a partilha do saber histórico
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Liber Intellectus, v. 1, nº 1, junho de 2007
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O CAMPO DA HISTÓRIA: A PARTILHA DO SABER HISTÓRICO
NA HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA
José D’Assunção Barros1
RESUMO
O saber histórico, enquanto campo disciplinar e área de conhecimento
que possui suas práticas específicas - contemplou nos dois últimos
séculos uma significativa expansão e sofisticação dentro do quadro de
saberes acadêmicos da civilização ocidental. Esta expansão, que
acompanha um processo paralelo de especialização crescente do
moderno conhecimento científico, tem se expressado na historiografia
ocidental por uma multiplicação de novas modalidades
historiográficas. Busca-se, neste texto, propor uma chave para a
compreensão dos diversos campos históricos através de seus
relacionamentos com três critérios distintos: as dimensões
examinadas, as abordagens, e os domínios temáticos. Destes três
critérios surgiriam as inúmeras modalidades internas em que hoje se
divide atualmente o saber historiográfico.
Palavras-chave: Campos da História, metodologia da historia; escrita da história.
ABSTRACT
The historical knowledge, as a disciplinar field and an area of
knowledge that issues specifically practices – has contemplated in the
two last centuries a significant expansion and sophistication inside the
ambit of academic knowledge of the occidental civilization. This
expansion, that’s follows a correspondent process of crescent
1 Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense e professor de História nos Cursos de Graduação e Mestrado da Universidade Severino Sombra (USS) de Vassouras.
3
specialization of the modern scientific knowledge, have been expressed in
the historiography by a multiplication of new historical modalities.
The intent of this text is to search a key for the comprehension about
the various historical fields based in their relations with three different
criterions: the dimensions examined, the approaches and the thematic
domains. From these three criteria emerges the several internal
modalities in which ones it is divided nowadays the historical
knowledge field.
Key Words: Fields of History, historical methodology; historical writing
A História, nos dias de hoje, divide-se em inúmeras modalidades. Ouve-se falar
em História Cultural, em História das Mentalidades, em História do Imaginário, em
Micro-História, em História Serial, em História Quantitativa ... o que define cada um
destes e de outros campos pode corresponder desde a um campo específico de
fenômenos e processos que são examinados em primeiro plano pelo historiador, até um
tipo de fonte a ser trabalhada pelo historiador, uma abordagem que conduzirá
necessariamente o trabalho historiográfico, um eixo temático fundamental. A
multiplicação de critérios a partir dos quais podem ser propostas as subdivisões da
História – e nem mencionaremos aqui os tradicionais critérios de temporalidade que
criam divisões como a História Antiga, a História Medieval ou a História Moderna –
mergulha o ofício do historiador em um complexo oceano de especialidades ou
especializações possíveis. Refletir sobre esta miríade de modalidades que fragmentam o
campo de ação do historiador, ou que, ao contrário, o enriquecem, tem sido tarefa de
historiadores que, nas últimas décadas, tem se imposto a tarefa de refletir sobre o seu
próprio ofício, sobre os limites e liberdades da disciplina em que seus trabalhos se
inscrevem (BARROS, 2004).
Nossa presente reflexão sobre os campos intradisciplinares da História partirá de
algumas questões fundamentais. Em primeiro lugar, trabalharemos com a idéia de que,
fundamentalmente, existem três grandes grupos de critérios que presidem a divisão da
4
História em modalidades mais específicas. Muito da confusão entre aqueles que se
iniciam na formação historiográfica a respeito do que é, afinal de contas, uma sub-
especialidade ou o que é outra, ou sobre como enquadrar uma dada obra neste complexo
caleidoscópio de sub-especialidades que coincide com o campo disciplinar da História,
reside precisamente no fato de que não raro algumas coletâneas de balanceamentos
historiográficos misturam inadvertidamente critérios de classificação sem alertar
devidamente o leitor, que acaba perdendo a oportunidade de desenvolver uma maior
clareza sobre a rede de modalidades que organiza o pensamento historiográfico na
atualidade2.
A chave para compreender estes vários campos da História, conforme a
argumentação que desenvolveremos a seguir, está em distinguir muito claramente as
divisões que se referem a dimensões (enfoques), as divisões que se referem a
abordagens (ou modos de fazer a História), e as divisões intermináveis que se referem
aos domínios (áreas de concentração em torno de certas temáticas e objetos possíveis).
Para registrarmos algumas exemplificações, podemos dizer que o primeiro grupo
de critérios que gera divisões internas na disciplina histórica e que se refere ao que
chamamos de dimensões corresponde àquilo que o historiador traz para primeiro plano
no seu exame de uma determinada sociedade: a Política, a Cultura, a Economia, a
Demografia, e assim por diante. Desta maneira, teríamos na História Econômica, na
História Política, na História Cultural ou na História das Mentalidades campos do saber
histórico relativos às dimensões ou aos enfoques do historiador. Um historiador cultural,
por exemplo, estuda os fatos da cultura; um historiador político estuda o poder nas suas
múltiplas formas; um historiador demográfico orienta o seu trabalho em torno da noção
que lhe é central de “população”.
Um segundo grupo de critérios para estabelecer divisões no saber histórico é o
que chamamos de abordagens, referindo-se aos métodos e modos de fazer a História,
aos tipos de fontes e também às formas de tratamento de fontes com os quais lida o
historiador. São divisões da História relativas a abordagens a História Oral, a História
Serial, a Micro-História e tantas outras. A História Oral, por exemplo, lida com fontes
2 A outra tese que proporemos é a de que as modalidades da história não são compartimentos onde se situariam os historiadores, ou mesmo seus trabalhos específicos, e sim campos de força que se interconectam em função de uma pesquisa ou reflexão historiográfica que está sendo produzida por determinado historiador em um momento específico.
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orais e depende de técnicas como a das entrevistas; a História Serial trabalha com
fontes seriadas – documentação que apresente um determinado tipo de homogeneidade
e que possa ser analisada sistematicamente pelo historiador. A Micro-História refere-se
a abordagens que reduzem a escala de observação do historiador, procurando captar em
uma sociedade aquilo que habitualmente escapa aos historiadores que trabalham com
um ponto de vista mais panorâmico, mais generalista ou mais distanciado. Também a
História Regional poderia ser classificada como modalidade historiográfica ligada a
uma abordagem, no sentido de que elege um campo de observação específico para a
construção da sua reflexão ao construir ou encontrar historiograficamente uma “região”.
Examinando um espaço de atuação onde os homens desenvolvem suas relações sociais,
políticas e culturais, a História Regional viabiliza através de sua abordagem um tipo de
saber historiográfico que permite examinar uma ou mais destas dimensões nesta região
que pode ser analisada tanto no que concerne aos seus desenvolvimentos internos, como
no que se refere à sua inserção em universos mais amplos.
Para além das modalidades que se relacionam a dimensões e abordagens,
podemos pensar divisões da História que chamaremos de domínios, e que se referem a
campos temáticos privilegiados pelos historiadores. Poderemos neste momento refletir
sobre os vários domínios da História que têm surgido e desaparecido no horizonte de
saber desta complexa disciplina que é a História. Estamos falando de domínios quando
nos referimos a uma História da Mulher, a uma História do Direito, a uma História de
Sexualidade, a uma História Rural, ou a uma História da Vida Privada. Tentaremos
esclarecer a seguir este grupo de critérios.
Os domínios da História são na verdade de número indefinido. Alguns domínios
podem se referir aos ‘agentes históricos’ que eventualmente são examinados (a mulher,
o marginal, o jovem, o trabalhador, as massas anônimas), outros aos ‘ambientes sociais’
(rural, urbano, vida privada), outros aos ‘âmbitos de estudo’ (arte, direito, religiosidade,
sexualidade), e a outras tantas possibilidades. Os exemplos sugeridos são apenas
indicativos de uma quantidade de campos que não teria fim, e qualquer um poderá
começar a pensar por conta própria as inúmeras possibilidades.
Tal como dissemos, os critérios de classificação que estabelecem domínios da
História referem-se primordialmente às temáticas (ou campos temáticos) escolhidas
6
pelos historiadores. São já áreas de estudo mais específicas, dentro das quais se
inscreverá o objeto de investigação e a problemática constituídos pelo historiador.
A maioria dos domínios históricos presta-se a historiadores que trabalham com
diferentes dimensões históricas, e certamente abre-se às várias abordagens. Mas existem
domínios que têm mais afinidade com uma determinada dimensão, dada a natureza dos
temas por eles abarcados. Assim, a História da Arte ou a História da Literatura podem
ser eventualmente consideradas sub-especialidades da História Cultural (embora se deva
chamar atenção para uma História Social da Arte, ou uma História Social da Literatura,
que não deixam de ser possibilidades dentro da História Social).
De modo análogo, um domínio como o da História das Imagens (entendida
como história das imagens visuais obtidas a partir de fontes iconográficas, fotográficas,
etc) mostra-se não raro como um desdobramento da História do Imaginário. Mas, bem
entendido, uma série de imagens visuais tomadas como fontes históricas sempre poderá
dar a perceber qualquer das dimensões que discutimos atrás, como a História
Econômica, a História Política, a Geo-História ou a História da Cultura Material. Pense-
se em uma iluminura de Livro de Oras, [Horas] da qual o historiador lança mão para
perceber aspectos da economia rural no ocidente medieval, as suas representações
políticas, as relações do homem medieval com o seu meio natural ou traços de sua
cultura material; ou pense-se em uma pintura impressionista utilizada para captar
aspectos da História Social na Belle Époque; ou ainda nas cerâmicas gregas utilizadas
para levantar aspectos da História Política da Atenas da Antigüidade Clássica. Mas de
uma maneira ou de outra, em todos estes casos sempre estará ocorrendo um diálogo
evidente da História do Imaginário com uma destas outras dimensões.
Também a História das Representações, por motivos análogos, sempre terá
intimidade com o campo definido como História do Imaginário, embora também se abra
a uma História das Mentalidades e certamente à História Cultural. Já a História do
Cotidiano, ou a História da Vida Privada, abrem-se a inúmeros campos de enfoques
para além da História das Mentalidades, como a História da Cultura Material, a História
Social a História Econômica ou a História Política (neste último caso, focando a questão
dos micropoderes). Raciocínio análogo pode ser encaminhado para outros domínios
igualmente abertos, como a História das Religiões ou a História da Sexualidade.
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Conforme vemos, os domínios tendem a ser englobados por uma dimensão (são
poucos os casos) ou então partilhados preferencialmente por duas ou mais dimensões.
Mas é possível ainda que algum campo que hoje esteja sendo tratado como ‘domínio’,
mas que possua uma abrangência em potencial, possa vir a transformar-se futuramente
em uma ‘dimensão’. A História da Sexualidade tem sido pouco estudada em relação à
importância da sexualidade para a vida humana na concretude diária, e é talvez isto o
que lhe dá um status de domínio. Mas seguramente esta poderia ser vista como uma
dimensão historiográfica tão basilar e fundamental como a Economia, a Política ou as
Mentalidades. O que ocorre é que estas não apenas são dimensões significativas que
definem a vida humana, elas constituem na verdade ‘macro-campos’, ou tornaram-se
‘macro-campos’ devido à atenção que lhes prestaram os historiadores e outros
pensadores.
Vale lembrar ainda que, quando falamos em uma dimensão historiográfica,
teremos sempre em conta aquilo que, de modo irredutível, é intrínseco da vida humana,
inseparável e não-casual em nenhuma instância. Ao nascer, um ser humano já se
encontra automaticamente inscrito em uma determinada relação com a sociedade.
Poderá modificar suas relações sociais com o passar do tempo, menos ou mais
rapidamente. Mas para o seu próprio existir em uma coletividade sempre deverá
desenvolver relações sociais. Do mesmo modo, ao se relacionar com outros homens,
esse ser humano irá afetar e ser afetado por poderes de todos os tipos. A Política será
sempre inseparável do seu existir. Também sempre estará produzindo Cultura em suas
relações com os homens e com a natureza – ele não pode apagar isso de sua existência,
ao iniciar um simples movimento ou a produzir um simples gesto estará
automaticamente produzindo cultura.
Contudo, em que pese que boa parte dos seres humanos possua alguma forma de
Religião – a verdade é que, no limite, pode-se imaginar perfeitamente um homem, ou
até uma humanidade, sem religião. A religião é uma contingência da vida humana,
embora uma contingência perene, duradoura, e que pode mesmo se eternizar – mas não
é propriamente intrínseca à natureza humana, e é esta uma das razões pelas quais
podemos classificar a História da Religião como um domínio, e não como uma
dimensão. De mesmo modo, em que pese que metade dos seres humanos seja do sexo
feminino, e que uma boa parte da humanidade seja constituída de jovens, não será
8
adequado classificar a História das Mulheres ou a História dos Jovens senão como
domínios, e um raciocínio similar poderia ser formulado para a História Rural ou para a
História Urbana, apenas para mencionar alguns dos domínios mais abrangentes, já que
para os domínios mais específicos o seu nível de restrição e contingência torna-se ainda
mais evidente (por exemplo, a História da Loucura, a História do Direito, a História da
Arte, a História dos Marginais, a História do Vestuário, e inúmeros outros imagináveis).
As dimensões, deve-se ter percebido, são sempre macro-campos capazes de se
desdobrar em ambientes internos, de produzir interfaces mais diversificadas, e de darem
margem a um número significativo de obras historiográficas. Além disto, para nos
apropriarmos de uma imagem de Fernando Braudel utilizada com um sentido totalmente
distinto, as dimensões correspondem ao leito do rio, mais perene e abrangente, que só
muda muito lentamente; e já os domínios correspondem às espumas que se fazem e
refazem na duração mais curta da superfície, por vezes atendendo a tendências da moda,
a determinados contextos, ou a movimentos de ocasião (É verdade, contudo, que há
domínios extremamente duradouros, conforme veremos oportunamente).
Uma exceção certamente é a História da Sexualidade, que atrás classificamos
como domínio, embora, com bastante razão, possa-se argumentar que ao nascer e ao
desenvolver sua vida orgânica e psíquica todo ser humano já se inscreve em uma
determinada dimensão de sexualidade. Seria por isso preciso relativizar o problema de
que a História da Sexualidade deva ser vista atualmente um domínio histórico, e não
como uma dimensão histórica de acordo com o critério que operacionalizamos neste
ensaio. Na verdade, há algo ainda que deve ser dito. É claro que um novo giro do
caleidoscópio historiográfico pode mudar um dia isto, e a Sexualidade poderá então
passar a ser apreendida como ‘dimensão’ historiográfica, inspirando tantas obras como a
História Demográfica ou a História Econômica. Mas por ora ela está apenas nos seus
primórdios, mesmo que o seu potencial em extensão e capacidade de desdobramentos
seja inegável – e para confirmar isto basta lembrar que a primeira História da
Sexualidade, definida como uma dimensão mais ampla, foi escrita por Michel Foucault
há alguns anos atrás (FOUCAULT, 1977-1985), sem que haja um número muito elevado
experiências no gênero. Além disto, seria importante distinguir da História da
Sexualidade um outro domínio afim, que é o da História dos Gêneros, mas então a
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discussão envolvida neste contraste já nos levaria bastante longe dos propósitos deste
artigo.
O giro do caleidoscópio historiográfico, de qualquer modo, ocorre em
consonância com as motivações de uma época, com as necessidades de uma
determinada sociedade, com as suas nem sempre perceptíveis imposições políticas, com
a sua capacidade de colocar certos problemas (o que geralmente ocorre quando esta
sociedade tem a capacidade de resolvê-los, conforme já se disse alhures).
No século XIX, os historiadores praticamente só prestavam atenção à ‘dimensão
política’, e assim mesmo em um pequenino traço da dimensão política.
Excepcionalmente no quadro de filosofias da história do século XIX, Marx e Engels
começaram a atentar para a dimensão econômica, mas também para a dimensão social.
Os Annales, no século XX, reforçaram este olhar pioneiro, no que logo foram
acompanhados por todos os historiadores que quiseram acompanhar o movimento da
modernidade, isto é, o giro do caleidoscópio historiográfico. Depois os olhares dos
historiadores foram se voltando sucessivamente para a Demografia, para a Cultura
Material, para a Geo-História, para as Mentalidades, para a Cultura. Nada impede,
podemos prever, que novas dimensões apareçam nos horizontes historiográficos das
próximas gerações (ou que um domínio migre para o campo mais abrangente das
dimensões) e a Sexualidade pode ser uma forte candidata.
Voltando ao campo de critérios que estamos categorizando como domínios,
podemos dizer que também há aqueles domínios que se conservam como setores mais
limitados, ou sob estrita vigilância da racionalidade científica, em função de interditos
não declarados. No moderno mundo laico e tendente a uma ciência materialista, a
Espiritualidade só pode ser um domínio. É difícil que venha a ser reconhecida como
dimensão historiográfica da vida humana enquanto persistir a atual tendência
paradigmática de organizar os saberes científicos. Fora dos ambientes científicos e
acadêmicos, contudo, grande parte dos seres humanos acredita ou movimenta-se nisto
que muitos definem como espiritualidade, inclusive os cientistas. Mas para a Ciência
oficial de hoje em dia, este território é por demais ambíguo, avesso a comprovações ou
experiências diretas. O resultado é que se tem um domínio como a ‘História Religiosa’
– que pode se desdobrar em histórias dos sistemas religiosos, das Igrejas, das formas
espiritualizadas de sentir ou das crenças – mas não uma ‘dimensão historiográfica’
10
Religiosa ou da Espiritualidade, com o mesmo status científico e gerando tantos
desdobramentos como a Economia ou a Política. De fato, sequer se fala em uma
História Espiritual, o que seria o caso se tivéssemos aqui uma dimensão historiográfica
já constituída. Em suma, com a História da Igreja poderemos ter a história de uma
instituição, com a História da Religião ou das crenças religiosas poderemos ter a história
de uma representação, com a História das práticas religiosas (ou da religiosidade stricto
sensu) poderemos ter a história de uma prática ... mas a História Religiosa definida
dimensionalmente, do mesmo modo como se define História Política ou História
Cultural não existe nos atuais parâmetros disciplinares da historiografia.
Até aqui falamos dos domínios históricos que se referem a âmbitos (Arte,
Sexualidade, Religiosidade, Representações). Conforme definimos antes, h outras
categorias definidoras de domínios históricos que se referem a agentes históricos
específicos (História da Mulher, História dos Excluídos), ou a certos ambientes sociais
(História Rural, História Urbana). Naturalmente que, em um caso ou outro, teremos
domínios que se prestam a todos os enfoques (dimensões) possíveis – da História da
Cultura Material à História das Mentalidades. Os ‘excluídos’ podem ser historiados com
a atenção voltada para as Mentalidades, como fez Geremek (1987), com a atenção
voltada para a Economia, como fez Kula (1970), com a atenção voltada para a Cultura,
como fez Thompson (1966), ou com a atenção voltada para o Social, como fez Michel
Mollat (1989). A História Urbana ou a História Rural podem ser avaliadas a partir de
enfoques direcionados para cada uma das dimensões que já foram mencionadas neste
livro, da Cultura Material às Mentalidades – afinal, estes domínios são rigorosamente
ambientes menores dentro do mundo humano que não deixam de ser unidades
totalizantes (são mundos humanos específicos, que podem ser examinados na totalidade
de seus aspectos).
Vale lembrar também que existem os domínios que são aparentemente sub-
campos de um domínio maior. A História das Doenças poderia ser inscrita em uma
História do Corpo. A História da Prostituição poderia ser inserida na História dos
Excluídos (embora em alguns aspectos também possa ser incluída na História da
Sexualidade). A História da Criança, da maneira como têm funcionado até hoje as
nossas instituições familiares, poderá ser inscrita sem maiores dificuldades em uma
11
História da Família. Tudo isto, por outro lado, ficará bem se englobado por uma
História da Vida Privada.
Para além disto, são inúmeros os domínios que se enquadram opcionalmente
como sub-campos em mais de um domínio mais abrangente, ou que se localizam nos
interstícios situados entre dois ou mais outros domínios. A História da Medicina,
enquadrar-se-á na História das Ciências, na História dos Sistemas de Pensamento ou dos
sistemas repressivos (como propôs Michel Foucault) ... estará em afinidade com os já
mencionados domínios da História das Doenças ou da História do Corpo? Incluirá como
subconjunto a História da Clínica? Temos nestes e em outros casos um entrelaçado de
domínios históricos, abrindo espaços por dentro do labirinto do saber historiográfico.
Poderemos também desviar um pouco do campo da historiografia profissional,
para vislumbrar este universo ambíguo e limítrofe que espreita o saber histórico, mas
que também chama a si de História (e quem poderia convencê-los, aos seus cultuadores,
de que não temos aí também uma História, tão legítima como as outras?). Existem assim
aqueles domínios que são tão pontuais que praticamente se confundem com um objeto
único, não faltando entre eles aqueles que beiram o absurdo e que aparentemente
poderiam ser inscritos em um campo novo que poderia ser ironicamente denominado de
História das Futilidades. Pense-se na História dos Perfumes, na História das Nádegas,
na História do Estupro, ou em uma História do Onanismo, curiosidades que mereceram
edições recentes, e que por vezes passam longe da historiografia profissional feita com
maior seriedade.
Os domínios da História, enfim, multiplicam-se. Para o bem e para o mal, a
criatividade dos historiadores sempre poderá organizar mais e mais campos, prontos a
acolherem novos objetos ou a receberem no seu seio objetos antigos, deslocados com
um novo propósito. O grupo dos ‘domínios’ é a parte mais móvel, mais flutuante, mais
diversificada e intercambiante do caleidoscópio historiográfico (com o perdão da
insistência nesta metáfora). Assim, enquanto as ‘dimensões’ costumam sofrer alterações
em uma duração mais longa (que às vezes pode ser medida em décadas); as
‘abordagens’ costumam surgir, alterar-se ou serem desativadas com uma rapidez maior,
cumprindo uma espécie de média duração; já os domínios, por fim, por vezes surgem e
desaparecem com a rapidez da curta duração, às vezes perseguindo ditames da moda e
caindo para segundo plano tão logo se saturam – embora também haja domínios tão
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antigos como a própria História, como por exemplo a História da Religião ou a História
Militar, e que já existem num quadro de estabilidade.
*
O objetivo a seguir será o de pontuar, exemplificativamente, algumas das
diversas modalidades historiográfica que se relacionam a um ou outro dos critérios atrás
discutidos: as dimensões, as abordagens e os domínios temáticos.
A maior parte das modalidades historiográficas que se refere a dimensões,
como se disse, é por si só evidente, mas em todo o caso faremos alguns comentários
ainda que de ordem geral sobre estes campos históricos. Apenas para dar a partida nesta
busca de maior transparência classificatória, poderemos começar citando a História
Demográfica, que enfatiza o estudo de tudo aquilo que se refere mais ou menos
diretamente à ‘População’: as suas variações quantitativas e qualitativas, o crescimento
e declínio populacional, os movimentos migratórios, e assim por diante. À medida que
vai conectando os aspectos mais especificamente relacionados às categorias
populacionais (como a mortalidade ou a natalidade), muito freqüentemente obtidos
através de métodos quantitativos, para depois relacionar estes aspectos de modo a dar
perceber a vida social de uma determinada comunidade, a História Demográfica
estabelece interfaces com a História Social. Para utilizar uma imagem mais eloqüente, a
História Demográfica vai se tornando muito claramente um tipo de História Social na
razão direta em que a história da mortalidade vai derivando para uma história da morte,
mostrando-se neste particular uma interface mais específica com a História das
Mentalidades.
A História da Cultura Material estuda os objetos materiais em sua interação
com os aspectos mais concretos da vida humana, desdobrando-se por domínios
históricos que vão do estudo dos utensílios ao estudo da alimentação, do vestuário, da
moradia e das condições materiais do trabalho humano. Trata-se de uma especificidade
da história que está intimamente associada à Arqueologia, mas esta designação refere-se
preferencialmente a uma ‘abordagem’ relacionada ao levantamento e à decifração de
fontes da cultura material, e não tanto à ‘dimensão’ de vida social que é trazida por estas
13
fontes3. Deste modo, ao se mostrar relacionada a um ‘modo’ de desvendar vestígios
materiais e de conectá-los para reconstruir a História, a Arqueologia vincula-se mais
coerentemente com a segunda ordem de critérios (‘abordagens’). Neste sentido, para um
historiador, a Arqueologia remete sobretudo aos ‘métodos arqueológicos’ que
eventualmente serão empregados para levantar fontes e dados empíricos no decorrer da
pesquisa – fontes e dados sobre os quais o historiador fará incidir depois um
determinado enfoque que pode ou não ser o da História da Cultura Material.
Mas, de qualquer maneira, a História da Cultura Material e a Arqueologia
andam juntas (PESEZ, 1990: 202). Um bom exemplo de História da Cultura Material
foi concretizado por Fernando Braudel, em um dos volumes de “Civilização Material,
Economia e Capitalismo” (1967). Por outro lado, Marc Bloch pode ser considerado um
precursor, considerando-se que teria empreendido uma modalidade de História da
Cultura Material ao analisar a ‘paisagem rural’ na medievalidade francesa (1952).
A Geo-História estuda a vida humana no seu relacionamento com o ambiente
natural e com o espaço concebido geograficamente. É ainda com Fernando Braudel que
este campo começa a se destacar, passando a se definir e a se encaixar nos estudos
históricos de “longa duração”4. Por outro lado, a Geo-História pode se dedicar mais
especificamente ao estudo de um aspecto transversal no decurso de uma duração mais
longa, como fez Le Roy Ladurie ao realizar uma História do Clima (1971). Nestes
casos, ocorre muito freqüentemente que o geo-historiador tome para fontes, além da
documentação mais tradicional, os próprios vestígios da Natureza (Ladurie esteve atento
aos “anéis” que se formam nos caules das árvores de vida longa, considerando que, de
acordo com conclusões já estabelecidas pelos botânicos, um anel estreito significa um
ano de seca, e um anel largo um ano beneficiado por chuvas abundantes). Conforme se
vê, a Geo-História deve dialogar necessariamente não só com a Geografia, como
também com outras ciências da natureza (a exemplo da Botânica ou da Ecologia).
Bastante polêmica desde os seus primórdios, a História das Mentalidades
enfoca a dimensão da sociedade relacionada ao mundo mental e os modos de sentir,
3 Tradicionalmente, a Arqueologia vinha sendo tratada como ciência distinta da História, gerando uma dimensão corporativa própria (a dos arqueólogos). Mas é precisamente a entrada em cena de uma História da Cultura Material que atua no sentido de incorporar a comunidade arqueológica na comunidade historiográfica. Rigorosamente, todo bom arqueólogo é também um historiador da Cultura Material, não se limitando a coletar resíduos de civilizações.
14
ficando sob a rubrica de uma designação que tem dado margem a grandes debates que
não poderão ser pormenorizados aqui5. Apenas para registrar alguns dos problemas
pertinentes a este campo historiográfico que se consolida a partir da década de 1960,
ficam aqui as questões fundamentais que devem ser refletidas pelo historiador que
ambiciona trilhar estes caminhos de investigação. Existirá efetivamente uma
mentalidade coletiva? Será possível identificar uma base comum presente nos “modos
de pensar e de sentir” dos homens de determinada sociedade – algo que una “César e o
último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês que cultivava as suas terras,
Cristóvão Colombo e o marinheiro de suas caravelas”? Estas imagens, bastante
oportunas, foram celebrizadas por Lucien Febvre.
Abraçando esta perspectiva teórica, o historiador deve ampliar necessariamente
a sua concepção documental. Conforme assinala François Furet (1991: 93), se o
historiador das mentalidades procura alcançar níveis médios de comportamento, não
pode se satisfazer com a literatura tradicional do testemunho histórico, que é
inevitavelmente subjetiva, não representativa, ambígua. Assim, como veremos adiante,
ocorreu um casamento feliz entre a História das Mentalidades (dimensão) e a História
Serial (abordagem).
Lucien Febvre, precursor distante dos estudos de mentalidade, havia tentado
precisamente uma outra via, mais atenta a fontes de natureza qualitativa (mesmo porque
a História Serial somente surgiria com as décadas seguintes). Em sua famosa obra sobre
Rabelais, o historiador francês se propõe – a partir da investigação de um único
indivíduo – identificar as coordenadas de toda uma era (1962). A abordagem é criticada
pelo historiador italiano Carlo Ginzburg – historiador mais habitualmente classificado
na interconexão de uma História Cultural (dimensão) com uma Micro-história
(abordagem). Ao contrário de Febvre, o micro-historiador italiano Carlo Ginzburg opta
por instrumentalizar o conceito de mentalidade de classe em sua obra O Queijo e os
Vermes (1989: 34). Neste último caso – onde toma como documentação principal os
“registros inquisitoriais” do processo de um moleiro italiano perseguido pela inquisição
no século XVI – Ginzburg mantém-se atento à questão da ‘intertextualidade’, isto é, ao
4 A obra prima de BRAUDEL neste campo é O mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II (1984).
15
diálogo que o discurso do moleiro Menocchio estabelece implicitamente com outros
textos e discursos.
Desta forma, embora ambos os historiadores partam de um estudo de caso
individual, a abordagem tornou-se distinta. Ressalte-se na abordagem de Ginzburg a
preocupação em identificar os vários registros dialógicos presentes em uma mesma
fonte – preocupação que se coaduna muito intimamente com um dos setores da
chamada História Cultural. Assim, além do discurso externo do próprio Menocchio,
visível na superfície de suas fontes, o historiador italiano toma por objeto a
multiplicidade de discursos que o constituem; e, além disso, evita a pretensão de
reconstituir uma ‘mentalidade de época’. Seu enfoque, como ressaltamos, é mais
propriamente cultural; sua metodologia funda-se na análise intensiva de suas fontes,
dialogando com a famosa “descrição densa” proposta por antropólogos como Clifford
Geertz (1989).
A História Cultural, campo historiográfico que se torna mais preciso a partir da
década de 1980, é suficientemente rica para abrigar no seu seio diferentes possibilidades
internas de tratamento, por vezes antagônicas. Apenas para resumir algumas
possibilidades, ela abre-se a estudos da ‘cultura popular’, da ‘cultura letrada’, das
‘representações’, se bem que em alguns destes casos já entramos no âmbito dos
“domínios da História”, dos quais já falaremos.
Para além das variedades de História Cultural, a História Antropológica
também enfoca a ‘Cultura’, mas mais particularmente nos seu sentidos antropológicos.
Privilegia problemas relacionados à ‘alteridade’, e interessa-se especialmente pelos
povos ágrafos, pelas minorias, pelos modos de comportamento não-convencionais, pela
organização familiar, pelas estruturas de parentesco. Em alguns de seus interesses,
irmana-se com a Etno-História, por vezes assimilando esta última categoria histórica
aos seus quadros.
Ainda explorando os caminhos da cultura, e também o universo mental das
sociedades, teríamos uma História do Imaginário – tentativa de abrir mais uma
alternativa à investigação daqueles objetos historiográficos que até então haviam sido
seara exclusiva da História das Mentalidades. A História do Imaginário estuda
5 Alguns artigos podem ser esclarecedores a respeito deste campo histórico: (1) LE GOFF, “As mentalidades: uma história ambígua” (1988: 68-83). (2) ARIÈS, 1990: 154-176. (3) DARTON, “a História das Mentalidades – o caso do olho errante” (1990: 225-255).
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essencialmente as imagens produzidas por uma sociedade, mas não apenas as imagens
visuais, como também as imagens verbais e, em última instância, as imagens mentais. O
Imaginário será aqui visto como uma realidade tão presente quanto aquilo que
poderíamos chamar de “vida concreta”. Na Idade Média, muitos se engajaram nas
Cruzadas menos por razões econômicas ou políticas (embora estas sejam sempre
evidentes) do que em virtude de um imaginário cristão e cavaleiresco. A elaboração de
um conceito de Imaginário para as ciências humanas deve muito a C. Castoriadis, cuja
obra de referência é A Instituição Imaginária da Sociedade (1982) e a historiadores
como Jacques Le Goff e Georges Duby.
Embora existam alguns objetos em comum, a História do Imaginário marca
alguma distância em relação à História das Mentalidades. Esta última está muito
associada à idéia de que existe em qualquer sociedade algo como uma “mentalidade
coletiva”, que grosso modo seria uma espécie de estrutura mental que só se transforma
muito lentamente, às vezes dando origem a permanências que se incorporam aos hábitos
mentais de todos os que participam da formação social (apesar de transformações que
podem estar se operando rapidamente nos planos econômico e político). A História do
Imaginário não se ocupa propriamente destas longas durações nos modos de pensar e de
sentir, mas sim da articulação das imagens visuais, verbais e mentais com a própria vida
que flui em uma determinada sociedade.
Cada sociedade desenvolve por exemplo o seu imaginário político, como
aquele que Ernst Kantorowicz estudou em Os Dois Corpos do Rei (1998). A idéia de
que o “rei não morre jamais”, ou de que a própria sociedade constitui um segundo corpo
do rei, pode estar interconectada com um imaginário cristão. Os modos como o poder é
representado – por exemplo em termos de “centro” e de “periferia” – ou como a
estratificação social materializa-se em imagens como a de um espectro de alturas em
que as classes sociais mais favorecidas são chamadas de “classes altas” ... eis aqui
algumas imagens sociais e políticas que podem passar a fazer parte da vida de uma
sociedade.
Existe por outro lado o estudo mais direto das imagens visuais, perceptíveis por
exemplo nas iconografias, ou das imagens empregadas na literatura. Neste ponto, a
História do Imaginário partilha seus objetos com uma “história das imagens”
propriamente dita, ou com uma “história das representações”, que são na verdade
17
‘domínios da história’ (ou seja, campos temáticos à disposição do historiador). São
domínios que, naturalmente, também podem ser partilhados por uma História Cultural.
A dimensão da Cultura, conforme se vê, é suficientemente diversificada para
gerar um grande número de modalidades historiográficas (basta lembrar que o próprio
conceito de cultura é polissêmico, e que cada um de seus sentidos pode se abrir a um
enfoque distinto). De igual maneira, a História Política é outra das dimensões
complexas, abrindo eventualmente campos antagônicos dentro de si. Será suficiente
lembrar aqui o contraste radical entre a Velha História Política e a Nova História
Política. O que autoriza classificar um trabalho historiográfico dentro da História
Política é naturalmente o enfoque no “Poder”. Mas que tipo de poder? Pode-se
privilegiar desde o estudo do poder estatal até o estudo dos micropoderes que aparecem
na vida cotidiana.
Assim, enquanto a História Política do século XIX mostrava uma preocupação
praticamente exclusiva com a política dos grandes Estados (conduzida ou interferida
pelos “grandes homens”), já a Nova História Política que começa a se consolidar a
partir dos anos 1980 passa a se interessar também pelo “poder” nas suas outras
modalidades (que incluem também os micropoderes presentes na vida cotidiana, o uso
político dos sistemas de representações, e assim por diante). Para além disto, a Nova
História Política passou a abrir um espaço correspondente para uma “História vista de
Baixo”, ora preocupada com as grandes massas anônimas, ora preocupada com o
“indivíduo comum”, e que por isto mesmo pode se mostrar como o portador de indícios
que dizem respeito ao social mais amplo. Assim, mesmo quando a Nova História
Política toma para seu objeto um indivíduo, não visa mais a excepcionalidade das
grandes figuras políticas que outrora os historiadores positivistas acreditavam ser os
grandes e únicos condutores da História6.
Objetos da História Política são todos aqueles que são atravessados pela noção
de “poder”. Neste sentido, teremos de um lado aqueles antigos enfoques da História
Política tradicional que, apesar de terem sido rejeitados pela historiografia mais
6 Um balanço desta passagem da antiga História Política para a Nova História Política dos anos setenta pode ser encontrada no ensaio de Jacques LE GOFF intitulado “A Política: será ainda a ossatura da História?” (1975: 221-242). Mais recente (1988), ver o conjunto de textos organizado por René REMOND em Por uma História Política (1996), incluindo um texto final do próprio René Remond em que se busca delinear as novas noções e campos do “político” na História. Para um balanço da “História vista de baixo”, ver o texto de Jim SHARPE que leva este nome, e que foi publicado em Peter BURKE (1992).
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moderna de a partir dos anos 1930, com as últimas décadas do século XX começaram a
retornar com um novo sentido. A Guerra, a Diplomacia, as Instituições, ou até mesmo a
trajetória política dos indivíduos que ocuparam lugares privilegiados na organização do
poder – tudo isto começa a retornar a partir do final do século com um novo interesse.
De outro lado, além destes objetos que se referem às relações entre as grandes
unidades políticas e aos modos de organização destas grandes unidades políticas que são
os Estados e as Instituições, ganham especial destaque as relações políticas entre os
grupos sociais de diversos tipos. A rigor, as ‘ideologias’ e os movimentos sociais e
políticos (por exemplo as Revoluções) sempre constituíram pontos de especial interesse
por parte da nova historiografia que se inicia com o século XX. Por outro lado, tal como
já ressaltamos, hoje despertam um interesse análogo as relações interindividuais
(micropoderes, relações de poder no interior da família, relacionamentos intergrupais),
bem como o campo das representações políticas, dos símbolos, dos mitos políticos, do
teatro do poder. Em muitos destes âmbitos, são evidentes as interfaces da História
Política com outros campos historiográficos, como a História Cultural, a História
Econômica, ou, sobretudo, a História Social.
A dimensão historiográfica mais sujeita a oscilações de significado é
precisamente a da História Social, categoria que por ocasião do surgimento da “Revista
dos Annales” foi construída – ao lado da História Econômica – por oposição à História
Política tradicional. Nesta esteira, houve ainda quem direcionasse a expressão “História
Social” para uma história das grandes massas ou para uma história dos grupos sociais de
várias espécies (em contraste com a biografia, com a História das Instituições, etc...).
Entre os objetos mais evidentes da História Social estariam as relações sociais, as
classes e estamentos, as ideologias, as formas de sociabilidade.
Pode-se perceber que a maioria dos campos de interesse da História Social
correspondem a recortes humanos (as classes e grupos sociais, as células familiares), ou
a recortes de relações humanas (os modos de organização da sociedade, os sistemas que
estruturam as diferenças e desigualdades). Em um caso, estudam-se fatias da sociedade,
em outro caso dimensões específicas e transversais que atravessam a sociedade como
um todo. Contudo, duas das divisões que relacionamos perdem este caráter mais
específico que procura examinar um problema ou uma dimensão mais específica: o
estudo das comunidades (rurais e urbanas), e o estudo das populações como um todo.
19
Estes dois campos estão na verdade ligados a uma outra acepção da História Social que
discutiremos a seguir.
Se a História Social foi se constituindo desde o princípio como uma sub-
especialidade da História, direcionada para objetos bem específicos e que se distinguiam
dos objetos das outras histórias, por outro lado a noção de “História Social” também foi
vinculada por alguns pensadores e historiadores a uma “história total”, encarregada de
realizar uma grande síntese da diversidade de dimensões e enfoques pertinentes ao
estudo de uma determinada comunidade ou formação social. Portanto, estaria a cargo da
História Social criar as devidas conexões entre os campos político, econômico, mental e
outros – o que implica que nesta acepção a História Social deixa de ser uma modalidade
mais específica, como qualquer outra, para se tornar o campo histórico mais abrangente
que se abriria à possibilidade da síntese ... História Social como História da Sociedade.
Na verdade, esta última acepção é adotada ainda pela Escola dos Annales, mas
a partir da década de 1940, de modo que acaba se contrapondo àquela primeira acepção
que procurava fixar a História Social como especialidade. Em uma conferência de 1941,
mais tarde publicada em Combates pela História, Lucien Febvre chega a afirmar que
“não há história econômica e social; há somente história, em sua unidade”. Trata-se
portanto de um programa que assume a perspectiva da chamada História Total, ou da
“História-Síntese”, que tão bem caracterizaria a segunda fase da Escola dos Annales –
sobretudo com as monumentais obras de Braudel sobre O Mediterrâneo e sobre a
Civilização Material do Capitalismo.
Mas a designação anterior continuou existindo paralelamente, de modo que a
História Social assumiu um lugar específico como sub-especialidade ao lado da História
Econômica, da História Política, da História Cultural e de todas as outras.
Rigorosamente, depois da crise da História Total (esperança de abarcar todos os
aspectos de uma sociedade em uma grande síntese coerente) esta designação mais
específica ganhou até mais força a partir da década de 1960. Mas a noção de História
Social, enfim, continuou sempre aberta a muitas possibilidades de sentidos.
Os meios acadêmicos brasileiros vieram contribuir um pouco para os usos
amplificados da expressão “História Social”. Esta designação tem sido muito utilizada,
ao mesmo tempo em que tem se diluído bastante de um verdadeiro conteúdo no âmbito
das universidades brasileiras. Os programas de Pós-Graduação – que são obrigados a
20
explicitar burocraticamente para os organismos governamentais uma “área de
concentração” com as suas respectivas “linhas de pesquisa” – acabaram por adotar
estrategicamente esta designação tomada no seu sentido mais abrangente, conseguindo
assim enquadrar em um mesmo plano de coerência uma quantidade multidiversificada
de pesquisas. Em certo sentido, argumenta-se que toda a História que hoje se escreve é
de alguma maneira uma História Social – mesmo que direcionada para as dimensões
política, econômica ou cultural.
De fato, é possível incorporar uma preocupação social a cada uma das demais
dimensões antes citadas como sub-especialidades da História, e também às várias
‘abordagens’ e ‘domínios’ que veremos a seguir. Mas é também verdade que nem toda
História é necessariamente social. Se é possível elaborar uma História Social das Idéias
ou uma História Social da Arte, é possível também elaborar uma História das Idéias ou
uma História da Arte que se restrinjam a discutir obras do pensamento ou da criação
artística sem reestruturá-las dentro do seu ambiente social mais amplo7. Encontra-se
quem fale em uma História da Cultura, preocupada em descrever produções culturais
de vários tipos, mas contrastando-a com a História Cultural propriamente dita, que tem
incorporado tradicionalmente uma preocupação social muito definida (neste caso, uma
História Social da Cultura).
Uma última divisão historiográfica relacionada ao tipo de enfoque que canaliza
as atenções do historiador é a da História Econômica. Neste caso, dificilmente pode
haver dúvidas relativas aos objetos da História Econômica. Estuda-se qualquer um dos
três aspectos envolvidos pelas atividades econômicas: a Produção, a Circulação ou o
Consumo.
O campo da Produção foi objeto de interesse primordial da historiografia
marxista. Neste sentido, aqui encontra o seu espaço o conceito de “modo de produção”,
que procura dar conta de toda a produção da vida material de uma sociedade a partir da
apropriação do trabalho humano e da utilização dos meios de produção (matérias
primas, instrumentos). Fora da teoria marxista, pode-se falar em “sistemas de
7 Robert DARTON distingue uma “história das idéias” voltada para o estudo do pensamento sistemático, geralmente em tratados filosóficos; uma “história intelectual” que se ocuparia do estudo do pensamento informal, dos climas de opinião e dos movimentos literários; uma “história social das idéias”, que se voltaria para o estudo das ideologias e da difusão das idéias; e uma “história cultural” que se ocuparia do estudo da cultura no sentido antropológico (DARTON, 1990: 188).
21
produção”, o que é apenas uma outra maneira de se referir a este âmbito produtivo que
constitui o ponto de partida da vida econômica de uma sociedade.
Naturalmente que, notadamente com a historiografia marxista e outras
preocupadas com a dimensão social da História, considera-se que o sistema de produção
está em inseparável interface com a organização social e política de uma sociedade. Daí
que, para este tipo de história econômica, é imprescindível caminhar conjuntamente
com a História Social e com a História Política. Qualquer grupo social ocupa uma
posição – central ou periférica, ativa ou parasitária – consciente ou alienada, no sistema
de produção de uma sociedade, e todos estabelecem entre si relações que, além de
sociais, são relações políticas. Para o materialismo histórico, por exemplo, a História é a
história dos modos de produção e também a história das lutas de classe. Uma coisa está
sobreposta à outra, pois se os modos de produção vão se desenvolvendo e derivando em
outros no decurso de uma duração mais longa, a luta de classes aflora cotidiana e
conjunturalmente sobre estas grandes estruturas em mutação. Percebe-se assim que,
nesta linha de perspectivas, a História Econômica está em permanente interface com
uma História Política e uma História Social.
Por outro lado, o enfoque do historiador econômico também pode se dirigir
para a esfera da Circulação (ou da distribuição). Serão estudados aqui os ciclos
econômicos, os preços, as trocas, o sistema financeiro. O interesse no estudo dos ciclos
econômicos, por exemplo, tornou-se muito marcante a partir da década de 1930, com
historiadores da economia associados à Escola dos Annales (mas neste caso também ao
marxismo) como Ernst Labrousse. Destaca-se uma interface evidente da nova História
Econômica com os diversos desenvolvimentos da ciência social da Economia. Na
verdade, o estudo dos ciclos, das conjunturas, da flutuação de preços e salários (e tantos
outros aspectos) tornou-se possível a partir do diálogo com a Estatística. Estes novos
campos da História Econômica tornam-se possíveis com a quantificação – com aquilo
que logo passaria a ser chamado de História Quantitativa.
Fechando o circuito de interesses da História Econômica aparece a esfera do
Consumo, com objetos que podem ir desde os aspectos relativos aos salários (poder de
compra) até os hábitos de consumo dos vários grupos sociais. Estudar o consumo é
estudar os modos como a riqueza é apropriada pelos vários grupos e forças sociais que
se encontram em interação no interior de uma determinada sociedade. As tensões
22
sociais, enfim, também se expressam nas relações de consumo, nas ostentações, nas
carências, nos contrastes que dão a revelar a riqueza apropriada e que a colocam em
contraposição à riqueza produzida. Esta ponta do triângulo econômico, portanto,
estabelece uma nova interface com a História Social.
De uma maneira resumida, enfim, estas – da História da Cultura Material à
História das Mentalidades (ou do Porão ao Sótão, para utilizar uma metáfora conhecida)
– são algumas daquelas dimensões presentes na vida de uma sociedade que têm gerado
campos específicos da Historiografia. Resta dizer, antes de passar ao próximo grupo de
critérios, que o historiador não precisa se fixar necessariamente em apenas uma destas
dimensões. Conforme vimos, ele pode atuar na interconexão de uma História Política
com uma História Social, de uma História Demográfica com uma História das
Mentalidades, de uma Geo-História com uma História Econômica, apenas para dar
alguns exemplos. As combinações possíveis, a dois ou a três, são intermináveis, e
dependem da natureza do objeto historiográfico que está sendo constituído.
*
Do âmbito das dimensões, passaremos agora ao âmbito das abordagens.
Existem subdivisões possíveis da História que se referem ao ‘campo de observação’
com que os historiadores trabalham. E existem outras subdivisões que se referem ao tipo
de fontes ou ao ‘modo de tratamento das fontes’ empregado pelo historiador. Em cada
um destes casos, estas divisões da História referem-se mais aos ‘modos de fazer’ a
pesquisa do que às dimensões sociais que são enfocadas pelo historiador (‘modos de
ver’). Os critérios envolvidos por estas subdivisões são portanto divisões que estão mais
relacionadas com Metodologia do que com Teoria.
É o caso, por exemplo, da História Oral. Esta subdivisão historiográfica refere-
se a um tipo de fontes com o qual o historiador trabalha, a saber, os testemunhos orais.
Aqui, entramos em um outro tipo de critério que não interfere com os do primeiro
grupo. Um historiador pode estabelecer como enfoque a História Política ou a História
Cultural, e selecionar como abordagem a História Oral. Isto significa que ele irá
produzir o essencial dos seus materiais de investigação e reflexão a partir da coleta de
depoimentos, que depois deverá analisar com os métodos adequados. Suas
23
preocupações neste âmbito estarão relacionadas ao tipo de entrevista que será utilizado
na coleta de depoimentos, aos cuidados na decodificação e análise destes depoimentos,
ao uso ou não de questionários, e assim por diante. Todos estes aspectos mais se
referem a ‘métodos e técnicas’ do que a ‘aspectos teóricos’. A História Oral, enfim,
remete a um dos caminhos metodológicos oferecidos pela História, e não a um caminho
teórico ou a um caminho temático.
Também o campo da História Serial refere-se a um tipo de fontes e a um
‘modo de tratamento’ das fontes. Trata-se de abordar fontes com algum nível de
homogeneidade, e que se abram para a possibilidade de quantificar ou de serializar as
informações ali perceptíveis no intuito de identificar regularidades. Num outro sentido,
a História Serial lida também com a serialização de eventos (e não apenas com a
serialização de fontes) propondo-se a avaliar eventos históricos de um certo tipo em
séries ou unidades repetitivas por determinados períodos de tempo. Enquadram-se neste
conjunto de possibilidades os estudos dos ciclos econômicos, a partir por exemplo da
análise das curvas de preços, e também as análises das curvas demográficas.
A História Serial foi um campo que se abriu com a História Econômica, e que
daí se estendeu à História Demográfica e à História Social no sentido restrito, mas que
terminou por se difundir para muito além destes limites. É o caso dos estudos de
História das Mentalidades, quando se recorre à análise de séries de testamentos a fim de
verificar quantas missas desejavam para depois de sua morte os homens de uma certa
classe social em determinada sociedade. Neste sentido, a série pode trazer à tona
“testemunhos involuntários”, permitindo estabelecer uma História das Práticas
Religiosas (rubrica que deve ser enquadrada no âmbito dos ‘domínios’ da História)8. Da
mesma forma, é possível serializar ‘estruturas de parentesco’, e neste momento a
História Serial estará se articulando à História Antropológica.
A História Serial, relacionada a determinados procedimentos metodológicos,
articula-se deste modo a outros campos históricos como a História Econômica, a
História Demográfica ou a História das Mentalidades, aplicando-se a objetos vários
(como na História das Práticas Religiosas ou na História da Família). Por outro lado,
com freqüência ela se encontra intimamente relacionada com a chamada História
8 Alguns exemplos de articulação entre História Serial e História da Religião são apresentados por Pierre CHAUNU (1965).
24
Quantitativa, uma subdivisão da História que se refere mais ao critério ‘campo de
observação’, neste caso associado ao universo numérico e às variações quantitativas.
Dentre as subdivisões pertinentes ao critério ‘campo de observação’, a
confusão mais freqüente que se faz está entre a História Regional e a Micro-História,
apesar de serem campos radicalmente distintos. Valem aqui alguns esclarecimentos.
Quando um historiador se propõe a trabalhar dentro do âmbito da História
Regional, ele mostra-se interessado em estudar diretamente uma região específica. O
espaço regional, é importante destacar, não estará necessariamente associado a um
recorte administrativo ou geográfico, podendo se referir a um recorte antropológico, a
um recorte cultural ou a qualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com
o problema histórico que irá examinar. Mas, de qualquer maneira, o interesse central do
historiador é estudar especificamente este espaço, ou as relações sociais que se
estabelecem dentro deste espaço, mesmo que eventualmente pretenda compará-lo com
outros espaços similares ou examinar em algum momento de sua pesquisa a inserção do
espaço regional em um universo maior (o espaço nacional, uma rede comercial, etc ...).
A Micro-História não se relaciona necessariamente ao estudo de um espaço
físico reduzido, embora isto possa até ocorrer. O que a Micro-História pretende é uma
redução na escala de observação do historiador com o intuito de se perceber aspectos
que de outro modo passariam desapercebidos. Quando um micro-historiador estuda uma
pequena comunidade, ele não estuda propriamente a pequena comunidade, mas estuda
através da pequena comunidade (não é por exemplo a perspectiva da História Local,
que busca o estudo da realidade micro-localizada por ela mesma). A comunidade
examinada pela Micro-História pode aparecer, por exemplo, como um meio para atingir
a compreensão de aspectos específicos relativos a uma sociedade mais ampla. Da
mesma forma, posso tomar para estudo uma ‘realidade micro’ com o intuito de
compreender certos aspectos de um processo de centralização estatal que, em um exame
encaminhado do ponto de vista da macro-história, passariam certamente
desapercebidos.
O objeto de estudo do micro-historiador não precisa ser desta forma o espaço
micro-recortado. Pode ser uma prática social específica, a trajetória de determinados
atores sociais, um núcleo de representações, ou qualquer outro aspecto que o historiador
25
considere revelador em relação aos problemas sociais que está se dispondo a examinar.
Se ele elabora a biografia de um indivíduo (e freqüentemente escolherá um indivíduo
anônimo) o que o estará interessando não é propriamente biografar este indivíduo, mas
sim os aspectos que poderá perceber através do exame micro-localizado desta vida.
Para utilizar uma metáfora conhecida, a Micro-História propõe a utilização do
microscópio ao invés do telescópio. Não se trata, neste caso, de depreciar o segundo em
relação ao primeiro. O que importa é ter consciência de que cada um destes
instrumentos pode se mostrar mais apropriado para conduzir à percepção de certos
aspectos do universo (por exemplo, o espaço sideral ou o espaço intra-atômico). De
igual maneira, a Micro-História procura enxergar aquilo que escapa à Macro-História
tradicional, empreendendo para tal uma ‘redução da escala de observação’ que não
poupa os detalhes e o exame intensivo de uma documentação. Considerando os
exemplos antes citados, o que importa para a Micro-História não é tanto a ‘unidade de
observação’, mas a ‘escala de observação’ utilizada pelo historiador, o modo intensivo
como ele observa, e o que ele observa.
*
Com relação aos domínios da História, aqui tomados no sentido de ‘domínios
temáticos’ que se oferecem ao historiador, eles são de número indefinido, uma vez que
se referem aos ‘agentes históricos’ que eventualmente são examinados (a mulher, o
marginal, o jovem, as massas anônimas, e qualquer outro), aos ‘ambientes sociais’
(rural, urbano, vida privada), e aos ‘objetos de estudo’ (arte, direito, religiosidade,
sexualidade). Os exemplos sugeridos são apenas indicativos de uma quantidade de
campos que não teria fim.
Como se vê, os critérios de classificação que estabelecem domínios da História
referem-se primordialmente às temáticas escolhidas pelos historiadores. São já campos
de estudo mais específicos, dentro dos quais se inscreverá o objeto de estudo e a
problemática constituídos pelo historiador.
Será oportuno encerrar este artigo chamando atenção, mais uma vez, para o
fato de que – como qualquer campo de saber – a História está fadada a permanentes
transformações no interior do seu espaço disciplinar. Os rearranjos internos serão
26
sempre possíveis. E mais, o que está dentro da História um dia, como objeto de estudo
possível, pode se ver repelido para o seu exterior no outro dia. Será eficaz, para
retermos uma maior compreensão acerca das variâncias da disciplina historiográfica,
retomar um célebre trecho de A Ordem do Discurso, onde Michel Foucault esclarece
como ninguém o que é uma disciplina (em geral):
“uma disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos: tudo isto constitui uma espécie de sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele” (FOUCAULT, 1996: 30).
Este sistema anônimo, contudo, como faz notar Foucault logo adiante, está em
permanente mutação porque é aberto a expansões – na verdade ele depende para existir
de desencadear expansões. Conforme ressalta o filósofo francês, “para que haja
disciplina é preciso, pois, que haja possibilidade de formular, e de formular
indefinidamente, proposições novas” (FOUCAULT, 1996: 30).
E no entanto existe um incessante jogo entre o interior e o exterior da
disciplina, e entre um campo de estudos e o seu campo de objetos. A História (campo de
conhecimento) jamais será constituída por tudo o que se pode dizer de verdadeiro sobre
a História (campo dos acontecimentos). Para que uma proposição pertença à disciplina
“História” de uma época, é preciso que ela responda às condições desta disciplina tal
como a definem ou definiram os seus praticantes de então. A História, como qualquer
outra disciplina, estará sempre repelindo para fora de suas margens determinado
conjunto de saberes, proposições e domínios que em momento anterior poderiam ter
estado ali, e que em um momento subseqüente da história dos saberes e dos discursos já
não estão. Ou, como registra Michel Foucault para todas as disciplinas científicas em
geral:
“O exterior de uma ciência é mais ou menos povoado do que se crê: certamente, há a experiência imediata, os temas imaginários que carregam e reconduzem sem cessar crenças sem memória; mas, talvez, não haja erros, em sentido estrito, porque o erro só pode surgir e ser decidido no interior de uma prática definida; em contrapartida rondam monstros cuja forma muda com a história do saber. Em resumo: uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina [...]” (FOUCAULT, 1996: 33)
27
A disciplina História atrai e repele objetos, domínios, proposições, métodos,
práticas, representações. Houve um tempo em que a hagiografia caía dentro da História,
em que Deus conduzia a História. Depois, no século XVIII, a História tende a se tornar
imanente entre os historiadores profissionais. Deus sai da História, e a deixa aos homens
– ou, se ele permanece na História, como ocorre com vários dos historiadores do século
XIX, é como uma grande sombra providencial que age através dos homens (mas não
mais de milagres). Com o Iluminismo, o mundo extrafísico ou sobrenatural parece ter
sido definitivamente repelido para fora da História. Voltará um dia? Atualmente, não se
escreve uma história dos fenômenos paranormais. Quem quer que queira historiar estes
fenômenos terá de fazê-lo do exterior histórico, já que este não é um dos assuntos de
que tratam os historiadores profissionais. Outros tantos exemplos poderiam ser dados.
Os historiadores escrevem a História das Ciências, dos saberes jurídicos, da Medicina,
da Psiquiatria – mas quem historia a Astrologia são os astrólogos (os historiadores só o
fariam para avaliar socialmente ou culturalmente as suas representações, para indagar
pelas ideologias que se escondem por trás das representações astrológicas, e assim por
diante).
Há os exemplos políticos. O Nazismo entrou na história como monstro – quem
quiser historiá-lo com maior simpatia terá dificuldade em fazê-lo no interior dos
círculos historiográficos ocidentais. Deverá fazer isto do seu exterior, como
simpatizante de uma doutrina. Isto porque, na historiografia ocidental, o Nazismo é
estudado no corpo dos estudos dos autoritarismos, dos fanatismos, das patologias
sociais, da violência. Não se estuda, por exemplo, a Arte Nazista, a não ser ligada a um
destes aspectos.
Um exemplo não muito distante de proposições que até então caíam como
luvas para o campo histórico, e que hoje são repelidas enfaticamente, refere-se ao
circuito da “evolução” e do “progresso”. Com os desenvolvimentos antropológicos, e
com o auto-reconhecido descentramento do homem europeu, já não se admite falar no
campo da historiografia profissional em “evolução de sociedades” (com aquele sentido
próximo ao darwiniano). Também já não se fala no “Espírito da Nação”, que teria
animado as narrativas nacionalistas de historiadores como Ranke ou Jules Michelet nos
idos do século XIX. Estas proposições estão atualmente em baixa – ou melhor, estão
como que fora da órbita do campo histórico.
28
Exemplo mais recente de idas e vindas, agora já relativo a uma das antigas
especialidades da História, é o campo da História das Civilizações. Com Arnold
Toynbee, este domínio parecia ter conhecido o seu último grande investimento
(TOYNBEE, 1953). No final do segundo milênio, ele parece querer voltar com toda a
força, pelo menos a julgar pelo impacto de O Choque das Civilizações de Samuel P.
Huntington (2000)9.
Exemplo importante de resgate de um domínio ou de uma prática
historiográfica – que, depois de ter sido expulsa da órbita da historiografia profissional
pela ojeriza ao factual dos anos 1930, começa a ser atraída de novo pela sua gravidade –
é este gênero que poderia ser descrito como “história de acontecimento” (a descrição de
uma batalha, por exemplo). O primeiro sinal foi dado por Georges Duby, quando
aceitou em 1968 escrever um livro sobre o Domingo de Bouvines (famosa batalha na
história da Idade Média francesa). O seu prefácio para esta obra é precisamente uma
justificativa para a sua aceitação, como historiador profissional, em retomar este gênero
(1993).
Para pontuar com um último exemplo de domínio que veio à tona, é bastante
lembrar que a História da Loucura só começou a ser historiada recentemente. E
naturalmente que começou a ser historiada do ponto de vista de uma racionalidade que
desde já a imobiliza, com a exceção do trabalho pioneiro de Foucault (1961). Mas, em
todo o caso, é um tema que começa a entrar na moda – a invadir a órbita do
historicizável. Desta forma, o que um dia esteve no exterior histórico é hoje atraído com
menor ou maior força para o núcleo historiográfico, tal como vimos acontecer com os
vários objetos descontraídos ou desvendados pela História das Mentalidades, pela
História Vista de Baixo, pela Micro-História. Da mesma forma, os assuntos mais
amplamente tratados pela história, hoje, poderão um dia ser repelidos. Isto novamente
produzirá reviravoltas nos domínios históricos, nas suas dimensões, nas suas
abordagens. O Campo da História, enfim, em uma visão de longo termo, apresenta-se
como imenso devir onde se alternam, no centro do palco historiográfico, novas e antigas
modalidades que se oferecem de modo particularmente sedutor a cada historiador.
9 No Brasil, a experiência é reafirmada por Hélio JAGUARIBE com seu Um Estudo Crítico de História (2001).
29
BIBLIOGRAFIA
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