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“BRASIL CHEGOU A VEZ DE OUVIR AS MARIAS, MAHINS, MARIELLES, MALÊS”:
contribuições para o rompimento do silêncio sobre a atuação das mulheres na História Geral
e do Brasil
Mariana Abreu Almeida1
Cláutenes Fernandes Almeida Silva2
RESUMO: O presente artigo pretende contribuir para os estudos que visam destacar o papel das mulheres enquanto protagonistas dos acontecimentos históricos. Partindo do pressuposto de que as desigualdades de gênero são fundadas em uma sociedade regida pelo patriarcado, a construção da historiografia oficial foi feita de acordo com o modelo androcêntrico, desvalorizando as participações e contribuições das mulheres na história. Com o intuito de destruir as barreiras da invisibilização, estudiosas feministas vêm empreendendo um esforço de reconstruir a História, a partir de uma perspectiva que não-excludente, que reconheça o protagonismo histórico feminino.
Palavras-chave: História. Gênero. Patriarcado. Invisibilização. Mulheres.
ABSTRACT: This article intends to contribute to the studies that aims to highlight the role of women as protagonists of historical events. Assuming that gender inequalities are founded on a society governed by patriarchy, the construction of the official historiography was made according to the androcentric model, devaluing the participation and contributions of women in history. In order to destroy the barriers of invisibility, feminist scholars have been undertaking an effort to reconstruct history from a non-exclusionary perspective that recognizes female historical protagonism.
Keywords: History. Gender. Patriarchy. Invisibility. Women.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho foi construído a partir do reconhecimento das categorias gênero e
patriarcado enquanto sustentáculos das desigualdades sociais observadas entre homens e
1Mestranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão. Email: marianabreu134@hotmail.com 2Enfermeira. Especialista. Email: clautenes_27@hotmail.com
mulheres ao longo da história. Sendo gênero, segundo Joan Scott, “um elemento constitutivo
de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e [...] uma forma
primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86), é necessário que, a
fim de entender a situação de subalternização das mulheres, seja analisado combinado com
os estudos do patriarcado. Visando entender o patriarcado, Ana Alice Costa afirma que:
A perspectiva é que ele seja um instrumento analítico de realidades distintas, culturas diversificadas e processos históricos específicos que atingem as mulheres de formas e graus diferenciados, mas que ao final, todas, independente de como ela se manifesta, vivenciam um sistema de dominação construído a partir de um androcentrismo, vivenciam simplesmente pelo fato de serem mulheres. (COSTA, 2012, p. 30)
De modo que, o modelo androcêntrico, responsável pelo sistema de dominação
feminina, também tratou de determinar o fazer histórico, silenciando o protagonismo das
mulheres dos acontecimentos históricos. Esta invisibilização consiste em mais uma estratégia
para determinar os espaços das mulheres que, a partir da visão de uma sociedade fundada
no machismo, não as admitia enquanto partícipes da história.
Nesse contexto, os movimentos feministas, cuja ideologia política iniciou no século
XIX, embora somente tenha se organizado enquanto movimento nos anos 1960, executaram
um importante papel no sentido de construção de uma História das Mulheres. Uma das
percussoras do estudo da História das Mulheres foi a historiadora francesa Michelle Perrot,
que afirmou que “as mulheres são imaginadas, representadas, em vez de serem descritas ou
contadas”, o que resulta em “descrições e discursos pautados em preconceitos e concepções
que visam a uma normatização centrada nos padrões morais considerados adequados para
a mulher da época em estudo” (PERROT, 2007, p.17). De modo que as narrativas históricas,
construída pelos homens, apresentam um discurso de “improdutividade” feminina, a partir de
uma inferiorização dos papéis sociais exercidos pelas mulheres.
Em que pese as pesquisas sobre a participação das mulheres na história oficialmente
contada terem aumentado consideravelmente nas últimas décadas, as experiências femininas
ainda não ocupam um papel de destaque no sentido de constituirem disciplinas acadêmicas
obrigatórias e nas temáticas que compõem os livros didáticos. A exclusão da História das
Mulheres dos manuais didáticos demonstra que a memória preservada e acessada não é a
de todos os grupos humanos, mas daqueles que detém o poder (MIRANDA, 2013).
A presente pesquisa é de caráter exploratório, bibliográfico e historiográfico e pretende
resgatar o protagonismo feminino em alguns dos grandes acontecimentos da História Geral e
do Brasil, visando a superação da realidade de invisibilidade da mulher e do seu papel social
de silenciamento.
3. AS MULHERES E SUAS CONTRIBUIÇÕES NOS GRANDES EVENTOS HISTÓRICOS
DA IDADE CONTEMPORÂNEA
As mulheres, mesmo vivendo em situação de subalternidade e estando relegadas ao
privado, marcaram presença nos grandes acontecimentos e revoluções mundiais. Na França
de 1789, palco da Revolução Francesa, que alterou o modo de vida feudal para o modo de
vida burguês, a mulher era “a representação do privado, e sua participação ativa, como
mulheres em praça pública, era rejeitada por praticamente todos os homens” (HUNT, 2009,
p. 23).
O renomado pensador Jean Jacques Rousseau, em carta enviada à D’Alembert
afirmou que “toda mulher em público que se mostra, se desonra” (PERROT, 2009, p.136). Na
época, poucos foram os homens que defendiam a participação da mulher na vida púbica,
sendo um deles, Condorcet. Segundo ele:
Os direitos dos homens resultam unicamente do fato de que são seres sensíveis, susceptíveis de adquirir ideias morais, e de raciocinar sobre essas ideias. Assim, tendo as mulheres essas mesmas qualidades, têm, necessariamente, direitos iguais. [...] ou nenhum indivíduo da espécie humana tem verdadeiros direitos, ou todos têm os mesmos; e aquele que vota contra o direito de outro, quaisquer que sejam a sua religião, a sua cor ou o sexo, abjurou, a partir desse momento, dos seus próprios direitos” (BADINTER, 1985, p. 170).
Mesmo sendo excluídas da vida política e pública, as mulheres francesas se faziam
presentes pelas manifestações de apoio ou repúdio nas Assembleias e sendo porta-vozes do
que era decidido, distribuíam panfletos, elaboravam petições, publicavam em jornais tentando
se fazerem ouvidas em um mundo que não queria lhes dar atenção. Entre as mulheres que
se destacaram na luta pelo direito das mulheres à época estão Olympe de Gouges (1748-
1793), que escreveu a Declaração dos Direitos da Cidadã, em resposta à Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, que excluía as mulheres; Théroigne de Méricourt (1762-
1817), que fundou o clube misto Amigo da Lei; e Etta Palm d’Aelders (1743-1799), que
organizou a Sociedade Patriótica da Beneficência e das Amigas da Verdade. As três mulheres
tiveram seu destino traçado pela sociedade patriarcal da época que não admitia a insurgência
feminina: Olympe de Gouges foi guilhotinada em 1793, acusada de esquecer-se das virtudes
de seu sexo; Théroigne de Méricourt foi atestada como louca e internada em um hospício, em
1794; e Etta Palm foi forçada a fugir para Holanda (SCMIDT, 2012).
Embora peremptoriamente destinadas ao privado, as mulheres francesas não
deixavam de buscar seus lugares na vida pública, “sempre encontradas à cabeça dos motins
provocados pela carestia ou pela falta de pão. Seja qual for rebelião provocada pela fome,
encontraremos sempre as mulheres na primeira linha”. (MARAND-FOUQUET,1989, p. 46
apud SCHMIDT, 2012).
Na Revolução Americana, que acontece entre o início da década de 1770 e o fim da
década de 1790 nos Estados Unidos da América, são férteis os exemplos da participação das
mulheres na luta pelos seus direitos fundamentais. O cenário da Revolução Americana
englobou desde o posicionamento armado contra a autoridade britânica até o processo de
elaboração e ratificação da Constituição Americana, em 1787, bem como de seus 10 primeiros
adiamentos, designados Bill of Rights, assinados pelo Congresso em 1791. Nesse contexto,
marcado pela Revolução e pelo debate constitucional, a situação de subalternidade das
mulheres foi amplamente denunciada e debatida. Dentre as principais condutoras do debate
à época, podemos mencionar Hannah Adams, que já denunciava a conspiração histórica dos
homens objetivando manter as mulheres em uma situação de minoridade, sobretudo através
da negligência com a educação feminina (SOROMENHO-MARQUES, 2001).
Da Grã-Bretanha, a voz de Mary Wollstonecraft se soma ao debate da defesa dos
direitos das mulheres. O professor português Viriato Soromenho-Marques afirma serem os
assuntos centrais do debate da época: a afirmação dos direitos das mulheres a partir da
igualdade dos sexos, que utilizava um argumento teológico criacionista; a reivindicação do
caráter contratual do casamento, tendo por base a igualdade jurídica dos cônjuges; e a
insistência em uma reforma educacional que englobasse as mulheres, permitindo assim sua
real emancipação (SOROMENHO-MARQUES, 2001).
No século XX, com a Revolta Mexicana de 1910, primeira grande revolta do século,
que se colocou contra a ditadura de Porfírio Dias (1876-1911), a participação das mulheres
mexicanas foi massiva e ativamente, estando presentes desde intervenções diretas na vida
pública até nos campos de batalha, ficando estas conhecidas como soldaderas3. Maria Lígia
Prado (1999) aponta a existência de inúmeros museus mexicanos sobre a história desta
grande Revolução, contando histórias, inclusive, de perigosos líderes populares, enquanto as
mulheres quase não têm sua história de luta contada, e quando tem, são retratadas dentro de
estereótipos que retiram toda historicidade e vivência feminina.
A Revolução Russa de 1917, teve nas mulheres não só a centelha que deu início às
revoltas que culminariam com a derrubadas do czarismo, mas como força motriz que
impulsionou a revolução, cuja ideologia foi capaz de ultrapassar as fronteiras do país para
assumir um caráter de internacionalidade. Em 23 de fevereiro de 1917, marcado então como
3 Para maiores informações sobre o tema, pesquisar em TOSI, Marcela de Castro. LAS SOLDADERAS:
MULHERES NA REVOLUÇÃO MEXICANA DE 1910. Revista Outras Fronteiras, Cuiabá-MT, vol. 3, n. 1, jan/jun., 2016. Disponível em: http://ppghis.com/outrasfronteiras/index.php/outrasfronteiras/article/view/184/pdf
Dia Internacional da Mulher, a greve das tecelãs de Petrogrado foi a responsável por
desencadear a greve geral, que reuniu trabalhadores do país inteiro contra o regime czarista
(SILVA, 2017). Sobre o assunto, Trotsky evidencia:
O dia 23 de fevereiro era o Dia Internacional da Mulher. Os círculos da social-democracia tencionavam festejá-lo segundo as normas tradicionais: reuniões, discursos, manifestos. Na véspera ainda ninguém poderia supor que o Dia da Mulher pudesse inaugurar a Revolução. Nenhuma organização preconizava greves para aquele dia. […] pela manhã, apesar de todas as determinações, as operárias têxteis de diversas fábricas abandonaram o trabalho e enviaram delegadas aos metalúrgicos, solicitando-lhes que apoiassem a greve. […] É evidente, pois que a Revolução de Fevereiro foi iniciada pelos elementos de base, que ultrapassaram a resistência de suas próprias organizações revolucionárias, e que essa iniciativa foi espontaneamente tomada pela camada proletária mais explorada e oprimida que as demais – as operárias da indústria têxtil (TROTSKY, 1977, p. 102 e 103).
Em verdade, as mulheres russas já vinham desenvolvendo um movimento coletivo de
mulheres desde o século XIX, quando já se percebia a formação de movimentos de mulheres
burguesas. A participação das operárias no levante de 1905, começando a luta por direitos
como licença-maternidade remunerada, berçários nas fábricas, direito de amamentar os
filhos, etc., deu bases sólidas para as primeiras organizações de mulheres trabalhadoras
(CLIFF, 1984).
Alexandra Kollontai, grande nome do movimento de mulheres na Rússia, que acabou
se tornando a primeira mulher no mundo a ocupar o cargo de Ministra, em seu artigo
“Mulheres Militantes nos Dias da Grande Revolução de Outubro”, define as mulheres russas
como heroínas anônimas, em uma clara crítica à invisilização das mulheres na história da
Revolução Russa.
As mulheres que participaram na Grande Revolução de Outubro – quem eram elas? Indivíduos isolados? Não, havia multidões delas; dezenas, centenas e milhares de heroínas anônimas que, marchando lado a lado com os operários e camponeses sob a Bandeira Vermelha e a palavra-de-ordem dos Sovietes, passou por cima das ruínas do czarismo rumo a um novo futuro... (KOLLONTAI, 1927, n/p).
O protagonismo das mulheres nas revoltas de fevereiro continuou na Revolução de
Outubro, sendo estas fundamentais na disputa ideológica do exército e nas redes de socorro
e abastecimento. O estabelecimento do governo soviético, segundo Goldman (2014),
possibilitou que fossem colocadas em prática políticas destinadas a minorar a opressão das
mulheres. As ações do governo objetivaram: mudar a legislação para acabar com qualquer
base legal que permitisse a diferenciação dos direitos dos homens e mulheres, liberar a
mulher do trabalho doméstico improdutivo, reconhecendo as tarefas de reprodução, educação
e cuidado como de responsabilidade de toda a coletividade e a inserção das mulheres no
trabalho social assalariado, com o fim de torná-la um membro produtivo. Como medidas
concretas que foram tomadas para reconhecer e resguardar os direitos das mulheres,
podemos citar: em 1917, o reconhecimento dos direitos políticos das mulheres, tornando-se
estas elegíveis e eleitoras, a legalização do divórcio e do casamento civil, bem como a
extinção do casamento religioso e o estabelecimento do direito à terra das camponesas; em
1918, o Código Completo do Casamento, da Família e da Tutela, aboliu o poder marital,
proibindo o marido de impor seu nome, domicílio ou nacionalidade à esposa, instituiu a pensão
alimentícia, acabando com a diferença entre filhos legítimos e ilegítimos, e protegeu o trabalho
feminino, com a criação da licença maternidade. O aborto foi legalizado em 1920 os
casamentos e uniões estáveis foram igualados em 1926 (GOLDMAN, 2014).
Infelizmente, grande parte dos direitos das mulheres conquistados com a Revolução
de 1917 foram retirados com a chegada do período stalinista, sendo um período marcado pela
forte reativação do poder patriarcal e heterossexual, com a volta da autoridade do poder do
homem sobre a mulher e filhos e com o resgate da imagem da mulher como mãe e dona de
casa. O aborto, a homossexualidade e prostituição voltam a ser considerados crimes; o
divórcio é condicionado a altas taxas, visando dificultá-los e, ao mesmo tempo, foram
instituídos altos impostos para pessoas solteiras, bem como bônus salariais de premiação por
número de filhos. O trabalho doméstico volta a ser louvado com o desmonte de políticas
públicas responsáveis pelo estabelecimento de creches, restaurantes e lavanderias. Ao passo
que as organizações de mulheres passam a ser perseguidas sob o argumento de que a
igualdade das mulheres já tinha sido conquistada com o desenvolvimento da sociedade
socialista (SILVA, 2017).
Essa retirada de direitos das mulheres russas se apresenta como mais um exemplo
da necessidade de luta constante da classe feminina não só pela conquista, mas para que
não haja retrocesso em seus direitos já conquistados. O relatório apresentado pelo Grupo de
Trabalho das Nações Unidas sobre Discriminação contra as Mulheres na Lei e na Prática ao
Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou que os
direitos das mulheres se encontram sob ameaça de retrocesso, em função do avanço do
conservadorismo e fundamentalismo religioso no mundo todo (NAÇÕES UNIDAS NO
BRASIL, 2018).
Situação igualmente preocupante à que se estabelece no Brasil atual, com a chegada
de um governo de extrema-direita ao poder, que não esconde sua face machista, racista,
homofóbica e de desmonte aos direitos humanos. Nesse contexto, os direitos humanos das
mulheres também se veem ameaçados, sendo fundamental o fortalecimento dos movimentos
feministas para que não haja retrocesso.
4. PROTAGONISMO FEMININO NA HISTÓRIA DO BRASIL E A (IN) VISIBILIZAÇÃO DA
PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NAS LUTAS E REVOLUÇÕES NACIONAIS
No Brasil muitas mulheres, embora tenham sua importância diminuída pela
historiografia oficial, são referenciadas como partícipes das lutas pela Independência, pela
República, pelo fim da escravidão e do genocídio do povo indígena e africano, pelas revoltas
regionais, entre outros.
Mulheres como: Anita Garibaldi, que participou ativamente das lutas republicanas
durante a Guerra dos Farrapos e no processo de unificação da Itália; Hipólita Jacinta Teixeira
de Melo, na Inconfidência Mineira, que promovia reuniões secretas, chegando a financiar
ações dos conjurados, sendo autora da célebre carta4 que denunciou Joaquim Silvério dos
Reis como traidor de seus companheiros inconfidentes; Bárbara de Alencar, considerada uma
heroína da Revolução Pernambucana de 1817, que foi presa, torturada e considerada a
primeira presa política brasileira; Maria Quitéria de Jesus, que se vestiu de homem para lutar
nos batalhões nacionalistas nas guerras pela independência, tornando-se a primeira mulher
a integrar as forças regulares no Brasil, foi condecorada com a Ordem Imperial do Cruzeiro,
pelo Imperador Dom Pedro I; Nísia Floresta Augusta, pioneira na luta pela educação das
mulheres e primeira mulher brasileira a publicar um livro intitulado “Direitos das Mulheres e
Injustiças dos Homens”, em 1832; as abolicionistas Maria Firmina dos Reis (natural de São
Luís/MA e primeira romancista brasileira), Chiquinha Gonzaga, Maria Amélia de Queiroz,
Maria Tomásia Figueiredo Lima; Maria Stella Sguassábia e Maria José Bezerra (conhecida
como Maria Soldado), que participaram como soldadas no front de batalhas da Revolução
Constitucionalista de 1932; Carlota Pereira de Queiroz, primeira deputada brasileira, que
organizou e liderou um grupo de 700 mulheres pra garantir a assistência aos soldados feridos
na Revolução Constitucionalista de 1932 (MULHER 500 ANOS ATRÁS DOS PANOS, 2019).
Embora não tenha sido esquecida pela historiografia oficial, em virtude da posição que
ocupou como Regente Imperial, a Princesa Isabel merece ser citada pelo seu papel na
Abolição da Escravatura, tendo sido responsável pela assinatura da Lei Áurea, em 1888.
Nesse contexto, em que a abolição da escravatura aparece como uma concessão da elite
política, a história de luta da população escravizada pela libertação teve sua importância
diminuída pela História Oficial.
4 "Dou-vos parte, com certeza, de que se acham presos, no Rio de Janeiro, Joaquim Silvério dos Reis
e o alferes Tiradentes, para que vos sirva ou se ponham em cautela; e quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas; e mais vale morrer com honra que viver com desonra." Disponível em: http://www.patriamineira.com.br/imagens/img_noticias/081443140510_Hipolita_Jacinta_Teixeira_de_Mello.pdf
Se os exemplos apresentados acima são a prova de que o protagonismo histórico no
Brasil não tinha gênero, os que serão apresentados a seguir provam que também não tinha
raça. Werneck (2009) afirma que, se a mulher sofreu um intenso processo de invisibilização
de sua história, as mulheres negras sofreram uma invisibilização de forma duplicada, o que
não significa que permaneceram inertes, visto que exerceram um papel fundamental na luta
contra a escravidão, na formação dos quilombos e na participação em diferentes posições de
comando, o que perdura até os dias atuais, sendo a liderança feminina nas comunidades
quilombolas algo bastante comum.
Assim, constatamos que a exclusão da presença das mulheres negras (a exemplo das mulheres indígenas e de outras pessoas e grupos) dos relatos da história política brasileira e mundial deve ser compreendida, principalmente, como parte das estratégias de invisibilização e subordinação desses grupos. Ao mesmo tempo em que pretendem reordenar a história de acordo com o interesse dos homens e mesmo nos tempos pós-feminismo, das mulheres brancas. O que permite apontar o quanto esta invisibilização tem sido benéfica para aquelas correntes feministas não comprometidas com a alteração substantiva do status quo (WERNECK, 2009, p, 83).
O samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira de 2019 se propôs a contar a
história não contada da História do Brasil, sendo um de seus célebres versos: “Brasil chegou
a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês...” (DOMÊNICO et. al., 2018). Mulheres
negras como: Aqualtune, princesa em sua terra natal, escravizada no Brasil, membro da
resistência do Quilombo dos Palmares; Dandara (esposa de Zumbi dos Palmares), que
exerceu papel de liderança dentro do Quilombo dos Palmares, suicidou-se para não ser
capturada pelos soldados coloniais; Esperança Garcia, escrava piauiense que, em 1770,
escreveu uma carta de denúncia de maus-tratos contra negros ao governador da província de
São José do Piauí, e recebeu o título de primeira mulher advogada do Piauí pela OAB do
estado em 2017; Teresa de Benguela, rainha do Quilombo de Quariterê (MG), no dia 25 de
julho, data em que foi decapitada pelos escravagistas, é celebrado o Dia da Mulher Negra no
Brasil; Luísa Mahin, ex-escrava que conseguiu comprar sua alforria em 1812 e participou
diretamente da Revolta dos Malês5 (1835) e na Sabinada6 (1837-1838) (GARCIA E
FERNANDES, 2014; SOARES FILHO, 2016).
Além do resgate histórico de mulheres negras que sempre estiveram na luta por cidadania, o dia 25 (de julho) mostra o quanto o feminismo tradicional e acadêmico,
5 A Revolta dos Malês ficou conhecida como o maior levante de escravos do estado da Bahia. O levante durou menos de 24 horas, devido a ação de forças policiais que tinham sido previamente informadas. Mesmo fracassada, a Revolta dos Malês funcionou como um espelho para o restante dos escravos do Brasil, o que desencadeou outros conflitos (REIS, 2015). 6 Revolta de movimento separatista, ocorrida no Período Regencial, que propunha a separação da Bahia do restante do país e a formação da República Bahiense, de caráter transitório, até que o Imperador Dom Pedro II alcançasse a maioridade (ARRUDA, 2014)
na maioria das vezes, exclui ou não considera as vivencias das mulheres negras como relevantes na formação da identidade e luta dessa categoria. [...] O dia 25 nos coloca no centro da nossa própria história, contada até então, por outros interlocutores que não são aqueles que vivenciam os acontecimentos de forma real. A mulher negra sai da berlinda do espaço político, onde foi colocada, para ser protagonista e essa data define que sim, podemos falar por nós e precisamos ser ouvidas (OLIVEIRA, apud ARRAES, 2015).
Maria Felipa, conhecida como “heroína negra da Independência”, teve participação
fundamental na vitória dos baianos contra os Portugueses na Batalha de Dois de Julho. Em 7
de janeiro de 1823, liderou um grupo de cerca de 40 mulheres pela defesa das praias de
Itaparica, que, armadas com peixeira e galhos, surravam os portugueses e depois ateavam
fogo aos seus barcos. Zeferina, líder do Quilombo do Urubu (BA); Hilária Batista de Almeida,
conhecida como Tia Ciata, considerada uma das mais importantes figuras na história da
origem do samba (GARCIA E FERNANDES, 2014; SOARES FILHO, 2016).
Estes são alguns exemplos de como o protagonismo feminino e negro é soterrado na
História do Brasil, dando lugar a uma narrativa composta apenas por homens brancos, como
se todos os outros sujeitos da história que não se encaixavam neste perfil tivessem assistido
suas próprias histórias como meros expectadores. Na tentativa de descontruir o processo de
invisibilização das mulheres estes exemplos foram mencionados, no sentido de mostrar mais
uma estratégia do sistema patriarcal, que não contente em dominar os corpos e vidas das
mulheres, quer também apagar suas histórias.
4. CONCLUSÃO
O assassinato da Vereadora Marielle Franco em 2018, cometido para silenciar sua luta
e voz de mulher negra, nascida na favela, defensora dos Direitos Humanos e das pautas
LGBTQ+ e das mulheres negras, não será lembrado apenas pela barbárie, mas pelo papel
social que desempenhou na visibilização de diversos grupos e movimentos sociais que eram
historicamente esquecidos.
Com o intuito de denunciar o caráter androcentrista e racista da historiografia oficial e
de reconhecer a participação ativas das mulheres e população negra enquanto sujeitos
históricos, muitas pesquisas vêm sendo empreendidas, sendo capazes de comprovar que as
mulheres sempre estiveram presentes nos grandes acontecimentos da história da
humanidade, mas tiveram seus nomes apagados dos livros, mais uma vez pela força do poder
patriarcal presente na sociedade.
Destaca-se a luta das mulheres por emancipação e libertação que, através dos
movimentos feministas, vem desempenhando o seu papel de defesa dos direitos das
mulheres nas últimas décadas. Contra toda a maré de desigualdades, a invisibilização da
mulher enquanto sujeito social, estabelecida através do silêncio sobre suas lutas e
contribuições políticas, é um fator que vem sendo historicamente repetido e duramente
combatido.
Este artigo pretendeu contar a história quase invisível de mulheres ao redor do mundo
que exerceram papéis fundamentais em diversas lutas e revoluções. Sem pretender esgotar
o tema, visto que embora pouco difundido, são incontáveis as mulheres que protagonizaram
eventos históricos, apresentou-se a história de algumas mulheres e suas participações e
contribuições sociais, visando fornecer um ponto de partida para pesquisadores que desejem
estudar o tema com mais profundidade. O resgate histórico permitiu compreender que a
participação feminina não ficou restrita aos papeis sociais destinados às mulheres da época,
relacionados ao privado, mas ocuparam espaços historicamente reconhecidos com
masculinos, como combatentes, escritoras, jornalistas, líderes de revoltosos, entre outros.
A exclusão das mulheres da historiografia oficial é apenas mais uma das tantas formas
em que a opressão, causada pelas desigualdades entre os gêneros, opera. As estratégias
feministas para a defesa dos direitos das mulheres devem passar também pela difusão da
informação de que a população feminina também participou ativamente das lutas e revoluções
históricas. Esse reconhecimento histórico de luta feminina deve ser exaustivamente difundido
entre as mulheres para que se reconheçam enquanto sujeitos capazes de fazer a história,
como sujeitos pertencentes à vida pública.
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