alimentação e comensalidade em o banquete de trimalchião · o banquete romano, como veremos, de...
Post on 24-Nov-2018
214 Views
Preview:
TRANSCRIPT
Alimentação e comensalidade em “O Banquete de Trimalchião”:
a reverência aos deuses, aos mitos e à arte culinária
Isabella Magalhães Callia*
Pão carbonizado pela erupção do Vesúvio, em 79 EC, Pompeia (Ca), Itália.
1 Italianista, especialista em Gastronomia: História e Cultura (SENAC, 2015), pesquisadora das práticas
alimentares da Roma Imperial. Mestranda em Língua, Literatura e Cultura Italianas, pela FFLCH/USP, sobre o
receituário de Pellegrino Artusi (século XIX), sob orientação da Prof. a Dr. a Maria Cecilia Casini.
isabellacallia@usp.br
Introdução
A partir da análise de passagens de O Banquete de Trimalchião, capítulo de
Satiricon, sátira atribuída a Petrônio (século I EC), pretendemos fazer algumas
considerações introdutórias sobre a presença dos mitos e dos ritos que se configuram
na esfera da alimentação e da comensalidade.
No regimento do banquete privado greco-romano são explicitadas duas
principais fruições: a alimentar e a filosófica. O Canto VII da Odisseia de Homero
canonizou o simpósio como símbolo da hospitalidade grega e, desta forma, designou
este como espaço da memória, do conhecimento e da variedade. Enquanto para os
gregos o banquete era uma forma de reverência aos deuses e de convivialidade, e,
portanto, normatizador da esfera cívica, para os romanos o culto passará
progressivamente a dar maior ênfase aos prazeres gastronômicos (ALBERT, 2009).
Partindo destas premissas, observaremos sobre de que forma no texto de
Petrônio nos é possível identificar o lastro cultural deixado por Homero em dois planos:
na ritualística alimentar e comensal descrita e consolidada em seus versos, bem como
na sua presença no decorrer da ceia enquanto sinônimo de erudição, por parte do
anfitrião.
Como embasamento teórico, este trabalho se apoia nas reflexões de Jean-Marc
Albert (2009), Massimo Montanari (2004) e Jacques Derrida (1998). Foram escolhidas
as traduções de O Banquete de Trimalchião de Miguel Ruas2, e do Canto VII, da
2 Satiricon. Escala (1982).
Odisseia, de Messionia Rodrigues Gonçalvez3.
1. Petrônio e Satiricon
Pouco se sabe sobre Titus Petronius Niger (c. 27- 66 EC), também conhecido
por Petrônio Árbitro, a quem atribuem a autoria de Satiricon. O cortesão, escritor e
político, era um distinto frequentador da corte de Nero, como descreveu Tácito4 em
seus Anais5;
Petrônio consagrava o dia ao sono, e a noite aos deveres e aos
prazeres.[…] foi admitido entre os poucos íntimos de Nero e tornou-se
na corte o árbitro do bom gosto: nada mais delicado, nada mais
agradável do que aquilo que o sufrágio de Petrônio recomendava ao
príncipe, sempre embaraçado na escolha (TÁCITO, XVI:18, tradução
nossa).
Árbitro do bom gosto, Petrônio gozava de grande prestígio e ditava
comportamentos. Dado que não passará despercebido ao lermos algumas passagens
de sua obra de acurada crítica social, ridicularizando elegantemente seu entorno.
Satiricon é uma obra fragmentária, da qual a parte que se preservou
integralmente é a do Banquete de Trimalchião. Através dos trechos conservados
podemos acompanhar, ainda que de forma incompleta, a narrativa autobiográfica das
aventuras do jovem estudante de retórica, Encolpio.
3 Odisseia, 7: tradução e comentários. UFRJ (2010).
4 Historiador, orador e político romano, Publio Cornelio Tacito (55 – 120 EC).
5 Annali, XVI. La fine di Petronio, Arbiter Elegantiae.
Modernamente considerada um romance, o que faz desta obra única é sua
estrutura peculiar de alternância entre diálogos, prosa e poesia. Em seu ensaio de
análise comparativa, Carnavalização em “O Banquete de Trimalquião” e The Great
Gatsby6 (2013), Jassyara Fonseca aborda a atemporalidade do texto de Petrônio;
Considerado o primeiro romance realista da literatura universal, o
Satyricon apresenta características que antecipam o que no século XIX
comporia esta estética. No prefácio de Raymond Queneau [...] tem-se a
seguinte citação, a qual confirma as relações que o texto de Petrônio
estabelece com a modernidade: “De todos os escritores da Antiguidade,
não há nenhum mais ‘moderno’ que Petrônio. Ele poderia entrar, e com
o pé direito, na literatura contemporânea, e seria tomado como um de
nós.” (FONSECA, 2013:73, grifos da autora).
Devido a sua escrita inovadora, tanto em sua concepção quanto em sua
polifonia, a qual mescla oratória e gíria das ruas, o autor muito provavelmente seria
“tomado por um de nós” também pelo fato de seu protagonista ser um completo anti-
herói, como veremos.
Incerta a autoria, e incerto é também o nome da obra. Nos manuscritos não há
um consenso sobre o título, podendo variar entre Satiricon, Satyricon, Satíricos ou
Satyricos (livros), Satyri fragmenta e Satirarum libri. Tornou-se praxe referir-se à obra
por Satiricon, provavelmente forma de genitivo plural da palavra grega (na qual está
subentendida a palavra livros). Outro nome representativo é Saturae ou Satirae, que
pode ser entendido por “livros satíricos” e “livros de coisas de sátiros”, fazendo menção
ao sátiro, delimitando seu conteúdo cómico-satírico e licencioso7. A sátira, ou satura,
como veremos mais detalhadamente, evidencia e ridiculariza as paixões, os modos de 6 Revista Rónai (2013).
7 Satyricon. Enciclopedia Trecani. Tradução nossa.
vida e os comportamentos comuns de pessoas ou grupos sociais que “contrastem com
o ideal ético ou político do autor, de tom que pode ser ácido, cru, amargo ou mordaz8”.
Este gênero literário original da literatura latina inicialmente se caracterizava sob
forma de miscelânea poética sobre temas diversos, tais como fábulas, reflexões morais,
etc., para então, posteriormente, enveredar por dois caminhos; sob a métrica poética
literária de hexâmetros, nas vestes de uma linguagem quotidiana, explícita,
expressando forte agressividade política; ou então como sátira menipeia, a qual
combinava prosa e poesia, com a presença de trechos dialógicos. Satiricon se
enquadra nesta segunda tradição.
A raiz etimológica do nome satiricon vem do latim satura, do adjetivo satur
«pleno, saciado» e por extensão «variado, misto» (também, com valor negativo,
«confuso»), o termo goza de uma interpretação antiga, na qual estaria relacionado à
lanx satura, o prato de variadas delícias oferecido ritualisticamente aos deuses; algo
como um “virado” composto pelas melhores comidas misturadas num prato só, um
“tudo junto ao mesmo tempo”, aquilo que em italiano se chama de pasticcio, em francês
de pastiche, e em português pode ser entendido de forma bastante redutiva por
confusão. Já segundo outros, a palavra sátira estaria ligada ao etrusco satir «palavra,
discurso»; as variantes saty̆ra e depois satĭra, das quais deriva a forma do vocábulo, se
difundiram na época da Roma Imperial9.
De fato, o texto em questão retrata uma grande variedade, não apenas em sua
estilística, mas também, e, aqui sim, “uma variedade confusa”, nos próprios pratos
oferecidos por Trimalchião, compondo uma verdadeira lanx satura, como nos narrará o
protagonista Encolpio, logo no início da ceia: “realmente, parecia assistirmos a um coro
de pantomima e não a uma ceia no triclínio de uma pessoa de bem” (PETRÔNIO,
8 Idem.
9 Idem.
1980:40).
2. Mesmo à mesa os clássicos caem bem
Enquanto o narrador da obra, Encolpio, é um jovem letrado e culto, desprovido
de bens, o anfitrião do dantesco banquete, Trimalchião, é um liberto riquíssimo,
contudo, ignorante e privo de modos. No banquete em sua suntuosa residência, que
conta com escravos das mais variadas partes do Império Romano, serão servidos
excêntricos pratos, os quais orbitam entre o luxo do supérfluo, a abundância
espetacularizada e o desperdício ostentatório, e, como veremos, toda a comensalidade
presente na obra será permeada de uma ritualística bastante delimitada. Comecemos
pela análise do termo banquete.
Para o verbete banchetto na Enciclopedia Treccani resultam dezoito definições,
em que a palavra é sinônimo do latim convivio, convivium, estar junto. Outro sinônimo é
convito, de convitare, convidar, para um convivium. Em sua definição sobre a palavra
banchetto encontra-se:
BANQUETE (fr. festin, banquet; sp. banquete; ted. Bankett; ingl.
Banquet). A antiguidade clássica - Com o nome de banquete ou convito
entende-se que se refere à antiguidade clássica, a forma mais complexa
e rica da refeição em conjunto [...] (TRECCANI, s.p., tradução nossa).
O banquete romano, como veremos, de fato, rico e complexo evento social, teve
sua origem na cultura grega, e, para se falar em convito grego, é fundamental sublinhar
a importância das práticas sacrificiais. Os gregos estabeleceram ritos que evidenciavam
a “dimensão cultural estruturante do sacrifício para a coesão da comunidade cívica”
(ALBERT, 2009:23). Para os gregos antigos, os alimentos, e suas técnicas de
transformação, estavam intimamente ligados aos deuses, responsáveis por todo
conhecimento e, portanto, pela manutenção da vida na terra. A relação do homem com
os ritos sacrificiais estava presente em todas as esferas do cotidiano, uma vez que o
“sacrifício encontra-se no cerne das relações complexas que os humanos estabelecem
entre si e tornam a atualizar com os deuses” (ALBERT, 2009:24). Assim, o sacrifício,
acima de tudo, patenteia a distância em relação ao animal e, portanto, torna-se
sinônimo de civilização, como afirma Albert, pois,
O sacrifício antigo institui a comensalidade grega e faz as vezes de
memória por lembrar aos homens sua ruptura com os deuses. […] No
início, com efeito, homens e deuses frequentavam-se e partilhavam as
alegrias de um banquete permanente. Foi o roubo do fogo cometido por
Prometeu que induziu os deuses a infligir uma pena “alimentar” aos
homens: a partir de então, eles deveriam alimentar-se e alimentar os
deuses. O sacrifício deve oferecer as melhores partes aos deuses,
enquanto os homens se contentarão com os pedações mais modestos
(ALBERT, 2009:24).
Prometeu, herói da humanidade, assalta os deuses e cumpre o papel de fornecer
meios técnicos de cozimento e alimento sagrado aos homens, “fundamento de toda a
civilização” (CARNEIRO, 2003:13). Assim, o convito grego representava o centro da
instituição social, este era a manutenção da relação homem – divino. Os banquetes
públicos reuniam os cidadãos em torno de interesses comuns e favoreciam a gestão da
democracia. “O banquete grego encontra-se na origem de uma forma específica, mas
determinante, da sociabilidade política desenvolvida pelas cidades desde a época
heroica até a época helenística e romana” (ALBERT, 2009:21). Era à mesa que as
práticas cívicas, políticas e religiosas da sociedade grega se mantinham. O banquete
“determina o lugar dos homens face ao divino”, pois, nas cidades gregas, política e
religião “são confundidas em todos os domínios da sociedade e da prática do poder”
(ALBERT, 2009:23). Será a partir desta transversalidade do banquete que analisaremos
a obra de Petrônio.
Trimalchião, que hoje poderia ser tachado de “novo-rico”, oferece exorbitantes
banquetes visando consolidar alguma distinção social através de uma caricatural
ostentação de seu patrimônio, e ele o faz principalmente durante a ceia, momento de
espetáculo, cujo público é composto em sua grande maioria de libertos como ele. A
cena se desenrola entre joias espalhafatosas, vinhos raros e comidas exóticas, bens
decorativos preciosos e listas de propriedades anunciadas por escravos. Ao entrar na
residência, Encolpio se surpreende com o que vê nas paredes:
Havia ali pintado […] o próprio Trimalchião, que na figura de um jovem
de longos cabelos, com o caduceu na mão, entrava em Roma, guiado
por Minerva. […] E no pórtico, ao fundo, Mercúrio, levantando
Trimalchião pelo queixo, transportava-o a um trono celeste. […] - Pedi
explicações do lugar a cerca das pinturas que se viam no átrio: -
Representam, respondeu-me, a Ilíada e a Odisseia [...] (PETRÔNIO,
1980:39).
Para justificar tamanha fortuna, e, por temor da ira divina em não demonstrar
devidamente sua gratidão a seus benfeitores, Trimalchião mitifica a si mesmo, se
autorrepresentando iconograficamente nas paredes de sua villa, onde é retratado por
meio de afrescos e mosaicos, desempenhando o papel de escolhido dos deuses, parte
que cabe ao herói. “Mas não vá se pensar por isso que me seja inteiramente estranha a
arte oratória; mesmo a literatura sempre estudei de boa vontade. A prova disso é que
possuo três bibliotecas: uma de obras gregas e duas latinas” (PETRÔNIO, 1980:55).
Como explícita forma de compensação por sua falta de cultura, Trimalchião enaltecerá
o fato de possuir, no sentido material, muita cultura, e não se exime em criar tolos
aforismos ou em enaltecer o caráter erudito de seu convito se fazendo valer de suas
posses.
- Amigos, bebei sem cerimônia; pois, se não, como poderiam nadar os
peixes que comemos? E acreditai que toda a minha ceia consiste nos
pratos que vistes no interior daquela vasilha? Será isso conhecer
Ulisses? Certamente: a filologia é necessária em todos os lugares,
mesmo na mesa (PETRÔNIO, 1980:46, grifo do tradutor).
Nesta citação podemos vislumbrar o caráter grotesco que Petrônio confere ao
anfitrião, por meio de sua deselegante tentativa em se fazer espirituoso ao incitar que
seus convidados bebam vinho, afinal, “como poderiam nadar (em nossos estômagos)
os peixes que comemos?”. Trimalchião prossegue, e, em tom moralizante, indaga seu
público de incultos endinheirados se a espetaculosa ceia que ele promovia era
constituída apenas de comida, quando na verdade, seu triclínio oferecia, acima de tudo,
cultura. Em forma de arte parietal, música, encenação homérica, danças exóticas,
atrações com os cozinheiros, declamação de poesia, inúmeros pratos inusitados
acompanhados de charadas, e assim por diante. A autoafirmação em forma de
pergunta será seguida por uma citação erudita de Virgílio (Eneida II), será isso
conhecer Ulisses?, seguida pelo comentário de que mesmo à mesa os clássico caem
bem. Vejamos, então, o regimento que conduz a comensalidade no Banquete de
Trimalchião.
3. Hospitalidade e pão
No regimento do banquete privado greco-romano são explicitadas duas
principais fruições: a alimentar, denominada ceia, e a filosófica, denominada simpósio
(comissatio, para os romanos). A fim de identificar e interpretar como a presença dos
mitos e dos ritos se configuram na esfera da alimentação e da comensalidade no
Banquete de Trimalchião, analisaremos algumas passagens do Canto VII, da Odisseia.
Para um melhor entendimento de como se desenrolava o protocolo desta
comensalidade, é relevante tomarmos conhecimento do pacto ético da hospitalidade
mediterrânica. A xenia (também xènion) representava um sistema de valores que
agregava os preceitos da hospitalidade como forma de mediação com os deuses. O
vocábulo do grego arcaico, xenia é a antiga denominação de presentes dados aos
hóspedes, ou simplesmente de alimentos nas acomodações dos hóspedes, oferecidos
pelos anfitriões. Esta palavra é citada em ambos os sentidos desde Homero, e pode ser
entendida com um sentido geral de acolhimento de um estrangeiro ou da própria
hospitalidade10. Interessante observar que xenos significa estranho, estrangeiro,
forasteiro, e, posteriormente, hóspede11.
A partir das reflexões do filósofo Jacques Derrida12 sobre cosmopolitismo no que
tange a ética política da hospitalidade e o papel do outro (o estrangeiro), Fernanda
Bernardo em seu ensaio “A ética da hospitalidade ou o porvir do cosmopolitismo por
vir13”, analisa;
Entre os gregos, o pacto de hospitalidade (xenia) celebra, diz Derrida, o «direito
acordado ao estrangeiro enquanto tal, ao estrangeiro que continua estrangeiro, e
aos seus, à sua família, aos seus descendentes». [...] Em sede filosófica grega, o
10 Xenia. Enciclopedia Treccani (s/d). Tradução nossa.
11 Xenia. Behind the name (s/d). Tradução nossa.
12 De L’hospitalité. Revista Ecarts d'Identité (1998).
13 A ética da hospitalidade ou o porvir do cosmopolitismo por vir. Revista filosófica de Coimbra (2002).
estrangeiro (xenos) é acolhido como um sujeito de direito - é como tal e
enquanto tal que é acolhido. (BERNARDO, 2002:434, grifos da autora).
Assim, este pacto na Antiguidade se configurava dentro de alguns preceitos de
forma tal que, aquele que chegasse, independente das condições nas quais se
apresentasse, deveria ser acolhido e bem tratado, enquanto sujeito de direito.
O Canto VII da Odisseia, canoniza o conceito distintivo de homem e, portanto, de
hospitalidade como valor. “Este canto narra a chegada de Ulisses à ilha Esquéria, lugar
que representa a inserção do herói num dos espaços dos homens comedores de pão”
(GONÇALVEZ, 10:2010, grifos da autora). Homero diferencia o homem grego (sinônimo
de homem civilizado) do selvagem. Para nomear este sujeito, utilizará o termo “comedor
de pão” (sitofagoi). Segundo Massimo Montanari, em “Il cibo come cultura” (2004), o
domínio do homem sobre as técnicas de desenvolvimento agrícola, momento decisivo
de ruptura e inovação, organizou por completo a vida das sociedades consideradas
selvagens, que viviam da caça e da colheita. Como consequência surgem as cidades,
centros urbanos onde se estabelecem relações econômicas, formas de poder político, o
imaginário cultural e rituais religiosos, separando o homem, agora dono de si, da
Natureza. Ele agora a domina. Desta nova relação consolida-se o conceito da cidade
como o local por excelência da evolução civil, daí a coincidência semântica no latim
entre civitas e civilitas, città (cidade) e civiltà (civilização). O homem civil, civilizado, é
homem da cidade, que vive longe dos animais.
O pão, alimento criado artificialmente por este novo homem de saberes
tecnológicos e acumulador de bens, torna-se o ícone máximo desta transição do estado
chamado bestial para o civilizado. Como nos poemas Homéricos da Ilíada e da
Odisseia, o ato de comer pão distingue o homem das bestas. Da intersecção entre a
tradição, enquanto sabedoria, técnicas, valores orais transmitidos, e a inovação,
enquanto domínio de técnicas capaz de modificar a posição do homem em seu
ambiente gerando novas realidades, chega-se à cultura; o ponto onde tradição e
inovação se encontram. Mitos e lendas narrarão esta passagem. Voltemos à eles.
De forma bastante sucinta, após inúmeras desaventuras e encontros com
Ciclopes e Lestrigões, ambos “gigantes humanoides comedores de homens” (GANDRA,
2010:30), Ulisses encontrava-se à deriva ao mar em uma jangada com poucos
suprimentos, e então, exausto, finalmente chega à ilha de Esquéria, casa dos Feácios,
povo que Homero designará por sitofagòi. Encontrado num bosque de oliveiras próximo
ao mar, Ulisses é acudido com roupas, comida e bebida por Nausicaa, filha do Rei
Alcinoo, a qual havia sonhado com Minerva que lhe dizia para ir lavar roupas na praia,
propiciando, assim, a descoberta do herói náufrago. Ulisses, sob as vestes de um
estrangeiro anônimo, é guiado ao palácio. No caminho encontra Minerva, disfarçada
como uma menina pequena, e ela o orienta sobre como ter acesso ao rei. O herói,
oculto por uma nuvem criada pela deusa, atravessa os maciços sistemas de proteção
do palácio e adentra na câmara do rei Alcínoo. Ainda que surpreendidos ao verem um
forasteiro, o rei e sua corte oferecem hospitalidade e o convidam a libações; dão de comer e
beber a Ulisses, como narra o trecho a seguir:
Todos, tranquilos, ficaram em silêncio, até que, falou o velho herói,
Equeneu, que era o mais velho dos homens Feácios e suplantava a
todos nos discursos – sabedor de muitas e antigas coisas. Ele, que
falava nas assembleias, com bons sentimentos, disse-lhe: “Alcínoo, não
é belo, nem convém a ti, que um estrangeiro sente-se no chão, sobre a
lareira, nas cinzas. Eles aguardam ansiosos tua ordem. Vamos! Faze o
estrangeiro levantar-se e sentar-se numa poltrona de cravos de prata;
ordena aos arautos que misturem o vinho, para libarmos a Zeus,
fulminador, que acompanha os respeitosos pedintes; Que a despenseira
sirva a refeição ao estrangeiro, com o que há no palácio”. Mas, depois
que a força sagrada de Alcínoo ouviu isso, tendo tomado o prudente e
artificioso Ulisses pela mão, fê-lo levantar-se da lareira e sentar-se num
trono brilhante; Após ter mandado levantar-se seu filho viril,
Laodamonte, que estava sentado a seu lado – amava-o sobretudo. Uma
serva carregou água num belo jarro de ouro e despejou-a num vaso de
prata, vertendo-a para que lavasse as mãos. Junto dele, estende mesa
polida. A despenseira zelosa serve a mesa – trazendo pão, aproximou-
se agradável e pôs, na mesa, muitas iguarias. O divino e sofredor
Ulisses bebe e come (HOMERO, VII, v. 150 – 180).
Os preceitos da ética da hospitalidade presentes: acolher sem questionar; oferecer água
para lavar mãos e pés, e oferecer, em primeiro lugar, pão. Os Feácios, comedores de pão e
exímios navegadores, corresponderam à todos os princípios de homens civilizados, tal qual
Ulisses.
Segundo Bernardo, quanto à este valor helênico filosófico da hospitalidade explanado por
Derrida (1998), o forasteiro é visto como um outro, de fora dos muros da civitas, da cidade, o
qual se configura como este que
recém - chegado ou estrangeiro absoluto (tout autre) [...] deve ser bem ou
incondicionalmente acolhido, isto é, deve ser acolhido independentemente da
sua pertença e das suas qualidades: acolhido de modo imediato, urgente, sem
esperar. Sem saber e sem álibis. Sem condições, pois (BERNARDO, 2002:437,
grifos da autora).
Este entedimento de hospitalidade teria origens remotas, partindo de um costume
mediterrânico dos gregos antigos, nas áreas geográficas da Magna Grécia. Uma série de regras
preestabelecidas entre hóspede e hospedante de forma que o dono da casa acolha
incondicionalmente o estrangeiro para que ele possa recuperar suas forças, pois, sob as vestes de
um mendigo ou forasteiro poderia esconder-se um deus ou uma deusa, portanto, era sábio
receber bem e ser generoso de modo tal que não desencadeasse a ira divina, como
lemos “misturem o vinho, para libarmos a Zeus, fulminador, que acompanha os
respeitosos pedintes”, ou seja, brindemos à Zeus que pode estar disfarçado neste
pedinte e se o ofendermos nos fulminará!
A manutenção com o divino, como visto em Albert, se manifesta a todo
momento como forma de reverência. Vejamos então o desfecho desta cena:
Amanhã, quando a maior parte dos conselheiros for convocada receberemos o estrangeiro no palácio e aos deuses ofereceremos sacrifícios favoráveis. Depois, pensaremos em seu retorno, de modo que o estrangeiro, sob nossa proteção, sem tristeza ou aflição, chegue à sua terra natal, feliz e rapidamente, ainda que esteja muito longe. Nesse período, que ele não sofra mal algum ou prova, antes que pise em sua terra. Depois, então, ele experimentará tudo o que o destino e as pesadas Fiandeiras teceram desde o princípio, quando a mãe o pariu. Se é algum dos imortais que vem do alto do céu, é porque os deuses tramam alguma outra coisa. Os deuses sempre costumam aparecer para nós, quando fazemos hecatombes magníficas: celebram conosco, sentados ao nosso lado (HOMERO, VII, v. 185 - 205).
Neste trecho temos de forma bastante evidente como se configura o princípio da
xenia (receberemos o estrangeiro […] sob nossa proteção chegue ao seu destino […]
se é algum dos imortais que vem do alto céu), a devida reverência a ser paga (aos
deuses ofereceremos sacrifícios favoráveis […] os deuses sempre costumam aparecer
quando fazemos hecatombes magnificas: celebram conosco, sentados ao nosso lado) e
a forma com a qual esta manutenção se caracteriza, sempre através de sacrifícios e
oferendas alimentares. Interessante notar o temor não ao estrangeiro em si, mas sim
aos deuses, e em perpetuar sua ritualística mediadora. Quando Alcinoo afirma que se
“é alguns dos imortais que vem dos céu, é porque os deuses tramam alguma coisa”, ele
nos profetiza que devemos fazer nossos melhores ritos para um desfecho favorável à
todos, que o deuses celebrarão conosco (e não nos fulminarão). Uma hecatombe, o
sacrifício de cem bois, era algo de extrema magnificência, uma vez que o boi era a
carne mais nobre, por ser o animal fundamental para a agricultura, puxando o arado,
dentre outras funções vitais. Assim, num âmbito culinário, a comida do herói homérico
por excelência é a carne (e o vinho “mais doce”), melhor se a carne de boi, mais alto
símbolo sacrificial de distinção e prestígio.
4. O Banquete de Trimalchião
Retomando a obra de Petrônio, após uma leitura crítica deste trecho do Canto
VII, nos é possível compreender melhor duas passagens escolhidas para esta
investigação sobre o Banquete de Trimalchião nais quais figuram o princípio da xenia e
a perpetuação do rito sacrificial da carne, ainda que ambos estejam tremendamente
ridicularizados pela sátira de Petrônio.
Como percebido, toda a cena se configura numa miscelânea de estímulos e
provocações sensoriais, referências eruditas e de comidas mirabolantes, contexto no
qual o anfitrião exalta constantemente sua gratidão e reverência aos deuses,
perpetuando o princípio da hospitalidade. Encolpio narra, não sem ironia, o momento no
qual se estava prestes a adentrar na sala do banquete:
Maravilhados, íamos entrar no triclínio quando um menino, empregado
exclusivamente neste mister, gritou: - Com o pé direito! Receamos um
instante ali penetrar desrespeitando o cerimonial. […] tomamos enfim
nosso lugar à mesa e vieram logo pequenos escravos de Alexandria
com água gelada para as mãos, e em seguida, outros nos lavaram os
pés, limpando-nos as unhas com extrema delicadeza (PETRÔNIO,
1982:40).
Em tom de deboche, devido à forma exagerada com a qual o anfitrião executa os
ritos preconizados nos mitos homéricos, ao lermos a passagem um menino empregado
exclusivamente neste mister […] percebemos a superfluidade ostentatória do ato, e,
bem como na outra circunstância pelo excesso de zelo: limpando-nos as unhas com
extrema delicadeza, quando na verdade bastaria lavar as mãos e os pés para cumprir o
rito. Por trás destes deselegantes exageros, reconhecemos a perpetuação da ética da
hospitalidade de ambas as partes, pois, Encolpio, por sua vez, se preocupa em não
desrespeitar o cerimonial.
A questão do cerimonial dita cada ato da pantagruélica ceia, assim, o caricato
anfitrião transforma um dos momentos de servir a carne em um assustador espetáculo,
pois, como vimos, toda carne previa um rito sacrificial, aqui no caso, explicitamente
circense:
Mal havia acabado de falar Trimalchião, levantou-se um grande clamor
dos homeristas e, no meio da criadagem atarefada apareceu, sobre um
prato que pesava bem umas duzentas libras, um vitelo cozido, com um
elmo na cabeça. Atrás vinha Ajax14 que, com a espada desembainhada
e ares furiosos, começou a despedaçá-lo. E depois de muito gesticular,
com a ponta da espada recolheu os pedaços, distribuindo-os pelos
convidados maravilhados (PETRÔNIO, 1984:65).
Toda cena remete ao riso e ao horror. Segundo Albert (2009), desde a Grécia
arcaica, o rito sacrificial da carne era executado por um archimagirus, archimágiro.
14 Ajax, o Grande, era um dos mais fortes de habilidosos guerreiros gregos.
Archimágiro: do grego archi, princípio, e mageiros, cozinheiro, “aquele que preside a
cozinha15” (MARCHI, 1828:380). Termo que hoje poderia ser traduzido de forma
simplista por chefe de cozinha, mas que então desempenhava um papel cívico crucial,
de sacerdote e cozinheiro contemporaneamente. Dois exemplos que podem ilustrar
este ofício na atualidade podem ser verificados na comida halal, através do papel
desempenhado por um muçulmano treinado para o abate, seguindo as leis do Corão,
bem como na kosher, com a figura do shochet, um judeu treinado que obedece as leis
da Torá. Em ambos os casos há rígidos preceitos religiosos e higiênico, verdadeiras
regras éticas e morais a serem seguidas pelo responsável do abate.
Já na cena que nos é apresentada por Petrônio, o ato é um absoluto desrespeito
à sacralidade, um vulgar destroçamento de um novilho de elmo (possível representação
de um inofensivo guerreiro inimigo), sendo executado por um patético falso herói. Outra
passagem que denota a total deselegância e falta de gosto de Trimalchião se dá ao
servir uma galinha, considerada de pouca classe, bem como através de sua
prepotência em ditar ordens aos convidados, os quais se parecem mais com reféns
submetidos a seus caprichos;
Foram servidas, depois desta manifestação de boa vontade, iguarias
cuja lembrança, podeis acreditar-me, ainda me dá náuseas. A cada um
de nós serviram, como se fosse tordo, uma galinha gorda, e ovos de
patos recheados, insistindo muito Trimalchião para que engolíssemos
tudo, afirmando que as galinhas estavam desossadas (PETRÔNIO,
1980:69).
De fato, tão terrivelmente nauseante e oprimente era o banquete que eis como
15 Marco Aurelio Marchi. Dizionario tecnico-etimologico-filologico. Milão (1828). Tradução nossa.
se encerra para Encolpio o repasto oferecido pelo tirano anfitrião: com uma fuga.
A cousa chegava à extrema repugnância, quando Trimalchião,
embrutecido pela sua ignóbil embriaguez, quis um novo concerto,
fazendo entrar no triclínio tocadores de trompa. Sustentado por um
grande número de travesseiros, ele estendeu-se no leito, dizendo: -
Suponde que eu esteja morto. Tocai alguma cousa de belo. Os músicos
tocaram uma ária fúnebre, Mas um deles, servo do empresário de
enterros, - que do grupo parecia ser o mais decente – soprou com tal
força que acordou toda a vizinhança. Os guardas encarregados da
vigilância do quarteirão, persuadidos de que a casa de Trimalchião
ardia, arrombaram bruscamente a porta e, com seus baldes e
machadinhas, fizeram grande alarido, no exercício de suas funções.
Aproveitando esta excelente oportunidade, ali deixamos Agamenon, e
fugimos precipitadamente, como de um verdadeiro incêndio
(PETRÔNIO, 1980:81).
Considerações finais
Abandonamos aqui também nós a companhia do deselegante glutão, na
expectativa de termos compartilhado uma possível análise interpretativa sobre a
reverência aos deuses, aos mitos e à arte culinária no capítulo O Banquete de
Trimalchião. Tratou-se de um exercício investigativo a partir de abordagens críticas
sobre dois relevantes documentos literários, a Odisseia e Satiricon, ambos tendo por fio
condutor a atuação do simbólico, seja no convito, seja no alimento oferecido. Nas duas
narrativas a exaltação da ritualística alimentar enquanto fator de distinção entre o
civilizado e o selvagem exerce uma fundamental influência. Enquanto a primeira
patenteia esta distinção, a segunda satiriza. Desta forma, no que tange a irreverente
obra literária de Petrônio, na qual Encolpio vive e transita pela vulgaridade e
mediocridade, mantendo um aristocrático destaque, nos é possível constatar a
atualidade do texto de realismo cômico, o qual se prestaria da satirizar os arrivistas dos
dias de hoje nos mesmos moldes, como enfatizou Queneau ao frisar sua modernidade.
Fica-nos patente que a interdisciplinaridade emerge como condição para a
compreensão do papel transversal do alimento e suas significações nas práticas da
comensalidade, vital à manutenção social da existência humana, enquanto
normatizador da esfera cívica, a qual perpassa limitações geográficas, temporais e
disciplinares pois, um alimento pode simbolizar a ascensão social de alguém, e de um
determinado grupo, bem como seu declínio. Pode evocar uma benção a quem recebe,
ou transmitir uma maldição. Conduzir a um estado mais elevado de autoconhecimento
ou relegar à barbárie, sem nunca perder sua característica vital de nutriente.
REFERÊNCIAS
ALBERT, Jean-Marc. Às mesas do poder. Dos banquetes gregos ao Eliseu. São Paulo:
Senac, 2009.
BEHIND THE NAME. Xenia. Disponível em: http://www.behindthename.com/name/xenia.
Acesso em: 12 jun 2016.
BERNARDO, Fernanda. A ética da hospitalidade, segundo J Derrida, ou o porvir do
cosmopolitismo por vir - a propósito das cidades-refúgio, re-inventar a cidadania (II). Revista
filosófica de Coimbra, n 2, 2002. Disponível em:
http://www.uc.pt/fluc/dfci/publicacoes/a_etica_da_hospitalidade_II. Acesso em: 05 jul. 2016.
CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade. Uma história da alimentação. Rio de Janeiro:
Campus, 2003.
DERRIDA, Jacques. De L’Hospitalité – Fragments. Ecarts d'identité N°8/854. Mars/Juin, 1998.
Disponível em: http://www.revues-plurielles.org/_uploads/pdf/6_84_2.pdf. Acesso em: 23 ago.
2016.
FONSECA, Jassyara. Carnavalização em “O Banquete de Trimalquião” e The Great
Gatsby. Revista Rónai - V1.N1 pp. 73 – 86. UFJF: Juiz de Fora, 2013. Disponível em:
http://www.ufjf.br/revistaronai/files/2013/08/PDF5.pdf. Acesso em: 29 jun. 2016.
GANDRA, Daniel Nogueira. Odisséia: Jogos de duplos. NEA-UERJ: Rio de Janeiro, 2010.
GONÇALVES, Messionia Rodrigues. Odisseia, 7: tradução e comentários. Dissertação de
Mestrado apresentada ao Programa de Letras Clássicas (Culturas da Antiguidade Clássica),
UFRJ, 2010.
MARCHI, Marco Aurelio. Dizionario tecnico-etimologico-filologico. Tomo II. Giacomo Pirola:
Milão (1828).
MONTANARI, Massimo. Il cibo come cultura. Bari: Laterza, 2004.
RUAS, Miguel. Satiricon. São Paulo: Escala, 1982.
TÁCITO. Annali, XVI, p. 18-19. La fine di Petronio, Arbiter Elegantiae. Diponível em:
https://basnico.files.wordpress.com/2014/06/08_tacito-ritratto-petronio.pdf. Acesso em: 13 jul
2016.
TACCUINI STORICI. Dieta degli antichi greci. Disponível em:
ttp://www.taccuinistorici.it/ita/news/antica/dieta-dietetica/Pesce-e-carne-per-gli-antichi-
Greci.html. Acesso em: 03 mai 2016.
TRECCANI. Banchetto. Disponível em:
http://www.treccani.it/enciclopedia/banchetto_(Enciclopedia_Italiana)/. Acesso em: 02 jun. 2014.
TRECCANI. Satira. Disponível em: http://www.treccani.it/enciclopedia/satyricon/. Acesso em: 05
jun 2016.
TRECCANI. Xenia. Disponível em: http://www.treccani.it/enciclopedia/xenia_%28Enciclopedia-
dell%27-Arte-Antica%29/. Acesso em: 05 jul 2016.
top related