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ANA CAROLINA DINIZ ROSA
A Organização da Atenção Básica de Saúde em Campinas/SP:
perspectivas, desafios e dificuldades na visão do trabalhador
Campinas 2014
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Ana Carolina Diniz Rosa
A Organização da Atenção Básica de Saúde em Campinas/SP:
perspectivas, desafios e dificuldades na visão do trabalhador
Orientadora: Profa. Dra. Marta Fuentes Rojas
Dissertação de Mestrado Profissional apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Política e Gestão em Saúde do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas para obtenção do Título de Mestra em Saúde Coletiva, Política e Gestão em Saúde, área de concentração: Política, Gestão e Planejamento.
Este exemplar corresponde à versão final da dissertação defendida pela aluna Ana Carolina Diniz Rosa e orientada pela Profa. Dra. Marta Fuentes Rojas. _______________________________________________
Campinas 2014
iii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS
Dedicatória
Ao meu avô (na memória) que me ensinou a compartilhar
com ternura, a reconhecer a existência do outro com altruísmo
e a experimentar o prazer dos bons encontros.
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Agradecimentos
Chegar ao final desse processo de produção me desperta, ao mesmo tempo, sentimentos de
nostalgia e deleite, misturados em todas as lembranças e vivências que percorri durante esses dois
anos. Por isso, como forma de reviver, de celebrar e recordar essa trajetória, “eu quis cantar minha
canção iluminada de sol” (Sérgio Dias) na tentativa de traduzir em singelas palavras o
agradecimento a tantos atores que tornaram essa história possível de ser contada. Em meio aos
desafios, às renúncias, ao aprendizado e aos encontros, descubro-me mais amadurecida e
fortalecida para continuar enfrentando os obstáculos e lutando para que nos espaços caiba cada vez
mais gente, pois “o homem coletivo sente a necessidade de lutar” (Chico Science).
À minha família que divide comigo os momentos de anseio e conquistas com afeto, suporte
e dedicação, que me fortalece e me resgata nos momentos tortuosos. À minha mãe, que percorre a
delicadeza e a fortaleza com tanta leveza, tornando as coisas mais simples e belas. Só posso
agradecer por toda a dedicação, pelos ensinamentos, pelo exemplo de mulher e de profissional,
pelo auxílio técnico na construção desta pesquisa e por me sustentar nos momentos de desespero e
de cansaço, apostando na minha capacidade e me fazendo continuar. Tenho a certeza de que “se
todos fossem no mundo iguais a você, que maravilha viver” (Vinícius de Moraes e Tom Jobim).
Ao Diogo, que me ensina “coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar” (Renato Russo) e me
acompanha nas minhas fantasias, nos meus receios e dúvidas, mostrando como a vida pode ser
simples, incentivando-me a experimentar os prazeres e os desafios, oferecendo-me colo quando
tenho medo da travessia. Obrigada por compreender as minhas renúncias, por trazer alegria ao meu
dia a dia e por garantir que a nossa rotina seja apenas o respeito e o amor que a gente sente e
constrói a cada dia.
Ao meu avô, a quem “faz um tempo eu quis, fazer uma canção pra você viver mais” (John
Ulhoa e Fernanda Takai). À minha avó, exemplo de força, renúncia, humanidade e respeito. Esses
ensinamentos são responsáveis pelo que me tornei e pelo que busco hoje.
Ao Cicero, Sheila e Doni, pelo apoio, pela aposta e por confirmarem a importância da
família. Felipe e Júlia, que me convidam a um mundo de fantasia e me ensinam sobre a doçura da
vida. Tio Du e Nicole pelo exemplo de força, por mostrarem que a família é um porto seguro e por
me fazerem compreender que o resgate é sempre possível.
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ix
Aos meus amigos e companheiros de uma intensa estrada que suavizam minha vida e me
ajudam a celebrá-la. Meninos e meninas, obrigada pela amizade, pela parceria e por me ensinarem
que a amizade, além de bons encontros, está sustentada por uma relação de apoio, respeito e
compartilhamentos. Mari, Bhell e Milena, que tornam minha vida muito mais divertida e me
ensinam que ela pode ser muito mais leve e profunda, quando partilhada com pessoas tão
especiais. Evelin, pelo apoio, incentivo, amizade e pela ajuda nas reflexões e formatações da
pesquisa. Marília, companheira de trabalho, de fantasias, conquistas e lutas, e amiga que me fez
acreditar que esta pesquisa era possível. Raquel, pela amizade, compreensão e pela aposta no meu
potencial.
Aos companheiros de trabalho de Campinas, que me acolheram e me ensinaram a trabalhar
para o SUS. A rede Campinas não só possibilitou a reflexão e a busca por esta pesquisa, como
também, garantiu a minha formação e minha reflexão sobre o trabalho e a vida.
Aos companheiros de trabalho de Cerquilho pela confiança, pelo aprendizado e pelas
inúmeras reflexões que me despertam quando experimento as conquistas das equipes.
Às equipes que participaram deste trabalho, pelo aceite e pelo deleite de encontrar minhas
angústias traduzidas nas suas palavras. Que esta pesquisa tenha lhes gerado o mesmo prazer e que
traga fortalecimento e possibilidades.
Aos trabalhadores do SUS e da saúde, que garantem um dos nossos direitos de cidadãos e
que travam lutas diárias. Que vocês percebam que “basta ser sincero e desejar profundo, você será
capaz de sacudir o mundo” (Raul Seixas).
Fazer parte da primeira turma do “Mestrado Profissional-2012” possibilitou-me conhecer
tanta “gente fina, elegante e sincera” (Lulu Santos), formando um grupo coeso e acolhedor que
compartilhava o aprendizado, as inseguranças, as experiências e as celebrações, proporcionando
tantos bons encontros que deixarão saudades.
Aos Professores do “Mestrado Profissional” que construíram e bancaram
brilhantemente/heroicamente este projeto, acreditando na possibilidade e na importância da
pesquisa embasada pela prática profissional, ao mesmo tempo em que nos estimulavam e nos
convidavam a participar desta construção. Além do conhecimento teórico, o maior aprendizado foi
perceber que os conteúdos ministrados em aula estavam incorporados em suas posturas e visões de
mundo.
x
O Mestrado Profissional também proporcionou a minha entrada e participação no “Coletivo
de Estudos Paidéia”, que tem garantido a continuidade da minha formação, inúmeras reflexões e
aprendizado, além de uma maior segurança para desenvolver meus projetos, ações e postura
profissional dentro do meu trabalho. Em especial, à Cacau e Márcia, responsáveis pela brilhante
condução dos grupos de discussão desta pesquisa e que sempre com palavras de apoio e incentivo
me acolhiam e me estimulavam a dar um passo adiante. À Mariana, que tanto colaborou na Banca
de Qualificação, orientando para o formato final deste trabalho.
Nessa minha caminhada profissional, fui me aproximando das ideias e pensamentos de
alguns professores que me encantaram, trouxeram respostas e direcionamento aos meus
pensamentos. Em especial, ao Professor Gastão, Mestre da Saúde Coletiva, que investe na
potencialidade dos profissionais da saúde, que defende e acredita num sistema de saúde humano,
de qualidade e democrático. Ao Professor Gustavo Tenório, um exemplo de humildade e
sabedoria, que sempre me estimulou nas Rodas, Coletivos e grupos, com uma percepção sutil e
cuidadosa dos indivíduos, proporcionando a presença e a permanência de todos.
Gostaria, ainda, de agradecer imensamente à Banca de Defesa: Professor Gastão que está
colaborando em mais uma etapa deste trabalho; Professora Daniele que aceitou esse convite com
tanto afeto; Professor Gustavo que no papel de suplente tanto colaborou na Qualificação e aceitou
novamente estar presente; Professora Paula Furlan que, sem me conhecer, aceitou também com
muito afeto fazer parte desta etapa.
Por fim, agradeço à grande responsável por esta obra, à minha Orientadora e Professora
Marta Fuentes, que aceitou trilhar comigo este caminho com tanta delicadeza, grandeza e afeto e
que me ajudou a encontrar, dentro de mim, o objeto de pesquisa. Obrigada pelo apoio, pela
dedicação, por apostar no meu potencial, por respeitar meus limites e desejos, pelas impecáveis
correções e orientações e por comprovar que o orientador pode ser ético, próximo, afetivo e
mesmo assim, continuar sendo Doutor e Mestre.
Enfim, espero que este trabalho possa despertar sonhos e prazeres por aí, assim como me
proporcionou, pois nesse mundo “vou mostrando como sou e vou sendo como posso. Jogando meu
corpo no mundo, andando por todos os cantos e pela lei natural do encontros, eu deixo e recebo um
tanto e passo aos olhos nus ou vestidos de lunetas. Passado, presente, participo sendo o mistério do
planeta” (Luiz Galvão e Moraes Moreira).
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Resumo
Esta pesquisa objetivou identificar a representação que o trabalhador da Atenção Básica de Saúde (ABS) tem sobre o seu próprio trabalho, procurando compreender de que forma a sua produção ou a sua obra, promovem a qualidade da assistência prestada na ABS e a legitimação do SUS. Com base em algumas hipóteses, como a apatia e o imobilismo do trabalhador da ABS, além de um aparente descrédito na potência da sua produção no trabalho e, com isso, um isolamento e distanciamento da equipe e do usuário, foi proposto aprofundar essas discussões a partir do referencial e do discurso do profissional da saúde. Apesar dos avanços do SUS, principalmente com relação à universalidade, muitos autores têm apontado desafios e dilemas a serem enfrentados, dentre os quais, um importante desafio concentra-se na área de Gestão de Pessoas. Dessa forma, este trabalho justifica-se pela importância em buscar junto aos profissionais de saúde, ou seja, dos atores do sistema de saúde, as dificuldades e os resultados efetivos, colocando o profissional, sua unidade de saúde e o próprio sistema de saúde em análise. Para tanto, a metodologia utilizada foi a pesquisa qualitativa com a técnica de grupos de discussão, com o objetivo de favorecer a espontaneidade dos participantes. O campo de pesquisa foi a rede básica de saúde de Campinas/SP, devido ao destaque nacional do município com relação à organização da Atenção Primária. Os grupos de discussão aconteceram com duas equipes multiprofissionais, de dois Centros de Saúde, sendo cada um situado num Distrito de Saúde do município. Os resultados apontam que o sofrimento do trabalhador da ABS está relacionado ao contexto político, à falta de investimentos, inclusive de pessoal e ao aumento da demanda atendida. Dada a escolha em trabalhar nesse nível de atenção, as narrativas indicaram que a sustentação do trabalho está relacionada à possibilidade de aproximação com o usuário e a equipe. Conclui-se que o Apoio Institucional e o modelo de Co-gestão são ferramentas importantes para o suporte do profissional e a mudança do modelo de saúde, sendo apontados, inclusive, como uma das propostas dos grupos de trabalhadores participantes desta pesquisa. Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde, Sistema Único de Saúde, Profissional da Saúde.
xiii
Abstract
This research aimed to identify the representation that the employee's primary health care have about your own work, seeking to understand how their production or their work, promote the quality of care delivered in this level of attention and the legitimacy of the Unified Health System. Based on some hypotheses, such as apathy and inaction of the employee's primary health care, plus an apparent disbelief in the power of their production work and, thus, isolation and detachment of the team and the user was proposed to deepen these discussions from the referential and discourse of the health professional. Despite advances Unified Health System, particularly with respect to universality, many authors have pointed out challenges and dilemmas to be faced, among them, a major challenge is concentrated in the area of People Management. Thus, this work is justified by the importance in looking at health professionals, in other words, the actors of the health system, the difficulties and actual results, placing professional, your health care facility and health system itself under review. Therefore, the methodology used was qualitative research with the technical discussion groups, with the aim of favoring the spontaneity of the participants. The field research was the basic health network of Campinas / SP, due to national prominence in the municipality regarding the organization of primary care. The group discussions took place with two professional teams, two health centers, each located in a health district of the city. The results show that the suffering of the ABS work is related to the political context, the lack of investment, including personnel and increased demand met. Dada a escolha em trabalhar nesse nível de atenção, as narrativas indicaram que a sustentação do trabalho está relacionada à possibilidade de aproximação com o usuário e a equipe. We conclude that the Institutional Support and Co-management model are important tools to support the professional and the changing model of health, being appointed, even as one of the proposals of the groups participating in this research workers.
Keywords: Primary Health Care, Unified Health System, Health Personnel.
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Lista de Abreviaturas
ABS – Atenção Básica de Saúde
ACS – Agente Comunitário de Saúde
AMAQ – Autoavaliação para a melhoria do acesso e da qualidade da Atenção Básica
APS – Atenção Primária de Saúde
CIT – Comissão Intergestores Tripartite
CONASEMS – Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde
CONASS – Conselho Nacional de Secretários de Saúde
CNES – Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde
DEGERTS – Departamento da Gestão e da Regulação do Trabalho em Saúde
ESF – Estratégia Saúde da Família
Fnepas – Fórum Nacional de Educação das Profissões na Área da Saúde
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
MEC – Ministério da Educação
MS – Ministério da Saúde
NASF – Núcleo de Apoio à Saúde da Família
NOAS/ SUS – Norma Operacional da Assistência do Sistema Único de Saúde
NOB/SUS – Norma Operacional Básica do Sistema de Saúde
PAB – Piso da Atenção Básica
PACS – Programa de Agente Comunitário de Saúde
PCCS – Plano de Carreiras, Cargos e Salários
PDI – Plano Diretor de Investimentos
PDR – Plano Diretor de Regionalização
PMAQ – Programa Nacional de Melhoria do Acesso da Qualidade da Atenção Básica
PNAB – Política Nacional de Atenção Básica
PPA – Plano Plurianual
PPI – Programação Pactuada e Integrada
PROS – Programação e Orçamentação da Saúde
PSF – Programa Saúde da Família
RAS – Rede de Atenção à Saúde
xvii
RENAME – Relação Nacional de Medicamentos Essenciais
RENASES – Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde
RH – Recursos Humanos
SIA/SUS – Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde
SIAB – Sistema de Informação da Atenção Básica
SGTES – Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
TCG – Termo de Compromisso de Gestão
UBS – Unidade Básica de Saúde
VER/SUS – Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde
xviii
Lista de Ilustrações
Quadro 1 – Formação dos Grupos
Quadro II- Contextualização das narrativas por categorias de análise, do primeiro grupo de
discussão
Quadro III - Contextualização das narrativas por categorias de análise, do segundo grupo de
discussão
xix
SUMÁRIO
Resumo.......................................................................................................................... 13
Abstract..........................................................................................................................15
Introdução..................................................................................................................... 25
Refletindo sobre a experiência da pesquisadora na Atenção Básica de
Saúde de Campinas...................................................................................................... 29
Objetivos........................................................................................................................ 32
Pressupostos Metodológicos......................................................................................... 33
CAPÍTULO I – Atenção Básica de Saúde.................................................................. 41
1.1. A Construção da Política Nacional de Atenção Básica no Brasil....................... 44
1.2. A crise na Atenção Básica de Saúde no Brasil................................................... 72
CAPÍTULO II - A Atenção Básica em Saúde no município de Campinas/SP....... 102
CAPÍTULO III - Narrativas: o olhar do trabalhador da saúde.............................110
3.1. Partindo para a primeira experiência no campo.................................................111
3.2. Partindo do mesmo lugar: entre as coincidências e as singularidades...............124
CAPÍTULO IV – Analisando o discurso do Trabalhador...................................... 140
4.1. A Construção da análise.................................................................................... 140
4.2. A Triangulação de métodos...............................................................................140
4.2.1. Categoria: Dificuldades.....................................................................................141
4.2.2. Categoria: Sofrimento no Trabalho...................................................................146
4.2.3. Categoria: Papel da Atenção Básica..................................................................149
4.2.4. Categoria: Potencialidade/persistência da Equipe.............................................151
4.2.5. Categoria: Gestão da Atenção Básica................................................................153
4.2.6. Categoria: Propostas..........................................................................................158
4.2.7. Categoria: Avanços Percebidos.........................................................................161
4.2.8. Categoria: Expectativas da Equipe....................................................................163
xxi
CONCLUSÃO.............................................................................................................165
Referências.................................................................................................................. 173
Anexos
Anexo I - Parecer do Comitê de Ética.......................................................................... 179
Anexo II - Autorização da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas/SP.......... 181
Anexo III - Roteiro do Grupo de Discussão................................................................. 182
Anexo IV - Transcrição Grupo de Discussão I............................................................. 184
Anexo V - Transcrição Grupo de Discussão II............................................................. 206
Anexo VI – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.......................................... 232
xxiii
Introdução
O Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil é apontado por muitos autores como um grande
avanço da política pública de saúde e como a maior vitória da Reforma Sanitária Brasileira, visto
que possibilitou a garantia da universalidade, ou seja, a garantia de saúde a toda população, tendo o
Estado como seu provedor (MENDES, 2001; 2001 b).
Um estudo realizado por Starfield (2002) aponta que os países com uma orientação mais
forte para a Atenção Primária, possuem maior probabilidade de ter melhores níveis de saúde e
custos mais baixos. A autora justifica a importância da Atenção Básica de Saúde (ABS) no escopo
das redes de atenção à saúde, devido às possibilidades de resolubilidade, ao vínculo com a
comunidade e usuários, ao (re)conhecimento do território e da comunidade, e à qualidade da
atenção.
O Ministério da Saúde (MS) avalia que o SUS foi uma grande transformação de um modelo
excludente, centrado na doença e que privilegiava uma medicina de alto custo, para um sistema de
saúde pautado em valores de solidariedade e cidadania. O grande avanço diz respeito à ampliação
do acesso da população aos serviços de saúde, inscrevendo os princípios da universalidade,
equidade e integralidade das ações e, garantindo constitucionalmente a qualquer cidadão o
atendimento em saúde. No entanto, num país como o Brasil com tamanha extensão territorial e
inúmeras diversidades regionais, muitos desafios tiveram e ainda têm que ser enfrentados, para a
efetiva implantação do SUS (BRASIL, 2003).
Diversos autores avaliam que após vinte anos de SUS, muitos desafios e impasses
relacionados à sua implantação ainda persistem e apontam que essas dificuldades estão
relacionadas a diferentes fatores. Lopes (2001) analisa que, se por um lado, o SUS qualificou a
universalidade no acesso à saúde, por outro, não garantiu a melhoria da qualidade dos serviços na
mesma velocidade em que se deu a ampliação do acesso.
Para Campos (2007), o crescimento da Atenção Primária à Saúde (APS)1 está acontecendo
em velocidade e com qualidade abaixo da necessária, pois a maioria dos municípios persiste na
valorização e financiamento dos hospitais e serviços especializados, que, apesar disso, funcionam
com baixa eficácia e eficiência.
1 Neste trabalho, conforme a Política Nacional de Atenção Básica- PNAB 2011, os termos Atenção Básica de Saúde e Atenção Primária à Saúde são considerados equivalentes.
26
Além disso, Campos et al. (2008) destacam inúmeros problemas quanto à estrutura física
dos equipamentos, o acesso que permanece crítico, as fragilidades na gestão e organização de redes
de serviço, e na composição e desempenho das equipes. Referem ainda, problemas quanto à
política de pessoal (falta de formação adequada e qualificada, e vínculos precários de contratação),
financiamento insuficiente e uma heterogeneidade na implantação da rede de Atenção Básica de
Saúde-ABS, no sentido da diversidade da organização da rede e dos programas.
[...] pode-se observar que, apesar da mudança de cenário, a ABS tende, na prática, a reproduzir o modelo biomédico dominante, sendo necessários esforços continuados e sistemáticos para reformular esse tipo de prática e de saber (p.151).
Dentro deste debate, Carvalho; Cunha (2006) afirmam que a Atenção Básica no Brasil está
longe de oferecer uma ampla cobertura, com eficácia adequada. Desse modo, pode-se compreender
que vários fatores contribuem para uma degradação do Sistema Nacional de Saúde gerando um
desencantamento com essa política e um descrédito quanto à capacidade “de transformar em
realidade uma política tão generosa e racional” (CAMPOS, 2007, p. 302).
O Ministério da Saúde criou o Programa de Saúde da Família (PSF) em 1994, com o
objetivo de reorganizar a Atenção Básica e possibilitar acesso universal e contínuo aos serviços de
saúde, reafirmando os princípios do SUS.
Nesta perspectiva, em meados da década de 1990 alguns municípios reestruturaram sua
rede de saúde, priorizando a Atenção Básica e, principalmente, elegendo a composição de equipes
multiprofissionais, entendendo a necessidade da incorporação de profissionais para a mudança de
modelo e a organização dos processos de trabalho e de gestão. A gestão do município de São
Paulo, no período de 1989-1992, investiu na equipe multiprofissional nas Unidades Básicas de
Saúde para atendimento, prioritariamente, a uma população em situação de maior risco social
(OLIVER: BARROS; LOPES, 2005). O município de Campinas, no ano de 2000, implantou o
Programa Paidéia de Saúde da Família, que por sua vez, defendia a gestão como democrática e
participativa e valorizou o papel do profissional da saúde, buscando garantir a dupla finalidade do
modelo, ou seja, produzir bens e serviços de saúde necessários a população e produzir
trabalhadores com algum grau de satisfação no trabalho (CAMPOS, 2000).
Apesar dessas experiências, o SUS não se firmou enquanto política de Estado mas como
política de governo, de maneira que a ideologia predominante tem sido a de contenção de gastos
27
públicos, retração dos orçamentos sociais e programas focais de baixo custo, em detrimento à
lógica de bem estar social (SANTOS, 2008). Desta forma, compreendendo que o trabalho em
saúde possui uma especificidade referente à subjetividade e ao papel protagonista do trabalhador,
os profissionais, base do sistema de saúde, vivenciam situações inadequadas, precariedade e
descompromisso por parte da gestão. Nesse sentido, um grande desafio do SUS diz respeito aos
trabalhadores, visto que a precariedade das condições de trabalho dos profissionais de saúde têm
gerado um distanciamento destes em relação ao projeto SUS, que na maioria das vezes tem sido
banalizado (FLEURY, 2011).
Esta pesquisa pretendeu identificar os problemas e insatisfações enfrentados pelo
trabalhador no cotidiano de trabalho, procurando compreender de que maneira a atuação do
profissional contribui para uma qualificação da atenção prestada na ABS e para a legitimação do
SUS.
A importância deste trabalho justifica-se pela necessidade de colocar em pauta o papel dos
trabalhadores, identificando como o trabalhador avalia sua atuação profissional na Atenção Básica
de Saúde, delimitando as dificuldades encontradas na produção do seu trabalho, assim como as
expectativas e a realização pessoal e profissional.
Com base na realidade vivenciada na rede primária de saúde, esta pesquisa propõe conhecer
as perspectivas que o trabalhador SUS tem a respeito da sua produção no campo da prática e às
condições de trabalho que lhes são impostas. Assim como, aprofundar as problemáticas citadas por
diversos autores a respeito da gestão de pessoal, citadas como: deficiência de recursos humanos,
condições precárias de estrutura física, vínculo empregatício precarizado, falta de investimento e
desresponsabilização por parte da gestão pública. Objetivou-se compreender a atuação profissional
e pensar em possíveis estratégias para a qualificação destes profissionais, podendo contribuir com
a melhoria do sistema.
Diante disso, levantou-se a hipótese de que problemáticas, como as citadas anteriormente,
influenciam a prática do profissional da ABS, instalando uma situação de apatia e imobilismo por
parte desses trabalhadores.
Nesta pesquisa, assim como sugere Minayo (2004, p. 90) “nada pode ser intelectualmente
um problema, se não tiver sido, em primeira instância, um problema da vida prática”. Dessa forma,
a escolha do objeto está intrinsecamente relacionada à implicação da pesquisadora com o tema,
considerando uma preocupação com a prática exercida na ABS, com os trabalhadores que estão
28
constantemente envolvidos com situações geradoras de sofrimento e, acima de tudo, com a
qualidade e efetividade do Sistema Único de Saúde brasileiro.
É importante ressaltar que esta pesquisa está vinculada ao projeto “Estudo da Estratégia de
Apoio Paidéia: investigação sobre Apoio Institucional e Apoio Matricial (Núcleos de Apoio à
Saúde da Família – NASF) no SUS”, coordenado pelo Prof. Dr. Gastão Wagner de Sousa Campos
e desenvolvido pelo Coletivo de Estudos e Apoio Paidéia. Este projeto objetiva investigar o modo
como a concepção teórica e metodológica Paidéia vem sendo assimilada pelos trabalhadores e
gestores da rede de saúde.
Nesse sentido, a participação da pesquisadora neste Coletivo tem possibilitado implicações,
seja dela para o grupo, ou vice-versa. De fato, os relatos da prática profissional e o conhecimento
produzido por cada participante deste grupo provocam na pesquisadora uma desorganização
naquilo que parecia estruturado, uma vez que estava instituído. Desta forma, há um movimento de
reorganização dos questionamentos e da análise previamente elaborada. Além disso, estar no grupo
significa encontrar um lugar de confirmação das ideias e produções experimentadas pela
pesquisadora, bem como de apoio para a produção da atenção em saúde. Por outro lado, a escolha
do objeto desta pesquisa que estuda as equipes de referência com enfoque na gestão de pessoal,
também interfere na produção do grupo, seja por conta da temática, da experiência e da prática
profissional relatada, ou mesmo pela possibilidade de convocar o trabalhador da saúde a refletir e
referir sua realidade de trabalho.
Desse modo, a composição com este projeto se dá pela possibilidade de esmiuçar os
fenômenos e as informações dos trabalhadores da rede de saúde do município de Campinas que
atuam na Atenção Básica e que são afetados, de certo modo, pelo Apoio Institucional e Matricial.
Nesse sentido, analisar as narrativas do trabalhador sobre o sistema de saúde, contribui para a
compreensão de como estão sendo assimilados os conceitos do método Paidéia.
A organização do material coletado nesta pesquisa pretende favorecer a elaboração de
linhas de sentido que possam contribuir no enfrentamento dos desafios encontrados, propiciando o
fortalecimento dos profissionais.
Refletindo sobre a experiência da pesquisadora na Atenção Básica de Saúde de
Campinas
O objeto de estudo desta pesquisa está intrinsecamente relacionado à implicação da
pesquisadora com o tema. Após oito anos de trabalho no SUS Campinas, e todos eles na atenção
básica, algumas questões afligiam seu cotidiano de trabalho. Apesar de não ter feito a graduação
nesse município, toda a experiência prática somada à reflexão da teoria aprendida, aconteceram
nesse espaço. A crença nesse modelo de saúde, a defesa do SUS e da atenção primária, além do
compromisso com a qualidade do atendimento prestado, fizeram com que procurasse recursos para
refletir, diagnosticar e enfrentar os desafios, na tentativa de provocar mudanças no micro espaço do
trabalho em equipe e na sua própria atuação enquanto profissional do SUS.
A experiência se deu num Centro de Saúde localizado numa região periférica da cidade e
que atende a uma população de 32.617 habitantes (CAMPINAS, 2000-2007). Segundo estimativas,
é a maior população do Distrito em que se encontra e uma das maiores da cidade. Este território é
caracterizado, segundo dados sócio-demográficos e empíricos, por alta taxa de natalidade, áreas de
invasão, difícil acesso aos recursos básicos (inclusive saneamento básico de saúde), além de alto
índice de criminalidade e risco social, constituindo uma região enredada em baixas condições de
vida (CAMPINAS, 2001). Os recursos comunitários existentes na região ainda são escassos para
possibilitar um estado de bem estar a esta população.
No ano de 2006, a pesquisadora iniciou suas atividades nesta unidade, que contava com
cerca de oitenta profissionais, divididos em quatro equipes de referência. Cada uma dessas equipes
é formada por um médico generalista, um enfermeiro, quatro auxiliares/ técnicos de enfermagem,
um médico pediatra, um médico ginecologista-obstetra, um dentista, um auxiliar de consultório
dentário/ técnico em higiene bucal, quatro agentes comunitários de saúde, um matriciador de saúde
mental. Em muitos momentos, durante esses oito anos, as equipes não estiveram com seu quadro
completo de funcionários, devido à demora para reposição frente à demissões, aposentadorias ou
falecimentos. De acordo com os dados referentes à população da área de abrangência desta
unidade, cada equipe de referência responsabiliza-se, em média, por 8.200 pessoas.
Durante esses anos de experiência profissional, a primeira impressão que afligia a
pesquisadora era a percepção de uma apatia e imobilismo por parte dos colegas de trabalho. Ou
seja, uma passividade e pouca responsabilização que comprometiam, inclusive, o reconhecimento
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das necessidades de saúde da população e a qualidade do serviço prestado. Junto a isso, era visível
(saltava aos olhos) a insuficiência de recursos humanos, as condições precárias de estrutura física,
de material disponível (inclusive dos essenciais e básicos para a realização do trabalho, como
anestésico para Odontologia, gaze para curativos e até sabonete líquido para que os profissionais
pudessem higienizar as mãos) e a dificuldade de compreensão do papel do serviço e do
profissional de saúde, em especial na e da atenção básica.
No discurso do trabalhador, havia frequentes reclamações sobre a precarização dos vínculos
de trabalho, os baixos salários, a falta de plano de cargos e carreiras adequados e atrativos (falta de
uma carreira no SUS), pouco investimento e desresponsabilização por parte da gestão pública. Por
outro lado, grande parte da população atendida demonstrava vínculo com o serviço, mas
principalmente com algum profissional, ao mesmo tempo em que existiam reclamações quanto à
demora do atendimento e das consultas para a especialidade, além de queixas específicas quanto à
conduta de alguns profissionais da unidade.
Diante deste cenário, a pesquisadora procurou criar diversas tecnologias e ações
intersetoriais, estabelecendo parcerias e discutindo estratégias, com base no reconhecimento do
território. O trabalho desenvolvido foi focado na qualidade da atenção prestada, mas também na
tentativa de envolver os profissionais nos projetos e nas ações de saúde, procurando resgatar a
potencialidade do trabalho em equipe. Assim, desde o início, foram estabelecidos grupos em
parceria com a equipe, compartilhamento de casos e atendimentos, e procurou-se estabelecer
parcerias e projetos para além dos muros da unidade, buscando aproximação com os demais
serviços de saúde, bem como com as instituições de ensino, de cultura, de promoção social e
comunidade.
Esses projetos alimentavam o cotidiano de trabalho, possibilitando prazer e uma vontade de
ir adiante, mesmo frente às diversidades e desafios enfrentados. A construção de cada projeto
dependeu de muito esforço, luta e disposição, pois o fato de lidar com situações de vulnerabilidade,
num território com alto índice de adoecimento, demandou a criação de estratégias que pudessem
garantir a participação e a co-responsabilização da comunidade .No entanto, a partir da crise que se
instituiu no município de Campinas, em especial, na Secretaria Municipal de Saúde, nas duas
últimas gestões, os serviços de saúde passaram por situações extremas de precariedade e abandono.
Deste modo, os trabalhadores tiveram que se conformar com as “migalhas” distribuídas, quando
não, com a ausência de diretrizes, apoio e incentivos da gestão. E então, depararam-se com a
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vontade de ficar, estagnar e tentar sobreviver diante da desconstrução cotidiana dos projetos até
então elaborados.
Na tentativa de sustentar suas crenças e os projetos da unidade, a pesquisadora procurou
amparar-se em algum conhecimento científico que pudesse dar conta desse sofrimento. Esta
experiência tem sido marcada pela busca de autores que acreditam e defendem um sistema público
de saúde efetivo e de qualidade, com respostas que extrapolem especificamente a área da saúde,
entendendo que o trabalho intersetorial é capaz de produzir diversas potencialidades que permitem
experimentar novas práticas, inclusive em situações de desigualdades, sejam elas relativas ao
direito, à economia, à cidadania. De fato, a luta é em defesa da igualdade social e de um sistema
público de saúde que promova a solidariedade e a justiça social.
Objetivos
Objetivo Geral:
Identificar como o trabalhador SUS da ABS de Campinas compreende seu trabalho, a ABS
e o SUS.
Objetivos Específicos:
- Identificar as expectativas que o trabalhador SUS da ABS tem em relação ao trabalho
desenvolvido no serviço ao qual está vinculado.
- Identificar problemas e insatisfações do trabalhador SUS da ABS em seu cotidiano de
trabalho.
-Identificar como o trabalhador da ABS avalia sua produção no trabalho com relação aos
princípios da ABS
- Entender como o trabalhador considera o SUS e, em particular, a ABS.
- Identificar como o trabalhador avalia a gestão na ABS de Campinas.
Pressupostos Metodológicos
Neste estudo buscou-se compreender o objeto de pesquisa a partir da análise documental,
da composição do referencial teórico disponibilizado e, sobretudo, através do discurso do
profissional de saúde da ABS.
O interesse em desenvolver esta temática está implicado com a experiência da
pesquisadora, que durante oito anos de atuação profissional na rede básica de saúde do município
de Campinas/SP, sentia-se sensibilizada ao perceber o sofrimento da equipe neste nível de atenção.
Inicialmente, foi tomada por um encantamento com a proposta da Atenção Primária, dada a
possibilidade de sua resolutividade advinda, tanto em relação às respostas que os usuários dão aos
trabalhadores, quanto por parte da equipe profissional. Percebia que o trabalho produzido era
potente e transformador para usuário, equipe e comunidade. Por outro lado, o cotidiano de trabalho
também trazia frustrações, sofrimento (dos usuários e trabalhadores), falta de apoio, falta de
investimento (financeiro e político), falta de recursos humanos e materiais, sobrecarga de trabalho,
enfim, as condições precárias de trabalho que induziam os profissionais a praticarem ações
individualizadas e isoladas, culminando numa sensação de solidão, quando não, de abandono.
Numa mistura de sentimentos entre situações de encantamento e frustrações, buscou aporte
no aprofundamento científico, como forma de sobrevivência. Desde o início quando tomou essa
decisão, sua busca sempre esteve pautada na defesa e qualificação da Atenção Básica, bem como
na valorização do profissional. Nesse sentido, a sua preocupação girava em torno de colaborar com
a equipe para oferecer um serviço de qualidade, que fosse de encontro às expectativas e
necessidades da população, ao mesmo tempo em que os profissionais pudessem reconhecer neste
trabalho, satisfação e prazer.
Dessa forma, surgeiram alguns questionamentos para o desenvolvimento desta pesquisa:
qual é a percepção do profissional da ABS com relação ao seu trabalho? Quais as dificuldades e
desafios que o profissional da ABS enfrenta no cotidiano de trabalho? Quais expectativas o
profissional da ABS tem em relação ao trabalho desenvolvido pelo serviço no qual atua? Como o
profissional da ABS considera o Sistema Nacional de Saúde brasileiro e, mais especificamente, a
organização da ABS? O fato de lidar com casos complexos e, ao mesmo tempo, ter de encontrar
respostas ou encaminhamentos frente a inúmeras dificuldades e “faltas” enfrentadas na rotina de
trabalho, leva o trabalhador da ABS a estabelecer-se distante da equipe e do usuário,
34
desacreditando na potência de seu trabalho e entrando num estado de desânimo, como forma de
sobrevivência?
As questões teóricas que fundamentam a metodologia deste trabalho estão relacionadas à
pesquisa qualitativa, pois visam compreender a realidade humana vivida socialmente,
incorporando a isso a subjetividade, a intencionalidade e o significado do objeto pesquisado e
considerando a impossibilidade de neutralidade por parte do pesquisador.
De maneira diversa, a pesquisa qualitativa não procura enumerar e/ ou medir os eventos estudados, nem emprega instrumental estatístico na análise dos dados. Parte de questões ou focos de interesses amplos, que vão se definindo à medida que o estudo se desenvolve. Envolve a obtenção de dados descritivos sobre pessoas, lugares e processos interativos pelo contato direto do pesquisador com a situação estudada, procurando compreender os fenômenos segundo a perspectiva dos sujeitos, ou seja, dos participantes da situação em estudo (GODOY, 1995, p. 58).
A pesquisa documental desenvolveu-se da seguinte forma:
- levantamento da documentação e textos oficiais relacionados às políticas de saúde
implantadas no Brasil, a partir do SUS e com enfoque na Atenção Básica de Saúde;
- sistematização e análise da legislação que regulamenta a Atenção Básica;
- levantamento e análise do referencial teórico e das produções científicas relacionadas à
Atenção Básica de Saúde, especificamente direcionadas ao profissional da saúde;
- levantamento das produções científicas no contexto histórico da implantação da Atenção
Básica no município de Campinas, a partir da década de 1970.
Na pesquisa de campo utilizou-se a técnica de grupos de discussão, uma técnica de
investigação qualitativa que consiste em uma entrevista realizada a todo um grupo de pessoas com
o intuito de copilar informações relevantes sobre o problema de investigação. Caracteriza-se pela
não diretividade, a importância de se analisar tanto o que foi dito quanto o que não foi dito,
permitindo descobrir mecanismos sociais ocultos ou latentes e tem como elemento fundamental a
espontaneidade (MEINERZ, 2011; CASTRO et al., 2010).
Este tipo de grupo tem um papel relevante não só para os participantes, mas também para o
investigador, o qual tem como função a interpretação, a compreensão ou a transformação, a partir
das percepções, crenças e significados, proporcionados pelos protagonistas. Weller (2006) avalia
que o grupo de discussão é um método de pesquisa que privilegia as interações e uma maior
35
inserção do pesquisador no universo dos sujeitos, reduzindo, assim, os riscos de interpretações
equivocadas sobre o meio pesquisado.
O papel dos grupos de discussão é trazer elementos do processo de socialização através da
produção de discursos, mediados pelo investigador. No processo de análise, o investigador deverá
produzir um discurso global que integre os vários discursos analisados.
O objetivo principal do grupo é elaborar, na interação de seus componentes, um discurso social. Busca-se, através desse discurso, numa microssituação artificial, reproduzir elementos de uma macrorrealidade social real. Os indivíduos falam para construir o grupo, fazendo com que o mesmo não seja uma finalidade, mas uma via para compreender algo (MEINERZ, 2011, p. 494).
Castro et al. (2010) apontam que uma das vantagens na utilização dos grupos de discussão é
o fato de se produzir dados que dificilmente poderiam ser obtidos por outros meios, visto que os
participantes são colocados em situações reais e naturais que permitem a espontaneidade e, graças
ao clima permissivo, emergem opiniões, sentimentos, desejos, os quais em situações rigidamente
estruturadas não seriam manifestados. As discussões grupais possuem uma alta validade subjetiva
e o formato não estruturado das discussões permite ao moderador explorar assuntos não ditos.
Além disso, a produção de resultado é ágil, pois vai enriquecendo-se e reorientando-se conforme
avança o processo de investigação.
Objeto
Esta pesquisa tem como objeto de estudo o trabalho do profissional da ABS que será
analisado a partir da percepção e do discurso das equipes profissionais que atuam neste nível de
atenção.
Campo
O campo de atuação desta pesquisa é a rede de ABS da cidade de Campinas/SP, devido à
organização da atenção primária no município. Campinas foi pioneira na abertura dos primeiros
Centros de Saúde, no final da década de 70, na ampliação da cobertura, na participação da
população na formulação das políticas e na inovação de arranjos democráticos de gestão.
Organizou a rede básica de saúde no Modelo Paidéia no ano de 2000, com a incorporação do
Agente Comunitário de Saúde(ACS) à equipe de saúde, com a proposta do matriciamento, da
36
equipe ampliada (incluindo equipe de saúde mental) e acolhimento. Este panorama confere ao
município um dos melhores quadros técnicos do Brasil, garantindo um destaque no território
nacional e conferindo certo avanço com relação a alguns municípios e programas propostos
(TRAPPÉ, 2012).
Uma consideração importante é com relação à organização da rede de saúde do município
de Campinas/SP, que apresenta uma rede descentralizada, de forma que a responsabilidade pela
administração dos serviços de saúde fica a cargo dos Distritos de Saúde, que são cinco: Norte, Sul,
Sudoeste, Noroeste e Leste.
O trabalho de campo teve início após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética da
Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e pela Secretaria Municipal de Saúde do município de
Campinas2
Sujeitos e técnica de coleta da pesquisa de campo
Os sujeitos desta pesquisa são profissionais que atuam em Centros de Saúde do município,
com formação de nível médio, técnico e superior, e que realizam assistência direta ao usuário. Os
critérios previamente estabelecidos para participação na pesquisa foram os seguintes: estes
profissionais deveriam fazer parte da mesma equipe de referência; estar trabalhando em conjunto
há pelo menos um ano; reunir-se em equipe de referência pelo menos quinzenalmente; a equipe
deveria contar, minimamente, com os profissionais Médico (Generalista ou Clínico Geral),
Enfermeiro, Auxiliar ou Técnico de Enfermagem, Dentista, Auxiliar ou Técnico de Consultório
Dentário e Agente Comunitário de Saúde. Além disso, foram consideradas as equipes nas quais
todos os profissionais expressassem interesse e desejo em participar do estudo.
Tendo em vista a descentralização administrativa da rede de saúde no município, no projeto
de pesquisa optamos por realizar um grupo de discussão com uma equipe de referência de um
Centro de Saúde de cada Distrito de Saúde, totalizando cinco grupos de discussão. No entanto,
com a entrada em campo surgiram algumas dificuldades que trouxeram alterações às propostas
iniciais. A primeira delas refere-se a dois dos critérios de inclusão para participação na pesquisa: a
equipe estar trabalhando junta há pelo menos um ano e a composição mínima da equipe de
profissionais. Com relação à primeira questão, as equipes contavam com profissionais recém-
2 Anexos 1 e 2.
37
admitidos, pois o município tinha realizado concurso público para médicos e enfermeiros no ano
de 2010, com muitos profissionais sendo contratados até 2012. Por este motivo, alterou-se o
critério de inclusão, considerando os profissionais da equipe que estivessem trabalhando juntos há,
pelo menos, seis meses. Com relação à composição da equipe, uma dificuldade encontrada foi
relacionada ao pessoal médico e da odontologia, pois, apesar da existência desses profissionais na
unidade de saúde, nem sempre eles participavam das reuniões de equipe e/ou não faziam parte de
uma equipe de referência. A alteração no critério de inclusão veio no sentido de buscar equipes que
contassem com pelo menos um médico fazendo parte da equipe de referência, mas que não
necessariamente tivesse equipe de odontologia.
A segunda dificuldade refere-se à disponibilidade dos profissionais em participarem dos
grupos de discussão. Nas tentativas de aproximação com os gestores para levantar o interesse em
participar da pesquisa, obteve-se poucas respostas e devolutivas, tanto com relação à possibilidade
deles conversarem com suas equipes, quanto em atenderem e retornarem as ligações para uma
conversa prévia sobre a pesquisa. Por isso, optou-se por escolher unidades em que houvesse
algum contato ou alguma indicação para falar com o coordenador do serviço. No caso, a procura
foi por profissionais que apresentassem mais abertura e interesse no trabalho acadêmico. Essa
indicação foi dada por trabalhadores da rede de saúde de Campinas e por integrantes do Coletivo
de Estudos e Apoio Paideia (do qual a pesquisadora faz parte).
Concomitante a isso, o Coletivo de Estudos estava realizando em cada um dos cinco
Distritos de Saúde de Campinas, apresentações do projeto de pesquisa intitulado “Estudo da
Estratégia de Apoio Paidéia: investigação sobre Apoio Institucional e Apoio Matricial (Núcleos de
Apoio à Saúde da Família – NASF) no SUS”. Nessas reuniões, com Coordenadores Distritais,
Apoiadores e Coordenadores de serviços, o objetivo era apresentar este projeto, iniciar uma
comunicação com os Gerentes, divulgando que alguns pesquisadores começariam a procurá-los
para desenvolverem suas pesquisas. Isso facilitou a entrada em campo.
Com a indicação, inicialmente a pesquisadora fez contato telefônico com os coordenadores
de serviço, para explicar a proposta desta pesquisa e perguntar sobre o interesse em contribuir com
a mesma. Havendo interesse do Gerente, apresentavam-se os critérios de inclusão, e era avaliado
se esta unidade em questão contava com equipes que contemplassem esses critérios e, por fim,
solicitava-se ao Gerente apresentar a proposta para a equipe e questionar sobre o interesse e desejo
dos profissionais do serviço em participar da pesquisa.
38
Nesta etapa do processo de pesquisa, pretendeu-se facilitar que as experiências
profissionais fossem explicitadas, assim como as opiniões e ideias sobre a gestão do trabalho
coletivo, na tentativa de acolher todas as vozes emergentes em cada grupo. Dessa forma, pensando
em favorecer a participação da equipe e proporcionar certa comodidade, a realização dos grupos de
discussão aconteceu na própria unidade de saúde na qual a equipe estava vinculada e no mesmo
horário da reunião de equipe de referência, para que os trabalhadores não precisassem deslocar-se
e pudessem participar do grupo durante seu período de trabalho, tentando não causar prejuízo na
sua rotina.
De acordo com a literatura, os encontros devem ter a duração de 1h30 a 2h00 e as
considerações sobre o número de participantes nos grupos de discussão não convergem para um
número exato, mas os autores consideram que o grupo deve ser suficientemente pequeno para que
todos os participantes possam opinar e suficientemente grande para que haja diversidade de
opiniões. Nesse sentido, considerando o critério de participação estabelecido nesta pesquisa quanto
ao número mínimo de profissionais que façam parte da equipe, visualizamos contar com seis
participantes (nas equipes mínimas) chegando a um número de quinze nas equipes ampliadas que
contém outras especialidades (Pediatra, Ginecologista, Psicólogo, Terapeuta Ocupacional) e com
um número variável de Agentes Comunitários de Saúde e Auxiliares ou Técnicos de Enfermagem.
O mediador do grupo de discussão foi um integrante do Coletivo de Estudos e Apoio
Paidéia e a pesquisadora ficou no papel de observadora para anotar questões relevantes, posturas
dos participantes ou outros acontecimentos e percepções captadas durante o processo de grupo.
Todos os grupos foram gravados e transcritos na íntegra, preservando-se a identidade dos autores
nas falas, com a autorização dos mesmos.
Os sujeitos receberam um termo de consentimento livre e esclarecido, constando os
objetivos da pesquisa e os procedimentos realizados, a confidencialidade das informações, a
privacidade dos sujeitos na divulgação dos resultados da pesquisa, além de apontar a liberdade
com relação ao desejo de abandonar a pesquisa a qualquer tempo.
O período da coleta de dados ocorreu durante o mês de maio/2013 a junho/2013, com a
realização de dois grupos de discussão. A quantidade de grupos também foi alterada durante o
trabalho de campo. Inicialmente foi pensada a realização de cinco grupos de discussão, mas após o
segundo grupo realizado optou-se por referendar o trabalho à banca de qualificação para avaliar a
saturação dos dados coletados, decidindo pela escolha de dois grupo.
39
O primeiro grupo de discussão aconteceu no mês de maio/2013 e o segundo, no mês de
junho/2013, com a participação total de dezesseis profissionais da rede básica de saúde. Ambos os
grupos tiveram um único encontro, com uma média de uma hora e meia de duração.
Análise e interpretação do material empírico
A metodologia para análise de dados foi embasada por meio da construção de narrativas, tal
como proposta por Ricoeur (apud Figueiredo, 2006) e da triangulação de métodos, proposta por
Minayo; Assis; Souza (2005).
Para Ricoeur, as narrativas são construções de histórias sobre o agir humano, ou seja, a
construção do enredo que dá sentido e coerência aos acontecimentos. Nos grupos de discussão a
análise está presente em todo o processo de investigação, desde a seleção dos componentes até a
forma como se desenrola a discussão. O produto a ser obtido será um discurso refletido por tudo o
que foi notado pelo moderador e observador. A partir daí, passa-se a realizar a análise levando a
uma verdadeira interpretação do discurso. Esta análise deverá estar centrada naquilo que chama a
atenção do pesquisador dada a sua relevância para o tema do estudo. Por último, os resultados da
análise serão apresentados em um informe narrativo, ou seja, a informação elaborada e organizada
conceitualmente.
Neste trabalho, após a coleta de todos os dados obtidos nos dois grupos, os discursos dos
participantes foram analisados, levando-se em consideração todas as anotações observadas em
campo para a construção das narrativas. Dessa forma, assim como sugere Ricoeur, a pesquisadora
apresenta as narrativas conforme sua própria interpretação dos discursos.
A escolha pela triangulação de métodos justifica-se pela complexidade dos dados obtidos
frente aos estudos sobre a política da AB, os debates de referenciais teóricos que analisam o SUS e
em especial a AB, a atribuição de sentido da experiência vivenciada pela pesquisadora, o contexto
político do município de Campinas e as narrativas dos grupos sociais que formam a pesquisa.
Este método é uma estratégia de diálogo entre distintas áreas do conhecimento, com a
proposição de quantificar dimensões objetivas articuladas com as dimensões subjetivas de
interpretação da realidade e de superar a falsa dicotomia entre sujeito e objeto da pesquisa. Este
método, baseado na obra “Crítica da Razão Pura”, de Kant, pressupõe que o pesquisador parte de
um conhecimento prévio sobre a realidade e, ao experimentá-la viabiliza o entrelaçamento entre
40
teoria e prática, atribuindo sentido a partir do contato efetivo com essa realidade (MINAYO;
ASSIS; SOUZA, 2005).
Nesta teoria há uma composição entre as dimensões qualitativas e quantitativas do objeto,
na perspectiva da interdisciplinaridade, enquanto estratégia para abordagem de objetos complexos.
Ou seja, possibilita agregar diversos pontos de vista dos grupos sociais que formam a pesquisa,
garantindo a representatividade, a diversidade de posições narradas, a visão de mundo e da
realidade dos sujeitos, bem como, a multiplicidade de formulações teóricas utilizadas pelo
pesquisador.
Para a exposição dos resultados da pesquisa, organizou-se o texto em quatro capítulos. O
Capítulo I apresenta uma discussão sobre a Atenção Básica de Saúde, conceituando este nível de
atenção, com base nos estudos já realizados por alguns pesquisadores e na legislação que
regulamenta o SUS. A seguir, um levantamento da produção científica a respeito da análise sobre
as dificuldades para a efetivação da Atenção Primária à Saúde.
O segundo Capítulo aborda a história da rede básica de saúde no município de
Campinas/SP, a partir da década de 1970.
A partir dessa contextualização, no Capítulo III apresentam-se as narrativas elaboradas
através dos dois grupos de discussão que fizeram parte da pesquisa de campo. No entanto,
considerou-se o discurso das equipes com base nos recursos apontados conceitualmente neste
trabalho.
O Capítulo IV apresenta o modelo de Triangulação como método para a construção da
análise, partindo das narrativas dos grupos de trabalhadores participantes desta pesquisa numa
inter-relação com debates de referenciais teóricos que analisam o SUS e em especial a Atenção
Básica, os estudos sobre a política da Atenção Básica, a experiência da pesquisadora e o contexto
político do município de Campinas.
CAPÍTULO I – Atenção Básica de Saúde
No Brasil, as ações e serviços de saúde estão organizados de maneira hierarquizada e
regionalizada, constituindo uma rede de serviços que se destinam à atenção e assistência em saúde,
visando tanto garantir o atendimento integral à população, quanto evitar a fragmentação das ações
em saúde. Essa rede de serviços é dividida, conforme a complexidade, em três níveis de atenção
(primário, secundário e terciário). O acesso à população ocorre preferencialmente pela rede básica
de saúde (atenção primária) que, assim, é considerada a porta de entrada do sistema de saúde. Os
casos de maior complexidade devem ser encaminhados aos serviços especializados, que podem ser
organizados de forma municipal ou regional, dependendo do porte e da demanda do município.
A atenção ambulatorial de primeiro nível, Atenção Básica de Saúde, é constituída por
Centros de Saúde, Postos de Saúde, Unidades de Saúde da Família ou Unidade Básica de Saúde.
Os serviços deste nível de atenção devem estar qualificados para atender e resolver os problemas
de saúde mais comuns e prioritários de uma população, ordenando e racionalizando o acesso aos
serviços ambulatoriais especializados e hospitalares (GIOVANELLA; MENDONÇA; 2008). A
Média Complexidade (nível secundário) vem sendo caracterizada pelos serviços médicos
ambulatoriais e de apoio diagnóstico e terapêutico de atenção especializada, com procedimentos
especializados de menor valor financeiro (de acordo com as tabelas do SUS). Já a Alta
Complexidade, envolve procedimentos de alta tecnologia e/ou alto custo, como os serviços de
diagnose, terapia e atenção hospitalar (SOLLA; CHIORO; 2008).
Levando em consideração o objeto de estudo desta pesquisa, ou seja, o trabalho do
profissional da Atenção Básica de Saúde, este capítulo destina-se a localizar a atenção primária no
escopo da rede de saúde, apresentando a formulação teórica da Atenção Básica de Saúde no Brasil,
de acordo com o Ministério da Saúde. Para tanto, realizamos um estudo dos principais documentos
e portarias ministeriais que se referem à Atenção Básica, a partir da década de 1980 até o período
atual.
A Atenção Básica de Saúde está definida como o contato preferencial dos usuários com o
sistema de saúde e caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e
coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico,
o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. Seus princípios norteadores são os seguintes:
42
universalidade; acessibilidade e coordenação do cuidado; vínculo com a clientela e continuidade
do cuidado; integralidade; responsabilização; humanização; equidade; e participação social.
Ao contrário da antiga proposição de caráter exclusivamente centrado na doença, suas
ações desenvolvem-se:
(...) por meio do exercício de práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios bem delimitados, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações. Utiliza tecnologias de elevada complexidade e baixa densidade, que devem resolver os problemas de saúde de maior frequência e relevância em seu território. A Atenção Básica considera o sujeito em sua singularidade, na complexidade, na integralidade e na inserção sócio-cultural e busca a promoção de sua saúde, a prevenção e tratamento de doenças e a redução de danos ou de sofrimentos que possam comprometer suas possibilidades de viver de modo saudável (BRASIL, 2006, p. 10).
A estratégia da Atenção Básica busca definir territorialmente os determinantes e
condicionantes de saúde das coletividades, tentando evitar as situações de risco e vulnerabilidade,
com base na proteção da saúde, prevenção de agravos, redução de danos, resiliência, com objetivo
de desenvolver uma atenção integral que impacte na autonomia das pessoas e na situação de saúde,
principalmente nas demandas e necessidades de saúde de maior freqüência e relevância em seu
território. As tecnologias de cuidado utilizadas são complexas e variadas e apresentam o
imperativo ético de que toda demanda, necessidade de saúde ou sofrimento devem ser acolhidos
(BRASIL, 2011).
Desta forma, é o local responsável pela organização do cuidado à saúde dos indivíduos,
famílias e comunidade e seu papel é, de um lado procurar melhorar a saúde da população e, de
outro, proporcionar equidade na distribuição de recursos (STARFIELD, 2002). As políticas atuais
definem que a Saúde da Família é a estratégia prioritária para a organização da Atenção Básica, reforçando
uma mudança de modelo que se integra a todo o contexto de reorganização do sistema de saúde.
A Atenção Básica está totalmente inscrita na comunidade e a equipe de saúde tem um
importante papel de estar vinculada e ser reconhecida como referência do cuidado em saúde para
aquela região. A atuação das equipes ocorre nas unidades básicas de saúde, mas também nas
residências e na mobilização da comunidade, devendo responsabilizar-se pela atenção à saúde,
mas, também, promover a co-responsabilização do cuidado em saúde, através da participação
43
social, de forma a garantir a continuidade das ações de saúde e a longitudinalidade do cuidado.
Além disso, a equipe deve assumir o papel de coordenar a rede, tanto entre serviços de saúde,
quanto na aproximação com os outros equipamentos sociais, exercendo a intersetorialidade.
O estabelecimento de mecanismos que assegurem acessibilidade e acolhimento pressupõe uma lógica de organização e funcionamento do serviço de saúde, que parte do princípio de que a unidade de saúde deva receber e ouvir todas as pessoas que procuram os seus serviços, de modo universal e sem diferenciações excludentes. O serviço de saúde deve se organizar para assumir sua função central de acolher, escutar e oferecer uma resposta positiva, capaz de resolver a grande maioria dos problemas de saúde da população e/ou de minorar danos e sofrimentos desta, ou ainda se responsabilizar pela resposta, ainda que esta seja ofertada em outros pontos de atenção da rede. A proximidade e a capacidade de acolhimento, vinculação, responsabilização e resolutividade são fundamentais para a efetivação da atenção básica como contato e porta de entrada preferencial da rede de atenção (BRASIL, 2011).
Sendo assim, este nível primário de atenção caracteriza-se por: ser porta de entrada de um
sistema hierarquizado e regionalizado de saúde, com acesso universal e contínuo a serviços de
saúde de qualidade e resolutivos; ter território definido, com uma população delimitada, sob a sua
responsabilidade; intervir sobre os fatores de risco aos quais a comunidade está exposta; prestar
assistência integral3, permanente e de qualidade; realizar atividades de educação e promoção da
saúde; estabelecer vínculos de compromisso e de co-responsabilidade com a população; estimular
a organização das comunidades para exercer o controle social das ações e serviços de saúde;
utilizar sistemas de informação para o monitoramento e a tomada de decisões; realizar avaliação e
acompanhamento sistemático dos resultados alcançados, como parte do processo de planejamento
e programação; atuar de forma intersetorial, por meio de parcerias estabelecidas com diferentes
segmentos sociais e institucionais, de forma a intervir em situações que transcendem a
especificidade do setor saúde e que têm efeitos determinantes sobre as condições de vida e saúde
dos indivíduos-famílias-comunidade (BRASIL, 2006; 2011).
3 A PNAB 2011 define a integralidade como sendo a integração de ações programáticas e demanda espontânea; articulação das ações de promoção à saúde, prevenção de agravos, vigilância à saúde, tratamento e reabilitação e manejo das diversas tecnologias de cuidado e de gestão necessárias a estes fins e à ampliação da autonomia dos usuários e coletividades; trabalhando de forma multiprofissional, interdisciplinar e em equipe; realizando a gestão do cuidado integral do usuário e coordenando-o no conjunto da rede de serviços.
44
Um fator importante para esta pesquisa é que a Política Nacional de Atenção Básica
(PNAB 2011) cita a necessidade da valorização dos profissionais de saúde por meio do estímulo e
do acompanhamento constante de sua formação e capacitação e justifica a importância da equipe
na mudança do modelo de saúde. Assim, define que:
A presença de diferentes formações profissionais assim como um alto grau de articulação entre os profissionais é essencial, de forma que não só as ações sejam compartilhadas, mas também tenha lugar um processo interdisciplinar no qual progressivamente os núcleos de competência profissionais específicos vão enriquecendo o campo comum de competências ampliando assim a capacidade de cuidado de toda a equipe. Essa organização pressupõe o deslocamento do processo de trabalho centrado em procedimentos, profissionais para um processo centrado no usuário, onde o cuidado do usuário é o imperativo ético-político que organiza a intervenção técnico-científica (BRASIL, 2011).
Dessa forma, este trabalho pretende analisar como as equipes dos profissionais desses
serviços entendem e vivenciam essa política de saúde.
1.1. A Construção da Política Nacional de Atenção Básica no Brasil
A Constituição de 1988 estabelece a saúde como um direito universal, de modo que é dever
do Estado, garantir acesso universal e igualitário aos serviços de saúde. O artigo nº. 199 desta Lei
estabelece que o SUS deve ser um sistema universal, integrado, público e com direção única em
cada esfera de governo. As ações e serviços de saúde executadas pelo SUS deverão ser organizadas
de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade crescente (BRASIL, 1988).
Desse modo, a direção do SUS é exercida em âmbito nacional pelo Ministério da Saúde, e em
âmbito estadual e municipal pelas respectivas Secretarias de Saúde ou órgão equivalente.
Considerando as funções de cada nível de governo, a responsabilidade pela formulação e condução
da Política Nacional de Saúde cabe ao governo federal, os estados ficam responsáveis pela
administração do conjunto de funções de gestão, coordenação, controle, elaboração e prestação de
alguns serviços de saúde, aos municípios cabe o planejamento, a gestão e coordenação do plano
municipal de saúde e a execução dos serviços.
As Leis nº 8.080, publicada em 19 de setembro de 1990, e nº 8.142, de 28 de dezembro de
1990, denominadas Leis Orgânicas da Saúde, regulamentam e materializam o SUS, com o intuito
45
de garantir atendimento público à saúde para qualquer cidadão e reduzir a desigualdade na
assistência à saúde.
A Lei n.º 8.080 “dispõe sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da
Saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes [...]” (Brasil, 1990, s/p), o
que significa, regular as ações e serviços de saúde em todo o território nacional, reafirmando a
saúde enquanto um direito fundamental de todo cidadão. Assim, compete ao Estado prover as
condições indispensáveis ao seu pleno exercício, através da formulação e execução de políticas
econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos, estabelecendo
condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua
promoção, proteção e recuperação.
Já a Lei n.º 8.142 “dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as
transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde [...]”, tratando mais
especificamente do financiamento do SUS e da participação popular nas políticas públicas de
saúde (BRASIL, 1990, s/p).
Desde a década de 1980, período da reforma do sistema de saúde brasileiro, o governo
federal baseou-se na regionalização e hierarquização dos serviços de saúde e na descentralização
para os municípios, transferindo aos governos locais a gestão dos serviços de saúde. A
municipalização prevê que o município seja o responsável pela gestão de todo o sistema de saúde
de seu território, tornando-se o responsável imediato, apesar de não ser o único, pelas necessidades
de saúde de sua população (BRASIL, 1996; CAMPOS L., 2009).
Como a municipalização estava normatizada na Constituição Federal e na Lei nº 8.080 e
algumas ações já vinham sendo tomadas no sentido de descentralização, foram criadas as Normas
Operacionais Básicas e as Normas de Assistência à Saúde, na perspectiva de aperfeiçoar as ações
do SUS, contribuindo para a implantação e operacionalização da saúde. As Normas Operacionais
Básicas (NOB-SUS 01/91, NOB-SUS 01/93 e NOB-SUS 01/96) editadas em 1991, 1993 e 1996,
tratam do funcionamento e operacionalização do SUS.
A NOB 01/91 estabeleceu a política de financiamento do SUS, definindo o repasse direto e
automático de recursos do fundo nacional para os fundos estaduais e municipais de saúde
(BRASIL, 1991). Com isso, redefiniu toda a lógica de financiamento e, consequentemente, de
organização do SUS, com vistas à municipalização. Aprovou os consórcios administrativos
intermunicipais e definiu o Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA-SUS) para pagamento aos
46
prestadores de serviços (entidades filantrópicas, hospitais universitários, entidades contratadas e
conveniadas e outros).
Em contrapartida, estabeleceu que, para a transferência de recursos, os municípios
deveriam contar com alguns requisitos básicos: criação de Conselhos Municipais de Saúde com
composição paritária, compostos por representantes do governo municipal, prestadores de serviço,
profissionais de saúde e usuários; criação do Fundo Municipal de Saúde (gerido pelo órgão de
saúde da esfera correspondente e fiscalizado pelo Conselho de Saúde); apresentação do Plano
Municipal de Saúde aprovado pelos respectivos Conselhos e referendado pela autoridade do Poder
Executivo; Programação e Orçamentação da Saúde-PROS (devendo compatibilizar as
necessidades da política de saúde com a disponibilidade de recursos e demonstrar as diretrizes,
objetivos e metas a serem atingidas, o diagnóstico das necessidades da população, bem como as
estratégias que levem à obtenção dos objetivos propostos); apresentação de Relatório de Gestão
Local (de desempenho assistencial, gerencial e financeiro); contrapartida de recursos para a saúde
de no mínimo 10% de seu orçamento municipal; e constituição de Comissão de Elaboração do
Plano de Carreiras, Cargos e Salários (PCCS), com o prazo de dois anos para a sua implantação.
Por sua vez, a NOB 01/93 trouxe um aprofundamento sobre a municipalização,
estabelecendo mecanismos de financiamento, controle e avaliação, definindo as bases da
descentralização e incentivando a autonomia dos municípios. Desta forma, regulamentou o
processo de descentralização da gestão dos serviços e ações no âmbito do SUS. Criou categorias e
critérios diferenciados, que segundo o tipo de gestão implantado (incipiente, parcial, semiplena),
contaria, também, com critérios diferenciados de formas de repasse dos recursos financeiros
(BRASIL, 1993).
Frente à necessidade emergencial de uma nova estratégia estruturante que contemplasse a
incorporação de recursos humanos e tecnologias contextualizadas nas novas práticas, o Ministério
da Saúde criou, no ano de 1994, o Programa Saúde da Família (PSF). Com base nos princípios da
Reforma Sanitária, o ideário do PSF, tinha como foco a reorganização da Atenção Básica,
garantindo a oferta de serviços à população brasileira e o fortalecimento dos princípios da
universalidade, integralidade e equidade do SUS.
Este Programa foi apresentado como a estratégia capaz de provocar mudanças no modelo
assistencial:
47
Ao PSF foi, então, atribuída a função de desenvolver ações básicas, no primeiro nível de atenção à saúde propondo-se a uma tarefa maior do que a simples extensão de cobertura e ampliação do acesso. O programa deveria promover a reorganização da prática assistencial com novos critérios de abordagem, provocando reflexos em todos os níveis do sistema. Daí seu potencial estruturante sobre o modelo, o que justificou a decisão do Ministério da Saúde, nos anos seguintes, de considerá-lo como a principal estratégia de qualificação da atenção básica e reformulação do modelo assistencial (BRASIL, 2003, p. 114).
No início da implantação do PSF, o cenário era desfavorável ao seu fortalecimento, visto
que não havia definições quanto ao seu financiamento e nem quanto à política de recursos
humanos que, segundo o Ministério da Saúde, eram pilares fundamentais para o seu
desenvolvimento. Além disso, existia a própria resistência à implantação de uma proposta que
confrontava as formas tradicionais de organização dos serviços.
A origem do Programa de Saúde da Família baseou-se no modelo de implantação do
Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), criado no ano de 1991, como medida de
enfrentamento dos graves índices de morbimortalidade materna e infantil na Região Nordeste do
país (BRASIL, 1997).
Assim, podemos concluir que o PACS pode ser considerado antecessor do PSF por alguns
de seus elementos que tiveram um papel central na construção do novo Programa, como o enfoque
na família e não no indivíduo e o agir preventivo sobre a demanda (BRASIL, 2003). Apesar da
existência do programa, a profissão de Agente Comunitário de Saúde foi criada, apenas no ano de
2002, a partir da Lei № 10.505 (BRASIL, 2002).
As definições de responsabilidade territorial e de adscrição de famílias, foram introduzidas
no PACS e ampliadas no PSF, visando a potencialidade para resgatar os vínculos de compromisso
e de co-responsabilidade entre os serviços de saúde, os profissionais e a população. Desse modo, as
unidades do Saúde da Família passariam a atuar com equipes multiprofissionais, compostas,
minimamente, por um médico, uma enfermeira, um ou dois auxiliares de enfermagem e de quatro a
seis agentes comunitários, assumindo a responsabilidade sobre um território onde vivem, em
média, mil famílias.
Além disso, deveria estimular a organização dos sistemas locais, a partir da aproximação
dos serviços com sua própria realidade e envolver os atores sociais destas mesmas realidades.
Dessa forma, pretendia-se que o controle social e a participação popular fossem fortalecidos na
medida em que o programa se ampliasse.
48
O conceito de saúde, que permeia todo o desenvolvimento do PSF, influiu de forma
decisiva na mudança da organização do processo de trabalho, pois, de certo modo, exigia uma
prática não reducionista sobre a saúde, evitando ter como eixo apenas a intervenção médica, de
maneira que a equipe do Saúde da Família deveria assumir o desafio da atenção continuada,
resolutiva e pautada pelos princípios da promoção da saúde. A melhoria dos indicadores de saúde e
de qualidade de vida da população dependeria das ações intersetoriais e da integração de fato com
a comunidade, seja no sentido do próprio controle social ou mesmo com relação à co-
responsabilidade do sujeito/comunidade na assistência em saúde (BRASIL, 2003).
A base estrutural destes Programas era dada pela produção de serviços limitados por um
teto financeiro, que inviabilizava, na maioria das vezes, dar conta das necessidades reais da
demanda do serviço. Na tentativa de solucionar este problema e garantir a atenção básica em todo
município, a Norma Operacional Básica 01/96 estabeleceu uma nova forma de financiamento,
através do Piso de Atenção Básica-PAB (BRASIL, 1996).
Dessa forma, o Ministério da Saúde avalia que a NOB 01/96:
fortaleceu significativamente a atenção básica ao definir dois pontos fundamentais: as responsabilidades dos gestores municipais nesse nível de complexidade do sistema e o PSF como estratégia prioritária para mudança do modelo assistencial (BRASIL, 2003, p. 115).
Foi nesse cenário que o PSF passou a ter orçamento próprio e foi incluído no Plano
Plurianual (PPA) do Governo Federal, em 1998.
Além dos princípios gerais da Atenção Básica, a ESF contempla: atuar no território,
realizando cadastramento domiciliar, diagnóstico situacional, ações dirigidas aos problemas de
saúde de maneira pactuada com a comunidade onde atua, buscando o cuidado dos indivíduos e das
famílias ao longo do tempo, mantendo sempre postura pró-ativa frente aos problemas de saúde-
doença da população; desenvolver atividades de acordo com o planejamento e a programação
realizados com base no diagnóstico situacional e tendo como foco a família e a comunidade;
buscar a integração com instituições e organizações sociais, em especial em sua área de
abrangência, para o desenvolvimento de parcerias; e ser um espaço de construção de cidadania
(BRASIL, 2006, p. 20).
A Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde NOB-SUS 01/96, estabeleceu as
responsabilidades e as prerrogativas de cada esfera de governo, os mecanismos e fluxos de
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financiamento, a prática do acompanhamento, controle e avaliação no SUS, bem como instituiu
diferentes condições de gestão da saúde, a fim de que cada esfera se responsabilize gradualmente
por aquilo que é capaz de administrar.
No sentido de reduzir progressiva e continuamente a remuneração por produção de
serviços, redefiniu os mecanismos e fluxos de financiamento, ampliando as transferências de
caráter global, Fundo a Fundo, com base em programações ascendentes, pactuadas e integradas.
Surge, então, a Programação Pactuada e Integrada (PPI). Além disso, incentivou os vínculos dos
serviços com os seus usuários, privilegiando os núcleos familiares e comunitários, criando, assim,
condições para uma efetiva participação e controle social.
Com relação à prática do acompanhamento, controle e avaliação no SUS, objetivou superar
os mecanismos tradicionais, centrados no faturamento de serviços produzidos, valorizando os
resultados advindos de programações com critérios epidemiológicos e desempenho com qualidade
(BRASIL, 1996).
Esta norma teve por finalidade primordial promover e consolidar o pleno exercício do
poder público municipal e do Distrito Federal na função de gestor da atenção à saúde dos seus
municípios, redefinindo, consequentemente, as responsabilidades dos Estados, Distrito Federal e
União, de modo que os municípios e estados superassem o papel exclusivo de prestadores de
serviços e assumissem seus respectivos papéis de gestores do SUS.
Dessa forma, o município passou a ser o responsável imediato pelo atendimento das
necessidades e demandas de saúde da sua população e das exigências de intervenções saneadoras
em seu território. Isso significa que o município deve responsabilizar-se não só por algum tipo de
prestação de serviços de saúde, como também pela gestão de um sistema integral à demanda da
população.
A NOB 01/96 revoga os modelos anteriores de gestão e propõe aos municípios o
enquadramento em dois novos modelos: Gestão Plena de Atenção Básica e Gestão Plena do
Sistema Municipal. Esses dois níveis diferenciam-se principalmente nas responsabilidades
assumidas, o que ocasionará, consequentemente, desigualdade nos financiamentos recebidos.
O Ministério da Saúde avalia que as Normas Operacionais representaram um processo de
aperfeiçoamento para a aplicação prática de diretrizes que favorecessem a implantação do sistema
de saúde em cada esfera de governo. Considera, especificamente a NOB-01/96 como um avanço
50
importante no modelo de gestão do SUS, principalmente no que se refere à consolidação da
Municipalização (BRASIL, 1996).
A partir de 1995, desenvolveu-se um movimento denominado de "reforma da reforma" do
sistema que, além das determinações legais, buscou modificar o desenho e as operações da política
de saúde no sentido de acelerar o processo de descentralização, reestruturar os mecanismos de
financiamento das ações de saúde e, principalmente, fortalecer a atenção básica (BRASIL, 2001).
Nesse sentido, simultaneamente ao processo de municipalização, o Ministério da Saúde
aprovou em 1998 o Manual para Organização da Atenção Básica (Brasil, 1998), com o intuito de
ampliar a definição das responsabilidades da atenção básica, permitindo, assim, o
acompanhamento da descentralização apontado pela NOB 01/96.
Este Manual conceituou a Atenção Básica, contemplando a ampliação desta definição, ou
seja, além das ações de prevenção e promoção da saúde tipificadas, compreende que a reabilitação
e a manutenção da saúde fazem parte deste nível de atenção.
Além disso, descreveu sobre as responsabilidades da gestão municipal, as ações, atividades
e orientações sobre o repasse, aplicação e mecanismos de acompanhamento e controle dos recursos
financeiros e, ainda, apontou estratégias prioritárias para organização da atenção básica, com
destaque ao PSF. Com relação ao financiamento, constam as aplicações e metodologias de
acompanhamento para controle dos recursos financeiros que contemplam o Piso de Atenção
Básica. O anexo I do Manual para Organização da Atenção Básica previu um detalhamento sobre a
composição do Piso da Atenção Básica (PAB) em fixo e variável. O PAB fixo é um montante de
recursos financeiros, destinado à atenção básica de saúde, sendo seu valor calculado de acordo com
a população de cada município. Já o PAB variável, implantado em 1998, trata-se de um incentivo
estabelecido através de um acréscimo percentual ao montante do PAB fixo, destinado aos
municípios que desenvolvem ações estratégicas na atenção básica. Foram consideradas ações
Básicas de Vigilância Sanitária, Programas de Agentes Comunitários de Saúde, Programa Saúde
da Família e Programa de Combate às Carências Nutricionais.
No intuito do fortalecimento institucional-administrativo, em 1999, o Ministério da Saúde
instituiu a Coordenação de Atenção Básica, transformada em Departamento e estruturada em três
coordenações. A primeira teve a tarefa de acompanhar a implantação das equipes do Saúde da
Família e o desenvolvimento das responsabilidades da atenção básica; a segunda, de executar os
projetos de qualificação do processo de trabalho da atenção básica/PSF, principalmente na área de
51
capacitação dos profissionais de saúde; e a terceira com a função de acompanhar e avaliar o
processo de reorganização da atenção básica, com ênfase na estratégia do PSF.
O Relatório de Gestão da Secretaria de Assistência à Saúde: 1998/2001 apontou como uma
das dificuldades do modelo de atenção à saúde, a questão dos recursos humanos, pois avaliou que a
maioria dos profissionais vinculados aos serviços públicos de saúde não estavam preparados para
este novo processo de trabalho, seja por conta da formação profissional ou mesmo da prática até
então desenvolvida nos serviços. Nessa perspectiva analisou que a maioria dos cursos de saúde no
Brasil, ainda, baseia-se no modelo flexneriano4 para a formação profissional, que utilizando a
lógica da especialização, fragmenta o conhecimento (BRASIL, 2003). A indicação do relatório foi
da necessidade de formar/capacitar os profissionais da saúde capazes de uma prática
multiprofissional e interdisciplinar para incrementar a atenção básica.
Assim, a partir do ano de 1997, o Ministério da Saúde propôs os Pólos de Capacitação,
Formação e Educação Permanente de Recursos Humanos para o PSF, como espaços de articulação
entre serviços e instituições de ensino superior, objetivando implementar processos de capacitação
destinados aos profissionais do Programa.
Outro aspecto importante para o fortalecimento da atenção básica foi a publicação, em
janeiro de 2001, da Norma Operacional da Assistência do SUS (NOAS/SUS). Essa norma tinha o
objetivo geral de promover maior equidade na alocação de recursos e no acesso da população às
ações e serviços de saúde em todos os níveis da atenção e para tanto, oferecia estratégias
intermunicipais para a organização dos serviços de atenção básica, orientando a construção das
redes regionalizadas e hierarquizadas de serviços de saúde de qualidade e resolutivas. A NOAS
tratava da organização dos serviços municipais no contexto da micro e macro-regionalização.
Nesse sentido, enfatiza a importância do fortalecimento da capacidade gestora no SUS, com
responsabilização real e pactuação de compromissos e metas pelos gestores (BRASIL, 2001).
A NOAS apontou responsabilidades e estratégias mínimas que os municípios brasileiros
deveriam desenvolver na ABS, flexibilizando, porém, para outras ações que os municípios, a partir
de seu perfil epidemiológico e demográfico, julgassem estratégicas necessárias. Dentre as
estratégias mínimas indicadas, constavam: o controle da Tuberculose, eliminação da Hanseníase,
4 O Modelo flexneriano tem raízes no modelo norte-americano da fundação Rockefeller e coloca a doença como fenômeno estritamente biológico.
52
controle da Hipertensão, controle da Diabetes Melittus, ações de Saúde Bucal, ações de Saúde da
Criança e ações de Saúde da Mulher.
Esta norma, ainda, tinha a preocupação de articular a atenção básica com a rede de serviços
de maior complexidade, de maneira a ser parte desta rede e porta de entrada do sistema. Para a
efetivação desta articulação, indicava instrumentos específicos:
- Programação Pactuada Integrada (PPI): define ações de saúde a serem executadas
localmente, entre estados e municípios, com as respectivas responsabilidades físicas e
orçamentárias em cada nível de atenção. Esta proposta já constava na NOB/96, mas não havia sido
implantada efetivamente;
- Plano Diretor de Regionalização (PDR): coordenado pelas Secretarias Estaduais de Saúde,
agrupa seus municípios em níveis crescentes de complexidade para utilização racional dos serviços
de saúde;
- Plano Diretor de Investimentos (PDI): documento estadual, que define a aplicação de
recursos financeiros na adequação da rede assistencial às ações de saúde pactuadas, inclusive
contemplando a necessidade de instalação de serviços de atenção básica onde ainda não houver
suficiência dos mesmos.
O Ministério da Saúde avalia que:
a riqueza do processo de discussão e implantação da NOAS torna-se também um momento de reflexão e avaliação da atenção básica e de todo o potencial existente nesse nível, para a efetiva mudança do modelo de atenção à saúde proposto pelo SUS (BRASIL, 2003, p. 116).
No entanto, apesar do avanço na possibilidade de execução financeira conquistado a partir
da implantação do Piso da Atenção Básica e do PAB variável, o MS aponta a fragilidade dos
mecanismos de controle e avaliação, visto que em muitos casos, as Secretarias Estaduais e
Municipais de Saúde abandonaram as formas tradicionais de controle e avaliação, sem a
substituição por outras propostas (BRASIL, 2003).
Frente à dificuldade de imposição de normas gerais a um país de grande extensão territorial
e com inúmeras desigualdades, com a característica de fixar conteúdos normativos na gestão da
saúde, com detalhamento excessivo e enorme complexidade, os gestores do SUS assumem um
compromisso público da construção do Pacto pela Saúde 2006, na perspectiva de superar essas
dificuldades (BRASIL, 2006).
53
Após cerca de dois anos de um trabalho de discussão envolvendo o Ministério da Saúde, o
Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde – CONASEMS e o Conselho Nacional de
Secretários de Saúde – CONASS, o de Pacto pela Saúde 2006 – Consolidação do SUS- foi
aprovado pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e pelo Conselho Nacional de Saúde, tendo
sido publicado na Portaria/GM nº 399, de 22 de fevereiro de 2006.
O Pacto é um acordo firmado entre as três esferas de gestão, que visa um conjunto de
reformas institucionais com o objetivo de promover inovações nos processos e instrumentos de
gestão, apresentando mudanças significativas para a execução do Sistema de Saúde. Sua
implementação ocorre por meio da adesão de municípios, estados e União ao Termo de
Compromisso de Gestão (TCG), o qual é revisado anualmente, com base nos princípios
constitucionais do SUS e nas necessidades de saúde da população, de forma a substituir os
anteriores processos de habilitação. Dessa forma, o Pacto estabelece metas e compromissos para
cada ente da federação, definindo prioridades articuladas e integradas em seus três componentes:
Pacto pela Vida, Pacto em Defesa do SUS e Pacto de Gestão do SUS.
As transferências dos recursos também foram modificadas, passando a ser divididas em seis
grandes blocos de financiamento: Atenção, Básica, Média e Alta Complexidade da Assistência,
Vigilância em Saúde, Assistência Farmacêutica, Gestão do SUS e Investimentos em Saúde.
O Pacto pela Vida trata de um conjunto de compromissos sanitários firmado entre os
gestores do SUS, que, buscando enfrentar os principais problemas de saúde que assolam o país,
baseiam-se em prioridades que apresentam impacto sobre a situação de saúde da população
brasileira. As prioridades estão expressas em objetivos, metas e indicadores e são definidas a partir
da análise da situação de saúde do país e das prioridades definidas pelos entes federados. Apesar
de serem definidas nacionalmente, um dos objetivos do Pacto é incentivar e permitir que os
gestores indiquem situações a partir da realidade local, de modo que as metas nacionais não sejam
uma imposição aos estados e municípios. Além disso, é importante que as prioridades não sejam
ações que já estão incluídas no cotidiano do sistema, como por exemplo, a vacinação. Estas devem
continuar sendo feitas com qualidade, mas não necessariamente precisam constar como prioridade,
visto que já fazem parte da cultura dos gestores, conselheiros e cidadãos. O documento que deve
guiar o estabelecimento dessas metas é o Plano de Saúde.
O Pacto em Defesa do SUS busca a consolidação do processo da Reforma Sanitária
Brasileira, no sentido de reforçar o SUS como política de Estado mais do que política de governos,
54
defendendo seus princípios basilares inscritos na Constituição Federal. Dessa forma, propõe ações
concretas e articuladas entre as três instâncias federativas que visem qualificar e assegurar os SUS
como política pública. Expressa um movimento de repolitização da saúde, com uma clara
estratégia de mobilização social. Tem como prioridades: a mobilização social com a finalidade de
mostrar a saúde como direito de cidadania e o SUS como sistema público universal, garantidor de
direitos; regulamentar, a curto prazo, a emenda constitucional nº 29 pelo Congresso Nacional;
garantir, a longo prazo, o incremento dos recursos orçamentários e financeiros para a saúde;
aprovar o orçamento do SUS pelo orçamento das três esferas de gestão; elaborar e divulgar a Carta
dos Direitos dos Usuários do SUS.
O Pacto de Gestão do SUS estabelece as responsabilidades claras de cada ente federado,
valoriza a relação solidária entre gestores, contribuindo para o fortalecimento da gestão
compartilhada do SUS em cada eixo de ação: Descentralização, Regionalização, Financiamento do
SUS, Planejamento no SUS, Programação Pactuada Integrada (PPI), Regulação da Atenção à
Saúde e Regulação Assistencial, Participação e Controle Social, Gestão do Trabalho na Saúde,
Educação na Saúde (BRASÍLIA, 2006).
O Ministério da Saúde, na tentativa de revisar e adequar as normas nacionais ao atual
momento do desenvolvimento da atenção básica no Brasil, considerando o Programa Saúde da
Família (PSF), os princípios e diretrizes do Pacto pela Saúde e a diretriz do Governo Federal de
executar a gestão pública por resultados mensuráveis, propôs a Política Nacional de Atenção
Básica (PNAB 2006), através da Portaria nº 648/GM, em 28 de março de 2006 (BRASIL, 2006).
Esta política estabeleceu uma revisão da regulamentação sobre a implantação e
operacionalização até então vigentes, isto é, a revisão das diretrizes e normas para a organização da
Atenção Básica5, para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de
5 A Atenção Básica tem como fundamentos: I - possibilitar o acesso universal e contínuo a serviços de saúde de qualidade e resolutivos, caracterizados como a porta de entrada preferencial do sistema de saúde, com território adscrito de forma a permitir o planejamento e a programação descentralizada, e em consonância com o princípio da eqüidade; II - efetivar a integralidade em seus vários aspectos, a saber: integração de ações programáticas e demanda espontânea; articulação das ações de promoção à saúde, prevenção de agravos, vigilância à saúde, tratamento e reabilitação, trabalho de forma interdisciplinar e em equipe, e coordenação do cuidado na rede de serviços; III - desenvolver relações de vínculo e responsabilização entre as equipes e a população adscrita garantindo a continuidade das ações de saúde e a longitudinalidade do cuidado; IV - valorizar os profissionais de saúde por meio do estímulo e do acompanhamento constante de sua formação e capacitação; V - realizar avaliação e acompanhamento sistemático dos resultados alcançados, como parte do processo de planejamento e programação; e VI - estimular a participação popular e o controle social (BRASIL, 2006, p. 11).
55
Saúde (PACS), apontando para a redefinição dos princípios gerais, das responsabilidades de cada
esfera de governo, da infra-estrutura e recursos necessários, das características do processo de
trabalho, das atribuições dos profissionais, e das regras de financiamento, incluindo as
especificidades da estratégia Saúde da Família.
Neste documento (PNAB 2006), a partir da municipalização, o Ministério da Saúde indica
que, preferencialmente e de acordo com sua capacidade institucional, os municípios insiram a
estratégia Saúde da Família em sua rede de serviços. Aponta, também, os equipamentos e materiais
necessários, além da necessidade de garantir o fluxo de referência e contra-referência aos serviços
especializados e da dispensação de medicamentos pactuados nacionalmente.
Com relação à população atendida, a recomendação deste documento é: para Unidade
Básica de Saúde (UBS) sem Saúde da Família em grandes centros urbanos, recomenda-se o
parâmetro de uma UBS para até 30 mil habitantes, localizada dentro do território pelo qual tem
responsabilidade sanitária, garantindo os princípios da Atenção Básica; para UBS com Saúde da
Família em grandes centros urbanos, recomenda-se o parâmetro de uma UBS para até 12 mil
habitantes, localizada dentro do território pelo qual tem responsabilidade sanitária, garantindo os
princípios da Atenção Básica.
Cada equipe de Saúde da Família deve ser responsável por no máximo 4.000 habitantes,
sendo a média recomendada de 3.000 habitantes. Os profissionais devem ter jornada de 40 horas
semanais e a equipe deve conter, no mínimo, médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem ou
técnico de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde. O número de ACS deve ser suficiente
para cobrir 100% da população cadastrada, com um máximo de 750 pessoas por ACS e de até 12
ACS por equipe de Saúde da Família.
No caso de existência de equipe de Saúde Bucal, há duas modalidades: cirurgião dentista e
auxiliar de consultório dentário integrando equipe de Saúde da Família e, outra possibilidade, é o
cirurgião dentista, auxiliar de consultório dentário e técnico de higiene dental, compondo esta
equipe. A implantação da estratégia de Agentes Comunitários de Saúde na ABS é vista como uma
possibilidade de reorganização inicial da Atenção Básica e para sua efetividade, é necessário a
existência de um enfermeiro supervisor, com carga horária de 40 horas semanais e responsável por
até 30 ACS.
O processo de trabalho das equipes da ABS deverá se dar através da delimitação do espaço,
ou seja, as UBS terão um território de atuação bem definido, tendo a solução dos problemas mais
56
frequentes de saúde, como prioridade na programação e implementação das atividades. É de
responsabilidade da UBS a assistência resolutiva à demanda espontânea, a assistência básica
integral e contínua, a implementação das diretrizes da Política Nacional de Humanização incluindo
o acolhimento e a realização de primeiro atendimento às urgências médicas e odontológicas. As
ações devem estar focalizadas sobre os grupos de risco e fatores de risco comportamentais,
alimentares e/ou ambientais, visando prevenir o aparecimento ou a manutenção de doenças e danos
evitáveis. Para tanto, as ações educativas e a ampliação do controle social na defesa da qualidade
de vida são fundamentais. As equipes devem participar do planejamento e avaliação das ações,
apoiar estratégias de fortalecimento da gestão local e controle social e desenvolver ações
intersetoriais voltadas para a promoção da saúde.
As Unidades Básicas de Saúde devem estar inscritas no Cadastro Nacional de
Estabelecimentos de Saúde (CNES), com ou sem equipes de Saúde da Família, mas contendo
equipe multidisciplinar que contemplem as seguintes categorias profissionais: médico, enfermeiro,
cirurgião dentista, auxiliar de consultório dentário ou técnico em higiene dental, auxiliar de
enfermagem ou técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde, entre outros (BRASIL,
2006).
Assim, o processo de trabalho da equipe de Saúde da Família amplia o processo de trabalho
das equipes de Atenção Básica, pois fixa como competência:
manter atualizado o cadastramento das famílias e dos indivíduos e utilizar, de forma sistemática, os dados para a análise da situação de saúde considerando as características sociais, econômicas, culturais, demográficas e epidemiológicas do território; definição precisa do território de atuação, mapeamento e reconhecimento da área adstrita, que compreenda o segmento populacional determinado, com atualização contínua; diagnóstico, programação e implementação das atividades segundo critérios de risco à saúde, priorizando solução dos problemas de saúde mais freqüentes; prática do cuidado familiar ampliado, efetivada por meio do conhecimento da estrutura e da funcionalidade das famílias que visa propor intervenções que influenciem os processos de saúde-doença dos indivíduos, das famílias e da própria comunidade; trabalho interdisciplinar e em equipe, integrando áreas técnicas e profissionais de diferentes formações; promoção e desenvolvimento de ações intersetoriais, buscando parcerias e integrando projetos sociais e setores afins, voltados para a promoção da saúde, de acordo com prioridades e sob a coordenação da gestão municipal; valorização dos diversos saberes e práticas na perspectiva de uma abordagem integral e resolutiva, possibilitando a criação de vínculos de confiança com ética, compromisso e respeito; promoção e estímulo à participação da comunidade no controle social, no planejamento, na execução e na avaliação das
57
ações; e acompanhamento e avaliação sistemática das ações implementadas, visando à readequação do processo de trabalho (BRASIL, 2006, p. 26).
Com relação aos profissionais, a PNAB 2006 traz a necessidade do município desenvolver
mecanismos e estratégias para qualificação de recursos humanos para gestão, planejamento,
monitoramento e avaliação da Atenção Básica, além de estimular e viabilizar a capacitação e a
educação permanente dos profissionais das equipes de responsabilidade das Secretarias Municipais
e Estaduais e da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, financiados pelas três esferas do governo.
Aponta a necessidade da elaboração de metodologias e instrumentos de monitoramento e avaliação
da ABS na esfera municipal. Assim como os conteúdos mínimos a serem abordados, os quais
devem contemplar as áreas estratégicas da ABS acordadas na CIT, acrescidos de prioridades
estaduais, municipais e do DF. Com a expectativa de que os serviços de Atenção Básica se
adequem à integração ensino-aprendizagem.
Considerando a estruturação da Atenção Básica, o financiamento se dá em composição
tripartite. O Piso da Atenção Básica (PAB), montante de recursos financeiros federais (composto
por uma fração fixa e outra variável) é destinado à viabilização de ações de Atenção Básica à
saúde, sendo que a somatória das partes fixa e variável do PAB compõem o Teto Financeiro do
Bloco Atenção Básica, conforme estabelecido nas diretrizes do Pacto pela Saúde. Estes recursos
deverão ser utilizados para financiamento das ações de Atenção Básica descritas nos Planos de
Saúde do município e do Distrito Federal.
O PAB fixo é destinado a todos os municípios (conforma estabelecido pelo Manual para
Organização da Atenção Básica/ 1998) e o PAB variável é destinado a estimular a implantação das
seguintes estratégias nacionais de reorganização do modelo de atenção à saúde6: Saúde da Família;
Agentes Comunitários de Saúde-ACS; Saúde Bucal-SB; Compensação de Especificidades
Regionais; Saúde Indígena; e Saúde no Sistema Penitenciário. Os repasses são feitos fundo a fundo
(Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde). Em contrapartida, os
Conselhos Municipais de Saúde têm acesso aos registros contábeis e aos demonstrativos gerenciais
mensais relativos aos recursos repassados, possibilitando o acompanhamento e fiscalização.
Além disso, os municípios têm o dever de realizar a demonstração da movimentação dos
recursos através de relatórios mensais da origem e da aplicação dos recursos, demonstrativo
6 O PAB variável, também foi definido em 1998 pelo Manual para Organização da Atenção Básica. Porém, no documento Pacto pela Saúde (2006), redefinem-se as estratégias para obtenção dos recursos.
58
sintético de execução orçamentária, demonstrativo detalhado das principais despesas e relatório de
gestão. “O Relatório de Gestão deverá demonstrar como a aplicação dos recursos financeiros
resultou em ações de saúde para a população, incluindo quantitativos mensais e anuais de produção
de serviços de Atenção Básica” (BRASIL, 2006, p. 31).
Anualmente compete ao governo federal lançar o Pacto de Indicadores da Atenção Básica,
que é um objeto com metas a serem alcançadas em relação a indicadores de saúde acordados,
seguindo a regulamentação do Pacto de Gestão.
O Ministério da Saúde compreende que, durante o processo histórico, a Atenção Básica foi
se fortalecendo e, com o PNAB 2006, a diretriz foi de constituir-se como porta de entrada
preferencial do SUS, sendo o ponto de partida para a estruturação dos sistemas locais de saúde.
No intuito de ampliar a abrangência, a resolutividade e o escopo das ações da atenção
básica, apoiando a inserção da estratégia Saúde da Família na rede de serviços e o processo de
territorialização e regionalização, o Ministério da Saúde criou, pela Portaria № 154, de 24 de
janeiro de 2008, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF (BRASIL, 2008).
Os NASF, constituídos por equipes compostas por profissionais de diferentes áreas de
conhecimento, devem atuar de maneira integrada e apoiando os profissionais das Equipes Saúde da
Família, das Equipes de Atenção Básica, compartilhando as práticas e saberes em saúde nos
territórios sob sua responsabilidade. A indicação é de que as equipes NASF atuem diretamente no
apoio matricial7 às equipes das unidades nas quais o NASF está vinculado e no território destas
equipes. Por este motivo, deve funcionar em horário de trabalho coincidente com o das equipes de
Saúde da Família e/ou equipes de atenção básica.
Nesse sentido, o objetivo é superar a lógica do encaminhamento ampliando para um
processo de compartilhamento de casos e acompanhamento longitudinal, atuando de forma
integrada à rede de serviços de saúde, no trabalho em conjunto com as equipes Saúde da Família.
A ideia é de que, a atuação com os profissionais das Equipes de Saúde da Família, favoreça o
compartilhamento de práticas em saúde nos territórios, com vistas a obter resultados mais eficazes.
7 O Apoio Matricial é um conceito formulado por Campos (2000) que busca reformular os mecanismos tradicionais de gestão, contrapondo-se ao modelo vertical (hierárquico) e imperativo, num processo de construção compartilhada entre sujeitos que apresentam distintos graus de saber e de poder. Desse modo, o Apoiador Matricial é um especialista que contribui com seu núcleo de conhecimento, oferecendo retaguarda assistencial e suporte técnico-pedagógico e terapêutico, com o objetivo de aumentar a capacidade de resolução de problemas de saúde da equipe primariamente responsável pelo caso. Essa relação horizontal, baseada em procedimentos dialógicos, busca instituir um processo de reflexão crítica e educação permanente, estimulando a capacidade de análise e de participação do grupo na gestão.
59
Portanto, os NASF fazem parte da atenção básica, mas não se constituem como serviços
com unidades físicas independentes ou especiais, e o acesso a estas equipes, seja para atendimento
individual ou coletivo, deve ser regulado pelas equipes de atenção básica. Os profissionais do
NASF devem ser cadastrados em uma única unidade de saúde, localizada preferencialmente dentro
do território de atuação das equipes de Saúde da Família e/ou equipes de atenção básica.
A composição de cada NASF será definida pelo gestor municipal, de acordo com a
realidade e necessidades locais. As atividades desenvolvidas pelas equipes NASF podem acontecer
nas unidades básicas de saúde, academias da saúde ou em outros pontos do território.
Os profissionais que poderão compor a equipe do NASF são os seguintes: Médico
Acupunturista; Médico Ginecologista/Obstetra; Médico Homeopata; Médico Psiquiatra; Médico
Pediatra; Médico Geriatra; Médico Internista (clinica médica); Médico do Trabalho; Médico
Veterinário; Assistente Social; Profissional/Professor de Educação Física; Farmacêutico;
Fisioterapeuta; Fonoaudiólogo; Nutricionista; Psicólogo; Terapeuta Ocupacional; profissional com
formação em arte e educação (arte educador) e profissional de saúde sanitarista (BRASIL, 2011).
Para a seleção dessas equipes consideram-se três modalidades de acordo com a Portaria nº
3.124 (de 28 de dezembro de 2012), que redefine os parâmetros de vinculação dos NASF:
- Tipo I: vinculado a, no mínimo, cinco Equipes de Saúde da Família e no máximo nove
equipes de Saúde da Família e/ou equipes de atenção básica para populações específicas, sendo
composto por ao menos cinco profissionais. A soma das cargas horárias semanais dos membros da
equipe deve acumular no mínimo 200 horas semanais, de maneira que nenhum profissional poderá
ter carga horária semanal menor que 20 horas e cada ocupação, considerada isoladamente, deve ter
no mínimo 20 horas e no máximo 80 horas de carga horária semanal;
- Tipo II: vinculado a, no mínimo, três Equipes de Saúde da Família e no máximo quatro
equipes de saúde da família. A soma das cargas horárias semanais dos membros da equipe deve
acumular no mínimo 120 horas semanais, sendo que nenhum profissional poderá ter carga horária
semanal menor que 20 horas e cada ocupação, considerada isoladamente, deve ter no mínimo 20
horas e no máximo 40 horas de carga horária semanal.
- Tipo III: vinculado a, no mínimo, uma e no máximo duas Equipes Saúde da Família. A
soma das cargas horárias semanais dos membros da equipe deve acumular no mínimo 80 horas
semanais, sendo que nenhum profissional poderá ter carga horária semanal menor que 20 horas e
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cada ocupação, considerada isoladamente, deve ter no mínimo 20 horas e no máximo 40 horas de
carga horária semanal.
A Portaria nº 548 (de 4 de abril de 2013) define o valor de financiamento do Piso da
Atenção Básica Variável para os NASF, da seguinte maneira: na modalidade do tipo I, o incentivo
financeiro é de R$ 20.000,00 para a implantação e o mesmo valor para o custeio do Núcleo; assim
como, na modalidade do tipo II, o valor é de R$ 12.000,00 e na modalidade do tipo III, o valor
transferido é de R$ 8.000,00 para a implantação e os mesmos valores repassados mensalmente para
custeio (BRASIL, 2013).
O Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, preenche uma lacuna no arcabouço jurídico do
SUS, ao regulamentar a Lei 8.080, dispondo sobre a organização do SUS, o planejamento da
saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, possibilitando o aprimoramento do
Pacto pela Saúde e contribuindo na garantia do direito à saúde a todos os cidadãos brasileiros
(BRASIL, 2011).
A esperada regulamentação da Lei no 8.080/90 por meio do Decreto no 7.508/11 revigorou a discussão em âmbito nacional sobre os instrumentos gerenciais e os conceitos balizadores do planejamento do Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com o modelo e diretrizes disseminados, cabe às unidades federadas a construção de processos de trabalho capazes de transformar as orientações emanadas da legislação em práticas institucionalizadas. Para isso, as instâncias paritárias (estado e municípios) devem convergir esforços para a discussão e elaboração de referencial metodológico e praticas organizativas que permitam a efetiva operacionalização dos conceitos e a concretização do SUS (MOREIRA, CAMPOS, MALACHIAS, 2012, p. 2).
Este Decreto consolida-se como um marco no sistema de saúde brasileiro, pois define
critérios operacionais da organização do SUS, ressaltando a importância destas políticas de saúde.
A perspectiva é de que os usuários ganhem mais qualidade nos serviços do SUS e de que o Decreto
também possa contribuir para aumentar a transparência sobre as responsabilidades dos entes
federativos na gestão de saúde.
Visando a efetiva consolidação dos princípios e diretrizes do SUS, o Decreto destaca a
descentralização, a regionalização e a hierarquização da rede de serviços, definindo a forma
operacional. Sendo assim, com relação à regionalização e hierarquização, cria as Regiões de
Saúde, de modo que cada região deve oferecer serviços de atenção primária, urgência e
61
emergência, atenção psicossocial, atenção ambulatorial especializada e hospitalar e, por fim,
vigilância em saúde.
Com relação, especificamente à hierarquização, estabelece que as portas de entrada, pelas
quais os usuários têm acesso aos serviços de saúde, são a atenção primária, a atenção de urgência e
emergência, a atenção psicossocial e, ainda, as consideradas especiais, de acesso aberto.
Ainda, através da Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde – RENASES, que por
sua vez deve ser atualizada a cada dois anos, o Decreto também define quais são os serviços de
saúde que estão disponíveis no SUS para o atendimento integral dos usuários.
Também são citados no documento: a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais-
RENAME - como forma de subsidiar a prescrição, a dispensação e o uso dos seus medicamentos; a
Assistência Farmacêutica que define sobre o acesso universal e igualitário à Assistência
Farmacêutica, pressupondo que o usuário deve estar assistido por ações e serviços de saúde do
SUS, que o medicamento deve ter sido prescrito por profissional de saúde, no exercício regular de
suas funções no SUS e que a dispensação deve ter ocorrido em unidades indicadas pela direção do
SUS.
No ano de 2011 o Ministério da Saúde ao reconhecer o grande avanço da Atenção Básica
no Brasil (principalmente em termos de cobertura) e as diversificadas formas de organizá-la (não
somente a Estratégia Saúde da Família-ESF), sentiu a necessidade de priorizar a atenção básica em
todas as esferas, tomando como foco o que é produzido de fato e os resultados alcançados a partir
disso, ou seja, o impacto sobre os resultados. Sendo assim, assumiu o compromisso de aumentar o
montante de recursos atrelado aos resultados.
Dessa forma, com vistas à qualidade dos serviços e a instituição da avaliação da atenção
básica, foi instituído em 19 de julho de 2011 o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da
Qualidade da Atenção Básica-PMAQ (Portaria nº 1.654). O principal objetivo deste programa foi o
de induzir a ampliação do acesso e a melhoria da qualidade da atenção básica, na tentativa de
garantir um padrão de qualidade comparável em todo o território nacional, permitindo, assim, uma
maior transparência e efetividade das ações governamentais direcionadas à Atenção Básica em
Saúde (BRASIL, 2011).
Uma das principais diretrizes atuais do Ministério da Saúde (MS) é executar a gestão pública com base na indução, monitoramento e avaliação de processos e resultados mensuráveis, garantindo acesso e qualidade da atenção em saúde a toda
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a população. Nesse sentido, diversificados esforços têm sido empreendidos no sentido de ajustar as estratégias previstas na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) na direção de reconhecer a qualidade dos serviços de atenção básica (AB) ofertados à sociedade brasileira e estimular a ampliação do acesso e da qualidade nos mais diversos contextos existentes no País (BRASIL, 2012, p. 7).
O PMAQ está baseado nas seguintes diretrizes: mudança do modelo de atenção (com o
desenvolvimento dos trabalhadores e a orientação dos serviços em função das necessidades e da
satisfação dos usuários); mudança de cultura de gestão e qualificação da atenção básica;
estabelecimento de processo contínuo e progressivo de melhoramento dos padrões e indicadores de
acesso e de qualidade que envolva a gestão, o processo de trabalho e os resultados alcançados
pelas equipes de saúde da atenção básica (monitoramento e avaliação); parâmetro de comparação
entre as equipes da atenção básica, considerando as diferentes realidades de saúde (particularidades
loco-regionais, características demográficas e contexto sócio-econômico, definição de aspectos
comparativos mas não de padrões pré-definidos, diferentes arranjos assumidos pelos municípios
para organização da AB); transparência com permanente acompanhamento de suas ações e
resultados em todas suas etapas, pela sociedade; em conformidade com os princípios da AB
(BRASIL, 2012).
Com o intuito de assegurar maior equidade na comparação das Equipes de Atenção Básica
no processo de certificação, os municípios são distribuídos em estratos que levam em conta
aspectos sociais, econômicos e demográficos.
O Programa está atrelado a um incentivo financeiro para as gestões municipais que fizerem
adesão. O recurso é variável e depende dos resultados alcançados pelas equipes e pela gestão
municipal, sendo transferido a cada mês, com base no número de equipes cadastradas no Programa
e os critérios definidos em portaria específica.
A adesão é de caráter voluntário tanto para as equipes de atenção básica quanto para os
gestores municipais, o programa parte do pressuposto de que o seu êxito depende da motivação e
proatividade dos atores envolvidos. O PMAQ está organizado em quatro fases que se
complementam e que conformam um ciclo contínuo de melhoria do acesso e da qualidade da AB,
descritos a seguir:
1 – Adesão e Contratualização: consiste na etapa formal de adesão ao Programa, mediante a
contratualização de compromissos e indicadores a serem firmados entre as Equipes de Atenção
63
Básica com os gestores municipais, e destes com o Ministério da Saúde num processo que envolve
pactuação local, regional e estadual e a participação do controle social.
2 – Desenvolvimento: é o conjunto de ações que serão empreendidas pelas Equipes de
Atenção Básica, pelas gestões municipais e estaduais e pelo Ministério da Saúde, com o intuito de
promover os movimentos de mudança da gestão, do cuidado e da gestão do cuidado que
produzirão a melhoria do acesso e da qualidade da Atenção Básica. Esta fase está organizada em
quatro dimensões: Autoavaliação (AMAQ); Monitoramento (metas/indicadores contratualizados);
Educação Permanente; e Apoio Institucional
3 – Avaliação Externa: consiste na avaliação externa que será a fase em que se realizará um
conjunto de ações que averiguará as condições de acesso e de qualidade da totalidade de
municípios e Equipes da Atenção Básica participantes do Programa. Esta avaliação deve prever
quatro eixos: Certificação de desempenho das Equipes de Atenção Básica e gestões municipais;
Avaliação da rede local pelas Equipes de Atenção Básica; Avaliação de Satisfação do usuário; e
Estudo de base populacional sobre acesso a serviços, utilização e qualidade.
4 – Recontratualização: com base na avaliação de desempenho de cada equipe, uma nova
contratualização de indicadores e compromissos deverá ser realizada, completando o ciclo de
qualidade previsto pelo Programa. A partir dos resultados alcançados pelas equipes, será possível
identificar tendências que nortearão a construção de novas estratificações que levem em
consideração a realidade das regiões, a área de localização das UBS e outras questões que
aumentarão a possibilidade de comparações mais equitativas (BRASIL, 2012).
É importante destacar que no processo de avaliação considera-se a avaliação de satisfação
dos usuários, dos trabalhadores das equipes, do perfil e educação permanente das equipes, dos
elementos da gestão do trabalho, do processo de trabalho e da implantação dos processos de
qualidade e resultados. Com relação à avaliação dos trabalhadores devem ser analisados elementos
como: condições de trabalho, apoio diagnóstico e terapêutico e integração com o conjunto da rede
e coordenação do cuidado. Além disso, avaliam-se direitos trabalhistas, carreira e remuneração
ligada ao desempenho.
Na fase de auto-avaliação da Equipe, o Departamento de Atenção Básica oferecerá um
instrumento auto-avaliativo denominado AMAQ–Auto-avaliação para a Melhoria do Acesso e da
Qualidade da Atenção Básica. Porém, esta ferramenta, ofertada pelo Ministério da Saúde, poderá
ser combinada com outras, cabendo aos gestores municipais e às equipes de atenção básica a
64
definição sobre o uso dos instrumentos ou ferramentas que se adequem às suas necessidades e
realidades. O AMAQ contém quarenta e sete indicadores, subdivididos em sete áreas: Saúde da
Mulher; Saúde da Criança; Controle de Diabetes Mellitus e Hipertensão Arterial Sistêmica; Saúde
Bucal; Produção Geral; Tuberculose e Hanseníase; Saúde Mental.
A auto-avalição é percebida como o ponto de partida da melhoria da qualidade dos
serviços, pois entende-se que, a partir da descrição e análise das dimensões do processo de
trabalho, é possível estimular os atores a realizarem uma reflexão sobre seu trabalho, fomentando a
autoanálise, a autogestão, bem como potencializando a construção de soluções a partir da
identificação de problemas. Este dispositivo favorece a indução da reorganização do trabalho das
equipes de Atenção Básica e da gestão municipal de saúde (BRASIL, 2013).
As Equipes da Atenção Básica devem assumir os seguintes compromissos: organizar o
processo de trabalho da equipe em conformidade com os princípios da atenção básica previstos no
PMAQ e na PNAB; implementar processos de acolhimento à demanda espontânea para a
ampliação, facilitação e qualificação do acesso; alimentar o Sistema de Informação da Atenção
Básica (SIAB) de forma regular e consistente, independentemente do modelo de organização da
equipe; programar e implementar atividades, com a priorização dos indivíduos, famílias e grupos
com maior risco e vulnerabilidade; instituir espaços regulares para a discussão do processo de
trabalho da equipe e para a construção e acompanhamento de projetos terapêuticos singulares;
instituir processos autoavaliativos como mecanismos disparadores da reflexão sobre a organização
do trabalho da equipe, com participação de todos os profissionais que constituem a equipe;
desenvolver ações intersetoriais voltadas para o cuidado e a promoção da saúde; pactuar metas e
compromissos para a qualificação da Atenção Básica com a gestão municipal.
As gestões municipais, por sua vez, têm como responsabilidade (BRASIL, 2012):
- garantir a composição mínima das Equipes de Atenção Básicas participantes do Programa, com
seus profissionais devidamente cadastrados no Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde
(CNES);
- manter alimentação regular e consistente do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB),
com informações referentes às Equipes de Atenção Básica participantes do Programa, permitindo o
seu monitoramento permanente;
65
- garantir oferta mínima de ações de saúde para a população coberta por cada Equipe de Atenção
Básica, de acordo com a PNAB e traduzidas pelos indicadores e padrões de qualidade definidos
pelo Programa;
- aplicar os recursos do Componente de Qualidade do PAB Variável em ações que promovam a
qualificação da Atenção Básica;
- estruturar a Coordenação de Atenção Básica, constituindo e garantindo condições de
funcionamento da equipe de gestão responsável pela implantação local do Programa;
- instituir Processos de Autoavaliação da Gestão e das Equipes de Atenção Básica participantes do
Programa;
- definir o território de atuação da Unidades Básicas de Saúde e a população adscrita por Equipe de
Atenção Básica;
- implantar Apoio Institucional e Matricial às Equipes de Atenção Básica do município;
- realizar ações de Educação Permanente com/para as Equipes de Atenção Básica;
- implantar processo regular de Monitoramento e Avaliação, para acompanhamento e divulgação
dos resultados da Atenção Básica no município;
- realizar ações para a melhoria das condições de trabalho das Equipes de Atenção Básica;
- apoiar a instituição de mecanismos de gestão colegiada nas Unidades Básicas de Saúde;
- solicitar ao Ministério da Saúde Avaliação Externa das Equipes de Atenção Básica participantes
do Programa, nos prazos estipulados pelo Programa;
- apoiar a realização do processo de Avaliação Externa das Equipes de Atenção Básica
participantes do Programa, oferecendo condições logísticas de hospedagem e transporte para a
equipe de avaliadores externos.
Ainda no ano de 2011, em 21 de outubro, o Ministério da Saúde propôs a revisão da
regulamentação de implantação e operacionalização das diretrizes e normas para a organização da
Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família e o Programa de Agentes Comunitários de
Saúde, através da Portaria nº 2.488, que trata da Política Nacional de Atenção Básica – PNAB
2011 (BRASIL, 2011), revogando a Portaria nº 648/GM (PNAB 2006).
Esta Portaria define como função da Atenção Básica coordenar a integralidade do cuidado e
ordenar as redes, além de reforçar as estratégias já previstas na PNAB 2006. Nesse sentido,
apresenta a proposta da clínica ampliada como possibilidade para a construção de vínculos
66
positivos e intervenções clínicas e sanitariamente efetivas, na perspectiva de ampliação dos graus
de autonomia dos indivíduos e grupos sociais.
Esta Portaria conforme normatização vigente do SUS, define a organização de Redes de Atenção à Saúde (RAS) como estratégia para um cuidado integral e direcionado as necessidades de saúde da população. As RAS constituem-se em arranjos organizativos formados por ações e serviços de saúde com diferentes configurações tecnológicas e missões assistenciais, articulados de forma complementar e com base territorial, e têm diversos atributos, entre eles destaca-se: a atenção básica estruturada como primeiro ponto de atenção e principal porta de entrada do sistema, constituída de equipe multidisciplinar que cobre toda a população, integrando, coordenando o cuidado, e atendendo as suas necessidades de saúde (BRASIL, 2011).
A função de ordenar as redes significa reconhecer as necessidades de saúde da população,
organizando-as com relação aos outros pontos de atenção à saúde, de maneira a contribuir para que
a programação dos serviços de saúde parta das necessidades de saúde dos usuários.
A coordenação do cuidado refere-se tanto à elaboração, acompanhamento e gestão de
projetos terapêuticos singulares, quanto ao acompanhamento e organização do fluxo dos usuários
entre os pontos de atenção das RAS.
Nesse contexto, a Atenção Básica deve ser o centro de comunicação entre os diversos
pontos de atenção responsabilizando-se pelo cuidado dos usuários em qualquer destes pontos
através de uma relação horizontal, contínua e integrada. O objetivo é o de produzir a gestão
compartilhada da atenção integral, articulando as outras estruturas das redes de saúde e
intersetoriais. Para tanto, indica a incorporação de ferramentas e dispositivos de gestão do cuidado,
tais como: gestão das listas de espera (encaminhamentos para consultas especializadas,
procedimentos e exames), prontuário eletrônico em rede, protocolos de atenção organizados sob a
lógica de linhas de cuidado, discussão e análise de casos traçadores, eventos-sentinela e incidentes
críticos, dentre outros.
Aponta que as Unidades de Saúde da Família devem contar com equipes multiprofissionais
compostas por médico, enfermeiro, cirurgião-dentista, auxiliar em saúde bucal ou técnico em
saúde bucal, auxiliar de enfermagem ou técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde,
dentre outros profissionais em função da realidade epidemiológica, institucional e das necessidades
de saúde da população.
67
A estratégia de Agentes Comunitários de Saúde nas Unidades Básicas de Saúde está
prevista como uma possibilidade para a reorganização inicial da Atenção Básica, prevendo a
implantação gradual da estratégia de saúde da família ou como uma forma de agregar os agentes
comunitários a outras maneiras de organização da atenção básica. Para efetivar a implantação, é
necessário: a existência de uma UBS devidamente inscrita no Cadastro Nacional; a existência de
um enfermeiro para até no máximo 12 e no mínimo 4 ACS; cumprimento de carga horária integral
de 40 hs/semanais para toda a equipe de ACS; cada ACS deve ter uma microárea sob sua
responsabilidade, com uma população de até 750 pessoas.
Porém, admite que o PACS não é uma estratégia isolada, pois além de fazer parte da Saúde
da Família existe a possibilidade da implantação deste Programa nas Unidades Básicas de Saúde,
com vistas à implantação da Estratégia ou como uma forma de agregar os agentes comunitários a
outras maneiras de organização da atenção básica.
Com relação à cobertura da assistência, a PNAB 2011 indica que: para UBS sem Saúde da
Família em grandes centros urbanos, o parâmetro é de uma UBS para no máximo 18 mil
habitantes; para UBS com Saúde da Família em grandes centros urbanos, recomenda-se o
parâmetro de uma UBS para no máximo 12 mil habitantes8.
O processo de trabalho das equipes da UBS prevê as seguintes ações:
- atuação e responsabilidade por territórios bem definidos, promovendo atenção integral, contínua
e organizada;
- programação e implementação das atividades de atenção e prevenção à saúde de acordo com as
necessidades de saúde da população, levando em consideração critérios de risco, frequência,
vulnerabilidade e resiliência;
- realizar acolhimento com escuta qualificada, classificação de risco, avaliação de necessidade de
saúde e análise de vulnerabilidade tendo em vista a responsabilidade da assistência resolutiva à
demanda espontânea e o primeiro atendimento às urgências;
- realizar atenção à saúde na UBS, no domicílio e em outros locais do território;
8 A PNAB 2006 recomenda o parâmetro de uma UBS para até 30 mil habitantes, para UBS sem Saúde da Família e localizada em grandes centro urbanos. Já a PNAB 2011 revê a abrangência, propondo uma UBS para até 18 mil habitantes. Com relação à UBS com Saúde da Família, a recomendação mantém-se em uma UBS para até 12 mil habitantes.
68
- desenvolver ações educativas que possam interferir no processo saúde-doença da população, no
desenvolvimento de autonomia e na busca por qualidade de vida pelos usuários;
- realizar atenção domiciliar aos usuários com problemas de saúde e com dificuldade ou
impossibilidade física de locomoção, que necessitem de cuidados com menor frequência e menor
necessidade de recursos de saúde, realizando cuidado compartilhado com serviço de atenção
domiciliar nos demais casos;
- implementar diretrizes de qualificação dos modelos de atenção e gestão9, participando do
planejamento local de saúde assim como do monitoramento e a avaliação das ações na sua equipe,
unidade e município;
- desenvolver ações intersetoriais, articulando projetos e redes de apoio social, voltados para o
desenvolvimento de uma atenção integral;
- apoiar as estratégias de fortalecimento da gestão local e do controle social
Com relação ao financiamento, mantém-se o posicionamento do financiamento tripartite e
os recursos advindos do orçamento do Ministério da Saúde, devem onerar os seguintes Programas
de Trabalho: Piso de Atenção Básica Variável - Saúde da Família; Piso de Atenção Básica Fixo;
Estruturação da Rede de Serviços de Atenção Básica de Saúde; Atenção à Saúde Bucal; e
Construção de Unidades Básicas de Saúde - UBS.
Há um esforço do Ministério da Saúde em fazer com que parte dos recursos induzam a ampliação do acesso, a qualificação do serviço e a melhoria da atenção à saúde da população. Estes recursos devem ser repassados em função de programas que avaliem a implantação de processos e a melhoria de resultados como o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade-PMAQ (BRASIL, 2011).
Esta Portaria detalha as responsabilidades de cada ente federado, dentre as quais, neste
trabalho, destaco como competências comuns aos entes federados: contribuir para a reorientação
do modelo de atenção e de gestão; apoiar e estimular a adoção da estratégia Saúde da Família
enquanto estratégia prioritária de expansão, consolidação e qualificação da atenção básica à saúde; 9 Diretrizes: participação coletiva nos processos de gestão; valorização, fomento à autonomia e protagonismo dos diferentes sujeitos implicados na produção de saúde; compromisso com a ambiência e com as condições de trabalho e cuidado; constituição de vínculos solidários; identificação das necessidades sociais e organização do serviço em função delas, entre outras.
69
garantir infraestrutura necessária para o funcionamento da UBS; contribuir para o financiamento
tripartite; planejar, apoiar, monitorar e avaliar a ABS, estabelecendo mecanismos de controle,
regulação e acompanhamento sistemático dos resultados alcançados pelas ações da ABS; estimular
a participação popular e o controle social.
Com relação aos trabalhadores do SUS, este documento aponta como responsabilidades da
gestão: desenvolver mecanismos técnicos e estratégias organizacionais de qualificação da força de
trabalho para gestão e atenção à saúde; valorizar os profissionais de saúde estimulando e
viabilizando a formação e educação permanente dos profissionais das equipes; garantir os direitos
trabalhistas e previdenciários, a qualificação dos vínculos de trabalho e a implantação de carreiras
que associem desenvolvimento do trabalhador com qualificação dos serviços ofertados aos
usuários; promover o intercâmbio de experiências e estimular o desenvolvimento de estudos e
pesquisas que busquem o aperfeiçoamento e a disseminação de tecnologias e conhecimentos
voltados à Atenção Básica.
Dessa forma, as competências do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais e Distrito
Federal coincidem nas funções de disponibilizar instrumentos técnicos e pedagógicos que facilitem
o processo de gestão, de promover o processo de formação e capacitação profissional e de
educação permanente dos gestores e profissionais da Atenção Básica. À gestão federal compete a
articulação com o Ministério da Educação para indução às mudanças curriculares nos cursos de
graduação e pós-graduação na área da saúde. O Estado, por sua vez, deve facilitar o processo de
formação profissional e, em parceria com as Secretarias Municipais de Saúde, garantir a educação
permanente aos profissionais de saúde das equipes de Atenção Básica e das equipes de saúde da
família, além de promover o intercâmbio de experiências entre os diversos municípios, para
disseminar tecnologias e conhecimentos voltados à melhoria dos serviços da Atenção Básica.
Às Secretarias Municipais e Distrito Federal ficam com o encargo de: desenvolver ações e
articular instituições para formação e garantia de educação permanente aos profissionais de saúde
das equipes de Atenção Básica e das equipes de saúde da família; selecionar, contratar e remunerar
os profissionais que compõem as equipes multiprofissionais de Atenção Básica, em conformidade
com a legislação vigente; garantir a estrutura física necessária para o funcionamento das Unidades
Básicas de Saúde e para a execução do conjunto de ações propostas, podendo contar com apoio
técnico e/ou financeiro das Secretarias de Estado da Saúde e do Ministério da Saúde; garantir
70
recursos materiais, equipamentos e insumos suficientes para o funcionamento das Unidades
Básicas de Saúde e para a execução do conjunto de ações propostas.
Referindo-se à educação permanente dos profissionais da ABS, o financiamento é de
responsabilidade das três esferas de governo. Os conteúdos mínimos a serem abordados devem
contemplar as áreas estratégicas da ABS acordadas na CIT, acrescidos de prioridades estaduais,
municipais e do Distrito Federal.
Nesse sentido, a educação permanente, além da sua evidente dimensão pedagógica, deve ser encarada também como uma importante "estratégia de gestão", com grande potencial provocador de mudanças no cotidiano dos serviços, em sua micropolítica, bastante próximo dos efeitos concretos das práticas de saúde na vida dos usuários, e como um processo que se dá no trabalho, pelo trabalho e para o trabalho (BRASIL, 2011).
Dessa forma, entende-se que a educação permanente deve tratar de conteúdos da prática
concreta dos serviços de saúde, qualificando as práticas de cuidado, gestão e participação popular.
É importante sintonizar as propostas de educação permanente pré-formatadas com o contexto do
território e a necessidade e desejo das equipes.
Esta regulamentação reconhece a importância da vinculação dos processos de educação
permanente à estratégia de apoio institucional, como potencializadora para o desenvolvimento de
competências de gestão e de cuidado na Atenção Básica, na medida em que aumenta as
alternativas para o enfrentamento das dificuldades vivenciadas pelos trabalhadores em seu
cotidiano. Nessa mesma linha é importante diversificar este repertório de ações incorporando
dispositivos de apoio e cooperação horizontal, tais como trocas de experiências e discussão de
situações entre trabalhadores, comunidades de práticas, grupos de estudos, momentos de apoio
matricial, visitas e estudos sistemáticos de experiências inovadoras.
A PNAB 2011 reconhece e define as seguintes equipes de atenção básica para populações
específicas: Equipes de Consultório de Rua; Equipes de saúde da família para o atendimento da
População Ribeirinha da Amazônia Legal e Pantanal Sul Matogrossense; Núcleos de Apoio à
Saúde da Família–NASF; Programa Saúde na Escola.
Após a avaliação de todos os documentos apresentados podemos considerar que se por um
lado, as portarias e os programas visam uma tentativa prática de formulação e execução das
políticas públicas, tentando direcionar uma continuidade das ações e planejamentos, por outro, há
71
um boom de informações que confundem e não promovem o comprometimento e a
responsabilização dos gestores. Há uma infinidade de programas e portarias que, muitas vezes, não
são claros, no sentido de que não retomam os documentos escritos anteriormente dando a
impressão de que o programa ou a política tem início neste determinado documento. Não
esclarece, sequer, o que foi revogado ou a partir de que ponto o novo documento acrescenta e/ou
modifica o documento anterior, como é o caso, por exemplo, da PNAB 2006 e PNAB 2011.
A partir desta análise, levanto as seguintes reflexões: será que é preciso contar com o
auxílio de um especialista para detectar e compreender tudo o que foi criado? Quem conhece todos
os programas? E quem os compreende?
Diante disso, questiono a efetividade dessas políticas que, ora complementam-se, ora
repetem definições previstas anteriormente, justificando a tentativa de efetivação da política da
Atenção Básica. Entendo que a diversidade de programas e de informações não favorece o
reconhecimento e a compreensão do funcionamento do sistema de saúde por parte dos gestores,
trabalhadores e inclusive, da população.
Embora esteja definida a competência dos gestores, no município eles acabam sendo os
responsáveis pela implantação e organização de toda a rede de saúde. Sendo assim, exige-se uma
racionalidade e um conhecimento de todos os níveis de atenção e das políticas propostas pelo
Ministério da Saúde, visto que a adesão aos programas resulta em financiamento para o município.
Dessa forma, é como se o Ministério da Saúde segurasse a isca e os municípios ficassem tentando
“fisgá-la”. Mesmo quando discordam dessas políticas, os gestores ficam subordinados a elas, pois
há uma indução do governo federal pelo atrativo financeiro.
Além disso, não temos uma cultura de fiscalização, tampouco há transparência na prestação
de contas e nem cobrança da responsabilidade e do compromisso público.
É indiscutível a importância das políticas para que a implementação do SUS seja efetivada,
no entanto, o que se observa é a repetição das leis vigentes no território nacional que ficam
distanciadas do cotidiano. Nesse sentido, pode-se compreender que a existência da lei não garante
a sua efetivação. No cotidiano do trabalho, nem mesmo os profissionais da saúde reconhecem as
diretrizes políticas e, em meio a tantos problemas enfrentados, há uma sobreposição de ações que,
na maioria das vezes, resulta num comportamento imediatista de “apagar fogo”.
72
Por outro lado, há um desconhecimento da população com relação aos seus direitos e, nesse
sentido, o SUS não é visto como um direito conquistado, firmando uma cultura excludente e
assistencialista, na lógica do SUS para “os pobres”.
Concluindo, compreendo que essa infinidade de programas e portarias não tem contribuído,
de forma clara e objetiva, para o estabelecimento de uma política que garanta o direito à saúde, de
forma equitativa.
1.2. A crise na Atenção Básica de Saúde no Brasil
Nesse contexto, sabe-se que a atenção primária é um arranjo assistencial importante para a
qualificação da assistência, para a efetivação do princípio de universalidade e para a organização
da rede de saúde.
No entanto, no Brasil, a implantação da rede de ABS, assim como o SUS em geral, está
acontecendo de maneira bastante heterogênea (CAMPOS et al., 2008). Apesar da ampliação do
acesso, a qualidade e a capacidade resolutiva desses serviços são muito desiguais, visto as
diferenças regionais, as políticas defendidas em cada gestão, a formação dos profissionais de
saúde, dentre outros. Cunha (2010) pressupõe que os desafios reservados à Atenção Básica são
desafios do próprio SUS, de maneira que dificilmente pode-se efetivar os princípios deste Sistema
sem a implantação plena da atenção básica de forma a possibilitar acesso universal deste serviço a
toda população brasileira.
Conill (2008), com base em alguns trabalhos que mostram o impacto do PSF nos
indicadores de saúde, apresenta alguns problemas da atenção básica:
O acesso permanece como um grande nó crítico, com dificuldades na estrutura física e nas equipes, fragilidades da gestão e na organização da rede de serviços. [...] Além disso, aponta problemas que se situam no âmbito da macrorregulação: o escasso financiamento público atualmente vigente, a persistência de segmentação do sistema e a falta de integração dos serviços de atenção básica à rede de serviços. Contudo, é fundamental para a legitimação do SUS e da APS, em especial, uma mudança cultural, visto que essas práticas não têm tradição nas corporações profissionais e nem diante da população. No entanto, apesar da necessidade de elaboração técnica e científica, ou seja de estudos e pesquisas, e da comunicação e divulgação das mudanças, o que se percebe é uma demanda excessiva de informações (muitas vezes sobrecarregando equipes locais) com dificuldades na realização de mudanças (p. 14).
73
Dessa forma, não se pretende discutir a importância da Atenção Básica no escopo das redes
de atenção à saúde, pois compartilhamos esse modelo. Porém, nesse subcapítulo aponta-se uma
breve reflexão sobre as dificuldades encontradas pela atenção básica na sua implementação e
efetividade. Para tanto, com base na experiência profissional da própria pesquisadora, buscou-se
auxílio em autores e estudiosos do assunto para alentar o grande desafio de estruturar a atenção
primária no Brasil.
As dificuldades são diversas, assim como aponta Campos et al. (2008):
[...] apesar da franca expansão da ESF em algumas regiões do país, é importante reconhecer que estamos longe de dispor de uma rede de atenção básica com ampla cobertura e com eficácia adequada. Apesar de a ESF figurar como prioridade no discurso oficial, quando se examinam as ações concretas desenvolvidas para honrar essa suposta prioridade, verifica-se que há financiamento insuficiente, ausência de política de pessoal e de um projeto consistente para formação de especialistas. Além disso, seria preciso que as redes de atenção básica, organizadas segundo outras tradições, fossem reorientadas para as diretrizes acima referenciadas, como as de coordenação, de continuidade do cuidado, de clínica ampliada, dentre outros. Igualmente, deveriam receber apoio e orientação para melhor equalização do processo de incremento do acesso concomitante à qualificação do processo de trabalho. Registre-se essa observação, porque a ESF não se propõe a reorganizar redes de atenção básica existentes antes da vigência daquele programa. Essa realidade é bastante frequente nas regiões Sul e Sudeste do país (p. 144).
E ainda acrescenta: O apoio ao exercício de uma clínica eficaz é igualmente heterogêneo, o mesmo se pode dizer da integração da ABS ao sistema hospitalar e especialidades. Além disso, há problemas sérios com a política de pessoal, desde o sistema precário de contratação até a quase inexistência de oportunidade tanto para a formação especializada quanto para acesso a processos de educação permanente. A maioria absoluta dos médicos, enfermeiros e dentistas não têm formação especializada em saúde da família, ou em saúde coletiva ou para o exercício de uma clínica ampliada de cunho generalista, nem contam tampouco com apoio técnico ou institucional (p. 147).
Na perspectiva de identificarmos as dificuldades organizamos este texto, de forma didática,
dividindo os apontamos em eixos, apenas para facilitar a compreensão e visualização do tema, pois
entendemos que eles se inter-relacionam, misturam-se e influenciam-se. Os eixos propostos aqui
são: Modelo, Gestão, Divulgação/ Conhecimento, Pessoal em Saúde, Avaliação e Financiamento.
74
1- Modelo
A primeira questão está relacionada ao modelo de atenção primária implementado. Existem
diversas formas de organização do SUS e da atenção primária em todo o Brasil, de modo que todo
município tem autonomia e competência para gerir e decidir sobre o modelo e a organização do
sistema de saúde municipal. Isso torna-se um problema, porque não há o desenvolvimento de um
sistema único de saúde, de modo que não possibilita uma compreensão e conhecimento sobre o
funcionamento da rede e, especificamente, da função dos serviços. Cada município tem a sua rede
e os seus serviços de saúde, que podem variar bastante de um município para outro.
Todavia, entre a intenção e o gesto, entre a letra da lei ou portaria e a implementação real da política, sempre ocorrem defasagem e diferenciação. Em virtude disso, observa-se diversidade de modelos implementados nas diferentes experiências de APS no país (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2008, p. 620).
Assim, a dificuldade de reconhecer o caminho a ser percorrido para o atendimento em
saúde e em compreender a função de cada serviço, afeta quem utiliza o sistema, ou seja, os
usuários, assim como os trabalhadores e gestores, inviabilizando um jeito singular de realizar,
formalizar e concretizar o SUS. Ao mesmo tempo em que o Ministério da Saúde formula
programas e os associa ao financiamento, não respeitando as construções singulares, como é o caso
da estratégia Saúde da Família (CAMPOS et al., 2008).
Esta estratégia, embora seja um modelo que difunde uma perspectiva inovadora para a
atenção primária no país, voltada para a família e a comunidade, não deve ser a única alternativa
garantida e financiada pelo Ministério da Saúde. Os municípios que se organizaram de outras
formas, com estratégias bastante interessantes e que, inclusive, ampliam os profissionais do
tradicional Programa Saúde da Família, não conseguem cadastrar suas equipes e, com isso, não
recebem o financiamento.
Apesar dos resultados positivos de algumas das experiências do Saúde da Família, o
sucesso da implementação da estratégia para a grande maioria da população brasileira, dependerá
dos incentivos financeiros federais, assim como da política adequada de recursos humanos, das
políticas indutoras de certos modelos de organização e de iniciativas locais competentes e criativas
para enfrentar a diversidade existente no país (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2008).
Com relação aos usuários, percebe-se uma dificuldade desde o reconhecimento de seus
direitos (inclusive, do direito básico à saúde) quanto da compreensão da rede. É comum os
75
usuários não terem conhecimento sobre a possibilidade de adquirir medicamentos gratuitos nos
centros de saúde, segundo prescrição e indicação do médico do serviço público, assim como não
compreendem o papel da atenção básica ou quando devem procurar atendimento diretamente nos
outros níveis de atenção.
Outra questão, está relacionada ao modelo de saúde compreendido e reproduzido pelos
trabalhadores de saúde dentro dos serviços. Ainda existe uma dicotomia na compreensão do papel
da atenção primária e no próprio objeto de trabalho do profissional de saúde. Carvalho; Cunha
(2006) visualizam que a maneira como o profissional de saúde entende seu objeto de trabalho é
fator determinante para a sua atuação profissional, definindo, a partir daí, o que é problema de
saúde. Para os autores, a dicotomia do profissional quanto à compreensão de seu objeto de trabalho
divide-se entre a vida cotidiana (considerando, inclusive, o seu sofrimento) e o adoecimento (nos
seus aspectos biológicos). Sendo assim, há quem defenda que a sua atuação deve estar direcionada
exclusivamente no corpo doente. Porém, outros se permitem atuar ampliando a sua visão e o seu
objeto de trabalho, ou seja, compreendendo que a doença tem também uma causa social.
Os autores apontam que um dos principais empecilhos ao desenvolvimento da Reforma
Sanitária Brasileira e do SUS tem sido o insuficiente enfrentamento das temáticas da mudança do
processo de trabalho e da participação dos trabalhadores de saúde na mudança setorial. A
instauração de uma “nova ordem” que estimule o compromisso das equipes com a produção de
saúde, o que significa uma mudança na relação dos trabalhadores com seu objeto de trabalho, é que
pode garantir o direito efetivo à saúde e a efetivação do SUS.
Nesse sentido, o objeto de trabalho tido como a doença, reafirma o modelo organicista e
biomédico, que organiza todo o trabalho de saúde centrado em atendimento às patologias, na linha
de pronto-atendimento (estilo queixa-conduta) e programas verticais no combate a endemias e
epidemias, como imunização, educação e programas para controle de grupos com risco
epidemiológico alto. A preocupação é com a cura e não com o indivíduo que não é visto na
integralidade, de forma que quase se desconsidera a responsabilidade pelo atendimento clínico
(CAMPOS, 2008). Nessa mesma linha de pensamento, os centros de saúde não são vistos como
serviços integrados a um sistema nacional e que funciona em rede. Com essa conduta, corre-se o
risco de reforçar um modo de atendimento baseado em conceitos biomédicos tradicionais e na
medicalização excessiva, inclusive na medicalização do sofrimento.
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Esta visão, bastante tradicional e comum nos serviços de saúde, está distante dos
apontamentos nos documentos e portarias ministeriais no Brasil, que ampliam o conceito de saúde
e tomam como objeto de trabalho em saúde o indivíduo e a comunidade em seu contexto social,
não desconsiderando a doença, mas ampliando a compreensão para um indivíduo doente e
considerando as diversas manifestações de doença.
As transformações sociais que marcam a atualidade têm produzido novas demandas em
saúde e diferentes formas de relação com os processos de saúde e doença. Nesse contexto,
problemas como desemprego, relacionamento familiar, condições de habitação nos grandes
conglomerados urbanos, dentre outros fenômenos sociais, relacionam-se de maneira complexa com
as doenças agudas e crônicas, as epidemias, a dependência química, os problemas de saúde mental,
entre outros. Dessa forma, há um descompasso entre as demandas sociais e as práticas ofertadas.
Assim, podemos dizer que, conforme Massuda (2008):
As práticas clínico-sanitárias, entretanto, têm-se demonstrado insuficientes para lidar com o novo perfil de demandas. Existem evidências de que os profissionais de saúde, de maneira geral, encontram dificuldades para lidar com a necessidade de mudança nos modos de vida das pessoas, seja para o cuidado de doenças crônico-degenerativas, seja para prevenção de epidemias, ou para garantir segurança sanitária de produtos e serviços oferecidos à população. Verifica-se, ainda, que o modo de produção tradicional das ações em saúde apresenta limitações para compreender a multiplicidade de fatores envolvidos na produção do processo saúde e doença e consequentemente formular propostas terapêuticas eficazes e eficientes (p. 181).
No campo da Saúde Coletiva há um certo consenso de que atualmente vivenciamos um
novo paradigma na saúde, visto que os determinantes saúde e doença, além dos componentes
orgânicos e ambientais já conhecidos, têm um forte componente subjetivo e social. Deste modo, o
deslocamento do eixo de atenção às doenças para o eixo da produção da saúde aumenta a
influência e participação dos trabalhadores sobre o campo da vida em geral e traz profundas
modificações em seus processos de trabalho.
O que os usuários esperam dos trabalhadores em saúde se modificou substantivamente nos últimos anos. Se em períodos anteriores a sociedade esperava dos trabalhadores da saúde apenas que tratassem de suas doenças estabelecidas, hoje este quadro já é outro (PINTO; COELHO, 2008, p. 324).
77
De fato, os usuários procuram os serviços de saúde com outras queixas e por problemas
diversos, que muitas vezes dizem respeito ao contexto social, mas os profissionais ainda têm muita
dificuldade em lidar, acolher e atender essas queixas. As necessidades de saúde contemporâneas
são um desafio para a produção de práticas em saúde, constituindo-se numa tarefa a ser enfrentada
por gestores, trabalhadores e usuários, com a concretização de políticas de saúde, que muitas vezes
demandam a interlocução entre diversas áreas.
O papel da atenção primária, segundo Starfield (2002), se tornará mais crucial com o crescente reconhecimento da interação entre biologia e o ambiente social e físico. O desafio da atenção primária é entender e interpretar esta interação e ajudar os indivíduos a modificar suas circunstâncias de vida para maximizar seu potencial de saúde e realização pessoal. Conforme o papel da Medicina muda de uma meta de cura para a prevenção de enfermidades, e daí para a proteção e promoção da saúde, sua contribuição para a saúde assumirá uma importância cada vez maior. Como o único ramo da Medicina a enfocar basicamente as pessoas, e não suas doenças, a atenção primária é fundamental no avanço da ciência e da arte dos serviços de saúde na sociedade moderna (p. 697-698).
No entanto, há uma tendência tanto das equipes de saúde, quanto da comunidade, em
repetir o velho modelo e uma dificuldade com relação à mudança de paradigma, visto que, apesar
da teoria e da lei, foram poucas as mudanças efetivas na prática de trabalho, de maneira que isso
ficou a cargo dos próprios profissionais, sendo necessários esforços continuados e sistemáticos
para reformular esse tipo de prática e de saber. Apesar da mudança de cenário, a ABS tende, na
prática, a reproduzir o modelo biomédico dominante (CAMPOS; GUERRERO, 2008).
De qualquer modo, nos interessa chamar a atenção para o fato de que diretrizes ou características gerais das políticas não são suficientes para determinar esse estilo de práticas e de gestão do cuidado. Ou seja, recapitulando: tanto as diretrizes gerais da política para ABS podem não estar adequadas, quanto mesmo que estivessem nada indicaria que seriam suficientes, porque também são dependentes de um saber fazer, de um modo não tradicional de fazer clínica e gestão (p. 142-143).
Vale dizer que apesar da estratégia da Saúde da Família ter como base a equipe
multiprofissional, na prática observamos mais um ajuntamento de profissionais, que pouco
interage entre si, assim como com a população adscrita e com o território (FURLAN; AMARAL,
2008. p. 28). Além disso, para a grande parte dos municípios os gestores seguem a proposta do
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Ministério da Saúde, de composição da equipe mínima, o que significa chamar de equipe
multiprofissional médicos, equipe de enfermagem, odontologia e agentes comunitários de saúde.
Essa organização “multiprofissional” acrescentou apenas o Agente Comunitário de Saúde (ACS)
no novo modelo, visto que os tradicionais Centros de Saúde (pré-SUS) já contavam com uma
organização semelhante de trabalhadores.
Uma terceira questão refere-se ao fato de que historicamente, desenvolveu-se no Brasil uma
tradição de restringir as ações da atenção básica às ações de promoção e prevenção, opondo-se às
ações clínicas dos profissionais da saúde. Antes do SUS, não cabia ao Estado possibilitar acesso à
clínica individual, mas a sua responsabilidade estava voltada, prioritariamente, para as questões
sanitárias relacionadas à prevenção de epidemias.
Assim, ficou configurado este modelo de saúde, no qual as práticas de saúde coletiva, em
geral, trabalham de forma limitada ao perfil epidemiológico, sanitário e ambiental de um
determinado território, incorporando pouco o contexto de produção do processo saúde e doença.
Isso também pode justificar as dificuldades encontradas para a organização de ações coletivas
intersetoriais, a estimulação da participação comunitária, assim como a aplicação de normas
sanitárias em contextos singulares (MASSUDA, 2008).
2- Gestão
Com relação à gestão, podemos pensá-la enquanto gestão da saúde e gestão do trabalho ou
gestão de pessoal.
Cunha (2010) aponta que o desafio da gestão na atenção está relacionado às seguintes
questões:
A) Ocupação inadequada de cargos gerenciais: avalia que a ABS do SUS não tem um
projeto de qualificação gerencial, de maneira que os cargos gerenciais são, muitas vezes, ocupados
por pessoas indicadas sem critério técnico, sem contar quando isso não se dá de forma a acomodar
a base partidária dos governos. Essa questão contribui para a rotatividade dos profissionais, assim
como para o desgaste e frustração dos trabalhadores. Indica que poucos municípios conseguiram
avançar no sentido de estabelecer um setor responsável pela realização de processos seletivos
internos, com provas e entrevistas, que selecionam os gestores entre os próprios trabalhadores de
saúde e com a participação desses no processo de escolha.
79
A implantação destas e outras propostas em direção à qualificação gerencial e democratização organizacional, traria a possibilidade dos trabalhadores se tornarem atores mais fortes na construção do SUS, diminuiria um pouco a rotatividade de profissionais e diminuiria a vulnerabilidade dos serviços à sazonalidade eleitoral (CUNHA, 2010, p. 37).
Para este autor, a aposta na construção de espaços coletivos democráticos seria um enorme
avanço em relação às indicações arbitrárias e circunstanciais, aumentando a legitimidade dos
gestores e favorecendo um processo rotineiro de avaliação a partir de critérios pactuados com a
equipe desde o momento da escolha.
B) Modelo gerencial taylorista: é comum observarmos um modelo gerencial baseado no
controle das tarefas, programas e protocolos, com tendência a ser padronizante e quantitativo, tal
qual o modelo taylorista. No entanto, esse funcionamento submisso e acrítico é perigoso tanto para
os usuários quanto para os trabalhadores que, frente a um “trabalho alienado” podem vir a
desresponsabilizar-se pelas decisões das quais não participam. O trabalho em saúde e,
principalmente, na Atenção Básica, exige uma autonomia relativa dos profissionais, visto que o
compromisso em ser resolutivo para a maior parte dos problemas de saúde implica em abordagem
específica para cada população. Nesse sentido, é importante incorporar técnicas gerenciais mais
participativas e singulares. Uma das possibilidades é o gestor desempenhar a função de apoiador.
Esta atividade gerencial inclui suporte à grupalidade das equipes, contribuição para o aprendizado da equipe no manejo de conflitos, estabelecimento de regras claras para o funcionamento das reuniões de equipe e outros espaços coletivos de decisão, mediação de olhares externos ao grupo (indicadores de avaliação, outros atores sociais, casos analisadores, eventos sentinela etc) (CUNHA, 2010, p. 38).
Além disso, essa função deve possibilitar e estimular que as equipes possam refletir a
analisar suas práticas, aumentando, assim, a capacidade de intervenção clínica.
C) Valorização do profissional do SUS: sabe-se que diante das mesmas condições
desfavoráveis, equipes e serviços podem apresentar desempenhos bastante distintos. Mas a gestão
do SUS, não só na ABS, tem grande dificuldade de valorizar os serviços e os trabalhadores mais
dedicados e eficazes, de maneira a mostrar o “SUS que dá certo”. O resultado desta baixa
capacidade gerencial é uma valorização dos profissionais que têm pouco compromisso com seus
usuários ou muita dificuldade técnica, ou seja, a ausência de políticas que permitam valorizar
profissionais e serviços mais qualificados é na verdade, uma ação punitiva. Um exemplo clássico
80
está na decisão sobre liberação de profissionais para capacitação e/ou cursos dentro da carga
horária do trabalho. É muito comum que os profissionais que fazem menos falta ao serviço
recebam essa liberação, enquanto que os que apresentam uma maior qualidade no trabalho são
punidos indiretamente por serem considerados indispensáveis ao serviço. Essa queixa é muito
comum, principalmente na Atenção Básica. Dessa forma, o autor indica que é importante qualificar
a gestão para construir indicadores singulares de avaliação em conjunto com a equipe e, para cada
equipe, em cada momento.
D) A participação dos usuários: não é incomum que diante dos limites ainda apresentados
do SUS, como sobrecarga de trabalho e os diversos problemas enfrentados na assistência, usuários
e trabalhadores/gestores encontrem-se numa posição antagônica, de modo que, muitas vezes os
trabalhadores avaliam as reclamações dos usuários como mais uma sobrecarga ao seu trabalho.
Alguns setores do SUS conseguem fazer este movimento político com relativo sucesso (por exemplo, o Programa de DST-AIDS e a Luta Anti-Manicomial) e produzem, além de serviços melhores, um saudável “efeito colateral” terapêutico para o usuário, que afirma seus direitos, sua diferença, contribuindo não só com a qualidade do serviço de saúde, mas também com transformações culturais e políticas na sociedade (CUNHA, 2010, p. 41).
De fato, exercitar a habilidade política dos usuários pode ser uma grande possibilidade de
manter e transformar um sistema público. Isto é, ao invés do desejo de que o usuário não reclame,
a equipe deve possibilitar a indignação e a reclamação, aprendendo a compartilhar as dificuldades,
sem buscar uma aceitação ou compreensão passiva do usuário. Trata-se de buscar a construção de
cidadania e demonstrar aos usuários que, além deles, os trabalhadores são os maiores interessados
na qualidade do serviço.
E) Fragmentação da atenção e trabalho isolado: é comum ocorrer uma fragmentação da
atenção, um isolamento do trabalho e uma padronização de ações por patologia ao invés dos
profissionais terem ações coordenadas e resolutivas.
Cunha (2010) aposta nas propostas de Equipe de Referência e de Apoio Matricial para
superar este desafio, visto que possibilitam a construção de uma lógica de comunicação e
responsabilização entre a Atenção Básica e outros serviços de saúde, compartilhando saberes,
cuidados e afetos. É fundamental a criação de espaços de encontro e de diálogo entre a ABS e
81
outros serviços da rede, na tentativa de superar a lógica da relação pautada no encaminhamento do
paciente ou na referência e contra-referência.
Além desses eixos apontados pelo autor, consideramos outras questões que reforçam as
dificuldades da Gestão no SUS.
Com base em Dejours, Pinto; Coelho (2008) reafirmam a especificidade do trabalho em
saúde, justificando que a interação entre trabalhador e usuário é sempre um encontro singular.
Nessa situação os estatutos de rotinas, diretrizes e normas são bem diversos dos estatutos
observados em outros campos da atividade humana, pois o grau de liberdade e, consequentemente,
de responsabilidade do trabalhador da saúde é, com muita frequência, maior do que em outros
campos. Essa autonomia, no entanto, não é desvinculada da gestão, da organização e dos interesses
dos usuários.
Sabe-se da necessidade de reorganização do trabalho em saúde, porém, do ponto de vista
dos gestores, as sugestões que predominam dizem respeito à padronização do trabalho clínico, seja
através de protocolos ou acentuando-se a gestão com base em resultados e metas. Essas medidas,
no entanto, podem ser consideradas como uma forma de controlar de fora o trabalho em saúde.
Há que se considerar, ainda, os problemas relacionados à infraestrutura e a escassez de
recursos materiais. Nesse contexto, há um descuido dos três níveis de gestão em relação à
produção estética do trabalho, reforçando a ideia da saúde seletiva, ou seja, é o sucateamento de
recursos destinado à uma população sem privilégios.
O problema da gestão de pessoal é discutido em todas as Conferências de Saúde, desde o
ano de 1960. No entanto, ainda não há uma política efetiva de gestão de pessoas.
Do ponto de vista dos trabalhadores, os pedidos permeiam a discussão sobre a redução da
jornada de trabalho, da questão salarial, da segurança e do ambiente. Assim, raramente são
apresentadas soluções para que a equipe possa singularizar a atenção, não promovendo a discussão
e reformulação do próprio trabalho e das atividades desenvolvidas pelos trabalhadores (PINTO;
COELHO, 2008).
3- Divulgação/ conhecimento
Uma das dificuldades relacionadas à não efetivação do SUS diz respeito à divulgação deste
sistema e a forma como é compreendido pela maioria da população. Assim, a questão da
divulgação refere-se à maneira como o governo e profissionais da saúde informam à população, de
82
forma direta ou indireta, as ações e serviços oferecidos. Desde a implantação do SUS não se
observa uma defesa considerável do sistema público de saúde, prevalecendo uma imagem de que o
“SUS é para os pobres”, de que o serviço público é de baixa qualidade, ineficaz e pouco confiável.
Inclusive na mídia, as divulgações giram em torno das irresponsabilidades profissionais, da falta de
recursos tecnológicos e materiais, de situações de negligência e pouco potencial técnico. Os
profissionais do SUS também são vistos como menos qualificados do que os prestadores de
serviços privados.
Nota-se uma falta de identidade do sistema e dos serviços que, muitas vezes, sequer
apresentam uma identificação que remeta à noção de serviço público, vinculado ao governo e de
direito de todos os usuários. O próprio símbolo (logotipo) do SUS quase não aparece no interior e
fachada das unidades. Os avanços do SUS, como o aumento da cobertura, o programa de
transplantes, as próprias práticas integrativas ofertadas, dificilmente são comunicados ou
apresentados à população. No Brasil, viemos construindo o SUS de uma forma muito lenta e todos
esses aspectos dificultam a sua efetiva implantação, causando um problema de identidade e
identificação com o sistema.
Aliado a isso, a lógica dominante é uma lógica de consumo, que valoriza o pagamento por
ações, privilegiando serviços que tenham um custo mais elevado. Ou seja, a clínica dominante,
com seu sistema baseado no livre acesso a especialistas, hospitais e exames, valoriza a
fragmentação da atenção e a qualidade passa a ser avaliada de acordo com o número de
diagnósticos rotulados, o número de exames solicitados e de encaminhamentos realizados. Essa é a
lógica de consumo absorvida pela sociedade que, melhor do que a ABS, adequa-se muito mais à
lógica de mercado, pressupondo a passividade dos usuários e um forte reducionismo biologicista
que se desresponsabiliza pela iatrogenia, pela atenção à saúde e pela prevenção (CUNHA, 2010).
Além disso, observa-se a tendência de custos crescentes e a dificuldade de abordar as
pessoas de forma global.
É necessário fazer esse esclarecimento à sociedade, pois, retomar a superioridade da atenção básica significa retomar o embate político entre público e privado. Esta poderosa mistura de interesses econômicos, lógica de consumo e desejos de panaceias milagrosas torna o debate em torno da atenção básica e sua abordagem generalista, um enfrentamento político delicado, apesar de fartamente amparado em estudos científicos, principalmente porque na prática, a população tende a atribuir maior “qualidade” ao maior valor de troca (procedimentos e profissionais
83
que custam mais) e grande valor de troca ao ‘direito’ de não participar da cura, mas sim ‘comprar’ a sua cura. [...] O enfrentamento em direção a construção da Atenção Básica requer tanto uma forte argumentação sustentada por diversos atores políticos, quanto uma ação efetiva da atenção básica existente atualmente, possibilitando efeito demonstração (CUNHA, 2010, p. 33).
Essa comunicação com a sociedade não é apenas de responsabilidade da gestão, mas
também compete aos trabalhadores fazerem esses enfrentamentos, uma vez que assumem uma
posição histórica do pouco conhecimento e da não apropriação sobre os seus direitos sociais.
Além disso, a história da saúde pública relembra as ações de maior abrangência
populacional e menor complexidade, como as campanhas de vacinação no início do século XX e as
ações de prevenção e promoção da saúde ofertadas em centros de saúde durante a década de 70.
Com isso, no ideário da população, o serviço ofertado, assim como os profissionais que prestam
esse serviço, na atenção básica são tidos como menos técnicos e menos qualificados.
Identificamos que, muitas vezes, a atenção básica, no imaginário de algumas pessoas, ainda remete à noção de menor complexidade, uma vez que se imagina lidar com problemas simples, os quais requereriam tecnologias menos avançadas e qualificação técnica simplificada. Partindo desse pressuposto, tende-se a desvalorizar o trabalho na ABS, o profissional da área costuma ser desvalorizado no mercado de trabalho do ponto de vista do status, em especial no caso da categoria médica. Sem dúvida que isso ocorre, de um lado, por existirem muitos interesses corporativos, econômicos por trás dessa diminuição da função da atenção básica. Entretanto, de outro lado, compreendemos que o atual modo de organização do processo de trabalho na ABS ainda é, em determinadas situações, como ainda acontece no Brasil, um tanto confuso para o usuário como para o restante do sistema, o que não favorece a reversão de semelhante entendimento (CAMPOS et al, 2008, p. 133).
As diferentes formas de organização e o próprio processo de trabalho na atenção básica,
muitas vezes com uma prática profissional voltada à cura ou às ações de menor complexidade, não
favorecem a compreensão por parte da população sobre a missão e o funcionamento dos serviços e
a atuação em rede. A falta de contato com os usuários, a impossibilidade ou inexistência de diálogo
por parte dos profissionais com a população e a frágil participação social, comprometem a
vinculação com o serviço.
Ainda hoje, percebe-se uma cultura da equipe de, na tentativa de organização do serviço e
do atendimento da demanda, utilizar a estratégia exclusiva do agendamento das consultas,
84
compreendendo que o acolhimento dos casos agudos é papel prioritário dos Pronto-Socorros e dos
Pronto-Atendimentos. Nessa perspectiva há uma desvalorização da clínica individual e coletiva;
Até mesmo realizar uma pequena sutura, ou outra pequena cirurgia, não é somente um conforto, que evita o estresse e o tempo de locomoção para um serviço de emergência, mas também é uma possibilidade de reforçar um vínculo terapêutico (muitas vezes permitindo encontros com usuários saudáveis que utilizam menos o serviço). Ou seja, clínica, promoção e prevenção se misturam na prática dos profissionais de Atenção Básica. Porque os indivíduos que adentram um serviço de saúde trazem suas histórias, suas relações familiares, de trabalho, as várias instituições e grupos de que participam. Uma pessoa atendida pontualmente por um profissional de saúde na atenção básica segue vivendo imersa em uma teia de forças cotidianas, que tanto podem contribuir quanto atrapalhar (muitas vezes ao mesmo tempo) o enfrentamento de problemas de saúde (CUNHA, 2010, p. 34).
Apesar de compreender a dificuldade da Atenção Básica em lidar com a demanda
espontânea, quando o atendimento emergencial é realizado por este nível de atenção, há uma
diferença fundamental no tratamento, uma vez que a base desta ação é o vínculo que o profissional
de saúde estabelece ao longo do tempo naquela comunidade. Assim, a resolução do problema não
se dá somente pelo curativo ou outro procedimento, mas reforça a identificação com o lugar do
tratamento em saúde.
É preciso considerar, ainda, que a qualidade do serviço de saúde está diretamente
relacionada ao desempenho da equipe profissional. Todavia, como é possível que a equipe se
responsabilize pelas ações de saúde e se comprometa com a qualidade do serviço, frente ao
sucateamento e à precarização dos vínculos de trabalho?
De acordo com Fleury (2011), o movimento sanitário foi encurralado;
como gestor da precariedade de um sistema subfinanciado e sucateado, com crescente precarização das relações salariais e de trabalho. [...] A precariedade das condições de trabalho e de retribuição aos profissionais de saúde gerou um distanciamento destes em relação ao projeto do SUS e a banalização da precariedade e das injustiças sociais, expressas na permanente desculpa de que “serviço público é assim mesmo”. O abandono da busca da excelência no setor público, a não ser naquelas áreas e serviços nos quais ele é também o provedor para as classes mais altas, é talvez a maior derrota cultural que sofremos. Não há hegemonia sem construção de um sistema de valores compartilhados, e hoje o SUS está cada vez mais distante dos desejos da população (p. 4).
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Nesse sentido, a divulgação por parte da equipe de profissionais, está explícita ou
implicitamente comprometida, pois a defesa do SUS tem ficado exclusivamente por conta dos
profissionais da rede que, muitas vezes, lutam contra seus próprios gestores tanto para solicitar
recursos e cobrar melhorias, quanto para contestar a privatização. Os trabalhadores, muitas vezes,
não conseguem dar respostas efetivas à população e acabam sendo pressionados, desvalorizados e
incompreendidos, visto que a falha está nas relações que se estabelecem entre a gestão e a ponta,
para a organização do sistema.
Por outro lado, o usuário que encontra um serviço demorado, de má qualidade e com pouca
resolutividade para suas demandas, tem uma experiência real com este sistema e, por isso,
desacredita no SUS. De fato, temos assistido a uma sobrecarga de sofrimento por parte do
trabalhador e do usuário que culminam na não defesa do Sistema Público de Saúde no Brasil.
4- Pessoal em Saúde
O objeto de trabalho na área da saúde é de grande complexidade e as situações de trabalho
são difíceis de padronizar, pois o processo de cuidar envolve sempre um encontro singular entre
sujeitos e usuários com necessidades complexas e variáveis. No entanto, nas instituições de saúde,
é o trabalhador que, no coletivo e na prática cotidiana, desenvolve e sustenta um projeto de ação,
bancando o serviço, as ofertas de saúde e inclusive o Sistema Único de Saúde.
Recursos humanos (RH) pode ser um termo que sugere uma frieza ligada ao mundo
capitalista, podendo-se estabelecer uma comparação genérica a qualquer outro tipo de recurso,
como por exemplo, recurso material ou financeiro. Nesse contexto, os contratados são números
ausentes de subjetividade e comparados a algum material-objeto.
Por isso, nesta pesquisa, optamos por trabalhar com o termo Pessoal em Saúde (Barbosa,
2010) para definir os profissionais que desenvolvem ações em saúde e que, de maneira geral são
sujeitos singulares e subjetivos. Isso significa que o trabalho em saúde é complexo, dificilmente
padronizável e envolve relações e subjetividade. Sendo assim, é um campo que requer
profissionais criativos, com habilidade e competência para enfrentar situações adversas, para
reinventar o cotidiano e estar disponível para os encontros.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE (2005) mostra que o Brasil possui 77
mil estabelecimentos de saúde, sendo 45.089 públicos e 31.915 privados, e mais de 2 milhões e
quinhentos mil empregos de saúde (1.448.749 públicos e 1.117.945 privados). Desse contingente
86
de trabalhadores, 751.730 são de nível técnico e auxiliar, e 870.361 são profissionais de nível
universitário. A região Sudoeste, que concentra 43% da população brasileira, dispõe de quase a
metade (46,7%) dos empregos existentes no país, sendo a concentração maior em três estados: São
Paulo (603.244 empregos), Minas Gerais (276.139 empregos) e Rio de Janeiro (270.898
empregos). Enquanto isso, toda a região Norte que apresenta 7,9% da população do país, concentra
6,5% dos postos de trabalho.
Este estudo comprova que além da participação mais expressiva de médicos e enfermeiros
no sistema de saúde, os demais profissionais (nutricionistas, psicólogos, odontólogos,
fisioterapeutas e, mais recentemente, farmacêuticos) apresentam participações crescentemente
maiores. O número de Agentes Comunitários de Saúde (computado na pesquisa como profissional
de nível elementar) também cresceu exponencialmente de 1990 a 2005, chegando a 191 mil
trabalhadores inseridos na equipe (MACHADO, 2008).
As categorias profissionais de saúde no país somam 14 profissões de nível universitário:
medicina, enfermagem, odontologia, fisioterapia, terapia ocupacional, psicologia, fonoaudiologia,
farmácia, veterinária, educação física, assistência social, ciências biológicas, biomedicina e
nutrição (CAMPOS F.; AGUIAR; BELISÁRIO, 2008).
Considerando as dificuldades enfrentadas pelo Pessoal em Saúde, levantamos
hipoteticamente quatro questões: número de profissionais, formação profissional, fatores ligados à
Carreira no SUS e sofrimento no trabalho.
4.1. Número de profissionais
É bastante comum percebermos nos serviços de saúde um número reduzido de
profissionais. Várias situações são observadas: inexistência de cargos, morosidade na reposição do
cargo, dificuldade de fixação dos profissionais, sobrecarga de trabalho à equipe do serviço,
necessidade de mudança do processo de trabalho, demora do atendimento prestado à população,
interrupção e ausência de atividades ofertadas e dificuldade de formação de vínculo entre
profissionais, usuários e comunidade.
Uma das dificuldades com relação à escassez de profissionais está relacionada à forma de
contrato de trabalho na saúde, possibilitando uma diversidade no modelo de contratação, desde
estatutários e celetistas, a profissionais terceirizados e prestação temporária de serviços.
Essas diversas formas de contratação não garantem nem as necessidades do trabalhador e
nem facilitam a organização do serviço. Se por um lado alguns tipos de contrato podem parecer
87
mais interessantes do ponto de vista financeiro, por outro, não possibilitam estabilidade, nem
tampouco a agilidade na reposição, podendo ainda não garantir os direitos trabalhistas.
A Lei de Responsabilidade Fiscal apresenta uma regulação dos gastos públicos para
contratação de pessoal, visto que impõe um teto máximo permitido. Além desse engessamento na
possibilidade de criação de novos cargos e de regularização do número de profissionais frente à
demanda, sabe-se da dificuldade e morosidade da seleção por concurso público que depende de
autorização da área econômica. Esta área tem a competência de regular os limites legais para gasto
com pessoal, critérios próprios para alocação de recursos, e que nem sempre define como relevante
o setor saúde (BARBOSA, 2010).
Nesse sentido, não há uma garantia efetiva para a reposição dos profissionais da saúde, uma
vez que os serviços estão sempre em defasagem frente às aposentadorias, afastamentos, demissões,
etc. Deste modo, os gerentes dos serviços são pressionados pelas equipes e pela comunidade, da
mesma forma em que os profissionais são cobrados a resolver os problemas dos usuários e do
território. Assim, ficam todos engessados e a única alternativa é o remanejamento dos profissionais
e a mudança nos processos de trabalho, com diminuição de ofertas e de qualidade nas ações e nos
programas planejados.
Outra questão está relacionada à dificuldade de fixação de profissionais e a alta rotatividade
destes nos serviços, principalmente a categoria médica. Campos et al. (2008) avaliam que na
atenção básica tanto é difícil a presença do profissional médico, quanto sua responsabilização pelo
trabalho.
No Brasil é ainda difícil gerenciar o trabalho médico em Unidades Básicas ditas tradicionais, muito frequentemente com presença rarefeita de médicos, tanto proporcionalmente à população quanto em função do pequeno envolvimento dele, até mesmo com o costume do não-cumprimento da jornada de trabalho contratada ( p 135).
Para Cunha (2010), o Brasil não possui uma política de Estado que garanta a qualidade e a
quantidade de profissionais necessários, conforme critérios epidemiológicos e os princípios do
SUS. Nesse sentido, os municípios e os serviços da rede disputam os profissionais qualificados,
dentro de uma “lógica de mercado” e, inclusive com o setor privado. Com isso, os municípios
pequenos ficam em desvantagem e com poucos recursos para não perder a concorrência para
municípios maiores e mais ricos.
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Uma solução apontada pelo autor seria a de aumentar o número de profissionais disponíveis
no mercado. Com base na hierarquização e na distribuição epidemiológica dos agravos à saúde,
seria necessário que a maior parte dos profissionais médicos estivesse trabalhando na atenção
primária. No entanto, no Brasil a menor parte das vagas de residência médica é destinada a
especialistas em atenção básica e a maior parte é destinada para residências médicas
predominantemente hospitalares. Além da questão mercadológica de consumo e da desvalorização
do profissional da atenção primária com relação aos especialistas, há que se destacar a ausência do
papel do Estado em regular e definir a quantidade de especialistas e a proporção entre eles, as áreas
prioritárias e a quantidade de vagas, assim como acontece em alguns países que já dispõem de uma
tradição no setor público de saúde, como é o caso do Canadá (CUNHA, 2010).
Machado (2008) alerta sobre o perigoso desequilíbrio entre a oferta e a demanda de
profissionais e a falta de políticas adequadas da gestão do trabalho, que são decorrentes da política
de desregulação da formação de recursos humanos para o SUS, implementada nos anos 90. Assim,
entende que este fator,
causou a precarização dos vínculos empregatícios no SUS e, em muitos casos, o ‘desabastecimento’ de profissionais especializados (médicos, odontólogos, técnicos de enfermagem e técnicos em laboratório, por exemplo) nas unidades de saúde do SUS (p. 327).
A autora aponta como problemas estruturais do mercado de trabalho em saúde as
desigualdades de ofertas para a formação profissional na área da saúde, tanto quantitativas (por
exemplo, as concentrações regionais) quanto qualitativas, como a proliferação desordenada de
cursos em determinadas áreas de formação, práticas pedagógicas excludentes de uma visão de
integralidade e trabalho em equipe. Outro problema apresentado diz respeito à intensificação e um
certo privilégio de modalidades de contratação sem amparo legal no SUS, gerando um alto nível de
precarização em todo o país. Além do fato da velocidade e qualidade das mudanças do sistema
estarem à frente da precária estrutura e da capacidade gestora do setor educativo e da prestação de
serviços da área da saúde.
Tendo como referência o debate apontado pelos autores supracitados, avaliamos que a falta
de políticas adequadas para gestão de pessoas no SUS, incorre na precarização e na dificuldade de
organização do trabalho, firmando uma continuidade do engessamento do sistema.
89
4.2. Formação Profissional
Na saúde, os profissionais são a base para a viabilização e implementação das ações e
serviços disponíveis para a população, de maneira que a atuação profissional é essencial no
atendimento dos usuários e está relacionada à qualidade dos serviços prestados, não sendo passível
de substituição pela utilização dos avanços tecnológicos e da alta tecnologia (CAMPOS F.;
AGUIAR; BELISÁRIO, 2008).
A formação de profissionais de saúde é um processo de essencial importância no desenvolvimento e na manutenção de um sistema público de saúde. Essa importância reside no fato de o trabalho em saúde se basear, necessariamente, no elemento humano – ou seja, na sua capacidade de agir, refletir, colocar-se no lugar das pessoas que recebem seus cuidados e entender os determinantes do processo saúde-doença em sua dinamicidade e complexidade (p. 1011).
Nesse sentido, é fundamental que os profissionais tenham uma formação voltada para o
SUS e, prioritariamente, para a atenção primária. No entanto, encontramos várias dificuldades
relacionadas à formação em saúde.
A primeira delas diz respeito à tendência no mundo contemporâneo industrializado para a
fragmentação e a especialização, ou seja, a tradição da formação de especialistas e cursos de
graduação com formação restrita ao modelo biomédico. No Brasil, não há uma tradição na
formação de generalistas nas escolas de medicina e o ensino na área da saúde, não só na medicina,
mas em praticamente todas as profissões nessa área, ainda é profundamente influenciado pelo
modelo flexneriano (CAMPOS F.; AGUIAR; BELISÁRIO, 2008). Além disso, os profissionais da
atenção primária e, entre eles, os generalistas, têm um baixo reconhecimento por parte dos médicos
especialistas. Um exemplo disso é o fato de que a Medicina de Família e da Comunidade somente
foi reconhecida como especialidade pelo Conselho Federal de Medicina no ano de 2002
(GIOVANELLA; MENDONÇA, 2008).
Campos (2006) considera como um obstáculo estrutural à mudança do modelo de atenção
do SUS o fato de grande parte dos cursos de graduação da área da saúde terem uma formação
restrita ao paradigma biomédico, que coloca a doença como fenômeno estritamente biológico.
Muitas vezes, os conceitos de singularidade e subjetividade, assim como os da Saúde Coletiva, são
vistos como antagônicos e incompatíveis à clínica e desvinculados da prática. Outro problema é
que os alunos não são formados para trabalhar num serviço público hierarquizado, mas sua
90
formação enfatiza a especialidade e o hospital, os laboratórios de apoio ao hospital e/ou o
consultório particular. Nesse sentido, considera que o SUS avançou mais rápido do que a reforma
do ensino.
Houve uma subestimação do papel dos cursos regulares, tanto de graduação quanto de especialização. Em nome de uma educação na vida e no trabalho, que é importante, mas complementar, terminamos avançando pouco na reconstrução e na ampliação de projetos para formação de pessoal para o SUS (p. 53).
Para Starfield (2002) os incentivos que permeiam a especialização giram em torno da
possibilidade de adquirir maior prestígio e melhor renda. A atenção básica é pouco valorizada,
tanto pelos profissionais da saúde, principalmente pela categoria médica, quanto pela comunidade
que vê no especialista uma referência de maior conhecimento e capacidade para resolver o seu
problema. Essa situação é a herança cultural que nós carregamos do modelo flexneriano.
Todavia, a atenção básica exige uma formação diferenciada, com necessidade de
compreensão ampliada do conceito saúde-doença, compreensão da importância de conhecer e
reconhecer o território onde se atua, disponibilidade para vincular-se à equipe e à população, assim
como disposição para enfrentar desafios que vão além da saúde e, portanto, exigem contato com
outros serviços e instituições. O risco de existirem especialistas na atenção básica é que, além de
poderem apresentar dificuldades nos quesitos anteriores, tendem a superestimar a probabilidade de
enfermidades sérias em populações não examinadas, podendo submeter os indivíduos a exames,
encaminhamentos e procedimentos desnecessários. Satrfield (2002) propõe que “a atenção
primária deveria ser oferecida por indivíduos treinados para atenção primária em estabelecimentos
de atenção primária e não por aqueles treinados em centros médicos terciários” (p. 137).
De fato, há uma dificuldade para a formação e capacitação de profissionais para o SUS. No
entanto, há que se destacar alguns programas lançados pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério
da Educação-MEC, com objetivo de qualificar a formação profissional, como é o caso do
Programa da Residência Multiprofissional em Saúde, criado no ano de 2005. É inegável a
importância deste Programa como espaço privilegiado para a formação dos profissionais da saúde,
inclusive porque gerou micro rupturas na política hegemônica da formação superior em saúde, na
modalidade da residência, que até então, era de exclusividade da área médica, passando a
contemplar todas as demais áreas da saúde. Além disso, este Programa pretende ser uma estratégia
91
para a implantação do SUS, com destaque para a atenção básica. Porém, é preciso garantir que
estes profissionais especializados sejam absorvidos pelo sistema de saúde (ROSA, 2012).
Outro fator a ser apontado refere-se à competência e atribuições do Estado para a formação
profissional. A Constituição Federal de 1988 define que é função do Ministério da Saúde
responsabilizar-se pela formação e capacitação de seus profissionais, no entanto, o MEC vem
regulamentando a formação do profissional da saúde, definindo a metodologia de ensino e o
modelo. Conforme sugere Campos (2006), a solução não está na definição de qual dos Ministérios
vai assumir essa função, mas na necessidade do trabalho ser realizado na lógica da co-gestão. Isto
porque, a formação profissional é de competência do Ministério da Educação e o Ministério da
Saúde é quem tem competência para definir qual modelo de profissional é necessário para garantir
a efetividade do sistema de saúde.
Uma outra questão, diz respeito ao tratamento que o Ministério da Saúde tem dado à
educação permanente, como “uma coisa sagrada, santa” (CAMPOS, 2006, p. 53). Este autor
observa como produtivo na educação permanente, o reconhecimento de que a aprendizagem não se
dá apenas em espaços e de maneiras formais de ensino, mas também na prática, com o usuário,
com o colega de trabalho e no cotidiano do serviço. No entanto, avalia que isso não é uma
exclusividade desta estratégia, pois esta tecnologia é bastante utilizada por outras correntes
pedagógicas. Além disso, considera alguns elementos regressivos, como a desvalorização do papel
do professor e a dificuldade para lidar com a experiência concreta e real.
Não enxergam utilidade em cursos, tampouco redefinem o papel dos professores, ficam inventando umas bobagens simplificadoras de “facilitador”, “ativador” etc., supondo que esses auxiliares substituem o papel do professor, ou a importância do conhecimento sistematizado em livros etc. Subestimam a experiência e caem na velha armadilha totalitária de, em nome do todo, negar a singularidade: pensam que os médicos seriam formados apenas com noções sobre ética, política e quejandos, e se esquecem da importância do que denomino núcleo de conhecimentos e de responsabilidades que constituem a identidade de cada profissão ou especialidade. Ficam no genérico, no que denomino de campo de saber (p. 53).
A Educação Permanente tem sido apontada como solução para todos os problemas, seja de
ordem política, de gestão, de modelo de atenção, de disputa de interesses ou saberes, e até mesmo
da formação insuficiente do profissional da saúde, embora seja um elemento muito importante para
o bom funcionamento de sistemas públicos de educação, saúde, etc.
92
Os defensores da Educação Permanente agitaram muito, mas as equipes de Saúde da Família e de Saúde Mental continuaram abandonadas, eles teriam que reinventar tudo antes de envolvê-las em “processos de educação permanente”. Em compensação organizaram dezenas de seminários, oficinas e cursos (?) somente para militantes e “amigos” simpáticos a essa babozeira. Ou seja, há o conceito teórico e há a apropriação desse conceito por alguns atores que o transformaram em uma política. Seria importante distinguir as duas coisas, na medida do possível. A formação insuficiente, por exemplo, na atenção primária, a formação inadequada da maior parte das equipes de enfermeiros, odontólogos ou agentes de saúde exigiria uma intervenção massiva que só a educação permanente, senso estrito, a educação durante o trabalho, não dá conta. Se todo mundo tivesse residência, curso de especialização, curso técnico para os agentes, se já houvesse essa situação como no Canadá, aí o desafio seria a educação no trabalho. Nós temos um desafio anterior, existem aproximadamente 24 mil equipes da atenção primária sem especialização ou residência, mais de 80%. (p. 54).
A política de formação e desenvolvimento de profissionais para a saúde define a formação
no campo da prática, tornando a rede pública de saúde um campo de ensino-aprendizagem. Porém,
no serviço a produção do trabalho tem se configurado no modelo biologicista e o estagiário ou o
residente, alunos que estão em formação, vão experimentar e visualizar essa prática de trabalho.
Nesse sentido, como pode-se esperar que estes profissionais sejam responsáveis pela mudança de
modelo? É necessário que, principalmente, os cursos de graduação possam formar profissionais na
lógica do novo modelo de saúde, garantindo a saúde enquanto direito constitucional, inclusive
adquirido pelo movimento social.
No tocante da formação da equipe multiprofissional na atenção básica, foi incluído o
Agente Comunitário de Saúde para ser um porta voz da comunidade, fazendo a ponte entre equipe
profissional e comunidade. Este profissional é um sujeito que reside no mesmo território do
serviço, sem a exigência de ter alguma formação em saúde. Todavia, há uma discussão se o agente
deve ser profissão ou não. Para Campos (2006) talvez seja inevitável a profissionalização, mas
avalia que ele não deve ser transformado num técnico de enfermagem, nem somente especializado
em Vigilância Sanitária, mas sim um técnico de saúde coletiva. Isto não significa a desqualificação
do profissional e nem tampouco a descaracterização da importância da sua produção no trabalho.
Por isso, reforça a necessidade de formar esse profissional, inclusive tecnicamente, antes de ser
inserido na equipe.
93
4.3. Fatores ligados à Carreira no SUS.
Um dos desafios para superar as barreiras legais que dificultam a combinação da eficiência
da gestão com a vinculação regular dos trabalhadores ao SUS está relacionado à precarização,
privatização e terceirização das relações de trabalho (FÓRUM DA REFORMA SANITÁRIA
BRASILEIRA, 2012).
Os problemas associados à precarização dos vínculos de trabalho têm sido identificados
como um obstáculo para o desenvolvimento do sistema público de saúde. Essa questão
compromete a relação dos trabalhadores com o sistema e prejudica a qualidade e a continuidade
dos serviços essenciais prestados pelo SUS (MACHADO, 2008; FLEURY, 2011; CAMPOS,
2006, 2008).
Para Machado (2008) alguns problemas no mercado de trabalho da saúde que persistem até
hoje têm origem na década de 1990, fruto da equivocada política nacional de recursos humanos
que não primou em valorizar e efetivar o SUS. Houve uma forte tendência de desestruturação e
desregulamentação do mercado de trabalho sobre a qualidade do emprego no setor saúde, como a
ampliação da informalidade dos vínculos de modo heterogêneo, devido às mudanças estruturais
que afetaram os contratos de trabalho, entre elas, a terceirização e cooperativização que foram
utilizadas como única alternativa para manter alguns programas em funcionamento. A autora
chama a atenção aos problemas das mediações na gestão do trabalho realizadas por ONGs e
empresas privadas, justificadas pelas limitações impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Afirma igualmente que,
o SUS passou a década de sua implementação sem se preocupar com seus trabalhadores, sem elaborar uma efetiva política de recursos humanos compatível com a sua concepção universalista. Isso permitiu, entre outras questões: 1) que os trabalhadores não tivessem perspectiva alguma de carreira profissional; 2) que a renovação e a expansão de novos profissionais não se dessem de forma correlata em termos constitucionais, e sim por meio da precarização do trabalho, criando assim um exército de trabalhadores sem direitos sociais e trabalhistas, nos moldes do início do século XX; 3) que a expansão das equipes com a entrada de novas profissões e ocupações se desse de forma anárquica, sem regulamentação e pouco comprometida com os preceitos do SUS; 4) que a expansão de novos cursos de saúde ocorresse sem critérios coerentes de qualificação do trabalho no SUS (p. 328).
94
Atualmente, embora o SUS seja o grande empregador dos trabalhadores de saúde, estudos
atuais mostram a inexistência, inadequação e/ou desatualização dos planos de carreiras na maioria
das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde.
Em 2004 o Departamento da Gestão e da Regulação do Trabalho em Saúde (DEGERTS)
realizou uma pesquisa junto aos municípios, Distrito Federal e Secretarias Estaduais de Saúde a
fim de conhecer a estrutura de Planos de Cargos e Carreiras (PCCS) existentes no setor saúde,
além de identificar a situação dos trabalhadores da saúde nos estados e municípios brasileiros
(BRASIL, 2006). Os resultados apresentados mostraram que apenas 38% das Secretarias
Municipais e 15% das Secretarias Estaduais de Saúde implantaram PCCS. As Secretarias
pesquisadas demonstraram diversas formas de elaboração de seus Planos.
Nesse sentido, podemos concluir que não existem políticas efetivas que favoreçam a
interiorização do trabalhador da saúde no sistema e nem mesmo mecanismos de atração e incentivo
para o desenvolvimento de uma carreira profissional no SUS. Se comparado à carreira pública em
outras áreas, como por exemplo, a jurídica, na qual há possibilidade de progressão, valorização do
trabalhador e reconhecimento social, os profissionais da saúde ficam em desvantagem: na maioria
das vezes não há progressão, a não ser por tempo de trabalho ou de acordo com o Plano de Cargos
e Carreiras (se) implantado pelo município. O serviço privado de saúde compete com o serviço
público, na medida em que pretende atrair os profissionais qualificados (inclusive, capacitados
com financiamento público) para este mercado de trabalho. Para a população, por sua vez, os
profissionais da rede pública são comparados aos da rede privada de saúde, aos quais atribui-se
maior qualificação. Ainda dentro do serviço público, a comparação se dá entre os profissionais da
atenção básica, que são menos valorizados, e os especialistas.
Em 2003 o Ministério da Saúde criou a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na
Saúde (SGTES), na tentativa de imprimir maior importância aos problemas relacionados ao
trabalhador no interior do Ministério. O discurso apresentado ressaltou a importância da
valorização do trabalhador do SUS, para garantir acesso e qualidade aos serviços de saúde e
melhoria da qualidade do trabalho (BRASIL, 2003).
Dentre os programas ofertados, esta Secretaria propôs o Aprender-SUS (um programa
dividido em iniciativas específicas, como o curso de especialização para atores interessados em
ativar mudanças nos cursos de graduação); o VER-SUS - Vivências e Estágios na Realidade do
Sistema Único de Saúde (possibilita que estudantes de diferentes cursos da área de saúde realizem
95
estágios em outros municípios, possibilitando o intercâmbio entre os mesmos); e o Fnepas - Fórum
Nacional de Educação das Profissões na Área da Saúde (objetivando a integração de instituições de
ensino e atores de diferentes profissões na busca por mudanças). Em 2005, lançou o programa Pró-
saúde, um programa de incentivo financeiro às escolas de medicina, enfermagem e odontologia, ou
seja, as profissões de nível superior presentes nas equipes de Saúde da Família (CAMPOS F.;
AGUIAR; BELISÁRIO, 2008).
A criação desta Secretaria possibilitou, de certa forma, a existência de um espaço para a
discussão sobre o trabalhador da saúde. Entretanto, não é possível garantir que ela possa dar conta
da amplitude dos dois eixos a que se propõe.
A pretensão de que o Ministério da Saúde, por meio de uma secretaria, iria regulamentar e interferir de maneira absoluta sobre a formação de pessoal em saúde é equivocada. Acho que o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação têm apostado pouco na co-gestão e na integração com as outras instituições. O campo da Saúde tem assumido conceitos e uma forma de trabalhar autocentrada e isolacionista (CAMPOS, 2006, p. 53)
Para o autor, a Secretaria convocou para si a responsabilidade de gestão de pessoal e se
confundiu a gestão da saúde e a gestão do trabalho em saúde, dando uma concepção inadequada,
incompleta porque gestão do trabalho não ocorre apenas na área de pessoal. Isso gerou uma
política muito restrita e uma disputa de poder. “Ela tem aspectos positivos, mas é incompleta,
arrogante e autoritária e como parece nova quem a critica aparece como conservador e reacionário”
(p. 54).
4.4. Sofrimento no trabalho
Onocko-Campos et al. (2012) realizaram um estudo sobre a implantação de novos arranjos
e estratégias de atenção primária e saúde mental, a partir do desempenho de seis Unidades Básicas
de Saúde do município de Campinas/SP. Dentre os resultados que apontam fragilidades no sistema
de saúde do município os trabalhadores referem o sofrimento no trabalho.
Na metodologia utilizada pelos pesquisadores (grupo focal), estes trabalhadores declararam
sentimentos de impotência diante da vulnerabilidade social e afirmaram realizar “tratamento
paliativo” frente à demanda atendida, por não vislumbrarem alternativas para os inúmeros
problemas sociais e pessoais dos usuários. Destacam que lidam com problemas que não são
96
exclusivos do campo da saúde, como aqueles que dizem respeito à educação, moradia,
desemprego, drogadição, entre outros. Queixam-se da doença como foco principal do trabalho,
com priorização dos casos graves, alta demanda atendida e a medicalização como única alternativa
para os problemas sociais e pessoais dos usuários. Deste modo, relatam que a principal atividade é
a assistência, que inclusive se contrapõe às ações de prevenção e promoção da saúde. Nessa lógica
assistencialista, o grupo considera que a comunidade tem dificuldade em aderir aos espaços
comunitários e aos grupos propostos pela equipe. Além dos participantes se queixarem do não
reconhecimento do trabalho produzido pelo profissional da atenção básica.
Neste estudo, ao analisar estas dificuldades, foi apontado que as equipes com maior
implantação de arranjos e estratégias inovadoras apresentam melhora na assistência, segundo a
avaliação dos usuários e trabalhadores da unidade e indicam que a falta de preparo dos
profissionais alocados na atenção primária pode ser um dos motivos da dificuldade em fortalecer e
promover a saúde mental neste nível de atenção.
Outro estudo realizado no ano de 2007, pelo Departamento de Medicina Preventiva e Social
da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (atualmente
denominado Departamento de Saúde Coletiva), em parceria com a Organização Pan-Americana de
Saúde e com o Ministério da Saúde, que foi a oferta do Curso de Especialização em Gestão de
Sistemas e Serviços de Saúde – ênfase na atenção básica. Esta capacitação, com base no método
de Apoio Institucional Paidéia, estava voltada para os profissionais vinculados ao Sistema Único
de Saúde e inseridos em atividades de atenção e/ou gestão em saúde, relacionadas à atenção básica.
Com base nos depoimentos dos alunos e a observação dos apoiadores deste Curso, os
resultados apontaram que no cotidiano do serviço há uma sobrecarga para o atendimento da
demanda espontânea e dos problemas emergentes, dificultando o planejamento de ações embasado
em dados coletados pelos sistemas de informação, cadastro ou pela própria imersão no território
(FURLAN; AMARAL, 2008).
Pinto; Coelho (2008) reforçam a necessidade de modificar o trabalho em saúde. Propõem a
abertura do trabalho para a participação de toda equipe, no sentido de que as decisões, regras e
formulações devem ser construídas em conjunto e compartilhadas entre os trabalhadores, gestores
e na medida do possível, com os usuários. Esse modelo de atuação possibilita que os trabalhadores
se reconheçam em seu trabalho; “aqui fica claro que não é suficiente discutir uma ergonomia do
trabalho, precisamos também discutir uma estética e uma ética deste trabalho” (p. 326).
97
Porém, há um consenso de que necessitamos modificar o trabalho em saúde. Precisamos passar do trabalho como opressão do trabalhador ao trabalho como produtor de identidade, de saúde e de realização de si mesmo. Precisamos encontrar uma forma de trabalhar que permita uma mobilização subjetiva, o desenvolvimento da engenhosidade e da cooperação. No entanto, isto não pode ser feito de fora, apenas com as imposições, prescrições ou orientações da gestão. No caso das equipes de saúde da família, isso talvez possa ser conseguido se as equipes tiverem autonomia para repensar e analisar seu próprio trabalho e, assim, definir seus modos próprios de trabalhar. Ao encontrar estes modos, certamente estes precisarão ser negociados com os usuários e também com a gestão (p. 326).
Como sugere Campos (2000), toda instituição tem uma tripla finalidade, que no caso da
saúde é produzir saúde, ao mesmo tempo em que deve possibilitar a produção de subjetividade dos
trabalhadores e atender aos interesses e necessidades da população com eficácia e efetividade.
Compreendemos que diversas situações podem gerar sofrimento no trabalho, como: a falta
de capacitação e formação do profissional para compreender e atuar na complexidade da atenção
básica; as condições precárias de trabalho e de vínculo empregatício, falta de reconhecimento e
valorização do trabalhador e da sua produção em saúde; o contato com problemas sociais e de
saúde que ultrapassam a possibilidade de resolução tanto pelo serviço, quanto pelos profissionais;
alta demanda, principalmente com relação ao atendimento emergencial; falta de comprometimento
e de responsabilidade do profissional em relação ao seu trabalho, a equipe e a produção coletiva do
trabalho; dificuldade de garantir e promover o trabalho em equipe. Pode-se dizer que, por trás de todas as mudanças e desafios aqui analisados, está o maior de todos: a formação de profissionais com capacidade de reflexão sobre o meio em que vivem; que aprendam a aprender; que adotem uma postura crítica em relação ao seu trabalho e ao conhecimento apreendido; que saibam integrar diferentes conhecimentos no planejamento de ações em saúde e valorizar o trabalho em equipe; e, sobretudo, que saibam exercer o seu ofício com ética, humanidade e respeito ao próximo, estendendo sua dedicação além da cura individual e em direção à prevenção, reabilitação e promoção da saúde de toda a comunidade”(CAMPOS F.; AGUIAR; BELISÁRIO, 2008, p. 1032-1033).
Assim, destacamos a importância de reconhecer que a dinâmica dos profissionais,
especialmente daqueles que estão vinculados à atenção básica, reconstrói e reconfigura teorias,
normas e práticas de trabalho que devem ser valorizadas pelos gestores.
98
5- Avaliação
Com relação à avaliação em saúde, há bastante descaso dos gerentes e gestores assumirem
essa estratégia como forma de organização e planejamento do serviço, até pela ausência de uma
orientação clara, nesse sentido, principalmente, por parte do Ministério da Saúde.
A falta de avaliação de pessoal compromete o andamento e o relacionamento da própria
equipe, pois os profissionais comprometidos acabam apenas assumindo mais trabalho, visto que
não têm nenhum privilégio frente aos menos compromissados. Isso pode tanto gerar sofrimento e
imobilismo nos profissionais mais comprometidos, quanto promover o descomprometimento com
o trabalho reforçando conflitos de relacionamento interpessoal (Cunha, 2010).
Para Starfield (2002):
Um dos principais desafios para o treinamento clínico está na incorporação dos componentes que estimulam o desenvolvimento de habilidades de auto-avaliação. Para isto ser alcançado, os programas de treinamento necessitam de um sistema de informação bem desenvolvido com o qual os treinandos podem revisar, periódica e sistematicamente, seu próprio desempenho e compará-lo com suas observações e com as evidências na literatura científica (p. 463-464).
Os estágios probatórios cumprem a função “tempo de trabalho” e os trabalhadores
terceirizados ficam à cargo da temporalidade do contrato, de modo que nem em um caso como no
outro, há uma preocupação ou uma avaliação qualitativa do trabalho desempenhado. Nesse
sentido, o gestor, muitas vezes, encontra-se num impasse entre manter um profissional mediano ou
pouco comprometido, ou bancar a não reposição profissional ou morosidade na reposição para o
cargo em questão.
Após muitos anos sem orientação para a avaliação da atenção básica, o Ministério da Saúde
lançou em 2011, o PMAQ. Apesar de ter apresentado um avanço, no sentido do governo federal
atentar-se para a questão da avaliação e pela própria metodologia utilizada com avaliação interna e
externa, alguns profissionais entenderam esse programa como uma “avaliação enviesada”. A
justificativa é de que houve uma maior valorização da avaliação externa, com enfoque em dados
quantitativos, em detrimento da avaliação dos profissionais, desconsiderando muitas ações e
soluções construídas pela equipe. Os grupos, as ações intersetoriais, as práticas integrativas, o
acolhimento, o acompanhamento da demanda com sofrimento psíquico e demandas sociais (as
principais demandas de saúde nos dias de hoje) foram praticamente ignoradas. Além disso, a
99
equipe avalia que houve um certo “PMAQuiamento” da unidade e dos serviços prestados durante a
visita dos avaliadores10.
Concluindo, entendemos que é fundamental que os profissionais participem da avaliação,
ajudem a construir os critérios e, sistematicamente, possam realizar uma autoavaliação e uma
avaliação do desempenho da equipe, com possibilidade de tratamento diferenciado aos
profissionais e/ou equipes mais comprometidos com o trabalho. No entanto, é importante que a
avaliação seja aceita e compreendida pelos profissionais como parte do trabalho desenvolvido,
objetivando reestruturar os processos de trabalho e garantir o planejamento em cima do que foi
diagnosticado e pactuado pela equipe. Além disso, a avaliação interna deve estar atrelada à uma
avaliação externa e aos indicadores da equipe e da unidade de saúde.
6- Financiamento
A base econômica é fundamental para a estruturação de um sistema de saúde. Assim,
enquanto alguns países dispõem de uma política de financiamento que contemple a eficiência dos
serviços públicos de saúde ofertados, outros, como por exemplo, o Brasil, ainda estão aquém de
promover o direito à saúde.
De acordo com Santos (2008), a partir de 1990 a mudança do modelo de saúde favoreceu a
inclusão social, pois milhares de brasileiros alcançaram a cidadania sanitária. Porém, a reforma do
Estado comandada pelo Ministério da Fazenda, do Planejamento e Banco Central, promoveu
abertura da economia, ajuste fiscal, contenção dos gastos públicos, reformas administrativas
desestruturantes, cortes de servidores públicos e rompeu com a lógica de bem estar social, da
cidadania e da seguridade social. Deste modo, imprimiu a precarização da remuneração e das
relações de trabalho e como consequência, a precarização da gestão de recursos humanos. “Nesse
sentido, a ideologia predominante era de contenção de gastos públicos, retração dos orçamentos
sociais e programas focais de baixo custo” (p. 431).
Além disso, o subfinanciamento da saúde, com retração da contrapartida federal e o
crescimento das contrapartidas estaduais e municipais, e, ainda, uma verdadeira onda de
10 Esta análise foi realizada pelo grupo focal sobre a avaliação do PMAQ, que aconteceu durante o Curso “Rodas de Apoio Paidéia”, promovido pela FCM da Unicamp, no ano de 2012.
100
privatizações do serviço público, levou às últimas consequências a consolidação do mercado de
planos e seguros privados de saúde.
Essa política de diminuição do investimento em saúde, formulada pela “área econômica” é
recomendada a todos os governos e coligações partidárias como política de Estado, resultando no
caráter complementar e não central do SUS ao mercado de planos e seguros. Assim, o SUS vai se
tornando “SUS pobre para os pobres”, dentro da lógica dos programas compensatórios, focalizados
e de baixo custo (p. 432-433).
Atualmente, de todos os gastos da sociedade brasileira com saúde, aproximadamente 45%
representam a participação dos orçamentos públicos. No Canadá, este mínimo é de 70%, chegando
a 85% na Inglaterra, Finlândia e Suécia. Nesse sentido, o gasto com saúde no Brasil é em torno de
190 dólares per capita, o que significa 10% em média em relação aos países citados que gastam
entre 1300 a 2500 dólares per capita (SANTOS, 2004).
Embora, desde o ano de 1996 a política do governo federal tenha sido a de implementar o
SUS, através da proposta de fortalecimento da atenção básica, este nível de atenção apresenta
baixíssimo financiamento e baixa resolutividade, o que conferiu um subfinanciamento do
Programa Saúde da Família. Segundo estimativas recentes, para efetivar seu papel na saúde da
população e na estruturação deste modelo, seu financiamento deve ser elevado, no mínimo, entre
25% e 35% (SANTOS, 2004).
Campos (2008) confirma que o repasse federal cobre apenas 30% dos custos do município,
o que dificulta a implantação progressiva do SUS em todo o país.
Com relação à PNAB, Campos et al. (2008) confirmam a lógica do subfinanciamento,
analisada por Santos (2004; 2008), pois a insuficiência do apoio financeiro federal e a omissão dos
estados não viabiliza que a proposta seja aplicada nos grandes centros urbanos, inclusive por conta
da obrigatoriedade de contratação, principalmente do profissional médico em 40 horas/semanais,
dadas as ofertas de empregos e melhores salários. Além disso, criticam a indução à implantação da
estratégia de Saúde da Família que, para garantir o financiamento, restringem os municípios a
seguirem rigidamente suas diretrizes e regras.
Deste modo, conclui-se que o SUS está bem amparado legalmente, pois seu ideário,
princípios e diretrizes permanecem atuais e legítimos. O SUS, braço institucional e de gestão participativa do movimento da Reforma Sanitária Brasileira, apesar do seu desenvolvimento ser reprimido e distorcido, é a
101
única política pública de cidadania que resistiu ao desmanche total e até avançou em vários desafios, desde 1990 [...] (SANTOS, 2004, p. 286).
Pode-se concluir que a revisão inadiável está no âmbito das estratégias da sua
implementação, uma vez que a base filosófica do SUS vai ao encontro de uma política democrática
e de participação social. Todavia, o Estado precisa arcar com a responsabilidade de promover
saúde, financiando consistentemente o sistema, investindo numa cultura de deveres e direitos.
Enquanto os recursos permanecem escassos, continua-se produzindo um modelo de saúde pobre,
que não é almejado pela população que não possui outra opção de contratação de serviço de saúde.
CAPÍTULO II – A Atenção Básica em Saúde no município de Campinas/SP
O município de Campinas/SP foi eleito como campo de estudo desta pesquisa por
apresentar especificidade com relação à organização da rede de saúde, que confere um destaque no
território nacional, servindo de referência para outras cidades e programas propostos. Há que se
declarar o papel da participação popular e da atuação dos trabalhadores de saúde, na defesa do
modelo, na formulação de políticas e na inovação de arranjos democráticos de gestão (TRAPPÉ,
2012).
Nas décadas de 50 e 60, assim como em grande parte do país, em Campinas predominava o
exercício da medicina privada e de caráter individual, sendo que os serviços de saúde pública
limitavam-se à vacinação, à puericultura, ao controle de moléstias infecto-contagiosas e outros,
voltados, particularmente, à população pobre excluída dos serviços previdenciários.
Na década de 70, o município passou a organizar os serviços públicos de saúde por meio do
modelo da Atenção Primária em Saúde, com a criação dos Postos de Saúde Comunitária. Fruto do
movimento popular, estes serviços contavam com médicos e auxiliares de enfermagem,
trabalhando numa lógica de educação em saúde e com enfoque na comunidade. Campinas foi um
município pioneiro a implantar uma rede básica de atenção à saúde influenciada pela proposta de
medicina comunitária.
A partir de 1977, os programas de Medicina Comunitária desenvolvidos pelos Departamentos de Medicina Preventiva da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e da Unicamp, simultaneamente às iniciativas das secretarias de saúde dos municípios de Niterói, Montes Claros e Londrina, constituíram-se projetos piloto de implantação de modelos alternativos de atenção à saúde no movimento sanitário, contribuindo substancialmente para o processo de Reforma Sanitária brasileira (NASCIMENTO, 2006, p. 54).
Os Postos de Saúde Comunitária foram estruturados na região periférica da cidade e em
zonas rurais, atendendo às necessidades daquela parcela da população. As ações desenvolvidas
abrangiam o atendimento à criança, ao adulto e à gestante, seguindo a programação da Secretaria
de Estado da Saúde. Aos poucos, outros atendimentos foram sendo incorporados, tais como:
assistência às doenças crônicas (Diabetes e Hipertensão Arterial), à saúde mental, saúde bucal e
vacinação.
103
Nesse período ocorreram duas situações: alocação de equipes mínimas de saúde mental
(psicólogo, assistente social, psiquiatra e, posteriormente, terapeuta ocupacional) na rede básica,
com oferta de atendimento nessa área; e, no final desta década, a ampliação da rede de postos de
saúde, na perspectiva do modelo de Medicina Comunitária e da participação popular, devido a um
processo de explosão urbana com grande crescimento do número de favelas, decorrente de intenso
surto migratório, especialmente na periferia.
Em 1978, ocorreu a contratação das 3 primeiras enfermeiras na Secretaria Municipal de
Saúde (SMS) para atuarem nos postos de saúde, com a função de assumir atividades assistenciais
de promoção, proteção e recuperação da saúde, de organização do trabalho, assim como a
coordenação do processo de recrutamento, seleção, treinamento e educação em serviço do pessoal
auxiliar. Em 1989, realizou-se o primeiro concurso público da SMS para todas as categorias.
A partir de 1994, com o aumento da complexidade da rede de serviços do SUS Campinas,
houve a adoção dos princípios de regionalização e descentralização dos serviços, quando foram
criadas quatro Secretarias de Ação Regional. Estas foram substituídas no ano de 1997, pelos cinco
Distritos de Saúde, existentes até hoje. Nesse período, as unidades de saúde existentes foram
ampliadas e novos centros de saúde foram construídos, com grande investimento em contratação
de recursos humanos e equipamentos para qualificar o atendimento oferecido (NASCIMENTO,
2006). A complexidade do Sistema de Saúde em Campinas levou a um processo progressivo de
descentralização do planejamento em gestão da saúde. Em 1996, o município foi consolidado
como gestão plena do sistema de saúde.
Em 1999, apesar de uma rede básica com 45 Centros de Saúde que ofereciam atenção ao
adulto, criança e mulher, além de programas em saúde mental e bucal, constatou-se que grande
parte da demanda ainda era atendida em pronto-socorros e pronto-atendimentos. O acesso à rede
básica era burocratizado, com predomínio da clínica tradicional, baseada em “queixa-conduta”,
focada na dimensão biológica do usuário. O trabalho era caracterizado por ações isoladas e
verticais, com o desenvolvimento insuficiente de ações interdisciplinares (NASCIMENTO, 2006).
Em 2001, o município ainda não tinha adotado o Programa Saúde da Família do Ministério
da Saúde e, até então, a atenção básica funcionava num modelo que subdividia a saúde (assistência
e os profissionais) em programas e áreas de atenção. Na gestão 2001-2004, com o Prefeito
“Toninho” e Gastão Wagner de Sousa Campos como Secretário da Saúde, a Secretaria Municipal
de Saúde iniciou a implantação do Programa Paidéia para toda a rede municipal de saúde.
104
Paidéia é um termo grego que indica a formação integral do ser humano e faz referência à
abordagem ampliada de saúde, ou seja, para além do biológico, o entendimento de saúde enquanto
fruto da sociabilidade, da afetividade, das relações sociais e com o meio ambiente (CAMPOS,
2003).
O Programa Paidéia é uma proposta que adaptou o Programa Saúde da Família do
Ministério da Saúde ao contexto sanitário de Campinas, contemplando as necessidades de saúde e
a construção de saúde no município. Assim, além da equipe tradicional (médico generalista,
enfermagem e agentes comunitários de saúde) proposta pelo Ministério, o Paidéia propõe uma
equipe ampliada com profissionais como o pediatra, ginecologista, dentista e auxiliar de
consultório dentário, vinculados à equipe da atenção primária. Além disso, algumas áreas
específicas, como saúde mental, saúde coletiva e reabilitação física, ficam como suporte às equipes
de referência da rede básica, integrando o Apoio Matricial, com o objetivo de contribuir para a
ampliação da clínica.
Em alguns municípios, o PSF foi implantado em módulos paralelos às Unidades Básicas,
com funcionamentos diferentes. Em Campinas, optou-se por constituir o PSF dentro dos Centros
de Saúde e recursos da rede já existentes, visando a construção de um PSF ampliado e combinado
com os princípios de acolhimento, responsabilização, co-gestão, entre outros (FIGUEIREDO,
2006).
Nesse sentido, os centros de saúde organizaram e dividiram seus profissionais em equipes
locais de referência, responsáveis pelo atendimento básico integral às famílias de um território
delimitado. Cada uma dessas equipes era responsável por cerca de 1500 famílias adscritas. Houve
uma mudança, também, na organização do trabalho que, ao invés de programas e áreas clínicas,
passou a ser definida pelos usuários, por seus Projetos Terapêuticos Singulares e pelas
necessidades de saúde do território.
O Paidéia buscou superar alguns limites da clínica e dos modos como os serviços se
organizavam para produzir a atenção à saúde e, com isso, além da ampliação da equipe propôs
inovações organizacionais com vistas à mudança do modelo médico-centrado. Dessas inovações,
destacam-se espaços de discussão regulares e reuniões de equipe, presença de equipe de saúde
mental na unidade básica de saúde, existência de apoio matricial, construção de Projeto
Terapêutico Singular para os casos de maior risco clínico e vulnerabilidade social, grupos de
105
educação e promoção à saúde, existência de gestão colegiada e participação da comunidade na
gestão (ONOCKO-CAMPOS, 2012).
Com base em Campos, Nascimento (2006) aponta que as diretrizes do PSF - Paidéia são:
Clínica ampliada, acolhimento e responsabilização, apoio matricial, sistema de co-gestão, cadastro
de saúde da população e vinculação de famílias à equipe local de referência, e capacitação.
Frente a esse desafio de mudança de modelo de atenção, numa cidade de grande porte e
com um sistema instalado e funcionando, ocorreram discussões, em toda a rede de saúde, sobre os
pressupostos deste projeto. Para tanto, os esforços foram investidos no sentido da reorganização do
processo de trabalho, da capacitação dos profissionais para atuação dentro desse modelo, da
ampliação de unidades de saúde, da construção de módulos de Saúde da Família e contratação de
recursos humanos, além da incorporação dos agentes comunitários de saúde.
Essa situação está comprovada no documento “Paidéia. A Secretaria Municipal de Saúde
no Governo Democrático e Popular de Campinas” (Campinas, Caderno 0215) que apresenta dados
gerais da Secretaria Municipal de Saúde, o alcance do Programa Paidéia Saúde da Família no ano
de 2001 e ações propostas para 2002. Com base nesse documento, os dados apontam a contratação
de 1148 profissionais para a rede básica de saúde e a capacitação de 2000 profissionais de saúde
com conteúdos gerais e específicos no ano de 2001.
Chama a atenção nesse documento o respeito pela história da construção do SUS
Campinas, visto que não se desconsideram as formulações anteriores, mas, respeitosamente,
apontam-se as fragilidades encontradas, sem culpabilizar outros atores e/ou governos, mas sim,
apresentando as diretrizes do atual governo e propondo formas de organização do sistema de saúde
e do processo de trabalho. Além do embasamento teórico sobre o Paidéia, as diretrizes são bastante
claras e pactuadas com os atores envolvidos (gestores, trabalhadores e população). O documento
traz, ainda, apontamentos sobre o processo de trabalho e pontua o papel dos Distritos, dos
Coordenadores de serviço e dos Apoiadores. O Planejamento e a Avaliação (Resultados
Esperados) são colocados em pauta enquanto dispositivos que devem ser incorporados ao exercício
cotidiano da gestão.
As diretrizes desse processo estão embasadas na construção conjunta com trabalhadores,
gerentes de serviço e com os Conselhos Municipal e Locais de Saúde. A ideia era de que o projeto
deveria estar apoiado numa política de recursos humanos que valorizasse os profissionais e
conseguisse fixá-los nos serviços.
106
Na prestação de contas da Secretaria, que aparece no documento supracitado, destacam-se
algumas ações desenvolvidas pela Secretaria Municipal de Saúde no ano de 2001: capacitação e
treinamento; disponibilização de dados estatísticos às equipes; criação de comitês (como comitê de
investigações de mortes maternas e infantis); organização de fluxos e protocolos; divulgação e
desburocratização.
Atualmente, apesar da denominação Estratégia Saúde da Família (por uma questão política
e, inclusive para conseguir o cadastramento das equipes de saúde da família ao Ministério da
Saúde, revertendo em financiamento), o modelo de atenção à saúde na rede básica de Campinas
continua seguindo os preceitos do Paidéia. Ou seja, a organização da rede básica e a organização
do processo de trabalho seguem o modelo Paidéia, considerando suas diretrizes e sua
fundamentação teórica.
No entanto, este ideário manteve-se enquanto cultura sanitária bancada pelos trabalhadores
e alguns gestores, e não defendido pela gestão da Secretaria Municipal de Saúde. Inclusive, no
início do trabalho da pesquisadora na rede SUS-Campinas (pós-Paidéia), os trabalhadores,
principalmente os Agentes Comunitários de Saúde, falavam com clareza e admiração do modelo
Paidéia, demonstrando que o processo de trabalho, as diretrizes e metas estavam pactuadas com
eles.
No ano de 2005, a Secretaria Municipal de Saúde de Campinas elaborou o documento
“Reorganização da Atenção Básica na Rede Municipal” (Campinas, 2005), fruto do planejamento
das ações para o sistema municipal de saúde na gestão 2005-2008. Dentre as prioridades desta
gestão, apontou-se a necessidade de reorganização da Rede de Atenção Básica. O documento traz
alguns títulos sobre estratégias para reorganizar a Atenção Básica e o processo de trabalho, no
entanto, com um texto breve e padronizado, utilizando-se de conceitos já mencionados pelo
Paidéia, como vínculo, autonomia do usuário, postura acolhedora, intersetorialidade.
Além disso, fazia uma crítica com relação às equipes ampliadas, apontando que os
especialistas foram incorporados às equipes e, na verdade, eles deveriam atuar enquanto referência
para as equipes de Saúde da Família para que a responsabilidade clínica e sanitária da população
continuasse sendo do médico generalista. Com isso, a indicação dessa gestão foi de que a
composição das equipes de Saúde da Família fosse definida a partir do perfil epidemiológico e
mapeamento de risco do território, de modo que, em alguns locais, os médicos pediatras, clínicos e
ginecologistas pudessem atuar como apoio para toda a unidade, não necessariamente vinculados a
107
uma equipe de Saúde da Família. No entanto, na prática, esses especialistas continuaram
compondo as equipes de Saúde da Família.
Com a finalidade de qualificar a atenção à saúde, o documento propôs nova cobertura por
equipe de Saúde da Família, de acordo com o mapa de risco da Secretaria. Dessa forma, para áreas
definidas como alto risco, a indicação foi de 3500 indivíduos (de 1000 a 1200 famílias) por equipe.
Ao contrário do Programa Paidéia, que tem como base a divisão de poder com os
trabalhadores, chama a atenção neste documento o fato de não citar a participação dos
trabalhadores na gestão. Aliás, pouco se fala em trabalhadores, pois grande parte das decisões
estavam colocadas para a Secretaria Municipal de Saúde e para os Distritos de Saúde.
No ano de 2008, o Relatório de Gestão da Secretaria Municipal de Saúde (Campinas, 2008,
a) aparece bem resumido, sem um direcionamento claro sobre os objetivos e diretrizes propostos e
a metodologia a ser utilizada.
Nesse mesmo documento, a gestão aponta as ações realizadas por este governo: a
ampliação do número de equipes de Saúde da Família (não está quantificado), contratação de
recepcionistas para as UBS, inauguração de dois novos centros de saúde, criação das
Coordenadoria de Atenção Básica e da Saúde do Idoso, fomento à qualificação da gestão a partir
da operacionalização da educação permanente de coordenadores locais e apoiadores.
Em dezembro de 2008 a Secretaria Municipal de Saúde de Campinas (Campinas, 2008, b)
re-edita o documento “Reorganização da Atenção Básica” de 2005, complementando este último.
Seguindo as diretrizes do Ministério da Saúde, no geral, a proposta era de uma equipe para cerca
de 3000 a 4000 pessoas. Com relação à vulnerabilidade e avaliação de risco, define: para áreas
definidas como risco muito alto, 3500 indivíduos (de 1000 a 1200 famílias) por equipe de Saúde da
Família; para risco alto, 4000 indivíduos por equipe de Saúde da Família.
Mais uma vez, chama a atenção a centralização do poder, visto que as discussões estão
previstas apenas com representantes da SMS e Distritos de Saúde. Na análise deste documento, há
uma sugestão de que representantes do trabalhadores e gerências locais para discussão sobre o
processo de trabalho junto aos Distritos, na tentativa de garantir as diretrizes pactuadas. Isso
implica concluir que as decisões e formulações da política de saúde municipal são de
responsabilidade da gestão central.
Com relação às diretrizes para organizar o processo de trabalho nas unidades de saúde,
estão elencadas, dentre outras: organizar ações a partir do diagnóstico da equipe local, levando em
108
consideração a estrutura e os programas prioritários da SMS; planejar atividades de acordo com
necessidades de saúde da população11. Até aqui, nada de novo desde o Paidéia. No entanto, além
da diretriz teórica, parece não haver pactuação com trabalhadores, nem tampouco recursos e
investimentos da SMS.
Desse modo, as diretrizes pensadas para Campinas estão vinculadas às propostas do
Ministério da Saúde, mas parecem não levar em consideração a realidade do município. No
Paidéia, as discussões eram feitas com os trabalhadores, o que possibilita pensar numa organização
real e concreta do sistema, e não uma organização virtual (daquilo que a gente pensa ser).
Contudo, o que se observa desde o fim da gestão Paidéia, é uma crise de formulação
política. Além da falta de investimento e de recursos, conta-se com uma ausência de diretrizes e de
modelo político, não havendo um posicionamento claro do nível central. Os documentos são textos
padronizados, que além de pouco orientar os profissionais, também não são divulgados ou
transmitidos até eles. Além disso, pode-se citar, dentre outros, dois problemas dessa gestão que
afetam diretamente a qualidade do atendimento prestado. O primeiro deles diz respeito à política
de pessoal que, além dos contratos precários de trabalho e do descaso com os trabalhadores da
saúde, não investe na formação e capacitação dos profissionais de saúde. O segundo, diz respeito à
cobertura das equipes de Saúde da Família, pois, apesar de estabelecida a média de 4000
indivíduos por equipe, sabe-se que este número está bem além disso. No Centro de Saúde citado
nesta pesquisa, por exemplo, a média é de 8000 indivíduos por equipe de Saúde da Família, o que
é bastante comum entre os Centros de Saúde do município. Será possível ter Estratégia Saúde da
Família nesses moldes?
Entretanto, é indiscutível os avanços conquistados no município, com relação à ampliação
da cobertura, da integralidade do cuidado e do papel da atenção básica enquanto porta de entrada
no sistema de saúde. Além disso, num momento de crise política e ideológica que o município vem
passando, com tentativas de desmonte ao sistema público de saúde, há que se destacar o
desempenho e a efetividade dos serviços quando amparados por uma gestão comprometida com o
sistema de saúde e defensora dos serviços públicos. Em conjunto com profissionais competentes e
militantes, com uma população participativa e Universidades reflexivas, presentes e integradas às 11 Nesse trabalho, a pesquisadora não conseguiu analisar os documentos datados a partir de 2009, pois não foram disponibilizados pelo CETS (Centro de Educação dos Trabalhadores de Saúde), alegando inexistência de documentos com os temas solicitados (Paidéia, Relatório de Gestão, Organização da Atenção Básica).
109
discussões, há uma peça-chave fundamental que é o gestor. Faz-se necessária a presença de uma
gestão responsável e vinculada à causa da saúde pública, para garantir os ideais e princípios do
SUS de uma maneira reflexiva e priorizando as necessidades de saúde da população.
CAPÍTULO III – Narrativas: o olhar do trabalhador da saúde
Este Capítulo diz respeito ao resultado da pesquisa de campo, ou seja, das narrativas
construídas a partir dos profissionais, descritos na Quadro 1. Durante a observação no campo a
pesquisadora considerou as diferenças que surgiram nos encontros com os dois grupos, inclusive
na sua formação.
No primeiro grupo, durante a apresentação, percebeu-se que três profissionais eram
vinculados aos grupos de estudo e pesquisa da Universidade Estadual de Campinas-Unicamp e um
profissional tinha formação de especialista na área de Saúde Coletiva. Os profissionais deste grupo
mostraram-se bastante críticos e reflexivos sobre as políticas de saúde no Brasil, inclusive da AB.
Já no segundo grupo, os profissionais demonstraram bastante sofrimento e abandono, com
dificuldade para encontrar alternativas frente aos problemas e queixas, bem como para encaminhar
as propostas elencadas pela equipe, pois não se assumiu o papel de líder no grupo.
Quadro 1: Formação dos Grupos
Grupo Nº participantes Áreas
G1
09
1 Enfermeiro 2 ACS
1 Residente em Saúde Coletiva – Medicina 1 Auxiliar de Enfermagem
2 Médicos generalistas 1 Pediatra
1 GO
G2
07
1 Enfermeira 1 Pediatra 1 Dentista
1 Auxiliar de Enfermagem 1 Educador Social
1 Clínico Geral 1 Técnico em Saúde Bucal
111
3.1. Partindo para a primeira experiência no campo
O primeiro grupo de discussão contou com a participação de uma equipe de referência de
um Centro de Saúde localizado no Distrito Norte do município. A pesquisadora fez o contato com
a coordenadora da unidade, explicando a pesquisa e seus objetivos, e foi esta coordenadora quem
fez o convite à equipe para participar da pesquisa.
Esta unidade de saúde é responsável por uma média de 6.000 pessoas, das quais, cerca de
99% tem o sistema público de saúde como único recurso para tratamento (segundo informações
dos profissionais). Trata-se de uma região periférica e com poucos recursos sócio-sanitários. A
área de abrangência corresponde a nove bairros e o Centro de Saúde conta com um total de 32
funcionários, divididos em duas equipes de referência. A primeira equipe tem a seguinte
composição: 1 Médico Generalista, 1 Médico Pediatra, 1 Médico Gineco-Obstetra, 1 Enfermeiro, 5
Auxiliares de Enfermagem, 2 Agentes Comunitários de Saúde. A segunda equipe conta com os
seguintes profissionais: 2 Médicos Generalistas, 1 Médico Pediatra, 1 Médico Gineco-Obstetra, 1
Enfermeiro, 5 Auxiliares de Enfermagem, 3 Agentes Comunitários de Saúde. Fazem parte, ainda,
da equipe geral 2 Dentistas, 1 Auxiliar de Consultório Dentário e um Enfermeiro de Apoio, os
quais, porém, não fazem parte de nenhuma das equipes de referência.
O grupo de discussão aconteceu durante a reunião da equipe dois e estavam presentes nove
profissionais, sendo: um Enfermeiro, dois ACS, um Residente em Saúde Coletiva – Medicina, um
Auxiliar de Enfermagem, dois Médicos generalistas, um Médico Pediatra e um Médico Gineco-
Obstetra.
Após uma breve explicação sobre a temática da pesquisa e sobre a metodologia de trabalho
(inclusive, o porquê a pesquisadora estava no papel de observadora), a moderadora do grupo
questionou os profissionais sobre o aceite e/ou o desejo em participar da pesquisa. Grande parte da
equipe relatou uma aceitação sem muita reflexão ou avaliação prévia, dada a postura da unidade
em aproximar-se das Universidades e do conhecimento teórico, “uma disposição para conhecer”. O
grupo de discussão aconteceu num espaço e momento já estabelecido para reuniões de equipe,
conforme o relato de alguns participantes: “na verdade, eu vou ser sincera, eu não me senti
interessada, é que como seria na nossa reunião de equipe, vocês viriam até aqui, então eu estou
aqui”; “A gente optou em fazer na nossa reunião de equipe e ver como é que é”.
Alguns deles manifestaram o interesse pelo tema sobre o SUS e curiosidade pela
possibilidade de falar do ambiente de trabalho, “eu estou curiosa com o tema, achei interessante, a
112
gente se expor, falar sobre o ambiente de trabalho, eu acho interessante (...)” “só por falar em
permanência do SUS, pra mim já me diz que tem que participar, pra ver se defende a permanência
do SUS”.
O grupo relatou a importância de considerar “o ponto de vista dos trabalhadores”, por
serem eles que, no cotidiano de trabalho, constroem a assistência à saúde, ou seja, constroem o
SUS. “Então, você vê que o que faz a unidade mesmo, o centro de saúde, são as pessoas que estão
trabalhando nela”.
Esse olhar do trabalhador possibilitou compreender um pouco os desafios e perspectivas do
Sistema Único de Saúde. Uma das falas apontou para o fato de que a equipe discute sobre processo
de trabalho e os problemas decorrentes, o tempo todo, mas avaliaram que a discussão proposta pela
pesquisa foi interessante “porque a gente contribui pra uma coisa que vai ser publicizada, que vai
ser refletida, e eu acho que é importante nessa linha de pensamento”.
Quando se discutiram questões relacionadas com as dificuldades enfrentadas no trabalho,
ficou claro como o cenário e o contexto político influenciam nas práticas cotidianas. Referiram-se
ao momento particular vivenciado em Campinas como “desassistência em vários aspectos”,
denunciando a falta de reposição de profissionais “as pessoas foram demitidas e não tem
reposição”, a desassistência do pronto socorro “as pessoas estão doentes, potencialmente e
gravemente doentes e a gente não tem outro lugar pra resolver se não for aqui”, do laboratório que
“está sem funcionar há um mês”. Este pano de fundo que, na verdade, adentrou e invadiu as
unidades e as equipes, atrapalhou o processo de trabalho e influenciou na diminuição da qualidade
do serviço prestado. “(...) a impressão que a gente tem é a de que uma parte da rede está
desmontando na nossa cabeça e no nosso trabalho. Isso está mexendo com o trabalho de todo o
mundo (...) e isso atrapalha o que a gente gosta de fazer que é conseguir organizar o trabalho pra
dar conta de assistir as pessoas que estão aí”.
Apesar da resistência de alguns que perseveram em acreditar numa melhora, o grupo
convergiu para uma preocupação com relação à perspectiva a curto prazo “hoje nós estamos
vivendo algo, com o qual eu estou muito preocupado, porque eu nunca vi tão forte como está
agora, a presença, o dedo da política nisso. Incomodando mesmo, coisa política mesmo!”.
Essa desorganização da rede influenciou diretamente o trabalho da equipe, gerando uma
desorganização também nesse setor. Um exemplo disso era o acolhimento à demanda não
programada, que intensificava o sofrimento do trabalhador, por não estarem preparados e pelo fato
113
da unidade não comportar tamanha demanda, visto que a rotina do serviço, as especificidades da
atenção básica continuavam, mesmo frente a epidemias, como a dengue. “Uma equipe que tinha
uma média de 20 acolhimentos por dia, por exemplo, chegou um dia a ter 67. A gente nunca tinha
chego num patamar desses”.
Muitas vezes, a equipe teve que deixar atividades de lado, mudar o processo de trabalho,
frente às faltas, como por exemplo, no caso de falta de RH na recepção, a equipe assumiu essa
função. Porém, isso causou prejuízo na assistência, “não dá pra trabalhar mais, fazer o projeto
terapêutico, da forma que a gente fazia. Às vezes dá pra fazer, mas às vezes não dá pra fazer e a
coisa vai se perdendo. (...) A gente está se desdobrando e não era pra ser assim. Eu acho que a
gente é que paga imposto, eu acho que o dinheiro público não está muito bem gerenciado, eu acho.
Depois dos roubos que teve na prefeitura, isso me desanimou muito. Eu acho que esqueceram da
saúde pública e só querem roubar. Eu desacreditei demais na política, nos políticos em geral. Isso
ficou bem nojento por esse lado. Eu acho que deixaram de investir no que dava certo, não querem
nem saber o que está acontecendo aqui com a comunidade, o que eles querem ou não querem. É o
que é prioridade lá”.
Em relação ao sofrimento no trabalho, além do reflexo no resultado do trabalho,
remeteram ao cenário político, um estado de desânimo que assolava os trabalhadores da saúde
“todas as conversas e espaços em que eu vou, é um desânimo”. Transcendendo (permeando) o
contexto político no município, havia uma desestruturação da rede de saúde, causando uma
desorganização, que não era apenas interna da equipe, mas da rede como um todo e que também
causava sofrimento. Citam o caso da falta de retaguarda do pronto socorro: “O caos que está o
pronto socorro, quando a própria gestão pede para transferir para as unidades básicas aquilo que se
fazia no serviço de urgência, sem que tivesse sido preparado pra isso acontecer(...). Não foi
combinado nem preparado pra que isso acontecesse. Então você transferiu um problema que é dos
serviços de urgência (...). Só que não foi combinado com a gente esse fluxo(...); mas é uma
desorganização que não é só interna. É uma organização que a gente tem que ter nós com outros
níveis, porque a gente tem que ter um combinado com o território, com a região, com o serviço de
urgência. E essa conversa não foi feita, então a gente vai correr atrás agora de organizar, pra gente
dar conta daquilo que não era pra gente dar conta. Tem coisa aqui que não era pra estar aqui. A
gente acaba sofrendo por isso”.
114
Nesse contexto, os profissionais deparam-se com a constante tentativa de privatização da
saúde no município e com diversas faltas, “falta de equipamento, falta de estrutura, falta de recurso
material, falta de recursos humanos” que desanimavam a equipe. Contudo, continuavam
acreditando e resistindo “a gente está cansado e não sabe como é que a gente vai fazer, mas a gente
vai resistir”.
Essa interferência arbitrária no trabalho das equipes, assim como a necessidade urgente de
mudança da rotina de trabalho, devido à falta de investimento ou de suporte da gestão, causavam
desânimo e sofrimento ao trabalhador. “(...) acaba deixando mesmo, ações que são da nossa
profissão um pouco de lado, pra atender toda essa demanda e a gente não tem preparo (...). Não
tem sala, na observação só tem uma maca, mas tem que dar conta de tudo. Então a gente fica
completamente angustiado”.
Durante a conversa sobre o trabalho na unidade, a equipe destacou o papel da Atenção
Básica, referindo conceitos como vínculo, longitudinalidade, proximidade e conhecimento das
famílias e do território, trabalho em equipe, acolhimento, referência. O seguinte depoimento
mostra o seguimento que a equipe fez com um paciente encaminhado, “daí a gente olha as
situações, (...) o paciente foi internado ou, está internado ainda, a gente vai ligar, vai saber como
está a família, se teve alta, (...) vai acompanhando desde o início, (...) às vezes ele está no pronto
socorro ou em outro serviço e a gente não tem esse acompanhamento tão imediato. (...) já sabe, já
vê, já olha, também já conhece, nesse olhar assim, eu fico até mais confortada”.
Nesse sentido, o que diferencia o trabalho na atenção básica não é o tipo de procedimento
ou a tecnologia utilizada, mas sim a relação e o vínculo que permeia o atendimento prestado.
“Nunca é PA aqui. Porque eu sei onde esse cara mora, quem é a família dele, quando eu atendo eu
tenho o prontuário e não a ficha de atendimento. Assim, não tem atendimento aqui que seja tão
fugaz, tão superficial e tão pontual como no pronto socorro. Qualquer menor atendimento em que
você tenha uma conduta pra uma queixa aqui, tem um outro contexto. (...)aqui a gente conhece eles
e eles reconhecem a gente nisso o tempo todo. (...) porque aqui o contexto é outro, a relação com o
paciente é outra (...)”.
Essa longitudinalidade do cuidado, ou seja, o cuidado e o relacionamento com aquele
sujeito ao longo do tempo, promovia uma relação mais próxima entre o profissional e o usuário,
ou, como referido num depoimento, promovia uma “densidade na relação”.
115
Uma queixa apontada pelo grupo dizia respeito à abrangência e à complexidade das ações
realizadas na atenção básica. Avaliaram que neste nível de atenção, responsabilizam-se pelas ações
que eram específicas da atenção básica, mas também por procedimentos especializados, como por
exemplo, do pronto atendimento. “Aqui as coisas têm um outro contexto, elas se misturam. Não é
porque a gente faz o que é PA que o que é nosso alguém está fazendo. Não está! Porque o que é da
atenção básica, só a atenção básica vai fazer”. Por outro lado, os outros serviços são autorizados a
limitar suas ações e intervenções ao que lhes é atribuído. Além disso, ressaltam a diferença do
modelo de atendimento preconizado para a atenção primária, baseado no vínculo e no cuidado com
o usuário. “E esse vínculo que a gente criou esse tempo todo com os pacientes, a gente não pode
olhar pra eles do mesmo jeito que olha uma pessoa que nunca foi tomar um café com eles, que não
foi na casa, não pegou na mão”.
Contudo, entendiam que deveria existir um limite na atenção básica. “O que a gente não
pode é achar que nós vamos dar conta do volume de pronto socorro. A qualidade eu não tenho
dúvida, eu também acho que a gente vai olhar pra esse paciente, inclusive paciente de urgência,
melhor”. Mesmo assim pode-se observar nas falas um sentimento de impotência refletido na
angústia já instalada na equipe, que estava diretamente relacionada com o desejo de solucionar
todas as demandas, “mas essa angústia me faz pensar uma coisa, a gente não tem que dar conta de
tudo, porque a gente tem um limite também. Essa angústia dessa semana, todo mundo angustiado,
chorando, mas não pode ser assim, tem uma hora que você vê que não vai dar conta disso e tem
que chamar um auxílio ou sei lá o que, mas não que nós temos que dar conta. Porque se não quem
vai ficar com isso somos nós, então vamos nos afastar e isso vai ficar com outro. Eu acho que a
gente tem que dar conta até um certo momento, mas a gente não tem que dar conta de tudo, abrir a
porta, a gente não vai dar conta, é impossível. Por isso que se instalou um caos, porque entrou todo
mundo”.
Apontaram, porém, que era da natureza da atenção básica ter dificuldade em reconhecer seu
limite e, inclusive, anunciar este limite à comunidade que adentrava o serviço. Ou seja, dizer “eu
vejo, eu sei que você precisa, mas eu não estou dando conta”, isso gerava uma angústia nos
profissionais. “Como é que eu fico tranquilo com aquela certeza: fiz até onde eu podia, agora não
posso mais e aí eu vou acionar outras pessoas, outras coisas e eu vou reconhecer o limite”, e por
isso, anunciam que “talvez em algum momento a gente precise trabalhar isso, que é de como é que
a gente resolve esse impasse”.
116
No caso dos Agentes Comunitários de Saúde, eles seriam os que realmente conheceriam as
famílias e o território, transformando-se numa ponte entre os profissionais/ a unidade e a
comunidade e, dessa forma, reconheciam-se como “a base” e, apesar de não terem “informação
técnica pra tanto, a gente tem um vínculo muito forte com a população e daí a gente acaba fazendo
vários papeis, e não só o de agente comunitário. A gente faz papel de terapeuta, a gente faz papel
de psicólogo, várias coisas”.
Com base na potencialidade/persistência da equipe, quando questionados sobre o que
alimentava essa equipe frente a tantos desafios e o que a fazia continuar e acreditar no trabalho,
uma primeira fala remeteu à realização e à satisfação com o trabalho. “Ter, principalmente, o
mínimo de estrutura pra trabalhar e ter o paciente. Acho que a grande coisa que eu me realizo é ter
a oportunidade de conviver com essas pessoas (...). Porque mesmo nessa situação, eles conseguem
trazer de novo pra gente esse entusiasmo, às vezes eles alimentam...eu nãoi sei o que eles têm, eles
têm um pozinho mágico que faz trazer isso. Por isso que nós estamos aqui”. Isso é um fator, mas,
por outro lado, “dessa coisa de ficar feliz no consultório... é, às vezes é assim e às vezes nem tão
feliz”.
Com relação ao SUS, a equipe considerou-se plenamente defensora e inserida nesse sistema
“estamos plenamente no SUS”, “a gente é muito SUS”. Indicam que se consideram inseridos no
SUS tanto por garantirem atendimento aos “menos favorecidos”, quanto pela garantia de acesso,
pelo cuidado integral, de prestação de serviço público (não no sentido de ser de graça) e “pra além
de garantir o que está lá na constituição, de que a gente tenta fazer, trabalhar em rede etc., a gente é
muito SUS do ponto de vista militante, a gente briga muito pra garantir o que é público, o que a
gente acredita que é direito das pessoas, direito de cidadania”.
Dentro das questões que motivaram a equipe além do contato com o paciente dois pontos
foram trazidos pela equipe:
O primeiro foi que os profissionais funcionavam como espelho, quer dizer, eles se
influenciavam e se refletiam “a gente olhando o colega, a gente se motiva a fazer cada vez
melhor”; “a gente vê que eles têm prazer em fazer o que fazem e fazem bem, a gente também vai
fazer bem o que a gente faz pra auxiliá-los”. Mesmo quando determinado profissional fala “que
está tudo ruim, que não tem a estrutura que deveria ter, que está decepcionado, mas com que amor
e dedicação ele se presta a isso, faz com que os outros tenham o estímulo de querer melhorar e dar
atenção”.
117
Nesse sentido, contar com profissionais críticos, com ideologia, que militam pela
construção do SUS (como é o caso dessa equipe), fazia a diferença. Em dado momento, referiu-se
que “a gente precisa de líderes, que levam a gente, que carregam, que dão um pouco de esperança.
(...)eu acho que hoje a gente está com uma crise, mais do que só, eu acho que é uma crise moral
mesmo, uma crise de falta de liderança. (...)eu acho que tem a falta de uma luz, de alguém que fala
vamos! É isso aqui! E às vezes é a gente mesmo que não está construindo isso”.
Um segundo ponto esteve relacionado com o vínculo construído e estabelecido entre os
profissionais da equipe. “Existe uma coisa daquele momento do encontro, que é o mesmo encontro
que a gente tem da nossa equipe é o encontro que a gente tem com o paciente, que ele produz
alguma coisa, surge alguma coisa dali, é um caminho”. O fato da equipe estar trabalhando junta há
bastante tempo, de terem enfrentado dificuldades juntos e buscado soluções, possibilitou a
construção de uma relação embasada na confiança, troca, parceria, como um fator de
fortalecimento dos membros da equipe. “(...) nós tivemos um momento na casa pequena, apertado,
um momento difícil, mas que serviu até pra unir. De todas as coisas ruins que a gente teve naquela
casa, talvez ela tenha servido pra deixar todo mundo pertinho. Então, a gente era uma equipe só,
todo mundo junto e aí compartilhava consultório, compartilhava isso, comia junto, tinha uma série
de momentos, a gente até dançava junto, lembra?”.
O compartilhar, as trocas, possibilitaram maior entrosamento, união e enfrentamento das
dificuldades, pois a equipe também buscou soluções em conjunto. “Nos momentos das crises,
dificuldades, não paralisa e continua inventando coisas novas. É interessante que todo ano inventa
uma ideia nova. Vamos fazer isso, fazer uma ideia nova, vou mudar, vou organizar diferente, vou
fazer um grupo, fazer uma proposta e todo mundo se reúne pra pensar uma proposta nova diferente
pra este momento”.
Essa construção cotidiana de parceria tem garantido para esta equipe o comprometimento
com os colegas de trabalho, o apoio e a confiança, além de ser um suporte para lidar melhor com
as dificuldades. “E essas pessoas podem confiar umas nas outras, na minha impressão, porque elas
estão juntas. Então assim, parece que no meio do desespero, rola um alento de você ter certeza de
que tem alguém do seu lado, tem certeza de que tem alguém que está ali. E quando a gente encosta
nesse limite, as outras pessoas todas encostaram também, porque estão todas rodando nessa
frequência de conter o caos, de lidar com essa situação. Eu acho que essa é a questão do trabalho
de equipe”.
118
Acreditam que uma das vantagens da equipe foi resistir e trabalhar em conjunto, o que pode
ser pelo fato desta equipe ter tido pouca rotatividade de profissionais e estar trabalhando junto há
um bom tempo. “Participando até dos problemas pessoais das pessoas, acolhendo, eu acho que
tudo isso faz a gente ficar mais forte pra aguentar o que vem lá de fora. E as pessoas sabem disso,
eles reconhecem isso”. Como consequência, uma equipe unida, parceira, que trabalha em conjunto,
tende a ter o mesmo tratamento com relação aos usuários “Se é acolhedora com os próprios
colegas, não teria por que ser diferente com o usuário”.
Com relação à gestão da Atenção Básica para a atenção básica, a equipe demonstrou que o
aprendizado, a formação e o conhecimento acontecem de maneira empírica, no cotidiano e na
prática do trabalho. Pela própria organização da rede de serviços e do processo de trabalho na
unidade, reconheceram algumas diretrizes ministeriais, como a estratégia Saúde da Família,
trabalho em equipe multiprofissional, territorialização e adscrição de clientela, reconhecimento das
necessidades de saúde do território, trabalhar na lógica da clínica ampliada.
No entanto, as informações do Ministério da Saúde ecoavam pouco para os profissionais e,
muitas vezes, a equipe recebia informações por vias informais e não pela gestão municipal. “É às
vezes a gente sabe pela televisão que alguém está fazendo alguma coisa que a gente nem sabe o
que é”. Avaliam, ainda, que existem inúmeros programas e que a equipe pouco os conhece. “Essa
parte dos programas, eu acho que é tanta coisa que eu acho que a gente nem sabe. Estão
engavetadas e nem chegam pra gente, programas, ações desenvolvidas lá, que a gente ouve, mas
não chega, demora muito pra chegar”.
Além disso, denotou-se que ficaram desconfiados com os programas, por terem enfrentado
situações em que os programas foram lançados, mas não foram desenvolvidos. Frente a isso,
ficaram desanimados e descrentes com a política. Exemplificam um fato que aconteceu na saúde
da criança, quando os profissionais participaram de reuniões e do lançamento de uma cartilha que
seria utilizada e, no entanto, não receberam esse material. “A gente que está há muito tempo já não
acredita em muita coisa (...). Mas a gente continua trabalhando, sem a cartilha e sem nada, mas a
gente fica com uma interrogação: mas, puxa, aquilo foi uma grana de dinheiro, pra desenvolver
todo aquele projeto. Foi o lançamento e teve um monte de chamadas na época, na área da saúde da
criança, veio gente de fora, e daí lança um negócio que nunca chega nas maternidades, com
algumas exceções, e o material está todo lá no Ministério, amontoado lá, apodrecendo e
estragando”. Apesar da descentralização e da linearidade das esferas de governo descrita na
119
legislação, os profissionais desconfiam da gestão, principalmente da que está mais distante
(Ministério da Saúde), e consideram que a não defesa do SUS por parte dos governos fica entre a
incompetência ou o propósito de privatizar.
Avaliam que existe uma dificuldade na relação com o Ministério da Saúde, mas também
uma dificuldade com a burocratização organizativa municipal e com a criação do que chamaram de
“sistema paralelo”, dado o fato do município não aderir à maior parte dos programas do Ministério.
“Quando eu cheguei aqui eu tinha muita dificuldade de entender se eu estava no Saúde da Família,
ou se eu estava num sistema à parte que a Prefeitura adotou”. “Daí você emperra numa burocracia
importante que é não estar cadastrado. A gente trabalha com sistemas paralelos, a gente usa
sistemas de informação paralelos e não consegue constatar informação de nenhum dos dois, porque
não tem quem vá digitar, quem vá compilar e quem vá nada disso”. Essa liberdade que o município
tem em definir e programar as ações e a rede de saúde, interferiu em questões da macropolítica que
assolavam o município e a rede de saúde em geral (como por exemplo, o financiamento), mas
também de micropolítica que interferia diretamente na rotina do trabalhador.
Nesse sentido, avaliaram que os trabalhadores não têm autonomia para fazer gestão do seu
próprio trabalho. “A gente está aqui, faz a clínica, cuida, olha, é ético, mas a gente não decide, não
organiza, não gere. A gente recebe, tem uma conversa, em parte, boa com a coisa da gestão, em
parte não tão boa, mas tem alguma conversa ainda, mas não é a gente que faz. Então é bem
angustiante porque isso está dado e isso é muito concreto”. A maneira que a equipe consegue
interferir em tudo isso é através da reflexão, da crítica e da discussão entre a equipe, sem muita
possibilidade de transformação na política “mas na prática e a questão de intervir enquanto equipe,
eu acho que a gente até tem a crítica, mas acho que a gente tem muito pouco poder”.
Considerando isso, retomaram a dificuldade na relação com o Ministério da Saúde e com os
programas, que muitas vezes atravessavam e não eram pactuados com as equipes. Um exemplo
disso foi o PMAQ que, segundo a equipe, foi uma avaliação arbitrária e pouco eficaz. “(...) foi uma
avaliação totalmente externa, que não foi construída com ninguém aqui e uma pessoa com um
outro olhar veio fazer uma avaliação, foi muito ruim. A gente não teve poder nenhum”.
Denunciaram, que o avaliador externo conversou apenas com um profissional da unidade,
que a equipe não pôde intervir no processo e “mais grave do que isso” a melhoria da qualidade,
que era o objetivo do programa, não avançou. “Tá bom, a gente foi e a avaliação foi externa,
violenta, só ouviu uma ou duas pessoas, tá bom, a gente é ruim e é isso mesmo. Só que a ideia é
120
promover a melhoria da qualidade e aí o dinheiro veio e a gente vai melhorar a qualidade como
mesmo? Porque já se passaram 6 meses da avaliação, vai acontecer outra daqui a pouco e a gente
não mudou, não chegou nem na forma do recurso financeiro e nem na forma do apoio da gestão.
Simplesmente não veio. A gente nem discutiu o que tinha que melhorar”.
Houve reclamação com relação ao apoio da gestão pelo avaliador externo ou a comissão do
PMAQ que classificou a equipe, mas não fez uma apresentação da avaliação ou compartilhamento
das ideias, apenas foi anunciada a classificação da equipe. Sendo assim, consideraram a falta de
sentido do programa, por não existir uma construção conjunta e uma pactuação de objetivos e
metas. “Nunca ter uma resposta, isso incomoda bastante”. “Saiu a média, a gente é ruim, ok, e a
gente vai fazer a prova de novo, daqui a 6 meses e vai ser ruim de novo? Isso não faz sentido”.
Apesar das dificuldades encontradas, a equipe considerou-se como um “foco de resistência
ao processo de desmonte” na saúde. Mas avaliaram que tiveram pouco respaldo e apoio da gestão
para desenvolvimento das ações “Não estamos recebendo o que poderíamos ter do SUS pra ofertar,
mas tudo o que a gente tem e pode oferecer, e disposição pra correr atrás pra que seja ofertado pros
usuários, a gente tenta fazer o melhor possível”.
Apontaram algumas propostas para enfrentamento dos desafios na atenção básica:
- capacidade de ter maleabilidade frente às ações programáticas, garantindo acesso e
longitudinalidade do cuidado, junto aos casos agudos. “Como é que a gente reinventa esse espaço
de cuidado que é flexível, que se adapta, que tem a influência do usuário e que ao mesmo tempo dá
conta de fazer a vigilância e enfrentar a epidemia? Porque ninguém mais vai fazer isso. Não é o
serviço privado que vai dar conta disso, não são as ONGs, OS, que vão dar conta disso. (...)Eu
acho que o desafio pra gente é encontrar aí uma equação que não nos custe lágrimas, sofrimento e
ranger de dentes todo dia”. Avaliam que a maleabilidade é uma maturidade da equipe em se
adaptar ao contexto vivenciado e não ficar amarrado às ações que se faz sempre, ao programático,
apenas. “Como que a gente tem maleabilidade pra não romper e se adaptar? A gente ter coragem e
falar vamos fechar muitas das agendas programadas, porque nós estamos num momento de guerra,
de epidemia e como é que a gente se reorganiza?”;
- favorecer e qualificar a participação popular. “Eu acho que o usuário ainda não é
suficientemente escutado na hora de se organizar serviço, organizar as coisas. A gente organiza
tudo por eles, acha que sabe o que eles pensam, as necessidades, as organizações, eu acho que é
um desafio que nós vamos ter que amadurecer mais como fazer. Apesar de ter os conselhos, eu
121
acho que a gente não escuta suficientemente quem usa os serviços. A gente quase que nem autoriza
ele a dizer que é dono”.
No geral, referem avanços percebidos no trabalho desenvolvido na rede básica, como o
acesso aos serviços de saúde (foi indiscutível a ampliação do acesso), o trabalho na lógica da
estratégia Saúde da Família (apesar de considerarem que não estavam atuando “burocraticamente
certinho” na estratégia, visualizaram que trabalhavam nessa lógica e que alcançaram resultados).
Como resultados apontaram a vantagem para a população em ter ofertas de saúde mais próximas à
residência, melhora nos indicadores de saúde materno-infantil, diminuição das doenças
cardiovasculares e melhor controle das mesmas. Perceberam, ainda, um acompanhamento mais
eficiente dos usuários. “Eu acho que isso tem a ver, a gente não percebeu isso, não falam “foram
vocês”, mas foram sim. Eu acho que a gente tem impacto, eu percebo isso, eu vejo os meus
pacientes mais controlados do que eram antes”. Além disso, relataram a importância das práticas
integrativas, como o liang gong e o movimento vital expressivo, tanto para a equipe com a lógica
da promoção da saúde e do trabalho em grupo, quanto para os usuários que referem sentirem-se
melhor e menos doentes. Apesar de não ser um dado mensurável, a equipe reconheceu o impacto e
os benefícios à saúde da população e resgatou que foi uma opção de investimento pensada no
início do ano, bancada pela equipe e que, atualmente, ocorre quatro vezes na semana.
No final, uma das participantes do grupo comentou que fazia Mestrado no mesmo grupo da
pesquisadora e que ficou muito contente em ter participado do grupo de discussão por “poder viver
junto com a equipe essa experiência, de que isso que a gente faz tem muito a ver com o nosso
trabalho”. Refere que tem dispensa de uma parte de sua carga horária para cumprir as tarefas do
Mestrado e a equipe sabe disso. Então, poder participar deste momento, junto com sua equipe, “faz
toda a diferença”, inclusive porque esta é uma equipe “que tem se preocupado em produzir
teoricamente sobre o que faz”.
Com a finalidade de contextualizar as narrativas foi elaborada uma quadro que permite
observar as categorias de análise que surgiram nas narrativas, assim como, os temas discutidos
junto com os discursos ou relatos que os complementam.
122
Quadro 2: Contextualização das narrativas por categorias de análise, do primeiro grupo de discussão.
Categorias de análise
Temas Discurso
Dificuldades - Desassistência (falta de reposição de RH, desassistência da rede, AB como única possibilidade de atendimento) - Contexto político interfere na prática de trabalho (desorganização da rede desorganiza o trabalho na UBS) - Sobrecarga no atendimento à demanda espontânea - Diversas faltas (equipamento, estrutura, RH, materiais) - Mau gerenciamento do recurso financeiro
“as pessoas foram demitidas e não tem reposição”. “(...) a impressão que a gente tem é a de que uma parte da rede está desmontando na nossa cabeça e no nosso trabalho”. “Eu desacreditei demais na política, nos políticos em geral. (...) Não querem nem saber o que está acontecendo aqui com a comunidade (...)”.
Sofrimento no Trabalho
- Contexto político, faltas, desestruturação da rede = desânimo do trabalhador, desorganização da equipe, aumento da demanda espontânea - Privatização da saúde - Falta de investimento/ suporte do gestor = interferência arbitrária no trabalho das equipes; necessidade urgente de mudança da rotina de trabalho
“(...) todas as conversas e espaços em que eu vou, é um desânimo”. “(...) a gente está cansado e não sabe como é que a gente vai fazer, mas a gente vai resistir”.
Papel da Atenção Básica
- Conceitos: vínculo, longitudinalidade, proximidade e conhecimento das famílias e território, trabalho em equipe, acolhimento, referência = “densidade na relação” com usuário - Especificidade da AB = relação e vínculo que permeiam atendimento (não procedimento ou tecnologia) - Assume o que é da AB mas também procedimentos de outros níveis de atenção (PA), com mais qualidade, por conta do vínculo e do cuidado - Desejo de solucionar todas as demandas - Dificuldade de reconhecer seu limite e anunciá-lo à comunidade - ACS = ponte entre profissionais/ UBS e comunidade
“Não é porque a gente faz o que é PA aqui que o que é nosso alguém está fazendo. Não está!”. “(...) a gente não pode olhar pra eles do mesmo jeito que olha uma pessoa que nunca foi tomar um café com eles, que não foi na casa, não pegou na mão”. “(...) a gente não tem que dar conta de tudo, porque a gente tem um limite também”.
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Categorias de análise
Temas Discurso
Potencialidade/ persistência da equipe
- Realização e satisfação com o trabalho (possibilidade de conviver com o paciente) - Profissionais funcionam como “espelho” (influenciam-se) - Vínculo entre a equipe (encontro com a equipe = encontro com paciente) - Compartilhar, trocas, buscar soluções em conjunto = maior entrosamento - Construção cotidiana de parceria = comprometimento com colegas → apoio, confiança e suporte para lidar com dificuldades - Pouca rotatividade de profissionais favorece o entrosamento - Equipe defensora do SUS
“Acho que a grande coisa que eu me realizo é ter a oportunidade de conviver com essas pessoas”. “olhando o colega, a gente se motiva a fazer cada vez melhor”. “(...) a gente era uma equipe só, todo mundo junto e aí compartilhava consultório, compartilhava isso (...), a gente até dançava junto, lembra?”. “Se é acolhedora com os próprios colegas, não teria porque ser diferente com o usuário”.
Gestão da Atenção Básica
- Conhecimento e formação acontecem na prática do trabalho - Informações MS: ecoam pouco e chegam informalmente (não pela gestão municipal) - Muitos programas do MS, os quais a equipe pouco conhece - Desconfiança: programas (lançamento mas não desenvolvimento), gestão (principalmente MS), descrença na política - Não defesa do SUS (pela gestão) está entre a incompetência e propósito de privatizar - Dificuldade na relação com MS (programas atravessam e não são pactuados com as equipes) - Burocratização organizativa municipal (“sistema paralelo”) - Autonomia do município interfere na micro e macropolítica - Não há autonomia para gestão do próprio trabalho - PMAQ = avaliação arbitrária e pouco eficaz - Equipe resiste mas tem pouco apoio da gestão - Possibilidade de ser dispensado para fazer pesquisa (gestão e equipe assumem)
“É às vezes a gente sabe pela televisão que alguém está fazendo alguma coisa que a gente nem sabe o que é”. “A gente que está há muito tempo já não acredita em muita coisa”. “Essa parte dos programas, eu acho que é tanta coisa (...). Estão engavetadas e nem chegam pra gente (...)”. “Quando eu cheguei aqui eu tinha muita dificuldade de entender se eu estava no Saúde da Família ou num sistema à parte que a Prefeitura adotou”. “(...) a gente até tem a crítica, mas acho que a gente tem muito pouco poder”. “(...) pra além de garantir o que está lá na constituição (...) a gente é muito SUS do ponto de vista militante, a gente briga muito pra garantir o que é público”.
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Categorias de análise
Temas Discurso
Propostas - Maleabilidade ao programático para garantir cuidado/ longitudinalidade (casos agudos) - Favorecer/ qualificar a participação popular
“A gente ter coragem e falar vamos fechar muitas das agendas programadas, porque nós estamos num momento de guerra (...)”. “Eu acho que o usuário ainda não é suficientemente escutado (...). Ele não é dono”.
Avanços percebidos
- Ampliação do Acesso - Trabalhar na lógica da ESF = ofertas de saúde próximas da residência, melhora nos indicadores de saúde materno-infantil, diminuição e controle das doenças cardio-vasculares, acompanhamento mais eficiente dos usuários, importância das práticas integrativas (equipe/ usuário) - Interesse da equipe em produzir teoricamente sobre a prática - Importância desta pesquisa para o grupo (refletir e experimentar)
“(...) Eu acho que a gente tem impacto, eu percebo isso, eu vejo os meus pacientes mais controlados do que eram antes”. “(...) poder viver junto com a equipe essa experiência, de que isso que a gente faz tem muito a ver com o nosso trabalho”.
3.2. Partindo do mesmo lugar: entre as coincidências e as singularidades
O segundo grupo de discussão foi realizado com a equipe de referência de um Centro de
Saúde do Distrito Leste. Esta unidade de saúde é responsável por uma média de 23.000 pessoas
(segundo informações dos profissionais) que apresentam cerca de 70% de SUS-dependência.
Trata-se de uma região das margens do centro expandido da cidade, que apresenta grandes
contrastes sócio-econômicos e algumas áreas de risco sócio-ambiental e sanitário. A área de
abrangência corresponde a quinze bairros e o Centro de Saúde conta com um total de cerca de 100
funcionários, divididos em quatro equipes de referência. As equipes contam com as seguintes
categorias profissionais: 1 Médico Generalista, 1 Médico Pediatra, 1 Médico Gineco-Obstetra, 1
Enfermeiro, 3 Auxiliares de Enfermagem, 1 Dentista, 1 Técnico em Saúde Bucal, 4 Agentes
Comunitários de Saúde, 1 Educador Social (que realiza Apoio Matricial às quatro equipes). A
unidade conta, ainda, com uma Psicóloga (que realiza Apoio Matricial à uma equipe) e uma
125
Terapeuta Ocupacional (que também realiza Apoio Matricial à uma segunda equipe), de modo que
duas equipes de referência não recebem Apoio Matricial da equipe de Saúde Mental.
Durante o grupo de discussão, havia sete profissionais presentes da equipe um, sendo: uma
Enfermeira, uma Médica Pediatra, uma Dentista, uma Auxiliar de Enfermagem, um Educador
Social, uma Médica Clínica Geral e um Técnico em Saúde Bucal.
Após a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e a explicação sobre
objetivos e metodologia da pesquisa, a moderadora do grupo apontou que seriam abordadas as
dificuldades, desafios e perspectivas do trabalho na Atenção Básica.
O primeiro ponto abordado pela equipe esteve relacionado às dificuldades vivenciadas na
prática de trabalho, referidas como o acolhimento de casos agudos, uma demanda excessiva, que
superava as vagas agendadas. A equipe denunciou que havia uma inversão da lógica na atenção
básica e apontou que, inclusive, quando optaram por trabalhar nesse nível de atenção visualizavam
o trabalho preventivo, o atendimento longitudinal e os grupos. “Não é inversão de valores, é
inversão da lógica mesmo da atenção básica. (...) Não é aquilo que a gente se propõe a fazer numa
atenção básica”.
Apesar do empenho da equipe em (re)conhecer o território e sua população, criar ofertas
que contemplassem as necessidades de saúde dos usuários, ficavam engessados com a demanda
espontânea que surgia na unidade. “Eu quero ter um horário, se o meu paciente ficar doente- eu,
Pediatra - quero ter esse horário pra atendê-lo. Porque é o normal, é o nosso papel. Eu não quero
que ele vá no PS, não precisa ir, mas, de repente eu tenho que atender de outras equipes, de outros
lugares, como ela falou, falta pro meu paciente. E até atendendo muito eventual, nós não estamos
atendendo os eventuais nossos. É totalmente errado”.
Citam como exemplo, o interesse em realizar um grupo de medicação, visto que existiam
muitos usuários analfabetos e que não faziam uso adequado do medicamento. Nesse grupo, as
medicações seriam separadas, as receitas renovadas, as profissionais fariam orientação e
investigariam como os usuários estão administrando os remédios, inclusive realizando uma
avaliação clínica. Esse seria um grupo preventivo, de educação em saúde e de orientação, ou seja,
um grupo de atenção básica, com enfoque nas necessidades dos usuários e que, porém, a equipe
não consegue realizar. “Mas eu conheço a minha comunidade, isso que eu acho mais importante,
focar realmente na comunidade, na atenção básica e não estamos fazendo! Aí, a gente tem que
126
acolher todo mundo. Então vamos ver, é um pronto atendimento ou um centro de saúde? O que a
gente tem que fazer? Então eu acho que isso a gente tem dificuldade sim”.
A visão tradicional de saúde como ausência de doença e em consequência, do tratamento
enquanto cura, existia não apenas na estrutura organizacional, mas também, na estrutura física dos
equipamentos. “(...) fica evidente que o centro de saúde não é construído pra ser um espaço para a
prevenção. Ele não tem sala de reunião, não tem onde fazer grupo, tá certo? A estrutura física do
prédio é uma estrutura voltada pra clínica restrita ou pra clínica degradada, não para a clínica
ampliada. Usando lá os termos Paidéia. Então a lógica desse prédio é uma lógica do consultório,
uma lógica curativa. E é uma lógica queixa-conduta. Não é um prédio que permita grupos, que
permita uma sala de recepção onde a gente possa ter a convivência lá, o vídeo passando com
atividades. Não tem equipe, não tem...”.
Apontaram que a política “portas abertas” foi uma política de Campinas e que em diversos
espaços de discussão, compartilhados pelos profissionais, percebeu-se que a queixa era a mesma.
“Então me parece uma coisa meio universal no universo de Campinas. Entendeu? Essa coisa do
pronto atendimento na atenção básica e a superlotação que decorre aí. Aparentemente, a gente não
consegue mesmo absorver uma demanda que realmente cresceu. (...) E eu não sei se é por falta de
profissional, eu não sei se é só isso. Mas a nível de rede, eu sinto que existe essa saturação real.
Pelo menos percebida, pelos profissionais”.
Nas falas percebeu-se a situação com que se deparavam os profissionais, indicando
estratégias tomadas por alguns membros das equipes para suprir as dificuldades de estrutura e de
falta de material mínimo que possibilitasse o desenvolvimento das atividades e organização das
demandas da população. “Quem compra isso daí, é cada um de nós. A gente pega, compra e traz a
etiqueta. Visualmente é mais fácil e até porque na hora que a gente for juntar, a gente junta de uma
maneira mais correta. E de saber: ele é da minha equipe! Não que eu vou deixar de atender uma
equipe, ocasionalmente, mas pra gente conhecer a nossa unidade”.
Além disso, na tentativa de organizar os prontuários individuais em prontuários familiares,
seguindo a lógica do atendimento focado na família, a equipe disponibilizou-se em trabalhar fora
do horário de trabalho, realizando um mutirão para organizar os prontuários familiares, os quais
são valorizados pelos profissionais. “Quando eu vou tratar, eu trato a família inteira, é muito mais
fácil eu pegar um prontuário familiar e ver a família. Porque se eu trato o colesterol da mãe,
certeza que o filho vai ter, a gente orienta.”. Mas essa organização não está sendo possível, apesar
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da valorização destes por parte dos profissionais, afirmam não ter material adequado para abrigar
os prontuários familiares, apenas envelopes. “A gente não tem o prontuário familiar, porque (...)
não tem o prontuário pra colocar (...) a pasta que a gente recebe (...) ela rasga com muita
facilidade, ela descola, ela abre, ela desmonta. Então, pra abrigar um prontuário gordinho, não
dá!”.
Referindo-se aos Agentes Comunitários de Saúde, apontaram uma dificuldade em relação a
um melhor aproveitamento e reconhecimento do papel deste profissional. “A gente não conseguiu
ainda nem pensar como é que a gente pode se apropriar mais do Agente Comunitário de Saúde,
que é o que está de fato no território (...) ainda não conseguimos pensar em estratégias de
intervenção no espaço físico (território) como um espaço de produção de saúde”.
Em relação ao contato com a população a equipe relatou: “não consigo sair, a gente não
consegue sair e perguntar pros líderes de comunidade o que eles querem, o que a comunidade quer.
Qual orientação que ela quer? Quais ações que ela quer de saúde?”. Avaliaram que seria
importante programar as ações de acordo com os desejos e necessidades da comunidade.
No entanto, apontaram que “não tem uma ação pensada ou uma intervenção estruturada
porque a gente não conseguiu ainda se apropriar dessa ideia de que o território é um instrumento
de prevenção e de promoção de saúde. Tá certo? A gente não consegue estabelecer essa
interlocução com a comunidade de uma forma sistemática e eficiente. Eficaz”.
Na discussão do grupo surgiu a questão da medicalização da vida como algo bastante
comum e corriqueiro na atenção básica. “(...) eu tenho bastante pacientes idosos. (...) E a maioria
dos meus pacientes estão adoecendo por solidão. Então, muitos deles estão entrando com
antidepressivos. (...) O que a comunidade poderia oferecer em termos de trabalho, de atividade? O
que está sendo feito pra essa terceira idade? (...)e a gente ter recurso pra não precisar tratar com
medicação essa comunidade. Eu poderia tratar com outra coisa”. Mas, mesmo a equipe se sentindo
responsável e interessada no seu território a falta de recursos e incentivos impediria que o trabalho
pudesse ser realizado de uma forma séria, responsável e equânime.
Outro problema denunciado foi a falta de conhecimento dos fluxos no município, ou seja, a
falta de conhecimento sobre o funcionamento da rede de serviços. Referiram não haver um fluxo
claro e, inclusive, alguns serviços e atividades a equipe acabou tendo conhecimento por vias
informais ou até pelo relato dos usuários. Apontaram que muitas vezes não conseguiram saber
sequer das ações que aconteciam no próprio território. Esse fato deixou a equipe desamparada e
128
com a sensação de que “a gente é sozinha, eu me sinto sozinha, não no sentido da equipe, porque a
equipe às vezes a gente dá um jeito, entendeu? A gente vai conversando, tudo. Mas assim, não tem
informação”.
Faltou orientação, faltou coesão no modelo, mas faltaram, também, recursos básicos. “(...) a
gente não tem nem evolução clínica. Não tem folha de evolução”. Apesar do indicativo para
realização de reuniões de equipe de referência, alguns profissionais simplesmente não conseguiram
participar destes momentos, devido à falta de funcionários.
Apesar disso, contaram que apenas há cerca de quatro meses veio uma orientação para que
todos os profissionais fossem inseridos nas equipes “Porque até então, nós tínhamos profissionais
que diziam assim: eu não participo de nenhuma equipe. Então assim, ficou... ficou. E foi aceito
isso. Sendo que a gente tinha as equipes (...)”. Apesar desta divisão de profissionais por equipe ter
ocorrido no município a partir do ano 2000 com o Paideia, apenas em 2013 esta equipe aderiu a
esta diretriz. E, no entanto, a equipe retoma a “culpa” para si e diz “mas assim, veio na minha
cabeça agora, talvez o mais importante seja as pessoas mesmo, a mobilização”.
A equipe relatou pouco contato com o Apoiador Institucional. Não tinham clareza sobre a
função do Apoiador e, inclusive, questionaram quem era essa pessoa, não se lembravam,
confundiam com o coordenador do Distrito. Apontaram que a unidade tinha um Apoiador e a
equipe de Odonto outro e compararam que o Apoiador da Odonto reunia-se com esta equipe
bimestralmente. Já a equipe geral, nem se lembrava qual fora a última vez em que tiveram contato
com o Apoiador da unidade. Não seria por acaso a falta de conhecimento com relação a essa figura
e sua função. Aparentemente, o Apoio, não estaria conseguindo fazer apoio! “E os Apoiadores... o
que é função do Apoiador? Eu nem sei qual é a função do Apoiador, pra falar a verdade viu,
porque até agora, se alguém puder me explicar...”.
Avaliaram, ainda, que as Secretarias não se articulavam e não se comunicavam. “É uma
coisa, assim, absurda isso. Eu ter que descobrir pelo paciente”. Isso dificultaria o trabalho da
equipe no dia a dia, pela falta de conhecimento dos serviços, das ofertas e dos fluxos.
Compreenderam que a equipe teria que ter a disponibilidade e a sensibilidade para reconhecer o
território, mas isso ficava ao encargo da equipe, dos profissionais, ou seja, não havia estímulo ou
cobrança para que tivessem essa abertura, para que realizassem ações nesse sentido e tampouco o
nível central ocupava-se em fortalecer essas ações. “Eu acho que também tem a nossa parte. Então
assim, a gente tem que conhecer o território, tem que conhecer os equipamentos, mas assim, a
129
gente não tem essa mudança. Mudou o horário disso, mudou o horário daquilo, entrou um curso
novo, nós não sabemos. Então, a gente conhece os equipamentos. Inclusive, antes de você vir, a
gente fez uma visita lá. Mas fomos nós que fomos lá, lembra?”.
No entanto, a equipe ficava consumida pelos atendimentos dentro da unidade e “a gente
conhece o território, mas conhece fotográfico, não é um conhecer dinâmico, não é um conhecer no
tempo. Porque as coisas mudam, só que a gente não está no território, porque a gente está preso
dentro da unidade”. E algumas outras falas deixavam bem clara a limitação da equipe e a atuação
limitada do governo: “A gente é massacrado!”; “Porque a nossa capacidade de estar no território,
conhecendo o território, analisando o que está acontecendo no território, é também limitada...”;
“Agora, não... tem o outro lado da coisa, que é obrigação do governo, de fornecer pra nós o
instrumental de ação no território. Tá certo? Por exemplo, os equipamentos públicos existentes no
território, que são do governo, esses, é papel do gestor municipal, que nos deem a informação do
que está acontecendo”.
E, mais uma vez, acumulavam-se funções para os profissionais. “Então, a gente tem que
fazer diversos papeis, pra que o projeto dê certo. A gente está fazendo, aos trancos e barrancos,
mas a gente podia abranger uma população maior. Mas em termos de fluxo, a Prefeitura inteira é
equivocada! Ela não faz um fluxo decente. Ah, a Prefeitura é enorme, não tem problema... pra isso
existem os Distritos. O Distrito tem que saber do território dele, conhecer o território dele. Não é
possível, gente, que você seja o coordenador de um Distrito e você não consegue saber quantos
centros comunitários você tem... tem que ampliar isso. Você tem que ter uma foto do local. Aí,
deixa só no centro de saúde. O centro de saúde tem que fazer isso, isso, aquilo... a gente não
consegue fazer”.
Outro problema apresentado correspondeu à população migratória que vem de outras
cidades e estados em busca de tratamento de saúde, mas não permanecem habitando esse bairro
por muito tempo. “E essa população vem, se trata e volta pra Bahia. Então, geralmente eles vêm
querendo a consulta em dois, três dias, os exames também, rapidinho, pra eles voltarem pra Bahia.
Eu falei que não existe isso, que a gente tem que tratar do paciente e o tratamento não é uma
consulta, é um projeto que você tem que fazer. Então, a nossa população está bem diferenciada”. E
acrescentam: “A gente tem que estar toda hora criando estratégias, porque está bem diferente”.
Além disso, a falta de recursos também foi algo bastante importante, no sentido de que
pode funcionar como um impeditivo para as ofertas. “Nós não temos material didático, a gente tem
130
que estar tirando do bolso, comprando, sabe? Se a gente tivesse isso daí eu acho que atrairia mais
pessoas. Uma coisa lúdica, atrairia mais. A gente não tem nada, a gente não tem nada pra oferecer,
sabe? Nada vezes nada. Se você quer oferecer, por exemplo meu grupo de gestantes, se quiser
oferecer alguma coisa, tem que ser do bolso, do meu bolso, tem que... então, a gente não tem nada,
não tem material nenhum”.
Valorizaram a criatividade e a reutilização de recursos, no entanto, julgaram que isso não
poderia acontecer para substituir alguma falta, quer dizer, “Uma coisa é você fazer oficina e
fabricar escova de dente com varetinha de bambu como uma experiência episódica, pra mostrar ó,
era assim que se fazia antigamente. Agora, você ter que fazer isso porque não tem um outro
recurso, é complicado! Tá certo? Assim, a ideia da reciclagem é uma ideia de você complementar
coisas, não a ideia de suprir carências. Tá certo? Tem um recurso disponível, então vamos pensar
como é que a gente aproveita ele. E aí o que a gente tem vivido aqui é o contrário, é não tem da
onde a gente tirar. Então, com a sucata que tem aí o que dá para a gente fazer? É um jeito diferente
de olhar pra coisa, e não é o melhor jeito, assim, viver do improviso é muito ruim”.
Outro membro da equipe concordou e reconheceu que isso era muito comum.“Mas é o que
a gente faz mesmo. As nossas coisas é com sucata e (...) tipo assim, as nossas coisas da Odonto,
assim, a gente faz porque a gente insiste em fazer mesmo, porque a gente vai com o nosso carro,
tira dinheiro do bolso, tá? Então assim, é uma coisa de teimosia mesmo que a gente faz”.
Apesar de compreender a importância de estar no território, os profissionais ficavam
sensibilizados com os demais que estavam sendo absorvidos pela demanda espontânea. “Eu, assim,
na verdade, pra eu propor uma coisa dessas eu (...) eu vivo tímido de falar uma coisa desse tipo
porque eu olho pro jeito como essa equipe está aprisionada dentro do centro de saúde,
enlouquecida com uma demanda batendo na porta. Então assim, eu fico com medo de falar uma
coisa dessas e isso soar como se eu tivesse surtado, tá certo? E dizer, ó, sai desse consultório, pára
de atender esse monte de gente e vem pra cá!”.
Os profissionais denunciam uma situação de desamparo da equipe e sensação de solidão
que leva ao sofrimento no trabalho. Essa situação se dá tanto pela falta de apoio e orientação por
parte da gestão, quanto pelas diversas faltas (materiais, recursos financeiros e humanos) e
enfrentamentos que os profissionais travam no cotidiano de trabalho. “Então é mais ou menos isso,
a gente cobre um, deixa o outro mais ou menos. É uma equipe de Mcgyver, você já assistiu aquele
filme?”.
131
Além disso, a política “portas abertas” citada anteriormente, conduz a uma demanda
espontânea que não corresponde à realidade da equipe, gerando, assim, sofrimento ao trabalhador.
Nesse sentido, as faltas e as lutas/enfrentamentos diários acabam desgastando a relação
com o trabalho. “Ah, eu estou porque eu gosto. Eu estou há mais de vinte anos e eu mantenho a
mesma ideia e a mesma postura de quando eu entrei. Hoje, um pouco mais desanimada...”.
Contudo, qual seria a autonomia que a equipe teria para colocar em prática seus desejos e
as ofertas que pensavam com base no que observavam das necessidades do território? A resposta
indica o fato de que a equipe montou uma proposta e ficou lutando, tentando convencer, ora a
gestão, ora a própria equipe de que isso seria importante.
Com relação ao papel da atenção básica, esta equipe referiu que o foco é a prevenção. “Eu
vim de pronto socorro (...). Quando eu vim pra atenção básica, pra mim, eu tinha que fazer a
prevenção dos pacientes”. Mas o que o profissional encontra é não apenas a prevenção, no sentido
stricto do termo, mas a prevenção e o cuidar para que o quadro não se agrave. “Hoje eu estou
fazendo um pronto atendimento e isso é muito complicado, porque eu posso investir num paciente
diabético pra ele não virar um renal crônico no futuro e a gente pega a vaga do pronto
atendimento”. Porém, ocorria um “desbalanço”, “então a gente não consegue fazer o papel, pra
mim, do posto de saúde, que você tem que prevenir as doenças, fazer os grupos. Eu acho isso daí
complicado. Hoje a gente apaga incêndio”, a equipe socorre os acolhimentos, que muitas vezes são
casos de pessoas que moram em outras regiões e até outros municípios, não restando vaga para um
usuário que é vinculado e acompanhado pela equipe.
Entenderam que o foco prioritário da atenção básica deveria ser a prevenção, mas
assumiram que a equipe pouco consegue fazer nesse sentido. “Ao mesmo tempo, você não tem
como atender algumas coisas do pronto atendimento aqui, não tem nem medicação pra você tratar
e nem estrutura”.
Em meio à discussão do grupo, um dos profissionais reconheceu no discurso da equipe, a
inserção na Estratégia Saúde da Família, dada a responsabilização pelo território e pelos usuários
de sua área de abrangência, o vínculo com o usuário, conhecer a comunidade e a comunidade
(re)conhecer a equipe. “A nossa equipe! Tem, naturalmente, a gente fala em família”.
A equipe justificou a ausência dos Agentes Comunitários de Saúde, que não puderam estar
presentes no grupo de discussão, pois foram convocados para uma ação de urgência no território
132
sobre a dengue. Reconheceram o papel deste profissional pela vivência e o conhecimento, de fato,
que têm do território.
Apesar de alguns estarem esperançosos, outros nem tanto, os profissionais demonstram
certo grau de potencialidade/persistência da equipe quando apontam a escolha por atuar na
atenção básica e a satisfação com o trabalho. A escolha esteve relacionada à possibilidade de
trabalhar a prevenção e, mais do que isso, a possibilidade das trocas com a equipe e com os
usuários, a possibilidade do trabalho criativo (e não do trabalho formatado) que progrediria para
resultados inesperados, para produção de saúde e qualidade de vida. “Mas eu estou aqui pra
trabalhar, eu estou aqui por causa da população, eu trabalho porque eles existem. Eu penso assim”.
Essa possibilidade do encontro e da produção, fortalece, estimula e possibilita o desejo de
continuar.
Compreendendo resistência enquanto as estratégias utilizadas pela equipe para enfrentar as
dificuldades, uma estratégia de enfrentamento apontada foi a possibilidade do acolhimento da
equipe entre os próprios profissionais, as trocas, ter espaços de compartilhamento. Nesse sentido,
as reuniões de equipe eram dispositivos potentes “isso é muito bom, esse processo todo. A gente
partilha o que a gente faz. Isso também era uma coisa muito solitária o dentista lá no consultório,
então, assim, essa coisa de trazer na reunião só tristeza, porque só tem assédio sexual e não sei o
que, a gente sai acabada, só desgraça... então assim, a gente tem o foco, a gente tem esse espaço e
isso foi um ganho muito grande”.
E contudo, percebeu-se uma equipe persistente, que buscou criar os mecanismos certos ou
não para a população que a procurava, “a gente faz, com os recursos que a gente tem”.
Com relação à gestão da Atenção Básica, a equipe considerou que o modelo, tanto
implantado em Campinas quanto o proposto pelo Ministério da Saúde, privilegiava a ação curativa
e a ação de saúde individual. “(...) o Ministério remunera mais a ação individual do que grupo. A
cidade tem uma lógica que é do consultório”. O modelo de saúde ainda é centrado no médico e,
por isso, a cura, o remédio, o pedido de exame. No entanto, “seria preciso, até pra desafogar o
sistema, que as ações coletivas fossem privilegiadas. No sistema como um todo, no modelo como
um todo. E não tem”.
Apontam uma questão em relação ao SUS, que, segundo eles, “não é uma política de
estado, é uma política de governo. Esse é que é o problema! Não tem interesse nenhum em fazer
outro Paidéia, o interesse é o contrário!”.
133
A gestão, por sua vez, dividia-se em gestão local (e mais próxima dos trabalhadores) e
gestão central (nível central municipal, ou gestão estadual e federal). A equipe, apesar de não
perceber claramente, denunciou o papel fundamental do gestor que estaria mais próximo (ou
deveria estar) dos trabalhadores (gerente local, Apoiadores e gerentes Distritais) que,
acompanhando a equipe de perto, deveria ter a percepção e a sensibilidade de apontar fragilidades
e auxiliar a equipe na organização das ações, orientando, estimulando e acompanhando o processo.
Porém, muitas das atividades, inclusive a organização básica da unidade, ficavam sob a
responsabilidade dos profissionais, sem apoio da gestão para que elas acontecessem. Um exemplo
era a questão dos prontuários familiares, que é algo da organização do serviço, e da organização
básica do serviço, que deveria existir para possibilitar um bom desempenho das atividades. A
equipe pareceu estar bastante incomodada com isso e retomou o assunto dizendo que esta era a
única unidade do município que não contava com prontuário familiar. A equipe organizou-se,
elaborou propostas, organizou-se para fazer um mutirão, visitou outras unidades que têm esses
prontuários para pensar em como poderiam executar essa tarefa e, no entanto, não puderam
executar o que pretendiam, porque a gestão não disponibilizava os prontuários, ou seja, o recurso
material adequado.
Esta equipe considerou que não havia uma homogeneidade dentro da mesma unidade, pois
as equipes eram muito diferentes e pensavam de maneira diferente. Desse modo, acreditavam que
se o grupo de discussão acontecesse com outra equipe, desta mesma unidade, as respostas seriam
bem diferentes.
Consideraram, ainda, que as mudanças nas características do território repercutiam
consequentemente no trabalho da equipe. “Algumas ações que a gente fazia antes davam certo.
Então, por exemplo, alguns grupos, enchiam de gente. Os grupos que a gente fazia de puericultura,
por exemplo, eram... não tinha espaço, de tanta mãe. E assim, as coisas mudaram, as coisas todas
mudaram. Então, hoje em dia, as mulheres não faltam do trabalho pra vir no grupo, não tem com
quem deixar a criança... eu acho que isso mudou muito. (...)E as que a gente teve a capacitação, o
treinamento pra aquelas ações, funcionavam. Agora, não funcionam. Então assim, é uma coisa que
eu acho que a gente ficou pra trás, nesse sentido”.
Com base nos apontamentos feitos até o momento, a equipe sugere algumas propostas,
pensando na qualidade do trabalho para o profissional, para o usuário e para o próprio sistema. Os
profissionais avaliaram que existia um bom entrosamento entre todos os membros da equipe.
134
Todos participavam do projeto terapêutico e cada um tinha um papel. Porém, “eu acho que a gente
ainda tem um desafio de se apropriar do território, de entender o território enquanto um espaço de
produção de saúde”, isto porque os profissionais ainda ficam muito presos nas ações individuais e
dentro da unidade.
Sendo assim, para o bom funcionamento do sistema de saúde, além da capacidade (clínica,
pedagógica, afetiva, relacional) dos profissionais, seria necessário que ocorresse a sensibilização
da atenção básica, “sensibilizar a ponta, para poder a coisa andar”, e, sem dúvida, algumas ações
têm que vir “de cima pra baixo. (...) tem algumas coisas que você mobiliza e outras coisas que têm
que vir de cima pra baixo, sim!”. Nesse sentido, para além do imperativo e da força do que é de
“cima pra baixo”, a equipe tentou mostrar que o nível central (municipal, estadual e federal)
deveria garantir, minimamente, tanto a efetivação da política de saúde quanto as condições básicas
de trabalho.
Para enfrentar os desafios, dependeria tanto da equipe quanto da gestão. Na equipe temos a
organização da equipe, o modo como trabalham, a colaboração entre os profissionais, as cobranças
e a fiscalização. Na gestão, principalmente, as diretrizes e o modelo a ser seguido. “Mas sabe o que
eu acho, eu vou ser bem sincera... que, por exemplo, os modelos eles têm que vir de cima pra
baixo, de uma maneira pra contemplar a saúde coletiva, pra gente conseguir trabalhar essa
comunidade de uma maneira mais eficiente precisa estar atrelada com verba. Se você não tiver, por
exemplo, uma produção de tantas horas com grupos, não é destinado tal verba pra tal município.
Infelizmente, se a gente não mexe com o dinheiro, a gente não mexe com propostas diferentes.
Então, deveria fazer parte de todo profissional, ele ter uma hora pra fazer saúde coletiva, fazer os
grupos, que precisa! Não é só medicalizar”.
Além disso, consideraram que para enfrentar os atuais desafios, talvez, fosse apropriado um
segundo momento Paidéia. “Eu acho que estaria na hora, talvez, de ter de novo (...) vamos ver (...)
quando começou o processo Paidéia a gente estava num outro atendimento. Agora, a gente
evoluiu, se dividiu em equipes, já atende na lógica, com todas as dificuldades, tocou pra frente”.
Mesmo assim, existia uma expectativa em relação aos profissionais, no geral, esperavam que fosse
ocorrer de uma outra maneira, se a gente tivesse um segundo momento aqui, talvez fosse a hora, de
um segundo momento agora”.
Dessa maneira, reforçaram a importância de “ter alguém” auxiliando a equipe a pensar no
processo de trabalho e fazendo uma articulação entre as questões do território, do cotidiano do
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trabalho e dos princípios e diretrizes do SUS. O interessante foi que não classificaram essa função
como Apoiador e não sabiam quem deveria ter esse papel, apenas comunicaram que “falta pra
gente também um... eu acho que uma nova visão, alguém orientando a gente, conversando com a
gente sobre isso”.
A equipe, ainda anuncia alguns avanços percebidos. Para esta equipe, o Paidéia em
Campinas foi um marco, um divisor de águas, que trouxe mudanças no sistema de saúde
municipal, que possibilitou apoio às equipes e proporcionou capacitação aos profissionais.
Quando questionados sobre os avanços percebidos com a Estratégia de Saúde da Família,
apontaram o vínculo com a população, conhecendo e sendo reconhecido pelos usuários, além do
estabelecimento de parcerias e da qualidade do atendimento. “Eu acho que o cuidado melhorou”.
Enfim, frente a tantos problemas, desafios e ao abandono da equipe por parte da gestão, os
profissionais ainda sonhavam, desejavam e acreditavam e, muito provavelmente era isso que os
alimentava e que não os deixava desistir. Então, de quais expectativas da equipe estamos falando?
Para esta equipe, os desejos giraram em torno de práticas desmedicalizantes, como “eu queria fazer
uma medicina preventiva, não só curativa. E eu queria fazer uma medicina não tão medicalizada,
tanto remédio, remédio (...) mas que eu tivesse outros recursos de tratamento”. Além disso, as
expectativas concentraram-se na realização de grupos, na melhoria do espaço físico e no maior
contato com o território. “Minha expectativa a curto prazo, pequenininha, poder ver seus 15% de
ações coletivas sem pressões excessivas”. A consideração sobre o espaço físico vai de encontro às
práticas coletivas e comunitárias e estar no território não é um estar sozinho, de um ou dois
profissionais, mas um estar em grupo, da equipe estar junta no território. “Sai do centro de saúde e
vai pra escola, sai do centro de saúde e vai pra ONG, sai do centro de saúde e vai pra creche, mas
sai do centro de saúde e vai pra rua, vai pra praça, vai pro espaço aberto pra fazer a ação no
território e não enclausurado dentro de um espacinho fechado que está lá. Que continua não sendo,
do meu ponto de vista, o território no sentido mais amplo e abrangente”.
A equipe ainda relatou o desejo em ouvir o que a pesquisadora e a moderadora do grupo
avaliaram da discussão, pois “isso é uma coisa que a gente, que é legal você dar essa recíproca,
porque todo mundo vem, vem, vem e ninguém fala nada”. Parece que denunciam uma sensação de
que são usados e não têm devolutiva e apoio de nenhum lugar. No entanto, avaliam que participar
do grupo de discussão foi bastante enriquecedor, pois estimulou a reflexão, ou seja, fez o grupo
parar, olhar e refletir. “eu estou achando que é muito legal, porque nós não paramos mais... E aí,
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parar pra gente pensar... é... eu estou achando muito interessante! Eu acho que sempre aparece uma
ideia, uma ideia na cabeça, eu acho que esse é um momento bem legal”.
A seguir, apresenta-se a contextualização das narrativas do segundo grupo de discussão, de
acordo com as categorias de análise propostas, os temas surgidos e o discurso que o complementa.
Quadro 3: Contextualização das narrativas por categorias de análise, segundo grupo de discussão.
Categorias de análise
Temas Discurso
Dificuldades - Inversão da lógica na AB (demanda excessiva e PA) - Modelo biomédico (reforçado pela estrutura física) - Falta de orientação e coesão no modelo - Falta de reconhecimento do papel do ACS e aproveitamento insuficiente de sua função - Medicalização da vida - Falta de conhecimento sobre o funcionamento da rede, os fluxos e ofertas de serviços - Pouco contato com o Apoiador/ falta de Apoio - Falta de articulação entre Secretarias - Acúmulo de funções (faltas da equipe e pouco RH) - Trabalho profissional centrado nas ações individuais, com pouca apropriação do território - Pouco entrosamento com líderes da comunidade para reconhecimento das necessidades do território - Escassez de recursos (financeiros e materiais) e incentivos →impeditivo para ofertas - Equipe tem que comprar, doar materiais ou produzir com sucata - Não ter prontuário familiar (falta de apoio e incentivo da gestão) - Recente divisão dos profissionais por equipe de referência - População migratória que não permanece no bairro
“(...) eu olho pro jeito como essa equipe está aprisionada dentro do centro de saúde, enlouquecida com uma demanda batendo na porta”. “Nós não temos material didático, a gente tem que estar tirando do bolso, comprando (...). A gente não tem nada pra oferecer”. “Eu nem sei qual é a função do Apoiador”. “(...) se o meu paciente ficar doente, quero ter esse horário para atendê-lo. Porque é normal, é o nosso papel. Eu não quero que ele vá no PS (...)”. “Então a gente não consegue fazer o papel (...). Hoje a gente apaga incêndio”.
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Categorias de análise
Temas Discurso
Sofrimento no Trabalho
- Situação de desamparo da equipe - Avaliar, responsabilizar-se, construir e ter que lutar/ convencer a gestão e a equipe (ação) - Não autorização de autonomia (profissional) - Política “portas abertas” = política de Campinas = sofrimento - Faltas e enfrentamentos diários = desgaste do trabalhador e desânimo - Falta de apoio e orientação → pedido de ajuda, necessidade de suporte
“Então é mais ou menos isso, a gente cobre um, deixa o outro mais ou menos. É uma equipe de Mcgyver, você já assistiu aquele filme?”. “(...) Eu estou há mais de vinte anos e eu mantenho a mesma ideia e a mesma postura de quando eu entrei. Hoje, um pouco mais desanimada...”.
Papel da Atenção Básica
- Foco prioritário deveria ser a prevenção, mas a equipe pouco consegue fazer sobre isso - Trabalho preventivo, atendimento longitudinal, grupos → prevenção e o cuidar para que o quadro não se agrave - Equipe inserida na Estratégia Saúde da Família = responsabilização pelo território e comunidade; vínculo com usuário; equipe e comunidade (re)conhecem-se - Importância do ACS por realmente conhecer o território
“Eu vim de pronto socorro (...). Quando eu vim pra atenção básica, pra mim, eu tinha que fazer a prevenção dos pacientes”. “Ao mesmo tempo, você não tem como atender algumas coisas do pronto atendimento aqui, não tem medicação pra você tratar e nem estrutura”. “A nossa equipe! Tem, naturalmente, a gente fala em família”.
Potencialidade/ persistência da equipe
- Bom entrosamento entre profissionais - Estratégia de enfrentamento = acolhimento da equipe pelos próprios profissionais (trocas e compartilhamento) - Escolha da AB (trabalhar prevenção, trocas com equipe e usuários, trabalho criativo) e realização (produção de saúde e encontro com usuário) - Reuniões de equipe = dispositivos potentes - Disponibilidade para organizar o trabalho (proposta de mutirão)
“(...) eu estou aqui pra trabalhar, eu estou aqui por causa da população, eu trabalho porque eles existem”. “(...) A gente partilha o que a gente faz. Isso também era uma coisa muito solitária o dentista lá no consultório (...) então (...) a gente tem esse espaço e isso foi um ganho muito grande”.
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Categorias de análise
Temas Discurso
Gestão da Atenção Básica
- MS remunera mais ação individual - SUS como política de governo - Mudança no território repercute no trabalho da equipe - Importância da organização da rede → Gestão próxima = possibilidade de apontar fragilidades, sensibilizar e apoiar equipe - Pouca apropriação do Distrito de Saúde (território – só responsabiliza a equipe) - Falta de apoio da gestão - Atividades da unidade (inclusive organização básica) ficam sob responsabilidade apensa dos profissionais - Não há homogeneidade dentro da mesma unidade (equipes diferentes, que pensam diferente)
“(...) os grupos que a gente fazia de puericultura (...) não tinha espaço de tanta mãe. (...) as coisas mudaram (...) as mulheres não faltam do trabalho para vir no grupo”. “(...) A cidade tem uma lógica que é do consultório”. “não é uma política de estado, é uma política de governo. Esse é que é o problema! Não tem interesse nenhum em fazer outro Paidéia, o interesse é o contrário!”.
Propostas - Necessidade do 2º momento Paidéia - Sensibilizar a equipe sobre a ABS - Ações verticais - Ter “uma pessoa” que ajude o grupo a pensar, perceber e resolver as dificuldades - Priorização das ações coletivas para desafogar o sistema - Apropriar-se mais do território
“(...) Então, deveria fazer parte de todo profissional, ele ter uma hora pra fazer saúde coletiva, fazer os grupos, que precisa! Não é só medicalizar”. “falta pra gente também um... eu acho que uma nova visão, alguém orientando a gente, conversando com a gente sobre isso”. “(...) tem algumas coisas que você mobiliza e outras coisas que têm que vir de cima pra baixo, sim!”.
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Categorias de análise
Temas Discurso
Avanços percebidos
- Melhora no cuidado (vínculo e reconhecimento) - Paidéia como marco de mudanças - Avanços percebidos com a ESF (vínculo, qualidade, parcerias)
“(...) quando começou o processo Paidéia a gente estava num outro atendimento. Agora, a gente evoluiu, se dividiu em equipes, já atende na lógica, com todas as dificuldades, tocou pra frente”. “Eu acho que o cuidado melhorou”.
Expectativas da equipe
- Práticas desmedicalizantes - Realização de grupos - Melhoria do espaço físico - Maior articulação e vivência do território - Devolutiva do resultado desta pesquisa (importância da participação = parar, olhar e refletir)
“Eu queria fazer uma medicina preventiva, não só curativa (...) não tão medicalizada”. “Sai do centro de saúde e vai pra escola, (...) vai pra ONG, (...) e vai pra rua, vai pra praça, vai pro espaço aberto pra fazer a ação no território e não enclausurado dentro de um espacinho fechado que está lá (...)”. “(...) é legal você dar essa recíproca, porque todo mundo vem, vem, vem e ninguém fala nada”. “Eu estou achando que é muito legal, porque nós não paramos mais”.
140
CAPÍTULO IV – Analisando o discurso do Trabalhador
Este capítulo refere-se à triangulação como método de análise de todos os dados obtidos na
pesquisa, considerando o conhecimento prévio da pesquisadora, assim como os estudos sobre a
política da AB, os debates de referenciais teóricos que analisam o SUS e em especial a AB, o
contexto político do município de Campinas e as narrativas das duas equipes que participaram dos
grupos de discussão.
4.1. A Construção da análise.
Na perspectiva de entrelaçar a complexidade de todo o conhecimento produzido, a
construção da análise se deu a partir do discurso das equipes de Atenção Básica, elencadas nesta
pesquisa como narrativas. As categorias que foram apontadas no discurso das equipes permitiram o
reagrupamento dos temas que surgiram no relato dos trabalhadores, os quais foram organizados em
grandes eixos por cada categoria e discutidos a partir dos debates teóricos, da legislação da AB, da
experiência da pesquisadora e da experiência do município de Campinas.
4.2. A Triangulação de Métodos.
Na triangulação de métodos, foram elencadas as seguintes Categorias: Dificuldades,
Sofrimento no Trabalho, Papel da Atenção Básica, Potencialidade/persistência da Equipe, Gestão
da Atenção Básica, Propostas, Avanços Percebidos e Expectativas da Equipe.
As Dificuldades representam as queixas dos trabalhadores sobre situações que dificultam a
realização do trabalho no cotidiano da equipe. Representadas na sensação e no estado de
(des)ânimo do trabalhador, conforme aparecem nos fatores identificados como causadores do
sofrimento no trabalho. O Papel da AB expõe a visão que os trabalhadores têm sobre os conceitos
da AB, tanto teóricos, quanto os apreendidos a partir da experiência e vivência prática. A categoria
Potência/persistência elucida os fatores que contribuem para a equipe persistir, apesar do desânimo
e das dificuldades, e as produções que alimentam, fortalecem e impulsionam os trabalhadores.
Diferentemente do sentido dado pela administração hierárquica vertical, a categoria Gestão da AB
está sendo utilizada num sentido ampliado, no modelo de co-gestão, entendido como a participação
dos trabalhadores e comunidade na organização do serviço e da rede de saúde (CAMPOS, 2000).
As Propostas dizem respeito às sugestões dadas pelos trabalhadores nos grupos de discussão que
141
acreditam poder contribuir para a qualificação e efetividade da AB. Os Avanços Percebidos são as
conquistas e melhoras que a equipe percebe ter alcançado, seja pela construção teórica, política ou
da própria criatividade dos trabalhadores. E por fim, as Expectativas da Equipe ilustram os anseios
e desejos da equipe com relação ao seu trabalho.
4.2.1 Categoria: Dificuldades.
Esta Categoria apresenta cinco eixos: Assistência, Mau Gerenciamento da Rede, Inversão
da Lógica da AB, Modelo Biomédico e Atendimento à População Migratória.
O primeiro grande eixo, Assistência, trata dos seguintes temas: recursos humanos,
infraestrutura e recursos materiais, financiamento e demanda.
Com relação aos recursos humanos, os dois grupos de trabalhadores denunciaram a
escassez de profissionais na AB, fato confirmado no relato da experiência da pesquisadora, assim
como nos estudos de Conill (2008). As narrativas também apontam a dificuldade para reposição
das vagas frente à aposentadorias, demissões, afastamentos do trabalho e/ou necessidade de
ampliação de vagas pela complexidade do serviço. Neste caso, Barbosa (2010) compreende que a
Lei de Responsabilidade Fiscal limita a criação de novos cargos e a regularização do número de
profissionais frente às necessidades do serviço, de modo que, segundo Machado (2008), a
renovação e contratação de novos profissionais acontece por meio da precarização dos vínculos de
trabalho. Este autor compreende que essa situação remete à história da implantação do SUS que
não se comprometeu com uma política efetiva de RH, não defendendo uma perspectiva de carreira
profissional no SUS. Esta situação é, ainda, confirmada pelas Normas e Manuais Técnicos do
Ministério da Saúde (2006), quando avaliam que a maioria das Secretarias Estaduais e Municipais
de Saúde não possuem Planos de Cargos e Carreiras e/ou estes estão desatualizados.
Santos (2008) considera que a reforma do Estado, com o ajuste fiscal, rompeu com a lógica
de bem estar social e, em consequência, imprimiu a precarização das relações de trabalho. Essa
política acarretou o subfinanciamento da AB (Conill, 2008), a precarização da gestão de RH e,
como consequência, a baixa resolutividade dos serviços. Campos et al (2008) critica, além do
financiamento insuficiente, o fato dele estar atrelado a um programa específico do MS, devendo
obedecer rigidamente às suas diretrizes e regras.
No discurso dos trabalhadores, não aparece uma discussão objetiva sobre o financiamento,
porém, está subliminarmente denunciada nas reclamações sobre a escassez de recursos materiais e
142
de infraestrutura precária. A pesquisadora também concorda com estas denúncias, todavia, analisa
essa situação como sendo um descuido dos três níveis de gestão.
O estudo de Furlan; Amaral (2008) aponta que a dificuldade do planejamento das ações na
AB está relacionada à sobrecarga para o atendimento da demanda espontânea. Esse fato também é
relatado nos grupos de discussão desta pesquisa e as equipes avaliam que tanto a alta demanda da
população no serviço, quanto a escassez de profissionais, comprometem a organização do trabalho
e causam sobrecarga ao trabalhador, gerando acúmulo de funções, impossibilidade de ampliação
das ações e ofertas e comprometimento da qualidade do serviço.
Campos et al (2008) discutem, também, sobre a dificuldade de fixação de profissionais e a
alta rotatividade destes nos serviços de saúde, principalmente a categoria médica. Na narrativa do
grupo 1, os profissionais avaliam a importância da fixação de profissionais no serviço, uma vez
que a pouca rotatividade favorece o entrosamento, fortalece a equipe e gera comprometimento
entre os colegas de trabalho, que passam a buscar soluções em conjunto e lidam melhor com as
dificuldades que aparecem no cotidiano de trabalho. Além disso, compreendem que uma equipe
unida e que trabalha em conjunto, tende a ter o mesmo tratamento com relação aos usuários.
Para Conill (2008), o acesso é o grande nó crítico, pois embora esteja garantido aos
cidadãos o direito à saúde (Santos, 2008), a quantificação de profissionais não é analisada de
acordo com a realidade de cada serviço de saúde.
O segundo eixo, dentro da Categoria Dificuldades, é o Mau gerenciamento da rede.
Compreendendo que o contexto político interfere na prática de trabalho, os grupos de profissionais
denunciaram um mau gerenciamento do recurso financeiro, uma desarticulação entre as Secretarias
Municipais, pouco contato com Distritos e Apoiadores, falta de orientação, coesão no modelo e de
divulgação sobre ofertas e fluxos, gerando a falta de conhecimento sobre o funcionamento da rede.
Isso pode ser justificado pela tese de Giovanella; Mendonça (2008) de que, dada a possibilidade de
autonomia do município, existe uma diversidade de modelos implementados de AB e SUS. Conill
(2008), ainda reconhece uma demanda excessiva de informações por parte do MS, fragilidades na
gestão e na organização da rede, gerando uma rede desintegrada.
A pesquisadora reconhece que muitos dos problemas enfrentados no cotidiano de trabalho,
dentre eles a falta de recursos materiais e de recursos humanos, ficam a cargo dos profissionais e
gerentes de serviço, visto que, na maioria das vezes, o gestor não se preocupa em encontrar
soluções objetivas para ajudar as equipes, nem mesmo apoiá-las. Para Campos; Guerrero (2008) na
143
prática cotidiana há uma responsabilização dos trabalhadores pela produção em saúde. Afirmam
que, apesar da legislação, não houve mudança efetiva na prática de trabalho, porém, na tentativa de
solucionar esses problemas, as sugestões dos gestores, geralmente, permeiam a padronização do
trabalho clínico como única alternativa de assistência. Nesse contexto, a pesquisadora aponta que
uma das opções dos gestores tem sido a do remanejamento de profissionais, a qual interfere no
processo de trabalho de toda equipe, pois como consequência diminui as ofertas e, de certo modo,
diminui a qualidade das ações e dos programas planejados.
Cunha (2010) compreende que alguns fatores no gerenciamento do serviço e na gestão do
sistema, contribuem para a frustração e desresponsabilização dos trabalhadores, assim como para a
vulnerabilidade do serviço à sazonalidade eleitoral. São eles: ocupação inadequada de cargos
gerenciais, modelo gerencial taylorista, dificuldade em valorizar os serviços e trabalhadores mais
dedicados e eficazes e a ausência do papel do Estado em regular e definir as vagas para a
especialidade. Sobre essa questão, Campos et al (2008) aponta uma ausência de política de pessoal
e de projeto consistente para a formação de especialistas (desde a contratação, acesso à educação
permanente e formação especializada). A pesquisadora também denuncia a inexistência de uma
política efetiva de gestão de pessoas, apesar desse tema ter sido discutido em todas as Conferências
de Saúde, desde 1960. No início da implantação do PSF, o MS, reconheceu que o financiamento e
a política de recursos humanos eram pilares fundamentais para o desenvolvimento deste programa
e que a valorização do trabalhador de saúde garantiria acesso e qualidade dos serviços, assim como
melhoria das condições de trabalho (Brasil, 2003). No entanto, ao invés de uma política de RH,
criou a SGTES, uma Secretaria que, apesar de possibilitar a existência de um espaço de discussão
sobre o trabalhador da saúde, não tem dado conta dos dois eixos a que se propõe, pois confundiu a
gestão da saúde e a gestão do trabalho em saúde.
Interessante observar que no discurso do trabalhador não aparecem reclamações sobre a
política de pessoal no SUS. Talvez porque, as condições de trabalho sejam tão precárias, que os
profissionais nem vislumbram a possibilidade de uma carreira no SUS, ou seja, não compreendem
que seria um direito. Por outro lado, relatam que, frequentemente, dada a falta de materiais, a
equipe compra ou doa materiais para poder garantir ofertas aos usuários, ou até mesmo, produz
materiais com sucata. Todos esses apontamentos incorrem na precarização e no engessamento do
sistema de saúde.
144
Para Fleury (2011), a qualidade do serviço está diretamente relacionada ao desempenho da
equipe profissional. Porém, o subfinanciamento, o sucateamento do sistema, a precarização das
relações de trabalho e de retribuição aos profissionais de saúde, gerou um distanciamento dos
trabalhadores para com o projeto SUS e, em consequência, o SUS está cada vez mais distante dos
desejos da população. Nessa linha de debate, Machado (2008), Campos (2006) consideram que a
precarização dos vínculos de trabalho são um obstáculo para o desenvolvimento do SUS, visto que
compromete a relação dos trabalhadores com o sistema e prejudica a qualidade e a continuidade
dos serviços.
O terceiro eixo refere-se à Inversão da Lógica da AB que aparece no discurso dos
trabalhadores como uma queixa por não conseguirem realizar ações de prevenção, promoção e
continuidade do cuidado em saúde. Devido à demanda excessiva “batendo à porta” e aos inúmeros
atendimentos caracterizados por procedimentos de Pronto Atendimento e Pronto Socorro, a equipe
avalia que fica apenas “apagando incêndio”. Reconhecem que este procedimento realizado na AB
é diferenciado e, por isso, considerado mais eficaz, pelo vínculo que permeia a relação (também
apontado por Cunha, 2010). No entanto, compreendem não ser possível cumprir a missão da AB
que seria o vínculo com a comunidade e território, a longitudinalidade do cuidado, as ações de
promoção e prevenção, além das ações de assistência e recuperação da saúde. Relatam, ainda, que
reconhecem a importância desse papel e que escolheram trabalhar na AB para desenvolver um
trabalho nessa linha que, ao contrário do atendimento pontual e com foco na doença, como em
outros níveis de atenção, trabalha com a produção de vida e de subjetividade.
Cunha (2010) traz uma análise que auxilia na compreensão deste fenômeno. O autor avalia
que a sociedade relaciona-se com o sistema de saúde de acordo com a lógica dominante, que é a
lógica de consumo e, portanto, do livre acesso às ofertas. Nesse sentido, a população procura a AB
e os profissionais, como procura um produto na prateleira do supermercado. Os profissionais, por
sua vez, têm dificuldade em lidar com essa relação e em reconhecer o modelo de saúde que deve
ser proposto, até porque não recebem orientação, nem tampouco formação para tanto. A
pesquisadora avalia que existe uma dificuldade de compreender o papel do serviço e da AB (por
parte dos gestores, trabalhadores e população), o que compromete a vinculação com o serviço, não
favorece a compreensão sobre sua missão e a atuação em rede. A causalidade dessa questão pode
estar ligada a duas situações: as diferentes formas de organização do processo de trabalho (muitas
145
vezes com ações de menor complexidade, voltadas para a cura) e a frágil participação social (falta
de contato e diálogo com o usuário).
Para complementar essa discussão, Massuda (2008) atenta ao fato de que as transformações
sociais têm produzido novas demandas em saúde. Porém, o modelo tradicional de saúde produzido
pelos profissionais apresenta dificuldades e limitações para compreender a multiplicidade de
fatores envolvidos no processo saúde-doença. Desse modo, as práticas ofertadas estão em
descompasso com as demandas sociais.
O eixo 4 diz respeito ao Modelo Biomédico, ponto bastante discutido no grupo 2. As
equipes reconhecem que este modelo ainda é bastante comum na saúde e, para o grupo 2, está
presentificado na unidade em que trabalham. Os trabalhadores apontam que o modelo biomédico
permeia a postura dos profissionais, com trabalho centrado nas ações individuais e com pouca
apropriação do território, com uma clínica medicalizante (que enxerga a medicação como solução
dos problemas da vida), mas também, permeia a gestão, pois está reforçado pela própria estrutura
física das unidades, que apresenta muitos consultórios individuais e poucos espaços para grupos e
ações coletivas.
Campos; Guerrero (2008) e Cunha (2010) confirmam que a AB reproduz na prática o
modelo biomédico dominante, com a fragmentação da atenção, isolamento no trabalho e a
padronização das ações por patologias, em contraposição às ações coordenadas e resolutivas.
Carvalho; Cunha (2006) analisam que um grande problema no SUS é o insuficiente enfrentamento
das temáticas da mudança do processo de trabalho e da participação dos trabalhadores de saúde na
mudança setorial, confirmando a predominância do modelo biomédico. Esses autores inferem que
o modelo de saúde depende de como o profissional compreende seu objeto de trabalho e, sendo
assim, a teorização sobre o sistema público de saúde brasileiro, que, inclusive está amparada
legalmente, toma como objeto de trabalho em saúde o indivíduo e a comunidade em seu contexto
social. No entanto, de acordo com estes autores Carvalho; Cunha (2006), essa teorização não
garante a mudança do processo de trabalho, pois a aposta deveria estar voltada ao profissional de
saúde, em sua formação e capacitação.
O quinto e último eixo da Categoria Dificuldades traz uma discussão realizada pelos grupos
de trabalhadores sobre o Atendimento à população migratória. Em especial, o grupo 2 levantou
essa questão relatando que esta é uma característica marcante do território em que atuam e que traz
dificuldade para a rotina do trabalho da equipe. Esta equipe compreende que o tratamento não se
146
baseia numa única consulta/atendimento, mas trata-se de um projeto que presume a continuidade
do cuidado. Nesta pesquisa, não há apontamentos dos autores e da pesquisadora sobre essa
questão, porém, de acordo com a análise dos documentos do Ministério da Saúde, pode-se verificar
que o acesso está garantido por lei, e que a AB apesar de prever o atendimento territorial e adscrito
da clientela, deve atender os casos urgentes e situações pontuais (como por exemplo, trabalhadores
da região), encaminhando os usuários para a unidade de sua referência e/ou abrindo exceções para
vincular o usuário que, por questão de vínculo com a unidade ou trabalho no território, desejam ser
atendidos em determinado serviço de saúde. Desse modo, mais uma vez, aponta-se a necessidade
do papel da gestão, tanto para clarear e orientar os trabalhadores a consultarem as normas e
diretrizes, quanto em promover discussões e apoiar a equipe a desenvolver estratégias para lidar
com esses problemas. Deve-se apontar, porém, que comparado à realidade de Campinas, onde um
Centro de Saúde responsabiliza-se em média por 8 mil habitantes, fica muito difícil garantir a
missão da unidade e da ESF à população adscrita, quem dirá aos usuários de outras localidades que
necessitem e/ou desejem atendimento.
4.2.2 Categoria: Sofrimento no Trabalho.
Nesta Categoria foram levantados os principais eixos que traduzem situações que causam
sofrimento ao trabalhador da AB. Surgiram cinco eixos a saber: Desassistência; Privatização da
saúde; Falta de suporte do gestor e interferência arbitrária; Política “portas abertas” e Reflexo no
trabalho.
O eixo 6 (primeiro eixo desta Categoria) trata da Desassistência, referida pelos
trabalhadores como as faltas (de recursos materiais, humanos, financeiro, de orientação e apoio) e
os enfrentamentos diários que as equipes travam para garantir, minimamente, as ofertas do serviço.
A pesquisadora também denuncia em sua experiência profissional a deficiência de recursos
humanos, materiais, de investimentos e a precária estrutura física, que são confirmadas por
Campos et al. (2008) e Santos (2008). Os profissionais referem que a vivência dessas situações
geram desgaste e desânimo dos profissionais. Pinto; Coelho (2008) corroboram esta questão,
apontando que os trabalhadores reclamam da jornada de trabalho, dos salários, da segurança e do
ambiente de trabalho.
A Privatização da Saúde, eixo 7, foi também discutida nos dois grupos de trabalhadores e
apontada enquanto uma das causas do sofrimento no trabalho, dada a necessidade de resistência e
147
de luta travada diariamente pela equipe. Além disso, o contexto político e as ameaças de desmonte
do sistema de saúde causam instabilidade no trabalho, dificuldade para bancar ações conquistadas
e para defender o que está garantido, inclusive, legalmente. A equipe tem que travar uma luta
diária para convencer profissionais, gestão e população da importância e da possibilidade do SUS.
Nesse sentido, a pesquisadora reconhece que a não defesa do SUS gera sofrimento para o
trabalhador, que não consegue dar respostas efetivas para a população e acaba sendo pressionado, e
para o usuário a vivencia de um serviço pouco resolutivo e com baixa qualidade. Além disso, a
defesa do SUS fica por conta, quase que exclusivamente, dos profissionais que, muitas vezes,
lutam contra seus próprios gestores para cobrar recursos, solicitar melhorias e contestar a
privatização.
O oitavo eixo desta Categoria trata da Falta de suporte do gestor e da sua interferência
arbitrária no trabalho das equipes. Os dois grupos de discussão levantaram essa questão e
reclamaram da falta de apoio e de orientação por parte do gestor, inclusive, falta de orientação do
modelo de saúde proposto. Nesse sentido, o grupo 1 que tinha profissionais inseridos na Unicamp,
mostrou-se mais crítico e reflexivo. Já o grupo 2, mostrou-se bastante sofrido e desamparado, pois
não contavam, sequer, com a figura do Apoiador para auxiliar a equipe nas reflexões, discussões e
organização do processo de trabalho. Apesar de existir um Apoiador a equipe não tinha contato e
nem ao menos conhecia esse profissional. Em diversos momentos da discussão, essa equipe
apresentou pedidos de ajuda e necessidade de suporte.
Além disso, as duas equipes referiram sobre a falta de autonomia na prática de trabalho,
visto que muitas vezes intervenções arbitrárias atravessam a rotina de trabalho da equipe, sem
decisões previamente pactuadas ou sequer discutidas com os profissionais. Isso gera uma
necessidade urgente de mudança na rotina de trabalho que nem sempre é em benefício do serviço,
da população e/ou dos trabalhadores. Nessa situação, frente a esse desgaste, os profissionais
assumem o papel de reavaliar seus projetos e ações, tendo que muitas vezes, abandoná-los, quando
não, têm que lutar diariamente para convencer a gestão, e muitas vezes, a própria equipe da
importância das suas propostas para garantir sua permanência.
A Política “Portas Abertas” é o eixo 9 da Categoria Sofrimento no Trabalho. O grupo 1
compreende que o contexto político interfere na rotina do trabalho e que a demanda espontânea
gera sobrecarga ao trabalhador e desorganiza a rotina, visto que algumas ações são deixadas de
lado para que todos os usuários possam ser atendidos. O grupo 2, por sua vez, compreende que a
148
Política “Portas Abertas” é uma política do município de Campinas que garante o atendimento a
todo indivíduo que procura a UBS e, dada a desestruturação da rede, a ineficácia e falta de
resolutividade do PA e PS, a AB fica como única possibilidade de atendimento. Porém, essa
situação gera uma demanda espontânea que não corresponde à realidade e à capacidade de
absorção da equipe, e traz sofrimento ao trabalhador. Apesar dos documentos da Secretaria
Municipal de Saúde de Campinas apresentarem uma falta de direcionamento político na área da
saúde, com base no discurso dos trabalhadores, fica claro que a única diretriz proposta pela gestão
é a “porta-aberta”.
O décimo e último eixo desta Categoria diz respeito ao Reflexo no Trabalho. Para os
trabalhadores, as situações de sofrimento no trabalho refletem-se na situação de desamparo da
equipe. A pesquisadora, em sua experiência profissional, percebia o sofrimento do trabalhador e a
sobrecarga de trabalho que se traduziam em situações de apatia e imobilismo, manifestadas por
ações isoladas e individualizadas e refletidas em sensação de solidão e abandono, assim como,
frustração ao enfrentar situações que lhe causavam sofrimentos. Todas estas situações geravam
comprometimento do vínculo, da qualidade da assistência e do reconhecimento do território. De
fato, pode-se compreender que diversas situações são responsáveis por gerar sofrimento no
trabalho, tais como: falta de capacitação e formação do profissional para compreender e atuar na
complexidade na AB; as condições precárias de trabalho e vínculo empregatício; falta de
reconhecimento e valorização do trabalhador; os problemas sociais e de saúde que ultrapassam a
possibilidade de resolução pelo serviço e pelo profissional; alta demanda principalmente do
atendimento emergencial; falta de comprometimento e responsabilidade do profissional com
relação ao seu trabalho e a equipe; dificuldade de garantir e promover o trabalho em equipe.
Corroborando com esta avaliação, o estudo de Onocko-Campos et al (2012) aponta que os
trabalhadores referem que o sofrimento no trabalho está ligado aos seguintes fatores: sentimento de
impotência mediante a vulnerabilidade social; tratamento paliativo como única resposta aos
problemas pessoais e sociais dos usuários; necessidade de lidar com problemas que não são
exclusivos do campo da saúde e sim do campo interdisciplinar; alta demanda atendida e
medicalização como única alternativa de tratamento; lógica assistencialista e a doença como foco
principal do trabalho, contrapondo-se às ações de promoção e prevenção de saúde; dificuldade da
comunidade em aderir aos espaços comunitários e aos grupos propostos pela equipe; falta de
reconhecimento do trabalho produzido pelo profissional da AB.
149
Por outro lado, Pinto & Coelho (2008) reconhecem que os pedidos dos trabalhadores dizem
respeito à jornada de trabalho, salário e ambiente. Neste sentido, raramente discute-se sobre a
singularização da atenção, a reformulação do trabalho e das atividades desenvolvidas pelos
trabalhadores.
4.2.3 Categoria: Papel da Atenção Básica.
Os eixos desta categoria foram: Relação com território e usuário; Desejo de solucionar
todas as demandas e prevenção.
O primeiro eixo (11) corresponde à relação com o território e usuário. Neste eixo os
profissionais reconhecem a missão e as especificidades da AB que são: vínculo, longitudinalidade
do cuidado, proximidade e reconhecimento do território, referência, trabalho em equipe e
acolhimento. Apontam ainda, a importância do ACS que realmente conhece o território e destaca-
se como a ponte entre a UBS e a comunidade. Compreendem que a especificidade da AB não está
no procedimento ou na tecnologia empregada, mas sim na relação e no vínculo que permeiam o
atendimento.
Em sua experiência profissional, a pesquisadora percebia que a população mantinha
reclamações sobre a demora para atendimentos na unidade, para consultas com especialistas e, em
alguns momentos, sobre a conduta de determinados profissionais. O vínculo do usuário dava-se,
geralmente, com algum profissional de saúde e não, especificamente, com o serviço.
Pinto & Coelho (2008) denotam que o trabalho em saúde tem uma especificidade que se
resume no encontro singular entre usuário e trabalhador, onde a responsabilidade do trabalhador da
saúde é frequentemente maior do que em outros campos, pois sua autonomia está vinculada à
gestão e ao interesse dos usuários. Para Campos (2000) toda instituição tem uma tripla finalidade
que está direcionada aos gestores, usuários e trabalhadores, ou seja, produzir saúde, atender aos
interesses e necessidades da população e possibilitar a produção de subjetividade dos
trabalhadores.
O MS tem produzido documentos que procuram nortear as políticas de saúde e com relação
à AB, dos documentos que orientam sobre o processo de trabalho e as ações a serem
desenvolvidas, destacam-se: o Manual para Organização da Atenção Básica Brasil, (1998) e a
Política Nacional de Atenção Básica-PNAB (Brasil, 2006, 2011). O primeiro redefiniu a AB,
150
ampliando, portanto, suas responsabilidades e criou o PAB variável, na perspectiva de possibilitar
financiamento aos municípios que desenvolvem estratégias na AB.
A PNAB (2006, 2011) trouxe definições mais específicas sobre as ações necessárias e o
papel da equipe de saúde. Esses três documentos conceituam e definem o papel da AB, pautando
sua responsabilidade em garantir acesso e provocar reflexo em toda a rede, melhorar a saúde da
população e garantir distribuição equânime de recursos, estabelecer-se totalmente inscrita na
comunidade, oferecer ações de promoção, prevenção, diagnóstico, reabilitação, tratamento e
manutenção da saúde, além de estimular a participação social e atuar de forma intersetorial. A
PNAB (2011), ainda, infere a necessidade de acompanhamento e avaliação dos resultados
alcançados e a utilização dos sistemas de informação para auxílio no monitoramento e tomada de
decisões. Com relação ao papel da equipe, este documento aponta para o estímulo à participação
social, a coordenação da rede (entre serviços de saúde e intersetorialmente) e à equipe vinculada ao
território, sendo reconhecida como referência do cuidado em saúde para aquela região.
Na análise das narrativas dos profissionais participantes desta pesquisa pode-se perceber
que os trabalhadores têm pouco conhecimento sobre as políticas lançadas pelos governos, o que
denuncia, não só um problema na formação profissional, mas também na divulgação de
informações e na capacitação de pessoal. Porém, reconhecem seu papel e o papel do serviço,
principalmente no que diz respeito à relação e proximidade com o território, ao vínculo,
responsabilização e cuidado longitudinal. No entanto, este conhecimento dado pela prática
cotidiana de trabalho, está longe de conversar com a produção teórica do MS.
O eixo 12 salienta o Desejo de solucionar todas as demandas, apontado pelos trabalhadores
enquanto uma característica do trabalho na AB, visto que a proximidade com o usuário e com o
território produz uma vinculação e uma responsabilidade pelo cuidado da população adscrita. Isso
traz uma dificuldade em reconhecer o limite do serviço (e do próprio profissional) e em anunciá-lo
à comunidade. Dessa forma, assumem o que é da AB, mas também, procedimentos de outros
níveis de atenção e reconhecem que, nesse sentido, o atendimento prestado é de maior qualidade,
por conta do vínculo e do cuidado longitudinal. Porém, a AB tem um limite de suas possibilidades,
inclusive pela tecnologia disponível. A população, muitas vezes, procura esse serviço, por ser o
serviço de referência do cuidado em saúde no território e por não conseguir atendimento resolutivo
e eficaz na rede, não compreendendo a hierarquização do sistema. Isso acarreta uma alta demanda,
num serviço que já está inchado pelo número de população sob sua responsabilidade (número
151
elevado em relação aos parâmetros do MS) e que apresenta um escopo de atividades bastante
complexo e abrangente.
A PNAB (2011) recomenda que a UBS deva acolher e ouvir todas as pessoas que procuram
seus serviços, na tentativa de resolver a grande maioria dos problemas de saúde da população e/ou
melhorar danos e sofrimentos, ou ainda, responsabilizar-se pela resposta mesmo que sejam
ofertadas em outros pontos de atenção da rede. Levando em consideração os limites supracitados,
já seria difícil garantir a escuta de todos os indivíduos, procurando solucionar a maioria dos
problemas ou melhorar danos frente ao contexto vivenciado na AB. Na experiência da
pesquisadora o fato de coordenar o cuidado de um usuário encaminhado a outro serviço da rede,
fica uma tarefa quase que impossível.
O eixo 13 foi denominado nesta pesquisa por Eixo Prevenção. Na discussão sobre o Papel
da Atenção Básica, o grupo 2 pontuou que o foco principal do trabalho deveria ser a prevenção, ou
seja, cuidar para que o quadro não se agrave. Entretanto, a equipe pouco consegue fazer isso, dada
a alta demanda de atendimento.
Para Massuda (2008), no Brasil há uma tradição em restringir as ações de promoção e
prevenção em detrimento da clínica individual, de modo que, na prática, configurou-se um modelo
de saúde coletiva limitado ao perfil epidemiológico, sanitário e ambiental do território. Esse fator
configura a dificuldade em produzir a intersetorialidade e a participação social, a baixa
incorporação do contexto de produção do processo saúde-doença.
4.2.4 Categoria: Potencialidade/persistência da Equipe.
Dentro da Categoria Potencialidade/persistência da Equipe, os eixos apontados (Encontro
com Usuários, Trabalho em Equipe, Ideologia) referem-se aos fatores que contribuem e/ou
garantem a satisfação do profissional, o enfrentamento do sofrimento e a vontade de seguir adiante.
O primeiro eixo apontado, o Encontro com Usuários, remete ao discurso das equipes que
registrou a possibilidade de conviver com o usuário como possibilidade de realização e satisfação
com o trabalho. A pesquisadora indica em sua experiência que a resposta dos usuários, ou seja, sua
melhora, o vínculo estabelecido com o profissional, o reconhecimento do profissional e do serviço,
assim como sua gratidão, fortalecem os trabalhadores e imprime neles, também, esses sentimentos.
Este fator está ligado a outro ponto das narrativas e que corresponde ao eixo 15, Trabalho
em Equipe. Considerando este eixo, os profissionais concluem que o relacionamento entre
152
profissionais da equipe interfere no relacionamento com o usuário e vice-versa. Ou seja, se a
equipe tem um bom relacionamento, com base no cuidado, na responsabilidade e no respeito, o
encontro com o usuário também acontecerá nessa linha. E quando o usuário estabelece esse tipo de
vínculo com os profissionais, isso também influencia o relacionamento da equipe. Outro ponto
colocado pelas equipes é de que os profissionais funcionam como “espelho”, sua postura,
comportamento e atitude influenciam os demais profissionais, desenvolvendo um sentimento de
empatia e um desejo de reproduzir este modelo apreendido.
Apontam, ainda, que alguns fatores contribuem para o fortalecimento e resistência da
equipe, como o bom entrosamento entre os profissionais, com uma relação estabelecida no apoio,
na confiança, no respeito e no comprometimento com os colegas de trabalho, além da construção
cotidiana de parceria que permite o compartilhar e as trocas, sugerindo a busca de soluções em
conjunto. Frente às dificuldades, a estratégia de enfrentamento é o acolhimento da equipe pelos
próprios profissionais, que se sustentam e oferecem suporte para lidar com os obstáculos. Para
tanto, alguns dispositivos são essenciais para garantir os espaços de encontro, diálogo e discussão
da equipe, como as reuniões de equipe (importantes dispositivos para fortalecer a equipe e a
organização do trabalho) e a pouca rotatividade dos profissionais (que favorece o vínculo e
entrosamento com população, profissionais e serviço).
A pesquisadora indica outras situações que geram fortalecimento e persistência da equipe,
como: intersetorialidade e estabelecimento de parcerias; fortalecimento da co-gestão e do trabalho
em equipe; aproximação da comunidade; busca de aporte teórico; desenvolvimento de projetos.
Nesse sentido, o reconhecimento do serviço e do profissional também são potentes e
transformadores para a equipe. Considera, também que a defesa desses dispositivos e de um
modelo de saúde que valoriza o trabalhador, podem ser vislumbrados nos preceitos do Paidéia
(Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, 2001). As reuniões de equipe, de Colegiado Gestor,
de Núcleo de Saúde Coletiva, de Conselho Local e Municipal de Saúde, a tentativa de fixação de
profissionais no local de trabalho, dentre outros, tiveram início no Paidéia e permanecem até hoje.
Porém, há que se destacar que inicialmente houve uma proposição dessa gestão, para nortear a
política pública de saúde e propor dispositivos para garanti-la, os quais foram ignorados pela
gestão posterior.
O último eixo desta Categoria refere-se à Ideologia dos profissionais. Ambos os grupos de
discussão apresentaram-se enquanto defensores do SUS, que lutam para sua efetivação, existência
153
e permanência. Foi com base nesse ideário e tendo em vista uma visão ampliada de saúde, que
optaram por trabalhar na AB, enquanto possibilidade de desenvolver um trabalho amplo e criativo,
que permita efetivamente a produção de saúde. Os profissionais relataram, ainda que a realização
do trabalho na AB se dá pela possibilidade de trabalhar a prevenção, pelas trocas e encontros com
a equipe e com os usuários.
4.2.5 Categoria: Gestão da Atenção Básica.
A Categoria Gestão da Atenção Básica está subdividida em 4 eixos: Formação,
Comunicação, Gestão e Avaliação.
O eixo 17 diz respeito à Formação do profissional de saúde. Nas narrativas, os profissionais
relataram que o conhecimento e a formação, acontecem na prática de trabalho e que há pouco
investimento na capacitação profissional. Esse debate também é apresentado por Campos (2006)
que, assim como os grupos participantes desta pesquisa, valorizam a Educação Permanente e a
aprendizagem que acontece na prática de trabalho, porém, aponta que a maioria das equipes da AB
não possuem especialização, residência ou qualquer outro tipo de formação. O autor considera a
importância do conhecimento teórico aliado ao conhecimento prático, visto que este modelo (EP e
ensino em serviço) não é capaz de solucionar qualquer problema, seja de ordem política, gerencial
ou até de formação insuficiente. Além disso, apesar da EP, as equipes continuam abandonadas.
Para Campos F.; Aguiar; Belisário (2008) a formação dos profissionais de saúde é de
essencial importância no desenvolvimento e manutenção de um sistema público de saúde. Porém,
estes autores consideram que o ensino tem sido influenciado pelo modelo flexneriano, restrito ao
paradigma biomédico (Campos, 2006) e essa herança cultural contribui para a pouca valorização
dos profissionais da AB, tanto pelas equipes de saúde, quanto pela população, tendo a
especialização como sinal de maior prestígio e maior renda (Starfield, 2002; Giovanella,
Mendonça, 2008). A herança cultural também é compreendida por Campos et al (2008) no
contexto histórico da saúde pública, visto que as ações de maior abrangência populacional e menor
complexidade, ficaram registradas no ideário da população e como consequência a o
reconhecimento dos serviços e dos profissionais como menos técnicos e menos qualificados.
Machado (2008) considera, ainda que a expansão de novos cursos de saúde ocorreu sem critérios
coerentes de qualificação de trabalho no SUS.
154
A dificuldade para a formação e capacitação para o SUS também é uma conclusão apontada
pela pesquisadora, assim como pelo Relatório de Gestão da Secretaria de Assistência à Saúde
1998/2001 (Brasil, 2003), o qual analisou que a maioria dos cursos de saúde no Brasil é baseada no
modelo flexneriano e que uma das grandes dificuldades do SUS é a formação profissional.
Ainda, há que se considerar que a menor parte de vagas da residência médica é destinada a
especialistas em AB (Cunha, 2010), o que colabora para a tendência de fragmentação e
especialização do conhecimento, avançando pouco na reconstrução e ampliação para a formação
de pessoal para o SUS (Campos, 2006).
A experiência da pesquisadora confirma que o trabalho em saúde é complexo, envolve
relações e subjetividades e por isso requer profissionais criativos, com habilidade e competência
para enfrentar situações adversas, para reiventar o cotidiano, pois é o trabalhador que na prática de
trabalho desenvolve e sustenta um projeto de ação para o SUS. Assim como Campos F.; Aguiar;
Belisário (2008) que sustentam a tese de que o trabalho em equipe demanda profissionais éticos,
humanos e respeitosos com o próximo, que não pensam apenas na cura individual, tendo
disposição para enfrentar desafios que vão além da saúde e exigem contato com outros serviços
(Stafield, 2002).
O eixo Comunicação (18) apresenta o discurso dos trabalhadores apontando uma
dificuldade na relação com o MS, devido ao distanciamento entre os programas decretados pela
gestão federal, que atravessam a rotina de trabalho dos serviços e não são pactuados com as
equipes. Nesse contexto, são inúmeros os programas lançados pelo MS, mas os mesmos são pouco
divulgados, de maneira que não há estratégia que garanta que essas informações cheguem até as
equipes. Para os profissionais as informações ecoam pouco e quando chegam até eles, geralmente,
acontece de maneira informal e não pela gestão municipal de saúde. Essa situação corrobora para
um sentimento de desconfiança do trabalhador SUS para com a gestão e uma descrença na política,
aliado ao fato de terem vivenciado o lançamento de muitos programas sem o seu desenvolvimento.
Na análise da pesquisadora, esse eixo repercute na falta de reconhecimento e compreensão
do sistema público de saúde. A maneira como a gestão e os trabalhadores divulgam o SUS não
contribui para a sua defesa, pois os avanços são pouco divulgados e a própria identificação do
serviço, através do logotipo do SUS, não é comum nos equipamentos de saúde. Isso contribui para
uma visão de que os trabalhadores são menos qualificados e o “SUS é para pobres”.
155
Apesar disso, no ano de 2013 o PMAQ passou a exigir que todas as UBS tenham essa
identificação, que por sua vez deverá ser custeada pela gestão municipal.
No eixo 19 que trata da Gestão, os profissionais discutem a importância da organização da
rede de saúde e de ter uma gestão próxima do trabalhador, o que possibilita analisar as fragilidades,
além de sensibilizar e apoiar a equipe. Porém, nas experiências dos dois grupos evidencia-se que a
equipe tem pouco apoio da gestão e pouca autonomia para a organização do trabalho, ao mesmo
tempo em que as atividades da unidade ficam sob a responsabilidade apenas dos profissionais,
inclusive por conta da relação de distanciamento com o Distrito de Saúde e pelo fato deste
equipamento pouco conhecer seu território de atuação. Outro ponto ressaltado pelos grupos de
trabalhadores, diz respeito à burocratização organizativa municipal, ou seja, na medida em que o
município cria um sistema administrativo paralelo ao do MS, os profissionais ficam confusos com
as tarefas a serem cumpridas e, inclusive, com o trabalho administrativo que, muitas vezes, é
duplicado.
Campos (2008), por sua vez, considera que a capacidade resolutiva dos serviços é desigual
dada a heterogeneidade da implantação da rede de AB e do SUS. Além disso, na AB consolida-se
uma forma operacional do trabalho médico, na qual há um descumprimento da jornada de trabalho
contratada, pouco envolvimento deste profissional com o serviço e escassez de RH nesta área
(Campos et al, 2008).
A pesquisadora também considera esta situação apontada por Campos et al (2008) e avalia
que a ausência de política e investimento nos serviços causam situações de precariedade e
abandono dos serviços e trabalhadores. Ainda, aponta que a precarização dos vínculos de trabalho,
baixos salários, falta de plano de cargos e carreiras e o pouco investimento na AB, confirmam a
desresponsabilização da gestão. Essa desresponsabilização culmina em: número reduzido e
morosidade na reposição de profissionais, dificuldade de fixação de profissionais, sobrecarga de
trabalho, demora no atendimento prestado à população, interrupção e ausência de atividades
ofertadas, dificuldade de formação de vínculo entre profissionais, usuários e comunidade.
Vários documentos do MS objetivaram garantir a reorganização e efetivação do sistema
público de saúde. O NOAS/SUS 2001 (Brasil, 2003) propôs maior equidade na alocação de
recursos e no acesso da população às ações e serviços de toda a rede de saúde, apontando
responsabilidades e estratégias mínimas que os municípios deveriam desenvolver na AB. Definiu a
AB como porta de entrada do sistema, devendo, também, estar articulada à rede de serviços.
156
O PSF foi definido como a principal estratégia para a mudança de modelo, através da
organização da AB, contribuiu para definir a equipe multiprofissional e garantiu a entrada do ACS
como profissional da AB. Com relação à qualificação de RH, reforçou a responsabilidade da
gestão das três esferas de governo a respeito do financiamento, definindo, porém, como
competência municipal o desenvolvimento de mecanismos e estratégias para a qualificação de RH,
assim como de avaliação da AB (Brasil, 2006; 2011). Nessa mesma lógica, a criação do NASF
(Brasil, 2008) visou ampliar as áreas profissionais e a possibilidade de abrangência da AB. A
PNAB 2011 (Brasil, 2011) propôs diretrizes e normas para a organização da AB: clínica ampliada,
ampliação do grau de autonomia dos usuários, organização das redes de atenção, ofertas de acordo
com as necessidades do território, gestão compartilhada do cuidado e intersetorialidade. Ampliou a
equipe de Saúde da Família, considerando a equipe de Saúde Bucal e outros profissionais (de
acordo com a realidade do território e do serviço). Apontou a necessidade de qualificar e valorizar
os profissionais, viabilizando a formação e a educação permanente, com a intenção da implantação
de plano de cargos e carreiras, assim como reforçou a competência da gestão municipal em
garantir recursos materiais, equipamentos e insumos suficientes para o funcionamento da UBS e
para a execução das ações propostas. Este documento previu que cada equipe de Saúde da Família
deve responsabilizar-se por no mínimo 3000 e no máximo 4000 pessoas.
Através da análise desses documentos, conclui-se que embora a maioria das diretrizes
sejam coerentes com o direito social e estejam pautadas na legislação, isso não tem garantido a sua
efetivação prática, pois depende da identificação do gestor e de sua responsabilização em defender
essa política. Como exemplo, pode-se apontar o município de Campinas que, no ano de 2001,
desenvolveu o modelo de gestão Paidéia, baseado na valorização dos profissionais, considerando a
importância da gestão compartilhada em saúde. Havia um posicionamento claro e a orientação
sobre o serviço possibilitou o desenvolvimento de uma prática que valorizou o sistema público de
saúde. Nesse sentido, a gestão que se posicionou como defensora do SUS, produziu conhecimento
teórico, documentou diretrizes, pactuou decisões com os trabalhadores e, mais do que isso,
garantiu a efetividade do que estava previsto no planejamento da gestão.
A partir de 2005, com a mudança de gestão, houve uma crise de formulação política, seja
por conta da ausência de direcionamento claro a ser seguido, da não efetivação das propostas que
estavam previstas e/ou da centralização do poder. Um exemplo, é que a cobertura populacional das
157
equipes de Saúde da Família está muito além do previsto e documentado pela Secretaria Municipal
de Saúde (Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, 2005; 2008).
Este cenário gerou um desmantelamento da rede de saúde que, inclusive, produziu um
retalhamento dos serviços e equipes, não garantindo o ideário político que vem sendo definido pelo
MS. Sobretudo, a organização das equipes e dos usuários, com forte militância e participação
política, têm sido fundamentais na resistência e na luta por um serviço público de saúde de
qualidade.
O eixo 20 corresponde à avaliação que no discurso dos trabalhadores, o PMAQ foi uma
avaliação arbitrária e pouco eficaz, visto que a avaliação externa não considerou construções
singulares da equipe e os resultados não foram devolvidos para os profissionais de forma clara,
apontando as fragilidades, dificuldades, nem tampouco o potencial da equipe. A devolutiva foi
dada de forma virtual, com uma nota e a classificação entre bom e ruim.
Todavia, o objetivo apresentado pelo MS pretendeu estimular as equipes a realizar uma
reflexão sobre seu trabalho e, a partir desse processo, construir soluções para os problemas que
fossem identificados. Através do PMAQ, o MS objetivou também, melhorar a qualidade da AB,
garantindo um bom padrão de qualidade da saúde a nível nacional (BRASIL, 2012).
Na experiência da pesquisadora, embora a proposta de avaliação seja um avanço, no
sentido do governo federal atentar-se para a importância da avaliação do serviço, o documento
apresentou informações confusas e não possibilitou a resolução dos problemas referentes à
necessidade de transferência, demissão e/ou reposição de pessoal. Assim, os gestores ficaram
“amarrados” num impasse entre bancar a reposição ou a morosidade na reposição profissional, ou
manter um funcionário descomprometido ou sem perfil para atuar na AB.
Um outro enfoque com relação à avaliação de pessoal, refere-se à ausência de diretrizes por
parte do MS que considerem esta estratégia como uma forma de reavaliar o serviço, visando a
pactuação de metas para reorganizar as ações e propostas das equipes. Essa situação repete-se no
município, uma vez que, há um descaso por parte dos gestores e dos gerentes dos serviços em
incorporar esse processo no cotidiano de trabalho.
Para Cunha (2010) a falta de avaliação de pessoal pode provocar sofrimento, imobilismo e
até descomprometimento com o trabalho. Nesse contexto, Onocko-Campos et al (2012) analisam
que a falta de preparo dos profissionais da AB pode ser um dos motivos da dificuldade em
fortalecer e promover a assistência em saúde mental nesse nível de atenção.
158
4.2.6 Categoria: Propostas.
Neste item estão elencadas propostas para a Gestão (eixo 21), para a Equipe (eixo 22) e
para a Comunidade (eixo 23).
No eixo 21, as Propostas para a Gestão estão voltadas para a capacitação de profissionais e
um direcionamento claro da política de saúde. Dessa forma, os trabalhadores sugerem que os
profissionais deveriam ser sensibilizados sobre a AB. Com relação à definição da política de saúde,
compreendem que, em alguns momentos, ações verticais são necessárias, induzindo e direcionando
o trabalho, na tentativa de unificar o sistema de saúde. Além disso, indicam que deveria existir
uma pessoa auxiliando a equipe a pensar, perceber, planejar e resolver suas dificuldades. Parece
que estão solicitando um Apoio, ou melhor, um Apoiador, cargo já criado no município de
Campinas desde o Paidéia, mas não (re)conhecido pelo grupo 2. Apesar da existência desses
Apoiadores, que no caso do grupo 2 são os Apoiadores Matriciais e Institucionais, parece que essa
função está longe da função Apoiador preconizada pelo Paidéia, onde o apoiador faz junto e está
próximo da equipe. O não conhecimento desses Apoiadores e de suas funções remete a pensar que
os próprios Apoiadores estão longe de realizar e/ou reconhecer suas funções e papeis.
Nessa linha de raciocínio, a equipe aponta para a necessidade do que chamaram “um
segundo momento Paidéia”. Essa proposta indica que a equipe está pedindo, além de apoio e
Apoio, orientações claras sobre a política de saúde, com sugestões e diretrizes pactuadas, avaliação
e planejamento, pois os profissionais estão completamente desorientados e perdidos. Conforme
sugere Conill (2008), a mudança cultural deve ocorrer através de elaboração técnica e científica,
com comunicação e divulgação das mudanças.
Uma outra análise, denota que aumentar a influência e a participação dos trabalhadores
pode provocar profundas modificações nos processos de trabalho (Massuda, 2008). Para Pinto;
Coelho (2008), modificar o trabalho em saúde para uma forma mais participativa, com decisões
compartilhadas entre gestores, trabalhadores e usuários, possibilita autonomia, além de produzir
identidade e realização. Um exemplo sobre o pedido da equipe de orientação sobre o modelo de
saúde, pode ser encontrado em Campos et al (2008) que sugerem que a reorientação da AB deve
estar embasada na coordenação, continuidade do cuidado e clínica ampliada, com a equipe
recebendo apoio e orientação.
Para a pesquisadora, o Estado precisa arcar com a responsabilidade de promover saúde,
financiando o sistema consistentemente e investindo numa cultura de direitos e deveres. Nesse
159
sentido, Giovaella; Mendonça (2008) sugerem que o sucesso da ESF dependerá dos incentivos
financeiros federais, de uma política adequada de RH, de políticas indutoras de certos modelos de
organização (solicitação que aparece nas narrativas desta pesquisa) e de iniciativas locais
competentes e criativas capazes de enfrentar a diversidade existente no país. Porém, equipes
competentes e criativas, necessitam de formação, capacitação e incentivos. Para tanto, Campos
(2006) sugere a co-gestão entre o Ministério da Saúde e Ministério da Educação, visto que a
formação profissional é de competência do MEC, mas é o MS quem tem competência para definir
qual modelo de profissional é necessário para garantir a efetividade do sistema de saúde.
Com relação à formação e capacitação dos profissionais, o Relatório de Gestão da
Secretaria de Assistência à Saúde 1998/2001 (Brasil, 2003) indicou a necessidade de capacitar e
formar profissionais capazes de uma prática multiprofissional e interdisciplinar para incrementar a
AB. No entanto, a resposta do MS para este problema tem sido a criação de programas no modelo
da Educação Permanente, os quais, inclusive, são de grande importância mas não garantem a
solução de todos os problemas, principalmente os ligados à formação profissional. Há que se
considerar, ainda, que estas ações são políticas de governo e não políticas de Estado, ficando à
mercê da vontade dos gestores. A PNAB 2011 (Brasil, 2011) traz um avanço considerável sobre a
Educação Permanente, quando indica que os conteúdos a serem abordados devem contemplar as
áreas estratégicas da AB (acordadas na CIT), as prioridades estaduais e municipais e as
necessidades dos trabalhadores que vivenciam a prática concreta dos serviços de saúde.
Reconhece, ainda, a importância de vincular a EP à estratégia do apoio institucional e da
cooperação horizontal. Porém, mais uma vez, essa indicação fica a cargo do desejo dos gestores
em optarem/ defenderem ou não esse modelo de trabalho.
Além disso, Cunha (2010) propõe que para os cargos gerenciais sejam estabelecidos
processos seletivos internos (com seleção entre os próprios trabalhadores) e com a participação dos
trabalhadores no processo de escolha. Aponta, ainda, a necessidade de incorporação de técnicas
gerenciais mais participativas e singulares, de modo que o gestor possa desempenhar a função de
apoiador.
Outra proposta (que não apareceu no discurso dos trabalhadores) diz respeito à importância
de realizar e discutir as formas de avaliação, utilizando-a para reestruturar processos de trabalho e
garantir o planejamento. A pesquisadora pontua a necessidade de pactuar com os profissionais a
avaliação e seus critérios, de modo que a avaliação seja aceita e compreendida pelos profissionais
160
como parte do trabalho desenvolvido. Cunha (2010) confirma essa ideia ao sugerir a construção de
indicadores singulares de avaliação em conjunto com a equipe, para cada equipe e em cada
momento. Starfield (2002), ainda, considera a importância de aliar a auto-avaliação com um
sistema de informação bem desenvolvido, de maneira que o profissional possa revisar e comparar
seu desempenho. Nesse sentido, a pesquisadora concorda que a avaliação interna deve estar
atrelada à avaliação externa e aos indicadores. Sugere, também, que a avaliação possibilite um
destaque aos profissionais e/ou equipes mais comprometidos com o trabalho.
O eixo 22 trata das Propostas para a Equipe de saúde. Os profissionais sugerem que as
ações coletivas sejam priorizadas, na tentativa de desafogar o sistema, que a equipe consiga
apropriar-se mais do território para aumentar o vínculo e ofertar ações de acordo com a realidade e
necessidades locais. Além disso, apontam que o usuário deve ser suficientemente escutado, ou
seja, a equipe deve promover, incentivar e qualificar a participação popular. Com relação à
sobrecarga de trabalho por conta da alta demanda espontânea, avaliam que deve haver uma
maleabilidade ao que está programado, para garantir o cuidado, de modo que em situações de crise
ou epidemias, a equipe possa avaliar e deixar de lado algumas ações programáticas, para conseguir
atender à situação de urgência. Porém, esses casos agudos devem ser contemplados pelo cuidado
longitudinal, garantindo a prevenção, promoção, assistência e reabilitação.
Essa proposta da equipe vai de encontro à sugestão de Massuda (2008) sobre a necessidade
de deslocar o eixo de atenção das doenças para o eixo da produção da saúde. Para tanto, Cunha
(2010) aponta que é necessário apostar nas equipes de referência e no apoio matricial enquanto
lógica de comunicação, responsabilização e compartilhamento de saberes, cuidados e afetos, e na
criação de espaços de encontro e diálogo da AB com outros serviços, visando superar a lógica
pautada no encaminhamento. Com relação à participação popular, este autor indica, por um lado
exercitar a habilidade política do usuário, permitindo sua indignação e compartilhando as
dificuldades, por outro, a necessidade da equipe argumentar com a sociedade sobre o embate
público x privado e a lógica de consumo.
Essas questões foram, também, avaliadas no Relatório de Gestão da Secretaria de
Assistência à Saúde 1998/2001 (Brasil, 2003) que indica a intersetorialidade e a integração com a
comunidade como responsáveis pela melhoria dos indicadores de saúde e da qualidade de vida da
população.
161
O eixo 23, Propostas para a Comunidade, trata especificamente da participação social, pois
dela decorre o conhecimento sobre a utilização e o funcionamento do sistema de saúde, assim
como possibilita a sua fiscalização e o controle social, no sentido de participar da construção do
modelo e defender a sua permanência. Como apontado no eixo 22, a participação social deve ser
estimulada e favorecida pelos profissionais, mas a população, por sua vez, é quem pode decidir
sobre participar ou não. A história do município de Campinas e sua crise vivenciada atualmente é
um exemplo da potência da participação popular (aliada a trabalhadores militantes) na defesa do
sistema público de saúde, da luta contra a privatização e de dificultar ações arbitrárias da gestão.
Ademais, além da possibilidade de construir um modelo de saúde pautado nas necessidades da
população, o controle social tem um papel fundamental na fiscalização e controle do financiamento
e dos gastos em saúde, das ações e dos serviços, previstos, inclusive, na própria legislação do SUS
(Lei № 8.080/1990, Lei №8.142/1990, NOB-91, NOB-93, NOB-96, Pacto pela Saúde, PNAB-
2006, PNAB-2011).
4.2.7 Categoria: Avanços Percebidos.
O discurso da equipe na categoria Avanços Percebidos aponta para os seguintes eixos:
Acesso, Lógica da ESF e Modelo Paidéia, Reflexão sobre a Prática Profissional.
O eixo 24, Acesso, foi indiscutivelmente apresentado como sendo o grande avanço do SUS,
assim como referendado por Mendes (2001) e Lopes (2001), que está definido legalmente como
princípio da universalidade. O primeiro artigo da Lei nº8080/90 garantiu a saúde enquanto direito
universal e nos documentos posteriores, o acesso foi reafirmado. Na Lei nº 8142/90 o acesso
previu a construção das políticas de saúde, através da participação popular, permitindo o controle
social. A ampliação do acesso exigiu uma reformulação do sistema de saúde, não somente no
caráter administrativo, como também jurídico.
Para o MS os avanços estão, de certo modo, relacionados as normas e regulamentos criados
nos documentos. Assim, a NOB 01/91 estabeleceu, dentre outros, requisitos básicos do município
para receber recursos financeiros, a criação dos Conselhos Municipais de Saúde e a constituição de
Comissão de elaboração de Planos de Cargos, Carreiras e Salários. As NOB 01/91, 01/93 e 01/96
incentivaram a municipalização e a descentralização do sistema de saúde, dando autonomia aos
municípios e estabelecendo mecanismos de financiamento, controle e avaliação. A NOB 01/96
definiu as responsabilidades dos gestores municipais e de cada esfera de governo, estabeleceu o
162
PSF como estratégia prioritária para a mudança do modelo assistencial e, ainda redefiniu os
mecanismos de financiamento, reduzindo a remuneração por produção de serviços e valorizou
resultados advindos de programações com critérios epidemiológicos e desempenho com qualidade.
Nesta Norma fica claro que a finalidade primordial do MS era de que os estados e municípios
superassem o papel de prestador de serviços e assumissem o papel de gestor do SUS, ou seja,
gestor de um sistema integral à demanda da população.
No Relatório de Gestão da Secretaria de Assistência à Saúde: 1998/2001 (Brasil, 2003) o
MS considerou que o PAB fixo e variável possibilitaram um avanço na execução financeira. No
ano de 2006, na tentativa de superar as principais dificuldades de saúde do país, de dividir as
responsabilidades entre os gestores e assegurar e qualificar o SUS como política de Estado, o MS
lançou o Pacto pela Saúde. Este documento previu a regulamentação, a curto prazo, da Emenda
Constitucional nº 29 e a longo prazo, a garantia do incremento de recursos orçamentários e
financeiros para a saúde, de modo a aprovar o orçamento do SUS pelo orçamento das três esferas
de gestão. Ainda, previu a elaboração e divulgação da Carta dos Direitos dos Usuários do SUS.
Após vinte e um anos, o Decreto nº 7508/2011 regulamentou a Lei nº 8080 e dentre as
diretrizes, responsabilizou as unidades federadas a construir processos de trabalho capazes de
transformar as orientações emanadas da legislação em práticas institucionalizadas, de forma
transparente (Brasil 2011).
A partir da experiência da pesquisadora, os documentos apresentam um avanço teórico na
tentativa de formular e organizar o sistema público de saúde. No entanto, há um distanciamento
entre as formulações teóricas e as práticas cotidianas, tanto no sentido da garantia de sua execução,
quanto na morosidade de sua efetivação. Um outro aspecto importante é a questão do
financiamento que, embora citado em todos os documentos revisados nesta pesquisa, não tem
garantido um sistema de saúde no modelo do bem estar social, mas, ao contrário, aproxima-se ao
padrão do modelo liberal (Ugá, Porto, 2008; Santos, 2008).
O eixo 25 considera o avanço com a Lógica ESF e o Modelo Paidéia. As equipes
consideram que trabalhar na lógica da ESF garantiu melhora nos indicadores de saúde materno-
infantil e no cuidado em geral, diminuição e controle das doenças cardio-vasculares,
acompanhamento mais eficiente dos usuários. Apontam, também, maior qualidade na assistência,
devido ao vínculo com a comunidade, ao estabelecimento de parcerias com outros equipamentos
sociais e à possibilidade de realizar ações de práticas integrativas.
163
Na interlocução com os documentos, o Relatório de Gestão definiu, dentre as
responsabilidades das equipes de Saúde da Família, estimular a participação popular e o controle
social, a partir da aproximação dos serviços com a sua própria realidade. Nesse modelo, exigia-se
uma prática não reducionista, de modo que as equipes assumissem o desafio da atenção
continuada, resolutiva, com enfoque na família e não somente no indivíduo.
As narrativas apontam, ainda, o modelo de saúde do município de Campinas criado no ano
de 2001, modelo Paidéia de Saúde da Família, como marco de mudança. A equipe avaliou que esse
modelo provocou uma evolução na assistência e um reconhecimento do trabalhador enquanto
profissional reflexivo e crítico, na medida em que propôs diretrizes de trabalho que embasaram a
organização dos serviços e apontou a co-gestão como ferramenta de trabalho.
Para a pesquisadora, os avanços conquistados com o Paidéia foram apropriados pelos
trabalhadores, ainda são reproduzidos e destacam-se como dispositivos de referência para a
mudança do modelo em saúde e a defesa do SUS, dentre eles, pode-se citar a criação de espaços de
discussão, o apoio matricial, a avaliação de risco e a elaboração de Projeto Terapêutico Singular,
incentivo à realização de grupos e de ações de promoção de saúde, a co-gestão e a participação
comunitária.
O eixo 26 trata da Reflexão sobre a Prática Profissional. O grupo 1, relatou um interesse da
equipe em produzir teoricamente sobre a sua prática de trabalho. Compreende que esse processo
reflexivo fortalece as relações de trabalho e auxilia na busca de soluções frente aos embates
travados no cotidiano de trabalho. Desse mesmo modo, a pesquisadora, também, em sua prática
profissional necessitou buscar aporte teórico enquanto forma de sobrevivência no trabalho.
Este grupo apontou, ainda, a importância de participar desta pesquisa, tanto no sentido de
refletir sobre sua produção profissional, quanto em reconhecer a importância da produção
científica condizente com as necessidades da prática cotidiana, inclusive porque dentro da própria
equipe, também tem profissionais vinculados ao campo da pesquisa. Além disso, destacou a
importância desta pesquisa, em especial, em dar voz ao trabalhador de saúde.
4.2.8 Categoria: Expectativas da Equipe.
As Expectativas da Equipe foram proclamadas apenas no grupo 2 e definidas enquanto
possibilidades e desejos que amenizem as dificuldades e o sofrimento no trabalho. Nesse sentido
164
estão divididas nos seguintes eixos: Inversão do Modelo Biomédico, Investimento, Devolutiva da
Pesquisa.
A expectativa sobre a Inversão do Modelo Biomédico (eixo 27) está aliada a concepção do
modelo de saúde pautado em práticas desmedicalizantes, que priorizem a realização de grupos e
possibilitem uma maior articulação e vivência no território. Assim, a proposta é de ampliar a
clínica, considerando as subjetividades e potencialidades do indivíduo para além da atenção
curativa, ampliando, também a possibilidade de habitar outros espaços da comunidade, que não só
o Consultório e o Centro de Saúde.
Na avaliação da pesquisadora é fundamental que o trabalho seja identificado como uma
produção de sentido, prazer, satisfação e gozo.
O eixo 28, que se refere ao Investimento é apontado pela equipe enquanto necessidade de
melhoria do espaço físico, pois nota-se a precariedade dos prédios, com pouca manutenção,
aspecto de abandono e descuido, despreocupação com a limpeza e higienização, equipamentos e
materiais desatualizados, inadequação dos ambientes, confirmando uma lógica de assistência
curativa para um grupo social desprivilegiado.
No último eixo, Devolutiva da Pesquisa (29) a equipe solicita que o resultado desta
pesquisa seja apresentado no serviço para que favoreça um segundo momento de reflexão da
equipe. Além disso, reconhecem a importância da participação nesse processo, principalmente
porque esse encontro possibilitou uma pausa na rotina de trabalho, permitindo uma revisão da
atuação profissional e uma auto-avaliação.
Na visão da pesquisadora, esta solicitação de devolutiva “in loco” significa um pedido de
apoio e de orientação, para uma equipe que está sentindo-se abandonada, o que pode ser verificado
no relato sobre o distanciamento com o Distrito de Saúde e com o Apoiador Institucional.
CONCLUSÃO
A relevância desta pesquisa se dá na medida em que toma como ponto de partida o discurso
do trabalhador, através de um estudo empírico no município de Campinas, levando em
consideração as reflexões sobre a sua produção no trabalho diante das políticas públicas de saúde.
Há que se destacar uma notável diferença entre os dois grupos de discussão, pois o primeiro
apresenta um funcionamento de equipe, com responsabilidade ética, organizativa e das relações de
poder. Ao contrário do segundo grupo, que tem dificuldade de reconhecer, potencializar e
configurar o trabalho em equipe, funcionando com ações e decisões isoladas.
Todavia, algumas discussões foram semelhantes para as duas equipes. Os problemas e as
insatisfações identificadas pelos dois grupos participantes desta pesquisa e que geram sofrimento
no trabalho estão relacionados à escassez de recursos (humanos e materiais), excesso da demanda
atendida, falta de apoio à equipe, dificuldade em reconhecer o limite da AB (do próprio serviço e
do profissional) e ao contexto político que atravessa o cotidiano do serviço, provocando
instabilidade para garantir as ações conquistadas ou pretendidas.
A queixa da sobrecarga de trabalho gerada pelo atendimento à demanda espontânea foi
unânime entre os trabalhadores dos dois grupos de discussão. Porém, não houve uma reflexão ou
discussão sobre porquê essa demanda está aumentada. A primeira questão seria verificar se o
dimensionamento da população está de acordo com a capacidade de atendimento da equipe,
inclusive, com base na indicação da SMS que, nos relatórios apresentados nesta pesquisa, em 2005
e 2008 eram de no máximo 4000 pessoas por equipe. Esta análise, por sua vez, deve estar alinhada
à avaliação do território, levando em consideração as situações de risco e vulnerabilidade. Pode-se,
ainda, pensar em algumas hipóteses de falhas na rede de saúde: se a AB está conseguindo
desempenhar seu papel de maneira resolutiva e efetiva; no mesmo sentido, se os Pronto-Socorros e
Pronto-Atendimentos estão prestando um atendimento resolutivo e de qualidade. Para além disso,
deve-se avaliar qual a lógica da população na procura de atendimento em saúde, ou seja, se há uma
cultura na qual frente a qualquer sofrimento e dificuldade procura-se o serviço de saúde, ou até
mesmo, se de fato a população está adoecendo mais. Estas respostas poderiam direcionar o
cardápio da unidade e as ofertas da equipe, inclusive avaliando se o serviço de saúde está sendo a
única possibilidade de atendimento para o sofrimento no mundo contemporâneo.
166
As narrativas mostraram que a avaliação sobre a gestão da AB no município de Campinas
denuncia um mau gerenciamento da rede, principalmente relacionado à crise de formulação
política, com ausência de direcionamento, clareza e de coesão do modelo de saúde proposto. A
partir de 2005, ocorreu um desmantelamento da rede de saúde com um desinvestimento nos
trabalhadores e nos serviços. Frente a isso, os profissionais encontram-se à margem dos processos
decisórios e, mais do que isso, ficam subordinados ao arbítrio da vontade política da gestão.
Apesar desse contexto, há um enfrentamento dos trabalhadores e da população, que se
caracterizam como militantes e defensores do SUS, e colocam-se na contramão da política atual,
procurando resistir e garantir os avanços conquistados. Não há dúvidas sobre a importância da
participação, do controle social e do comprometimento na construção cotidiana de parcerias (entre
gestor, trabalhador, território e rede), contudo, uma gestão centralizadora e desarticulada acarreta
enorme sofrimento, principalmente, aos profissionais e deixa claro o quanto o contexto político
ameaça e é capaz de desmontar, até mesmo, os projetos que vinham dando certo. Essa situação
confirma a evidência de que o SUS não é uma política de Estado e sim, de governo.
Os grupos sinalizaram, ainda, a importância das diretrizes e do conhecimento produzido a
partir do Programa Paidéia de Saúde da Família, pois os profissionais continuam produzindo ações
advindas desse conhecimento e alguns profissionais procuram dar continuidade nas reflexões,
buscando grupos de debate nas universidades, além do interesse em produzir teoricamente sobre
sua prática de trabalho. Além disso, na análise das narrativas, destacou-se a denúncia sobre a falta
de um direcionamento claro da política de saúde e do descuido com o trabalhador, traduzida num
pedido de um “segundo momento Paidéia”.
Com relação ao trabalho na AB, os profissionais relataram o desejo e a escolha em atuar
nesse nível de atenção, dada a possibilidade de trabalhar no eixo da prevenção e da continuidade
do cuidado. Ao mesmo tempo, reconhecem que a prática de trabalho imprime um modelo
biomédico, com pouca possibilidade de realizar ações de prevenção, promoção e longitudinalidade
do cuidado. Porém, nessa dicotomia entre o desejo e a realidade, a tentativa é de estabelecer
relação de apoio e confiança entre a equipe, o que tem garantido satisfação profissional, inclusive,
pelas trocas e encontros com os usuários, diferente da primeira hipótese apresentada pela
pesquisadora, no sentido de que a equipe e os usuários fortalecem o trabalhador. Nesse contexto, as
expectativas das equipes em relação ao trabalho desenvolvido no serviço situam-se entre o papel
167
do gestor e das equipes para fortalecer a inversão do modelo biomédico, garantir investimento e
adequação de recursos financeiros, qualificação e capacitação profissional.
Nesta pesquisa, procurou-se identificar como o trabalhador da AB compreende o SUS e,
em especial, este nível de atenção. Fica evidente que há um distanciamento entre os programas
decretados pela gestão federal e os serviços, seja pela infinidade de regulamentações, pela
improdutiva divulgação, ou ainda, pelo sentimento de desconfiança do trabalhador para com a
gestão, no sentido da descrença política. Não é frequente encontrar profissionais da AB discutindo
sobre os termos de compromisso e as pactuações sugeridas e elaboradas pelo Ministério da Saúde e
Secretarias Estaduais de Saúde, como é o caso do Pacto pela Saúde e outras regulamentações. Os
documentos elaborados pelo Ministério da Saúde traçam diretrizes e normas gerais, ao mesmo
tempo em que dão autonomia para que o município organize os programas e sua rede de acordo
com a sua realidade e necessidades locais. É importante que exista essa flexibilidade, porém, isso
deve estar atrelado à fiscalização e avaliação contínuas, inclusive com a participação do MS. Até
mesmo porque isso poderia garantir a permanência das ações, para além do desejo da gestão.
O NASF, por exemplo, é uma proposta do MS para todo o território nacional e, apesar da
flexibilidade de cada município poder optar pelos profissionais de acordo com as necessidades
locais, não considera, por exemplo, os municípios de grande porte que investiram e criaram outra
organização mais condizente com a sua realidade, como é o caso de Campinas com o Apoio
Matricial na Atenção Básica. Entende-se que o NASF está baseado nesse modelo, porém, como
não previsto e proposto pelo MS, não gera financiamento ao município que opta por outro modelo
de organização.
Obviamente, os documentos e portarias são de extrema importância e, em especial, a
legislação do SUS é bastante atualizada e garantidora de direitos, de modo que muitos documentos
apresentam avanços concretos e propõe resoluções às dificuldades práticas. É o caso do Decreto №
7.508 que surge para regulamentar a Lei № 8.080, após vinte e um anos de sua aprovação, mas,
apesar disso, efetiva a proposta e cobrança do uso de instrumentos de avaliação e controle, cria as
Regiões de Saúde que trazem um estímulo aos municípios de pequeno porte, prevendo o
investimento na rede e estímulo à RAPS. Por outro lado, muitas informações, diretrizes e
indicações repetem-se nos documentos, desde a criação do SUS. A saúde enquanto um direito de
cidadania, por exemplo, aparece em todos os documentos analisados nesta pesquisa, desde a Lei
№8.080, até a PNAB 2011, mas, na prática, será que esse direito está realmente assegurado?
168
Outra questão refere-se ao conhecimento e divulgação sobre o que está sendo produzido e
teorizado, seja no nível municipal, estadual ou federal. Dificilmente os Relatórios de Gestão dos
municípios (que apresentam o plano para a rede de saúde do município durante o quadriênio da
gestão) são compartilhados ou apresentados aos profissionais de saúde, assim como, o Pacto de
Indicadores da Atenção Básica, no plano federal, dificilmente é divulgado ou chega para o
conhecimento dos trabalhadores. Ainda, os profissionais pouco conhecem sobre a situação de
saúde do país e até mesmo de seu município, pois não é comum que os dados de saúde e de
produtividade sejam apresentados e devolvidos para as equipes. Dessa forma, o conhecimento do
território em que se atua é empírico, ou seja, acontece a partir da vivência do trabalho, sem o
respaldo de dados de produção e indicadores de saúde. É fundamental que o trabalho na AB seja
embasado por esses dados e que a gestão consiga garantir um fluxo de informações com as equipes
de saúde, contemplando das diretrizes municipais às federais.
Aliada a essa questão, está a necessidade de utilizar a avaliação na rotina do trabalho como
forma de planejamento das ações e da garantia da qualidade da assistência. Pensada na linha da co-
gestão, ou seja, compartilhada e construída na pactuação com todos os envolvidos, esta é uma
possibilidade para manter a equipe coesa, reflexiva e responsabilizada, podendo ser, também uma
alternativa para lidar com o profissional que não tem perfil e não acredita no SUS. Porém, essa é
uma proposta a ser construída.
O PMAQ, modelo de avaliação da AB proposto pelo MS, foi importante para instituir a
avaliação e o monitoramento, mas, talvez seja necessário rever esta metodologia que utiliza uma
enxurrada de perguntas na autoavaliação. Além disso, seria importante pensar num avaliador
externo que trabalhe na linha do Apoio Institucional, acompanhando as equipes por mais tempo e
mais de perto, trocando experiências, fazendo devolutivas e pontuações. Assim, a equipe poderia
refletir e ser orientada sobre o que é possível fazer para melhorar, em quê precisa melhorar, ou
ainda, o que a equipe está fazendo que está dando certo.
Dessa forma, com base nas narrativas dos trabalhadores, nos documentos relacionados ao
PMAQ e na experiência da pesquisadora, pode-se analisar que esta avaliação apresenta falhas em
todo o seu processo de desenvolvimento, iniciando-se pela adesão e contratualização, visto que os
profissionais tem pouco conhecimento sobre do que se trata esse programa. Ainda, considerando as
quatro etapas da fase de desenvolvimento: na Autoavaliação, pode-se observar uma infinidade de
perguntas; no Monitoramento (metas e indicadores contratualizados) observa-se que a equipe tem
169
pouco acesso à sua produção, visto que os dados captados pela gestão (planilhas, indicadores)
geralmente não são apresentados para a equipe; a fase de Educação Permanente parece não ter
acontecido; o Apoio Institucional não aconteceu mesmo, pois, mais uma vez, a responsabilidade
ficou para as equipes. Na Avaliação Externa, o avaliador manteve-se distante da equipe, elegendo
apenas um membro para conversar e não levando em consideração ações que as equipes
consideravam importantes, além da ocorrência do PMAQuiamento. Por fim, na
Recontratualização, as equipes não tiveram acesso aos resultados e, por isso, desconhecem “onde
estão falhando” (conforme discurso do grupo de discussão: “a gente não sabe se é bom ou ruim”) e
nem o que está recontratualizado para a próxima avaliação (“não sabe em quê tem que melhorar”).
Outro problema, também bastante debatido nos grupos com os trabalhadores, refere-se à
formação, perfil e comprometimento do profissional da AB. Fica evidenciado, confirmando uma
das hipóteses da pesquisadora, que o sofrimento e desmotivação dos profissionais estão
relacionados ao contexto político, à falta de apoio e investimento e à sobrecarga no trabalho. O
sistema contribui para uma degradação do trabalho, na medida em que desrespeita os profissionais,
em que não oferece incentivo e reconhecimento, e, até mesmo, quando “premia” o profissional
descomprometido.
Por outro lado, o que sustenta o profissional na AB é a sua ideologia, ou seja, crença no
modelo e luta pelos direitos de cidadania, e as produções que se dão nos encontros com usuários e
equipes. Dessa forma, o retorno que se tem do usuário, o apoio e afeto da equipe, assim como a
possibilidade de concretizar ideias de justiça social e igualdade traduzidas em produções coletivas
de convivência e promoção de saúde, são o real alimento interno dos profissionais da AB.
Apesar de não ter sido evidenciado no discurso dos trabalhadores, a pesquisadora aponta a
dificuldade de se efetivar o trabalho em equipe, pois é um campo de tensões e interesses, que está
sempre sendo construído e desconstruído. Assim como lidar com o usuário não é apenas prazeroso,
pois as relações entre os sujeitos são complexas, demandam disponibilidade, tolerância,
potencialidade para aproximar-se dos sujeitos e estabelecer os pactos, bem como para abdicar-se
dos seus próprios desejos, pensando na construção do desejo coletivo. Entretanto, essas
considerações não descaracterizam o discurso dos trabalhadores em relação a essas temáticas.
Outro ponto a ser destacado é o papel da Universidade possibilitando um espaço para a
entrada do profissional da rede de saúde e oferece escuta para a narrativa de suas experiências,
permitindo sustentação, reflexão e produção do conhecimento. Esse fato pode ser observado no
170
Grupo I e na própria trajetória narrada pela pesquisadora, evidenciando o papel da Universidade
enquanto um local para imprimir o fortalecimento e defesa do SUS.
No entanto, a formação é um nó crítico no cotidiano de trabalho, visto que os profissionais
não são formados para o trabalho no SUS e a visão fragmentada apreendida na graduação, dificulta
a discussão do papel político, social e humano do trabalhador da saúde. A ideia de que a formação
acontecerá de forma empírica, parece ser admitida por profissionais e gestores, pois não se espera
que os profissionais cheguem para trabalhar no SUS com formação, mas, ao contrário, há uma
insistência em formar os profissionais na prática de trabalho, como se fosse possível superar todas
as defasagens e fragilidades do ensino/ graduação. Autoriza-se a invenção de mecanismos que
formem o profissional para que, a partir daí, haja possibilidade de mudar o modelo de saúde.
Porém, como os alunos/profissionais vão aprender na prática se encontram trabalhadores com
pouco embasamento no SUS? Nesse sentido, no caso da Residência, a aposta é que esses
estudantes sejam capazes de provocar mudanças no modelo de saúde e nos serviços, todavia, a
proposta desse curso está ligada à formação profissional. Sendo assim, a formação pode se dar por
meio da oferta de um campo de trabalho precarizado. Além disso, a gestão pode utilizar o residente
como mão de obra para substituir um cargo que não existe no serviço. Se, por exemplo, não há um
Terapeuta Ocupacional na unidade, quem será o núcleo de referência para o residente Terapeuta
Ocupacional?
A PNAB 2011 (Brasil, 2011) aponta que compete ao governo federal articular com o
Ministério da Educação para indução às mudanças curriculares nos cursos de graduação e pós-
graduação na área da saúde. Em que medida os Ministérios da Saúde e Educação têm conseguido
realizar a co-gestão para pensar na formação do profissional da saúde? As políticas indutórias do
MS têm contribuído para a formação do profissional da saúde? A metodologia ativa está presente
em todos os programas de formação, mas este é o melhor e/ou o único modelo de formação?
Banaliza o papel do professor.
A escassez de profissionais, uma queixa unânime das equipes participantes desta pesquisa,
reafirma o modelo do “SUS para pobres”, pois, os profissionais duplicam e até triplicam funções,
realizando, inclusive, ações que fogem de sua competência e capacidade. Uma coisa é trabalhar
com a clínica ampliada e a possibilidade de desenvolver conhecimento em outras áreas (campo e
núcleo de saber). Outra é por falta de pessoal, um profissional ter que desempenhar outras funções
e ocupar diferentes papéis dentro de uma equipe.
171
A SGTES foi criada em 2003 na tentativa de valorizar o trabalhador do SUS, dada a
compreensão de que isso influencia na qualidade do atendimento prestado. No entanto, o que
observa desde então, são ações focais, desarticuladas e com baixa capacidade resolutiva. Não se
conseguiu estabelecer uma política concisa e efetiva de RH que, de fato, garanta o direito dos
trabalhadores e, por consequência o dos usuários, promovendo, por fim, a qualificação da atenção
e da gestão. Faz-se urgente a discussão, elaboração e efetivação de uma política para gestão de
pessoas que traga em sua essência a avaliação e que defenda uma carreira no SUS, tendo como
base um Plano de Cargos, Carreiras e Salários. Essa política deve possibilitar o reconhecimento e
valorização do profissional, mas também, deve estabelecer critérios para cobrar comprometimento
e possibilitar respostas ou encaminhamentos efetivos frente ao profissional que não corresponde às
expectativas da equipe e não cumpre com as tarefas estabelecidas.
Com base nos dados deste trabalho, a pesquisadora apresenta uma sugestão sobre o Apoio
Institucional que poderia ser um mecanismo de aproximação entre as políticas instituídas pelo
governo federal e a rede de saúde dos municípios. Nesse sentido, o Apoiador, na linha hierárquica
da Secretaria do Estado e do Ministério da Saúde, deveria ser referência aos municípios,
possibilitando o conhecimento e a compreensão das diretrizes e programas propostos, bem como,
aproximando-se das realidades dos territórios e das equipes de forma horizontal. Está intrínseco
nesse papel, a função de facilitador para o desenvolvimento de ações e a função de Apoio às
necessidades e potencialidades da equipe, garantindo, também, sua formação e capacitação. Em
contrapartida, esse vínculo poderia efetivar a comunicação entre os gestores das três esferas de
governo, estabelecendo uma ponte para que a prática profissional possa subsidiar a política
proposta no âmbito federal, estadual e municipal.
Uma última questão apresentada refere-se ao recurso financeiro que o MS repassa ao
município. Muitas vezes, há uma indução sobre de que forma essa verba pode ser utilizada, sem
uma pactuação ou avaliação sobre as necessidades do município. Esse fato contribui para uma
irracionalidade na utilização dos recursos, pois um município pode conseguir garantir, por
exemplo, itens ou materiais de menor importância e não conseguir abastecer a rede com materiais
urgentes ou básicos para garantir a assistência. Ser gestor exige um grau de competência
administrativa que beira à mágica: como organizar os gastos com o que o MS autoriza e como
avaliar e comprar o que a equipe precisa com os recursos certos, não desperdiçando-os?
172
De fato, o projeto do Sistema Único de Saúde e, em especial, da Atenção Básica, são
extremamente inovadores e contrapõem completamente a lógica predominante, propondo um
modelo de construção coletiva e um modo de operar a saúde através da co-gestão. Nessa lógica, a
sensação dos profissionais da saúde é de que se está sempre remando contra a maré, seja no sentido
do convencimento sobre a importância desta política, seja para garantir seus direitos, seja para
inverter o modelo de mercantilização da saúde, para garantir recursos ou a própria permanência
desta política, ou ainda para instaurar uma cultura solidária e cidadã.
Fica, então, um desafio: como imprimir a co-gestão em saúde, favorecendo a autonomia os
sujeitos e grupos, numa sociedade que tem uma cultura de exploração, justificada pela própria
história deste país, o qual foi colonizado e submetido aos interesses de um povo estrangeiro,
culminando, assim, no caso brasileiro, em concentração de renda e concentração fundiária, que
sempre garantiram os privilégios da uma aristocracia ligada à terra e, mais tarde, à burguesia. Essa
estrutura rígida contribuiu para a predominância de uma cultura que aceita e pratica o paternalismo
e a prática do favor, autorizando a utilização do bem público em nome de interesses individuais e
caracterizando um histórico de impunidade e de conquistas a partir de ações ilegais. Na tentativa
de fugir (burlar) dessa estrutura rígida de dominação, a população reage de forma individualista e
descompromissada com o bem público.
Apesar da aparente falta de perspectiva, as narrativas apresentadas nesta pesquisa remetem
à capacidade/potência de contaminação produzida pelos afetos e cuidados de uma relação de
encontro e apoio.
173
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182
Anexo III
Roteiro do Grupo de Discussão
A- Objetivos a serem observados:
- Identificar qual a percepção que o profissional da ABS tem sobre seu trabalho, ou seja,
sobre sua produção no trabalho;
- Identificar quais são as dificuldades, insatisfações e desafios que o profissional da ABS
enfrenta no seu cotidiano de trabalho;
- Identificar quais são as expectativas que o profissional da ABS tem em relação ao
trabalho desenvolvido no serviço em que atua;
- Entender como o profissional da ABS considera e avalia o SUS e, em particular, a
organização da ABS;
- Identificar de que maneira o profissional da ABS contribui para uma qualificação da
atenção prestada na ABS e para a legitimação do SUS.
B- Questões a serem abordadas no grupo - roteiro para o Coordenador do Grupo
de Discussão
Pergunta disparadora:
1- Na concepção de vocês, qual é a função deste serviço no qual vocês trabalham?
2- Pensando no trabalho desenvolvido nesta unidade, vocês avaliam que conseguem
cumprir essa função?
3- Quais são as facilidades e dificuldades enfrentadas no cotidiano de trabalho desta
unidade?
4- Quais resultados vocês esperam alcançar com o trabalho desenvolvido aqui, ou seja,
quais são as expectativas com relação ao trabalho que desenvolvem?
Perguntas ativadoras:
1- Com relação às facilidades, quais estratégias vocês consideram que viabilizam o
trabalho da equipe?
2- Com relação às dificuldades, quais estratégias a equipe utiliza para enfrentá-las? E
quais estratégias vocês acreditam que viabilizariam o trabalho desenvolvido nesta unidade?
183
Perguntas subliminares:
1- Na sua visão, o que é o Sistema Único de Saúde. Para que e para quem serve?
2- Considerando o SUS, o que você entende por Atenção Básica de Saúde?
3- Você avalia que existe uma preocupação para a qualificação da atenção prestada na
ABS? Por parte de quem? De que maneira isso acontece?
4- Você avalia que existe uma preocupação para a legitimação do SUS? Por parte de
quem? De que maneira isso acontece?
184
Anexo IV
Transcrição Grupo de Discussão I (realizado em 11/04/2013)
Participantes: Enfermeiro, 2 ACS, Residente em Saúde Coletiva – Medicina, Auxiliar de
Enfermagem, 2 Médicos generalistas, 1 Pediatra, 1 GO.
Moderador: 1 pesquisador voluntário
Observador: a própria pesquisadora
A primeira coisa que eu queria conversar com vocês, eu tenho aqui um roteirinho,
mas eu não vou seguí-lo. Vocês ajam e falem o que desejarem . Como é que chegou o convite
pra vocês? O que motivou vocês a participarem deste grupo de discussão? Como é que
chegou o convite, o que foi dito, por que você ficou interessado em participar? Que
curiosidade que trouxe vocês a participarem deste grupo?
5- Acho que a primeira vez em que eu ouvi foi quando o generalista trouxe na nossa
reunião.
Você consegue lembrar o que foi que ele passou?
8 - É que assim, vocês lembram logo a primeira vez que a gente falou? A coordenadora
entrou na reunião, porque ela geralmente não participa das nossas reuniões. Ela entrou este dia e
contou, inclusive ela contou quais seriam as condições. É que você não estava, você estava de
férias. Ela contou que a equipe precisava estar junta há um ano, vocês lembram disso? Que tinha o
interesse de saber como é que funcionava a nossa equipe. E a gente tinha se oferecido. O que eu fiz
depois, foi lembrar.
Então, teve o convite e, quando ele fez a relembrança, por que vocês se sentiram
interessados em participar?
5 - Não, na verdade, eu vou ser sincera, eu não me senti interessada, é que como seria na
nossa reunião de equipe, vocês viriam até aqui, então eu estou aqui. Mas não foi uma coisa que me
motivou a estar participando. Não foi uma escolha.
3 - A gente optou em fazer na nossa reunião de equipe e ver como é que é.
9 - Eu acho que não rolou uma reflexão sobre isso. A gente não aprofundou o tema. Eu
acho que a unidade inteira tem uma característica que é de tentar aproximar-se da Unicamp, das
185
outras escolas assim. A gente faz esse movimento, traz os residentes, a gente tem estagiário da
enfermagem. Então assim, a gente tem essa cultura pra aceitar mesmo, a disposição pra conhecer.
5 - Eu estou curiosa com o tema, achei interessante, da gente se expor, falar sobre o
ambiente de trabalho, eu acho interessante.
1 - Na verdade, pra mim é novo. Em momento nenhum a gente pensou, porque eu acho que
quando a doutora disse na reunião geral eu já havia saído e na última reunião de nossa equipe, eu
estava em campo, não estava presente também. Então pra mim é novo, mas só por falar em
permanência do SUS, pra mim já me diz que tem que participar, pra ver se defende a permanência
do SUS.
4- Especificamente sobre o tema a gente não teve nenhuma introdução clara, na verdade
criou-se aí , pelo que a gente ouviu do convite, eu ouvi uma parte a outra não, mas o convite faz
parte de um momento da pesquisa de campo da Unicamp, e aí fala da pesquisadora e tudo bem?
Tudo bem! A gente topa. Mas o tema da pesquisa exatamente, a gente não discutiu, não abordou. E
se alguém ficou sabendo, na reunião a gente não trocou ideia sobre isso.
9 - O primeiro contrato eu não me lembro, mas eu lembro da sua fala. Eu acho que eu
estava de férias também.
E olhando para o tema, quando a gente olha aqui no termo de consentimento, a
organização da Atenção Básica em Campinas, as perspectivas, os desafios, as dificuldades, a
visão de vocês trabalhadores que estão aqui na atenção primária... nesse instante que vocês
entram em contato com isso, o que sugere? O que passa pela cabeça de vocês? Que coisas,
eventualmente, que o tema começa a dizer? Você falou “nossa, se é alguma coisa da
permanência do SUS, eu estou dentro!” Está dentro de que?
1 - Eu levanto a bandeira.
Mas como é pensar as dificuldades, as perspectivas os desafios do seu trabalho? Não é
do seu só, do trabalho de vocês, da equipe.
1 - Então, eu acho assim, que se não tivermos o SUS pros menos favorecidos com a sorte,
como será que eles vão se tratar? Se não tivesse as pessoas que se dedicam aqui na atenção básica,
que olham por eles, quem será por eles? Por nós, por mim que sou SUS dependente. Então, é essa
a minha visão.
O que vocês pensam sobre o que ela está colocando?
186
4 - Acho que é bem interessante, se inclinar pro tema de desafios do Sistema Único de
Saúde e, daí pensando no recorte da atenção básica, por que, afinal de contas, fazer isso, do ponto
de vista dos trabalhadores? Porque, afinal de contas, a gente tem sempre a possibilidade de
construir no cotidiano o que é essa assistência, aqui aos menos favorecidos, em alguns outros
lugares, aos não tão menos favorecidos. Mas a gente está num lugar de construir esse cotidiano. Se
o SUS existe teoricamente em outro lugar, na prática ele existe aqui também. E daí eu acho que
esse ponto de vista do trabalhador é muito interessante pra entender um pouco desses desafios e
perspectivas. Mesmo nesse momento, eu acho que aí a gente vai ter um misturado de informações,
que é da circunstância da cidade no momento. A gente está atravessando em Campinas um
momento, particularmente, muito difícil, de desassistência em vários aspectos, de algumas pessoas
de alguns cargos que não têm... as pessoas foram demitidas e não tem. Então, assim, especialmente
nesse momento, as dificuldades são muito maiores do que as expectativas, do que as perspectivas.
Nesse momento, pra mim, deu essa misturada aí pra desembaraçar. Mas, a pesquisa não é a minha
então tudo bem...
Mas enquanto trabalhadora você está aqui dentro, trabalhando aqui. Como é que é
pra cada um de vocês esse contexto? Como afeta cada um de vocês esse cenário de fundo?
Que não é de fundo, porque ele está batendo aqui dentro. E o que afeta na dinâmica do
trabalho de vocês, como trabalhador, o que afeta?
4 - Nesse momento, muito dramaticamente, a gente está vivendo a desassistência do pronto
socorro. A gente tem tido muita demanda de pessoas com queixas agudas, no meio de uma
epidemia de dengue, então as pessoas estão doentes, potencialmente e gravemente doentes e a
gente não tem outro lugar pra resolver se não for aqui. E aí, nesse momento, é esse desamparo da
falta de retaguarda atrapalha o cotidiano, de estar dando conta de ter todas as pessoas na reunião,
de poder conversar, discutir caso, de poder fazer projeto terapêutico singular, porque a impressão
que a gente tem é a de que uma parte da rede está desmontando na nossa cabeça e no nosso
trabalho. Isso está mexendo com o trabalho de todo o mundo. Os agentes de saúde que cuidam de
fazer busca ativa, de fazer a vigilância de reservatório, com o auxílio dos agentes de controle
ambiental, mas não tem mais agente de controle ambiental. Então, de repente, não tem, em algum
momento parou de ter e isso atrapalha o que a gente gosta de fazer que é conseguir organizar o
trabalho pra dar conta de assistir as pessoas que estão aí.
1 - O laboratório que está sem funcionamento há um mês já. Um mês e sem perspectiva.
187
8 - Então, eu tenho uma reflexão assim, o tema é interessante e eu estava pensando aqui
comigo que eu tenho mais de 20 anos trabalhando no que eu faço, no que eu gosto de fazer. Daí, eu
estou fazendo rapidinho aqui, enquanto vocês falavam, um balanço dos 20 anos e, quase o tempo
inteiro, eu fui feliz no que eu fiz. E do que eu precisei pra ser feliz no que eu fiz? Do que eu
precisei pra isso dar certo? Pra chegar em casa satisfeito, acordar e vir pra cá satisfeito e pros
outros lugares que eu trabalhei antes de vir pra cá, “ai que bom que eu vou pra lá!”. Era ter,
principalmente, o mínimo de estrutura pra trabalhar e ter o paciente. Acho que a grande coisa que
eu me realizo é ter a oportunidade de conviver com essas pessoas. Já passei por vários altos e
baixos. E acho que hoje nós estamos vivendo algo, com o qual eu estou muito preocupado, assim
como a E porque eu nunca vi tão forte como está agora, a presença, o dedo da política nisso.
Incomodando mesmo, coisa política mesmo. Então, todas as conversas e espaços que eu vou, é um
desânimo. Eu acho que a gente precisa de líderes, que levam a gente, que carregam, que dão um
pouco de esperança e eles vão fazer isso, porque geralmente as pessoas vão atrás. Igual a T falou,
as pessoas que acreditam nesse sistema de saúde, não precisam de muito pra ir atrás, é só ter
alguém com uma ideia um pouco interessante, que o povo vai atrás. Várias vezes já fizeram isso.
Eu acho que hoje a gente está com uma crise, mais do que só, eu acho que é uma crise moral
mesmo, uma crise de falta de liderança. E eu estou preocupado. Hoje eu ouvi aquela história de
que aqui já vai começar a ONG que vai vir aqui pra cá e eu disse “meu Deus do céu, eu nem estava
sabendo, ouvi no carro e daí já...”. Então a gente desanima, porque são coisas que a gente aposta...
todo o mundo que eu converso diz que a gestão vai ser pior do que está e eu digo “não! Quem sabe
melhora!” “Não, vai piorar!”. Então, eu estou sentindo, de sentimento mesmo, de emoção, uma
coisa de tristeza. Mas isso não me preocupa muito, porque quando eu estou assim triste, eu entro
no consultório e fico 10 minutos com o paciente e já some a tristeza. Porque mesmo nessa
situação, eles conseguem trazer de novo pra gente esse entusiasmo, às vezes eles alimentam...eu
nãoi sei o que eles têm, eles têm um pozinho mágico que faz trazer isso. Por isso que nós estamos
aqui. Era isso que eu conversar com vocês. Mas na média, assim, eu estou há mais de 20 anos
trabalhando, sempre no SUS. Já trabalhei também com pacientes de convênio, paciente particular,
e tem hora que eu vou ver na clínica, é a mesma coisa. As pessoas são as pessoas. Agora, na hora
do “vamos ver”, eu já fui feliz atendendo em igrejas, mas eu acho que tem a falta de uma luz, de
alguém que fala “vamos! É isso aqui!”. E às vezes é a gente mesmo que não está construindo isso.
Então, em relação à perspectiva, apesar de todo o mundo falar que é ruim, eu acho que depois do
188
ruim vem o bom de novo, então cada um tem uma esperança (risos). Com a perspectiva a curto
prazo eu estou preocupado.
Alguns de vocês balançaram a cabeça. Isso é uma concordância com a fala dele ou,
tipo assim, está querendo se embalar pra ver se pega a conversa e continua?
9 - Eu fiquei pensando enquanto ele falava, porque eu estou aqui há quase 2 anos e desde
que eu cheguei aqui não houve nenhum momento de muita tranquilidade pro meu trabalho poder
ser realizado da forma que eu acho que deveria ser. Quando eu cheguei aqui, eu cheguei no olho do
furacão. Faltava um mês pra gente mudar pra esse centro de saúde e a gente mudou no ano
seguinte. A gente fez paralisação, o que mostra a ineficiência da gestão central desse município,
que deixou uma equipe parada há quase 10 anos numa casa, em condições precaríssimas de
trabalho. E a partir daí, eu não vi nenhum momento de tranquilidade. Falta de equipamento, falta
de estrutura, falta de recurso material, falta de recursos humanos. A gente se depara agora com um
processo de privatização importante do município. Que é o que o R está falando aí, da questão da
resistência, que a gente está cansado e não sabe como é que a gente vai fazer, mas a gente vai
resistir. Se vai dar certo ou não, isso aí a gente vai descobrir lá na frente. Mas esse espaço eu achei
importante, pensando também em tudo isso, porque a questão do trabalho a gente discute o tempo
inteiro e os problemas dele também. Essa equipe discute bastante isso em vários núcleos. Ontem a
gente estava discutindo, por exemplo, o acolhimento no núcleo de saúde coletiva. Com essa
epidemia da dengue... tem uma crítica sobre essa questão do acolhimento, do sofrimento do
trabalhador, de como é difícil se organizar pra atender a demanda não programada. E a dengue
deixou muito às claras a nossa falta de organização pra isso. Tem muito do tipo do trabalhador,
mas também tem um pouco da nossa organização enquanto equipe, e isso ficou muito claro agora.
Uma equipe que tinha uma média de 20 acolhimentos por dia, por exemplo, chegou um dia a ter
67. A gente nunca tinha chego num patamar desse. Eu não estava aqui antes, mas desde que eu
estou aqui a gente nunca fez tanto acolhimento, a gente nunca se voltou tanto pra esse tipo de
atividade. O que já trazia sofrimento, se intensificou muito e nos fez sentar pra discutir, por
exemplo, um fluxo melhor pra fazer isso. E daí eu acho que é importante esse espaço, porque a
gente contribui pra uma coisa que vai ser publicizada, que vai ser refletida, e eu acho que é
importante nessa linha de pensamento.
8 - Deixa eu só falar uma coisa, pra emendar com isso, do aumento da demanda que você já
tinha falado. O caos que está o pronto socorro, quando a própria gestão pede para transferir para as
189
unidades básicas aquilo que se fazia no serviço de urgência, sem que tivesse sido preparado pra
isso acontecer. Então, a nossa demanda não agendada não é pra ser 67 por dia. Não foi combinado
nem preparado pra que isso acontecesse. Então você transferiu um problema que é dos serviços de
urgência, e foi falado isso. Não sei se vocês sabem disso, mas foi falado isso. Foi falado “peguem
as urgências e mandem pra unidades básicas”. Só que não foi combinado com a gente esse fluxo,
foi dito só lá “manda pra unidade básica”. Então eu acho que seria razão de, quando você fala
desorganização, mas é uma desorganização que não é só interna. É uma organização que a gente
tem que ter nós com outros níveis, porque a gente tem que ter um combinado com o território, com
a região, com o serviço de urgência. E essa conversa não foi feita, então a gente vai correr atrás
agora de organizar, pra gente dar conta daquilo que não era pra gente dar conta. Tem coisa aqui
que não era pra estar aqui. A gente acaba sofrendo por isso.
6- Até porque já se previa esse surto.
4 - Eu ia só completar essa coisa que o R estava falando. Ele falou dessa coisa de ficar feliz
no consultório... é, às vezes é assim e às vezes nem tão feliz. Mas enfim, tem uma coisa da nossa
relação com os usuários que, quando o pronto socorro manda o paciente vir fazer o procedimento
do pronto socorro aqui, nunca é PA aqui. Porque eu sei onde esse cara mora, quem é a família dele,
quando eu atendo eu tenho o prontuário e não a ficha de atendimento. Então assim, não tem
atendimento aqui que seja tão fugaz, tão superficial e tão pontual como no pronto socorro. Então,
qualquer menor atendimento em que você tenha uma conduta pra uma queixa aqui, tem um outro
contexto. Então, a gente fica muito é...ontem na reunião acho que foi meio isso, assim, todo mundo
muito comovido no final de uma sequência de dois dias de trabalho muito cansativos, mas todo
mundo muito comovido, porque a gente está chegando no limite e tem que dar conta... da dona
Maria, do seu Zé, da dona fulana e do ciclano, que são pessoas que a gente conhece. Uns que vêm
aqui pela chance de adoecimento agudo, de adoecimento orgânico, mais graves, e outros que vêm
aqui porque vêm aqui, porque estão sendo cuidados, se sentem bem aqui e vêm aqui todo dia. E
eles todos se misturam e aqui a gente conhece eles e eles reconhecem a gente nisso o tempo todo.
Não é tão simples quanto dizer “então tá bom, a gente abre mais vagas, abre mais leitos”. Ser
médica de pronto socorro me dá esse conforto de dizer que mesmo que eu fizesse o mesmo
procedimento aqui, não era a mesma coisa, porque aqui o contexto é outro, a relação com o
paciente é outra, a equipe que você tem, o que você pode mobilizar e o que você não pode
mobilizar.
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Você está falando da horizontalidade no atendimento que é diferente do pronto
socorro que é mais vertical?
4 - Não é só a horizontalidade, é a relação que você tem com aquela pessoa. Além dessa
horizontalidade, te dá a possibilidade de você se relacionar ao longo do tempo e essa exposição ao
longo do tempo te dá uma densidade na relação que você nunca vai ter no pronto socorro. Mesmo
que o paciente seja um dos frequentadores habituais, aqueles que vão lá duas vezes por semana, a
relação nunca é a mesma, porque você só veio lá, naquele momento... muito mais superficial. Aqui
as coisas têm um outro contexto, elas se misturam. Não é porque a gente faz o que é PA que o que
é nosso alguém está fazendo. Não está! Porque o que é da atenção básica, só a atenção básica vai
fazer.
Nesse sentido, por exemplo, pros demais profissionais que estão aqui, porque quem
está falando mais são os médicos, mas pros demais profissionais, isso também toca desse
jeito? Quer dizer, essa demanda do tipo “faz o pronto socorro, vai pra atenção básica”. É
parte de uma crise, mas isso é um movimento cíclico que, às vezes fica mais intenso, às vezes
menos intenso e vocês estão dizendo que está muito intenso agora. Mas vocês outros, também
percebem isso, também sentem que isso modifica a forma de agir da atenção básica, no
conceito que vocês têm de atenção básica e do agir de vocês? Será que dá pra generalizar e
falar que toda a equipe pensa isso, ou não, tem alguma discordância?
1 - Eu acho que toda a equipe pensa assim sim, porque nós que somos a base, que somos
agentes comunitários, sem informação técnica pra tanto, a gente tem um vínculo muito forte com a
população e daí a gente acaba fazendo vários papeis, e não só o de agente comunitário. A gente faz
papel de terapeuta, a gente faz papel de psicólogo, várias coisas.
Isso é importante, a gente saber o que são esses papéis?
6 - A gente está no território e a gente pega tudo o que acontece com a família, com o
indivíduo ou no território, por exemplo. Então é o todo e a gente faz os diversos papeis, a gente se
desdobra em várias coisas até chegar lá no médico, pra que ele finalize, pra que ele veja a parte da
doença mesmo. E as outras partes, a gente vai fazendo no decorrer do dia. O acolhimento começa
extramuros.
1 - Começa lá no território quando você visita o paciente, às vezes quando ele vem pra cá
ele já vem com alguma referência.
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5 - De uma certa forma, apesar de gerar todo esse trabalho, numa certa lógica de funcionar
assim, dá um certo conforto ver que os nossos pacientes chegam aqui com esse acolhimento. E daí
a gente olha as situações, que nem, foi internado, está internado ainda, a gente vai ligar, vai saber
como está a família, se teve alta, a gente vai acompanhando ele desde o início, coisa que às vezes
ele está no pronto socorro ou em outro serviço e a gente não tem esse acompanhamento tão
imediato. Então a gente já sabe, já vê, já olha, também já conhece. Então nesse olhar assim, eu fico
até mais confortada. A gente estava discutindo ontem na cozinha e eu disse que se eu morasse aqui
eu preferia mil vezes passar na emergência ali do que ir no pronto socorro, no Padre Anchieta,
porque aquilo é um caos. E também acho que até em serviços privados, os convênios, eu acho que
o atendimento da nossa equipe, eu penso assim, é muito positivo para o paciente. A equipe olha
tudo, não deixa ele perder nada, ajuda a pensar, coisa e tal. A gente discute junto e isso é muito
benéfico para o tratamento dele, pra evolução.
Que atividades vocês desenvolvem aqui, ou esta equipe desenvolve aqui que favorece
esse pensamento?
5 - Eu acho que é a contribuição de cada um na sua parte, na sua área. Cada um contribui
pra pessoa olhar. Um faz a visita, o outro faz o atendimento, a gente discute. Eu acho que essa
coisa toda funciona legal aqui. Porque eu acho assim, que a gente perdeu a mão com esse
desmonte do PSF, do Saúde da Família. Eu acho que os governos anteriores, essa política que teve,
o olhar que teve foi pra corrupção mesmo, pra desmoralização total e isso afetou muito o serviço.
Eu sinto falta de algumas coisas que a gente foi perdendo nesse período. Então a gente vê isso
sendo reproduzido e, por um lado tem essa parte positiva, e por outro, tem essa parte negativa que
não dá pra trabalhar mais, fazer o projeto terapêutico, da forma que a gente fazia. Às vezes dá pra
fazer, mas às vezes não dá pra fazer e a coisa vai se perdendo. Então pra uns vai funcionar e pra
outros não. A falta de RH na recepção, então nós os agentes de saúde temos que ficar cobrindo
outro serviço e a gente faz porque, eu falo por mim, eu olho o serviço no geral, como que seria
melhor, é eu estar fazendo visita, eu atendendo aqui. Quando a equipe está fazendo o acolhimento,
cada um cuidando da emergência do serviço, então daí eu falo “eu acho que eu sou mais útil agora
aqui”. Não dá pra estar fazendo prevenção, não dá pra estar correndo atrás, mas mesmo assim a
gente tenta. Tem um colega que cobre o outro. A gente está se desdobrando e não era pra ser
assim. Eu acho que a gente é que paga imposto, eu acho que o dinheiro público não está muito bem
gerenciado, eu acho. Depois dos roubos que teve na prefeitura, isso me desanimou muito. Eu acho
192
que esqueceram da saúde pública e só querem roubar. Eu desacreditei demais na política, nos
políticos em geral. Isso ficou bem nojento por esse lado. Eu acho que deixaram de investir no que
dava certo, não querem nem saber o que está acontecendo aqui com a comunidade, o que eles
querem ou não querem. É o que é prioridade lá. De repente não marca mais consulta, marca pelo
160, marca pelo disque-saúde, disque não sei o que. Um exemplo, eu falo dos grupos. Já teve um
momento em que eu gostei muito de fazer e outros momentos em que me desanimou muito pelo
fato de ter que largar. Aquilo não era mais prioridade, eram outras prioridades, vai fazer dengue,
vai fazer não sei o que, vai fazer outras coisas e eu ter que desmontar o grupo. Daí você fala, “olha,
o prejuízo que teve pra população”. Então, você retorna e ninguém quer saber o que está
acontecendo, o que está dando certo, é a prioridade lá em cima que vai mandar.
3 - Eu também acho que a equipe de enfermagem fica angustiada de ver, porque o pronto
socorro não é assim, ele está assim no momento, não foi assim antes. E acho que com o mau
gerenciamento, sei lá de quem, dos coordenadores ou até mesmo da própria política, a gente vê o
que está acontecendo e isso angustia a gente, porque tudo veio agora cair em cima da gente que
ainda não está preparado pra receber isso. A gente acaba deixando mesmo, ações que são da nossa
profissão um pouco de lado, pra atender toda essa demanda e a gente não tem preparo. A gente não
tem sala, a gente na observação só tem uma maca, mas a gente tem que dar conta de tudo. Então a
gente fica completamente angustiado.
Eu estou aqui ouvindo vocês e pensando, o contexto como vocês colocaram em
determinado momento, o contexto está bem ruim, não é de hoje que a nossa cidade está
acompanhando isso. Mas daí o R falou assim “em 10 minutos que você atende o usuário,
reestabelece alguma energia”, e eu fiquei aqui imaginando o que faz esta equipe, sabendo que
o contexto está ruim, mas vocês estão aqui. Ao ponto, inclusive, de se reunir pra pensar
alternativas. Mesmo nesse caos todo que, entra e sai gente, mas vocês param pra pensar. E a
gente só pára pra pensar em alguma coisa, se a gente acredita naquilo. No que vocês ainda
estão acreditando, que ainda está acontecendo? Porque quando você fala assim “vem de cima
pra baixo”, o que é este de cima pra baixo que, apesar de levar a gente de rodo, mas faz com
que a gente ainda continue querendo se reunir, querendo discutir, não perder a ideia de
projeto terapêutico singular, não perder a ideia de algumas ações? Como é que vocês olham
pra vocês nesse sentido?
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1 - Eu acho que o que faz a gente ter esse estímulo é a qualidade dos profissionais que a
gente tem na equipe. Quando a gente olha pra um Dr. R, uma Dra. E, Dra. A, e aí a gente vê que
eles têm prazer em fazer o que fazem e fazem bem, a gente também vai fazer bem o que a gente
faz pra auxiliá-los. Quando a gente vê o J, que fala que está tudo ruim, que não tem a estrutura que
deveria ter, que está decepcionado, mas com que amor e dedicação ele se presta a isso, faz com
que os outros tenham o estímulo de querer melhorar e dar atenção para aqueles que estão
desassistidos ou ficarão desassistidos, se mudar a política, se mudar o jeito de gerenciar.
3 - Eu já acho que é, de maneira assim, a profissão que a gente escolheu já é de cuidar, já é
em cuidar da outra pessoa. Então, se a gente for ver as questões da política, a gente não vai não,
mas a profissão que a gente escolheu já é de cuidar do outro. Então a gente vai com aquilo de
cuidar do outro, independente do que está acontecendo a nossa volta, a gente está aqui pra cuidar
deles.
8 - Eu também já fiz essa reflexão, em alguns momentos, dessa coisa “por que essa equipe
não paralisa?”. Nos momentos das crises, dificuldades, não paralisa e continua inventando coisas
novas. É interessante que todo ano inventa uma ideia nova. Vamos fazer isso, fazer uma ideia
nova, vou mudar, vou organizar diferente, vou fazer um grupo, fazer uma proposta e todo mundo
se reúne pra pensar uma proposta nova diferente pra este momento. Então, este momento de não
paralisar, de fazer, não sei, mas tem algumas coisas que eu penso. Eu acho que o fato dessa equipe
vir junto há um tempo, não troca muito a equipe; nós agregamos pessoas, mas continuou a equipe
há muito tempo junta. Enfrentou coisas difíceis, nós tivemos um momento na casa pequena,
apertado, um momento difícil mas que serviu até pra unir. De todas as coisas ruins que a gente teve
naquela casa, talvez ela tenha servido pra deixar todo mundo pertinho. Então, a gente era uma
equipe só, todo mundo junto e aí compartilhava consultório, compartilhava isso, comia junto, tinha
uma série de momentos, a gente até dançava junto, lembra, a famosa dança do joelho, inclusive? E
eu acho que a gente mantém uma coisa aqui, que a gente conversa muito. As conversas, os projetos
e as ideias, não se dão só na reunião, no dia da reunião. É no corredor, é na copa, na sala de
urgência, sempre tem alguém trazendo alguma coisa pro outro ou levando. Então a gente escuta o
tempo inteiro falar daquele paciente, que estava lá, que eu fui ver na casa. Então, não é que se
espera o dia da reunião pra gente ter informação disso. E esse vínculo que a gente criou esse tempo
todo com os pacientes, a gente não pode olhar pra eles do mesmo jeito que olha uma pessoa que
nunca foi tomar um café com eles, que não foi na casa, não pegou na mão. E isso é uma coisa que
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a equipe inteira tem esse perfil de olhar pra essas pessoas desse jeito. Eu acho que essas
construções são muito coletivas, eu acho que é uma característica muito nossa, da gente continuar
construindo. E ainda bem que é assim, porque nós poderíamos ter motivo pra paralisar, com a crise
e tal. Mas, quando eu falo isso do consultório, existe uma coisa daquele momento do encontro, que
é o mesmo encontro que a gente tem da nossa equipe é o encontro que a gente tem com o paciente,
que ele produz alguma coisa, surge alguma coisa dali, é um caminho. E ele também espera alguma
coisa da gente quando ele entra lá. Eu gostei do que ela falou “eu preferia ter atendido um caso de
urgência aqui do que no pronto socorro”. Isso acho que não é uma coisa difícil hoje. O que a gente
não pode é achar que nós vamos dar conta do volume de pronto socorro. A qualidade eu não tenho
dúvida, eu também acho que a gente vai olhar pra esse paciente, inclusive paciente de urgência,
melhor. É óbvio que se chegar um momento em que o paciente precisa de um respirador aí,
noradrenalina... se tiver que drenar o tórax, eu prefiro não estar na equipe fazendo isso. Agora,
deixa só eu fazer uma fala pra completar uma coisa que vocês falaram da urgência, que eu acho
que é muito importante. Eu conheço um pessoal da urgência, que trabalha lá, médicos e pessoal de
enfermagem, e são pessoas muito boas. E têm alguns, pouquinhos, muito ruins. Mas a grande
maioria, é gente muito boa, gente muito humana, que olha direito pro paciente. O paciente está
deitado no pronto socorro caótico, e olha de uma forma humana, do mesmo jeito que a gente olha.
E existe hoje esse caos lá, mas não é por causa dessas pessoas, do que eles estão lá fazendo, é uma
coisa mesmo de organização que não está dando certo, de colocar mais gente lá. Mas assim, eu
vejo pessoas da enfermagem lá excelentes, uma gente nova que entrou, essa geração que entrou, eu
vejo que foi um ganho pra Campinas, são excelentes. Então, eu só queria fazer esse à parte, pra
gente não transformar o pronto socorro em tudo o que é ruim. As pessoas que estão lá são boas, até
porque tem uns dois ou três que não são, mas a grande maioria é boa. Até porque a culpa não é
deles também.
9 - Eu acho que nessa equipe, um dos sucessos que a gente consegue tornar um trabalho de
qualidade, é que muitos têm ideologia e todos são muito críticos. Quando a gente pára pra refletir é
porque de fato a gente precisa refletir pra tomar a direção que a unidade acha que é a melhor pra
ela. A gente de fato tenta trabalhar com o que a gente consegue e isso eu acho que é muito legal. E
o tempo inteiro a gente está se deparando com um problema que não é nosso. A gente se depara
com equipe incompleta, com falta de trabalhador. Por mais que aqui a gente tenha uma equipe
próxima do que Campinas acha que é o ideal, se você for analisar o Saúde da Família tradicional, a
195
gente está muito aquém disso. Mas a gente tem outros ganhos, a gente tem os Pediatras, os GOs, a
equipe de saúde mental.
6 - Mas essa angústia me faz pensar uma coisa, a gente não tem que dar conta de tudo,
porque a gente tem um limite também. Essa angústia dessa semana, todo mundo angustiado,
chorando, mas não pode ser assim, tem uma hora que você vê que não vai dar conta disso e tem
que chamar um auxílio ou sei lá o que, mas não que nós temos que dar conta. Porque se não quem
vai ficar com isso somos nós, então vamos nos afastar e isso vai ficar com outro. Eu acho que a
gente tem que dar conta até um certo momento, mas a gente não tem que dar conta de tudo, abrir a
porta, a gente não vai dar conta, é impossível. Por isso que se instalou um caos, porque entrou todo
mundo.
4 - Eu ia dizer uma coisa, até antes dela falar, que é uma coisa que nesse espaço de trabalho
(eu já trabalhei em outros lugares, eu estou aqui há menos tempo, acho que eu fui a última a me
juntar a esta equipe), mas tem uma coisa assim... em geral, não se reconhecem os trabalhadores
éticos, os trabalhadores não tão éticos assim e aquele que assume o compromisso de fazer direito, e
isso é a escolha da profissão que a B falou, que eu tenho que fazer aquilo que é pra dar conta. E
uma outra coincidência feliz da gente agregar é que tem alguns trabalhadores militantes. Tem
gente aqui que milita pela construção do SUS que o J falou. Mas acho que tem uma outra coisa que
acho que a T falou mas que eu quero dizer num outro sentido, ela colocou numa hierarquia assim
de que quando ela vê o R, a E, a A, bancando, que isso inspira as pessoas, mas estando no lugar do
profissional médico, que não necessariamente é alguém que está no território o tempo todo, tem
um compromisso da equipe, então assim, teve algumas poucas vezes que eu precisei ficar até mais
tarde quando eu estava cuidando de alguém, ou as vezes em que eu precisei pedir “olha, vai na
casa do fulano”, a equipe é muito junta e daí a ética não é no cuidado do paciente, mas a ética
dentro do trabalho, com as pessoas. Eu confio muito na T, na L, na B, eu confio nas pessoas com
quem eu trabalho, nos colegas médicos, quando a gente vai discutir. E essas pessoas podem confiar
umas nas outras, na minha impressão, porque elas estão juntas. Então assim, parece que no meio
do desespero, rola um alento de você ter certeza de que tem alguém do seu lado, tem certeza de
que tem alguém que está ali. E quando a gente encosta nesse limite, as outras pessoas todas
encostaram também, porque estão todas rodando nessa frequência de conter o caos, de lidar com
essa situação. Eu acho que essa é a questão do trabalho de equipe. Tem uma outra questão, que daí
eu acho que a gente tem dificuldade de lidar, que é da natureza da atenção básica ter dificuldade de
196
lidar, que é de estar dentro da comunidade, junto com as pessoas que moram aqui, vê-las entrar
aqui e ter encostado no seu limite. Dizer “eu vejo, eu sei que você precisa, mas eu não estou dando
conta”. E daí talvez gere um pouco de ansiedade na gente, talvez em algum momento a gente
precise trabalhar isso, que é de como é que a gente resolve esse impasse.
Como é que essa equipe trabalha com tudo isso numa conversa com os usuários...
4 - Eu acho que é com os usuários, com os outros serviços e na identificação de si mesmo,
das suas próprias limitações. Como é que eu fico tranquilo com aquela certeza: fiz até onde eu
podia, agora não posso mais e aí eu vou acionar outras pessoas, outras coisas e eu vou reconhecer o
limite. Talvez isso gere angústia, até porque essa história, eu não faço parte dessa história da
casinha apertada, mas essa história fez essa equipe enfrentar coisas desumanas. Eu tive a felicidade
de visitar essa casinha umas duas vezes, e é desumano trabalhar naquele lugar. E essa equipe
sobreviveu, viveu, aproveitou a vida naquele lugar.
1- Por nove anos.
8 - E ainda tinha o compressor. Era uma coisa séria, quando ligava o compressor, você
punha o estetoscópio e você não escutava o batimento cardíaco. Isso é verdade! Vocês lembram
disso? Tinha que desligar o compressor pra examinar o paciente.
5 - Não pára de lutar, tudo o que quer tem que batalhar. Ás vezes as pessoas falam que em
outros lugares é pior do que onde você está, como se fosse assim, fica quieto, porque você poderia
estar sem nada “você tem isso ainda?”, nossa, está muito bom assim e a gente fala “meu Deus, a
gente aqui no limite”. Mas eles mostravam outra coisa pior, como se aquilo fosse normal e a gente
tivesse que aceitar. Mas a gente é bom de briga e a gente vai brigar, a gente não quer isso de jeito
nenhum.
Deixa eu fazer uma pergunta aqui de curiosidade, nem tanto de curiosidade porque
também está dentro da pesquisa, mas assim, que noção vocês têm do que o Ministério fala
sobre Atenção Básica, os documentos, as ações previstas, ações essas que muitas vezes têm
financiamento. Lógico que o financiamento não vem direto pra unidade básica, mas tem. Que
noção vocês têm disso e que projetos também, porque no Ministério, Estado e Prefeitura, tem
toda uma linha aí de condução do trabalho, linha de pensamento. Afinal, a atenção básica, na
pirâmide, ela é a maior parte. O que vocês pensam, o que vocês conhecem disso e que é
possível e aplicável nesse cotidiano do trabalho de vocês? Se tem isso, se isso é algo que fica
visível? Ou a gente está aqui falando de uma coisa genérica? De que atenção básica vocês
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estão falando pra eu saber se é a mesma de quando eu pego lá nos cadernos de atenção
básica, é passível de acontecer?
5 - Vou falar só uma parte. A parte do recurso a gente nunca viu né?! Porque o governo
anterior, o prefeito e sua esposa, fizeram outro destino, eu acho, tinham outras prioridades. Todos
os projetos nossos, que a gente tinha, foram feitos com bazar da unidade, com dinheiro dos
profissionais da unidade, como é até hoje. Então, dessa parte financeira...
6 - Essa parte dos programas, eu acho que é tanta coisa que eu acho que a gente nem sabe.
Estão engavetadas e nem chegam pra gente, programas, ações desenvolvidas lá, que a gente ouve
mas não chega, demora muito pra chegar.
1 - É às vezes a gente sabe pela televisão que alguém está fazendo alguma coisa que a gente
nem sabe o que é.
E daí, quando vocês descobrem na televisão que algo não chegou, porque não chega,
deve estar parado em algum lugar do sistema, e vocês vêm que é algo legal. Qual é o próximo
passo? O que é que essa equipe faz quando a informação chegou aos ouvidos, mesmo que
tenha sido via televisão?
1 - Então, daí fica a burocracia, que eu não sei se é burocracia, se é má vontade, sei lá.
Parece que a gente vem com aquela gana “vamos fazer, vamos fazer!”, mas tem sempre um “ah,
se...”.
6 - Eu vou falar uma coisa da criança. Todo o material que foi desenvolvido pra saúde da
criança, tivemos um monte de reuniões, foi lançamento e tal. Mas nunca chega aquela cartilha
completa, que é um documento que seria distribuído pelo Ministério. A maioria quase não tem. Pra
nossa surpresa, quando o P foi lá, estava tudo engavetado, tudo amontoado lá, pilhas das cartilhas.
Então, a gente que está há muito tempo já não acredita em muita coisa, faz tempo que Papai Noel
não existe. Mas a gente continua trabalhando, sem a cartilha e sem nada, mas a gente fica com uma
interrogação “mas, puxa, aquilo foi uma grana de dinheiro, pra desenvolver todo aquele projeto”.
Foi o lançamento e teve um monte de chamadas na época, na área da saúde da criança, veio gente
de fora, e daí lança um negócio que nunca chega nas Maternidades, com algumas exceções, e o
material está todo lá no Ministério, amontoado lá, apodrecendo e estragando. Nós tínhamos um
pouco aqui, porque o P trouxe umas três ou quatro caixas pra gente de lá. Então isso, desacredita
bastante. Bom, em política eu já estou desacreditada há muito tempo, mas ainda gosto do que eu
198
faço. É isso o que mantém a gente ainda em pé, é porque a gente gosta do que faz. Eu não saberia
fazer outra coisa.
8 - Dos programas do Ministério pra atenção básica, um grande programa que hoje é
estratégia, já é a estratégia Saúde da Família, que deve estruturar a atenção primária. Ela prevê que
a gente trabalhe em equipe multiprofissional, e a gente trabalha; que a gente tenha uma área
definida territorial, a gente tem uma área definida, a gente sabe onde acaba o nosso bairro; que a
gente tenha uma população adscrita à equipe, nós temos e eles sabem e nós sabemos quem é de
quem, a gente trabalha nessa lógica; é previsto que a gente conheça as principais doenças que
acometem, a descrição epidemiológica das doenças, a gente conhece. A gente conhece muito os
pacientes e a doença deles, eu fico até assim, de tanto que essa equipe conhece, qualquer um aqui
conhece muito os pacientes. Tem uma outra lógica da gente ampliar a clínica, da gente ter uma
clínica que pense mais na pessoa e não pense só na doença e eu acho que essa equipe também
consegue fazer isso. Então eu acho que dentro do programa que o Ministério tem pra atenção
básica, muitas dessas coisas a gente faz, a gente trabalha na lógica da equipe de saúde da família,
eu acho que a gente trabalha nessa lógica. Tem algumas dificuldades, a gente não tem todo mundo
cadastrado e tal, mas mesmo não tendo esse número perfeito, a lógica de trabalhar por família, a
lógica de território, a gente trabalha desse jeito. Agora, outras coisas que surgem, que às vezes a
gente não pode desfrutar, por exemplo: aquela coisa que o Ministério hoje vai reformar, construir
ou ampliar todos os centros de saúde do Brasil, todas as unidades básicas, o Re-Qualifica SUS.
Nós temos a certeza de que o pessoal lá de cima já recebeu essa informação e daí a gente fica com
essa coisa, quais projetos foram mandados pra isso? O que já foi encaminhado pra lá? Eu não sinto
firmeza nisso. E eu acho que ou é proposital a vontade política de não fazer mesmo pelo SUS e
fazer por ONG, ou é incompetência, não sei, não consigo fazer o diagnóstico. Não sei se é só
incompetência, que é muito triste...
Mas na verdade, vocês enquanto equipe poderiam pôr o dedo nesse pedaço? Do tipo, o
que regulamenta isso e qual seria a autonomia da equipe pra isso? Isso é algo que se
questiona pra dentro da equipe?
5 - A gente pergunta... questiona. Essa equipe questiona muito.
4 - A equipe tem uma entrada diferente porque assim, eu tenho colegas de formatura que
estão no Ministério e sei dessas coisas não via município, mas de outros lugares. E assim, a
burocracia organizativa que a gente tem, dentro da Prefeitura de Campinas, e muito concretamente.
199
Porque pra mim, o fato da gente não aderir à maior parte dos programas do Ministério coloca a
gente numa situação muito difícil, até pra se colocar pra isso. Então, Campinas tem uma
organização muito parecida, mas não tem programa, não está cadastrada. Daí você emperra numa
burocracia importante que é não estar cadastrado. A gente trabalha com sistemas paralelos, a gente
usa sistemas de informação paralelos e não consegue contactar informação de nenhum dos dois,
porque não tem quem vá digitar, quem vá compliar e quem vá nada disso. Então, tem algumas
coisas que talvez a gente conseguisse ter, e daí eu estou falando por mim, que eu sei que existem,
mas que não estão no acesso dessa equipe e a gente discute um monte aqui. Quando a gente
começou a trabalhar com o SIAB, com a história do PMAQ, das linhas de financiamento e sabe, a
gente não consegue. A gente tem agora, por um caminho bem torto que eu acho que não cabe
descrever nesse momento, uma academia da saúde autorizada pra ser construída no bairro que está
emperrada na burocracia da Prefeitura e que pode e que não pode e agora a associação do bairro
tem que pagar pra instalar um negócio que é da Prefeitura. Então assim, tem um não acesso, uma
dificuldade de acesso nesse trâmite que impede que a gente se aproxime do que eu defendo que a
gente conseguisse fazer, que é a gestão em parte do nosso trabalho. A gente está aqui, a gente faz
clínica, a gente cuida, a gente olha, a gente é ético, mas a gente não decide, a gente não organiza, a
gente não gere. A gente recebe, a gente tem uma conversa, em parte, boa com a coisa da gestão,
em parte não tão boa, mas a gente tem alguma conversa ainda, mas não é a gente que faz. Então é
bem angustiante porque isso está dado e isso é muito concreto.
9 - Eu acho que o que a Prefeitura faz é isso mesmo. Quando eu cheguei aqui eu tinha
muita dificuldade de entender se eu estava no Saúde da Família, ou se eu estava num sistema à
parte que a Prefeitura adotou.
1 - E daí você descobriu que estava à parte...
9 - É, eu descobri que eu não sei ainda. Mas assim, eu acho que, minimamente ela garante
pelo menos o financiamento do PAB variável, que é ter equipe de saúde bucal, que é ter programa
de agente comunitário. Apesar de que vocês não têm o número de agentes suficientes pra cada
equipe.
4 - É, a gente não tem a farmácia básica, mas tem farmácia...
9 - Isso, então, minimamente isso é garantido, mas na prática e a questão de intervir
enquanto equipe, eu acho que a gente até tem a crítica mas acho que a gente tem muito pouco
poder. O último exemplo disso, que mais me incomoda, foi o PMAQ agora, que foi uma avaliação
200
totalmente externa, que não foi construído com ninguém aqui e uma pessoa com um outro olhar
veio fazer uma avaliação, foi muito ruim. A gente não teve poder nenhum.
5 - E só conversou com uma pessoa.
9 - A gente não pôde intervir no processo, entende? É um exemplo muito concreto e é
recente.
4 - E eu acho que tem mais grave do que isso. Tá bom, a gente foi e a avaliação foi externa,
violenta, só ouviu uma ou duas pessoas, tá bom, a gente é ruim e é isso mesmo. Só que a ideia é
promover a melhoria da qualidade e aí o dinheiro veio e a gente vai melhorar a qualidade como
mesmo? Porque já se passaram 6 meses da avaliação, vai acontecer outra daqui a pouco e a gente
não mudou, não chegou nem na forma do recurso financeiro e nem na forma do apoio da gestão.
Simplesmente não veio. A gente nem discutiu o que tinha que melhorar.
6 - Nunca ter uma resposta, isso incomoda bastante.
4 - Não se tem, quem veio aqui saber o que a gente fazia não veio aqui dizer se a gente é
bom ou ruim. Saiu a média, a gente é ruim, ok, e a gente vai fazer a prova de novo, daqui a 6
meses e vai ser ruim de novo? Isso não faz sentido.
Porque se vocês não sabem por que é bom ou ruim, não dá nem pra melhorar.
9 - Eu acho que quando a gente contratou, contratou que a gente poderia sair quando
quisesse, eu não me lembro se a gente pode optar por isso desta vez.
3 - Na verdade, a nossa equipe não foi cadastrada. Só a outra equipe e teve gente dessa
equipe que foi pra outra equipe, pra ter gente suficiente na outra equipe, é isso? Porque eles
também não podiam, a gente tem 3 agentes, 2 nessa equipe e 1 na outra. Gambiarra!
9 - Mas, minimamente, a gente faz e eu consigo ter ajuda aqui. Eu sei de colegas em outros
serviços que não têm. Eu consigo ter ajuda de Mulher, de Pré-Natal, de coleta de CO, Pueri, tenho
ajuda de Adulto que ainda não está consolidada, mas eu tenho lá no espaço que a gente tem pra
isso. A gente consegue fazer visita, a gente consegue ir na escola, ter parceria com o núcleo.
No entendimento de vocês, essa equipe está para o SUS de que jeito? Pensando lá no
comecinho da conversa, depois que vocês falaram tudo isso que tem um monte de coisa ruim,
mas que vocês conseguem ver a resiliência de vocês, ver a competência dessa equipe, o
quanto vocês conseguem avançar mesmo que os outros não queiram que vocês avancem
tanto. Quando vocês olham essa equipe para o SUS, como é esse horizonte? O que vocês
enxergam?
201
1 - Estamos plenamente no SUS. A gente está no SUS, no sentido estrito da palavra, que é
de atender os menos favorecidos. Não estamos recebendo o que poderíamos ter do SUS pra ofertar,
mas tudo o que a gente tem e pode oferecer, e disposição pra correr atrás pra que seja ofertado pros
usuários, a gente tenta fazer o melhor possível.
9 - Eu acho que ainda somos um foco de resistência, foco de resistência ao processo de
desmonte, a gente consegue ainda, pouco.
8 - Eu queria fazer uma reflexão sobre o que eu acho que é nossa importância. Não só nesse
centro de saúde, mas no geral, eu vejo grandes avanços pelo fato da gente ter conseguido, mesmo
que a gente não esteja burocraticamente certinho dentro da estratégia Saúde da Família, a gente
trabalha nessa lógica e eu acho que a gente teve resultado. Classicamente ninguém discute o acesso
das pessoas aos serviços de saúde, aumentou no Brasil, com certeza. A gente sabe disso na história
dessa nossa casinha, essas pessoas que moravam aqui e iam a pé até o PA; as crianças iam tomar
vacina lá em cima, hoje eles têm vacina aqui no bairro; os idosos iam fazer medicação tudo lá em
cima, os asmáticos e hoje está tudo aqui no bairro, umas duas ou três quadras, mas eles estão perto.
Então isso nós demos, acesso, pelo fato de trabalhar na lógica, trabalhar no território e não é pouca
coisa. Os indicadores de saúde materno-infantil mostraram melhoria, com certeza. Em algo que
ainda não está, não apareceu claro, mas já aparece em estudos do Estado, de ter melhorado,
diminuído as doenças cardio-vasculares, melhor controle delas, a diminuição de mortalidade por
infarto e AVC. Eu acho que isso tem a ver, a gente não percebeu isso, não falam “foram vocês”,
mas foram sim. Eu acho que a gente tem impacto, eu percebo isso, eu vejo os meus pacientes mais
controlados do que eram antes. Eu acho que nós vamos ter um grande desafio daqui pra frente, que
é nosso, que a gente tem que preparar que são duas coisas: uma que é isso que está acontecendo
agora que é de repente, uma epidemia, eu posso chamar epidemia da dengue e epidemia da
urgência que não funciona, são duas epidemias. Como que a gente tem maleabilidade pra não
romper e se adaptar? A gente ter coragem e falar “vamos fechar muitas das agendas programadas,
porque nós estamos num momento de guerra, de epidemia e como é que a gente se reorganiza?”.
Ter coragem pra falar isso e não ficar amarrado, ficar preso naquilo que faz sempre. Eu sou capaz
de ter uma maleabilidade e acho que isso é uma maturidade da equipe de se adaptar a uma coisa
que aconteceu. Eu acho que o grande segundo desafio que a gente tem que enfrentar e que a gente
está percebendo nos nossos pacientes é o câncer. Eu acho que é uma coisa que pros próximos anos
a gente tem que se preparar muito, porque está aumentando, a gente tem visto e percebido nos
202
nossos pacientes e eu acho que esse é um novo desafio. Eu estou percebendo isso e acho que é uma
angústia que eu tenho da gente se preparar pra isso.
1 - Os dados dessa unidade em comparação com o primeiro trimestre do ano passado pra
esse trimestre, por exemplo, foram bastante significativos. A coleta de CO, os exames de mama, a
vacinação infantil, são dados que foram levantados e tem um número muito bom.
8 - Eu esqueci de falar de uma coisa muito importante que eu acho que tem influência
nisso, que são as práticas integrativas, são os grupos que a gente faz hoje. Eu acho que esses
grupos do liang gong, movimento vital expressivo, eu percebo o impacto disso na conversa com os
pacientes, de eles se sentirem melhor, menos doentes, eu acho que isso é uma coisa que foi
construída durante muitos anos e isso acontece 4 dias hoje. Eu acho que isso faz toda a diferença e
isso também é uma lógica interessante de trabalho, é uma lógica de trabalhar em grupo, fora do
consultório. Tem toda uma lógica de trabalho em grupo, de promoção de saúde. Então essa coisa
que a gente focou no começo do ano de vamos manter nossa produção de saúde, incrementar, eu
acho que tem impacto. O que a gente não consegue às vezes, é medir isso. Mas pra mim é claro
que faz toda a diferença.
4 - Eu acho que a gente é muito SUS. Eu fecho com a T de que a gente é muito SUS. Tem
todo um cuidado de olhar integralmente as pessoas, de estar perto delas, de garantir acesso, de ser
público, não no sentido de ser de graça, mas de ser um espaço de serviço público, de prestação de
serviço público. As pessoas que trabalham aqui têm um olhar de prestação de serviço público, de
garantia de acesso. Então, a gente é muito SUS e talvez por isso essa crise toda. A gente podia
estar nem ligando, “é isso mesmo, cada um tem o que merece”, e não é! Não é assim, a gente é
muito SUS aqui dentro. E muito SUS pra além de garantir o que está lá na constituição, de que a
gente tenta fazer, trabalhar em rede etc., a gente é muito SUS do ponto de vista militante, a gente
briga muito pra garantir o que é público, o que a gente acredita que é direito das pessoas, direito de
cidadania. Eu acho que como desafio a gente tem aí, que é um desafio do meu ponto de vista pra
atenção básica, que é reinventar esse jeito que não é programático, não é vigilante, não é
fiscalizador da vida alheia, mas que garante acesso, que garante retorno, que garante cuidado e dá
conta do que é agudo, do que a maior parte das pessoas tem. A gente está aqui num território de
muitas pessoas jovens, alguns idosos e cada vez menos crianças. Então a gente está num lugar que
parece muito o Brasil todo. Um lugar de pessoas mais pobres, de pessoas com menos acesso a
outras coisas, mas como é que a gente reinventa esse espaço de cuidado que é flexível, que se
203
adapta, que tem a influência do usuário e que ao mesmo tempo dá conta de fazer a vigilância e
enfrentar a epidemia? Porque ninguém mais vai fazer isso. Não é o serviço privado que vai dar
conta disso, não são as ONGs, OS, que vão dar conta disso. Como que a gente cuida? Como é que
aquele paciente que trata TB, que vem todo dia aqui tomar remédio, cabe no mesmo contexto do
paciente hipertenso, que vai caber no mesmo contexto da criança com febre e aí é isso tudo ao
mesmo tempo? Eu acho que o desafio pra gente é encontrar aí uma equação que não nos custe
lágrimas, sofrimento e ranger de dentes todo dia.
8 - Eu acho que a única coisa que a gente ainda não conseguiu fazer, não é só a gente mas
nós também, é escutar mais o usuário. Eu acho que o usuário ainda não é suficientemente escutado
na hora de se organizar serviço, organizar as coisas. A gente organiza tudo por eles, acha que sabe
o que eles pensam, as necessidades, as organizações, eu acho que é um desafio que nós vamos ter
que amadurecer mais como fazer. Apesar de ter os conselhos, eu acho que a gente não escuta
suficientemente quem usa os serviços. A gente quase que nem autoriza ele a dizer que é dono.
Dos que não falaram tanto, mas que talvez gostassem de falar alguma coisa, querem
dar alguma contribuição? Falar do que foi escutando, alguma reflexão? Você é residente,
está chegando agora, mas não chegou ontem, entoa você já está aqui há algum tempo.
Ouvindo aqui da reunião, o que vocês poderiam dizer, não é obrigado, lógico, mas talvez
vocês pudessem falar alguma coisa do que vocês ouviram aqui, não precisa nem falar do que
acha do todo, mas o que vocês ouviram aqui que chama a atenção de vocês?
10 - Eu acho que essa equipe é bem diferente de outros centros de saúde. Eu acho que a
gente está no caminho certo mesmo e acho que a gente está acima da média do recurso pessoal.
Então, é isso tudo o que eles falaram, que eu acho que a gente olhando o colega, a gente se motiva
a fazer cada vez melhor. Acho que a gente não pode perder as esperanças mesmo diante das
adversidades. É isso.
6 - Até a gente sente assim, que em muitos outros centros de saúde há uma reciclagem
rápida de pessoas, entrando e saindo. E essa equipe, o que é gozado, quem chega fica. E quem
chega e, às vezes tem que sair, quer ficar. Então acho que por causa disso a gente tem um olhar
diferente, a gente está junto há muito tempo. Não é como em outros que já entraram 500 médicos e
saíram e cada um está sempre se readaptando. Aqui não, a gente está junto já há bastante tempo,
desde a casinha lá, que era um lugar extremamente difícil e eu fiquei 9 anos lá e a gente acho que
criou isso daí, de aguentar e segurar as pontas. Se nós aguentamos lá, bom, não vai ser agora, na
204
epidemia de dengue que vai derrubar, aqui no lugar onde a gente está. Enfrentamos epidemia de
dengue lá também. E acho que é por causa de tudo isso, da equipe mesmo. Eu acho que eu não
trabalharia em outro lugar, tive a oportunidade de sair e escolher, é porque a gente quer ficar. A
gente vê que as pessoas ficam, porque a equipe aqui realmente tem um diferencial, este centro de
saúde é conhecido por esse diferencial que talvez seja isso mesmo da gente estar há muito tempo
junto, próximos mesmo no espaço físico. Participando até dos problemas pessoais das pessoas,
acolhendo, eu acho que tudo isso faz a gente ficar mais forte pra aguentar o que vem lá de fora. E
as pessoas sabem disso, eles reconhecem isso.
10 - E acolhe muito bem as pessoas novas que estão chegando. Isso é uma coisa difícil de
ver por aí. Porque o fato de estar todo mundo junto faz tempo, muito centro de saúde também está
assim, até há mais tempo, mas às vezes chega gente diferente...
6 - Essa equipe é acolhedora. Se é acolhedora com os próprios colegas, não teria porquê ser
diferente com o usuário. Porque isso já é um perfil do profissional daqui, de se preocupar. Eu vejo
quando tem alguma pessoa passando por necessidade, todo mundo se mobiliza, cuida, vai saber,
vai ligar, vai ver o que está acontecendo, então acho que isso é um diferencial. Eu não sei, eu
trabalhei em outras equipes e eu nunca senti tanto sim. Não sei, talvez por serem maiores e talvez
aqui por ser menor, mas eu sinto isso bem forte aqui. Essa coisa da relação mesmo, de estar
preocupado com o colega, de “olha, está acontecendo alguma coisa com fulano”, primeiro reforçar
aqui dentro pra depois a gente poder sair lá fora e se doar um pouco.
7 - Então, eu realmente cheguei aqui há um mês e eu conheci um pouco dos centros de
saúde. Eu já visitei vários, mas foi uma visita muito rápida. E agora, dentro da residência, a gente
visitou também aqueles que seriam os lugares que a gente pudesse acompanhar. E o que me levou
a escolher aqui foi assim, desde a história da construção do centro de saúde, de ver a participação
dos usuários, da população que tem aqui; o fato de que eu tinha encontrado o J já num fórum,
então ver o trabalho da pessoa, o comprometimento com a saúde mesmo; o Dr. R que estava lá
organizando a residência, de todas as unidades ele era o único que estava lá, alguém que estava
presente. Então, você vê que o que faz a unidade mesmo, o centro de saúde, são as pessoas que
estão trabalhando nela. E de todas as unidades que eu passei, a que estava completa, apesar de
faltar o número, mas tinha todos os profissionais, foi aqui. Então vê realmente que é uma equipe
que as pessoas não vão embora, porque todas elas já tiveram os profissionais mas que acabaram
saindo, e aqui não. Então, eu acho que é também um lugar que atrai as pessoas. Foi o único lugar
205
que quando a gente foi escolher teve sorteio, mais de uma pessoa queria aqui. Então vê a
importância que da forma que a equipe trabalha, acaba estimulando.
9 - Quando eu vim pra cá eu vim por indicação de uma amiga.
A conversa está ótima. Agora que a gente se aqueceu, a gente podia ficar mais meia
hora... mas eu tenho um contrato com vocês. Então, nós falamos um monte de coisas, mas
tem algo que passou pela cabeça de vocês e que não foi perguntado, não foi tocado? Algo que
vocês gostariam de estar contribuindo nesse momento. Uma rodada meio rapidinha, do tipo,
como foi estar aqui nessa experiência? Vocês aceitaram o convite, vocês participaram, isso
deve ter gerado alguma coisa pra vocês, de alguma maneira, e se nesse instante vocês
conseguem visualizar isso e como vocês nomeariam isso? Ou que imagem vocês trariam pra
essa experiência? Ou uma ideia que de repente não foi falada.
9 - Eu não senti falta de nada. Eu me senti bem livre pra falar as coisas que eu gostaria, até
porque eu tenho dificuldade pra falar e como eu fui escolhido por um número, então pra mim é
mais fácil.
Alguém mais gostaria de falar alguma coisa?
4 - Eu acho que eu vou aproveitar essa oportunidade, não tem muito a ver com a pesquisa,
mas a pesquisadora faz mestrado na mesma turma que eu e as pessoas sabem que essa unidade
cede 20% da minha carga horária pra eu fazer mestrado. E é muito bacana poder viver junto com a
equipe essa experiência, de que isso que a gente faz tem muito a ver com o nosso trabalho. Então,
eu fico muito orgulhosa de fazer parte desse momento porque eu acho que isso faz toda a
diferença. Você não vai poder falar sobre isso. Mas eu acho bárbaro, porque tem tudo a ver. Essa é
uma equipe que a gente tem discutido isso outras vezes e daí a reflexão é mais pra dentro da
pesquisa, de que essa é uma equipe que tem se preocupado em produzir teoricamente sobre o que
faz. A gente sabe que a gente é muito bom, isso também não precisa ir pra pesquisa, e a gente tenta
produzir pra compartilhar experiência. A pesquisadora também é uma profissional da rede,
também trabalha que nem eu, que nem um monte de gente que está nessa turma e em outras turmas
que virão.
206
Anexo V
Transcrição Grupo de Discussão II (realizado em 22/05/2013)
Participantes: 1 Enfermeira, 1 Pediatra, 1 Dentista, 1 Auxiliar de Enfermagem, 1 Educador Social,
1 Clínico Geral e 1 Técnico em Saúde Bucal.
Moderador: 1 pesquisador voluntário
Observador: a própria pesquisadora
Como vocês têm vivido a atenção básica? O que vocês acham nesse decorrer. Vamos
começar pelas facilidades? Como é que tem sido as conquistas na atenção básica? Vocês
acham que vocês estão realmente fazendo atenção básica?
1- Eu não sei o que vocês estão ouvindo dos outros, logicamente que, aqui nesse momento
não interessa. Mas eu que estou há pouco tempo, de formada inclusive, porque eu me formei em
2010 e vim pra cá em 2011, o que eu percebo muito é uma inversão, não é inversão de valores, é
inversão da lógica mesmo da atenção básica. A eterna porta do acolhimento é às vezes maior do
que a demanda agendada. Então é meio inversão mesmo de lógica, o que no meu ponto de vista é
bem absurdo. Não é aquilo que a gente se propõe a fazer numa atenção básica, pelo menos é o
ponto de vista que eu tenho em dois anos que eu estou aqui.
11- Eu concordo com ela. Eu vim de pronto socorro e trabalhei treze anos em emergência.
Quando eu vim pra atenção básica, pra mim, eu tinha que fazer a prevenção dos pacientes, tratar os
pacientes crônicos, e hoje eu estou fazendo um pronto atendimento e isso é muito complicado,
porque eu posso investir num paciente diabético pra ele não virar um renal crônico no futuro e a
gente pega a vaga de pronto atendimento. Então a gente não consegue fazer o papel, pra mim, do
posto de saúde, que você tem que prevenir as doenças, fazer os grupos. Eu acho isso daí
complicado. Hoje a gente apaga incêndio.
8- Se a gente pegar a avaliação mês a mês, o pronto atendimento sempre supera as vagas
agendadas.
Qual seria, então, a função da atenção básica? O que vocês deveriam fazer? Qual é a
ideia que vocês têm?
1- Prevenção.
207
5- É, eu acho que prevenção, mas também a atenção que o paciente precisa no dia, eu acho
que também tem que ser contemplada. Não com essa proporção que nós estamos fazendo. A
proporção que nós estamos fazendo, está fora de... não está certa, na minha opinião. Mas assim, eu
venho da ideia que centro de saúde era só prevenção, vim da faculdade. Mas acho que isso não é
satisfatório, acho que a gente tem que fazer as duas coisas, mas não nesse desbalanço que está.
1- É, quando eu digo prevenção, eu digo mais ou menos nesse sentido, porque logicamente
que as queixas que a gente atende, muitas são queixas que é possível de resolver na atenção básica
e que precisa ser resolvida no momento. Então a prevenção que eu falo, não é só prevenção, mas
focar, prioritariamente eu acho que prevenção a gente deveria fazer e não consegue.
11- Porque às vezes não tem vaga. Paciente diabético, por exemplo, que eu precisaria ver a
cada seis meses, e a gente não consegue. Isso porque a gente tem uma boa equipe. Ele faz uma
consulta comigo e eu encaminho pra ela fazer uma segunda consulta. A gente sempre faz assim,
pra tentar ver esse paciente a cada três meses. Um diabético, um hipertenso severo. Mas a gente
não consegue uma vaga, essa vaga está sendo dada pra um pronto atendimento. Se você reduz a
vaga, você cria conflito no acolhimento também. Então, eu acho isso complicado. Ao mesmo
tempo, você não tem como atender algumas coisas do pronto atendimento aqui, e não tem nem
medicação pra você tratar. E nem estrutura. Eu não posso pegar, passa uma crise de asma, o
paciente está ruim... um exemplo, eu não tenho corticóide pra dar pra esse paciente. Como que eu
tiro ele do broncoespasmo só com inalação? Foi o que aconteceu esta semana: eu dobrei a
quantidade de inalação pra mim conseguir melhorar uma asmática. No pronto socorro não, eu daria
medicação, eu punha ela no oxímetro, eu via o quanto que ela estava saturando... então, eu pego
um paciente grave desse aqui, sem estrutura nenhuma, paro o atendimento e vou atender, deixo os
pacientes aguardando. Eu acho que isso, eu faço um pouco do que eu fazia no pronto socorro e eu
vim com a proposta de fazer coisas diferentes, entendeu? Porque eu gosto de atender, eu gosto da
atenção básica.
9- Eu acho que uma coisa que é importante, pensando nesse balanceio entre o pronto
atendimento ou o atendimento de demanda imediata e o atendimento de rotina e a prevenção, que
não é atendimento de rotina, fica evidente que o centro de saúde não é construído pra ser um
espaço para a prevenção. Ele não tem sala de reunião, não tem onde fazer grupo, tá certo? A
estrutura física do prédio é uma estrutura voltada pra clínica restrita ou pra clínica degradada, não
para a clínica ampliada. Tá certo? Usando lá os termos Paidéia. Então a lógica desse prédio é uma
208
lógica do consultório, uma lógica curativa. E é uma lógica queixa-conduta. Não é um prédio que
permita grupos, que permita uma sala de recepção onde a gente possa ter a convivência lá, o vídeo
passando com atividades. Não tem equipe, não tem...
10- Até o nosso acolhimento é de forma inadequada, né, se for ver...
11- Por exemplo, a gente está querendo fazer na equipe... a gente tem um problema muito
sério de pacientes analfabetos, a maioria dos meus pacientes são analfabetos. Então, como que ele
lê uma receita? Ou pede pra família vir, ou a gente separa, mas a gente não tem como fazer isso
toda hora. Então, a gente quer montar um grupo de medicação e toda semana, eu, a A e mais um
auxiliar, a gente vai ficar na sala e vai separar essas medicações pros pacientes, renovar as receitas,
orientar novamente esse paciente, pra ver se eles estão tomando adequadamente. Porque a maioria
continua hipertenso porque está tomando a medicação de uma maneira errônea, não precisa
aumentar essa medicação. E eles são sozinhos, eles não têm ninguém, eles não têm nenhum apoio
familiar. Nesse mesmo espaço a gente poderia, por exemplo, uma coisa que a gente não consegue
fazer, avaliar os pés dos diabéticos, pra mim evitar uma ferida no futuro, orientar calçado... pra
mim isso é prevenção! Esses pacientes, eles vão chegar daqui a cinco ou seis anos, todos com
úlceras nas pernas. Porque a gente não faz essa prevenção. E está difícil conseguir esse horário,
esse espaço e esse recurso, porque eu preciso... e eu preciso de um auxiliar junto. Porque não é
centralizar no médico o atendimento, é a equipe. E a gente tem uma equipe maravilhosa, não é por
falar, mas na nossa equipe, assim, a gente tem um bom relacionamento e se eu tenho uma
dificuldade a P me ajuda, a M me ajuda, a C ajuda, o N, ela, todo mundo, a gente tem um bom
relacionamento. Mas a gente precisa focar na prevenção. Com uma população envelhecendo, um
diabético que vai durar vinte anos, esse rim ele não vai durar vinte anos, ele vai ser um renal
crônico daqui a vinte, trinta anos. Se eu conseguir controlar ele direitinho, eu tenho certeza que ele
não vai fazer hemodiálise precocemente. Então isso... um AVC, um hipertenso... então, as vagas de
acolhimento que eu acho, por exemplo, vou te dar um exemplo bem claro: hoje eu tenho uma
paciente crônica hipertensa, uma senhora de idade, e ela falou pra mim que ela estava tendo picos
de hipertensão. Então hoje, eu nem peguei vaga. Ela veio, eu fiz um acolhimento dela, mexi na
medicação dela, conversei com ela. Essa é uma vaga de acolhimento de pronto atendimento que eu
preciso ver, porque ela é da minha equipe, ela é usuária, ela é uma pessoa hipertensa, eu preciso
fazer alguma coisa pra ela, entendeu? Agora, vem gente até de fora pra ser atendido aqui, fora da
área. Daí é complicado. Muitas vezes, ah, eu estou trabalhando e cortei meu dedo, a senhora não
209
vai fazer sutura? Então eu pego uma vaga que era da minha equipe, dos meus usuários crônicos pra
fazer uma sutura que é um pronto atendimento, daí eu acho que já sai fora. Eu tenho um diabético
que vem toda semana e eu não pego vaga de acolhimento. São os pacientes que a gente chama de
vip, né? Porque eu preciso ver esses pacientes toda semana, são todos pré-renal, pré-diálise, então,
eu preciso fazer o acompanhamento deles. E eu não tenho vaga, não dá pra mim pegar a vaga de
todo mundo. Mas eu conheço a minha comunidade, isso que eu acho mais importante. Eu acho que
a gente tem que focar realmente na comunidade, na atenção básica, pra gente fazer esse trabalho. E
que não está fazendo! Ai, a gente tem que acolher todo mundo. Então vamos ver, é um pronto
atendimento ou um centro de saúde? O que que a gente tem que fazer? Então eu acho que isso a
gente tem dificuldade sim. Eu estou tendo. Eu não acho correto eu tirar a atenção dos meus
pacientes crônicos, né? Até nas minhas pacientes que têm uma síndrome metabólica que eu sei que
pode virar diabética no futuro, de eu estar atendendo ela, pra mim fazer uma sutura de um usuário
que não é nem da área. É complicado!
Pegando essa linha, assim, eu fico pensando um pouco na legislação. O que vocês
conhecem do SUS? Porque a maioria de vocês já fizeram cursos, treinamentos?
11- Não, eu nunca fiz treinamento e nem curso.
1- Um curso mais direcionado?
De entender as políticas da Atenção Básica, do SUS, de entender o...
1- Oferecido pela Prefeitura?
Não, no geral. Mesmo que tenha sido um curso de especialização que você tenha feito,
ou sua faculdade.
1- Específico eu nunca fiz.
Porque eu pergunto, como é que a gente discute isso com a nossa coordenação,
porque, por exemplo, está dentro da legislação isso que eles estão pedindo ou não? Vocês já
discutiram um pouco sobre isso?
5- Isso é uma política da Prefeitura, Prefeitura Municipal de Campinas. Portas Abertas. Não
é uma política daqui do Centro de Saúde.
1- É, e assim, pelo menos pelo que eu percebo em EPs de Enfermeiros ou mesmo
conversando com outros profissionais de outros Centros de Saúde, ou mesmo do Hospital, Pronto
Socorro, PA e tudo mais, eu percebo que a queixa é a mesma. Então me parece uma coisa meio
universal no universo de Campinas. Entendeu? Essa coisa do pronto atendimento na atenção básica
210
e a superlotação que decorre aí. Aparentemente, a gente não consegue mesmo absorver uma
demanda que realmente cresceu. Eu não peguei aí antes, mas parece que a gente não consegue
absorver tudo isso. Então, a nível de rede, parece que a rede está saturada. E eu não sei se é por
falta de profissional, que existe assim um déficit de RH muito grande, comprovado e tudo mais,
mas eu não sei se é só isso. Quer dizer, não é só isso. Mas a nível de rede, eu sinto que existe essa
saturação real. Pelo menos percebida, pelos profissionais.
11- Mas eu acho que uma coisa que não investe é nos grupos. Os grupos são essenciais.
Entendeu? Por exemplo, eu tenho um monte de pacientes com síndrome metabólica. A gente sabe
que eles vão evoluir, em cinco ou seis anos, pra uma diabetes. Se eu consigo fazer um grupo, a
gente está tratando o alimentar, a gente consegue trabalhar esses pacientes, pode ser que eles não
tenham uma diabetes daqui a cinco ou seis anos, entendeu? A prevenção falta muito. É que nem a
medicação. Medicação, a maioria toma tudo errado, você chama a família, a família não
comparece. Então, a gente não tem dispositivo de dar esse medicamento pra esse usuário crônico,
de uma forma adequada. Como por exemplo, o ANDA. O ANDA dá todos os retrovirais,
empacotadinhos, bonitinhos, cedo à tarde à noite, é tudo bonitinho, tudo visual. A gente não tem
isso, a gente vai ter que montar isso. Então, um hipertenso que não toma remédio adequadamente,
ele vai ter um risco de AVC muito mais rápido do que o outro.
8- O que a gente conseguiu fazer de grupo, foi o que a equipe bancou. Por exemplo, lá no
Recanto, a gente tinha um grupo de adolescentes e que foi prioridade da equipe e aí a gente brigou
por esse espaço, a gente precisou brigar mesmo, pra que a gente conseguisse fazer na construção
esse projeto. Mas aí o Núcleo terminou saindo e nós fomos seguidamente lá. A M fazia acuidade,
eu fazia a parte ginecológica, ficou uma brecha de um GO que a gente colheu os dados, eles
queriam e a A foi. Mas a gente precisou brigar por esse espaço. Por exemplo, na Odonto, acho que
em geral, a gente faz 15% de ações coletivas. Faz não! Temos 15% da nossa carga horária para
ações coletivas. Então, a gente tem que brigar assim, ó, ferrenhamente pra gente conseguir sair pra
fazer ação coletiva, dentro desses 15%. Tem seis anos que eu faço parte do grupo de tabagismo
aqui. As primeiras vezes, nossa, é uma briga mesmo dentro da equipe, da equipe de Odonto: por
que o Dentista tem que participar de uma ação coletiva de tabagismo? Então assim, é uma
conquista, é uma briga, não é como se fizesse parte, e isso no geral, não é como se isso fizesse
parte do nosso trabalho, do nosso papel. E, por exemplo, a gente vem há anos brigando e
trabalhando, então é uma conquista passo a passo, porque a tendência é tanto... a nossa gestora ela
211
é bem acessível, mas fica bem limitado uma série de coisas. Então assim, é passo a passo. E pra
fazer os 15% dentro da carga horária, não é pra ultrapassar isso não. Então assim, não é redondinho
a coisa da ação coletiva, agora aquilo que a gente conseguiu bancar pela equipe, a gente briga,
mas... aquilo que a equipe banca a gente ainda consegue levar pra frente.
11- Nossa, só eu estou falando. Eu estou desabafando! Prontuário familiar, a gente não tem.
Então, a gente começou com isso daqui, ó, etiquetar todas as pastas com azul, equipe água. Por
quê? Porque é uma forma visual. Quando eu vou tratar, eu trato a família, eu trato a família inteira,
é muito mais fácil eu pegar um prontuário familiar e ver a família. Porque se eu trato o colesterol
da mãe, certeza que o filho vai ter, porque é um erro alimentar, a gente orienta o óleo, a gente
orienta a fritura. A gente não tem o prontuário familiar, porque a gente não tem o prontuário pra
colocar. E era muito mais fácil, você pegar a família... eu trato a família. Geralmente, o marido e a
mulher vêm juntos na consulta, então, se eu for orientar a alimentação, eu vou orientar dos dois. O
filho vai ter um colesterol... se a mãe cozinha com um monte de óleo, ela vai ter problema. Então,
é mais fácil a gente pegar um prontuário e eu visualizo todo mundo, a família inteira. A gente não
tem, a gente não consegue, porque não tem a pasta!
8- Então, já faz anos que a gente entende, que a nossa equipe queria, e faz anos que a gente
pediu pra, pelo menos, ser por equipe. Se você chegar lá na recepção e você olhar, você vai ver
tudo pintadinho de azul. Porque nós estamos fazendo!
11- Quem compra isso daí, é cada um de nós. A gente pega, compra e traz a etiqueta.
Visualmente é mais fácil e até porque na hora que a gente for juntar, a gente junta de uma maneira
mais correta. E de saber, ele é da minha equipe, não que eu vou deixar de atender uma equipe,
ocasionalmente, mas pra gente conhecer a nossa unidade.
Esse cuidado já está tendo, de já marcar da sua equipe pra você e da outra equipe pro
outro?
11- Ah já!
Mesmo no pronto atendimento?
5- No pronto atendimento não. E essa é a nossa briga, porque assim, eu quero ter um
horário, se o meu paciente ficar doente... Pediatra... resfriado, diarreia, eu quero ter esse horário pra
atendê-lo. Porque é o normal, é o nosso papel. Eu não quero que ele vá no PS, não precisa ir. Esse
é o meu papel, mas, de repente eu tenho que atender de outras equipes, de outros lugares, como ela
212
falou, falta pro meu paciente. E até atendendo muito eventual, nós não estamos atendendo os
eventuais nossos. É totalmente errado.
O seu eventual às vezes chega e ele é atendido por um médico da outra equipe?
5- Às vezes ele chega e não tem mais vaga comigo, porque eu já atendi o eventual de outro.
Por exemplo, é um exemplo, não é todo dia que acontece, a gente tenta priorizar na Pediatria quem
é de cada equipe, porque temos cinco Pediatras aqui. Na verdade, está bem contemplado, de todas
as equipes. A UNICAMP trabalha aqui e mais um Pediatra por equipe. Mas às vezes naquele
horário não está aquele Pediatra. O paciente vem naquele horário que não é do Pediatra dele, então,
a gente acaba atendendo. Mas o que eu acho, assim, que dá pra perceber até nas falas, o quanto a
gente tem essa visão de Saúde da Família. Não sei, eu estava aqui só ouvindo e pensando, a visão é
totalmente de Saúde da Família, é natural. Não era assim, isso não existia.
8- A gente conhece os nossos pacientes, eles conhecem a gente. E isso foi um ganho bem
importante. Não era assim antes.
1- Eu ainda não entendi, a senhora diz que a equipe tem a visão de Saúde da Família?
5- A nossa equipe! Tem, naturalmente. A gente fala em família.
E é um bom resultado que você está agora percebendo?
5- Eu acho. Na minha opinião, sim. Eu acho que o cuidado melhorou.
1- Eu acho que na medida do possível, eu, recentemente, porque eu não estou aqui há tanto
tempo, mas eu realmente concordo com isso. Os pacientes nos conhecem. E isso é importante, eu
acho que é muito significativo. Eles nos chamam pelo nome, no corredor ou quando eu vou fazer
visita, eles conhecem a gente, eles têm a referência real. Então isso realmente é legal. Não se foi,
deve ter sido um ganho do processo.
11- Nossa equipe é muito boa!
8- Mesmo a lógica do nosso trabalho, eu acho que a gente faz vários projetos terapêuticos,
porque você vê, a gente tem uma boa parceria. Então agora a gente resolveu, eu vou me matar de
trabalhar, todos os crônicos dela ela resolveu olhar... porque antes médico não olhava, não queria
saber se eles tinham dente. Agora, antes dela fazer qualquer coisa, ela já olha os dentes. Então a
gente tem parcerias melhores agora. Eu acho que, qualquer dúvida que eu tenho, eu venho toda
hora assim, a coisa da equipe é muito boa. A equipe é boa!
5- É uma pena que os Agentes de Saúde não estejam aqui hoje, porque é outra coisa.
10- Elas sabem tudo! Elas conhecem, elas estão lá, vivenciando, estão próximas ali.
213
11- E elas participam do projeto terapêutico. Então, quando a gente vai fazer um projeto pra
um paciente, é todo mundo que faz o projeto. Ninguém é excluído. Todo mundo vai ter que ter o
seu papel no projeto.
10- A M também conhece absurdamente a área, a região. Ela mora na área né?
9- Mas, eu acho que a gente ainda tem um desafio de se apropriar do território, de entender
o território enquanto um espaço de produção de saúde.
8- Mas a gente ainda não consegue fazer, a gente sair pro território... hoje eu vou! Mas pra
eu sair pro território, eu falei, pra eu fazer os 15% é uma ginástica extremamente grande. É quase
dizer pros colegas, por favor, eles podiam fazer essa ação, mas não é uma coisa natural do processo
de trabalho.
9- E a sensação que eu tenho... é que assim, a gente não conseguiu ainda nem pensar como
é que a gente pode se apropriar mais do Agente Comunitário de Saúde, que é o que está de fato no
território... os profissionais mais, médicos, enfermeiros, a equipe mais, da saúde antiga, lá do
stricto sensu saúde, ficavam mais presos dentro da unidade e ainda hoje ficam mais presos dentro
da unidade. Mas eu, que sou um estranho no ninho, e os Agentes que são os que estão no
território... a gente ainda não conseguiu pensar em estratégias de intervenção no espaço físico
como um espaço de produção de saúde.
11- Um sonho, que a gente já discutiu isso várias vezes, que é da gente sair e perguntar na
comunidade o que eles querem, quais são as ações que eles querem. Então, um exemplo, se você
procurar numa igreja, numa comunidade, num centro comunitário, o que essa população gostaria
de ter de ações de saúde. Porque é importante ouvir também, né? Ah, quer uma orientação, quer
uma palestra, quer falar sobre os adolescentes e sexualidade. A gente não consegue fazer esse
intercâmbio e eu acho importante. O que que eles estão querendo? Porque isso é o que eu acho, e
eles? Como que eles vêm o centro de saúde. Essa recíproca. Isso a gente não consegue visualizar,
eu não consigo ainda. Eu não consigo sair, a gente não consegue sair e perguntar pros líderes de
comunidade o que eles querem, o que a comunidade quer. Qual orientação que ela quer? Quais
ações que ela quer de saúde?
Pois é, em algum momento o educador está fazendo isso? Você?
9- Sim, a gente tenta, mas é... não é sistemático, não tem projeto. Não tem uma ação
pensada ou uma intervenção estruturada porque a gente não conseguiu ainda se apropriar dessa
ideia de que o território é um instrumento de prevenção e de promoção de saúde. Tá certo? A gente
214
não consegue estabelecer essa interlocução com a comunidade de uma forma sistemática e
eficiente. Eficaz.
11- A gente tem uma população envelhecendo e essa população que está envelhecendo... eu
tenho bastante pacientes idosos. E uma área que eu adoro é a área de geriatria. E a maioria dos
meus pacientes estão adoecendo por solidão. Então, muitos deles estão entrando com
antidepressivos. E não tem, e é uma necessidade. O que que a comunidade poderia oferecer em
termos de trabalho, de atividade? O que está sendo feito pra essa terceira idade? Porque eu gostaria
de...ah, tem curso, muitos deles estão fazendo agora atividade física... mas eu não consigo ir na
comunidade, intervir... e a gente ter recurso pra não precisar tratar com medicação essa
comunidade. Eu poderia tratar com outra coisa.
Pois é, e vocês conseguem fazer isso, por exemplo, você como Agente Social e com os
Agentes Comunitários, trocar essa ideia?
11- A gente consegue fazer, a gente faz isso na reunião. Nem tudo é medicamentoso. Eu
poderia estar fazendo uma atividade com esses idosos, essa terceira idade, pra reduzir essa solidão
e essa falta de afetividade entre eles, porque eles ficam isolados. Não precisava medicalizar isso.
Atividade física, atividade de excursão, lazer, jogos, espaços de convivência.
O que vocês acham que falta? Por exemplo, está faltando o que? Uma coordenação? A
quem vocês se remetem?
11- Nós (risos).
Se tivesse que mudar algumas dessas coisas, quem é que...
9- Tem uma questão que é modelo. Tem uma questão que é modelo! O modelo que
Campinas implantou é um modelo que privilegia a ação de saúde individual à ação coletiva. Tá
certo? Privilegia a ação curativa à ação preventiva. É o que a gente está dizendo, o Ministério
remunera mais a ação individual do que grupo. A cidade tem uma lógica que é do consultório. O
modelo que está implantado, apesar do Paidéia, lá, dos cursos do Paidéia lá em 2001/2002,
dizerem outra coisa, o modelo que está implantado é o modelo do atendimento individual. Do
atendimento individual! Pode ser o Médico, pode ser o Enfermeiro, pode ser o Educador Social,
pode ser o Agente...
5- Mas eu acho, até hoje, que é médico-centrado.
9- É médico-centrado também. Mas, mesmo que a gente consiga superar isso, a estrutura e
a lógica do sistema ainda é individualizada, do atendimento individual. Por mais que cada
215
indivíduo seja um indivíduo, e os... tinha uma época que chamavam PTI, depois virou PTS, mas...
os projetos terapêuticos sejam singulares e individualizados, ou coisa parecida, seria preciso, até
pra desafogar o sistema, que as ações coletivas fossem privilegiadas. No sistema como um todo, no
modelo como um todo. E não tem.
Na expectativa de vocês, o que que precisaria pra fazer essa mudança?
8- Eu acho que estaria na hora, talvez, de ter de novo... vamos ver... quando começou o
processo Paidéia a gente estava num outro atendimento. Agora, a gente evoluiu. Então, a gente já
se dividiu em equipes, a gente já atende na lógica, com todas as dificuldades, a gente tocou pra
frente. Eu acho que, talvez, a sensibilização dos profissionais, no geral, fosse ocorrer de uma outra
maneira, se a gente tivesse um segundo momento aqui. Talvez fosse a hora, a meu ver, de um
segundo momento agora.
9- Você diz da formação?
8- É. A gente já tem uma estrutura que... vamos ver... veio, caiu o Paidéia. Daí, eu
conversei com o Professor G lá durante o meu curso, a gente ficou aqui na ponta, a gente queria,
porque achou que tinha tudo a ver o processo, que ficou super feliz dentro da capacitação... a gente
ficou no meio de umas brigas. A gente comprou brigas como se fossem pessoais. Agora, e eu até
falei pra ele, a gente ficou meio órfão lá na ponta, brigando com uma série de ações. Agora, de
uma certa forma, com uma certa dificuldade, nós estamos aqui. Evoluímos. Eu acho que talvez,
fosse o momento de uma segunda... sabe, que já está, já tem uma formação aqui, já tem um
caminho. Talvez fosse agora, daí, eu acho a meu ver, que seria um bom reforço.
Um caminho do setor central, então?
11- Isso.
5- Não é uma política de estado, é uma política de governo. Esse é que é o problema! Não
tem interesse nenhum em fazer outro Paidéia, o interesse é o contrário!
8- É, porque tem algumas coisas, que se não vierem de cima pra baixo... eu acho que
algumas coisas têm que continuar sendo sim. Por isso que eu digo, tem que sensibilizar a ponta,
pra poder a coisa andar. Porque se vier determinadas coisas, se a ponta não se sensibilizar, não vai
acontecer nada. Agora, tem algumas coisas que você mobiliza e outras coisas que têm que vir de
cima pra baixo, sim! Haja visto o nosso prontuário, certo? Nós somos, talvez, a única unidade...
com razão, uma está de LTS, ah tem n razões, n explicações, pro nosso prontuário ser assim. Mas
são anos, são anos...
216
10- Mas a gente não tem nem evolução clínica.
11- Não tem folha de evolução.
8- Então assim, tem “n” coisas que se não vierem... algumas coisas, não são todas... se não
vierem de cima pra baixo, não vai viabilizar.
5- Por exemplo, a M. A M não pode sair pra fazer uma... nenhuma coisa...
10- Eu não posso. Tem momentos que eu não posso participar da reunião. Porque não tem...
11- Quer ver um absurdo que eu acho, dentro da Prefeitura... por exemplo, existe uma praça
comunitária. Quem me trouxe as aulas de ginástica foram minhas pacientes idosas, porque eu
falava pra elas: não tem como melhorar a coluna, lálálá, se não fizer uma atividade física. A gente
tem o liang gong. Ah doutora! Eu não sabia que tinha aula de ginástica... eram três vezes,
reduziram pra duas vezes. De graça! No centro comunitário.
Que é dentro do território?
11- Dentro do território! Então, nós da equipe, nós não sabíamos os nossos fluxos. Eu tenho
pacientes sequelados que eu sabia da Lucy Montouro porque eu fui na inauguração da Lucy
Montouro. Mas ninguém no posto de saúde sabia da Lucy Montouro, que é uma reabilitação, põe
prótese, uma reabilitação maravilhosa, com fisioterapia diferenciada. Quer dizer, a própria
Prefeitura não conhece os seus fluxos. Porque o que eu já vi fora? A gente põe o cartaz, a gente no
centro comunitário vai ter aula de ginástica, tal, tal... precisa de um exame médico. Eu faço exame
médico em todos os pacientes, eu tenho paciente de setenta anos andando normalmente. Por quê?
Porque ela faz ginástica duas vezes por semana. Ela parou a medicação. Isso é ótimo! Nem tudo é
medicalizado. Você pode ter outros recursos, mas dentro da Prefeitura, a gente... eu não sabia! Eles
que trazem pra mim. Então, a gente é sozinha, eu me sinto sozinha. Não sozinha no sentido da
equipe, porque a equipe às vezes a gente dá um jeito, entendeu? A gente vai conversando, tudo.
Mas assim, não tem informação.
9- A questão de agenda, um problema. Porque assim, se os médicos têm uma agenda lotada
com os pronto atendimentos e os casos de rotina, e isso ocupa todo o tempo deles, que tempo eles
vão usar pra fazer os grupos, pra ir pra comunidade, pra promoção? Se todo o tempo deles é
tomado com ação curativa dentro do consultório e ação individual. Se é a lógica da agenda, se é a
lógica do sistema, isso não depende da nossa coordenação aqui. Depende do que que a Prefeitura
estabelece como meta pra unidade. Tá certo? E aí a Prefeitura estabelece como meta porque isso
vem de uma diretriz do Ministério. Tá certo?
217
Vocês têm um gerente da unidade, das cinco equipes?
11- O coordenador da unidade.
Então por exemplo, a falta do prontuário, vocês têm que submeter a esse
coordenador?
11- É, ela já foi ver, só que não tem. Não tem como mudar, porque não tem prontuário.
1- Eu, ela e mais alguns Agentes, a gente foi visitar outro centro de saúde que tem o
prontuário familiar já de muito tempo, pra gente saber como que a gente poderia começar a refazer
tudo isso. Inclusive, desde o cadastro dos Agentes. Então, a gente foi, viu, mas assim, a gente não
conseguiu ainda pensar e o prontuário e... parece fácil, mas não é, né, na hora ali.
Quem vocês acham que deveria ser o gatilho disso aí pra essas coisas acontecerem? Da
coordenação, do coordenador, como é que é? Só pra eu poder entender. Qual que é a
expectativa de vocês? Vocês esperam que alguém... como é que a coisa pode vir a acontecer?
1- Olha, eu acho que assim, primeiramente na prática, a gente precisa da colaboração da
equipe como um todo, do centro de saúde. Colaboração nossa, por exemplo, um mutirão, que foi o
que a gente pensou em fazer, pra separar as pastas individuais em famílias, em horário fora do
trabalho, pra gente fazer esse trabalho. Um trabalho voluntário, a equipe se propôs a isso.
9- Se tiver prontuário, a equipe toda, a gente vem e faz! É uma coisa que todo mundo
toparia.
1- E aí, uma coisa que eu acho que empaca, talvez, é a questão do cadastro mesmo, né,
porque o cadastro foi zerado e aí a gente precisaria cadastrar pela família. Porque o cadastro ele é
individual e aí uma coisa que eu acho que barra bastante é isso, a questão do cadastro.
11- Mas eu entendi o que ela perguntou, ela quis dizer assim: pra quem que a gente pediria?
Pro Distrito?
É, qual é o procedimento pra conseguir o que está faltando?
1- E a pasta que a gente recebe que, teoricamente, seria familiar, ela é muito vagabunda.
Desculpa a palavra, mas ela rasga com muita facilidade, ela descola, ela abre, ela desmonta. Então,
pra abrigar um prontuário gordinho, não dá! A gente vive grampeando, vive colando com etiqueta,
porque ela descola.
9- Então, tem uma questão aí que é dessa história de licitação, que é lá do departamento
administrativo da Prefeitura, que é o material que é licitado. A gente, por dentro dos instrumentos
de controle social, do conselho local, das conferências municipais, é falado dessas questões, da
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qualidade dos produtos que a gente precisa pra poder fazer as coisas. Agora, isso empaca nas
questões da burocracia do sistema.
11- Mas sabe o que que eu acho, eu vou ser bem sincera... que, por exemplo, os modelos
eles têm que vir de cima pra baixo, de uma maneira pra contemplar a saúde coletiva, pra gente
conseguir trabalhar essa comunidade de uma maneira mais eficiente e precisa estar atrelada com
verba. Se você não tiver, por exemplo, uma produção de tantas horas com grupos, não é destinado
tal verba pra tal município. Infelizmente, se a gente não mexe com o dinheiro, a gente não mexe
com propostas diferentes. Então, deveria fazer parte de todo profissional, ele ter uma hora pra fazer
saúde coletiva, fazer os grupos, que precisa! Não é só medicalizar.
8- Está vindo outra coisa na minha cabeça. Dentro dessa lógica ainda, de curativo... os
15%... aí cai de novo naquilo que eu falei de, talvez, estar vendo os profissionais como um todo,
porque, se a gente parar e pensar rapidinho, todos nós fazemos os 15%, por mais que seja difícil,
que tenha que brigar, não sei o que... motivar cada um a fazer os 15% já vai aumentar tanto a ação
coletiva. Não sei se eu me fiz entender. Entendeu? Tem todas essas questões, mas eu acho que por
trás disso tudo, o maior ainda é a vontade de fazer a ação coletiva. É difícil, mas nós fazemos. Se
você pensar assim, duas pessoas fazem... nós somos quatro profissionais... dois não fazem.
5- Porque não acreditam no modelo.
8- Por alguma razão eles falam, dão as desculpas, o que seja, as dificuldades. Então assim,
tem tudo isso, do material que você está falando e eu estou pensando: nós somos a única unidade
que não temos prontuário familiar. Os outros todos... deve ser o mesmo material nosso! Pode ser
que não tenha nesse momento, agora, não sei. Mas todas as outras unidades já fazem, só a nossa
não faz. Então assim, se de repente a gente andar um pouquinho mais, talvez, porque é isso e
mais...
Pois é, então falta da gerência, da coordenação, da...
8- É, tem alguma travinha aqui das pessoas...
Tem algum momento em que vocês reúnem as quatro equipes?
8- Temos. A Reunião geral do centro de saúde.
5- Uma vez a cada dois meses, às vezes.
8- Nós temos agora a coisa de uns três meses, é que todas as pessoas se inseriram na
equipe. Porque até então, nós tínhamos profissionais que diziam assim: eu não participo de
nenhuma equipe. Então assim, ficou... ficou. E foi aceito isso. Sendo que a gente tinha as equipes,
219
mas até três, quatro meses atrás, a gente tinha os profissionais: não porque eu não sou de nenhuma
equipe, não porque eu sou isso, eu sou aquilo, não porque eu não gosto, eu não acredito... e
ficaram! E foi tolerado.
Então, em algum momento alguém interviu e falou, não, tem que virar...
8- Aí veio uma ordem: ah não, tem que ser pronto! Aí teve que se encaixar.
Essa ordem veio de onde?
8- Veio de lá de cima, do Distrito, sei lá de onde veio.
Quem traz isso é o coordenador do serviço
8- É, ele repassou. Então as pessoas tiveram que se encaixar todas. Então, assim, eu acho
que tem tudo isso que a gente está colocando, mas assim, veio na minha cabeça agora, talvez o
mais importante seja as pessoas mesmo, a mobilização. Mesmo que seja dentro só dos 15%. Isso
não é na íntegra, não está na íntegra. Eu vou falar de mim: se eu sento com ela, com a minha
coordenadora e passo os meus horários, ela fecha a minha agenda. Independente da briga que eu
venha a ter, que seja difícil... se eu sentar com ela, ela fecha a minha agenda. Se eu chegar com o
meu projeto, vou fazer isso, o planejamento... nós duas sentamos e fizemos o planejamento da
Odonto, nós sentamos com ela e ela fechou a agenda. Então, assim, repensando é aquilo que eu
falei, tem tudo isso, mas eu acho que o que pega mais intensamente é a coisa de cada um.
2- Me desculpem, eu cheguei atrasada. Eu estava numa reunião fazendo uma palestra para
as gestantes.
Nós estamos falando da política, do SUS, da atenção básica, do que a gente acredita
enquanto a nossa função, então, vocês enquanto equipe, qual é a função de vocês, o que vocês
fazem da vida... se isso tem sido alcançado ou não, essa função de vocês e quais são as
dificuldades pra se exercer essa função e quais são as facilidades e as conquistas que vocês
têm tido. Em resumo, a nossa conversa é essa, é pensar o que eu conheço da política como um
todo... bom, e aí aqui agora, qual que é a minha missão, eu estou aqui...por que vocês estão
aqui, afinal de contas? Essa é uma boa pergunta. Ela falou né, que ela gosta, ela saiu do
pronto socorro... quer dizer, outros caem de pára-quedas... como é que é isso de vocês?
Entendeu? A ideia da conversa é entrar por aí também. O que eu quero? Porque vocês têm
uma previsão também: eu vou demorar mais dez anos pra aposentar, vou ficar aqui só por
causa do salário? Não é! Porque se não, não vale a pena, né? Então, como é que é isso? Não é
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só pra ela não. Vocês ouviram todo o resumo que eu fiz pra ela, mas vocês podem continuar.
Não pára por causa dela não!
12- Ah, eu estou porque eu gosto. Eu estou há mais de vinte anos e eu mantenho a mesma
ideia e a mesma postura de quando eu entrei. Hoje, um pouco mais desanimada...
Dá pra resumir qual que é essa ideia e postura aí?
12- É... de gostar do que eu faço e... de querer fazer... tipo assim, eu trabalho com a parte
preventiva, eu gosto dessa parte, eu gosto de atender a população, eu me identifico bastante em
estar atendendo a população, brigo por um monte de coisas que precise, que não acontece. E assim,
quando eu entrei eu era assim, era jovem...
9- Você é jovem!
12- Mas o legal disso, que eu acho hoje... é assim, eu continuo com as mesmas ideias. E ao
longo, eu vi as dificuldades, até chegar aqui... nem por isso eu estou, sabe, ah! Não, eu acho que a
gente tem que fazer sim! Se você tem que fazer um projeto, se você tem que fazer alguma coisa, eu
acho que a gente tem que fazer sim! Não é porque paga-se mal, não é porque... eu estou aqui pra
isso. A minha ideia, sabe, é isso. Eu estou aqui pra isso. Eu saí da minha casa pra trabalhar, pra
isso! Eu não venho por causa do salário, lógico, se eu não ganhar... tá pouco? Tá! Mas eu estou
aqui, porque eu quero, porque eu preciso. Mas porque eu quero! E... eu continuo assim. Do
começo, de quando eu entrei até hoje eu penso assim. Sabe, porque ninguém está me obrigando a
ficar aqui, eu estou aqui porque eu quero. Se não está bom pra mim, eu procuro outro lugar. Claro
que eu vou lutar pelas minhas coisas, eu vou lutar pelo que eu acredito, eu vou lutar pelo meu
salário, eu vou lutar por um neguinho ali, eu vou, claro! Mas eu estou aqui pra trabalhar, eu estou
aqui por causa da população, eu trabalho porque eles existem. Eu penso assim.
8- Aí trouxe um outro aspecto, porque quando eu fiz a capacitação eu saí tão feliz de lá
porque, eu acho que o prazer do que você faz alimenta o seu próximo passo. Eu saí tão... mas todo
mundo saiu assim dessa capacitação. E a gente aqui na equipe, a gente tem isso forte e de repente,
isso é muito bom, a gente conseguiu diminuir a medicação ou conseguiu que ele fosse ao dentista,
a gente tem esse foco e de repente isso é muito bom, esse processo todo. A gente partilha o que a
gente faz. Isso também era uma coisa muito solitária o dentista lá no consultório, então, assim, essa
coisa de trazer na reunião só tristeza, porque só tem assédio sexual e não sei o que, a gente sai
acabada, só desgraça...então assim, a gente tem o foco, a gente tem esse espaço e isso foi um ganho
muito grande.
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10- E mesmo nas dificuldades as coisas acontecem, mesmo com a falta de material, mesmo
com a falta de RH, mesmo que a gente tem aí um monte de coisas que estão faltando, as coisas
acontecem.
8- Sabe o que é aquilo ali? São escovas que ela trouxe escondidinha para fazer minha ação
coletiva.
12- Nossa ação coletiva
8- É, nossa, porque nós não temos escovas e precisava de um planejamento com
antecedência, nós não temos escovas para escovar os dentes do paciente aqui, mas a gente já tinha
feito um planejamento junto com a escola, então nós reservamos ali, meio quietinhos assim,
escondido, literalmente escondido porque não tem. Então é mais ou menos isso, a gente cobre um,
deixa o outro mais ou menos. É uma equipe de Magaiver, você já assistiu aquele filme?
12- Daí minha apoiadora falou assim: N o pessoal está reclamando porque não tem nem
escova e eu tenho um tanto que está guardado. A, não dá para disponibilizar? N, não foi feito um
planejamento o ano passado? Foi. Você não falou para eu fazer um planejamento, ver o que
precisava e te dar? Foi feito e está aqui para a realização do trabalho, não adianta eu colocar essa
escova no uso agora porque não vai haver mais. Não dá para descobrir um santo e outro santo.
Uma coisa que já estava planejada, que já está tudo certinho vai deixar de ser feito e o paciente
também vai ficar sem, porque vai atender a necessidade de 1 dia, 2 dias e depois? Então, eu sou
mais por manter o combinado, manter o programa, o...
8- Junto com aquelas escovas a gente comprou: saquinhos de chup-chup, etiquetas, porque
tem que ser a mesma em todas as aplicações de flúor, senão ela perde e nós não termos outra.
Como vamos fazer flúor na criançada. Então, é assim a gente tem que ir adequando, né?
Só para eu entender, entrou um outro personagem, você tem um apoiador? Quem é
esse apoiador aí?
12- Ela é do Distrito.
Apoiador Matricial então? Ou Apoiador Institucional? Ou Apoiador só? Como é que
vocês conhecem isso?
8- É, tudo o que é da Odonto a gente remete a ela. Ela vem aqui. Ela é do Distrito. De vez
em quando ela vem, teve uma reunião ontem de manhã. A gente tem uma reunião setorial, a cada
dois meses, e aí, algumas vezes ela vem, não todas.
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5- É, e nós que temos a supervisão que não vem aqui. Nós temos, assim, a equipe geral que
não é só a Odonto, tem também uma pessoa acima da nossa coordenadora, que é a supervisora, que
nós nem conhecemos direito.
8- Ai eu nem sei, tem horas que a gente prefere que nem venha.
(Obs: Momento em que equipe questiona quem é essa pessoa, confundem com o
coordenador do Distrito e então, lembram quem é).
8- Que é preferível que não venha mesmo.
12- Porque o deles, eles têm reunião a cada dois meses. Imagina, a gente tem reunião a cada
século! Já faz um século que eu estou aqui e nunca teve uma reunião, uma supervisão. Então... o
certo é mais do que um século...
5- Nós temos esse distanciamento dessa...
8- Na nossa reunião do Núcleo ela veio...
Na cabeça de vocês, assim, quem deveria fazer essa conexão assim, por exemplo, entre
esse negócio da educação física, as coisas do território ali... o que que está faltando? Os
gatilhos que estão faltando?
11- Eu acho que o Distrito. Eu acho que as Secretarias, elas têm que estar interligadas.
Então, a Secretaria de Esportes, que é responsável pelas praças, é isso? Então, vai haver uma
atividade numa praça de esportes, automaticamente, você já manda pra todas as Secretarias. A
Saúde tem que mandar pros seus postos de saúde também! Então, nada é interligado. É uma coisa,
assim, absurda isso. Eu ter que descobrir pelo paciente. Então, não existe uma conexão. A Lucy
Montouro, quem trouxe fui eu. Ninguém sabia da Lucy Montouro. Paciente sem perna, podendo
usar uma prótese de última geração e ninguém sabia pra onde mandar, ia mandar pra Sousas,
ninguém sabia... eu falei, não, é Lucy Montouro! Tanto que ele está sendo reabilitado, aquele
paciente nosso, sem perna.
5- Eu acho que também tem a nossa parte. Então assim, a gente tem que conhecer o
território, tem que conhecer os equipamentos, mas assim, a gente não tem essa mudança. Mudou o
horário disso, mudou o horário daquilo, entrou um curso novo, nós não sabemos. Então, a gente
conhece os equipamentos. Inclusive, antes de você vir, a gente fez uma visita lá. Mas fomos nós
que fomos lá, lembra? A gente que foi fazer a visita, não foi...
8- Então, mas quando a gente começou, a gente reestruturou a nossa equipe, há alguns anos
atrás, e aí nessa reestruturação, o primeiro passo que a gente quis foi ir no território. Que a gente
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tinha que ter isso mais cíclico, não toda hora, mas a gente fica consumido por essa coisa do
atendimento, que muda, muda, muda.
9- Eu acho que é isso, assim, a gente conhece o território, mas conhece fotográfico, não é
um conhecer dinâmico, não é um conhecer no tempo. Porque as coisas mudam, só que a gente não
está no território, porque a gente está preso dentro da unidade.
Pois é, mas aí o Agente Comunitário de Saúde, o Educador Social, não faz essa
conexão?
9- Então, faz, mas também faz com limitações. Porque a capacidade...
11- A gente é massacrado!
9- Porque a nossa capacidade de estar no território, conhecendo o território, analisando o
que está acontecendo no território, é também limitada... dos Agentes... isso seria uma coisa que a
equipe toda teria que estar no território, apropriada no território...
11- Ou se arriscando a fazer parcerias no território, ter parceiros...
9- Agora, não... tem o outro lado da coisa, que é obrigação do governo, de fornecer pra nós
o instrumental de ação no território. Tá certo? Por exemplo, os equipamentos públicos existentes
no território, que são do governo, esses, é papel do gestor municipal, que nos dêem a informação
do que está acontecendo.
11- Sem dúvida!
9- Tá certo? A gente não tinha que ter, que ir atrás de saber qual é a programação que tem
no Taquaral aqui do lado.
5- O Distrito, ele tem por obrigação, conhecer a área física dele. E os Apoiadores... o que
que é função do Apoiador? Eu nem sei qual é a função do Apoiador, pra falar a verdade viu,
porque até agora, se alguém puder me explicar...
11- Então esse Apoiador... a fulana é Apoiadora de dois centros de saúde. Tá! Dois centros
de saúde, dá pra você conhecer muito bem a comunidade. O que que tem de recurso nessa
comunidade? A gente tem dois centros comunitários que fornecem isso, isso... eu acho que o
Apoiador, ele tinha condições de passar uma série de dados pra gente. Coisa que não é feita,
porque até hoje eu não sei a função do Apoiador realmente. Uma coisa que é uma incógnita pra
mim. Então, a gente tem que fazer diversos papéis, pra que o projeto dê certo. A gente está
fazendo, aos trancos e barrancos, mas a gente podia abranger uma população maior. Mas em
termos de fluxo, a Prefeitura inteira é equivocada! Ela não faz um fluxo decente. Ah, a Prefeitura é
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enorme, não tem problema... pra isso existem os Distritos. O Distrito tem que saber do território
dele, conhecer o território dele. Não é possível, gente, que você seja o coordenador de um Distrito
e você não consegue saber quantos centros comunitários você tem... tem que ampliar isso. Você
tem que ter uma foto do local. Aí, deixa só no centro de saúde. O centro de saúde tem que fazer
isso, isso, aquilo... a gente não consegue fazer.
8- Eu acho até que a gente, com os Agentes, com o questionário, a gente levantou os nossos
equipamentos...
11- Mas eles são massacrados!
8- Só que aí, também, a gente foi ajudando. A gente fez, enquanto a gente estava nesse
momento da equipe, a gente fez um levantamento de tudo da nossa equipe, da nossa área... a gente
foi... pegamos um dos questionários lá do curso, eu já tinha feito, a M estava fazendo, e a gente
resolveu fazer na equipe, levantar todos os dados. Mas não há um espaço pra ser dinâmico. Daí os
Agentes vão, mas eles vão com outros objetivos, e aí nem sempre a gente consegue juntar todas as
coisas, por conta de... isso a gente conseguiu ter sempre, essa reunião preservada. Mas nem todo
mundo consegue vir. Dos auxiliares de enfermagem tem só a M, quando ela pode vir, porque não
tem. Então assim, eu acho até que a gente pode captar o território, mas as mudanças, as parcerias
dentro do território, ficam muito difíceis, porque teria que ter alguém lá. Se não fosse essa coisa do
Distrito, do equipamento que tem, eu não sei, tem mas eu acho que ali vai mudando também, é
dinâmico.
5- Mas se as Secretarias conversassem... as Secretarias não conversam. Educação, Saúde...
11- Por exemplo, o Taquaral, eu não tenho a programação do Taquaral. Eu poderia ter aqui
na minha mesa e já indicar pros meus pacientes.
5- É, eu não tenho! Eu mando meus pacientes irem lá.
11- Pois é, mas é uma coisa que se eu tivesse e dissesse olha, tem isso, um folder...
Pois é, e aí quem que poderia fazer? Alguém da equipe não, teria que vir do Distrito
essas coisas?
11- Eu acho que sim né?
5- A nossa equipe não tem perna pra isso. Com a demanda aqui...
11- Eu também acho que não.
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A outra pergunta, pra eu entender aí... por exemplo, essa coisa do prontuário familiar.
Quem seria o gatilho aí? Quem que falta pra falar, não... até porque você falou que as outras
unidades todas têm. Quem vocês acham que deveria ser pra fazer isso?
11- Eu fui, você foi, a nossa coordenadora foi, fazer as visitas...
1- Eu fui junto com a coordenadora e mais um Agente Comunitário, pra justamente ver
como que a gente poderia fazer. Mas é o que eu falei, eu acho que, assim, na prática, a gente
poderia sim, a equipe topou fazer um mutirão... eu não sei responder de quem deve vir esse gatilho.
Não sei se é da N, não sei se é do Distrito... eu não sei responder, sinceramente.
9- Agora, se por exemplo, a coordenadora decidir vamos fazer isso amanhã e fecha a
unidade... a unidade vai parar e vai fazer, mas vai fazer sem o recurso material adequado. Então, de
novo a gente vai ter que virar Mcgyver pra inventar gambiarra, pra resolver o problema de falta de
material. É isso! Se ela disser pra gente, vamos fazer, hoje... a gente vai sentar e vai fazer. Porque
vamos fazer e é hoje. Agora, vamos fazer mal, vamos fazer improvisado.
5- Não dá pra fazer. Muitas coisas a gente fez, mas improvisar isso, é impossível.
8- É, foi isso que ela colocou... ela colocou, que eu fiz esse questionamento, e aí ela
colocou que a gente estava com muita dificuldade em ter esse material, que... como que a gente ia
fazer? Porque o espaço físico, teoricamente, vai ser o mesmo, só vai organizar, colocar diferente,
equipe azul num lugar e... mas que a gente estava com essa dificuldade do recurso.
5- Mas faz tempo. Quanto tempo isso?
9- Foi no começo do ano...
1- Não antes disso...
5- A discussão já é, ó...
Bom, a gente não fez o contrato do horário... até que horas a gente pode ficar? A gente
pode começar a concluir ou ainda pode...
5- Eu acho que pode.
11- Agora que a gente já fez a nossa...
8- Olha, uma das qualidades ou defeitos da nossa equipe, é que todos falamos bastante.
1- Eu fico só pensando uma coisa engraçada, que talvez se vocês fizessem isso que vocês
estão fazendo com a gente numa outra equipe, vocês teriam respostas muito diferentes, dentro do
mesmo centro de saúde. Eu tenho certeza que seriam bem diferentes.
11- Nossa, totalmente.
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5- Então M, deixa só eu falar uma coisa que eu acho que não foi abordada, porque eu queria
que você tivesse aqui e você já saiu... que algumas ações que a gente fazia antes davam certo.
Então, por exemplo, alguns grupos, enchiam de gente. Os grupos que a gente fazia de puericultura,
por exemplo, eram... não tinha espaço, de tanta mãe. E assim, as coisas mudaram, as coisas todas
mudaram. Então, hoje em dia, as mulheres não faltam do trabalho pra vir no grupo, não tem com
quem deixar a criança... eu acho que isso mudou muito. Então, falta pra gente também um... eu
acho que uma nova visão, alguém orientando a gente, conversando com a gente sobre isso. Uma
nova visão de fazer algumas ações coletivas de outras maneiras. Porque eu acho que algumas ações
coletivas, hoje em dia não funcionam mais. E as que a gente teve a capacitação, o treinamento pra
aquelas ações, funcionavam. Agora, não funcionam. Então assim, é uma coisa que eu acho que a
gente ficou pra trás, nesse sentido. Eu não sei, é uma coisa que eu sinto. A gente tenta fazer o
grupo de gestantes, eu sei que tem um monte de gestantes, e elas simplesmente não vêm.
10- Nosso grupo de vivência, também, não tem. Era ótimo nosso grupo de vivência.
8- Tem aquela característica que a S levantou, que o Maranhão é aqui e a Bahia é aqui. A
gente está com uma crescente dessa população migratória, que está indo e vindo, em busca de
tratamento... então, a gente está com doenças diferentes que a gente não tinha antes, a sífilis, por
exemplo.
11- A sífilis, 80% do Maranhão, dos usuários, têm sífilis. E são terciárias, porque eles não
têm nenhum tratamento. O tratamento de sífilis é inesquecível, que eu falo, todo mundo lembra,
né? Então, a gente tem uma população migratória que vem pra cá e que eu tenho que ter um outro
olhar, né? Porque eu não vou pedir esquistossomose pro meu paciente, normalmente, mas eu peço.
DST altíssima... eu tinha uma peça que eu deixava aqui, mas que roubaram... e todo mundo achava
horrível. Era o choquito, porque era um pênis com condiloma. Eu deixava aqui e ai que horror!
Mas você não conseguia desviar o olhar dele. Daí, o que que é isso doutora? Daí eu começava a
falar... porque ninguém mais usa camisinha também, tem mais essa... ninguém usa. E essa
população vem, se trata e volta pra Bahia. Então, geralmente eles vêm querendo a consulta em
dois, três dias, os exames também, rapidinho, pra eles voltarem pra Bahia. Eu falei que não existe
isso, que a gente tem que tratar do paciente e o tratamento não é uma consulta, é um projeto que
você tem que fazer. Então, a nossa população está bem diferenciada. Por exemplo, eu peço sífilis e
HIV pra todos. Faz parte do meu periódico, sífilis, hoje. E infelizmente a gente tem uma
positividade muito grande. Muito grande, uma coisa absurda. Essa população nossa migratória.
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8- A gente tem que estar toda hora criando estratégias, porque está bem diferente. Antes
tinha um povo de Cajati, especificamente, da Bahia que moravam aqui os parentes, eles vinham
nas férias. Mas agora, de dois anos pra cá, é uma desova mesmo.
11- Eles vêm de ônibus, ficam, daí tal ônibus volta, tal dia, eles querem consulta e... assim
não funciona, entendeu? Pega a medicação, volta, o parente vem, pega a medicação e manda por
correio pra eles também. Retrata a sífilis três vezes.
Então, a gente falou de problemas, dificuldades, de funções... pra gente não sair daqui
muito assim, angustiado, vamos falar um pouquinho assim, do que a gente espera, mesmo
que seja do ideal perfeito... acho que não tem que ser o ideal perfeito não, mas assim, eu
espero que, o Apoiador, igual você falou, se mostre um pouco mais, que eu entenda... o que a
gente espera pra um futuro, enquanto nós como equipe, como saúde, os próximos anos que
vocês têm ou os próximos meses... vamos sonhar um pouquinho! O que seria um projeto, o
que vocês sonham em alcançar?
11- Ah, eu queria fazer uma medicina preventiva, não só curativa. E eu queria fazer uma
medicina não tão medicalizada, tanto remédio, remédio... mas que eu tivesse outros recursos de
tratamento.
1- Eu sonho em ser acupunturista aqui.
É uma política do SUS. Acupuntura já é ...
5- Mas ela é acupunturista.
8- Minha expectativa a curto prazo, pequenininha, poder ver seus 15% de ações coletivas
sem pressões excessivas.
1- Eu gostaria de ir mais pro território... conseguir ir mais pro território.
5- Eu acho, que nem a C, eu fazer meus 15%, que eu fazia e não faço mais. Não faço no
momento, não estou fazendo.
1- E também, não só de ação, mas estruturalmente, como o N falou no começo, eu gostaria
de ter outra estrutura física mesmo. Não explodir isso aqui e construir outro. Mas, ter mais uma
sala de reunião, um pouco maior... eu gostaria de ter uma outra estrutura aí...
12- Segurança...
11- Segurança, a nossa pauta do dia!
Tá e se a gente pudesse fazer junto com os sonhos, só pra vocês acabarem de
responder... algumas coisas que vocês fossem elencando. Por exemplo, pra cumprir os meus
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15% eu posso o que? Fazer o projeto e ir na minha coordenadora que ela fecha minha
agenda. Então, pra eu alcançar esses 15%, eu vou fazer então. Na próxima semana
programar, vou na minha... entendeu? Tentar ver a factibilidade disso. Eu peguei sua fala
porque foi o que você falou agora mesmo. Então, o que a gente pode elencar e dizer, assim,
não, se eu tiver isso aqui, de tal situação... por exemplo, pra fazer o prontuário familiar... eu
vou fazer uma lista exatamente do que eu quero... pra quem que eu vou mandar? Então, o
que a gente pode como equipe? Até pra gente sair desafiado daqui, e falar, não podemos...
essa equipe é boa e pode ser melhor.
8- Daí a gente já está caminhando nesse sentido, porque eu já exerço os 15%, aí eu peguei o
Nei, e o Nei pegou tudo o que eu fiz no ano passado, o que a outra Dentista fez... ele fez o mapa,
bonitinho, o gráfico lindo, colorido e a gente vai mostrar pro Distrito, pra equipe. Agora a gente
está olhando esse ano e vamos fazer uma comparação. É um convencimento, isso é estratégia dele,
porque o projeto a gente tem, a gente está aí fazendo os grupos, cresceu um pouquinho mais, está
quase nos 15%... só que, as pressões ainda são muito grandes, então a gente mudou a estratégia um
pouco. Fizemos um parceiro ótimo aqui e ai a gente vai estar mostrando mais isso, tipo assim, ó a
gente fez isso aqui...
5- E é o que a gente está fazendo no Núcleo de Saúde Coletiva, que é um sonho antigo de
retornar o Núcleo de Saúde Coletiva e retornou há alguns meses. Quase todo o Núcleo de Saúde
Coletiva é a nossa equipe.
11- Não me liberaram ainda pra entrar no Núcleo. Não liberaram ainda meu horário pra eu
entrar no Núcleo.
Núcleo de Saúde Coletiva é um departamento aqui, dentro dessa unidade?
8- Sim.
9- E nem vai liberar. Porque é de toda a unidade, mas isso não é deformação ...
8- Isso ficou aí um mês pra todo mundo colocar o nome, quem tinha interesse e quase que
100%...
11- Ah, eu não fui liberada...
8- A N falou pra gente na reunião, que ela acha que nesse primeiro momento não, porque se
não fica só a nossa equipe. Mas é só a nossa equipe!
11- Que tem esse interesse, que tem esse olhar...
5- O povo não é metido não, isso é realidade, tá?
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12- Então, e no que a C falou aí da M, pra mim avisar esses projetos, tudo... falta material.
Nós não temos material didático, a gente tem que estar tirando do bolso, comprando, sabe? Se a
gente tivesse isso daí eu acho que atrairia mais pessoas. Uma coisa lúdica, atrairia mais. A gente
não tem nada, a gente não tem nada pra oferecer, sabe? Nada vezes nada. Se você quer oferecer,
por exemplo meu grupo de gestantes, se quiser oferecer alguma coisa, tem que ser do bolso, do
meu bolso, tem que... então,a gente não tem nada, não tem material nenhum. Não tem material,
sabe? Não tem material nada pra você.
9- Uma coisa é você fazer oficina e fabricar escova de dente com varetinha de bambu como
uma experiência episódica, pra mostrar ó, era assim que se fazia antigamente. Agora, você ter que
fazer isso porque não tem um outro recurso, é complicado! Tá certo? Assim, a ideia da reciclagem
é uma ideia de você complementar coisas, não a ideia de suprir carências. Tá certo? Tem um
recurso disponível, então vamos pensar como é que a gente aproveita ele. E aí o que a gente tem
vivido aqui é o contrário, é não tem da onde a gente tirar. Então, com a sucata que tem aí o que que
dá pra gente fazer? É um jeito diferente de olhar pra coisa, e não é o melhor jeito, assim. Viver do
improviso é muito ruim.
12- Mas é o que a gente faz mesmo. As nossas coisas é com sucata e... e tipo assim, as
nossas coisas da Odonto, assim, a gente faz porque a gente insiste em fazer mesmo, porque a gente
vai com o nosso carro, tira dinheiro do bolso, tá? Então assim, é uma coisa de teimosia mesmo que
a gente faz.
9- Acho que assim, no capítulo dos sonhos que você falou, uma coisa que eu queria é ir
mais pro território em grupo, com mais gente junto. Ir mais pro território, pensando em atuar mais
no território, não entre quatro paredes, não institucionalizado. Sai do centro de saúde e vai pra
escola, sai do centro de saúde e vai pra ONG, sai do centro de saúde e vai pra creche, mas sai do
centro de saúde e vai pra rua, vai pra praça, vai pro espaço aberto pra fazer a ação no território e
não enclausurado dentro de um espacinho fechado que está lá. Que continua não sendo, do meu
ponto de vista, o território no sentido mais amplo e abrangente.
5- Você nunca falou isso!
8- Falou!
5- Mas eu nunca ouvi. Então, eu não estava, desculpa!
9- Mas assim, pensar em ação na rua, na praça, enfim, inventar... e em grupo.
230
E hoje faltam os caminhos pra fazer isso? Você acha que, como é que isso pode
acontecer?
9- Eu, assim, na verdade, pra eu propor uma coisa dessas eu... eu vivo tímido de falar uma
coisa desse tipo porque eu olho pro jeito como essa equipe está aprisionada dentro do centro de
saúde, enlouquecida com uma demanda batendo na porta. Então assim, eu fico com medo de falar
uma coisa dessas e isso soar como se eu tivesse surtado, tá certo? E dizer, ó, sai desse consultório,
pára de atender esse monte de gente e vem pra cá!
5- Como se fácil fosse, né?
9- É, fecha essa agenda aí! O que vocês estão fazendo aí dentro? Sabe assim? Enfim, é um
pouco isso assim.
Está começando ter gente pra sair. Dá pra fazer outras reuniões desta então? Dá pra
gente conversar mais um monte de coisas?
11- Com certeza!
1- Mas seria interessante você fazer uma reunião com as outras equipes. Seria engraçado.
5- Vai ser outro centro de saúde que vocês vão conhecer.
Bom, acho que a gente tem só a agradecer. Foi muito bom.
5- Vocês vão voltar outras vezes?
Vocês receberam o convite pra ir lá assistir à defesa dela, mas a gente vai voltar pra
outras coisas.
8- Não, eu estou achando que é muito legal, porque nós não paramos mais... a gente parou
na época do questionário, faz o que, uns quatro anos mais ou menos, mas depois disso a gente não
parou mais. E aí, parar pra gente pensar... é... eu estou achando muito interessante! Eu acho que
sempre aparece uma ideia, uma ideia na cabeça, eu acho que esse é um momento bem legal.
5- E... vocês não falam o que vocês acharam né?
(Risos)
5- Isso é uma coisa que a gente, que é legal você dar essa recíproca, porque todo mundo
vem, vem, vem e ninguém fala nada.
Eu fui Apoiadora no Ceará. A sensação que eu tenho é de falar, nossa, se eu tivesse
uma equipe dessa pra trabalhar como Apoiadora... porque vocês estão assim... tudo na mão,
com vontade, indo atrás e falta alguém pra chegar realmente e falar, ó, vamos lá, vamos fazer
isso! Vocês estão assim com um pique muito legal. Muito gostoso ouvir vocês.
231
11- Tirando a A, a maioria tem bastante tempo de rede.
Porque eu peguei equipes que eu tinha que motivá-los a chegar nesse ponto que vocês
estão, aí consegui fazer. Hoje não, hoje se eu pegasse uma equipe motivada igual está assim,
puxa, tinha muita coisa legal pra fazer.
9- E a gente faz, com os recursos que a gente tem.
8- Então tá! Muito prazer!
232
Anexo VI
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Este termo pretende informar sobre “A organização da Atenção Básica de Saúde em
Campinas/SP: perspectivas, desafios e dificuldades, a visão do trabalhador da atenção primária à saúde”. A pesquisa, do Departamento de Saúde Coletiva/ FCM/ Unicamp, tem como objetivo identificar como o trabalhador SUS da ABS compreende seu trabalho e de que maneira ele contribui para a efetividade e legitimação do SUS.
Para tanto, são objetivos específicos da pesquisa: - Identificar as expectativas que o trabalhador SUS da ABS tem em relação ao trabalho
desenvolvido no serviço ao qual está vinculado; - Identificar problemas e insatisfações do trabalhador SUS da ABS em seu cotidiano de
trabalho; - Identificar como o trabalhador da ABS avalia sua produção no trabalho; - Entender como o trabalhador considera e avalia o SUS e, em particular, a ABS; - Avaliar a gestão do trabalho na ABS a partir do discurso do trabalhador. Para a coleta de dados utilizaremos grupos de discussão com trabalhadores da Atenção
Básica de Saúde. Os grupos de discussão serão áudio-gravados e transcritos na íntegra. A transcrição das
gravações respeitará a veracidade e originalidade dos discursos e a preservação da identidade dos autores das falas, assim como a descrição do que for observado.
A participação na pesquisa não oferecerá nenhum tipo de prejuízo ou risco para os sujeitos, em nenhuma fase do estudo ou decorrente dele, de forma direta ou indireta.
Os sujeitos têm liberdade para se recusarem a participar ou retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, sem que tenham nenhum tipo de prejuízo.
Os pesquisadores se comprometem a prestar qualquer tipo de esclarecimento, antes, durante e após a pesquisa, sobre os procedimentos e outros assuntos relacionados a ela, além de retornar os resultados da pesquisa a todos os participantes.
Sendo assim, pelo presente instrumento que atende às exigências legais, não restando
qualquer dúvida a respeito do lido e explicado, o Sr.(a) ____________________________________________, portador(a) da cédula de identidade ______________________________, firma em seu CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO concordando em participar da pesquisa proposta.
E, por estarem de acordo, assinam o presente termo. Campinas/ SP, _______ de ________________ de _____.
_________________________________ ___________________________________
233
Assinatura do sujeito Assinatura do coordenador da pesquisa
A sua participação em qualquer tipo de pesquisa é voluntária. Quaisquer esclarecimentos, favor entrar em contato com o Coordenador da pesquisa: Ana Carolina Diniz Rosa, Telefone: (15)9704- 3839 e e-mail caroldiniz82@hotmail.com ou
Profa. Dra. Marta Fuentes Rojas, Departamento de Saúde Coletiva da FCM/ UNICAMP ,Telefone: (19) 3521-8036.
Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp
Rua: Tessália Vieira de Camargo, 126 – Caixa Postal 6111 13083-887 Campinas-SP Telefone: (19)3521-8936 Fax (19)3 521-7187 e-mail: cep@fcm.unicamp.br
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