campinas, 4 a 10 de agosto de 2008 em busca da partitura ... · concerto para percussão escrito no...

Post on 04-Dec-2018

212 Views

Category:

Documents

0 Downloads

Preview:

Click to see full reader

TRANSCRIPT

9JORNAL DA UNICAMPCampinas, 4 a 10 de agosto de 2008

MANUEL ALVES FILHOmanuel@reitoria.unicamp.br

o maestro Eleazar deCarvalho, muito sesabe. É de conheci-mento geral que elefoi um dos maioresregentes brasileiros,

que regeu as principais orquestras domundo e que deixou um legado impor-tante para a música erudita. Mas pou-co se sabia, no Brasil, a respeito dotrabalho desenvolvido por esse cea-rense de Iguatu durante os quase 30anos em que viveu nos Estados Uni-dos, entre as décadas de 40 e 70. Ovácuo bibliográfico foi preenchido porpesquisa desenvolvida por FernandoHashimoto, professor de percussão doDepartamento de Música do Institutode Artes (IA) da Unicamp. O estudo,que lhe rendeu o prêmio Barry BrookAward de melhor tese de doutorado doano (2007/2008), foi defendido na CityUniversity of New York. Mais do queresgatar aspectos da vida de Eleazar deCarvalho, o trabalho recuperou um vas-to material relativo à obra do músico,inclusive parte da partitura do primeiroconcerto para percussão escrito noBrasil, datado de 1968, que havia sidodado como perdido.

Além de ser a primeira obra do gê-nero composta no país, a peça Varia-ções sobre duas séries para percussãoe cordas apresenta outras peculiarida-des importantes, conforme Hashimoto.“Ela também é interessante porque tal-vez tenha sido o primeiro concerto noqual a cadenza, que é a parte solista doinstrumento, foi escrita antes mesmoda obra”, explica. A tarefa foi encomen-dada por Eleazar de Carvalho a RichardO’Donnell, que na época era percus-sionista da Saint Louis SymphonyOrchestra, da qual o brasileiro era re-gente. “Outro aspecto curioso relacio-nado à peça é que ela usava notaçãográfica para a percussão, recurso pou-co comum. Ou seja, em vez de notas,O’Donnell usou gráficos para compor.Ocorre que uma partitura gráfica pre-cisa de uma espécie de bula para serlida”, acrescenta o docente da Unicamp.

É justamente essa parte da obra,segundo Hashimoto, que havia sidodada como desaparecida. “O concer-to ficou muito tempo sem ser execu-tado por conta da ausência desse seg-mento da partitura. Eu mesmo tive que

material, somado a alguns documen-tos que obtive junto a outras orques-tras e universidades, onde Eleazar re-geu ou deu aulas, foi doado para a vi-úva dele, a pianista Sônia Muniz, queestá criando o Museu Eleazar de Car-valho no Ceará”, revela o autor da tese.Graças à recuperação da partitura gráfi-ca do concerto, Hashimoto terá a opor-tunidade de finalmente executar a peçapela primeira vez. Isso acontecerá du-rante o Primeiro Encontro de Percussãodo Peru, marcado para esta primeira se-mana de agosto, onde ele atuará comoartista residente. “Depois, também fa-rei um concerto na Áustria”, adianta.

A pesquisa desenvolvida pelo pro-fessor do IA não se limitou, porém, àrecuperação do material relacionado àobra de Eleazar de Carvalho. Outrosegmento importante do estudo dizrespeito ao levantamento histórico doperíodo em que o regente brasileiropermaneceu nos Estados Unidos. “Vi-sitei as principais orquestras e institui-ções nas quais Eleazar atuou. Graças aum trabalho de garimpagem, conseguireunir um material riquíssimo, inclusi-ve um conjunto composto por aproxi-madamente 300 críticas, publicadas emjornais e livros, que analisavam o de-sempenho dele como regente. Isso medeu uma visão mais precisa e abran-gente da sua importância dentro docenário da música erudita. De modogeral, os críticos o qualificavam, des-de o primeiro concerto oficial, comoum intérprete profundo e sério”, reve-la Hashimoto, para quem a pesquisafoi uma tarefa muito prazerosa. “Deutudo certo. Recebi muito apoio, inclu-sive das instituições norte-americanas,que abriram mão dos direitos autoraisde algumas obras”, acrescenta.

No ExteriorO prêmio de melhor tese do ano

não foi o único recebido recentementepor Fernando Hashimoto, professor depercussão do Departamento de Músi-ca do Instituto de Artes (IA) da Uni-camp. Ele, que íntegra o corpo demúsicos da Orquestra Sinfônica deCampinas, também mereceu o reco-nhecimento da Sociedade Internacio-nal de Percussão, com o prêmioPercussive Arts Society OutstandingService Award 2007, em razão do seutrabalho de pesquisa e incentivo à per-cussão brasileira. Foi a primeira vezque um brasileiro recebeu tal láurea.Hashimoto é fundador do Grupo dePercussão da Unicamp (Grupu), “úni-co grupo universitário brasileiro depercussão que fez excursões pela Eu-ropa e Estados Unidos”, como fazquestão de observar o docente. OGrupu está completando dez anos deexistência. Para comemorar o aniver-sário, seus integrantes farão uma turnêpor sete países europeus, a partir dedezembro próximo. Como solista,Hashimoto, que nasceu no Rio de Ja-neiro, tem se apresentado em diversospaíses, junto a algumas das mais im-portantes orquestras do mundo.

Como já foi dito, Eleazar de Carvalhonasceu em Iguatu, pequeno município dointerior do Ceará, em 28 de julho de 1912.Iniciou os estudos de música ainda cri-ança em sua cidade natal, onde atuou nabanda musical. Mais tarde, mudou-separa o Rio de Janeiro e ingressou naMarinha. Tocava tuba na Banda do Ba-talhão Naval. Pouco tempo depois foiestudar na Universidade do Brasil, atualUniversidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ). Por esta época, começou a com-por. Sua primeira ópera recebeu o títulode A Descoberta do Brasil, cuja estréiaaconteceu no Teatro Municipal do Riode Janeiro. “A primeira fase de Eleazarcomo compositor foi fortemente marcadapela linguagem nacionalista, algo comumpara a época. Mais tarde, ele mudariacompletamente”, explica Hashimoto.

Eleazar de Carvalho foi músico doTeatro Municipal do Rio de Janeiro e es-tudou com o compositor FranciscoMignone. Sua obra como compositor,entretanto, é pequena, visto que logo sedecidiu pela carreira de regente. Para darimpulso à sua trajetória, o maestro deci-diu, por conta própria, mudar-se para osEstados Unidos. Seu objetivo, tido como

“uma excentricidade” pelos mais próxi-mos, era reger uma das três grandes or-questras norte-americanas da época:Boston, Filadélfia ou Nova York. Em 1946,ele finalmente embarcou, com a cara e a

coragem, para a América. Lá, bateu lite-ralmente de porta em porta oferecendo-se para atuar como regente. “O titular daOrquestra da Filadélfia achou a atitudede Eleazar ousada e absurda. Tanto que

disse a ele para que fosse reger uma or-questra do interior e voltasse somentedali a 20 anos”, relata Hashimoto.

Determinado, o maestro brasileiro nãodeu ouvidos ao “conselho”. Ao tomarconhecimento sobre o festival de músicaerudita que ocorreria em Massachusetts,cujo formato inspirou o Festival de In-verno de Campos do Jordão, Eleazar deCarvalho abalou-se até lá. Seu intento eraser admitido como aluno do consagradoSergey Koussevitzky, que daria um cur-so durante o evento. Como as inscriçõesjá tivessem sido encerradas, o brasileirodecidiu lançar mão de uma estratégia he-terodoxa, por assim dizer. Para ser recebi-do por Koussevitzky, mentiu que era por-tador de uma mensagem do presidentedo Brasil para o famoso maestro. Assimque foi recebido, admitiu a farsa, maspediu uma chance ao interlocutor.

O brasileiro teria dito: “Deixe-me re-ger por apenas cinco minutos. Se não meaprovar, irei embora”. Não apenas foiaprovado, como em pouco tempo tornou-se assistente de Koussevitzky, ao ladodo também conhecido Leonard Berns-tein. Um ano e meio após ter sido quaseenxotado, Eleazar de Carvalho regeria a

Orquestra da Filadélfia como convidado.“Depois disso, ele teve uma carreira cadavez mais ascendente. Não apenas regeuas três mais importantes orquestra norte-americanas, como havia almejado, comoesteve à frente das maiores orquestras domundo”, assinala o autor da tese dedoutrado. Entre os ex-alunos de Eleazarde Carvalho estão nomes importantescomo Claudio Abbado, Zubin Metah, SeijiOzawa, Gustav Meier, David Wooldbridge,Harold Faberman e Charles Dutoit.

O maestro brasileiro permaneceu nosEstados Unidos até o começo da décadade 70, embora viesse esporadicamente aoBrasil. Em 1972, ele voltou definitivamen-te ao seu país, onde daria continuidade àcarreira, mas com um viés diferente. Aqui,ele reorganizou a Orquestra Sinfônica doEstado de São Paulo (Osesp), reformulouo Festival de Inverno de Campos doJordão e criou programas para a conces-são de bolsas de estudos para jovensinstrumentistas brasileiros. “Eleazar semdúvida infuenciou e continua influenci-ando muitos músicos no Brasil e no mun-do”, atesta Hashimoto. O regente mor-reu em 12 de setembro de 1996, em SãoPaulo.

excluir a peça de um CD que gravei,em 2001, porque era impossível tocá-la”, lembra. Apesar dessa dificuldade,o professor do IA não abandonou aidéia de um dia encontrar a notaçãográfica sumida. Isso acabou aconte-cendo quando ele decidiu fazer o dou-torado nos Estados Unidos, há cercade quatro anos. O orientador deHashimoto, Morris Lang, havia atua-

do ao longo de 40 anos na Filarmônicade Nova York e conhecia O’Donnell,atualmente com 90 anos. “Lang medeu o telefone do O’Donnell. Fiz con-tato no mesmo dia. Descobri que elenão somente tinha a partitura gráficado concerto, mas também uma gra-vação em fita de rolo da primeira apre-sentação da obra pela Saint LouisOrchestra, tendo Eleazar como re-

gente e ele, O’Donnell, como solis-ta”, relata o docente da Unicamp.

Ademais, prossegue Hashimoto, omúsico também possuía alguns dosinstrumentos confeccionados especi-almente para a execução da obra. En-tre eles, um formado por tubos de pa-pelão, que eram alinhados e afinados,conforme o tamanho, seguindo o mes-mo padrão adotado para o piano. “Esse

Da banda municipal às grandes orquestras

Em busca da partitura perdida

O professor e percussionista Fernando Hashimoto durante concerto realizado em Nova York no ano passado: levantamento minucioso

O maestro Eleazar de Carvalho: trajetória vitoriosa no país e no Exterior

Tese de doutorado

sobre a obra e a

vida do maestro

Eleazar deCarvalho

rende prêmio a

professor do IA

nos Estados Unidos

Foto: Divulgação

Foto: Reprodução

D

top related