os jardins do estabelecimento e, somente l, saa das mos dos protetores
para a proteo de seus professores. O retorno no mostrava aparato diferente da
chegada.
Desnecessrio dizer que a formao de Carolina a privara de qualquer contato com a
realidade desagradvel. A nica realidade permitida era a beleza da arte, a esttica
da cincia e a tica dos comportamentos. Fs aulas que assistia com outras crianas,
no muito diferentes dela, eram cuidadosamente preparadas de acordo com o cdigo
da beleza e da censura imposta pela influncia do pai, que a dona da escola to bemcomungava e compreendia.
Mas, um dia, uma clara manh de segunda-feira, aconteceu um lapso, um pequeno
escorrego na criteriosa anlise dos contedos solicitados quela classe e Roberta,
nova professora de Redao, ingenuamente, pediu aos alunos uma dissertao sobre
Uma famlia pobre.
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Carolina no esboou qualquer dificuldade para desenvolver o tema solicitado.
Mesmo assistida com exagerada ateno por Roberta, dispensou qualquer ajuda,
segurou com firmeza sua caneta e, sem hesitar, cumpriu sua tarefa:
Era uma vez uma famlia pobre. Pobre, to pobre que todos os mordomos eram
pobres, as cozinheiras eram pobres e tambm eram pobres, muito pobres, todos os
seus jardineiros. E adiante prosseguiu...
A redao de Carolina causou risos na sala dos professores. Ningum na escola,
entretanto, pensou que a finalidade ltima do ensino a libertao das amarras,
ainda que doloridas. No se cogitou de que maneira abrir seus olhos e mostrar-lhe,
com ou sem a aprovao paterna, a incrvel e contrastante dimenso das pessoas na
individualidade de um espao real.
Faltou uma doce mo de uma professora confivel sobre a cabecinha de Carolina,colorida por quimeras.
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A Rainha
A professora Margareth j recebera todos os prmios que a bajulao poderia
ensejar. Proprietria de uma das mais caras escolas da cidade, abrigava apenasalunos milionrios, ainda que muitos merecessem mais estar em um estabelecimentopenal e no escolar. De qualquer forma, era bom que ali estivessem. Nessa escola,tinham liberdades absolutas e seus professores eram, algumas vezes, servos de suasvontades, as mais vndalas e ensandecidas. Na escola, nada os ameaava e osConselhos de Classe conduzidos pela tia Margareth reuniam argumentos que osprofessores, seus empregados, jamais ousavam contestar.
Mas, Margareth no se orgulhava de seus prmios. Sua sala de Diretora, verdadeirotemplo de trofus, apenas simbolizava o prosaico detalhe de seu prazer maior, esse
sim incomensurvel, que era o de cortar cabeas. Certa ocasio, chegaram acompar-la a Rainha, inesquecvel personagem de Lewis Carrol, criador de Alice,que circulava sua majestosidade pelo Pas das Maravilhas, decapitando servidores.Margareth fingiu-se amuada, sentida com a comparao. Exigiria a cabea de quema fez, se soubesse. Mas, no fundo, sentiu incomensurvel vaidade em saber-setemida e em, a cada final de ano, renovar quase toda sua equipe docente. O poder demandar professores e servidores para a rua simbolizava o orgulho que sentia deperceber-se imensamente poderosa, ilimitadamente temida.
boca pequena, escondida de seus informantes mais fiis, .dizia-se que as nicasque estavam a salvo da decapitao eram as professoras Lcia e Nelminha,empregadas de Margareth desde a fundao da escola. Comiam o po que o diaboamassava, certo, mas sentiam-se garantidas em sua fidelidade. No concordavamcom as demisses freqentes e, quando podiam, at que colocavam algodo entre oscristais das cabeas mais ousadas. Acalentavam a tnue esperana de que, quemsabe um dia, Margareth pudesse mudar um pouco, confiar nas pessoas e consolidaruma equipe de trabalho... e, no acalanto dessas esperanas, iam entregando suas
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vidas escola. Perante os pais eram as duas que tinham que assumir as doidas
decises da dona e, no poucas vezes, sentirem seus ombros acumularem culpas de
males que jamais imaginaram promover. Era assim, por exemplo, quando Margareth
aumentava as mensalidades alm dos limites legais e, imediatamente, viajava paraos Estados Unidos, deixando Lcia e Nelminha com a responsabilidade da
justificativa.
Um dia, entretanto, Margareth soube que seus professores consideravam Lcia e
Nelminha pessoas de cabea a salvo. Sentiu fragilizar sua onda de poder e
amargou-se com o desafio de mostrar-se impassvel. No teve dvidas; reuniu os
empregados, criou uma justa causa e, zs, cortou, de um s golpe, as cabeas das
velhas companheiras. Sentiu-se enobrecida por suas lgrimas e, por alguns dias,
viveu o orgasmo ilimitado do imenso prazer dos poderosos.
Mas, dias depois, arrependeu-se do gesto. No pela escola e pela perda inestimvel
de pilares que por tantos anos a seguraram, mas pela ausncia definitiva de pessoas
que poderiam estimular o ego infinito de seus desafios. Na escola restavam apenas
capachos. Cabeas frgeis, bajuladoras, descartveis, transitrias. Sem dispor de
uma nica pessoa sobre quem pudesse exercer o poderio resoluto de seu mando,
fechou-se em sua sala de trofus e, pela primeira vez na vida, sinceramente, chorou.
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A fbula da professora e as uvas
Durante sua vida universitria curtiu adoidadamente as rodadas de chope, as aulas
cabuladas para passeios noturnos, ou os adorveis bate-papos e paqueras prximas cantina. Vez por outra, assistiu aulas. Menos pelo interesse em aprender e muito
mais para escapar do regime de faltas e para ver se, com prudncia e malcia, podia
colar esta ou aquela resposta de um colega mais distrado. Concluiu seu curso como
muitos concluem, valorizando apenas o valor profissional do Certificado.
Atirada ao mercado de trabalho, tratou de procurar aulas. Seu primeiro anseio foi a
escola particular do bairro de classe alta, ajardinada pelas mensalidades salgadas
onde, segundo diziam, pagava-se mal os mestres mas os enchia de vaidade.
Entrevistada pela Orientadora Educacional, foi rispidamente desiludida:
- Ah, minha filha. Embora estejamos precisando de professores, no possvel
contrat-la. Em dez minutos de entrevista voc cometeu doze erros de Portugus e
justamente essa disciplina que voc quer ministrar. No possvel.
Sem desanimar com esse primeiro no, partiu para uma segunda, depois para uma
terceira, quarta e quinta escolas, chegando at s entrevistas, mas no sobrevivendo
aos desafios impostos pelas mesmas. Seu desnimo maior foi atestado por um
porteiro da sexta escola procurada que, ao ouvir suas lamrias, filosofou com a
sabedoria dos simples:
- No adianta no, moa. Para que se contrate professores necessrio oconhecimento de pelo menos um pouco da disciplina, caso contrrio, podem ser
admitidas como inspetoras de alunos mas, como a menina pode ver, nessas funes
todos os cargos j esto preenchidos.
Aps outras tentativas como a de deixar o nome nas delegacias de ensino, sindicatos
e colegas colocados, percebeu que o vazio de seus tempos de estudante se refletia na
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agonia do desemprego. Retirando-se para a casa dos pais, passou a investir em um
casamento que no a estimulava mas rendia saldos. E ponderou:
-Graas a Deus. At que sou uma pessoa de sorte. Imagine, eu tendo que suportar osacrifcio de dar aula para alunos ricos ou, pior ainda, para os da escola pblica! j
pensou na chatice de agentar crianas e adolescentes? j imaginou a necessidade de
se atualizar sempre e ter que ler jornais pelo menos uma vez por semana? Nada
como ficar desempregada e pensarem fundamentos epistemolgicos aqui em casa,
onde meu analfabetismo jamais ser descoberto.
Moral: Falsos mestres, ao invs do desafio da aula, preferem demagogicamente
filosofar...
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Seu Janurio
Ansioso como nenhum outro, Lcio, ao saber da necessidade de sua transferncia
para aquela cidade do interior, tratou de procurar uma escola para Ricardo. Ouvindo
opinies aqui, sugestes ali, no foi difcil concluir que a mais indicada era a escola
que ficava no alto da colina, solidamente escorada em seus cinqenta anos de
tradio. Tratou de fazer uma visita, mas, desavisado do calendrio escolar, chegou
at a escola em pleno ms de frias. No encontrou o diretor, nem mesmo algum
professor atrasado em suas notas ou qualquer outro funcionrio capaz de
informar-lhe sobre os procedimentos burocrticos para a transferncia e os
fundamentos do planejamento pedaggico pretendido.
J ia saindo, quando percebeu a presena de um servidor varrendo o bosque. Sabia
ser de nenhuma valia a fonte, mas, para que a viagem no fosse inteiramente intil,tratou de bater breve papo. Soube que o velho jardineiro chamava-se Janurio e
prestava servio escola desde sua fundao. Sem colocar qualquer esperana na
resposta, indagou:
- Mas, o que ensinado nesta escola?
Sem pressa, olhando em volta antes de responder, mas dignificado com a nobreza de
ser indagado, Seu Janurio comentou:
-Olha, moo. O que ensinado eu no sei. Sei que deveriam ensinar as crianas a
aprender a aprender. Quem aprende a aprender descobre sempre o lado mais gostosoda vida. Quem aprende a aprender aprende a bondade e o amor, porque bondade e
amor so coisas que se aprende, como tambm se aprende a reiva, a preocupao e
os preconceitos. As pessoas no nascem boas ou ruins, educadas ou malcriadas. As
pessoas so sempre aquilo que aprendem e qualquer um pode aprender. Mas, do
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mesmo jeito que todos podemos aprender, podemos tambm desaprender.
Desaprender as preocupaes, o dio, a vingana e at o desespero.
Como no foi interrompido, Janurio continuou:
-Aprender a aprender, moo, uma das mais gostosas coisas da vida e cada vez que
a gente aprende alguma coisa, fica sendo maior do que j . Quem aprende a
aprender pode um dia ficar uma pessoa enorme. Enorme em conhecimento e, por
isso, cheia de amor, de experincia, de bondade e de tudo quanto til.
Como nada mais foi perguntado, Janurio aquietou-se.
A histria no registra se Lcio matriculou nessa ou em outra escola seu filho
Ricardo.
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Entre o amor e a hipocrisia
Nadir era o modelo da professora certinha.
Certinha, claro, no no conceito inesquecvel de Stanislau Ponte Preta, mas no
atual. Aquele que afirma que os bons professores precisam entregar suas notas em
dias certos, em dirios bonitinhos e em posturas politicamente corretas. Ministrava
suas aulas com preciso, com discursos moralistas e sem brilho, e levava sua vida
com a medocre seriedade das pessoas que no consomem um grama a mais, no
tomam um drinque alm da conta e no admitem gestos ou palavras fora de lugar.
Seu marido, Almeidinha, bem que sonhava com a doce irresponsabilidade do prazer
e com a romntica aventura do improvvel. Mas em sua casa, com Nadir, nem
pensar...
Mas a professora Nadir tinha, para o modelo que fazia de si mesma, um defeito e se
odiava pela incapacidade em abandon-lo. Fumava seus inocentes cigarrinhos e o
alcatro, que diariamente engolia, era quase nada diante da tortura e do suplcio
mental que se impunha por no ser perfeita. Tentara de tudo para largar esse vcio
maldito. Reza braba de pai-de-santo, consulta com monge careca, comprimidos
vendidos pelo um nove meia, esparadrapo de nicotina, picada na orelha feita por
acupunturista chins e outras tantas bobagens que, ouvindo ali e aqui, seguia com
sofreguido. Nem mesmo as crticas freqentes de seu nico filho, antitabagista por
opo, ou a solidariedade de seu marido, fumante por convico, puderam atenuar
seu incomensurvel apego ao rolinho de papel que tinha uma brasa em uma ponta e
uma imbecil, a prpria como acreditava, na outra.
Um dia, na escola, ouviu um comentrio feito pela filha da dona e dona tambm por
hereditariedade:
- Cigarro? Esse vcio asqueroso invencvel... Nada existe para elimin-lo a no ser
um infarto ou outro susto para valer... Se eu conhecesse algum que, de uma hora
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para outra, garantisse no mais fumar, pagava at quinhentos reais aps um ano. No
porque sua sade me interessa, mas por ter certeza de que dinheiro algum vence essa
dependncia...
Nadir empolgou-se. Ouviu a palavra mgica pela qual entregara toda sua vida e
manipulara todos seus instintos. A palavra que simbolizava toda gigantesca inveja
sentida dos que o possuam. Dinheiro. Na mesma hora, tocada fundo no argumento
central de seus parcos neurnios, fechou a aposta. Pela sade, pela higiene, pelo
filho, pela casa e pela escola, pelos alunos e pela educao, por si mesma, claro,
nada faria contra o cigarro. Mas o que no faria pelo dinheiro... Nunca mais colocou
um cigarro em seus lbios.
Infelizmente existem outros professores como Nadir. Viram as costas magia do
ensino, propriedade de transformar pessoas, construo serena de pessoas para
um mundo melhor e se entregam ao discurso estico, ao medocre, ao conselho
vazio que fazem valer para todos, jamais para si mesmo.
Vivem do amor, no para o amor.
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Antes que o absurdo vire rotina... (1)
Pois no que um dia, quando o aluninho dormitava em aula, enquanto seus colegas
realmente dormiam, viu surgir em sua aparvalhada mente um demnio tenebroso eesfumaado que, cavernosamente, sussurrou-lhe:
- Aluno... voc vai morrer... chegada sua hora e aqui estou para busc-lo,
atendendo s fantasias sinistras de Soninha, sua professora de Matemtica... mas,
antes de mat-lo, vou ainda lhe dar uma oportunidade para se livrar. Basta escolher
uma das trs propostas: Levante de sua carteira e aplique tremenda surra no
professor de Biologia que est sua frente, ridicularize publicamente sua me ou, ao
sair daqui, v padaria e tome meia garrafa de vodka.
O aluno, aterrorizado com essa viso, mal teve tempo para pensar, mas sua formaoaloprada, em conflito com a educao modernosa, fez com que argumentasse:
- Baterem meu mestre, jamais. Em primeiro lugar, porque aventura rotineira e,
alm disso, pode me colocar em recuperao. Ridicularizar minha me em pblico
no o faria; primeiro, porque j a julgo ridcula por pensar que aprendo nesta escola
e, em segundo lugar, porque raramente posso v-Ia no pquer ou, principalmente, no
lugar a que chama de casa. Deixe que eu encho a cara de vodka.
O demnio deu uma gargalhada e desapareceu. O aluno, sem pedir licena ao
professor - at mesmo porque na escola nenhum aluno o fazia para nada -
levantou-se, foi padaria e tomou uma garrafa inteirinha de vodka, meia pelo diaboe meia por ele mesmo. Embriagado, voltou escola e deu uma tremenda surra no
seu professor, publicou anncio noEstado ridicularizando sua me e, desde ento,
vive pelas boates da cidade, conhecido como um dos mais poderosos donos da
noite....
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Essa anedota foi escrita, inspirada em uma fbula de Millr Fernandes, h vinte anos
atrs. Pretendia mostrar uma grosseira caricatura da escola e da disciplina do aluno
em sala de aula. Como toda caricatura, valia pelo exagero e destacava-se pelo
ridculo.
Nesses vinte anos houve sensvel mudana e, em algumas escolas, a indisciplina
tornou-se uma verdadeira tragdia. Se no fizermos nada contra essa mudana, a
caricatura, aos poucos, vai virando um retrato.
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Antes que o absurdo vire rotina... (II)
Outra anedota com mais de vinte anos de vida. Mais uma grosseira caricatura do
ensino e do trabalho do professor. Valem para esta as reflexes expostas para acrnica anterior...
Formaram-se ao mesmo tempo, na mesma Faculdade. Um era professor de
Matemtica, o outro de Portugus. Por uma dessas ironias do destino, foram juntos
trabalhar na mesma escola e tinham as mesmas turmas.
O primeiro valorizava em suas aulas a forma, o segundo, o contedo. Para o
professor de Matemtica, o que valia era o aluno contente, solto e entusiasmado.
Para seu colega, a alegria eufrica e imediata no tinha valor, o que importava era o
ensino srio, a aprendizagem construda, as provas rduas e lies que exigiamesforo e pacincia.
Assim, diferentes, caminharam a passos firmes pelo ano letivo adentro, pisando
sempre, com suas diferenas, os cascalhos da educao. O professor de Matemtica,
amado pelos alunos, aplaudido, presenteado; seu colega, causador de fria entre
algumas mes e preocupao constante entre os alunos. Muito amigo, o professor de
Matemtica sempre aconselhava:
- Bobagem apertar, exigir, cobrar. Leve seu barco devagar, aprove todos, solte notas,
finja que no enxerga a preguia, faa pacto com os lderes negativos, no veja a
cola correr...
Nessas horas, o professor de Portugus replicava:
-Voc, por acaso, no conhece a fbula dos dois burros? O que carregava ouro e o
que levava aveia? Pois , um dos dois vivia se vangloriando dos aplausos at que
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tiveram que atravessar um rio. A, meu amigo, o carregado de ouro afundou arcado
pelo
peso e o de aveia, antes desprestigiado, chegou salvo ao outro lado. No. No eno... deixe que eu conserve minha luta, minha seriedade, minha crena... Um dia,
alunos e pais iro reconhecer meu trabalho...
Foi s fazer esse comentrio e um rio simblico surgiu em suas vidas. A Direo da
escola resolveu fazer um Ibope para ouvir alunos e pais sobre a conduta dos
professores. Deveriam indicar os grandes e os professores que no correspondiam
s expectativas daquela escola.
No dia seguinte apurao, a pgina de classificados de um prestigiado jornal trazia
anncio alertando que glamurosa e avanada escola procurava, urgente, um
professor de Portugus.
Moral da anedota/fbula: Antes de receber a carga sobre as costas, observe o tipo de
gua, ou de escola, que dever atravessar.. Existem algumas escolas onde ensinar
no constitui um valor em si mesmo.
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Uma volta ao passado
- Eu amo o passado...
Vibro at minhas entranhas por filmes medievais. Amo velhos livros embolorados e
nada me encanta tanto quanto paisagens que me transportam para sculos atrs com
moas de espartilho e elegantes cavalheiros, de fraque e cartola, atirando seu
sobretudo sobre a lama para que as garotas n
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