antropofagiacomunista
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6. A ANTROPOFAGIA COMUNISTA EM MARCO ZERO
É um ultra-sensível (...). Colonial com Théatre Bresilien (1916), anarco-cristãocom a desgraça e a solução sentimental a que se acolhe o lúmpen de que fazia parte
como boêmio em (1922), anarco-feudal em Pau-Brasil e Primeiro Caderno – reflexo da
alta vida a que subira com fortuna herdada extremando-se em anarco-indígena com
Serafim e a Antropofagia comunista enfim (...).
Oswald de Andrade
A antropofagia propriamente dita e explicitamente comentada foiintroduzida, em MZ , pelos diálogos entre Jack de São Cristóvão e Carlos de
Jaert, artistas da alta sociedade paulista que participaram da revolução de 32.
A primeira vez que Carlos de Jaert surgiu em MZ foi numa conversação com
Jack no momento da revolução de 32. É possível observar a ironia de Carlos
de Jaert que se riu das teorias de Jack de São Cristóvão sobre o tempo
psicológico (ANDRADE, 1991, pp. 175-178). Acreditamos que, embora a
antropofagia tenha sido citada claramente apenas nesse diálogo, ela estevepresente, de outra forma, perpassando todo o fio narrativo. Os diálogos dos
dois artistas fornecem uma “digestão” da narrativa a respeito do que estava em
voga aquela época a respeito de vanguarda, pintura, romance, artes em geral.
O processo de colagem descolonizadora de elementos da tradição européia e
brasileira é o nosso conceito de antropofagia.
Assim a narrativa incorpora outros assuntos e até mesmo, como
veremos, canções, quadrinhas e ditos populares, além da estranha versão da
antropofagia, que diríamos decadentista, presente na entrevista do pai de
Jango ao comunista e jornalista Leonardo Mesa, que representou também a
presença e a irrupção da antropofagia dentro da narrativa de MZ . A própria
narrativa, além de devorar e incorporar o marxismo ao seu pensamento, incluiu
muitos outros assuntos e materiais, mesmo que considerados “baixos”: o
dialeto caipira e as falas dos imigrantes, canções e quadrinhas populares, a
Montanha Mágica de Thomas Mann e La Cumparsita.
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Na narrativa diálogica de MZ , as origens mostram-se plurais: não existe
uma busca ou uma saga do caráter bandeirantista. Não se busca, em MZ , uma
identidade para o Brasil: contra a mentalidade colonizada, diante do marxismo
ou dos romances e modismos europeus, preconiza-se uma postura de
apropriação seletiva, igualando alta e baixa cultura, altas e baixas classes
sociais, uma atitude antropofágico-comunista diante da realidade brasileira.
Imagens de certo primarismo e até mau gosto foram utilizadas
conscientemente para contrastar e compor personagens como o grotesco
imigrante novo-rico (Nicolau Abramonte) quanto da camponesa politizada,
porém chegada a uma galhofa (Miguelona) e do desprezível Monsenhor Palude
que oferece um penico de prata ao Coronel Bento, como forma ridícula de
ajuda financeira.
O contraponto esteve presente na polifonia étnica (falas de brancos
ricos, pretos, alemães, japoneses, caipiras, dentre outros), na passagem de
uma voz a outra através da FP ou pelo discurso do NE no decorrer dos
capítulos; por sua vez, a simultaneidade está “no trocadilho e na palavra-
montagem na palavra escrita e falada, correspondente ao acorde musical”
(PIGNATARI, 2004, p. 162).
A forma da antropofagia, em MZ , foi a luta da posse contra a
propriedade, que a narrativa apresentou tendo tomado, ela mesma, partido da
possei: da terra contra o latifúndio, do dialeto caipira contra o floreio retórico, a
rebeldia irreverente, os achados desabusados contra a tradição literária e a
erudição convencional e acadêmica. Portanto, o tema explicitado em MZ está
entranhado nos próprios procedimentos da narrativa. Pode-se mesmo dizer
que a relação posse-propriedade foi um dos eixos de MZ , observado por
Boaventura de forma notável. Afinal, em MZ existiu não só a relação posse-
propriedade, mas ela aparece em forma e conteúdo. Por exemplo: ela se faz
presente, esteticamente, quando a tradição literária e intelectual do Brasil e do
Ocidente não é levada em conta como um peso morto. Ela é tomada, pilhada,
usada em um enfoque lúdico de jogos de linguagem. Mesmo o campo de
batalha é marcado pela constante lúdica. Nele, Quindim, irmão de Jango,
relacionou-se com um soldado nordestino e conseguiu fugir ao aprisionamento
por ter consentido em ceder favores sexuais ao nordestino. Trata-se dasubversão do heroísmo da guerra de 32.
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6.1. Música, pintura, romance
No decorrer dos embates entre inúmeras vozes em MZ , a pintura e o
romance foram revalorizados e a música foi colocada num pólo oposto por ser
silêncio e recolhimento. Para criticar a música e afastar-se dela (diferente,
portanto, de Mário de Andrade), nos diálogos de Jack e Ciro foi citado o
personagem Settembrini, que afirmou sobre a música em A Montanha Mágica:
A música? Representa ela tudo o que existe de semi-articulado, deduvidoso, de irresponsável, de indiferente(...). Aparentemente amúsica é toda movimento, e contudo suspeito nela o quietismo.
Permita que eu leve a minha tese ao exemplo: tenho contra a músicauma antipatia de caráter político. A música é inestimável como meiosupremo de produzir entusiasmo, como força que faz avançar esubir, mas só para pessoas cujos espíritos já estejam preparadospara os seus efeitos. Porém, é indispensável que a literatura apreceda. Sozinha, a música não é capaz de levar o mundo avante.Para a sua pessoa, meu caro engenheiro, ela representaindubitavelmente um perigo. Isto verifiquei ao chegar, na suafisionomia (MANN, 2000, p. 156-157).
Assim sendo, Thomas Mann é apenas um dos autores citados em MZ,
romance onde trata-se a tradição literária de forma anarquicamente lúdica. Aoposição entre concepções diversas de arte foi patente no embate entre Jack
de São Cristóvão e Carlos de Jaert; ao contrário do que pensou parte da crítica
a respeito de MZ , nenhum dos dois é “porta-voz” do autor empírico. A narrativa
possui tanto engajamento social (Carlos de Jaert) quanto experimentação
modernista (Jack de São Cristóvão). Jack, engenheiro, defende a arte
moderna, faz a apologia de Cézanne e de Van Gogh, aos quais Carlos de Jaert
opõe o Douanier Rousseau, esclarecendo sua relação com a representação eapresentando um de seus temas:
Amanhã vou começar um quadro. Uma cena que vi na estradaquando vinha para cá. Uma mulher enorme, opilada, levando nobraço uma criancinha de dois quilos. Ao lado o homem amarelo, emfarrapos, com um galo de briga. Sabe qual o título? Mudança.(ANDRADE, 1974, p. 140)
Na passagem acima, acreditamos que não se trata da narrativa falando
dela própria. Essa passagem não representa uma justificativa para os assuntos
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e as linguagens do romance. Seriam um diálogo onde as duas posições
estariam buscando se chocar, para, produzindo tese e antítese, chegarem a
novas síntesesii:
_ (....) Mas as artes verdadeiramente políticas e sociais como apintura e o romance voltaram à sua normalidade que é ensinar. _Graças à Rússia Soviética! _exclamou o engenheiro soltando umagargalhada faustosa. _ Não_interveio o pintor._ Mas graças a um grande livro, o maior livrodo século XIX, graças a O Capital , de Carlos Marx (...). O romancedepois de Marx deixou as lamúrias psicológicas de Sthendal, deBalzac, de Flaubert para tomar posição frente aos problemas dohomem e resolvê-los. Como o quadro! Há uma volta à parábola. Oromance passa a moralizar...Como um evangelho... (ANDRADE,1974, pp. 234-235)
MZ , embora não tivesse lamúrias psicológicas, não é um romance que
segue a descrição acima. Ele não moraliza claramente (o NE é que deveria
fazer esse papel) e nem possui intertextualidade clara com o evangelho ou
possui trechos que possamos descrever ou analisar como parábolas. A
narrativa como um todo abrange as posições Carlos de Jaert e Ciro de São
Cristóvão, tanto que elas aparecem representadas por tais personagens. Por
isso, podemos dizer que não se deve procurar nesses personagens um “porta-
voz” autobiográfico nem uma voz do autor empírico dentro da narrativa. São
vozes que se somam a uma grande discussão que não se submete a nenhum
maestro autoritário. Carlos de Jaert, de um engajamento social sensato, exibiu
também um profetismo contra o capitalismo:
Veremos _exclamou Carlos de Jaert. _ É preciso não ver a guerracomo guerra, a que se prepara no plano militar. Será apenas acatarse da técnica, a catarse do capitalismo. O mundo só assim se
libertará das paixões provocadas pela máquina. O homem não seengorgita de materialismo sem conseqüências. Virá a catarse. Ocapitalismo terá o seu apocalipse! (ANDRADE, 1974, p. 247)
MZ foi um romance em que vários elementos característicos da forma
épica se fizeram presentes: a universalidade e a amplitude do material
envolvido; a presença de vários planos; utilização do princípio da
representação plástica, em que homens e acontecimentos agem, na obra,
quase por si mesmos. A contradição da forma do romance reside precisamenteno fato de que o romance, como epopéia da sociedade burguesa, é a epopéia
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de uma sociedade que destrói as possibilidades da criação épica. MZ resolveu
essa questão dando sinais de que narraria a epopéia da guerra de 32, para
depois, quando deveria dar tratamento épico, partir para a sátira e a paródia, o
humor e o trocadilho, negando-se a fazer a criação épica com o referido
material e ambicionando surpreender o leitor iii.
Tanto a épica quanto o romance devem revelar as peculiaridades
essenciais de uma dada sociedade por meio da representação de destinos
individuais, das ações e dos sofrimentos de seres humanos individualizados. O
objetivo de MZ parece ser o de acabar com o aparente impessoal e casual
choque de interesses para criar situações em que a luta recíproca seja
concreta, clara e típica e não apareça como um choque casual, a fim de que,
da sucessão dessas situações típicas, se construa uma ação épica realmente
significativa: inventar caracteres típicos em circunstâncias típicas, essa seria a
essência do realismo no romance.
Em MZ , os diálogos de Jack de São Cristóvão e Carlos de Jaert
percorreram os principais temas que atormentavam as vanguardas das três
primeiras décadas do século e que desaguariam na concepção de arte
participativa e social dos anos 30. Referindo-se à crise de representação do
pensamento e da arte, tais preocupações decorriam da dissolução de formas
culturais e valores mais estáveis, advinda da velocidade do avanço capitalista
nas sociedades ocidentais.
Neste trecho, Jack de São Cristóvão personifica a vanguarda modernista
brasileira e assume a defesa de suas tendências expressionistas e cubistas
sem conteúdo político explícito. Carlos de Jaert, ao contrário, busca outra
inspiração pictórica: a representacional, pedagógica, sustentada na idéia de
povo e informada pelo movimento muralista mexicano iv. Siqueiros foi então
acusado por Jack de produzir uma arte demagógica. A intenção da narrativa,
podemos supor, é justapor essas posições para sincretizá-las, fundi-las,
buscou encontrar a síntese entre as duas posições: as experiências
modernistas e arte social engajada. Assim sendo, Carlos de Jaert é um
personagem, como muitos nesse romance, que representa um determinado
ponto de vista e introduz uma teoria. Embora possamos aproximar Jango e
Leonardo Mesa, por exemplo, a narrativa teria se identificado mais com aideologia dos dois se tivesse escrito um romance narrado do ponto de vista de
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algum deles. No entanto, tal não ocorreu, o romance foi escrito de um ponto de
vista distanciado mesmo em relação a esses personagens. Mesmo eles, em
sua opção pelo comunismo, são lançados na obra para serem expostos,
criticados, analisados.
Dizemos isso referindo-nos, sobretudo, às descrições de pequenas
cenas da revolução em os latifundiários em armas, a descrição da
peregrinação em Pro Brasilia Fiant Eximia (para o Brasil faça-se o melhor), de
A Revolução Melancólica, e os grandes debates do Clube de Arte em Chão
onde se misturam todos os tipos de opinião sobre a situação econômica do
Brasil, sobre a arte engajada e a arte burguesa, etc.
Se, por um lado, a técnica utilizada em MZ respondeu à intenção de
criar um romance com muitos focos de atenção, por outro ela complicou
totalmente o desenvolvimento da ação e terminou por comprometer a finalidade
que perseguia o escritor: escrever uma obra popular. O poema de Lorca
simboliza a luta da posse contra a propriedade, motivo-guia retomado algumas
vezes nesse texto, subjacente ao assunto da revolta de 32, que aos poucos foi
tomando o primeiro plano da narrativa. Grito para Roma é um poema que faz
parte de Poeta em Nueva York (1929-30), inspirado quando por sua estada
naquela cidade norte-americana, mas só publicado em livro postumamente, em
1940, no México. Nessa obra, o poeta paga seu tributo ao surrealismo e ao
estilo de Walt Whitman, além de exprimir o seu horror aos crimes e absurdos
da civilização moderna, que ele conheceu bem de perto ao visitar os Estados
Unidos na época mais difícil de sua história: a recessão econômico-financeira
do fim da década de 20.
Pensamos também que Lorca foi também escolhido por ter sido vítima
do fascismo espanhol. A necessidade de combater o fascismo e o integralismo
sempre foi ressaltada por Oswald; não foi à toa que o episódio escolhido como
sinalizador da revolução socialista que estava por vir foi a dissolução de um
comício integralista pelos militantes de esquerda que ocorreu em Chão. Outro
motivo foi a evidente associação entre a nova sensibilidade de Oswald e a de
Lorca:
Não fora ele o fundador da Barraca, teatro ambulante destinado a educar as massas, tanto nas cidades como nos campos, ele que, em plenaditadura Primo de Rivera, escrevera e fizera representar a peça Mariana
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Pineda, que mais não é senão um frenético apelo à liberdade? Pela suaformação, pelos seus ideais, pelos vetores de sua vasta obra, narealidade Lorca tendia para os ideais socialistas (MOTA, apud: LORCA,1999, p. 14).
A antropofagia teria como local principal a boca, espaço próprio da
devoração. Talvez por isso, a devoração presente em MZ apresentou
tendência a incorporar a oralidade na fala. Os estudos que buscam investigar
culturas orais e não escritas emergiram, sistematicamente, no início dos anos
1960. Oswald de Andrade esteve, ao escrever sua ficção, na vanguarda da
valorização dos relatos orais, buscando vestígios daquilo que se convencionou
denominar oralidade primária: MZ trouxe melodias, cantos, danças, festas
religiosas e músicas, ainda preservados oralmente e transmitidos de geração ageração. Alguns exemplos:
Mijares de famíliasSe van a Buenos AiresPorque non tienen em su pátriaQuien los ampare!(...) (ANDRADE, 1991, p. 87)
Nesse caso, trata-se da transcrição de canções trazidas ou criadaspelos imigrantes para narrarem seus infortúnios. É muito curiosa a
incorporação da música num romance em que existiu pelo menos um
personagem, Carlos de Jaert, que primou por criticar a música e citou outro
crítico da música, o personagem Settembrini em Montanha Mágica. Essa
incorporação da oralidade primária também nos fez lembrar o trabalho similar
realizado por Mário de Andrade como musicólogo e folclorista. Vejamos mais
exemplos dessa oralidade primária colhidos em MZ :
Dinheiro e amizadePesando numa balanciaO dinheiro nunca chegaOnde amizade nunca alcança!
Inda hai gente que digaQue amizade vale maisPorque não consideraO bem que o dinheiro faiz.(...) (ANDRADE, 1991, p. 241)
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Num romance com clara influência do marxismo, essa canção acima
serviu para ilustrar uma discussão entre mendigos que surgiu na porta de uma
igreja. Apesar do absurdo do local e da total alienação a que os mendigos
estavam submetidos, a conclusão a respeito do poder do dinheiro e das
distorções que ele gera na vida social nos pareceram significativas: “—Pode
até não gostá da gente. Mas, vendo dinhero na mão, dá comida, posada, tudo!”
(ANDRADE, 1991, p. 241).
Depois que perdeu o MirandaOi a Lina como anda!Não bebo pingaNão bebo nadaBebo sereno da noite
Orvaio da madrugada!(...) Eu tinha confiançaNos reis de França(ANDRADE, 1991, 250, 254).
A partir da observação do tratamento dado ao folclore e à música,
podemos dizer que MZ é um romance onde a ordem é dissolver barreiras.
Misturam-se afirmações, negações e sínteses, não necessariamente nessa
ordem. A música, embora negada por um personagem, permeou toda a
narrativa. Exemplifiquemos com amostras recolhidas de Chão:
Vamos todos beber Enquanto temos idealQue embalar bebêsÉ muito banalBa-a-nal!...(É uma canção de estudantes do Koenigsberg que eutraduzi, mamãe!) (ANDRADE, 1974, p. 121)
Num baile no barracão da tulha de café, ouve-se, ao som da “sanfoninha
convidativa e do grave violão”, vozes que cantam:
Salvai da morteCurai o doenteLivrai da pesteQue vem de repente! (ANDRADE, 1974, p. 161)
Quando a música foi criticada, no entanto, não existiu lugar para a
“sanfoninha convidativa”:
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Chegaria mesmo a dizer que a música é espaço... Isto é, a música éa única arte espacial e, portanto, a única arte objetiva. –A música e aarquitetura! – aparteou Jack. – Ela toca dentro de nós o que temos desubstantivo e imutável, o que temos de estrela, de rocha, de mar... Epor isso todos nós deixamos de ser políticos diante da música. Por isso Lênin fugia da música para não se perturbar, para não se
comover... (ANDRADE, 1974, p. 232)
Curiosamente, em MZ , romance muito conhecido entre a crítica
justamente por ser político, a música se faz presente na narrativa, registrada
nas festas, na porta das igrejas, na boca de tipos populares. E assim, nesse
ponto a narrativa fugiu de Lênin e da política para aproximar-se da música.
6. 2. Antropofagia em Marco Zero
A obra foi atacada por conter imagens de mau gosto; sua
presença faria sentido na ambição eclética com que MZ foi realizado: o texto
não nos pareceu querer impor uma só visão, por anticonvencional e criativa
que fosse, da sociedade; o texto agregou opiniões e imagens contraditórias ou
conflitantes. De fato, no texto aqui avaliado existem elementos e coisas que
“hurlaient d´ être ensembles” (gritam de estar juntas) e essa nos pareceu ser a
originalidade da sua visão: ao mesmo tempo em que apareceram as falas
elegantes e precisas de Leonardo Mesa, analisando a sociedade e o real
através do prisma marxista, surgiu Paco Alvaredo para denunciar o descaso
dos comunistas com relação ao que dizia respeito ao comportamento
individual, forma e boas maneiras, marcando um contraponto. Diferente de
Salim Abara, os japoneses não se abrasileiraram. Essa questão foi ilustrada
pelo NE, crítico dos japoneses, quando o menino Idalício adoeceu de tétano e
morreu sem que os japoneses fornecessem o soro: os japoneses fechavam-se
numa colônia, não exercendo nenhuma forma de solidariedade com os
brasileiros pobres.
A antropofagia, em MZ , poderia estar nesse tipo de comentário: para o
imigrante, para o estrangeiro adaptar-se ao meio brasileiro seria preciso que
ele se abrasileirasse, se misturasse aos brasileiros, se adaptasse: nesse
momento, Salim Abara fez contraponto a Nicolau Abramonte. Salim defendeu o
caboclo brasileiro dos japoneses (quando Elesbão aproximou-se e foi privadode sua terra por eles); Nicolau Abramonte rejeitou Lírio de Piratininga com
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imprecações racistas. A narrativa mostrou, no entanto, outra face de
Abramonte em Chão, ao mostrá-lo como um banqueiro que se negou a
financiar o integralismo para que ele combatesse os comunistas. A presença
da antropofagia, antes anarquista, agora com componentes marxistas, fez com
que o direcionamento do texto fosse contra o fascismo integralista, tido como
associado aos imperialismos italiano e alemão e japonês. A narrativa também
fez paródia da revolução de 32, criticando também o comunismo através de
uma personagem que é a paródia de uma revolucionária (Miguelona), assim
como os militantes comunistas foram expostos as críticas de um anarquista
(Paco Alvaredo).
Bem diverso é o tratamento dado a Miguelona Senofim: ela é uma ítalo-
brasileira, uma mistura entre caipiras e imigrantes, porém sua brasilidade
jamais é posta em questão. Sua origem só ficou evidente através de seus atos
de fala irreverentes e bufões. Outro personagem bufo é Lírio de Piratininga,
caricatura de intelectual (nacionalista à la Olavo Bilac) bastante ridicularizado
em sua participação em 32. Lírio se opôs aos Abramonte, para os quais era um
elemento civilizador; ensinava os imigrantes a tomar banho, escrevia contra os
japoneses e a favor dos negros, agia desvinculado do catolicismo retrógrado da
pequena cidade. Salim Abara, de origem sírio-libanesa, uma vez abrasileirado,
reagiu contra os japoneses, essa raça que trazia o “dumping”, ou seja, a
concorrência desleal.
Kana representou um personagem japonês cúmplice nos atos do Conde
contra a esposa Felicidade Branca: ela o viu em trajes íntimos, invadindo seu
espaço de forma análoga à que faziam os japoneses com os colonos. Embora
Kana fosse educado no Ocidente, não se podendo atribuir a grosseria a fatores
culturais, tudo indica um grau de proximidade também política entre o copeiro
japonês e o conde integralista e fascista, tal como entre Hitler, Mussolini e
Hiroito. Kana subiu na sociedade, embora com maus modos; ele foi, de certo
modo, premiado pelo Conde pela ofensa a Felicidade Branca.
Em MZ , a antropofagia estaria na defesa dos caboclos realizada pelo
NE. Enquanto Miguelona desvinculou-se e denunciou Mussolini, os imigrantes
japoneses nunca desvincularam-se totalmente da política de seu país; existe
inclusive uma inspeção de uma autoridade japonesa nas colônias.
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6.3. Major Dinamérico Klag e a versão conservadora da antropofagia
Tratamos aqui de um romance que agregou algo do marxismo e que
trata de política, mas atenta para as diferenças individuais: não reproduz
clichês do partido comunista, registra tanto a posição do jornalista Leonardo
Mesa do papel dos intelectuais (ou seja, de quem sabia ler e escrever) na luta
contra o sectarismo de militantes como Maria Parede, que vestia um lenço sujo
para parecer operária.
Se MZ v registrou algum clichê, foi a propósito de fazer um discurso plural
e abrangente, neonaturalista no sentido de experimentar uma nova linguagem
capaz de transformar em síntese narrativa as contradições, complexidades e
impurezas da realidade.
Numa determinada altura de MZ , (uma reunião de figuras de alta
sociedade em Chão), Major Formoso e Jack de São Cristóvão debatem a
respeito da antropofagia. O Major da Formosa, latifundiário em decadência,
grileiro, alcoólatra na mocidade estudante de Oxford, onde viveu uma época
em que praticou a filosofia nietzschiana, em 1934 era espírita e integralista e
registrou o deslocamento dos antropófagos para a esquerda:
--A Antropofagia, sim, a Antropofagia só podia ter uma solução –Hitler! No entanto os integralistas cristianizaram-se. Deus, Pátria eFamília! E eles, os antropófagos que tanto prometiam, foram para omarxismo. É ininteligível! Eles cantavam o bárbaro tecnizado! E que éo bárbaro tecnizado senão Hitler? (ANDRADE, 1974, p. 202).
A narrativa, marcada ela mesma, internamente, por procedimentos
antropofágicos, explicita a possível leitura conservadora da antropofagia: ao
cantar uma regressão ao primitivo e o ancestral sem deixar de lado a técnica, ogrupo liderado por Oswald de Andrade teria profetizado Hitler. Por outro lado,
fazendo uma outra leitura dessa profecia, a antropofagia teve também uma
releitura pelo movimento tropicalista nos anos 60. A postura irreverente e
agressiva diante das tradições da música popular brasileira foi equacionada
com aceitação dos avanços tecnológicos. A possível leitura conservadora da
antropofagia, descartada pelo próprio Major Formoso (cujas falas em MZ o
aproximaram dessa posição: uma interpretação conservadora da antropofagia)foi, logo a seguir, contestada pelo arquiteto Jack de São Cristóvão:
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--Não é isso. O que há é confusão – continuou o arquiteto. – No meiodo movimento modernista apareceu alguma coisa tão rica e tãofecunda que até hoje admite várias interpretações. Politicamente, aAntropofagia pode ser considerada como a primeira reaçãoconsciente contra os imperialismos que ameaçam até hoje a nossaindependência. Basta dizer que ela propunha uma reforma docalendário nacional. Nosso ano I seria o da devoração do BispoSardinha pelos índios Caetés, na Bahia (ANDRADE, 1974, p.202).
Assim, o personagem Jack de São Cristóvão inseriu externamente na
narrativa uma releitura da antropofagia dos anos 20vi. A antropofagia seria,
portanto, uma filosofia passível de ser atualizada, em seus conceitos, segundo
o contexto e o momento histórico em que ela fosse aplicada. A partir de sua
matriz nacionalista, a ela poderiam ser agregados conteúdos anarquistas,
marxistas, sempre de forma orgânica, mas sua tônica seria a necessidade da
evolução social do Brasil e da humanidade.
Nessas reuniões sociais em Chão, focaliza-se Plínio Salgado e os
integralistas, e, ao lado deles, a ridícula figura de Léontine Bourrichon, cômico
estereótipo da prostituta francesa e amante do Conde Alberto de Melo,
simpatizante do integralismo, fazendo rir e desmoralizando os discursos
ufanistas e o moralismo católico dos camisas-verdes. A narrativa constrói belas
imagens, mas também agrega imagens de mau gosto porque presentes na
realidade, ou seja, já agrega o Kitsch, procedimento largamente praticado pelos
tropicalistas, nos anos 60, ao incluírem canções com imagens de mau gosto
tais como Coração Materno ao seu repertório.
O tratamento dado à oralidade chamou-nos a atenção especialmente
numa passagem de Revolução Melancólica, que pode também ser destacada
para comentar a presença da estética muralista em MZ . Nessa passagem, os
personagens, militantes do partido comunista, escutaram ao longe um comício
constitucionalista:
De um alto-falante vinham palavras desligadas:--escombros...poeira...glória...rigidez...civismo...tentacular...subreptícia......Iscariotes...A voz precisou-se: --Nesta arrancada de heroísmo, aluta se prepara entre enxovais e liberdades, entre o Direito e opundonor de um lado, e do outro a força hiante da Ditadura...
Janelas e sacadas estavam repletas. Súbito, dos lados do Brás, unidoem torno de um dístico, um grupo de gente mal vestida surgiu. Fezum redemoinho, lateralmente na direção das escadarias. O boxeur
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Venâncio erguia o cartaz onde se lia a palavra: “proletariado”. Atrásdele ia uma figura desajeitada e angulosa de homem do povo. Era ocamarada Falcão. Junto dele estava o operário Irmo Frelin numacamiseta colorida. O grupo estacou de repente. Uma moça decabelos revoltos foi guindada aos ombros de dois companheiros.Suspendeu nos braços abertos uma bandeira vermelha, aberta
também. Envolveu-se nela.Na praça continuou o comício em torno das cores regionais:--Lágrimas...colheita...potência...anseio...bombardeio...maremoto...cratera... sementeira...sangue...São Paulo! (ANDRADE, 1991. p.130)
Na cena acima, o discurso constitucionalista ouve-se apenas ao longe.
Ao mesmo tempo em que se precisou, tornou-se reticente logo a seguir. E,
notadamente no texto acima, o discurso constitucionalista foi apenas mais uma
das vozes que falaram em MZ . E a narrativa agregou esse discurso de formaem que ele tornou-se “palavras em liberdade”, à moda dos poemas
modernistas. São palavras ditas na rua, desligadas entre si; podemos entendê-
las, no entanto. São um chamado à revolta paulista e condenação do traidor
Vargas, chamado de Judas Iscariotes. Assim, da narrativa histórica da
revolução de 32 ouve-se, em MZ , algumas passagens aqui e ali, desligadas.
De permeio, uma imagem heróica dos militantes comunistas e uma palavra
somente, mas destacada como extremamente significativa: “proletariado”. Essa
passagem nos forneceu uma forte imagem de MZ : um primeiro plano com
militantes comunistas levantando uma bandeira vermelha, num gesto ao
mesmo tempo político e estético; um segundo plano com a revolução
constitucionalista de 32, cujos discursos e personagens foram esmiuçados e
fragmentados, oralizados e estetizados no decorrer da narrativa.
Conforme vimos acima, se a antropofagia está presente, em MZ , na
incorporação de temas da pintura e da música e até mesmo do folclore e da
canção popular, um personagem formulou talvez a sua mais estranha versão,
nada comunista e sim decadentista: o pai de Jango, Major Dinamérico Klag
Formoso, que estudara Filosofia em Oxford. Leonardo Mesa o entrevistou e
obtivemos o registro dessa estranha filosofia em MZ . O NE assim iniciou essa
passagem:
O camarada Rioja dispunha-se a conhecer o pai do Jango da
Formosa. Do último rancho da serra, ele lutava nos tribunais contra osposseiros das terras devolutas, fechava as estradas, atacava oscaminhões. Era filho do senhor do feudo mais rico do oitocentos
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paulista, cuja decadência Leonardo conhecia de perto. Diziam queera maluco (ANDRADE, 1991, p. 44).
A descrição da figura acima foi o perfil de um latifundiário em
decadência, em luta contra os pobres, adotando um comportamento de senhor feudal. A descrição mostrou o grotesco e atrasado comportamento do pai de
Jango:
Um cachorro latiu e ele percebeu assomar, à janela única de umcasebre de pau, uma figura grave de homem, o bigode ruivo eesbranquiçado caído sobre a boca. Empunhava um mosquetão(ANDRADE, 1991, p. 45).
O Major é descrito como alguém excêntrico e curiosamente recluso numcasebre, quando poderia viver em uma casa grande com varandas. O Major,
ao ser entrevistado, silenciou sobre Jango, mas opinou sobre outros
personagens. Sobre o Conde Alberto de Melo, disse ser “um mulato sabido”;
sobre seu pai, coronel Bento Formoso, supostamente ainda atuante, “acabará
entregando as terras da Formosa aos usurários. Ficará o coronel, a casa e o
horizonte. Um brasão” (ANDRADE, 1991, p. 45). O Major mostrou-se um
aristocrata branco e racista que exibia sua origem na Europa nórdica (um“Klag”). Mais adiante, o NE revelou que a mãe do Major era também uma
colona européia humilde. O NE descreveu o Major, a essa altura da entrevista
com Mesa, como realmente um louco que: “falava num tom literário e enfático,
mas com uma gravidade impetuosa que seduzia, os olhos querendo pular
sobre o interlocutor, os dentes podres que o bigode procurava encobrir...”
(ANDRADE, 1991, p. 45).
A essa altura, a focalização interna foi encaixada com as perguntas e
respostas de uma entrevista, alternando as falas de Leonardo Mesa e do Major
Formoso. O narrador externo limitou-se a fazer breves descrições, sempre
exibindo traços grotescos da figura e seu decadentismo. As misturas de seu
pensamento, uma bizarra variante de antropofagia, misturavam teosofia e
filosofia, Nietzsche e Allan Kardec. Para o Major, comer os animais seria como
praticar uma forma de antropofagia, um sucedâneo do canibalismo ritual:
O porco, o cachorro e a galinha foram anunciados por São Paulo ecompreendidos por Nietzsche. São hoje completamente humanos. O
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homem está igualado com eles à entrada da ponte. São cristãos daArca de Noé motorizada (...). Possuo a terra e a lei. Quando tenhouma discussão de tipo conjugal com uma galinha, como-a. Torturo osporcos. Ninguém sabe gozar e sofrer humanamente como um porco.São personagens de Balzac. As galinhas pertencem à literaturanacional (ANDRADE, 1991, p. 47).
Assim sendo, a filosofia híbrida do Major humanizou os animais apenas
para canibalizá-los logo em seguida, atribuindo-lhes humanidade. Seu
pensamento seria produto da decadência do meio rural onde ele vivia, a
lavoura de café e sua persistência cruel no latifúndio. O Major seria um
reacionário produzido por Lênin, desejando regressar a um estado de natureza
e viver dentre os bichos da mata, pois vivemos na “idade da pedrada”
(trocadilho com a idade da pedra posteriormente usado pelos concretistasnuma palestra na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP) (CALLADO,
1997, p. 201). O homem seria apenas mais um bicho dentre os outros em seu
quintal. O homem seria o mais desanimado e mais infeliz, pois “sonha em viver
em estado tribal” (ANDRADE, 1991, p. 48).
O Major, além de estar vivendo uma decadência econômica efetiva, o
personagem remete, originariamente, para um significado histórico-político e
para uma atmosfera psicológica e moral (decorrente, em parte, de um particular contexto socioeconômico e político da época onde confluem imagens e
recordações da fase crepuscular de antigas civilizações) que caracterizou a
cultura européia (com acentuados reflexos e prolongamentos na América
Latina e Estados Unidos da América, por exemplo) dos últimos vinte e cinco
anos do século XIX. A sensação de viver numa época terminal perpassa por
todo o século XIX, desde o romântico “mal du siècle”, a dolorosa consciência
da vacuidade da vida (ennui ) que é descrita magistralmente por Alfred de
Musset (1810-1857) em La confession d’un enfant du siècle (1836), passando
pelo baudelairiano spleen até ao decadente “Fin-de-Siècle” (GUIMARAES,
1982, p. 44).
No sentido mais restrito, a “decadência” é, no plano estético, uma
corrente da literatura francesa desde meados do século XIX com o seu apogeu
nos anos 1880. No quadro da reação irracionalista (o retorno ao onirismo, aos
mitos, à imaginação, ao fantástico), espiritualista (catolicismo estético, rosa-
crucianismo, budismo, por exemplo) e ocultista (magia, cabala, espiritismo,
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teosofia, quiromancia, astrologia) do fim-de-século contra o positivismo e o
cientificismo, o decadentismo integra uma significativa e plural renovação
estética, de teor antinaturalista e antiparnasiana, distinguindo-se como arte de
crise correspondente a uma paradoxal atitude, dúbia e ambivalente, perante a
sociedade urbano-industrial (miticamente percepcionada como processo de
declínio irreversível) e face aos efeitos da moderna racionalidade científica e
pragmática, em que o materialismo burguês despontava como algo de abjeto.
Daí a recusa do utilitário, de uma prática social unicamente orientada para os
valores mercantis e, como contraponto, a projeção para o “culto do eu” que,
tanto no plano do estético como do vivencial, relevava a diferença entre a elite
e as massas. Daí, igualmente, o culto exarcebado do artifício, do anti-natural
(na tradição baudelairiana), do excesso, do decorativismo sensualista (a
predominância dos universos de simulacro, a sofisticação ritualística dos
objectos, o fascínio pela flora exótica ou artificial, o ludismo sinestésico, a
sintaxe dos odores) e o culto do individualismo (expressão dum egotismo
absoluto, clara hipertrofia do eu), a centripetação subjectiva (especularidade
narcísica), a ficcionalização de um narcisismo paroxístico. Sob o primado
destas tendências temático-formais (a que poderíamos acrescentar, entre
outras, o amor ritualmente lascivo e inibitório, o fascínio pela figura ambivalente
de Salomé tal como surgia nos quadros do pintor simbolista Gustave Moreau, o
erotismo anômalo, a volúpia transgressiva do vício e do sangue, o imaginário
monstruoso e necrófilo) o decadentismo reclama o novo, pretendendo os
estetas libertar a literatura e as artes das convenções da moral burguesa,
conscientes que estavam da desilusão de um século que parecia ter esgotado
todas as potencialidades de um romantismo reduzido a cinzas. Estes
sentimentos encontraram fortíssima expressão literária na obra de J.-K
Huysmans (1848-1907), particularmente em A rebours (1884) que, sob a
influência tardia do pessimismo de Schopenhauer (1788-1860), empreende
uma síntese intensificadora da estética decadente na criação da personagem
Des Esseintes, paradigma do dândi finissecular (GUIMARAES, 1982, p. 45).
Filiado ao decadentismo conforme definido acima, o pensamento do
Major representou uma “baixa antropofagia” presente dentro de MZ , um
pensamento reacionário provocado simultaneamente pela decadênciaeconômica, uma mente transtornada e uma leitura ou “sobreinterpretação” de
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Nietzsche. Pensamentos canibais e repletos de desprezo, opiniões
desencontradas de um estranho “Zaratustra”, louco e solitário, ruminando uma
filosofia do eterno retorno à animalidade e do desprezo do humano. A própria
narrativa descartou organicamente essa leitura, demonstrando, por seu próprio
movimento interno e pela fala acima citada de Jack de São Cristóvão, um
direcionamento do grupo que fez a Revista de Antropofagia para uma síntese
entre o experimentalismo de vanguarda e os conteúdos marxistas e
anarquistas.
Depois de analisar o pensamento do pai de Jango, verificamos suas
focalizações internas para melhor estudar seu discurso. Aparentemente, a
filosofia do pai influenciou muito pouco Jango, personagem mais ligado à
prática do que às especulações filosóficas, existenciais ou políticas.
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i
A referência direta aos pobres na obra de Oswald de Andrade aflorou com maior evidência na discussão darelação posse-propriedade. Assim acontecera na Revista de Antropofagia, quando se falou dos elementosmarginais da sociedade, e em Revolução Melancólica de forma ampliada, sobretudo no primeiro capítulo(...). No primeiro capítulo _ “A posse contra a propriedade” _ de A Revolução Melancólica a narrativa foimontada a partir da idéia estrutural do pensamento de Oswald: a eliminação da propriedade e a instituiçãoda posse. A camada da sociedade economicamente menos afortunada foi manuseada para articular os fios
da matéria ficcional e ajudar a descrever as peculiaridades do Capitalismo transplantado para o Brasil.Estava em jogo, na passagem em questão, a disputa entre aqueles que falsificaram o título de propriedade(“essas terras que o Majó diz que é dele mas non é”) e os posseiros e colonos que queriam a terra paraproduzir (“os disputadores da terra contra os senhores que tinham o papel selado com o selo do império”)(BOAVENTURA, 1983, p. 133).
ii Citamos novamente Boaventura a respeito: [Oswald continuou] na trilha das manifestações da Vanguardaestética, de renovação da linguagem e os processos de transgressão da dinâmica constitutiva da obra dearte. O trabalho com a linguagem (por exemplo, a prática da colagem, da citação, o recurso à paródia, aocômico e ao trocadilho) particularmente desmistificou o conceito de propriedade da tradição cultural, aotratá-la como uma brincadeira, melhor dizendo, como um jogo. A anarquia brincalhona do lúdico serviu demeio de divulgação por excelência de suas novas idéias e de instrumento de discussão da relação posse-propriedade. Na fase histórica do Modernismo essa crítica emergiu no plano conceitual, muito de passagem
em trechos da Revista de Antropofagia (“O Brasil é um grilo de seis milhões de km quadrados talhados.../Aposse contra a propriedade”); informalmente, no corpo da revista o assunto voltou à baila por meio deaforismas ou através de citações do tipo: “A nossa teoria da posse contra a propriedade. O contato com otítulo morto. O grilo.” (BOAVENTURA, 1983, p. 130).
iii Ao lado do pobre do interior do ‘fim de linha e fim de mundo’, Oswald utilizou-se de um elencodiversificado na galeria menos beneficiada da sociedade _ o colono imigrante, o índio em decadência, ovelho abandonado, a mulher, o operário urbano _ a fim de engrossar o enredo. O posseiro,propositadamente abandonado, sem condições de administrar sequer a sua colheita (Elesbão) foi tambémpinçado por Oswald de Andrade com o objetivo de exemplificar as consequências da exploração organizadada burguesia (“Tudo às ordens do imperialismo estrangeiro”). Por sinal, foi novidade na sua obra de ficção ointeresse pelo mundo rural, Marco Zero, fundamentalmente o primeiro volume, supriu essa lacuna
alternando uma panorâmica dos costumes e ambientes daquele universo com o mundo urbano; trouxe acuriosidade pelo interior, o que, aliás, foi a tônica dominante nos ensaios da década de 40. Apesar docapítulo em questão servir de pretexto para introduzir o tema do livro_a burguesia paulista e suasinsurreições_nos meandros da narrativa maior armou-se uma outra estória: a da relação de dominaçãomantida pelo sistema patriarcal e pelo seu sustentáculo mor _ a propriedade (“O Majó tem chão demais enão aproveita. E inda qué tira tudo dos possero”). Enriqueceu portanto a trama da narrativa abordandoassunto considerado detonador de todas as animosidades e desajustes sociais (BOAVENTURA, 1983,p. 132-133).iv
Além da fusão palavra-imagem cinematográfica, em Marco Zero, Oswald tencionou realizar mais umaexperiência: a exploração da plástica na literatura para compor um mural, mosaico ou afresco. As ligaçõesdo escritor com o mundo da pintura e da escultura já eram antigas, e acentuaram-se na década de 30 einício da seguinte. Nos romances dessa fase, Oswald interessou-se pela pintura mural, um pouco de
Portinari, e muito dos mexicanos David A. Siqueiros e Diego Rivera. As referências ao muralismo sãoexplícitas nas temáticas, no colorido das cenas pintadas, na justaposição e no enquadramento das figuras,no próprio debate estético sobre as escolas e o papel político dos artistas, empreendido por doispersonagens – Jack de São Cristóvão e Carlos de Jaert. Pensava o escritor que a pintura monumental,coletivista e herdeira do mosaico estava em compasso com a subida das massas ao palco da história. Aosair dos museus e dos ateliês em direção à rua, essa arte social recuperaria a dinâmica dos povos, dasclasses e das culturas. Simultânea, assim como o cinema, ela poderia contrapor signos e imagens, construir e demolir, criar conceitos. A experiência do muralismo mexicano relacionou-se intimamente com a vagarevolucionária que, ao irromper naquele país no início do século, abriu espaço para os artistas defenderema proposta de uma arte a serviço da criação do homem novo, livre e responsável por seu destino. (...) NoBrasil, Marco Zero significou uma de suas eloqüentes expressões (FERREIRA, 1991, p. 6).v
Marco Zero pretendia desenhar um mural sobre a decadência da burguesia paulista. Esse primeiro volumereconstituiu a queda do latifúndio agrário que produziu como última conseqüência a Guerra Santa do Café –a revolução de 32 e o nascimento dos elementos novos da sociedade. O autor explicou a escolha do títulocomo decorrente da imensa melancolia surgida depois da derrota dos latifundiários. E sustentou a tese de
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que, a partir de 32, despontou a possibilidade de um mundo novo, embora à custa de muita luta(BOAVENTURA, 1995, p. 209).vi
Além disso (debates sobre o papel do Estado) colocou em quarentena o vigor das teorias estéticasrenovadoras da década de 20 e as reivindicações mais ousadas de caráter geral. Mesmo pensando no seuteatro, já que o romance Serafim Ponte Grande, embora publicado em 1933, foi inteiramente concebidoquase dez anos antes. Inclusive a proposta, esboçada na Antropofagia, de reivindicação da posse contra a
propriedade foi suspensa até os anos 40, quando a retomou nos ensaios de Filosofia, nas famosas tesesuniversitárias e, de modo muito irreverente, no volume de A Revolução Melancólica do Marco Zero(BOAVENTURA, 1984, p. 4).
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