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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
CARLOS ALBERTO CASALINHO
A RUA E A UNIVERSIDADE:
GRITOS E SUSSURROS
NA REPRESENTAÇÃO DE SI E DO OUTRO
CAMPINAS
2015
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CARLOS ALBERTO CASALINHO
A RUA E A UNIVERSIDADE: GRITOS E SUSSURROS
NA REPRESENTAÇÃO DE SI E DO OUTRO
Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutor em Linguística Aplicada, na área de Língua Materna.
Orientadora: Profª. Drª. Maria José Rodrigues Faria Coracini Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pelo aluno Carlos Alberto Casalinho e orientada pela Profa. Dra. Maria José Rodrigues Faria Coracini.
CAMPINAS 2015
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BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Maria José Rodrigues Faria Coracini
Profa. Dra. Filomena Elaine Paiva Assolini
Profa. Dra. Marcia Aparecida Amador Mascia
Profa. Dra. Maria de Fátima Silva Amarante
Profa. Dra. Marluza Terezinha da Rosa
Profa. Dra. Ana Maria de Moura Schäffer
Profa. Dra. Fabiana Leite Ribeiro Mariano
Profa. Dra. Maria Alzira Leite
UNICAMP
2015
Ata da defesa com as respectivas
assinaturas dos membros encontra-se no
processo de vida acadêmica do aluno.
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Ao já pensador
Theo
À futura pensadora
Lila
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AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Profa. Dra. Maria José Rodrigues Faria Coracini, pela paciência,
compreensão e carinho com que sempre acompanhou meu trabalho.
Aos meus colegas de curso, por terem participado deste estudo, fornecendo sugestões
e indagações enriquecedoras, além do apoio nos momentos de angústia.
Às companheiras de luta, que especialmente estiveram presentes: Lígia Francisco,
Mariana Peixoto, Marluza, Márcia Barroso e a mineirinha Rejane Brito.
Aos companheiros de viagem, dando tranquilidade e segurança, Antônio Marcos e
Carla Félix, futuros doutorandos.
Aos amigos que acompanharam os momentos de incerteza, em especial aquele que,
mesmo distante, sempre esteve e está presente.
A todos da minha família, pela compreensão e paciência.
Ao Abrigo São Francisco e à Casa de Passagem “Alegria de Viver”, que abriram suas
portas, permitindo a realização desta pesquisa.
A todos os participantes da pesquisa, os chamados moradores de rua e os
universitários, com os quais aprendi muito sobre o outro.
Às Profas. Dra. Maria de Fátima Silva Amarante e Dra. Marluza Terezinha da Rosa
pela compreensão e confiança quando da realização da qualificação da tese.
À FAPEMIG, pela bolsa PCRH, destinada aos professores da UEMG, que
proporcionou a realização deste trabalho.
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Minha alma é como a pedra funerária
Erguida na montanha solitária
Interrogando a vibração dos céus.
Florbela Espanca Ambiciosa
Os outros não são para nós
mais do que paisagem,
e, quase sempre,
paisagem invisível de rua conhecida.
Fernando Pessoa Livro do Desassossego
Mas agora as sereias têm uma arma
ainda mais assustadora que o canto
- o silêncio.
Franz Kafka O silêncio das sereias
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RESUMO
As perspectivas e os conceitos que orientam esta pesquisa se ancoram nos Estudos do
Discurso, sobretudo os desenvolvidos por Michel Foucault, que convergem para o
questionamento a respeito do papel do sujeito e sua relação com o poder, seja ele
disciplinador ou poder-saber. Também são relevantes as noções de identidade, representação e
memória, assim como a relação entre leitura e interpretação, uma vez que a pesquisa se volta
para os efeitos de sentido que emergem nas leituras realizadas pelos participantes da pesquisa.
A metodologia de trabalho consistiu na apresentação de quatro textos a dois grupos sociais
distintos, sendo o primeiro formado pelos chamados moradores de rua e o segundo, por
universitários de um curso de Pedagogia. A ambos foram apresentados os mesmos textos. Os
comentários deles decorrentes foram gravados em áudio e, posteriormente, transcritos para a
análise. O ponto de partida deste trabalho está no pensamento de que falantes de classes
populares não seriam capazes de ler e interpretar textos mais complexos, posto que essa
capacidade seria uma qualidade apenas de classes mais privilegiadas e escolarizadas, o que
resultaria na constatação de que classes sociais diferentes realizariam leituras, também,
diferentes. Esta pesquisa vai em direção contrária a essa visão, pois construímos a hipótese de
que leituras realizadas por grupos distintos guardam fortes similaridades. Ao trabalhar com os
comentários dos chamados moradores de rua e dos universitários, percebemos que seus
dizeres são atravessados por enunciados de diversas formações discursivas e, sendo o discurso
um conjunto de enunciados com regularidades e dispersões, portanto, heterogêneo, a noção de
sujeito que se apresenta é também a de um sujeito fragmentado, não homogêneo. Para tratar
das representações de si e do outro, este estudo colocou em funcionamento a noção de
representação como atrelada à imagem que o sujeito faz de si mesmo pelo olhar do outro.
Além disso, os participantes da pesquisa entrelaçam fragmentos de uma memória discursiva,
carregados de fios de uma realidade ou, talvez, de uma ficção, que lhes permite, ao mesmo
tempo, apresentarem-se semelhantes e diferentes, uma vez que seus comentários são tecidos
de memória e esquecimento.
Palavras-chave: 1.- Discurso; 2.- Representação; 3.- Identidade; 4.- Morador de Rua; 5.-
Universitário
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ABSTRACT
The perspectives and the concepts that guide this research are the ones of the discourse,
mainly the ones developed by Michel Foucault; his studies regarding the role of the subject
and its relation with the power: disciplinarian power or the power/knowledge. The studies on
identity are also important as well as the representation and memory, as well as the relation
between reading and interpreting, since the research turns toward the effects of the sense that
emerge in the reading of the participants of the research. The research methodology consists
of introducing four texts to two distinct social groups; the first one is formed by street people,
and the second one is formed by university students from a Pedagogy course. The two groups
read the same texts, the participant´s commentaries were recorded and then transcribed for
analysis. The thought that pupils of public schools are not capable to read and to interpret
texts more complexes became popular. The capacity of reading and interpreting would be a
goal at wealthy people schools, thus, different social classes would read differently. This
research points at an opposite direction from this point of view, therefore, we formulate the
hypothesis that distinct groups have similar reading interpretation. In the commentaries of the
street people and the college students, we noticed that their sayings are crossed by other
discursive formations. The discourse is a set of utterances with regularities and dispersions,
thus the subject is also presented with regularities and dispersions, a fragmented subject, not
homogeneous. Then, to study the subject‟s representation of itself and the other it is the
necessary a research that deals with the representations that the subject brings about itself and
that it constructs through the eye of the other. The participants intertwine fragments of a
memory that is full of reality threads or perhaps of a fiction that allows them to present
themselves as equal and similar one to each other, since their comments are woven of
memory and oblivion.
Key-words: - 1- Discourse; 2- Representation; 3 - Identity; 4 - Street people; - University
professor
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Placa colocada no jardim – Serviço de Obras Sociais .............................................. 32
Figura 2: Menino conduzindo pequena charrete ...................................................................... 36
Figura 3: Menino engraxate ...................................................................................................... 36
Figura 4: Engraxates na praça da cidade ................................................................................. 37
Figura 5: Arquitetura antimendigo 1 ........................................................................................ 46
Figura 6: Arquitetura antimendigo 2 ........................................................................................ 47
Figura 7: Grades na entrada da Igreja Matriz ........................................................................... 48
Figura 8: Moradores trabalhando como chapas ........................................................................ 97
Figura 9: Destruição da construção dos moradores .................................................................. 97
Figura 10: Texto 1 - “Folgado” .............................................................................................. 111
Figura 11: O poder nas caçadas em Poços de Caldas ............................................................. 112
Figura 12: Texto 2 - Publicidade da Administração Municipal ............................................. 113
Figura 13: Texto 3 - Propaganda do Governo Federal ........................................................... 116
Figura 14: Texto 4 - Artigo de Antonio Ermínio de Moraes ................................................ 1198
Figura 15: O Grito .................................................................................................................. 182
Figura 16: Gritos e sussurros .................................................................................................. 183
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 12
1. TRILHANDO CAMINHOS................................................................................................. 19
1.1.- Ponto de Partida: poderes-saberes da Rua e da Universidade .......................................... 19
1.2.- A Cidade e a Rua .............................................................................................................. 29
1.2.1.- A Cidade: locus do poder .......................................................................................... 29
1.2.2.- A Rua: bolhas de pobreza .......................................................................................... 41
1.3.- Universidade, locus do saber ............................................................................................ 49
2. PERSPECTIVAS E CONCEITOS ....................................................................................... 54
2.1.- Introdução ........................................................................................................................ 54
2.2.- O Homem e o Discurso .................................................................................................... 54
2.3.- O Sujeito e o Poder .......................................................................................................... 65
2.4.- Identidade e Representação .............................................................................................. 72
2.5.- Território e Memória ........................................................................................................ 75
2.6.- Corpo e Poder ................................................................................................................... 79
2.7.- Ler e Interpretar ................................................................................................................ 80
3. GRITOS E SUSSURROS NA RUA E NA UNIVERSIDADE ........................................... 90
3.1.- Introdução ........................................................................................................................ 90
3.2.- A rua e a constituição dos sujeitos discursivos ................................................................ 90
3.3. - A construção do corpus ................................................................................................. 101
3.4.- Os textos e seus efeitos de sentido ................................................................................. 110
3.5.- Gritos e sussurros no movimento de análise .................................................................. 121
3.5.1.- Banco de jardim: que espaço é esse? ....................................................................... 121
3.5.2.- Dignidade e cidadania, para quem? ......................................................................... 140
3.5.3.- Enquanto isso, na esfera federal... .......................................................................... 160
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3.5.4.- Que lugar é este? ..................................................................................................... 171
4. A RUA E A UNIVERSIDADE: GRITOS E SUSSURROS NA REPRESENTAÇÃO DE SI
E DO OUTRO ........................................................................................................................ 182
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 190
ANEXOS .............................................................................................................................. 198
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APRESENTAÇÃO
Em um tempo que já vai longe, recebi de meus pais a obra completa de Monteiro
Lobato: “O Sítio do Pica-Pau Amarelo”. Começava ali minha aventura com a leitura. Ao lado
da descoberta das primeiras letras, encantei-me por um novo universo que se me apresentava
através de letras, palavras, vírgulas e pontos. Sinais que viriam a determinar toda minha vida.
Chegado o momento da escolha profissional, encaminhei-me para a área de Ciências
Humanas, licenciando-me em Letras e, mesmo tendo trabalhado um tempo em uma indústria,
dediquei-me completamente ao magistério. Nada foi mais gratificante e questionador, pois me
envolvi com vários níveis de ensino, tanto público quanto particular, lecionando inclusive na
zona rural. Gratificante pelo fato de a linguagem permitir, através da leitura, criar novas
visões de mundo, não só nos jovens leitores, mas também em mim; questionador, porque
comecei a perceber que um grande número de alunos e professores tendia a repetir as ideias e
sugestões apresentadas pelos livros que eram trabalhados em sala de aula. Envolvi-me,
também, com o ensino superior, trabalhando na faculdade onde me formei e em outras
universidades. Em uma delas, no curso de Direito, dediquei-me, especificamente, à disciplina
de Linguagem Forense. Vi-me, então, no centro de um grupo social formado por
desembargadores, promotores e juízes, a quem a palavra era a lei, o próprio Poder. Buscando
compreender esse discurso jurídico desenvolvi minha dissertação de mestrado em Linguística,
na UNICAMP, apresentada no ano de 2004. Algumas leituras realizadas na minha pesquisa de
mestrado (CASALINHO, 2004), acabaram, também, contribuindo para o desenvolvimento
deste trabalho.
Desde aquele ano de 2004 até a presente data, várias universidades instalaram-se
na cidade de Poços de Caldas, onde, hoje, desenvolvo minhas atividades como professor em
um curso noturno de Pedagogia, além de trabalhar no ensino médio da rede pública estadual.
Na Universidade, pertenço ao Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino e ministro as
disciplinas de Língua Portuguesa e Conteúdos e Metodologias de Língua Portuguesa na
Educação Infantil e nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Quanto à pesquisa, participo
do grupo que desenvolve estudos sobre “Trabalho Pedagógico e Formação Docente”,
vinculado ao CNPq, desde o ano de 2012.
Ao participar de atividades realizadas nas praças da cidade, durante as chamadas
“Semana do Pedagogo”, comecei a perceber certa resistência dos alunos em se envolverem
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com pessoas a quem poderíamos chamar de moradores de rua. Sempre que uma pessoa
maltrapilha se aproximava, um dos organizadores da atividade, professor ou aluno, buscava
afastá-la, deixando espaço livre para alguma criança ou qualquer outro adulto, desde que se
apresentasse bem vestido. Em um primeiro momento, pensei tratar-se de um interesse
específico no trabalho com crianças, uma vez que, desde 2008, o curso de Pedagogia tem
como objetivo a Educação Infantil e as Séries Iniciais do Ensino Fundamental. No caso de um
maltrapilho, a tentativa de afastamento poderia buscar, assim, evitar uma interferência
negativa ao trabalho que estava sendo desenvolvido naquele momento.
Em um dos núcleos formativos do curso, trabalhei com um memorial de leitura
dos universitários e vários questionamentos sobre o ato de ler e o ensino da leitura foram
colocados pelos alunos. A partir desse memorial, elaborei o projeto de doutoramento no
Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UNICAMP. Com a aprovação no
processo seletivo e em conversa com minha orientadora, Profa. Dra. Maria José Rodrigues
Faria Coracini, optamos por trabalhar a leitura e sua relação com a pobreza. Após algumas
pesquisas junto a projetos desenvolvidos pela promoção social de Poços de Caldas,
fragmentos de minha memória levaram-me àquele domingo em que alunos, de certa forma,
recusavam-se a estar juntos aos chamados moradores de rua.
Assim, passei a integrar o grupo de pesquisa coordenado pela professora,
intitulado “Vozes (In)fames: Exclusão e Resistência”, e comecei a constituir o corpus de
minha pesquisa com base nos comentários feitos a respeito de leituras dos mesmos textos,
realizadas pelos chamados moradores de rua e pelos universitários do curso de Pedagogia, da
Faculdade de Educação, da Universidade do Estado de Minas Gerais. As participações nas
atividades desenvolvidas durante o período de pós-graduação, juntamente com as reuniões do
grupo de pesquisa, contribuíram para aprofundar minhas leituras nos Estudos do Discurso,
desenvolvidos por Michel Foucault e outros autores. Desse modo, esta pesquisa busca
estabelecer diálogos com diversos trabalhos desenvolvidos no grupo “Vozes (In)fames:
Exclusão e Resistência”, dentre os quais enfatizamos aqueles realizados por Uyeno (2011,
2013), a respeito da relação entre os moradores de rua e as lettres-de-cachet, bem como entre
estes e o ciberespaço; os desenvolvidos por Máscia (2011, 2014), tanto sobre o discurso de
exclusão e a resistência na voz de Estamira, quanto sobre os fragmentos de vida da “mulher
do saco preto”; e, finalmente, os de Coracini, sobre a exclusão e a resistência (2003, 2006,
2007, 2011a, 2011b, 2014).
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A inquietação perante o que se tem feito a respeito do ato de ler nas escolas,
principalmente no Ensino Médio, mas também no Ensino Superior, é outro fator motivador
deste estudo. No curso de Pedagogia, cujos estudantes contribuíram para a constituição do
corpus de nossa pesquisa, a grande maioria dos alunos chega à universidade com grande
dificuldade de leitura. Para aqueles que leem um pouco mais, o que se entende por leitura se
resume à ideia central e à estrutura do texto, reflexo do que é ensinado no Ensino Médio. Nas
escolas, o ato de ler tem se resumido a algumas aulas, nas quais os alunos são levados a
preencher fichas enfadonhas, a respeito de aspectos estéticos e estruturais de obras literárias,
sejam aquelas escolhidas pelo professor, sejam as determinadas pelo vestibular de alguma
Instituição de Ensino Superior. Poucas são as escolas que se preocupam em trabalhar o ato de
ler sob um aspecto que desenvolva nos alunos a criticidade e a capacidade de questionar o que
se lê. É comum ouvir-se que muitos alunos, por serem de classes populares, não têm acesso a
um mundo cultural mais amplo e não serão capazes de ler e interpretar textos mais
complexos. Essa capacidade seria, portanto, uma qualidade apenas das classes mais
privilegiadas, o que indicia, segundo essa visão, que classes sociais diferentes realizariam
leituras diferentes.
Todavia, apesar do pressuposto de que grupos sociais diferentes, ao serem
colocados frente a um mesmo texto, realizariam interpretações distintas e, por vezes,
antagônicas, construímos a hipótese de que as leituras realizadas nessa circunstância
guardariam fortes similaridades. A fim de desdobrarmos a nossa hipótese, levantamos os
seguintes questionamentos: 1) que efeitos de sentido emergem nas/das leituras realizadas
pelos chamados moradores de rua e pelos universitários? 2) que representações de si e do
outro emergem nas/das leituras realizadas pelos participantes da pesquisa? 3) que traços de
resistência irrompem nas/das leituras realizadas pelos chamados moradores de rua e pelos
universitários?
Esta pesquisa visa a contribuir para a construção de um novo olhar sobre os
chamados moradores de rua, que não se limite a aspectos emocionais – piedade ou desprezo –,
mas que possa trazer para o debate acadêmico uma discussão centrada nos diversos aspectos
da pobreza. Temos como objetivos específicos: a) problematizar a situação em que se
encontram os chamados moradores de rua; b) observar os discursos que atravessam as
formações discursivas em que se encontram tanto os chamados moradores de rua, quanto os
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universitários; c) observar as regularidades e as dispersões nos comentários realizados pelos
participantes da pesquisa frente aos textos lidos.
Considerando os objetivos propostos, partimos do pressuposto de que tanto os
dizeres do chamado morador de rua, quanto os dizeres dos universitários do curso de
Pedagogia, colocam em funcionamento as representações de si e do outro. Iniciamos nosso
trabalho, analisando a constituição histórica da cidade de Poços de Caldas e a disseminação de
um discurso higienista com a finalidade de manter sua característica de cidade turística. O
turismo é visto como fonte de manutenção e de renda, tendo em vista a comercialização das
recordações manufaturadas em madeira, a venda de queijos e de objetos em cristais
característicos, o que não perde de vista o discurso capitalista que, desde o início de sua
fundação, alavancou a cidade, inicialmente, frequentada pela alta sociedade de todo o país,
tendo em vista os cassinos para jogos, passando, depois da proibição dos jogos, a receber
outro tipo de visitantes, mas sempre preocupada em manter a cidade limpa de mendigos e
pedintes. Mesmo com a vinda de empresas multinacionais e universidades, a cidade não
deixou de se preocupar com a higienização de suas ruas, praças e jardins.
Para esta pesquisa, a primeira preocupação foi a constituição de um corpus de
leitura. Para tanto, pesquisamos, em jornais da cidade de Poços de Caldas, textos sobre a
pobreza. Dentre os jornais pesquisados, optamos pelo Jornal da Cidade, que apresenta textos
com assuntos direcionados à pobreza e não apenas textos com fotos dos chamados moradores
de rua dormindo ao relento e dados estatísticos sobre moradores de rua, apresentados pelos
outros jornais da cidade. Os textos escolhidos foram publicados durante o ano de 2011.
Selecionamos, também, um texto mais antigo, datado de 24/08/1997, ano em que ocorreu um
fato que provocou grande impacto na população brasileira, embora o texto escolhido não se
refira, em nenhum momento, a esse fato.
No dia 20/04/1997, o índio Galdino Jesus dos Santos foi queimado vivo em uma
parada de ônibus da W3 Sul, um dia após a comemoração do dia do Índio. Galdino havida
chegado a Brasília no dia 18 de abril, para debater com autoridades do poder público a
situação da terra de seu povo, localizada ao sul da Bahia. No dia seguinte, participou de um
evento organizado pela FUNAI em comemoração ao dia do Índio. Na volta para a pensão
onde estava hospedado, Galdino se perdeu e acabou dormindo em um ponto de ônibus na Asa
Sul. Por volta das 5h, cinco jovens (um menor de idade) que passavam pelo local resolveram
atear fogo contra o índio, alegando, posteriormente, que pensavam ser um mendigo. Galdino
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teve 95% do corpo queimado e morreu logo após chegar ao hospital. O fato de alegarem que
“pensavam ser um mendigo”, portanto um mendigo poderia ser queimado, como um lixo,
feito algo descartável, levou-me a escolher um texto de Antônio Ermírio de Moraes,
empresário paulista, publicado na Folha de São Paulo. Procurei ver a possibilidade de esse
acontecimento trágico ter permanecido na memória dos participantes da pesquisa – ou,
mesmo, de os coordenadores das instituições sociais terem comentado com os albergados o
fato de alguns moradores terem sido encontrados mortos na cidade. Isso porque, há cerca de
vinte anos, um adolescente, morador de rua, de nome Beiçola, também foi assassinado e seu
corpo queimado nas proximidades das Termas Antônio Carlos. Trata-se de um fato antigo,
perdido, talvez, na memória das pessoas, mas que poderia ser resgatado como forma de
controle e manutenção dos chamados moradores de rua dentro dos abrigos e casa de
passagem.
Para o levantamento do corpus constituído pelos comentários dos chamados
moradores de rua e dos universitários, foram apresentados a eles os mesmos textos: o
primeiro, um comentário a respeito de alguém ter colocado as roupas para secar em um banco
de um parque famoso da cidade. O segundo, uma propaganda da Secretaria de Promoção
Social da Prefeitura Municipal da cidade sobre o trabalho desenvolvido com os pedintes. Já o
terceiro, uma publicidade do governo federal, a respeito da assistência àqueles em extrema
pobreza e, finalmente, o artigo da Folha de São Paulo, de autoria do empresário paulista.
Todos os participantes deveriam ser alfabetizados, uma vez que leriam os textos e, em
seguida, teceriam seus comentários.
O primeiro procedimento realizado foi a solicitação da autorização da presidência
ou coordenação das instituições responsáveis pelo acolhimento dos chamados moradores de
rua, como também da coordenação do curso de Pedagogia da Universidade do Estado de
Minas Gerais, tendo em vista o fato de os participantes da pesquisa pertencerem a esses
grupos distintos. Aos coordenadores e presidente das instituições foi explicada a pesquisa e
entregue um documento comprobatório das atividades a serem realizadas. Após a autorização,
levantou-se o nome dos interessados em participar do estudo, aos quais se explicou, de
maneira geral, a pesquisa. Foi determinado um horário para cada um dos participantes, de
acordo com suas possibilidades. No encontro realizado individualmente, explicava-se
detalhadamente a pesquisa, lia-se e explicava-se o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, que era assinado e tinha uma cópia entregue à coordenação, no caso dos
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chamados moradores de rua, e aos universitários. Ao se apresentar cada texto aos
participantes, a pergunta desencadeadora foi: “o que você fala sobre esse texto?”. Embora
sabendo da relação de poder que o pesquisador exerce sobre o pesquisado, procurei me
manter em silêncio, durante todo o dizer dos participantes, deixando que eles falassem
livremente. Os comentários foram gravados, com sua autorização, e, posteriormente,
transcritos.
Este trabalho está organizado em quatro capítulos. O primeiro capítulo trata das
condições de produção do corpus da pesquisa e se denomina “Trilhando Caminhos”. Nele são
abordados aspectos históricos da cidade de Poços de Caldas, relevantes para o trabalho, uma
vez que, sendo uma cidade turística, desde cedo muito procurada por suas águas termais e por
seus cassinos, superlotados na época dos jogos liberados, sempre se preocupou em ser uma
cidade limpa e sem mendigos. Todas as instituições voltadas para a assistência social, em sua
origem, foram fundadas por pessoas bem aquinhoadas socialmente, revestidas por uma
caridade, senão social, assistencialista religiosa. Nesse capítulo também são apresentados os
abrigos e casa de passagem que acolhem os chamados moradores de rua, os quais habitam o
que chamamos de bolhas de pobreza da cidade, além de ser apresentada a universidade como
locus do saber, onde se situam os outros participantes da pesquisa, os universitários.
O segundo capítulo, “Perspectivas e Conceitos”, ancora-se nos estudos sobre o
discurso, bem como sobre o papel do sujeito e sua relação com o poder, desenvolvidos por
Michel Foucault. É abordada, também, a questão da identidade, relacionada à representação
que a sociedade faz do chamado morador de rua e à representação que o morador de rua faz
de si mesmo. O território e o papel da memória, constituída de fragmentos e atravessada pelo
esquecimento, integram os conceitos teóricos estudados nesse capítulo, além de visões sobre
leitura e a interpretação, visando à análise da leitura que os dois grupos farão sobre os
mesmos textos.
O terceiro capítulo, “A Rua e a Universidade no Movimento da Análise”, traz a
constituição do sujeito discursivo, os chamados moradores de rua e os universitários, a
apresentação dos textos aos participantes da pesquisa e os efeitos de sentido que emergiram
dos comentários realizados. Os resultados da análise desses efeitos de sentido, produzidos na
e pela leitura dos mesmos textos, encerram o capítulo.
No quarto e último capítulo, “Gritos e Sussurros na representação de Si e do
Outro”, partindo do modo como podem ser lidos os termos “gritos e sussurros”, chego às
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conclusões finais a respeito das representações de si e do outro; representações estas
semelhantes e diferentes, que emergiram, como efeitos de sentido, nas leituras dos
participantes da pesquisa, os chamados moradores de rua e os universitários. Sendo a proposta
de contribuição acadêmica deste trabalho a de um novo olhar voltado para os chamados
moradores de rua, busco encerrar, transformando em pergunta a última frase de Hamlet: “O
resto é silêncio”?
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1. TRILHANDO CAMINHOS
1.1.- Ponto de Partida: poderes-saberes da Rua e da Universidade
Em nossas cidades, (co)existem, lado a lado, diferentes grupos, cada qual
habitando seu próprio espaço: grupos que se configuram como unidades homogêneas e
diferenciadas, sem relação entre si. Até meados da década de 70, aproximadamente, nas
cidades, estabeleciam-se relações de vizinhança, através das “cadeiras nas calçadas”; nos anos
seguintes, a cidade acabou por se criar como um lugar de estranhos. As ruas, as praças, os
bairros já não são mais lugares de encontro; morar na mesma rua, no mesmo bairro não
estabelece mais relações de vizinhança. Perderam-se as formas de reunião de pessoas em
torno de algo comum, o que aponta para o que parece ser uma verdadeira privatização dos
espaços.
Ao mesmo tempo em que ruas e seus entornos não privilegiam mais encontros de
pessoas, a cidade, como um todo formado por espaços públicos e privados, possibilita
diferentes efeitos de sentido. Ricoeur ([2000] 2008) concebe a cidade como uma teia de
significações em que
a cidade se dá ao mesmo tempo a ver e a ler. O tempo narrado e o espaço
habitado estão nela mais estreitamente associados do que no edifício isolado.
A cidade também suscita paixões mais complexas que a casa, na medida em que oferece um espaço de deslocamento, de aproximação e de
distanciamento (RICOEUR, [2000] 2008, p. 159).
Entre as possibilidades de ver e ler a cidade, pontuamos, para este trabalho de
pesquisa, a rua e a universidade, espaços ligados entre si pelo momento histórico-social em
que se situam e, separados, não só pela localização física, mas também pela maneira de viver
e de se portar perante a sociedade.
Quando falamos “Rua”, pensamos naqueles que, sem endereço fixo ou qualquer
outro ponto de permanência particular, fazem do espaço público sua casa, o que contribui para
a identidade daqueles que se encontram em situação de rua. A “Universidade” se refere
àqueles que chegaram ao curso de Pedagogia e ocupam a posição de um suposto saber que,
em princípio, representaria o domínio sobre o processo de construção do conhecimento e suas
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interpretações. Sustenta-se, desta forma, a diferenciação entre os dois grupos participantes da
pesquisa – os chamados moradores de rua e os universitários –, separados pelos espaços
físicos que constituem nossas cidades: o público e o privado.
Ruas também fazem parte da Universidade e trazem nomes e histórias de vida no
entrecruzamento de diferentes formações discursivas, uma vez que muitos estudantes fazem
da Universidade a sua casa, não apenas em relação às denominadas moradias ou residências
universitárias, mas também no sentido de encontrarem na Universidade lugares de convívio e
de sociabilidade. Os estudantes buscam não estar sozinhos: há uma interpenetração entre eles
e a Universidade, um no outro e um com o outro, complementando-se.
O espaço urbano constitui-se do público e do privado e sofre transformações, na
medida em que a própria sociedade se transforma. Pensar a relação entre esses espaços é
pensar a relação do homem consigo mesmo e com outros homens. Ao trabalhar a relação
entre o público e o privado, Arendt ([1958] 2010) afirma que o termo “público” remete a dois
fenômenos intimamente correlatos, mas não completamente idênticos. Em primeiro lugar,
tudo o que vem a público está acessível a todos, pode ser visto e ouvido por todos. No
momento em que divulgamos algo que nos diz respeito, que integra o privado, esse privado
torna-se público, mas há a necessidade de o outro partilhar a realidade do mundo e de nós
mesmos. Em segundo lugar, “público” tem a ver com a ideia de algo comum. Desta forma,
somente há interesse comum, na medida em que esse mesmo interesse é partilhado por
indivíduos que se relacionam. Continua Arendt ([1958] 2010):
conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas
interposto entre os que o possuem em comum, como uma mesa se interpõe
entre os que se assentam ao seu redor; pois como todo espaço-entre [in-
between], o mundo ao mesmo tempo separa e relaciona os homens entre si
(ARENDT, [1958] 2010, p. 64)
Assim, ao mesmo tempo que, em princípio, postula-se uma imbricação entre
público e privado, com a sociedade de massas, aponta-se para o fato de o homem perder a
capacidade de viver em comum, limitando-se ao mero consumo, esquecendo-se das pessoas.
Seguindo os caminhos apontados por DaMatta ([1984] 1986; [1997] 2000),
podemos afirmar que o público e o privado são muito mais do que simples espaços
geográficos; são espaços carregados de sentido. Ao apresentar o espaço privado, DaMatta
([1984] 1986; [1997] 2000) substantiva-o como o mundo da casa, enquanto concebe o público
como o mundo da rua.
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O mundo da casa é o local da moradia, da calma, da tranquilidade, um possível
refúgio dos acontecimentos do dia a dia. Quando falamos da casa, não estamos nos referindo
simplesmente a um local onde dormimos, comemos ou estamos abrigados, mas a um espaço
que se constitui por valores e realidades. Tudo o que está no espaço da casa é considerado
bom, algo que contrasta com a morada coletiva das prisões, dos alojamentos, dos albergues,
dos abrigos, dos hotéis e motéis, locais que não podem ser nomeados “casa”. Estes são
lugares que se opõem, conforme Foucault ([2009] 2013), a todos os outros, destinados a
apagá-los, neutralizá-los ou, até mesmo, lançá-los em um processo de purificação, uma
espécie de contraespaço, uma heterotopia, um espaço completamente outro.
Assim, o mundo da rua é o espaço reservado ao perigo, à violência. Na rua, as
pessoas são comuns, indiferenciadas e desconhecidas, o que faz do espaço público um local
que nos isola ao nos agrupar. Da mesma forma que a casa, a “rua” é mais do que um espaço
físico, pois constitui uma espécie de perspectiva, pela qual o mundo pode ser lido e
interpretado. Geralmente, na rua está também o trabalho, cujos sentidos são explorados, por
DaMatta ([1984] 1986), por meio do resgate de sua origem na palavra latina tripaliare, que
significa “castigar com o tripaliu”, instrumento que, na Roma Antiga, era um objeto de
tortura, consistindo numa espécie de canga, utilizada para o suplício dos escravos.
Analogamente, no livro do Gênesis, que abre a Bíblia judaico-cristã, a palavra trabalho está
associada ao castigo, como punição ao homem pelo seu ato de desobediência a Deus.
A luta e a crueldade presentes na rua são também abordadas por DaMatta ([1984]
1986), ao compará-la a um rio,
como um rio, a rua se move sempre num fluxo de pessoas indiferenciadas e
desconhecidas que nós chamamos de “povo” e de “massa”. As palavras são
reveladoras. Em casa, temos as “pessoas”, e todos lá são “gente”: “nossa
gente”. Mas na rua temos apenas grupos desarticulados de indivíduos – a
“massa” humana que povoa as nossas cidades e que remete sempre à
exploração e a uma concepção de cidadania e de trabalho que é nitidamente
negativa. De fato, falamos da “rua” como um lugar de “luta”, de “batalha”,
espaço cuja crueldade se dá no fato de contrariar frontalmente todas as
nossas vontades (DaMATTA, [1984] 1986, p. 31).
Assim, em nossa sociedade, espaço público e espaço privado, ao mesmo tempo
em que interagem e, de certa forma, complementam-se, são também marcados por uma
relação de oposição e tensão. Isso porque as marcas da sociedade moderna e liberal se
associam à organização do social, na qual o público se encontra separado do privado, já que o
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sistema produtivo se assenta na propriedade privada e, apesar de as pessoas viverem em
comunidade, a impessoalidade predomina nas relações sociais.
A organização das pessoas tem sido regida por uma representação identitária em
que se sobressai, não só o individualismo, mas o hiperindividualismo, o individualismo
exacerbado. Consequentemente, o contato direto com o outro se encontra parcialmente
interditado pelas condições de violência assumidas pela vida urbana e também pelo próprio
padrão de vida íntima e familiar, uma vez que estar na rua, segundo DaMatta ([1997] 2000) é
estar exposto à violência. Para a autora,
na rua é preciso prestar atenção para não violar hierarquias não sabidas ou
não percebidas. E para escapar do cerco daqueles que nos querem iludir e
submeter, pois a regra básica do universo da rua é o engano, a decepção e a
malandragem, essa arte brasileira de usar o ambíguo como instrumento de
vida. Na rua, então, o mundo tende a ser visto como um universo
hobbesiano, onde todos tendem a estar em luta contra todos (DaMATTA,
[1997] 2000, p. 91).
A delimitação do público e do privado, com o superinvestimento no íntimo e no
familiar como constitutivos da subjetividade moderna, facilita a construção e a manutenção da
crença na importância do privado, concomitante à desvalorização do público. No Brasil, um
bem público que, em princípio, seria de todos, é considerado pela população brasileira como
algo que não é de ninguém. Os chamados moradores de rua, vendo-se como sujeitos de direito
natural, acabam por privatizar aquilo que é público, pois, talvez, seja apenas o que lhes resta
para poder considerar seu.
Pensar o público e o privado é, assim, pensar o papel do cidadão e o seu direito à
cidade, que constitui uma exigência, um apelo ético e político, face ao crescente afastamento
dos habitantes para com a cidade. Lefebvre ([2001] 2011) afirma que:
o direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à
liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O
direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem
distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade
(LEFEBVRE, [2001] 2011 p. 134).
Afirmar a própria cidade como direito, significa a possibilidade que cada
indivíduo possui de habitá-la, porque ela é um espaço jurídico, um lugar para a afirmação e o
exercício das suas realizações como homem, o lugar onde estão localizados os cidadãos. A
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cidade é a estrutura espacial em que se consubstancia a ideia dos direitos do homem. Portanto,
ter direito à cidade significa ter acesso a trabalho, saúde, habitação, lazer, cultura, serviços e a
tudo aquilo o que ela pode proporcionar ao homem como sendo sujeito de direitos.
Em decorrência disso, pensar em direitos é pensar em Democracia e Cidadania.
Remetendo-nos à Democracia – que, etimologicamente, vem do grego demos (muitos/povo) e
cracia (governo) –, podemos compreender que, desde sua origem, tratava-se de um regime
político, no qual a maioria dos cidadãos tinha participação política, embora nem todos fossem
considerados cidadãos, já que mulheres e escravos eram excluídos desse processo. A
Democracia, historicamente, apresenta-se como um conjunto de princípios e práticas
associadas aos direitos dos indivíduos como um todo, portanto, também das minorias sociais.
Por ter como uma de suas principais funções a de proteger os direitos fundamentais do
cidadão, o conceito de Democracia imbrica-se ao de Cidadania.
A palavra “cidadão”, na Grécia antiga, indicava o indivíduo nascido na Pólis e
que, como tal, possuía direitos políticos. Porém, com o desenvolvimento da humanidade e da
vida em sociedade, o conceito ampliou-se, incorporando também deveres. Ser cidadão
implica, assim, preocupar-se e exercer ações que garantam o desenvolvimento da sociedade,
logo, de todos os seus componentes, o que repercute na preservação do direito dos outros.
Ora, o grande fator de desenvolvimento da Democracia em um país é a preparação para o
exercício da Cidadania, a qual deve ser um dos objetivos da Educação, em todos os seus
níveis, fortalecida pela Universidade. Ao pleno exercício da Cidadania e da Democracia
associam-se a igualdade e o respeito para com os indivíduos de todas as classes sociais,
incluídos os chamados moradores de rua.
Voltemos nosso olhar, então, para a questão do direito, enquanto direito natural,
que se apresenta, em sua origem, impregnado de essência divina e pode, em última análise,
ser definido como aquilo que é justo e que consiste em dar a cada qual o que é seu
(MARINHO; MARINHO, 1980, p. 8). A ideia de uma justiça divina que rege pobres e ricos,
fracos e poderosos, quando uma injustiça é cometida, transgredindo a lei eterna, encontra-se
em todas as fontes históricas, sejam mitológicas ou bíblicas, literárias ou filosóficas. Homero,
Hesíodo, Píndaro e Sófocles cantaram em seus versos a infalível justiça divina.
Com Platão e Aristóteles e, depois, Cícero e Sêneca, o direito natural se estrutura,
caracterizado pela existência de uma lei civil, criada pelos homens, variável no tempo e no
espaço, e uma lei natural comum a todos os homens, imutável no tempo e no espaço. Os
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efeitos de sentido que emergem dessa variabilidade e imutabilidade apontam para os
princípios jurídicos do Direito Positivo – coercitivo, imposto pelo Estado, fruto da vontade do
homem, variável no tempo e no espaço – e do Direito Natural – conjunto de normas eternas
inscritas na consciência dos homens. Assim, sentir a justiça, sem precisar fundamentá-la no
Direito Positivo, é acreditar no Direito Natural, o que significa dizer que existe em nós o
sentimento de justiça não expresso em normas e convenções (MARINHO; MARINHO, 1980,
p. 15).
O sentimento de justiça não expresso em normas e convenções permeou as obras
clássicas gregas, principalmente através dos personagens de suas tragédias, os quais
colocavam em cena conflitos em busca da verdade e da justiça. A tragédia permite-nos
compreender como o grego, impetuoso em seus desejos, apto para o sofrimento não suportaria
a existência se esta não lhe fosse apresentada através da miragem dos habitantes do Olimpo. É
assim que Nietzsche ([1871] 1999, p. 29) apresenta-nos o povo grego e sua relação com a
tragédia. Para Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o saber
místico da unidade da vida e da morte e, nesse sentido, constitui uma abertura para o
entendimento da arte como o único caminho para converter o susto e o absurdo da existência
em algo com o qual se possa (con)viver.
Os autores gregos falam de heróis em luta contra o destino e dos deuses sempre
presentes para recompensar a coragem e punir a rebeldia. Entre o herói e os deuses, surge o
Estado, personificado na figura do rei, constituindo o homem como sujeito de direito, pois é
necessário que cada indivíduo se sinta responsável por seus atos e palavras, para que o poder
disciplinador possa exercer melhor o controle sobre ele. Ainda hoje, na contemporaneidade, o
Estado vê o indivíduo, não vê o sujeito.
Voltemos aos poetas gregos e sua contribuição para que o homem não se pensasse
apenas como um indivíduo participante de uma sociedade, porém como sujeito de direito
desta. Podemos tomar como exemplo de sujeito de direito natural a figura dolorosa de
Antígone e seu heroísmo diante de Creonte1, em Antígone de Sófocles. Antígone, repelindo as
ameaças do tirano, defende as leis divinas e a tradição que o rei Creonte viola e, obstinada,
bate-se, com fervor, na exigência do sepultamento de seu irmão Polinices, cujo cadáver seria
entregue às aves de rapina (SÓFOCLES, 2001).
1 Importante não confundir Creonte, rei de Tebas, em “Antígone” de Sófocles e, Creonte, rei de Corinto em
“Medéia” de Eurípides.
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Antígone deveria cumprir um dever familiar de dar sepultura a seu irmão, uma lei
não escrita, mas inerente ao próprio ser humano e que não pode ser revogada pela vontade dos
homens. Tal como dar sepultura a alguém, tantas outras situações mais comuns e simples,
como ocupar um espaço vazio nas ruas de uma cidade, são leis não escritas, que não se
conhece de onde vieram nem quando apareceram. E os fatos vão se repetindo ao correr da
história, o que leva Foucault ([1973] 1999) a afirmar que
seria interessante tentar ver como se dá, através da história, a constituição de
um sujeito que não é dado definitivamente, que não é aquilo a partir do que a
verdade se dá na história. Mas de um sujeito que se constitui no interior
mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado pela história
(FOUCAULT, [1973] 1999, p. 10).
Retomando a tragédia Édipo-Rei, Foucault ([1973] 1999) nos diz, a respeito de
Antígone:
muitas peças de Sófocles, como Antígone e Electra, são uma espécie de
ritualização teatral da história do direito. Esta dramatização da história do
direito grego nos apresenta um resumo de uma das grandes conquistas da
democracia ateniense: a história do processo através do qual o povo se
apoderou do direito de julgar, do direito de dizer a verdade, e opor a verdade
aos seus próprios senhores, de julgar aqueles que os governam
(FOUCAULT, [1973] 1999, p. 54).
A verdade, para Foucault ([1969] 2013) é um conjunto de procedimentos com a
finalidade de produzir a circulação e o funcionamento dos enunciados, e está, dessa forma,
ligada a sistemas de poder, como veremos no próximo capítulo. Ainda, segundo Foucault
([1973] 1999), é através das práticas judiciárias que se arbitram danos e responsabilidades do
ser humano, bem como a forma como os homens, constituídos como sujeitos do
conhecimento, podem ser julgados pelo Direito.
Ao compreender o sujeito de direito, Edelman (1980) parte do princípio de que
todo homem o é naturalmente, sendo sempre sujeito, independentemente de sua vontade. Essa
constituição do sujeito de direito, sem sombra de dúvida, marca o nascimento do discurso
jurídico, que, através de um conjunto de normas sobre as relações sociais e econômicas,
assegura seu funcionamento, ao mesmo tempo em que o Estado passa a existir pela mediação
dos sujeitos de direito.
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O funcionamento da ideologia jurídica, para Edelman (1980), é suficiente por si
mesmo e sua função é a necessidade de sua própria ficção, o que permite uma prática abstrata.
Assim, pensar-se como um sujeito de direito, é atribuir-se um poder concreto que lhe permite
práticas também concretas. A relação entre ambas movimenta o funcionamento jurídico, fator
que postula uma imbricação necessária entre elas:
de um lado, o sujeito de direito existe em nome do Direito, quer dizer que o
Direito lhe dá seu poder, que é dar-lhe o direito de poder outorgar-lhe um
poder e, por outro lado, esse poder retorna a ele mesmo, o poder do Direito
nada mais é que o poder dos sujeitos de Direito: o sujeito reconhece a si
mesmo em todos os sujeitos (EDELMAN, 1980, p. 47)2.
Miaille (1979), a partir da análise das relações sociais no escravagismo e no
feudalismo, questiona a noção de sujeito de direito como equivalente à de indivíduo, pois o
que determinava ser sujeito de direito era a existência da propriedade privada, assim, os
escravos, não tendo condições de ser proprietários e muito menos credores, não eram sujeitos
de direito. Para Miaille (1979, p. 110), “não é natural que todos os homens sejam sujeitos de
direito, isto é efeito de uma estrutura social bem determinada: a sociedade capitalista”.
Subjugados, pois, por essa sociedade, submetemo-nos a um sistema de normas, consideradas
lógicas e necessárias para organizar as relações sociais, e não percebemos que tais normas já
estão organizadas, pois o Direito não diz o que deve ser, mas “aquilo que é”, a tautologia
jurídica age sobre os sujeitos (CASALINHO, 2004).
Dessa forma, as práticas jurídicas regularizam as ações e as relações sociais.
Continua Miaille (1979):
o fetichismo da norma e da pessoa, unidos doravante sob o vocábulo único
de direito, faz esquecer que a circulação, a troca e as relações entre pessoas
são na realidade relações entre coisas, entre objetos, que são exatamente os
mesmos da produção e da circulação capitalistas (MIAILLE, 1979, p. 89).
Foucault ([1973] 1999) afirma que as práticas jurídicas, assim como as práticas
religiosas, funcionam como práticas reguladoras, estabelecendo relações entre o homem e
aquilo que é considerado “a verdade”. O direito atua, então, como regulador ou, conforme
2 Tradução nossa para: “de una parte, el sujeto de derecho existe en nombre del derecho, esto es, que el Derecho
le da su poder; mejor incluso: que él da al derecho el poder de otorgarle un poder; de otra parte, el poder que él
ha dado al derecho retorna a él; el poder del derecho nos es más que el poder de los sujetos de derecho: el Sujeto
se reconoce a sí mismo en los sujetos” (EDELMAN, 1980, p. 47)
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Miaille (1979), como aquele que propicia a paz social, buscando eliminar as diferenças e
apresentando aos homens verdades absolutas, que passam a funcionar como leis gerais. Logo,
à medida que nos reconhecemos como sujeitos de direito, respondemos por nossos atos e nos
colocamos sob determinadas regras e normas de conduta, que estabelecem aquilo que é
permitido e aquilo que é proibido em nossa sociedade. Transformar-se em sujeito de direito
(MIAILLE, 1979, p. 114) pelo funcionamento do discurso jurídico constitui o próprio Direito,
fazendo com que os indivíduos se tornem, ilusoriamente, autônomos e livres.
De acordo com Haroche ([1984] 1992, p. 30), ao citar Nietzsche, “há um trabalho
prévio às exigências do jurídico: para que o sujeito-de-direito possa responder por si, por seus
atos e por seu comportamento, é preciso, previamente, tornar o homem uniforme, regular,
determinado, predizível, mensurável”. Analogamente, a religião, ao buscar tornar o homem
também uniforme, regular, determinado, predizível e mensurável, caminha junto com o
discurso jurídico, de modo que tanto o discurso jurídico quanto o religioso atuam sobre cada
indivíduo, em maior ou menor grau, dependendo do momento histórico vivenciado.
Para que a religião exerça o seu poder pastoral sobre os indivíduos, tornam-se
necessários pastor e rebanho: um pastor para que o rebanho possa existir e de um rebanho
para a existência do pastor (FOUCAULT, [2004] 2008). No poder pastoral, toda a atenção
deve ser dirigida ao grupo de indivíduos, o rebanho e, ao mesmo tempo, a cada uma das
“ovelhas” em particular.
A relação entre o jurídico e o religioso, tornou o direito cada vez mais preso ao
poder divino. Isso ocorreu principalmente na Idade Média, cuja característica era a influência
da Igreja Católica em toda a vida política da sociedade. O poder da Igreja era imenso, tendo
provocado ao longo do tempo inúmeras crises entre os reis e o papado, tão grande era a
interferência do poder espiritual sobre os governos. Absorvendo os princípios do Direito
Natural, o cristianismo tornou-se a principal fonte de sua irradiação na Idade Média. Desde
então, o homem é levado a viver em uma atmosfera impregnada do sagrado e, para que sua
movimentação dentro desse mundo santificado possa ocorrer, surgem normas que não podem
ser transgredidas sob pena de sanção (CASALINHO, 2004, p. 77). Institui-se a confissão para
o perdão dos pecados e a salvação das almas e como uma forma de assujeitamento ao poder
religioso.
Taciano e Clemente de Alexandria (no século II), através da expressão “filosofia
cristã”, tentaram conciliar o sagrado e o profano, mas foi Agostinho (no século V) que a
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consagrou definitivamente para designar um tipo de sabedoria humana apoiada na revelação
divina. Partindo do pressuposto de que o conhecimento natural que o homem possui dos
princípios racionais vem de Deus, Agostinho concluiu que os princípios que regulam todos os
seres, inclusive a razão humana, têm sua origem na inteligência divina.
A existência do cristianismo pode ser explicada, dentre outros motivos, por ter
absorvido os fundamentos do direito natural, considerado pelos padres da Igreja como base da
natureza humana. Haroche ([1984] 1992), ao analisar o percurso do homem medieval ao
contemporâneo, mostra-nos as transformações das relações sociais: o homem deixa de ser
propriedade divina e torna-se proprietário de si mesmo.
A influência do sagrado no profano, portanto, do religioso sobre o jurídico
necessita de um “Deus legislador, paradigma do justo e do bom, esse Deus será fonte da
moral e do direito” (PERELMAN, 2000, p. 313). Assim, ambos os discursos, religioso e
jurídico, visam o bem comum, através de normas para legitimar e naturalizar o homem como
sujeito-de-direito.
No século das Luzes, com o enfraquecimento do religioso pelo surgimento da
dúvida na existência de um Deus absoluto, tornou-se importante o aparecimento de algo que
controlasse e regularizasse o comportamento dos indivíduos, função assumida pelo Estado.
Haroche ([1984] 1992) afirma que,
como Deus não governa mais totalmente a conduta humana, vai ser preciso
substituir-lhe um poder que estará à sua altura, a fim de não deixar essa
conduta exposta a ela mesma, face à incerteza, isto é, exposta à possibilidade
de reflexão e da distância crítica. O aparelho religioso não é mais capaz de,
por si mesmo, enquadrar o sujeito; o Estado, diante da situação nova que se
oferece a ele, deve tentar, no contexto dos nacionalistas burgueses,
estabelecer formas novas de controle do sujeito (HAROCHE, [1984] 1992,
p. 182).
Além do Estado, várias instituições, que passam a existir como desdobramentos
do próprio Estado e nas quais fios de diversos discursos irrompem em suas normas e dizeres,
encarregam-se de exercer o controle do sujeito. Atravessados por instituições dessa ordem, os
participantes de nossa pesquisa, os chamados moradores de rua e os graduandos de um curso
noturno público de Pedagogia, em suas atitudes e dizeres, perambulam, constantemente, em
um jogo de espelhos que reflete, ora a imagem do chamado morador de rua, ora a imagem da
sociedade hegemônica. Em outros termos, tanto uns quanto outros colocam-se como sujeitos
de direito perante as situações que lhes são apresentadas, seja enquanto sujeitos de direito
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jurídico, seja enquanto sujeitos religiosos. Esta última posição é assumida, principalmente,
pelos chamados moradores de rua, abrigados em uma instituição mantida pela Igreja Católica,
na qual são levados a pensar que servir a Deus é estar, também, em consonância com o bem
viver humano. Os universitários, por sua vez, colocam-se como sujeitos de direito, ao
afirmarem (e reivindicarem) o uso dos jardins da cidade como local de estudo e lazer.
1.2.- A Cidade e a Rua
Ao trazer a rua e a universidade, não podemos deixar de caracterizar a cidade,
onde esses grupos se localizam. A cidade, vista como locus de poder, estabelece relações que
determinam como as pessoas se veem, ouvem, tocam-se ou se distanciam, à imagem da
própria divisão do social em espaço público e espaço privado. Necessário se faz caracterizar a
rua, espaço público que é de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém. A rua também é o espaço
daqueles que estão debaixo de pontes, abrigados em albergues ou casas de passagem e que
dependem de instituições sociais para tomar banho, alimentar-se e dormir. É o lugar daqueles
que circulam pelas praças e jardins da cidade, maltrapilhos – embora, muitos ainda tenham o
hábito de cuidar de sua higiene pessoal, lavar o rosto, escovar os poucos dentes, mesmo com a
dificuldade de encontrar um lugar para isso. Caracterizamos, também, o curso de Pedagogia
noturno de uma universidade pública; curso que forma futuros pedagogos que serão, em
princípio, futuros formadores de opinião.
1.2.1.- A Cidade: locus do poder
O município de Poços de Caldas, localizado na região sul do Estado de Minas
Gerais, na divisa com o Estado de São Paulo, tem por berço um vulcão adormecido,
responsável pela consolidação das montanhas, o qual, depois de vários séculos de vida ativa,
deixou como prova de sua existência, o urânio, a bauxita e as águas termais sulfurosas, que
emergem das entranhas da terra.
Segundo a tradição popular, os poços de águas cálidas foram descobertos por
caçadores, que se embrenharam nas matas do Descoberto do Rio Pardo, região
geograficamente próxima de Poços de Caldas, à procura de antas e outros animais do sertão.
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Desde a descoberta das águas, em 1781, a região dos poços de Caldas foi visitada por
viajantes, bandeirantes, tendo em vista o fato de que esses poços de águas termais já eram, à
época, conhecidos pela sua qualidade terapêutica. Durante várias décadas, apesar das difíceis
condições de acesso e pouco conforto, a procura pelas fontes sulfurosas aumentava,
possibilitando o início de uma povoação que recebeu o nome de Nossa Senhora da Saúde das
Águas de Caldas (MEGALE, 1990, p. 15).
Perpassar a história da cidade é atravessar ciclos distintos, mas nem por isso,
isolados. Inicialmente, o povoado de Nossa Senhora das Águas de Caldas desponta como
estância hidromineral, graças às suas águas quentes, ao mesmo tempo em que, à época da
liberação dos jogos de carteado, atrai grande número de turistas de todo o país, uma vez que
possuía vários cassinos, cuja história tem início no século XIX, quando a cidade era ainda
uma pequena vila. Registros indicam que, por volta de 1890, os hotéis, já recebendo turistas
em busca dos tratamentos terapêuticos proporcionados pelos banhos de água sulfurosa,
ofereciam aos hóspedes alguns jogos, como forma de lazer, durante as estações de cura a que
se submetiam, em geral, longas. Consequentemente, o jogo tornou-se um grande negócio para
a cidade, considerada por muitos a Las Vegas brasileira, empregando muita mão de obra e
atraindo jogadores de todo país, o que resultou na existência de voos regulares para a cidade,
após a inauguração do aeroporto, em 1938.
Durante a temporada de 1917, o romancista João do Rio esteve em Poços de
Caldas por várias vezes, e seus bilhetes e cartas, publicados na obra A correspondência de
uma estação de cura, colocam-nos em contato com pessoas de nível social diverso e suas
pequenas ambições, misérias e intrigas, pois o autor constrói com sutileza o painel da
“agitação mundana da mais elegante das nossas estações de águas do início do século”. É
interessante notar que, em uma de suas cartas, ele diz que, na cidade, pululavam bolsos cheios
de fichas de carteado, cachorros gordos pelos restos da farta alimentação dos hotéis e meninos
de rua magros e com a barriga roncando. O romancista continua: “os magros cavalos de
aluguer aumentaram de preço, as charretes e as cestas dão uma hora quase pelo seu próprio
custo, os mendigos surgem de todos os cantos e os hotéis regurgitam” (RIO, [1918] 1992, p.
29) (grifo nosso).
Como em toda cidade que abriga cassinos, essas casas de jogo passam a
movimentar a economia, de onde vinham salários e gorjetas, muitas vezes na forma das
próprias fichas de jogo, que circulavam como moeda regular na cidade. Simultaneamente aos
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chalés, cassinos e grandes mansões, surge também uma população que passa a sobreviver do
subemprego gerado pela elite. Desde muito cedo, as desigualdades sociais se mostram
presentes, atingindo principalmente as crianças e, em pleno auge da estância como cidade
turística e do glamour dos cassinos, entre os anos 30 e 46, a questão social desigual fica
latente. O índice de enfermos, desnutridos e a mortalidade infantil passam a ameaçar a cidade
com o problema da miséria, que precisava, imediatamente, ser erradicado, higienizado.
A decisão inicial parte de um farmacêutico, Jurandir Ferreira, que começou a
distribuir uma cota de leite em sua própria farmácia, encontrando, logo, apoio nas senhoras da
sociedade, principalmente em uma professora de francês, Maria do Rosário Mourão,
apelidada de “Dona Nini”, considerada uma dama da sociedade poços-caldense. Quando o
trabalho do farmacêutico ganhou ressonância na sociedade local, transformou-se em uma
instituição social denominada “Gota de Leite Sinhá Junqueira Lemos”3, com a finalidade de
distribuir leite às mães pobres.
Cria-se, também, o Serviço de Obras Sociais de Poços de Caldas, que iniciou suas
atividades de caráter assistencial no dia 4 de fevereiro de 1944, durante a Segunda Grande
Guerra, tomando como denominação a sigla “SOS”4, que aponta para o sentido popular de
Save Our Souls. Atualmente, o SOS atende famílias, em especial as necessitadas, através de
programas assistenciais: cursos de capacitação profissional ou semiprofissional nas áreas de
artesanato, cabeleireiro, corte e costura, pintura em tecidos e panificação. Em sua fundação, a
preocupação do SOS era com os mendigos.
Os mendigos apanhados na rua pedindo esmolas eram encaminhados ao SOS, que
fazia uma ficha completa de cada pessoa e sua família passava a receber, semanalmente,
alimentos, roupas, calçados e remédios. Os doentes eram encaminhados ao hospital e os
sadios, ao trabalho. Pobres de fora eram recolhidos pela polícia, levados ao SOS, onde eram
alimentados e, depois, recebiam um passe para voltar ao lugar de onde vieram. Em Poços de
3 Nome de uma das matriarcas da família dos fazendeiros fundadores da cidade de Poços de Caldas, conhecida
por D. Sinhá. 4 O código SOS surgiu nos regulamentos de radiocomunicações da Alemanha, sendo adotado internacionalmente pela Conferência de Berlim, em 1906. Era, na verdade, apenas um grupo de pontos e traços em formato de
código Morse. Utilizado intensamente na época da guerra, no uso popular, SOS foi associado à frase Save Our
Souls (“salve nossas almas”). Esta, no entanto, surgiu depois, talvez como forma de um retro-acrônimo. Pelo fato
de não ser uma sigla, tampouco um acrônimo, a sequência de caracteres “SOS” não é abreviação de nenhum tipo
de frase (www.significados.com.br acesso em 07/08/2014).
http://www.significados.com.br/
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Caldas, não poderiam ficar. O SOS buscava envolver toda a cidade no que dizia respeito a não
dar esmolas, mas sim encaminhar os mendigos ao Serviço de Obras Sociais.
Nos jardins da cidade, eram colocadas placas com diversos avisos e, para evitar o
excesso, muitas eram assentadas em pares. A imagem a seguir, por exemplo, mostra duas
placas: a superior diz respeito ao jardim sua grama, flores e arbustos e a inferior se refere ao
Serviço de Obras Sociais. Ambas fazem um apelo aos poçoscaldenses, ao turista que visita a
cidade, aos que passam todos os dias pelos seus jardins.
Figura 1: Placa colocada no jardim – Serviço de Obras Sociais
Fonte: Museu Histórico e Geográfico de Poços de Caldas
O texto da placa superior é introduzido pelo anafórico “tudo”, que aponta, em
princípio, para o cuidado com a grama, o jardim, as flores, mas, a proximidade com a segunda
placa remete ao efeito de sentido de que se refere muito menos ao jardim do que a um
discurso de higienização social. Uma cidade turística deve ser bonita e livre de pessoas feias e
maltrapilhas, cabendo à população e aos turistas exercerem, também, o papel de
higienizadores, limpando a cidade de seres poluidores da beleza e da saúde. Assim, como a
cidade precisa de lucros, nada pode impedir e atrapalhar o seu desenvolvimento, vale dizer, o
fluxo de turistas que movimenta os hotéis e o comércio local. Nesse sentido, “tudo” pode,
também, deslizar para “talvez”, transmitindo uma insegurança no que diz respeito ao espaço
público da cidade: “Talvez isso seja vosso”, o que permite indagar de quem seria a
propriedade do jardim, algo público, mas que, por uma linha fluida, torna-se privado.
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A recorrência de pronomes da segunda pessoa do plural (tudo isso é vosso) traz o
grau de importância que é dado aos cidadãos, habitantes e visitantes. A superposição das duas
placas (nas quais se lê pertence – socorra – SOS) aponta para um efeito de oposição entre
aquele que passeia pela praça e a população de rua. O verbo “zelar” domina toda a frase,
evocando a importância do zelo que todos devem ter em manter a cidade limpa e higiênica.
Esse é o elo que prende todos, reforçando uma corrente contra tudo aquilo que pode denegrir
a cidade. O pedido, reforçado pela ideia de propriedade, gera a ilusão de segurança, a qual só
será possível se a população for zelosa para com a história oficial do lugar. Zelar também
evoca ter ciúmes, de forma que o cidadão que cuida deve ter ciúmes de tudo o que faz parte
da cidade, desde a grama, as flores, o jardim, enfim. Esse cidadão parece poder se julgar no
direito de se sobrepor a qualquer indivíduo que venha a arruinar a beleza e o nome da cidade.
A segunda placa, colocada logo abaixo da primeira, abusa do advérbio de negação
ao introduzir o texto que traz em seu escopo dois verbos “dar” e “socorrer”. Em princípio,
gramaticalmente, os verbos se aproximam. Contudo, a estrutura do texto desconstrói essa
aproximação, principalmente, entre os verbos dar e socorrer: não dê esmolas – socorra seu
semelhante. Como não dar (esmolas) e, ao mesmo tempo, socorrer um semelhante? Não é o
semelhante a outro ser, mas semelhante a você. Os dizeres dirigem-se diretamente ao leitor,
tendo por finalidade trazê-lo para o texto gravado na madeira da placa. Neste, o gesto de dar
esmola evoca o discurso religioso das ordens medicantes5, no qual essa ação é vista como um
dever de todos os cristãos. É interessante notar a utilização do adjunto adverbial de lugar em
não dar esmola “na rua”, o que sugere que só se deve doá-la em locais privados, em especial,
dentro da igreja, para manutenção do culto e daqueles que se dedicam a presidir as atividades
religiosas. Além disso, entre a colocação das duas placas, há um espaço, que parece apontar
para um silêncio, que sugere a reflexão sobre o pedido e a ordem dada: “Tudo isso é vosso /
Zelai pelo que vos pertence” – espaço – “Não dê esmolas na rua / Socorra o seu semelhante”.
Por fim, apresenta-se uma possível solução: a visita ao SOS, o Serviço de Obras Sociais,
atitude que “salvaria a alma” daquele que passa, sem possibilidade de engano, uma vez que
lhe é dado o endereço da instituição.
5 Ordens cujos membros faziam o voto de praticar a pobreza evangélica, vivendo das esmolas que pediam.
Foram fundadas no início do século XIII por Francisco de Assis (1182-1226) e por Domingos (1170 – 1221). A
elas, os papas confiaram a direção da Inquisição, orientando-as, também para as atividades de ensino a fim de
prevenir novas heresias (PIERRARD, 1982).
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Na cidade, o movimento turístico de elevado nível cessa repentinamente com o
decreto, baixado em 1946, pelo Presidente Eurico Gaspar Dutra, que suprimia o jogo em todo
o país. Assim, a proibição do jogo e a invenção do antibiótico tiveram forte impacto para o
turismo no município, uma vez que o termalismo deixou de ser a maneira mais eficaz de tratar
as doenças para as quais era indicado e os cassinos foram fechados. A economia de Poços de
Caldas sofreu um grande abalo, mas logo encontrou uma alternativa ao entrar no “ciclo da
lua-de-mel”, quando se tornou elegante passar as núpcias no município e o turismo conseguiu
fôlego para sobreviver. Depois desse período, o perfil do turista que visita a cidade mudou. A
classe média e grandes grupos passaram a frequentar as termas, a visitar as fontes e outros
pontos de atração do município, antes restritos à elite.
Portanto, embora bastante reduzido, o movimento turístico continua a acontecer
na cidade, mas a época áurea havia cessado. Após esse primeiro ciclo, o dos cassinos, e já
com o nome de Poços de Caldas e com o codinome de Terra da Saúde e da Beleza, continua
necessária a manutenção da cidade limpa e bonita, livre de mendigos que “sujam” e
perturbam o espaço público. A saúde, presente no slogan, envolve não só a saúde dos corpos
físicos, mas a saúde do corpo social, contrapondo-se à miséria, a qual precisa, portanto, ser
apagada, tornada invisível. Essa miséria que, de tão visível, demanda estratégias de
invisibilidade, vai fazer com que surjam, nas décadas de 40 e 50, várias instituições
direcionadas à promoção social na cidade.
Voltemos, no entanto, ao século XVII, mais precisamente ao ano de 1617, quando
Vicente de Paula, em Paris, reuniu as mais destacadas senhoras do reino, conscientizou-as a
respeito das exclusões da época e levou-as a visitar os hospitais, onde tomaram conhecimento
do sofrimento pelo qual passavam os menos favorecidos. Surgiam, nessa época, as Damas da
Caridade, organização que se espalhou por toda a França e, depois, pela Itália e Polônia. A
Revolução Francesa interrompe esse crescimento, mas, em 1830, as Caridades renascem e se
espalham pelo mundo, formando a Association Internacionale des Charités, organização não
governamental, leiga, católica, composta por mulheres que trabalham contra todos os tipos de
pobreza e exclusão social.
Na cidade de Poços de Caldas, em 1914, era pároco da Igreja Matriz de Nossa
Senhora da Saúde o Pe. Serafim Augusto da Cruz, que se preocupava com o aumento da
população carente, o que multiplicava o número de pedintes. Como as águas termais
propiciavam a vinda de famílias abastadas para a cidade e conhecendo um grupo de senhoras
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frequentadoras da igreja, o padre convenceu-as a se preocuparem com a valorização dos
pobres como preferidos de Deus, dando ênfase à caridade como virtude fundamental da
religião. Dessa forma, apressou-se em fazer alguma coisa para a população carente,
incentivando a criação da Associação das Damas da Caridade que, em princípio, não buscava
apenas proporcionar assistência social, como também providenciar alimentos, banhos e um
lugar para descanso aos que perambulavam pelas ruas.
Em 1944, estabelece-se na cidade a Congregação das Missionárias de Jesus
Crucificado, fundando o Asilo São Vicente de Paula, com a finalidade primeira de ofertar
cursos profissionalizantes, buscando a promoção social daqueles que viviam pelas ruas,
sempre com o apoio e responsabilidade de manutenção da Associação das Damas da
Caridade. Atualmente, desde em 1998, com o advento do Estatuto do Idoso, o asilo foi
transformado em uma Instituição de Longa Permanência. Desta forma, após um tempo
trabalhando com a promoção social, a instituição, tendo como eixo de sua ação o trabalho
junto às famílias pobres, optou por cuidar unicamente de idosos. Os trabalhos dentro da casa
permaneceram destinados às religiosas e as atividades externas, como manutenção,
arrecadação de fundos, participação social, às Damas da Caridade, sempre pertencentes às
famílias abastadas da cidade. Entrelaça-se com a Associação das Damas de Caridade outra
instituição, voltada para os meninos que perambulavam pela periferia da cidade.
Capelão da casa religiosa da Congregação das Missionárias de Jesus Crucificado e
do Asilo São Vicente de Paula, Pe. Carlos Henrique Neto celebrava uma missa aos domingos
e, durante a homilia, o barulho das crianças que jogavam bola na rua, atrapalhava, a todo
momento, o desenrolar da atividade religiosa. Um dia, ao terminar a missa, convidou os
meninos para tomar café no refeitório do asilo e propôs-lhes que, se participassem da
celebração religiosa, depois poderiam jogar bola juntos (GENTILINI, 1997). E assim
aconteceu. Sob a coordenação de Irmã Doracina, missionária de Jesus Crucificado, os
meninos começaram a frequentar a missa e, logo em seguida, a participar de uma partida de
futebol, criando um grupo chamado de “Clube Recreativo dos Anjos da Cara Suja”. Desse
modo, aqueles menores, muitas vezes explorados como condutores de charretes conduzidas
por pequenos bodes (Figura 2), meninos acostumados a viver nas ruas e à vadiagem da
mendicância, meninos em situação de rua, pedintes nas portas dos cassinos e igrejas da
cidade, passaram a ser conhecidos como os “Cara Suja”.
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Figura 2: Menino conduzindo pequena charrete
Fonte: Museu Histórico e Geográfico de Poços de Caldas
Além do futebol, a música foi escolhida para entrosar o grupo e, logo em seguida,
na tentativa de suprir a necessidade de engraxates, carregadores de mala, charreteiros de
carrinho de bode, cria-se um curso noturno para orientar os meninos. Aos poucos, o curso e o
número de alunos foi crescendo e transformou-se na Escola Profissional Dom Bosco, em
horário integral, aliando o ensino regular com atividades de artes industriais e objetivando
fornecer oportunidades de profissionalização aos menores (GENTILINI, 1997).
Consequentemente, nos anos 60 e 70, proliferam na cidade os engraxates (como mostram as
Figuras 3 e 4, a seguir): meninos pobres, com caixas de madeira nas costas e, muitas vezes,
impedidos de entrar na praça principal “para não perturbar os turistas”.
. Figura 3: Menino engraxate
Fonte: Museu Histórico e Geográfico de Poços de Caldas
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Figura 4: Engraxates na praça da cidade
Fonte: Museu Histórico e Geográfico de Poços de Caldas
Grande parte da manutenção das instituições de promoção social advinha da
Legião Brasileira de Assistência (LBA)6, bem como de um acordo celebrado entre o Brasil e
os Estados Unidos – o Acordo MEC/USAID (United States Agency for International
Development) – através do projeto “Aliança para o Progresso” (SANTOS, 2005), cujo
objetivo era a integração dos países da América em todos os seus aspectos: político,
econômico, social e cultural. Esse projeto era, na verdade, decorrente de uma preocupação
com o avanço soviético, que se desenvolvia cada vez mais, principalmente após a Revolução
Cubana, com a cooperação recebida da antiga URSS, a partir de 1961.
Com a tentativa de deter esse avanço e com o auxílio do projeto “Aliança para o
Progresso”, criou-se a imagem paternalista dos Estados Unidos, colocando-se à frente de
todas as possíveis melhorias propostas pela URSS. Os planos, articulados pela USAID,
davam ênfase à educação7, saúde e habitação, mas, como já mencionamos, apesar do discurso
humanitário, o objetivo principal era garantir que o avanço soviético fosse contido, além de
proporcionar uma abertura ao investimento das empresas de capital estadunidense nos países
6A Legião Brasileira de Assistência – LBA – foi um órgão assistencial público brasileiro, fundado em agosto de
1942, pela então primeira-dama Darcy Vargas, com o objetivo de ajudar as famílias dos soldados enviados à
Segunda Guerra Mundial. Com o final da guerra, tornou-se um órgão de assistência às famílias necessitadas em
geral, sendo sempre presidido pelas primeiras-damas. Em 1991, foi alvo de graves denúncias de esquemas de
desvios de verbas, sendo extinto. Na época de sua extinção, estava vinculado ao Ministério do Bem-Estar do
Menor (http://pt.wikipedia.org/wiki/lba acesso em 07/08/2014). 7 Na educação, visavam a estabelecer convênios de assistência técnica e cooperação financeira. Na prática, não
significaram mudanças diretas na política educacional, mas tiveram influência decisiva nas formulações e
orientações que conduziram o processo de reforma da educação na ditadura militar – Lei 5692/71. Na cidade,
ainda existe, não funcionando mais de acordo com a proposta inicial, uma das cinco escolas criadas no molde
MEC/USAID, a Escola Estadual Prof. Arlindo Pereira, ainda chamada de Escola Polivalente.
http://pt.wikipedia.org/wiki/lba
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latino-americanos, vale dizer, propagandear os ideais do capitalismo ocidental (SANTOS,
2005).
Esse acordo proporcionou às instituições de promoção social de Poços de Caldas
produtos alimentícios, principalmente o leite em pó, que era destinado às “mães pobres” da
cidade. Surge, também, nesse momento, a Fazenda Primavera, destinada a funcionar como um
abrigo para aqueles que perambulavam pela rua, pedindo esmolas. Esses pedintes, querendo
ou não, eram levados para a fazenda, que funcionava como uma espécie de esconderijo, um
lugar oculto aos olhos da população e dos turistas, e viviam ali, como em uma prisão, sob
olhares severos e disciplinadores dos funcionários e motoristas. Em sua maioria, os mendigos
eram encaminhados para suas cidades de origem ou, até mesmo, para qualquer outra cidade.
É importante que se diga que, no período da ditadura, e em razão da existência na
região de uma usina nuclear, hoje desativada, Poços de Caldas foi considerada Zona de
Segurança Nacional. Todos os poderes, incluindo o prefeito municipal, eram escolhidos pelo
Governo Federal. Havia grande poder nas mãos dos capitães que dirigiam o serviço militar na
cidade, inclusive professores de certas disciplinas – Moral e Cívica, Organização Social e
Política Brasileira e Estudos dos Problemas Brasileiros –, que só poderiam ministrar, quando
aprovados pelo representante do exército. Tal fato ocorreu durante toda a ditadura militar.
Volvendo nosso olhar para a história da cidade, vemos que, com o tempo,
começam a se instalar aí grandes indústrias, inclusive multinacionais, animadas pelo
envolvimento do governo local, na tentativa de atrair maiores capitais. Em consequência, um
grande desenvolvimento acontece, principalmente no campo imobiliário, pois levas de
migrantes, vindos de outros Estados, começam a se instalar na cidade, fazendo dela sua nova
moradia.
No que se refere à promoção social, a proliferação de instituições de atendimento
a pessoas rotuladas de “em situação de risco” parece apontar para a característica histórica de
higienização social, envolvendo entidades religiosas ou leigas8: Associação Evangélica e
Comunitária Ebenezer, Casa do Caminho, Gota de Leite “Sinhá Junqueira Lemos”, Centro de
Assistência Social Fonte de Vida Nova, Lar Criança Feliz, Legião da Boa Vontade,
Associação das Damas de Caridade, Associação Metodista de Ação Social, Serviço de Obras
Sociais, Associação Bem Viver de Apoio à Comunidade, Associação de Promoção Humana e
Ação Social, Albergue Noturno Deus e Caridade, Abrigo São Francisco, Casa de Passagem
8 Citamos apenas as que tratam de pessoas em situação de rua, mulheres e menores em situação de risco.
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Alegria de Viver, Lar Filhos da Bênção e Chácara Santa Clara. Destacamos, também, a
existência do Grupo Espírita “As Samaritanas”, que promove vários eventos, tendo em vista
angariar fundos para auxílio “aos mais necessitados”.
No final da década de 60 e início de 70, começa a se desenvolver o ensino
superior em Poços de Caldas, com a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
seguida por outras faculdades – Administração, Ciências Contábeis e Engenharia Civil. Hoje,
na cidade, há várias universidades e faculdades: duas públicas e quatro privadas, sem contar
aquelas que aí instalam seu polo de educação à distância. Podemos, assim, afirmar que a
cidade tem grande influência na região em que se situa, tanto no ponto de vista de suas
atividades produtivas quanto no que se refere ao turismo e à área de serviços, em especial os
setores de saúde, educação e comércio, constituindo-se, também, como um importante centro
cultural no Sul de Minas.
Porém, desde o início, a cidade apresenta-se dividida entre os abastados e aqueles
que vivem modestamente, caracterizando-se por um hífen social, que separa os grupos e os
une, ao mesmo tempo. Desde a sua fundação, famílias de coronéis tomaram conta da cidade9,
em uma convivência pacífica com os demais habitantes; convivência fluida com o como
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