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A CRIAÇÃO DE ENJEITADOS EM VILA RICA:
A PERMANÊNCIA DA CARIDADE
(1775-1850)
Belo Horizonte, Setembro de 2011
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A CRIAÇÃO DE ENJEITADOS EM VILA RICA:
A PERMANÊNCIA DA CARIDADE
(1775-1850)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História.
Linha de pesquisa: História da Sociedade, poder e
região
Orientador: Prof. Dr. Renato Pinto Venâncio
Belo Horizonte, Setembro de 2011
Catalogação: sisbin@sisbin.ufop.br
F383c Ferreira, Luciana Viana.
A criação de enjeitados em Vila Rica [manuscrito] : a permanência da caridade (1775-1850) / Luciana Viana Ferreira. - 2011.
179f.: il.; grafs.; tabs.; mapas. Orientador: Prof. Dr. Renato Pinto Venâncio. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto
de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de História. Programa de Pós-Graduação em História.
Área de concentração: Poder e Linguagens.
1. Crianças - Teses. 2. Política social - Teses. 3. Caridade - Teses. 4. Filantropia - Teses. I. Universidade Federal de Ouro Preto. II. Título.
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Luciana Viana Ferreira
A Criação de Enjeitados em Vila Rica: A Permanência da Caridade (1175-1850)
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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFOP, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História.Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Dr. Renato Pinto Venâncio (Orientador)
Departamento de História, UFOP / Departamento de Ciências da Informação UFMG
Prof. Dr. Ronaldo Pereira de Jesus
Departamento de História, UFOP
Prof. Dr. Silvia Maria Jardim Brügger
Departamento de História, UFSJ
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Dedico este trabalho aos
meus pais,
José Antônio e Elizabeth
Agradecimentos
A realização deste trabalho só foi possível graças à colaboração de muitas
pessoas. Por isso, quero agradecê-las com muito respeito e carinho. Primeiramente
quero agradecer ao meu orientador Renato Pinto Venâncio pela orientação e pelo
respeito com as minhas inseguranças e demoras de analises. Ainda o agradeço pelas
leituras minuciosas, o que possibilitou ajustes no escopo textual. Agradeço ao professor
Ronaldo Pereira de Jesus e a professora Silvia Maria jardim Brügger, que deferiram
comentários muito pertinentes sobre o meu trabalho, contribuindo sobremaneira para
repensar meus objetivos. Agradeço também os professores Francisco Eduardo de
Andrade, Júnia Ferreira Furtado e Marco Antônio Silveira, professores que no decorrer
das suas disciplinas contribuíram para o enriquecimento da minha pesquisa.
A professora Adalgisa Arantes Campos sou grata por ter-me permitido com
“liberdade” pesquisar no banco de dados das atas paroquiais da Freguesia de Nossa
Senhora do Pilar do Ouro Preto (CNPq, FAPEMIG), projeto coordenado pela
professora. Sou grata também a Denise Aparecida Souza Duarte bolsista da Adalgisa
que me ensinou a manusear as fontes com mais agilidade.
Agradeço aos funcionários do Arquivo Público Mineiro, Denis e Elma, por
tornaram as minhas tardes de pesquisas muito prazerosas.
Sou grata aos meus amigos que sempre estiveram presente nessa minha
caminhada: Ao meu amigo e professor Rodrigo Vivas Andrade que muito contribuiu
para a realização deste trabalho; Adriano Toledo Paiva que com amizade e carinho
sempre que possível norteou as minhas investidas na pesquisa; A minha querida amiga
Romilda Oliveira Alves que com muita paciência analisou comigo alguns documentos
ilegíveis. A Nicole de Oliveira Alves Damasceno com quem dividi momentos
enriquecedores sobre o tema da pesquisa e a paixão com as crianças abandonadas; As
minhas amigas Elizangela de Moura, Erlaine de Moura e Jussara Paiva que muito
colaboram para que este trabalho concretiza-se.
Agradeço a Manoela Areias Costa por ter me apresentado os encantos da cidade
de Mariana, devo a ela muitos momentos agradáveis. .
Agradeço com muito respeito e carinho ao meu companheiro Fabrício Vivas
Andrade que com paciência e zelo sempre esteve ao meu lado. Obrigada por tudo, Fá.
Sou grata ao ICAM (Instituto Cultural Amílcar Martins) pela concessão de
bolsa que muito me ajudou para realização deste trabalho.
Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história.
Sérgio Buarque de Holanda
Lista de Abreviatura
Arquivos:
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino
APM – Arquivo Público Mineiro
CC – Casa dos Contos
CMOP – Câmara Municipal de Ouro Preto
Instituições:
CEDEPLAR/UFMG – Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da
Universidade Federal de Minas Gerais
IHG- MG – Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais
Gerais:
Cx. – Caixa
Cód - Códice
Doc. – Documento
Fl – folha
PP – Presidência da Província
RAPM – Revista do Arquivo Público Mineiro
SC – Seção Colonial
SP – Seção Provincial
Lista de Gráficos
Gráfico 1. Número de criadores ao longo das décadas 1770 a 1840______________26
Gráfico 2. Batismo de Expostos por décadas 1770 a 1840______________________48
Gráfico 3. Comparativo entre criança legítima, ilegítima e expostas por década 1770 a
1820________________________________________________________________ 65
Gráfico 4. Gastos com Enjeitados x Despesa x Receita – Câmara Municipal de Vila
Rica_________________________________________________________________97
Gráfico 5. Montante não pago aos criadores dos enjeitados por décadas__________105
Lista de Quadros
Quadro 1. Instalação da Roda dos Expostos no Brasil entre os períodos de 1789 –
1849________________________________________________________________ 38
Quadro 2. População de Vila Rica 1760-1820_______________________________ 64
Quadro 3. Expostos por década 1760-1830_________________________________ 64
Quadro 4. Mobilidade das crianças_______________________________________ 68
Quadro 5. Bilhetes anexados aos bebês pelos pais____________________________77
Quadro 6. Custeio da criação dos Expostos_________________________________ 94
Quadro 7. Criadores com mais de três expostos_____________________________121
Quadro 8. Padrinhos e madrinhas de mais de um exposto_____________________138
Quadro 9. Idade do falecimento das crianças expostas________________________145
Quadro 10. Instituições de Acolhimento de Meninas_________________________150
Quadro 11. Estabelecimentos de Companhia de Aprendizes de Marinheiros______ 155
Quadro 12. Instituições de Colônia Agrícola e/ou Industrial___________________156
Quadro 13. Livro de Matrícula dos Expostos da Câmara Municipal de Ouro Preto_160
Quadro 14. Condição dos Expostos maiores de 7 anos_______________________ 163
Lista de Figuras
Figura 1. Planta de Vila Rica da população de Nossa Senhora do Pilar de Vila Rica em
1798, elaborado pelo Vigário Vidal José de Sales_____________________________83
Figura 2. Folha documental da Lista de Matrícula dos expostos de Vila Rica______109
Lista de Tabelas
Tabela 1. Matriculantes Mulheres e Homens por décadas_____________________115
Tabela 2. Ocupação e Status dos Criadores________________________________117
Tabela 3. Números de Batismo de expostos por décadas de 1770-1849__________126
Tabela 4. Números de Lista de Matrículas de expostos por décadas de 1770-1849_127
Sumário
Resumo_____________________________________________________________ 12
Introdução___________________________________________________________13
Capítulo 1 Sociedade, família e política assistencial
1.1 Minas: Sociedade de Vila Rica_________________________________________18
1.2 A estrutura familiar em Vila Rica_______________________________________22
1.3 Assistências aos enjeitados - caridade e filantropia_________________________28
1.4 A assistência aos enjeitados de Vila Rica_________________________________39
1.5 Tentativas de instalação da Roda dos Expostos em Vila Rica_________________45
Capítulo 2 O Universo da Exposição de Crianças em Vila Rica
2.1 O abandono: Reflexão Historiográfica__________________________________55
2.2 Antropologia e a Circulação de Criança_________________________________66
2.3 A exposição: amor ou desamor _______________________________________75
2.4 Assistência Camarária ______________________________________________90
Capítulo 3 A criança e a família criadeira
3.1 Recebendo os Expostos ____________________________________________ 107
3.2 A relevância do Batismo ____________________________________________ 129
3.3 Estratégias de apadrinhamento________________________________________133
Capítulo 4 Destinos prováveis
4.1 A morte na puerícia ________________________________________________140
4.2 Assistência ao exposto após os sete anos de idade ________________________145
Considerações Finais_________________________________________________168
Fontes e Referências Bibliográficas_____________________________________170
RESUMO: Esta dissertação busca entender as medidas assistenciais da Caridade e da
Filantropia destinadas às crianças enjeitadas de Vila Rica, no período de 1775 a 1850.
Foi a partir de meados do século XVIII, que a Câmara de Vila Rica decidiu destinar
recursos para os cuidados dos enjeitados, devido o crescimento de casos de abandono e
por imposição da coroa portuguesa, para que fosse adotada medida similar à de
Portugal. No final do século XVIII com o Alvará Pombalino de 1775 e no decorrer do
XIX, houve uma necessidade de investir nos tratamentos destinados aos expostos, pois,
nesse momento, houve uma substancial transformação na atuação do Estado
Monárquico em relação ao cuidado com os enjeitados e os órfãos desvalidos. Durante
esse período o Estado assumiu um papel assistencial, buscando regularizar e fiscalizar
os recursos destinados às Santas Casas de Misericórdia, principal instituição que recebia
a Roda dos expostos. Nessa ocasião principalmente em Portugal e em outros países da
Europa começaram a difundir as Rodas dos Expostos no sentido mais filantrópico. Esse
caráter público organizacional surgiu com a integração da atuação da Filantropia, que
criava novas instituições e controlava as que já existiam, como as Santas Casas da
Misericórdia. Essa maneira de atuar do Estado tinha como objetivo prover a assistência
à criança abandonada, para que essa não se tornasse uma pessoa vadia. Essa forma de
auxílio disseminou para algumas cidades do Brasil, porém uma das mais importantes
Ouro Preto não possuiu o auxilio da Roda dos Expostos.
Palavras-chaves: políticas assistenciais; Caridade e Filantropia; crianças enjeitadas.
13
Introdução
A proposta desta dissertação é analisar as formas assistenciais oferecidas às
crianças abandonadas1 de Vila Rica,2 entre o final do século XVIII e a primeira metade
do século XIX. A assistência à criança enjeitada era feita, principalmente, por meio da
caridade. Esse tipo de auxilio foi idealizado pela sociedade e pelas autoridades
ouropretanas como sendo a maneira eficaz de auxílio; entretanto, não contemplou a
preocupação de modificar a ordem vigente ou a cultura do abandono, visto que tal
prática não era condenada socialmente. A existência de crianças expostas permitia a
prática da piedade, da misericórdia e da caridade, para com o próximo, simbolizando
ações virtuosas de um cristão que receberia beneficências e a promessa de salvação da
alma.
As instituições da América Portuguesa ofereciam abrigo e proteção às crianças
abandonadas. Essas instituições se baseavam no modelo da Coroa portuguesa, que
aparelhava as suas Santas Casas de Misericórdias com as Rodas dos Expostos. Onde
não houvesse esse estabelecimento era a instituição da Câmara Municipal que ficava
com o encargo de acolher essas crianças. Ambas as instituições, a princípio, seguiam os
1Para entendermos o que seriam essas crianças abandonadas, procuramos identificar a denominação destas, no período por nós proposto. Notamos, por meio das documentações e dicionários da época, que a terminologia utilizada para se referir à criança abandonada dos séculos passados era de criança enjeitada e/ou exposta, sendo alterada essa denominação, a partir do final do século XIX, para menor infrator. Para descrevermos o que seria uma criança exposta e/ou enjeitada no período colonial, utilizamos como referência documental os dicionários de Raphael Bluteau de 1712 e o de Morais Silva de 1798. No dicionário do Raphael Bluteau, a criança abandonada era descrita como enjeitada, desamparada pelos pais e exposta na Igreja, na porta de um convento ou em uma casa particular ou mesmo em qualquer lugar da rua. Ainda de acordo com Bluteau, o enjeitamento se dava por causa de amores ilícitos e concubinatos de seus pais, assim como pela pobreza que obrigava os pais a enjeitarem os filhos. No dicionário de Moraes Silva, o significado da criança enjeitada é descrito de forma breve. O autor não define, detalhadamente, o que seria uma criança enjeitada e a causas das exposições, como fez Raphael Bluteau. Moraes esclarece que a denominação de “criança abandonada” não fazia parte do contexto intelectual do final do século XVIII. § Expor: V. g. engeitar a criança, o filho §. Engeitar de filho; privá-lo dos direitos de filho, não conhecer por filho Ferr Brisso, 4 – sé. 5. eu o engeito de filho para sempre1. Como podemos perceber nenhum desses dicionários fizeram menção à utilização da expressão “criança abandonada”, no sentido de abandonar uma criança, mas sim de “criança enjeitada”. 2Posteriormente torna-se a capital de Minas Gerais.
14
ensinamentos da Igreja Católica, que tinha como principal preocupação a salvação das
almas das crianças. Por isso, quando uma criança era acolhida, a primeira providência
tomada pelos funcionários da instituição era o batismo, garantindo sua salvação em caso
de falecimento. Em Vila Rica, conforme demonstrado, até meados do século XIX, foi a
instituição da Câmara a responsável pelos enjeitados.
A assistência caritativa passou por algumas modificações no final do século
XVIII e no decorrer do século XIX. Nesse período, pensamentos de cunho iluminista
alcançaram a América Portuguesa o que a levou a defender a idéia de que o auxilio dado
aos expostos não deveria se restringir à salvação de sua alma; Era preciso cuidar deles
enquanto vivos e direcioná-los para uma formação laboral foi uma prática por ela usada,
já que o grande número de expostos e de pessoas sem ocupação constituía um risco à
estabilidade social. Nessa fase, os ideais filantrópicos iniciavam, também, uma nova
forma de assistência.
A propagação das Rodas dos Expostos fez parte das medidas filantrópicas. Após
a independência do Brasil, notamos que a tentativa de implantação de mais Rodas
ressaltava o ideal de que o crescimento da população representava a riqueza da “pátria”.
Por esse motivo da Roda foi passou a representar um “um manancial de trabalhadores
para a agricultura e manufaturas, havendo mesmo quem especulasse se daí não sairiam
os soldados ideais, que teriam no Estado seus verdadeiros pais; noção que levou reinos
muito distintos, como França e Russia a defenderem a generalização da instituição”.3
Novas instituições surgiram para abrigar, educar e ensinar algum tipo de ofício
às crianças carentes maiores de sete anos de idade. Essas instituições foram os Colégios
Pios, Escolas de Aprendiz de Arsenal de Guerra e de Marinheiros, Recolhimento e
Asilos para órfãs e Colônias Agrícolas e Industriais.
3VENÂNCIO, Renato Pinto. Da Caridade à Filantropia: assistência à infância no Brasil, 1750-1850. UFOP, 2008, p. 8
15
Todavia, em Ouro Preto, a assistência caritativa individual e camararia, herdeiras
do período colonial, foi mantida. Entretanto, acreditamos que o caso de Ouro Preto não
se constituía uma exceção. Aliás, documentos evidenciam o oposto. Apesar das
preocupações filantrópicas das autoridades do Império e dos exemplos de algumas
cidades, principalmente a da Bahia e a do Rio de Janeiro, a maioria das urbes brasileira
do século XIX manteve os padrões assistências da época colonial.
No final do século XIX, iniciou-se o fechamento das Rodas dos Expostos,
procedimento que ocorreu muito lentamente, adentrando no período republicano.
Contrariamente ao que ocorreu em Portugal e em as outras nações européias, o
fechamento das Rodas não foi acompanhado por implementação de políticas
assistenciais, como auxílio às famílias pobres e instalação de creches.
Diferentemente de Portugal ou de outros reinos europeus, o fechamento da Roda não foi acompanhado por políticas assistenciais de socorro as lactantes, auxílio a famílias pobres ou instalação de creches populares. Tal evolução, na primeira república brasileira, abriu caminho para a progressiva dependência da assistência à infância em relação à filantropia privada.4
Neste contexto, esse estudo se insere no campo da História Social e
Demográfica. Nessa perspectiva historiográfica buscamos ampliar os estudos acerca de
sujeitos históricos que, até então, eram mencionados de forma breve, como, por
exemplo, as mulheres, as crianças, os pobres, os vadios; enfocando suas vivências
culturais, sociabilidades e experiências.
A preferência do espaço geográfico se deve ao fato de ter sido Vila Rica capital
da capitania e, posteriormente, a Capital da província, elevada à condição de cidade
imperial do Ouro Preto, em 1823. Além disso, destaca-se sua importância não só como
centro minerador no período colonial, mas também como uma localidade que se
manteve em destaque na vida política e social. 4VENÂNCIO, Renato Pinto. Da Caridade à Filantropia...p, 15
16
Foram escolhidos como marcos cronológicos a publicação da lei de 1775, que
representou uma grande mudança na organização e na forma de estruturar a prestação
assistencial aos necessitados, o que gerou perceptíveis transformações sociais e políticas
no ambiente colonial da época. Com o objetivo de acompanhar e analisar
profundamente essas transformações, o estudo foi delimitado ao período compreendido
entre 1775 e 1850. A escolha desse marco temporal teve por objetivo constatar, em que
medida, o período pós-independência manteve ou não, as formas de auxilio colonial.
Para desenvolver este estudo uma grande variedade de fontes documentais foi
utilizada: os assentos paroquiais da Matriz da Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto,
como batismo e óbitos; a documentação camarária (Matrícula de Expostos, Receita e
Despesas da Câmara e Listas Nominativas) disponível no Arquivo Público Mineiro da
Câmara Municipal de Ouro Preto (APM-CMOP). Ainda, dados provenientes das Listas
Nominativas da Província de Minas Gerais do ano 1831, documentação sob custódia do
Arquivo Público Mineiro (APM) que foi disponibilizada em cd-rom pelo Centro de
Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Além disso, a documentação dos Relatórios dos Presidentes da
Província de Minas Gerais.
A referida dissertação foi dividida em quatro capítulos. O primeiro, Sociedade,
família, política assistencial, tem como objetivo trazer de forma sucinta, informações a
respeito da cidade de Vila Rica, sua localização, formação e principais características.
Abordará, também, de forma resumida o universo da família mineira colonial.
Discutimos, ainda, a construção de conceitos assistências (caridade e filantropia), as
formas de auxílios em relação às crianças de Vila Rica e as tentativas de instalação da
Roda dos Expostos em Vila Rica.
17
No segundo capítulo, O Universo da exposição de crianças em Vila Rica,
procurou-se analisar as propostas historiográficas brasileiras, portuguesas e de outros
países, que pesquisaram sobre a história da criança abandonada. Investigamos, também,
a ampla mobilidade das crianças de Vila Rica, e o mistério que envolve a prática do
abandono. Analisamos, ainda, os escritos deixados com os bebês abandonados, e os
locais que os mesmos foram expostos. Sendo essas duas últimas análises uma forma
“paradoxal” de avaliarmos o abandono. Será que era um gesto de amor ou desamor da
pessoa que o abandonou? Abordamos, também, a trajetória da assistência camarária de
Vila Rica para com os expostos.
No terceiro capítulo, A criança e a família criadeira, investigamos quem
seriam esses criadores de expostos, quantos expostos eles aceitaram em seus lares e por
qual motivo os acolheram. Analisamos a ocorrência do abandono e as estratégias de
compadrio. Para tal analise utilizamos fontes como: as atas de batismo do banco de
dados da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, e a Lista de Matrícula da Câmara de Ouro
Preto do Arquivo Público Mineiro.
No quarto capítulo, 4 Destinos prováveis, em alguns casos a criança
abandonada se deparava com a morte precoce. As que sobreviviam, às vezes
(pouquíssimos deles), eram resgatadas pela família de origem. No entanto, muitas delas
foram destinadas a trabalho forçado ou enviadas para instituições de auxílio. Essas
instituições eram designadas para crianças maiores de sete anos de idade. Observamos
que muitas delas, principalmente, as do final do século XVIII e as do decorrer dos
séculos XIX, tiveram como proposta atitude de cunho filantrópico. Para Ouro Preto,
notamos que, houve iniciativas assistenciais de cunho filantrópico, mas, parece que até
metade do século XIX, tal assistência não fincou, permanecendo o auxílio por meio da
caridade.
18
Capítulo 1 – Sociedade, família, política assistencial
1-1 Minas: sociedade de Vila Rica
Na capitania havia, na expressão já tão conhecida de Antonil, “a mistura de toda
condição de pessoas”5 e de toda etnia - africanos, indígenas, mestiços, portugueses e
outros. Nela, os habitantes ocuparam-se de atividades muito diversificadas: mineração,
negociação, comercialização, artesanato de variados ofícios e agricultura.
A relação senhor-escravo era mais flexível nessa sociedade, marcada pela
pluralidade e mobilidade social e econômica. A presença das negras de tabuleiros,
algumas delas, alforriadas, tinha o seu próprio comércio e atingiam, assim, certa
ascensão social e econômica6. Outra influência era a presença de escravos por “jornal” e
“coartação” que trabalhavam para os seus senhores e em troca desse trabalho recebiam
sua alforria.
Os registros de batismos de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto7 indicam que
altos índices de alforrias ocorreram na década de 1750. Porém, foi à década de 1770 e a
primeira metade da década de 1780 o período de maiores concessões de alforrias na pia
batismal, coincidindo com a crise da mineração8. Vale ressaltar, a título de informação,
que, em 1776, uma população de 70.769 brancos, 82.000 pardos e 167.000 pretos.
Convertendo estes números em porcentagens, temos que a população de mestiços e
5ANDREONI, João Antônio. Cultura e opulência do Brasil. São Paulo, 1967, p. 263. 6PAIVA, Eduardo França. Escravidão e Universo Cultural na Colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte, UFMG, 2006, 31-40. Do mesmo autor ver em PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo, 1995. FARIA, Sheila de Castro. Mulheres forras – riqueza e estigma social. Revista Tempo. Nº 09, jul/2000. pp. 65-92 7A Matriz da Nossa Senhora do Pilar e a Matriz da Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias foram erguidas no início do século XVIII. Tais Matrizes além de terem a sua importância histórica enquanto construção da cidade tem um grande acervo documental de batismo, matrimônios e óbito. 8LIBBY, Douglas Cole e BOTELHO, Tarcísio. Filhos de Deus: Batismos de crianças legítimas e naturais na Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, 1712-1810. Revista Varia História, n 31 janeiro, 2004.
19
negros somava assustadoramente 77,9%, em oposição à dos brancos que somava os
22,09% restantes.9
Nessa sociedade, os mestiços sofriam muitas formas de preconceito. Eram vistos
pelas autoridades como perturbadores da ordem, talvez pelo fato de representarem o
fruto de uma mistura racial não bem aceita pela sociedade branca e elitista e também
por não poderem, muitas vezes, ter acesso aos padrões sociais estipulados por ela. No
século XIX, percebemos poucas modificações em relação àquelas que ocorreram no ano
de 1776, sendo que em 1808 a população branca representava 24,63%, e a mestiça e a
negra 75,15%10.
Vila Rica mostrou-se como uma sociedade dinâmica de traços singulares.11
Porém, não podemos negar que foi marcada pela pobreza. Segundo Laura de Mello e
Souza, o “falso fausto” do barroco mineiro fez-se presente na capitania do ouro. A
maioria da população era escrava ou dela descendia, também havia uma parcela
representada de livres e libertos pobres, que viviam de trabalhos “esporádicos, incertos e
aleatórios”. As autoridades consideravam esses homens e mulheres como vadios e
perturbadores da ordem12.
Após três décadas de franca produção aurífera, em meados do século XVIII, o
ouro de aluvião começava a se tornar escasso e a crise econômica foi se agravando. A
crise aprofunda-se por volta da década de 1780.13 A decadência do ouro provocou em
9SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro...., p.203. 10SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro...., p.203-204. 11Em Minas, Portugal impôs um controle mais rigoroso, se comparado com as outras capitanias, sobretudo devido à presença de metais preciosos. No entanto, o interesse da população nem sempre coincidia com o da Coroa. Com isso, a Metrópole, na busca de maior adesão às suas ações, ora agia com cautela, ora com rigor. Ver em: SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII, 4 ed. Rio de Janeiro, Graal, 2004, p. 131-202. Ver em: FRAGOSO, João ET alli (orgs). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro, 2001 12SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro...., p.131-202. 13O resultado foi a intervenção da Coroa com a cobrança de fisco sobre a população, para que ela completasse as cem arrobas anuais. Com isso, a insatisfação da elite local se fez presente na Inconfidência Mineira. Pois, esse movimento conjurado em “1789” estava imbuído da filosofia iluminista do século XVIII, que propunha abolição dos escravos e reformas econômicas em conjunto com outras áreas, como na Igreja, que receberia os seus próprios tributos e se comprometeria a instalar educandários e as Santas
20
Vila Rica uma emigração de pessoas para outras regiões das Minas, em busca de outras
áreas de trabalho. De acordo com Saint Hilaire, Vila Rica no século XIX “revelava-se
desoladora”, pois passada a “febre do ouro”, a economia estagnou-se e apresentava
franca recessão populacional14 nos núcleos urbanos,
Há, em Vila Rica, cerca de 2000 casas. Esta cidade era próspera, quando as terras que o rodeiam desde a abundância de ouro, mas como este metal tornou-se mais raras ou mais difíceis de extrair, os moradores foram gradualmente para tentar a sorte em outro lugar, e em algumas ruas, as casas estão quase desertas. A população de Vila Rica, que anteriormente ascendia a 20 mil almas, está agora reduzido a cerca de 8000, e esta cidade será abandonada apesar de ter sido a capital da província o capital administração e à casa de um regimento15.
Embora Vila Rica apresentasse uma evasão populacional que atingiu vários
setores da sociedade, como a emigração de homens em proporção maior que as
mulheres para outras regiões das Minas, ela não deixou de apresentar-se como sede
administrativa da capital da capitania, sendo elevada à categoria de cidade, com o nome
de Ouro Preto, em 20 de março de 1823.
Havia em Vila Rica e em suas proximidades agricultura, pecuária, mineração,
comércio e atividades artesanais que empregavam alfaiates, costureiras, fiandeiras,
sapateiros, latoeiros, seleiros, tintureiros, mineiros e faiscadores. Havia casas comerciais
voltadas para a venda de produtos da área, fábricas de louça e pólvora. A maioria dos
homens livres ocupava as atividades administrativa, eclesiásticas e militares. As
Casas de Misericórdias, instituição que ficaria a cargo da instalação da Roda dos Expostos. As idéias reformistas dos inconfidentes se assemelhavam ao ideário vivido na Europa na metade do século XVIII, que defendia a afirmação de que a riqueza de um reino era medida por seu alto índice populacional, mas com características ocupacionais. 14LUNA, Francisco Vidal e COSTA, Iraci del Nero da. Minas Colonial: Economia e Sociedade. São Paulo, FIPE-PIONEIRA, 1982, p.57-64. 15SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagens pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte. Editora Itatiaia/Edusp, 1975, p. 71-73.
21
mulheres concentravam-se nos setores de secos e/ou molhados – as famosas
quitandeiras, além de outras que eram lavadeiras, criadas e parteiras16.
A presença do governador, dos agentes principais do regimento, dos tribunais e da administração inicial da província de Vila Rica mantém um comércio de importação considerável, e vemos um monte de lojas muito bem abastecido17.
Claudia Damasceno e Venâncio mencionam que no século XIX, houve uma
“pobreza relativa” em Vila Rica. A partir do testemunho de viajantes, como John Mawe
e Saint-Hilaire, os autores sublinham o grande número de casas “abandonadas” e
revelava-nos que o grande número de casas “quase abandonadas” (isto é, muitas vezes
desocupadas). Tratava-se de um sinal de decadência, embora em outros aspectos, como
na administração e no comércio, Vila Rica ainda mantivesse algum sinal de
dinamismo18.
A área urbana de Vila Rica era composta por duas freguesias N. S. do Pilar e
Antônio Dias, que centralizavam 50,77% dos habitantes, sendo 48,13% dos livres e
56,56% dos cativos. Estes centros principais concentravam-se 85,52% dos indivíduos
nas atividades administrativas, 79,20% no setor militar, 82,50% no religioso, 76,31%
nas profissões liberais, 80,62% no comércio e 78,98% em outros serviços. Padre Faria
16COSTA, Iraci Del Nero. Populações Mineiras: sobre a estrutura populacional de alguns núcleos mineiros no alvorecer do século XIX. São Paulo, Instituto de Pesquisas Econômicas, 1981, p. 65-76 17LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Tradução de Milton da Silva Rodrigues. Belo Horizonte/São Paulo. Editora Itatiaia/Edusp, 1975, p 149. 18FONSECA, Cláudia Damasceno e VENÂNCIO, Renato Pinto. Vila Rica: prospérité ET déclin urbain dans le Minas Gerais (XVIIIe-XXe siècles). Artigo publicado em: Laurent Vidal. (Org.). La ville au Brésil (XVIIIe-XXe siècles) naissances et renaissances. Paris: Rivages des Xantons, 2008, v. p. 179-204. A proposta dos autores é qualificar e relativizar a noção de decadência urbana – em especial para Vila Rica, pois para ela o peso demográfico de uma cidade ou Vila, não representa tamanha importância do local. Porquanto, é verdade que alguns funcionários e viajantes relataram que Vila Rica no início do século XIX, apresentava esgotada de minas, casas abandonadas e mal conservadas, porém eles próprios descreveram à existência de inúmeras lojas e um comércio de importação considerável, “o que sugere que houve um número significativo de pessoas ricas para consumir esses produtos. Além disso, ainda de acordo com a autora várias foram as fontes que revelam que de fato as funções administrativas, a presença de magistrados, advogados e autoridades religiosas, a abundancia e a diversidade de produtos vendidos, o número e o tamanho das casas, a riqueza de igrejas, polidez e a cultura dos habitantes também foram fatores que conferem prestígio às cidade e às vezes tinha mais do que o número de habitantes. Caso parecido com o de Vila Rica.
22
contava com 6,98% da população total, 53,85% colaboravam com as atividades de
roceiros e lavradores e 53,77% se enquadravam nas funções de faiscadores e mineiros.
Santa Ana do Morro, a população se compunha de 14,56%, sendo que 36,40% dos
habitantes pertenciam às atividades de mineiros e faiscadores e 79,80% desses
indivíduos atuavam no setor secundário. No Alto da Cruz a população total compunha-
se de 11,87%, 29,35% representavam os faiscadores e mineradores, pessoas essas
acopladas ao setor secundário; 55,96% pertenciam os ofícios de alfaiates, carpinteiros,
ferreiros, latoeiros e sapateiros. Por fim, o bairro das Cabeças correspondia a 15,82%
dos habitantes totais, sendo que 70,58% trabalhavam com atividades artesanais e
11,76% localizavam-se em funções secundárias19.
Localidades de Vila Rica no século XIX, juntamente com outras províncias de
mineiras também se mostraram adequadas à nova realidade de tal maneira que
encontraram nas atividades manufatureiras - dentre outras – uma alternativa para o
dinamismo econômico. Nesta perspectiva, sempre existiu uma “acomodação evolutiva
da economia”, cujas atividades comerciais e agrícolas desenvolviam em consonância
com a mineração. Contudo, houve um aumento do número de expostos encontrados em
Vila Rica entre 1770 até meados de 1840, ao mesmo tempo em que os problemas
econômicos aumentavam devido à escassez do ouro.
1-2 A estrutura familiar em Vila Rica
Vila Rica, como outras regiões da comarca de Minas, foi inicialmente ocupada
por homens itinerantes, aventureiros e forasteiros ávidos de enriquecimento rápido.
Com esse perfil, eles acabavam não criando vínculos estáveis com a terra, acarretando a
19LUNA, Francisco Vidal e COSTA, Iraci del Nero da. Minas Colonial..., p.64-69.
23
desordem da sociedade e a falta de controle do Estado sobre ela. No entanto, para o
Estado o casamento era uma forma de normatizar e disciplinar a população, garantindo
laços de estabilidade determinados por meio da formação da família. Para que isso
ocorresse a Coroa Portuguesa e a Igreja Católica apresentaram-se “como parceiras em
uma batalha essencial na guerra pela disseminação e preservação da família legítima”20.
Que os povos das Minas por não estarem suficientemente civilizados e estabelecidos em forma de repúblicas regulares, facilmente rompem em alterações e desobediências e se lhe devem aplicar todos os meios que os possa reduzir a melhor forma: me parecem encarregar-vos como por esta o faço procureis com toda diligência possível para que as pessoas principais e ainda quaisquer outras tomem o estado de casados e se estabeleçam com suas famílias reguladas na parte que elegeram para a sua povoação, porque por este modo ficarão tendo mais amor à terra e maior conveniência do sossego dela e conseqüentemente ficarão mais obedientes às minhas reais ordens e os filhos que tiverem do matrimônio o façam ainda mais obedientes e vos ordeno me informeis se será conveniente mandar eu que só os casados possam entrar na Governança das Câmaras das vilas e se haverá suficiente número de casados para se poder praticar esta ordem (...)21.
Antônio Manuel Hespanha chama essa política do Estado de "coisas públicas",
“(...) sendo a casa a primeira comunidade, as leis mais necessárias são as do governo da
casa; e sendo, além disso, a família o fundamento da república, o regime (ou governo)
da casa é também o fundamento do regime da cidade"22.
As Ordenações Filipinas (1603), que eram a legislação civil que regia o Império
Ultramarino Português no século XVIII, deixavam claro que cabia à família educar,
alimentar e vestir, fossem os filhos legítimos ou não23. Philippe Áriès descreve que na
Europa nos séculos XVII e XVIII ocorreriam mudanças significativas na atitude da
família em relação às crianças. Elas, que antes conviviam num círculo social mais
20FIGUEIREDO, Luciano R. Q. Barrocas Famílias. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 21. 21Sobre casarem os homens destas minas e mestres nas vilas para ensinarem rapazes, carta do Governador Dom Lourenço de Almeida ao rei, 28 de setembro de 1721. Revista do Arquivo Público Mineiro, v.31, 1980. p. 95. 22Natividade, 1653, op. I, cap.1, p.2, n.10. Citado por: HESPANHA, António Manuel. História de Portugal Moderno; político e institucional. Lisboa: Universidade Aberta, 1995. p. 114. 23Ordenações Filipinas. Livros IV e V. Livros que regem os direitos das pessoas que compunham essa sociedade. http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm
24
intenso, passam a ter na família um espaço social privilegiado de aprendizagens
sociais24. Assim, a segunda metade do século XVIII foi marcada pelo acirramento das
políticas do Estado para disciplinar a família, principalmente, no que diz respeito aos
direitos e deveres de pais e filhos.
Apesar do grande interesse das autoridades seculares e eclesiásticas de Minas
para que houvesse o matrimônio, foi grande a dificuldade para a formação de famílias
religiosamente constituídas no período inicial da exploração do ouro. No princípio do
século XVIII a maioria da população de minas era composta por homens livres e
escravos, com números superiores ao de mulheres. Este fato era uma das causas da
diminuição do sacramento do matrimônio25.
O casamento, no período colonial, nos indica a importância da igualdade social
e econômica na formação dos enlaces matrimoniais. Maria Beatriz Nizza da Silva
argumenta que, durante todo o século XVIII os governantes da região de Minas
preocupavam-se com a falta de mulheres brancas para promover o casamento das elites
locais, assim, de acordo com a autora, os governantes sugeriram ao rei que proibisse às
famílias de encaminhar aquelas mulheres para a vida religiosa, pois elas eram raras
naquele território. Em contra partida havia um grande número de mulheres pardas
negras livres e forras; com isso o mercado matrimonial ficou restrito para a maioria
dessas mulheres26. Porém, a valorização social do casamento e as exigências
burocráticas e financeiras impostas pela Igreja colaboraram para o afastamento da maior
parte daquelas mulheres do sacramento do matrimônio27. Entretanto, é preciso
considerar que a Igreja procurava facilitar o acesso ao casamento, principalmente, dos
mais pobres “dispensando-os dos empecilhos burocráticos e financeiros, desde que
24ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Brasileira, 1978, p. 225 25LEWKOWICZ, Ida. As mulheres mineiras e o casamento.... p. 14-15. 26SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: T.A.Queiroz/Edusp, 1984. p. 43. 27SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil.....p. 43.
25
apresentassem testemunhas que comprovassem o seu estado livre de solteiro e
documentos atestando seu estado de pobreza”28. Contudo, mesmo com as facilidades
disponibilizadas pela Igreja em relação à documentação para o matrimônio, temos que,
muitas famílias mineiras viviam em concubinato e uniões consensuais, comportamento
conjugal também vivenciado em Portugal pelos imigrantes portugueses que vieram do
norte de Portugal para Minas29.
Esses fatores, ao que tudo indica, teriam dificultado a generalização de
casamentos, criando condições para a predominância de fogos chefiados por mulheres
solteiras, o alto índice de filhos ilegítimos e o grande número de crianças
abandonadas30, perfil em que estava inserido em Vila Rica.
A maioria das famílias de Vila Rica, entre meados do século XVIII e início do
XIX, era composta por um número elevado de domicílios chefiados por mulheres,
disparidade contrária ao que era visto no início da conformação de Vila Rica, em que a
maioria da população era composta por homens. Esse fato aconteceu devido à
progressiva decadência do ouro e à emigração da população masculina em busca de
melhores oportunidades de trabalho nas zonas de fronteira agrícola - “a transição
econômica que ocorreu afetou todos os setores da sociedade, desde a (...) elite ao recém-
chegado escravo africano e essa transição representa o contexto para o exame da família
sustentada pela mulher”31. De acordo com Iraci Del Nero da Costa, Vila Rica em 1804
preponderava o sexo feminino 51,13%:
Fato significativo refere à discrepância do peso relativo dos sexos quando considerados, isoladamente, escravos e livres: para os
28BRUGGER, Silvia M. J. Legitimidade, casamento e relações ditas ilícitas em São João Del Rei (1730-1850). IX Seminário sobre economia mineira. Vol. 1 Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2000, p. 58. 29RAMOS, Donald. From Minho to Minas: the Portuguese Roots of the Mineiro Family. Hispanic American Historical Review. Copyright 1993 by Duke University Press, p 641. 30SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil.....p. 43. 31RAMOS, Donald. A mulher e a família em Vila Rica do Ouro Preto: 1754 – 1838. In: Congresso sobre a História da População na América Latina, 1989, Ouro Preto. Anais... São Paulo: Fundação SEADE, 1990. p. 55.
26
primeiro dominavam os homens (57,99%); quanto aos últimos prevaleciam as mulheres (55,31%). A razão da masculinidade relativa aos escravos (138,07 homens para 100,00 cativas) explica-se, em parte, pelo destino que se lhes dava – a atividade mineradora – a exigir, preferencialmente, mão –de –obra masculina. Par os livres a razão de masculinidade correspondeu a 80,80. Estes resultados rompem o relativo equilíbrio existem entre os sexos ao se considerar a população total – nela computamos 95,56 homens para 100 pessoas do sexo oposto32.
Tal predominância feminina, em Vila Rica, nos levou a perceber uma
modificação dos criadores de expostos. Como demonstrado pelo gráfico 133 antes da
decadência do ouro, a maioria dos criadores eram homens. Depois percebemos que isso
começou a se modificar a partir das décadas de 1790 e 1800, pois a proporção de
mulheres criadoras era maior que dos homens, ambos se igualaram no ano de 1810, e
nas décadas seguintes os homens começavam atingir a sobressair novamente.
Entretanto, esse assunto será analisado com mais particularidade no terceiro capítulo.
Gráfico 1 - Número de criadores ao longo das décadas de 1770 a 1840
0
20
40
60
80
100
120
1770 1780 1790 1800 1810 1820 1830 1840
Décadas
Nú
mero
de c
riad
ore
s
Mulheres
Homens
Donald Ramos, ao analisar os registros paroquiais de batismo do século XVIII,
encontrou alto número de crianças ilegítimas, o que evidenciou o significativo número
32COSTA, Iraci Del Nero. Populações Mineiras...,p. 66 33Fonte: APM, CMOP 3/4 Caixa 01 Doc. 27.
27
de mulheres solteiras chefes de domicílio deste período. O autor também observou a
representatividade de chefias femininas no século XIX. No entanto, não foi necessário
utilizar os registros de batismo como fizera para o século XVIII, uma vez que os censos
populacionais de 1804 e 1838 já arrolavam tais chefias.
(...) em 1804, três quartos completos da população adulta livre era solteira. Destas mulheres adultas, 764 sustentavam sua própria família – número este que representa 45% de todas as famílias. Em 1838,(...) as mulheres abrangiam 57,1% da população livre. Destas mulheres, apenas 26,8% tinham sido casadas; o número cresce para 35,4% para as mulheres adultas acima da idade legal de casamento, doze anos. Assim, em 1838 dois terços das mulheres não eram casadas. Destas mulheres, 293 sustentavam sua própria família – 40,3% de todas as famílias34.
As mulatas representavam a maior parte de chefes de domicílio. No ano de 1804,
cerca de 38,2% de mulatas chefiavam domicílios, seguidas pelas crioulas (38,1%) e
brancas (10,5%). Já para Ouro Preto, em 1838, o autor observou 52,2% de chefes
femininas mulatas, seguidas pelas brancas 30,3% e crioulas 12,6%35. Assim, grande
parte dessas mulheres buscavam recursos econômicos para sustentar a sua família.
Como dito acima, algumas trabalhavam como quitandeiras possuindo até mesmo o seu
próprio negócio, outras, como parteiras, lavadeiras, fiandeiras, costureiras e
prostituição, sendo essa última “profissão” bastante perseguida pelas autoridades.
Todavia, a administração local também ocupou-se, se não direta, ao menos indiretamente, da prostituição nas vilas mineiras. Sem condições materiais de sustentar a prole, fruto de relacionamentos ilícitos, sobre tais mulheres recairia, segundo Donald Ramos,a responsabilidade pela expansão dos enjeitados36.
É muito provável que grande parte destas mulheres solteiras chefes de domicílio
estaria vivendo em uniões consensuais, uma vez que, para as mais pobres, a opção por
34RAMOS Donald. A mulher e a família em Vila Rica do Ouro Preto..., p.155. 35RAMOS Donald. A mulher e a família em Vila Rica do Ouro Preto...,p.155. 36RAMOS, Donald. ‘Marriage and the family in colonial Vila Rica’, em Hispanic American Historical Review, vol. 55, nº 2, 1975. Apud FIGUEIREDO, Luciano. O Avesso da Memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no Século XVIII, Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília, DF: Edunb,1993, p.84
28
uma relação consensual poderia ter significado uma forma de sobrevivência e havia uma
forte presença de crianças definidas nos registros de batismo como “naturais”. Desta
forma, é provável de que o fato de muitas mulheres serem mães de filhos naturais seja
um indício de que muitas delas estariam vivendo em uniões consensuais ou fortuitas no
momento do batismo. Por outro lado, algumas destas mulheres foram celibatárias e
outras nunca constituíram famílias ilegítimas.
As mulheres mais pobres, de acordo com Donald Ramos, teriam condições
menos propícias para conservar os filhos junto a si, tanto que muitas os abandonavam.
O autor considera, assim, que o baixo status econômico que muitas mulheres solteiras
possuíam, incapacitava-as para sustentar famílias grandes, principalmente nas áreas
urbanas, que é o caso de Vila Rica.
Os censos de Vila Rica, do ano de 1804, observou uma média geral de 2,2 filhos por fogos sob a chefia de mulheres solteiras contra 3,2 das mães casadas. Já para Ouro Preto em 1838, constatou a média geral de 0,9 filhos por fogos sob o comando das mulheres solteiras contra 3,0 das casadas37.
Nesse contexto, de sociedade em fase de mudanças, inseriam-se os enjeitados
em estudo. A economia e as famílias estavam se re-estruturando em moldes diferentes
do convencional vividos até aquele momento. A decadência do ouro e a substituição da
principal atividade econômica da época remodelaram as relações familiares e as
atividades dos trabalhadores de Vila Rica.
1-3 Assistências aos enjeitados - caridade e filantropia:
Em meados do século XIII - período tardio medieval -, a Igreja Católica se
estruturou na Europa e assumiu uma forma de governo monárquico dos cristãos. O
37RAMOS Donald. A mulher e a família em Vila Rica do Ouro Preto...,p.159.
29
catolicismo impôs normas e regulamentos em diversas áreas, como no casamento, na
moralidade familiar, na sexualidade, no batismo e nas formas de caridade. Essa última
multiplicou-se e tornou-se organizada. A caridade nesse momento deixa de ser um
monopólio dos monges38 e passa a ser um dever de todos os cristãos. As confrarias e os
pequenos hospitais começaram a surgir. Essas fundações eram constituídas por
comunidades leigas urbanas e pelos príncipes. Tais estabelecimentos foram incentivados
pela Igreja, que passou a conferir indulgências e a aceitar que legados pios fossem
destinados a instituições que se dedicavam aos pobres, doentes, desvalidos, peregrinos,
velhos, crianças abandonadas, órfãos, viúvas e mulheres. Os leigos assumiram, assim, o
compromisso da manutenção dessas instituições, os quais viam a importância da função
da caridade cristã, principalmente os abastados que utilizavam esmolas para diminuir o
sofrimento dos desamparados. Em compensação, esses homens ricos almejavam a
salvação de suas almas e mantinham o seu status quo de caridoso perante Deus e a
sociedade.
O pauper era o intercessor privilegiado em favor do pecador. Na mentalidade comum, ele era um assessor do Soberano Juiz. “O interesse do Cristão preocupado com sua salvação aproximava-o, assim, do dever de assistência imposta pela justiça”39.
Dessa forma, o gesto caritativo era exercido por meio de hospitais, de
albergarias, de conventos, de irmandades e de Santas Casas de Misericórdia. Em
Portugal, esta última instituição ficou com a responsabilidade de cuidar dos doentes, dos
38No inicio da Idade Média a pobreza passou a ser assistida pelos monges por meio da caridade e da benevolência. Incentivados pela Igreja Católica, os pobres visitavam as casas dos bispos ou frades para buscar comida e vestimentas. As crianças abandonadas, pobres e até mesmo ricas que os pais viam nessa associação um diferencial de ensino também foram assistidas por eles por meio de uma instituição que se chamava oblação. Essa instituição funcionava em mosteiros e nelas as crianças recebiam proteção, alimentação, vestimenta e educação. Essas ações fizeram com que os cleros e os leigos também praticassem caridade. Nesse período, as esmolas e o auxílio individual eram satisfatórios para abrandar a pobreza e a enfermidade e, desse modo, limitaram as possíveis formas de associação. Em meados do século XV, com o aumento da pobreza, houvesse a necessidade de criar novas e maiores instituições para atender os pobres. Ver em: MOLLAT, Michel. Les pauvres au Moyen Âge. Étude sociale. Paris: Hachette, 1978. 39MOLLAT, Michel. Les pauvres au Moyen Âge. Étude sociale. Paris: Hachette, 1978, p.12.
30
pobres e das crianças enjeitadas e, algumas delas, chegaram a ter em sua sede a Roda
dos Expostos. A Roda consistia em um tonel giratório que ligava a rua ao interior da
Santa Casa. A pessoa deixava o bebê dentro da estrutura do tonel e, ao girá-la, um sino
tocava, indicando a presença da criança. Esse sistema permitia que a mãe preservasse o
anonimato de sua identidade.
A primeira Santa Casa de Misericórdia de Portugal foi a de Lisboa, fundada no
dia 15 de agosto de 1498 pelo Rei D. Manuel I. Ela tinha como alvo “proporcionar
auxílio espiritual e material aos necessitados”. Desse modo, a Misericórdia proliferou
por todo o Império Português, desde Macau até Vila Rica. Isso ocorreu por meio do
incentivo da Coroa Portuguesa que recomendava que todas as Santas Casas de
Misericórdias deveriam seguir a legislação da Misericórdia de Lisboa. Tal legislação
abrangia cuidados com os enjeitados, que passaram a ser recebidos por meio da Roda de
Expostos, que muitas vezes eram instaladas nas Misericórdias40.
As primeiras Rodas dos expostos das Santas Casas de Misericórdias da América
Portuguesa foram criadas em 1726, em Salvador e em 1738 no Rio de Janeiro41. A
motivação para a instalação dessas Rodas teve um significado caritativo, já que tais
rodas foram estabelecidas por meio da doação de dois comerciantes abastados, que
ficaram horrorizados com a ineficiência da prestação de socorro. Isso ocorria tanto entre
particulares, quanto na Câmara, levando muitas crianças a morrerem nas ruas antes de
serem encontradas.
Para combater esse problema, foi criado em 1726, a Roda dos Expostos de Salvador, graças aos recursos doados por um rico comerciante baiano, João de Mattos de Aguiar. (...) Doze anos mais tarde era a vez do Rio de Janeiro conhecer o mesmo tipo de instituição. Seu fundador, Romão de Mattos Duarte, ao criá-la em
40RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e Filantropos: A Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Universidade de Brasília, 1981, p.1. 41VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas: Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX. Campinas, São Paulo: Papirus, 1999, p.26-30.
31
1738, admitiu em seu testamento a ineficiência, tanto do socorro particular quanta daquele promovido pela Câmara. “Tendo em vista a lástima com que perecem algumas crianças enjeitadas nesta cidade”42.
Segundo Caio Boschi, fatos como esses ocorreram porque o Estado não via
como sua obrigação o prover das assistências sociais exigidas pela sociedade.
Vale dizer que a assistência social perante o poder em Portugal estava então relegada a segundo plano. O Estado português nascera e se organizara preocupado fundamentalmente com a preservação dos interesses das classes privilegiadas, não entendendo como seu dever o provimento de serviços demandados pela sociedade. Assim, desassistidos e desamparados, os segmentos inferiores agruparam-se e desenvolveram formas de auto-preservação43.
No entanto, algumas mudanças nas motivações da prática de instalação da Roda
dos Expostos, em Portugal, atingiram a América Portuguesa, entre o final do século
XVIII até início do século XIX. Nesse contexto, também houve por toda a Europa44
42VENÂNCIO, Renato Pinto. Entregues à própria sorte: Resultado da pobreza e dos preconceitos morais da época, o abandono generalizado de bebês no Brasil colonial levou o poder público a criar instituições para proteger a infância. artigo da revista nossa História, ano 1, nº 9: Julho de 2004, p.42-48. 43BOSCHI, Caio. O assistencialismo na Capitania do Ouro.... op. Cit., p. 26-27. 44O primeiro hospital da Europa Ocidental Cristã a instituir Roda dos expostos foi o hospital do Santo Espírito in Saxia, em Roma no ano 1198, que serviu de modelo para as posteriores Rodas que começaram a surgir nas cidades da Itália (Roma (1198), Milão (1594), Florença (1660)), Portugal (Lisboa (1498) e Porto (1689)) e Espanha (Andújar antes de 1684). Entre os séculos XV a XVI, cidades como essas prestaram assistência aos expostos, fossem por meio dos hospitais ou dos hospícios; já a expansão da Roda em algumas colônias ocorreu a partir do século XVIII. Nessa mesma época, as Rodas dos expostos européias se multiplicaram. Em Roma, o hospital do Santo Espírito recebia expostos de 26 dioceses e mosteiros circunvizinhos. Em razão disso, foi permitido à cidade a instalação de outra Roda, na periferia de Viterbo, no ano de 1737. No final do século XVIII, a maior parte dos hospitais italianos possuía a Roda dos Expostos: Brescia, Paiva, Nápoles, Cosenza, Palermo, Veneza, Siena, Bolonha, Pádua, Catânia, Udine. Segundo Léon Lallemand, a primeira Roda dos Expostos da França surgiu em 1714, mas infelizmente o autor não menciona o nome da cidade. Outras três cidades da França a implementarem: Ruão em 1758, Tourraine em 1750 e de Le Mans em 1766. Na época napoleônica foi decretado, no ano de 1811, a obrigatoriedade da instalação da Roda dos Expostos em todos os hospitais do Império. Na Espanha, temos conhecimento de uma Roda em Madrid, mas não sabemos o ano certo dessa instalação. O que sabemos é que esse tipo de dispositivo foi transplantado para algumas de suas colônias, como Santiago em 1758, Arequipa em 1788 e Buenos Aires em 1779. A Rússia também aderiu ao sistema da instalação da Roda dos Expostos. Em 1715, o Czar obrigou os hospitais a receberem crianças enjeitadas, devendo ser providos de janelas apropriadas, por onde os bebês pudessem passar, sem que quem os depositasse pudessem ser identificados. Nos países protestantes, como Alemanha e Inglaterra, a forma de auxilio aos enjeitados ocorreu mais tarde. De acordo com Isabel de Sá, a assistência aí desenvolvida não coincidiu em muitos aspectos com as registradas na Europa Cristã. Em Portugal, na cidade Góis no ano 1783-84. Além de outras localidades Viana (1701), Caminha, Vila Nova de Cerveira, Valença, Valadares, Monção, Melgaço, Ponte de Lima, Arcos, Barca e Coura. Esse sistema foi transferido para todo seu Império. Na América Portuguesa temos Salvador 1726. Rio de Janeiro 1738, Recife 1789, Campos dos Goitacazes 1791, São Paulo 1825, São Luís 1829, São João Del Rei 1832, Cuiabá 1833, Porto Alegre 1837, Rio Grande 1843, Pelotas 1847, Paraíba 1857. Ver em: VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias
32
uma propagação da Roda dos Expostos. Tal ocorrência não se deu somente por causa do
aumento da exposição de crianças. Segundo Mollat, nessa época, houve uma
racionalização da sociedade, um desejo de ordem que recaía sobre as autoridades
européias. A pobreza não era mais vista como superioridade espiritual, passou a ser
vista como um problema da ordem. O pobre começa a ser visto como “vagabundo”,
“ocioso”, “criminoso” e “perturbador da ordem”.
Em todas as línguas da Europa surgiu um vocabulário truculento designando e qualificando pejorativamente os pobres. A palavra mendicante carrega-se de nuanças maldosas, inquietantes, reprovadoras. O verdadeiro pobre passou a estar comprometido com a turba de vagabundos, preguiçosos, portador de epidemias, criminosos em potencial (...). A política municipal, bem como a do Estado, em relação ao pobre tornou-se repressiva (vigilância rigorosa, envio a galeras, prisão, constrangimento a trabalhos forçados). A tendência foi transformar o hospital em uma instituição de defesa social, tanto quanto de beneficência. Surgia, assim, a “polícia dos pobres” dos tempos modernos45.
Para a autora Maria Luíza Marcílio, o objetivo do Estado era prover a assistência
à criança abandonada, para que essa não se tornasse uma pessoa ociosa. Esse caráter
público organizacional surgiu com a integração da atuação da Filantropia, que criava
novas instituições e controlava as que já existiam, como as Santas Casas da
Misericórdia.
Esse sistema de filantropia pública, associada à privada, mudou o papel caritativo da assistência das Misericórdias ao menor desvalido. No Império, as Misericórdias passaram a estar a serviço e sob o controle do Estado, por imposição de decretos provinciais, perdendo, assim, sua autonomia e parte de seu Carter caritativo.46
Caio Boschi em seu trabalho O Assistencialismo na Capitania do Ouro também
ressalta a entrada da participação do Estado na administração pública:
Abandonadas...,p.160-161, e em: SÁ, Isabel do Guimarães. A circulação de crianças na Europa do Sul:o caso dos expostos do Porto no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 67-73. 45MOLLAT, Michel. Les pauvres au Moyen Âge. Étude sociale..., p. 26 46MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 135.
33
Aos poucos, generalizou-se o entendimento de que ao Estado caberia a administração dos negócios públicos, isto é, da economia em geral, ao passo que, à piedade particular e às associações leigas se confeririam a responsabilidade e o ônus da assistência pública. Em função disso, o propósito da coesão associativa tornou-se o de servir de defesa aos interesses e aspirações comuns, através da prática de um assistencialismo que viesse substituir as manifestações e atos isolados de caridade47.
No período medieval prevaleceu o entendimento do conceito de caridade como
uma das virtudes teologáis. Tão importante quanto a “fé”, a caridade era a base do
exercício da misericórdia que permitia a salvação da alma. Entre os ricos e os pobres
havia uma complementaridade: os primeiros possuíam as chaves da terra, ao passo que
os últimos detinham as dos céus48. Os abastados utilizavam-se de doações e esmolas
para diminuir o sofrimento dos desfavorecidos e, em compensação, eles salvariam suas
almas e manteriam o próprio status quo de caridoso perante a sociedade. A doação
deveria ser feita em sigilo. Somente Deus poderia saber sobre a ação do doador.
Acreditava-se que o conformismo de ambas as funções, do doador e do receptor, não
buscava mudanças dessa ordem na sociedade49.
Para descrevermos ainda melhor o termo “caridade” nesse período, utilizamos o
dicionário do Raphael Bluteau, publicado em 1712. Essa obra lança luz sobre o que
seria a caridade e a pessoa caridosa naquele século. Segundo ele, a caridade é uma
virtude Teologal - é o amor que sentimos por Deus e, pelo amor dele, deveríamos sentir
o mesmo em relação ao próximo. Amar ao próximo com benevolência, compaixão e
misericórdia é dar esmola ao homem necessitado:
Caridade virtude Theologal, com a qual amamos a Deus por amor dele, e ao próximo por amor de Deus. (...) Ter muita caridade para o
47BOSCHI, Caio. O assistencialismo na Capitania do Ouro..., p. 27. 48“La Véritable complémentarité semble donc résider em Ceci que Le riche détient lês clés de La terre, Le pauvre celles Du ciel”, SASSIER, Philippe. Du bom usage dês pauvres: Histoire d um thème politique, XVIe- XXe siècle. Paris: Fayard, 1990, p. 53. 49BOSCHI, Caio. O assistencialismo na Capitania do Ouro. Revista de História, 116: 25-41, Jan-jun; 1984, p- 27.
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próximo. (...) Para todos tem muita caridade. (...) Ação caritativa. (como quando se diz) Ele me fará a caridade de me avisar. (...) Fazer a caridade a alguém, ensinando-o, ou fazendo-lhe outro benefício. Esmola. Homem, que faz muitas caridades. Misericórdia com os pobres50.
O mesmo se observa em A Sabedoria Descendo do Céu: Imitação de Cristo,
livro escrito em latim por Thomás de Kempis e traduzido por Fr. Antônio de Pádua e
Bellas e publicado em Lisboa no ano de 1801. No capítulo XV do livro Das obras que
procedem da Caridade, o autor nos revela com propriedade o que consistiria a caridade
para com Deus e com o próximo. Para Thomas, o perfeito caridoso não busca aparecer
para si mesmo, porém almeja que todas as coisas se façam para a glória de Deus.
A ninguém têm inveja, porque não ama particularmente algum gosto; mas deseja sobre todas as coisas gozar de Deus há Bem aventurança. A ninguém atribui algum bem, mas refere-o todo a Deus, do qual como de fonte procedem todas as coisas, no qual como em fim último descansam com sumo gozo todos os santos. O quem tivera uma faísca da verdadeira caridade! Certo que avaliaria por vaidade todas as coisas da terra51.
O dicionário da língua portuguesa de Moraes Silva, publicado em 1789, nos
apresenta o termo caridade como uma forma de “amor” em relação ao próximo.
Caridade, Amor; caridade para com Deus, e com o próximo52. Na terceira edição dessa
mesma obra, em 1831, a expressão “filantropia” se faz presente, significando amor dos
homens, da humanidade53. O dicionário Portuguese and English languages de 1813
também se refere a Philantropy como o amor aos homens ou do gênero humano54.
50http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/1%2C2/filantropia (acesso: 16 de março de 2010). 51http://books.google.com/books?lr=&hl=pt-BR&as_brr=0&q=caridade&btnG=Pesquisar+livros&as_drrb_is=b&as_minm_is=0&as_miny_is=1770&as_maxm_is=0&as_maxy_is=1830 (acesso: 16 de março de 2010). 52http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/1%2C2/filantropia (acesso: 16 de março de 2010). 53http://books.google.com.br/books?id=20ZDAAAAYAAJ&pg=PP9&dq=Moraes+e+silva+diccionario&as_brr=1#v=onepage&q=Moraes%20e%20silva%20diccionario&f=false (acesso: 16 de março de 2010). 54http://books.google.com/books?as_q=philantropia&num=10&hl=pt-BR&btnG=Pesquisa+Google&as_epq=&as_oq=&as_eq=&as_brr=0&as_pt=ALLTYPES&lr=&as_vt=&as_auth=&as_pub=&as_drrb_is=b&as_minm_is=0&as_miny_is=1770&as_maxm_is=0&as_maxy_is=1830&as_isbn=&as_issn (acesso: 16 de março de 2010).
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Nesse contexto, prevalece o entendimento de que filantropia é uma laicização da
caridade cristã. Dessa forma, a partir do século XVIII, a assistência à criança
abandonada se aproxima dos ideais iluministas, que pregavam o amor dos homens pelo
amor da humanidade, e não como uma expressão do amor divino. O fazer o bem, o
socorro aos necessitados, deixa de ser uma virtude cristã para ser uma virtude social55.
Entre as monarquias em processo de formação de governos absolutistas, essa mudança
de perspectiva teve efeitos profundos. A partir de uma leitura fisiocrática dos princípios
da filantropia, o reinado de D. Maria I aprofunda as reformas iniciadas por Pombal. Em
24 de maio de 1783, um alvará determina que todas as câmaras do império deveriam
instalar Rodas dos Expostos, “para expor os meninos que se enjeitam"56. Mais ainda: a
aprovação da criação de Santas Casas da Misericórdia fica sujeita ao estabelecimento de
Roda dos Expostos57.
Acompanhando as mudanças políticas referentes à atuação do Estado Português,
entre os períodos de 1775 a 1850, percebe-se que houve uma substancial transformação
na atuação do Estado em relação ao cuidado com os enjeitados e os órfãos. Durante
aquele período, o Estado assumiu um papel assistencial, buscando regularizar e
fiscalizar os recursos destinados às Santas Casas de Misericórdia, principal instituição
que recebia a Roda dos expostos. Conforme mencionamos, foi justamente no governo
do Marquês de Pombal que houve uma maior preocupação com as finanças destinadas
às instituições de auxílios aos enjeitados e também com o destino deles após os sete
anos de idade. As medidas governamentais de Pombal foram importantes em relação
55SANGLARD, Gisele. Filantropia e assistencialismo no Brasil. História, Ciência, Saúde-Manguinhos, vol. 10(3), 2003, p. 1095. 56VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas...., p. 33 e 34. 57Um exemplo disso foi registrado em Campos dos Goitacazes, na Capitania do Rio de Janeiro. A aprovação do compromisso da Santa Casa local, sancionado por D. Maria I, em 1791, foi condicionada à instalação de uma Roda dos expostos. Isso efetivamente ocorreu em 1796, quando se batizou o primeiro enjeitado da Misericórdia local. LAMEGO, Alberto. História da Santa Casa de Campos. Rio de Janeiro: s/ed, 1951, 149; FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 70.
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aos expostos. O Alvará de 1775, regulamentado por ele, definiu de forma mais precisa a
questão dos expostos.
Foi em 1775, com um famoso Alvará, que o ministro Sebastião José de Carvalho e Mello regulamentou de forma mais estrita e definitiva a questão das crianças expostas: é, sem dúvida, a mais importante lei existente no século XVIII sobre o assunto, mas se volta sobretudo para a relação entre enjeitados, Santa Casa de Misericórdia e Juiz de Órfãos, deixando de lado a questão das Câmaras. Até então, haviam sido elas as principais responsáveis pela criação dos enjeitados. A partir dessa data-marco, intensificou-se a luta pela criação das rodas de expostos nas Misericórdias ou mesmo em casa de particulares, desde que seus habitantes fossem casais honrados e de bons costumes58.
Essa nova forma de atuar do Estado proporcionou a criação de um grande
número de leis, que regulamentou a atuação da Santa Casa de Misericórdia no cuidado
dos enjeitados. Embora as leis tenham sido formuladas visando a atender a Casa de
Misericórdia de Lisboa, houve nas possessões colônias uma tentativa de segui-las,
dentro das limitações da colônia. A Misericórdia do Rio de Janeiro, por exemplo, teve o
seu próprio regulamento somente na década de 1840.
É importante salientar também que, após a Independência, no período de 1815 a
1889, foram promulgadas leis brasileiras relativas aos expostos, como a do ano de 1827,
que determinava que os legados pios não cumpridos fossem destinados às Casas de
Expostos. As leis dos Municípios de 1828 estipularam que, onde houvesse as Santas
Casas de Misericórdias, elas seriam as responsáveis pelos cuidados com os expostos e
não as Câmaras. A lei de 1831 reafirma o dispositivo da lei anterior a respeito dos
legados não cumpridos, o mesmo se repetiu em 184559. Assim, a Roda dos Expostos
manteria a função de formar pessoas úteis para o Estado. Os enjeitados e as crianças
órfãs não deveriam se tornar vagabundas ou pessoas ociosas, o que perturbaria a ordem
58SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte. Editora UFMG, 1999, p - 67. 59VENÂNCIO, Renato Pinto. Entre dois Impérios: a Santa Casa da Misericórdia e as “Rodas dos expostos” no Brasil. In: ARAÚJO, Maria Marta Lobo de (Org.). As Misericórdias das duas margens do Atlântico: Portugal e Brasil (XV-XX). Cuiabá, MT: Carlini & Caniato, 2009, p. 140-141.
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pública. Eles deveriam se tornar úteis à sociedade e ao Estado, uma vez que, para
constituir uma sociedade rica, era necessário o crescimento populacional.
Maria Beatriz Nizza da Silva, ao estudar os expostos da Capitania de São Paulo,
entre o período de 1765 a 1825, ano em que ocorreu a criação da Casa dos Expostos na
cidade de São Paulo, expôs a real origem da preocupação do Estado. No que diz
respeito às crianças expostas, a autora afirma:
A preocupação do Estado com os expostos é contemporâneo da teoria que via no aumento da população a base da riqueza das nações, pois foi a partir do momento em que os governantes quiseram atalhar os altos índices de mortalidade observados entre as crianças enjeitados que se tomaram às providencias mais importantes a esse respeito60.
Nessa época o Estado monárquico, preocupado em alcançar progresso nos
campos social, começou a investir em instrumentos que o levassem a tal êxito. Para
tanto, ocupou-se com a instalação das Rodas em várias áreas ao longo do Império. De
acordo com Renato Pinto Venâncio, entre 1789 e 1841, elevou-se o número de hospitais
brasileiros, aparelhados para acolher enjeitados e o número de Rodas dos Expostos
passou de duas para onze. Ainda de acordo com o autor:
Não por acaso, a Rodas dos expostos se multiplicaram paralelamente às Academias de Ciência, pois elas também eram vistas como um sinal de progresso. Em fins do século 18, elas passaram a traduzir expectativas que iam muito além das obras de caridade, sendo assumidas como uma tarefa do Estado monárquico, responsável por aumentar a riqueza social e por proporcionar novas forças militares61.
Essa nova fase de instalação da Roda dos Expostos recebeu a atenção de uma
parcela da sociedade que até então não existia. As autoridades políticas provinciais
começaram a ter um maior cuidado com essa área filantrópica. Como mostra o quadro1,
várias foram as regiões da América Portuguesa – que se tornam após a independência
60SILVA, Maria Beatriz Nizza da. O problema dos expostos na Capitania de São Paulo. Anais do Museu Paulista, tomo XXX, São Paulo, 1980/1981, p.148. 61VENÂNCIO, Renato Pinto. Entre dois Impérios...., p. 136.
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regiões do Brasil - que receberam nas suas Santas Casas de Misericórdia a Roda dos
Expostos.
Quadro 1 - Instalação da Roda dos Expostos no Brasil entre os períodos de 1789 – 1849 Capitania Roda dos Expostos por
ano Bahia (Salvador) 1726
Rio de Janeiro 1738 Pernambuco (Recife) 1789
Rio de Janeiro (Campos) 1796 São Paulo (São Paulo) 1825
Santa Catarina (Desterro) 1828 Maranhão (São Luís) 1829
Minas Gerais (São João Del Rei) 1832 Mato Grosso (Cuiabá) 1833
Rio Grande do Sul (Porto Alegre) 1837 Bahia (Cachoeira) 1840
Paraíba (João Pessoa) 1841 Rio Grande do Sul (Pelotas) 1849
Fonte: VENÂNCIO, Renato Pinto. Entre dois Impérios: a Santa Casa da Misericórdia e as “Rodas dos expostos” no Brasil. In: ARAÚJO, Maria Marta Lobo de (Org.). As Misericórdias das duas margens do Atlântico: Portugal e Brasil (XV-XX). Cuiabá, MT: Carlini & Caniato, 2009. NASCIMENTO, Alcileide Cabral do. Frutos da castidade e da lascívia: as crianças abandonadas no Recife (1789-1832). Rev. Estud. Fem. vol.15 no.1 Florianópolis Jan./Abr. 2007. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. O problema dos expostos na Capitania de São Paulo. Anais do Museu Paulista, tomo XXX, São Paulo, 1980/1981. NASCIMENTO, Rita de Cássia Gomes. Pelas Crianças Desvalidas: o Instituto de Assistência à Infância do Maranhão nas primeiras décadas do século XX. Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão. São Luís 2007. RESENDE Diana Campos. Roda dos Expostos: Um caminho para a infância abandonada. Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade São João Del Rei, 1996. TORRES, Luiz Henrique. A Casa da Roda dos Expostos na cidade do Rio Grande. Biblos, Rio Grande, 20: 103-116, 2006. TOMASCHEWSKI, Cláudia. Caridade e filantropia na distribuição da assistência: a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas – RS (1847-1922). Dissertação apresenta para o Programa de Pós-graduação em História das Sociedades Ibéricas e Americanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do sul, 2007. NÓBREGA, Michael Douglas dos Santos e MARIANO, Serioja Rodrigues. Pobres Crianças Enjeitadas: O cotidiano dos Expostos na Santa Casa da Parahyba (1857-1874). II Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais. Culturas, leituras e representações. Universidade Federal da Paraíba UFPB.
Ressalte-se, porém, que cada uma dessas instituições em suas determinadas
localidades apresentava suas particularidades no processo da instalação do dispositivo
da Roda. Isso ficou registrado, por exemplo, nos processos de criação da Roda dos
Expostos de São Luis, capital da província do Maranhão, instalada no ano de 1827, por
um rico comerciante português, Isidoro Rodrigues Pereira, natural de Alcobaça. Em
39
Salvador e no Rio de Janeiro, a instalação aconteceu no século anterior, por um
potentado62. Isso significa que mesmo havendo novas formas institucionais,
principalmente no século XIX, elas não implicaram a anulação das práticas assistenciais
anteriores de caridade individual. O mesmo não se pode dizer em relação ao ocorrido
nas províncias da Capitania do Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, a lei Provincial
número 9, de 22 de novembro de 1837 determinou que a Santa Casa de Misericórdia
daquela localidade estabelecesse a Roda dos expostos. “Tratava-se, portanto, de uma
imposição do poder central provincial”63.
Já em Cuiabá, houve uma particularidade na instalação da Roda dos Expostos,
segundo Renato Pinto Venâncio. Tal dispositivo era defendido pelos governadores, que
viam em sua instituição um papel civilizador. A Roda foi instalada em 1833, recebeu
sua primeira criança em 1844 e após quatro anos recebeu mais duas. Em 1852, foi feita
uma avaliação e foram propostas algumas reformas que não surtiram efeitos, levando ao
seu fechamento em 1863. Para o autor a Roda dos Expostos “traduzia muito mais as
expectativas das autoridades, imbuída de modelos e esperanças ante os enjeitados, do
que de pressões sociais decorrentes do abandono”64.
1- 4 A assistência aos enjeitados de Vila Rica
Na América Portuguesa as Santas Casas de Misericórdias surgiram praticamente
concomitantemente ao estabelecimento das principais povoações65, diferentemente da
de Vila Rica, que foi instituída no ano de 1738, ano em que a ocupação populacional já
62VENÂNCIO, Renato Pinto. Entre dois Impérios...., p. 141. 63VENÂNCIO, Renato Pinto. Entre dois Impérios...., p. 142. 64VENÂNCIO, Renato Pinto. Entre dois Impérios...., p. 142-143. 65Nas localizações litorâneas da América Portuguesa como Salvador, Rio de Janeiro e Olinda, logo após as suas populações serem estabelecidas se instituíam uma Santa Casa de Misericórdia, Hospital que atendiam os aflitos. Ver em RUSSEL-WOOD, A.J.R. Fidalgos e filantropos..., p. 19-32.
40
se encontrava estabelecida. Entretanto, tudo indica que em 1720 Vila Rica tornou-se
sede da Capitania de Minas na mesma década em que o vigário Francisco da Silva e
Almeida, da Paróquia da Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto iniciou com os
habitantes da Vila uma petição ao Rei para a criação de uma irmandade da Misericórdia,
como era feito “nas demais terras principais”66. Em resposta, o vigário recebeu uma
carta do Conselho Ultramarinho, concedendo-lhe a permissão para construir a Santa
Casa de Misericórdia. Mas, o Conselho o advertiu da desconsideração dos privilégios67
pleiteados por ele. Em 2 de outubro de 1730, foi fundada a Irmandade da Santa Casa de
Misericórdia de Ouro Preto, tendo como Padroeira Nossa Senhora Sant’Anna. Essa
associação estabeleceu no seu Art. 1 que a função da Misericórdia “é a caridade que
tem por fim admitir e tratar em seu hospital”:
§ 1.º – Os Irmãos da Irmandade; § 2.º – Os enfermos não indigentes, mediante o pagamento de diária estabelecida pela mesa administrativa, sujeitando-se ao regimento interno; § 3.º – Os enfermos indigentes, sem distinção de nação ou de religião. Art. 2 – Logo que seus recursos financeiros permitirem, a Irmandade da Santa Casa fundará, como filiais do hospital: §1.º – Um hospício de alienados; § 2.º – Uma casa de expostos e asilo de menores desvalidos; § 3.º – Uma maternidade; § 4.° – Um asilo de inválidos. 68
Todavia, mesmo com a criação da Irmandade da Misericórdia e com os seus
artigos pré-estabelecidos, o assunto do privilégio da proteção d´El Rei só voltou a ser
discutido no ano de 1734. Nessa época, os oficiais da Câmara de Vila Rica, juntamente
com o vigário e a população, estavam compromissados em estabelecer na região um
Hospital da Misericórdia que fosse reconhecido pelo Rei. Em 26 de Abril de 1734, os
camarários enviaram uma carta ao Rei Dom João pedindo a ele que estabelecesse em
Vila Rica um Hospital da Santa Casa da Misericórdia, já que era costume em todas as
66Arquivo Histórico Ultramarino, Minas Gerais, Caixa 09, Doc. 05. 67Os párocos pediram que a Santa Casa de Vila Rica tivesse o mesmo privilégio que possuía a Santa Casa da Corte e a do Rio de Janeiro. 68MENEZES, Joaquim Furtado de. Igrejas e Irmandades de Ouro Preto: a religião, Belo Horizonte: Publicações do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, 1975, pp. 84-85.
41
cidades e vilas do reino haver um Hospital para atender os aflitos. Mas para que isso
ocorresse seria preciso a confirmação da aprovação e proteção do Rei.
Dom João por graça de Deus Rey de Portugal e do Algarve da quem e da lem mar em África de Guiné. Faço saber a vós oficiais da Câmara de Vila Rica, que se viu a vossas carta de vinte, e seis de Abril de setecentos ano, em que me representáveis, que sendo costume em todas as cidades, vilas havia Hospital e Misericórdias para que o provedor, Irmãos dela peçam para os prezos, e favoreçam vos os aflitos nessa Vila sertava essas circunstancias, por cujo motivo me pedíeis fosse servido mandar estabelecer nessa Casa de Misericórdia reparação de novos declareis adaptação para que quereis fazer para vosso estabelecimento da dita Casa de Misericórdia, e Hospital, e o compromisso com que pretendeis estabelecê-la para a vista de tudo, ver se o Rey de mandar confirmar, e tomar debaixo da minha proteção estas casas, como sendo feito a outras. [grifo meu] vinte e três de outubro de mil setecentos e trinta e quatro69.
Em 23 de outubro de 1734, o Rei responde a carta dos oficiais da Câmara,
declarando sua proteção para a instalação da Misericórdia. Porém, na mesma carta,
Dom João V solicitou aos oficiais uma declaração de onde viria a doação para criar e
manter a instituição. No mês de maio do ano de 1735 o governador de Minas apresentou
ao Rei Gomes Freire, o legado de Henrique Lopes de Araújo, capitão-mor da Vila, que
deixou para a Câmara fazer de sua herança o “bem comum”70 “especialmente para
criação de um Hospital”. No legado deixado por Henrique Lopes constavam umas casas
novas, outras inferiores e uma lavra contígua de faisqueira71.
O governador Gomes Freire, ao reportar a Dom João V sobre a herança de
Henrique Lopes, deixa bem claro para o Rei que as pessoas zelosas de Vila Rica, na
esperança de que o soberano lhes fizesse mercê na proteção do Hospital, compraram
casas em sitio para logo trazerem a cura aos doentes e fazerem mais obras de caridade
que estavam nos artigos da Irmandade da Misericórdia.
69CMOP – Caixa 07, doc. 33. 70 LOPES, Francisco Antonio. Os Palácios de Vila Rica – Ouro Preto no ciclo do ouro, Belo Horizonte, 1955, p. 141. 71LOPES, Francisco Antonio. Os Palácios de Vila Rica...p. 141.
42
O governador de Minas Gomes Freire após analisar o legado de Henrique Lopes, reportar a poucos dias se unirão as pessoas zelosas desta Vila compraram casas em sítio acomodando em que fizeram Hospital e desde logo tratarão de fazerem curar os doentes, e mais obras de caridade que são do instituto da Irmandade da Misericórdia. Essa iniciativa das “pessoas zelosas” fora adotada na esperança de que o soberano lhes fizesse a “mercê e a todas estas Minas de tomar debaixo de sua real imediata proteção, este Hospital e Congregação para que fosse Casa Real de Miz.a como a do Rio de Janeiro e mais q. há No Brazil”. Sendo certo que tal “concessão tão própria da real piedade e de Vossa Majestade e animará os devotos que hoje cuidão na enfermaria, e sem Ella, não será possível que continue o seu Zelo”72.
Após dois anos, em abril de 1738, depois das referidas informações de Gomes
Freire a El-Rei, ele determina, sob sua real proteção, erguer em vila Rica a Santa Casa
de Misericórdia e o Hospital para tratar dos enfermos daquela Capitania - “e que esta
Misericórdia se governe pelo compromisso da Corte e do Rio de Janeiro”. Além disso,
no mesmo mês foi aprovado um Alvará, em 16 de abril de 1738, que concedia a licença
para criação da capela de Nossa Senhora Sant’Anna, padroeira da Irmandade73.
Porém, o que se sabe é que a Misericórdia de Vila Rica não chegou atingir os
privilégios que outras Misericórdias do litoral como a de Salvador e a do Rio de Janeiro
tinham. Ao que parece, a demora do repasse da verba do legado do Capitão Mor e mais
tarde o desinteresse da própria Câmara em auxiliar o Hospital, colaborou para que a
Misericórdia não alcançasse sequer a execução do § 2º do seu segundo artigo, que
tratava da casa de exposto e do asilo de menores desvalidos74. Isso fez com que a
Câmara ficasse com o encargo de criar os enjeitados da Vila até que eles completassem
sete anos de idade.
A Câmara de Vila Rica, desde a criação da Santa Casa em 1735, apresentava
desinteresse no repasse de verbas para a Santa Casa de Misericórdia, pois, o que
aparenta, de acordo com o documento elaborado pela Comissão Permanente da Câmara
72LOPES, Francisco Antonio. Os Palácios de Vila Rica...p. 141-142. 73LOPES, Francisco Antonio. Os Palácios de Vila Rica...p. 142. 74MENEZES, Joaquim Furtado de. Igrejas e Irmandades de Ouro Preto..., p. 85.
43
de Vila Rica no século XIX, é que a Santa Casa de Misericórdia não era prioridade para
a Câmara, já que esse hospital recebia menos assistência do que as prisões, por
exemplo.
A comissão permanente, em vista do que expôs a visita do hospital e prisões, reconhecendo que a deficiência de meios a disposição da Santa Casa, inabilitada a mesa para fazer os melhoramentos necessários e, as indicados em outras comissões, entende que nesta presente nem uma providencia resta a dar-se. Quanto ao melhoramento das prisões parece à comissão que deve segui-se a prática adaptada, enviando-se por cópia para relativa providencia tomada em consideração pela secretaria previdência75.
Logo, tal assistência ficou sob a responsabilidade da Câmara. Segundo as
Ordenações Filipinas era obrigação da Câmara Municipal criar o enjeitado nascido sob
a sua jurisdição. Caso essa jurisdição não dispusesse de renda para tal finalidade, a
legislação Filipina daria à municipalidade a autonomia de lançar fintas.
E não havendo hi tais Hospitaes e Albergarias se criarão a custa das rendas do Conselho. E não tendo o conselho rendas, per que se passam criar, os Officiaes da Câmera lançarão finta pelas pessoas, que nas fintas e encarregos do Conselho hão de pagar76.
Isso era feito por meio de um pagamento mensal para famílias que se
disponibilizavam a criar um enjeitado, caso essa jurisdição não tivesse a Casa dos
Expostos e nem a Roda. Em algumas localidades onde não havia hospitais de expostos
era a Câmara que desempenhava o papel caritativo para sua criação e educação. Em
Portugal, os camaristas contratavam funcionários para recolher criancinhas abandonadas
nas ruas e esses contratados os levavam para as próprias residências, passando essas a
ser um ponto de referência para as pessoas que quisessem deixar seus filhos a cargo da
caridade pública. Os responsáveis por essa função recebiam o nome de pai dos meninos
ou pai dos enjeitados ou mãe dos enjeitados. Assim, logo após serem recolhidas, essas
75APM, CMOP 3/4 Cx. 07 Doc. 18 76www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p206.htm (acesso 22 de março de 2010).
44
crianças tinham que ser batizadas, levadas ao Senado da Câmara para que os senadores
as escrevessem no Livro de Matrícula dos Expostos para, posteriormente, serem
entregues ao Juiz dos órfãos, que indicava o tutor para criarem-nas. Os tutores recebiam
da Câmara uma quantia que variava em relação ao local e ao tempo. Nos três primeiros
anos, no período da amamentação, a quantia paga era maior do que a dos quatros
últimos anos77. Em Vila Rica, não houve esse procedimento em relação aos enjeitados,
já que não houve tutores para essa finalidade. As pessoas que encontravam as crianças
às vezes se tornavam seus criadores, mas em outras situações, quem as encontrava
apenas as encaminhava à Câmara.
Em relação ao pagamento realizado pela Câmara de Vila Rica aos criadores de
enjeitados era de 24 oitavas de ouro por ano, durante os três primeiros anos do bebê.
Esses pagamentos eram mantidos durante os quatro anos seguintes, porém com o valor
de 16 oitavas anuais78.
Pela Câmara desta Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto na variação de trinta do mês de dezembro de mil e setecentos e noventa e seis de fez [sic] da enjeitada Ignacia exposta na cadeia na noite do dia vinte seis do corrente mês e entregue Martinho Rodrigues Meira segundo a certidão do batismo que acompanhava digo Meira morador no [sic] segundo a certidão do batismo que acompanhava passada pelo Reverendo Vigoria da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição desta Vila João Antonio Pinto Moreyra para se lhe pagar a sua criação da dita exposta e entrega [sic] de vinte e quatro oitavas de ouro por ano nos três primeiros anos da lactação e nos quatro diretos para o complemento dos sete que é o prazo da lei de dezesseis oitavas de ouro satisfeito por folha, na forma que se pratica79.
Segundo Renato Júnio Franco, os vereadores da Câmara de Vila Rica, na
primeira metade do século XVIII, fizeram várias manobras para não ficar com o
encargo de custear a criação dos enjeitados80. Como veremos, os vereadores ameaçavam
77VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas...op. cit., p, 26. 78APM, CMOP Códice 116, Ver também LOPES, Francisco Antonio. Os Palácios de Vila Rica – Ouro Preto no ciclo do ouro, Belo Horizonte, 1955, pp. 187-190. 79APM, CMOP, Rolo 46 Flash 01. Lista de matrícula dos expostos 80FRANCO, Renato Júnio. Desassistidas Minas: a exposição de crianças em Vila Rica, século XVIII. Mestrado da UFF. Niterói, 2006. p. 76
45
as populações com criação de fintas para pagar os custos com os cuidados dos
enjeitados.
Além disso, na maioria das vezes a Câmara de Vila Rica, ficava devendo os
criadores dos expostos. Tal evento foi evidenciado por meio da documentação de
Receita e Despesa da Câmara de Ouro Preto que nos mostra, por meio da quantificação
do período de 1770 a 1829 que, nas três últimas décadas do século XVIII, a Câmara
devia a aproximadamente 88% dos criadores e, nas três primeiras décadas do século
XIX, a Câmara ficou em débito com 72% dos criadores. A documentação mostra
também que a Câmara sempre teve dívidas parciais ou totais com esses criadores.
Porém, no período final do século XVIII e início do XIX elas assumiram maior vulto,
diminuindo as dívidas por volta de 181581.
1-5 Tentativas de instalação da Roda dos Expostos em Vila Rica
Entre 1795 e 1838 notamos que, em Vila Rica houve uma mudança, ou pelo
menos uma tentativa de transformação da forma de auxiliar os enjeitados que era feita
pela Câmara como uma “ação de caridade”. Nesse período, há indícios de uma ação
filantrópica por parte da Monarquia, embora esse termo não se configurasse como
filantropia tal qual a conceituamos nos dias atuais. Nesse novo cenário, a Roda dos
Expostos passa a ser uma preocupação da Câmara e dos mesários da Santa Casa e mais
tarde do próprio presidente da Província, que via nesse dispositivo uma forma de
salvaguardar os enjeitados. De acordo com a crença que também vigorava na Europa, ao
serem retiradas das ruas as crianças passavam a ter uma perspectiva maior de
sobrevivência e, mais tarde, se tornariam pessoas úteis aos interesses do Estado.
81APM, CMOP 3/4 Cx. 01 Doc. 27. Esse documento expõe a receita e a despesa da Câmara de Ouro Preto, evidenciando os gastos com os enjeitados desde 1770 até 1829.
46
A criação de leis relacionadas aos enjeitados leva-nos a inferir que os cuidados
com os expostos passaram a ser vistos com mais rigor e prioridade em todo o Império,
inclusive em Vila Rica que, posteriormente, tornou-se Ouro Preto, capital da província
de Minas Gerais.
A maioria da legislação referente aos expostos foi feita, principalmente, a partir
das primeiras décadas do período Imperial. Momento em que se acreditava que a
“instrução” da população pobre elevaria o Império ao nível das “nações civilizadas”,
superando as “heranças” do passado colonial. Entre essas heranças está a grande massa
de homens livres e pobres sem ocupação que trazia inquietação às elites, característica
da população de Vila Rica, constituída em sua maior parte por mestiços e negros, os
quais eram muitas vezes considerados a causa da dificuldade no exercício do governo82.
Não tinham lugar, nem ocupação, não pertenciam ao mundo do trabalho, e muito menos deveriam caber no mundo do governo. Predominantemente mestiços e negros estes quase sempre escravos que haviam obtido alforria. Vagavam desordenadamente, ampliando a sensação de intranqüilidade que distinguia a crise do sistema colonial, estendendo-se pela menoridade83.
Assim, para que tais hábitos não estendessem às crianças abandonadas ou órfãos,
Vila Rica se via engajada nas estratégias de políticas públicas, possibilitando a essas
crianças uma maior atenção por parte das autoridades que acreditavam no discurso dos
iluministas, “que a instrução de todas as classes levaria superação da barbárie e da
desordem”. Nesse contexto, as discussões acerca da necessidade da instalação da Roda
dos Expostos tomam conta de Vila Rica no final do século XVIII.
Em Vila Rica, a primeira tentativa da instalação da Roda dos Expostos ocorreu
em 1795. O procurador do Senado da Câmara propôs auxílio financeiro para aquele que
82SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro...., p.162. 83MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema – A Formação do Estado Imperial Rio de Janeiro: Access, 1994, p.114.
47
estabelecesse uma Roda com o objetivo de receber crianças expostas. A exigência era
que a instalação dessa Roda se desse na casa de uma pessoa honrada.
Em fevereiro de 1795, em conseqüência da justa representação, feita pelo procurador atual desta Câmara, e da resposta, dada pelo Doutor Ouvidor Geral, resolve o Senado estabelecer uma Roda, em que se receberão os meninos expostos, Roda essa que se situará na morada de um casal honrado, e de bons costumes, no qual se reconheçam as qualidades necessárias, para com o devido desvelo de cuidar em satisfazer as condições seguintes: Será estabelecida a dita Roda no meio desta Vila, mas em rua pouco freqüentada, de sorte, que a qualquer hora da noite e dia se possam expor os meninos na dita Roda, sem que sejam vistos da publicidade, e por esta razão impedidos de o poderem fazer84.
Essa tentativa ocorreu após 20 anos em que o alvará pombalino de 1775
decretou que fosse instalada a Roda dos Expostos em hospitais como a Santa Casa ou
em casas de pessoas honradas de todas as vilas e cidades do reino português. Com base
em alguns indícios, tal fato não se concretizou em Vila Rica, sendo adiado por tempo
indeterminado. Essa não instalação nos leva a indagar se o não comprimento dessa lei
em Vila Rica está relacionado com a diferenciação de localidade. Mas, se colocarmos a
situação dos expostos dessa região sob análise, perceberemos que, a partir de 1770, os
expostos só aumentavam, como mostra o Gráfico 285. Esse aumento chamava a atenção
da população que assistia ao sofrimento dos expostos, que eram abandonados nas ruas
na calada da noite e morriam antes mesmo de receberem alguma assistência86.
84APM, CMOP Códice 116. 85Esse dado foi retirado da analise dos documentos do Banco de dados referente às atas paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto (CNPq, FAPEMIG), projeto coordenado pela Profa. Dra Adalgisa Arantes Campos (UFMG). 86LOPES, 1955, a. p. 188.
48
Gráfico 2 - Batismo de expostos por década
0
50
100
150
200
250
1730 1740 1750 1760 1770 1780 1790 1800 1810 1820 1830 1840
Décadas
Nú
mero
de e
xp
osto
s
A lei, de 18 de outubro de 1806, foi uma reafirmação de uma lei anterior que
decretava que toda Santa Casa deveria nomear um mordomo dos expostos. Cabia a ele
fiscalizar se alguma criança estava mal nutrida ou mal tratada pela família que a criava.
Em caso afirmativo, devia recolhê-la e levá-la de volta para a Santa Casa de
Misericórdia. O cargo de mordomo dos expostos não foi prioridade para a Santa Casa
de Vila Rica, já que, desde sua criação, em 1735, nenhum mordomo foi nomeado. O
presidente da mesa da Santa Casa escreveu um ofício ao excelentíssimo Provedor, em 5
de fevereiro de 1827, com o intuito de justificar a não eleição desses mordomos. Esse
documento evidencia a pretensão do presidente de tomar medidas para que se cumprisse
tal lei e se estabelecesse a Roda dos Expostos Regular. Além disso, a administração
dessa Roda deveria ser metódica, como se praticava na Corte do Rio de Janeiro.
Sendo presidente da mesa da Santa Casa da Misericórdia o oficio dirigido ao seu excelentíssimo Provedor em data de 5 de fevereiro deste ano, exigindo informação, se nas eleições das mesários se tem nomeado o mordomo dos expostos de que trata o 7º da lei de 18 de outubro de 1806, tem a honra de participar a Vossa Excelência que desde o estabelecimento desta casa em 1735 nunca se nomearam os referidos mordomos dos expostos por que nunca esteve a cargo desta Casa de Misericórdia a criação , e educação dos mesmos, e nem consta que a dita lei, depois de promulgada, fosse remetida oficialmente a alguma das mesas para executa-la; razão por que tem continuado a mesma omissão de presente.
49
Como porem agora é despertada a sua observância a mesa nomeou em sessão de 7 de abril próximo passado o Reverendo José Joaquim Viegas de Menezes, aquém passa a transmitir a copia da lei para o seu governo parecendo que desta maneira tem a mesa desempenhado quanto lhe cumpre a este respeito, uma vez que nos permitindo as rendas da Santa Casa presente [sic] [sic], precárias, [sic] com a criação e educação dos expostos, estabelecendo, como desejara, uma Roda regular, e administração metódica, como se pratica na Corte do Rio de Janeiro, e em quase todas as Casas de Misericórdia, estando semelhante [sic] de administração pública a cargo da Câmara deste termo, para o que percebe uma finta de [sic] imposto sobre todas as [sic], que mesmo se cortas, nada mais cumpre a mesa, do que nomear [sic] mordomo, para este executar literalmente a lei, a qual determina, que nos lugares, onde a criação dos expostos é a cargo das Câmaras, mordomo não terá outro cargo mais do que solicitar, zelar, e requerer competente [sic] quando faz a bem dos mesmos.
Deus guarde a Vossa Excelência Imperial Cidade de Ouro Preto em sessão 20 de maio de 1827. Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor Francisco Pereira de Santos [sic] Vice Presidente desta Província Gomes Freire de Andrade Francisco de Assis de Azevedo Couto Manoel [sic] da [sic] José Joaquim Viegas de Menezes Joaquim José de Vieira Lourenço Antonio Monteiro Manoel José Monteiro de Barras Antônio José Peixoto Antônio José Ferreira Bretãs Manoel Soares do Coutos87
Esse documento nos chama a atenção para o fato de que, a partir desse
momento, os cuidados com os enjeitados não deveriam ficar somente ao encargo da
Caridade, mas recairiam também sobre a Câmara e a população. A Câmara pagaria pela
criação das crianças enjeitadas, mas dependia do ato caridoso de alguém. Era necessário
que alguém encontrasse as crianças nas ruas e se dispusesse a levá-las para a própria
casa ou para a Câmara, a qual regularizaria, nesse caso, sua entrega a outra família.
O cuidado com os expostos se revelou mais presente nas discussões do
presidente da Mesa da Misericórdia de Ouro Preto, do procurador, do reverendo e até do
governador. Estava ocorrendo uma maior participação do Estado nessas questões de
ordem pública, especialmente de crescimento populacional e, nessa época, Vila Rica já
era Ouro Preto, capital da província de Minas e, como tal, teria maior interesse nesses
assuntos.
87APM, SP 38 Caixa 01 Doc08
50
Em 14 de setembro de 1824, o presidente da província de Minas Gerais pediu à
Comissão encarregada do exame atual do estado e melhoramento da Santa Casa de
Misericórdia de Vila Rica, que enviasse um relatório contendo informações dos
rendimentos do mês aplicados na Ordem dos Expostos, mas ainda não havia nenhum
relatório a respeito, conforme resposta obtida. Além disso, a comissão reconheceu que
entre outros socorros públicos o mais importante era o que dizia respeito à criação, e
educação dos expostos e órfãos desamparados. A comissão, reconhecendo a importância
do tratamento que teria que ser dispensado ao exposto, fez com que ela aparentemente
voltasse à atividade demandada pelo presidente da província, que também pediu que se
acrescentasse ao relatório a quantia gasta com a Ordem dos Expostos de Mariana e a de
Querluz.
Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor = A comissão encarregada do exame do atual estado, e melhoramento da Santa Casa da Misericórdia desta cidade participa a Vossa Excelência, que tendo em ofício de 14 de setembro do corrente ano exigido entre outras a Ordem dos Expostos, e informação do rendimentos a mês aplicados, não tem até agora recebido nem a Ordem, nem informação alguma a este respeito, e como lhe seja muito necessária uma, outra, roga a Vossa Excelência, haja de dar as providências afim de que se vão paralisem os trabalhos da comissão, como tem estado até presente. Conhecendo a comissão, que entre os socorros públicos tem e um dos primeiros estabelecimentos para a criação, e educação dos expostos, órfãos desamparados, e vencida de que [sic] para reunião de muitas [conde?] vencida poderá a efetuar o plano, que a este respeito medita, roga também Vossa Excelência que me transmita a Ordem dos Expostos de Mariana com informação dos rendimentos, que [sic] aplicados, se informado, se a Câmara de Querluz também cuidara de Expostos, e se os vereadoras dela tem propinas [sic] as desta cidade, e Mariana.. Vde a Vossa Excelência, por muitos anos Imperial Cidade a 1 de [ ] de 1824 Senhor presidente da província de Minas Gerais Castro José Cardoso Marçal José Bernardo Antônio Monteiro Bernardo Pereira de Vasconcellos Manoel Bernardo Varella88
O Jornal Universal era um periódico do século XIX que transmitia as notícias de
todos os acontecimentos importantes das províncias, além de temas internacionais.
88SP, PP1, 38 Caixa 01 Documento 02
51
Desse modo, a discussão acerca dos cuidados com os enjeitados da capital da província
de Minas Gerais, Ouro Preto, era um assunto de extrema importância. Uma extensa
matéria do dia 30 de abril de 1830 descreveu em torno de 11 artigos como deveria ser a
instalação da Roda dos Expostos na Santa Casa de Misericórdia de Vila Rica. Essa
notícia saiu logo após a “Câmara Municipal desta Imperial Cidade ter atendendo ao bem
dos expostos, e querendo dar a providente destino à sua futura sorte”89.Todos os artigos
deixavam bem claro o cuidado que os funcionários da Santa Casa teriam que ter desde a
construção da Roda até oo recebimento do enjeitado. O 1º e o 2º artigo deixavam bem
claro como seria a instalação do dispositivo.
Artigo 1º: Será construída uma Roda na Santa Casa da Misericórdia, para receber expostos, em conformidade ao Art. 220 das suas posturas; e esta deverá ter o seu assento no lugar em que possa haver mais fácil comunicação para fora; a fim de que a toda a hora do dia e da noite, possa qualquer um pôr nela o exposto, sem receio de ser espreitado, descoberto, ou conhecido90.
Artigo 2º: Haverá uma Campainha, que sirva de dar sinal a pessoa encarregada para tomar conta dos expostos, a qual estará situada próxima a sua habitação, para a despertar, e avisar em mais perto; e dela sairá uma corda, que corra até à parte exterior da mesma Roda, e cuja ponta fique imediatamente, e pendente91
Os artigos 3º e 4º mostravam como deveria ser o tratamento dado ao enjeitado pelas
mulheres responsáveis pelo seu cuidado assim que ele fosse colocado na Roda.
Artigo 3º: A enfermeira do hospital da Santa Casa deverá pertencer o encargo de receber os expostos, quando aos mesários da mesma Santa Casa lhes parecer que é aplicável o poder impor-se-lhe mais este ônus; para o que o fiscal fica autorizado a se inteligenciar com eles: bem como para lhe arbitrar a custa da Câmara, algum quantitativo, quando seja necessário, e não possa conciliar-se de outro modo: ou também na falta dela, para poder assalariar a outra qualquer pessoa, que acuda com vigilância ao sinal da campainha, e faça a recepção do exposto92.
89O Universal. 33 abril de 1830. 90O Universal. 33 abril de 1830. 91O Universal. 33 abril de 1830. 92O Universal. 33 abril de 1830.
52
Artigo 4º: Em observância ao supra citado Art. 220 da Posturas, que manda haja uma Ama efetiva para amamentar os meninos, em quanto não são dados a quem os cria; fica igualmente o Fiscal autorizado para alugar a despeças da Câmara: e ela com obrigação de os tratar, até que se lhe dê o destino designado no Art. 5º93.
Esses artigos da Santa Casa, transcritos pelo Jornal Universal, demonstram que
a Câmara, depois de quase um século de relutância em auxiliar financeiramente os
enjeitados, queria mudar a sorte dos expostos. Exemplo disso é o Artigo 4º, que
autoriza o Fiscal da Misericórdia a alugar, a encargo da Câmara, uma Ama de Leite
“para amamentar os meninos em quanto não são dados a quem os crie”.
De acordo com Venâncio, mesmo com a diminuição dos enjeitados em algumas
vilas ou nas cidades do século XIX, houve a instalação da Roda, sobretudo porque tal
dispositivo era defendido pelos governadores, que viam na instituição um papel
civilizador de crianças expostas, conforme exemplo verificado em Cuiabá:
Os índices de expostos, nas atas batismais, eram freqüentemente inferiores a 1,0% ou mesmo inexistentes. No entanto, isso não impediu a criação de uma Roda, em 1833. O resultado desse experimento foi bastante curioso: a instituição não era procurada. Somente em 1844 é deixada uma criança na Roda dos expostos. (...) Até 1848, apenas duas crianças a mais foram deixadas na Roda. Em 1852, é feita uma nova avaliação e reformas (...) não surtiu efeito, levando ao fechamento da Roda na década seguinte94.
O autor Henrique Barbosa da Silva Cabral, em seu trabalho Da obra Ouro
Preto, declara que houve a concretização da Roda dos Expostos em Vila Rica no ano de
183695. Entretanto, ao analisarmos o documento citado pelo autor, entendemos que a
Câmara, por meio de uma sessão de 1830, resolveu instalar a Roda dos Expostos na
Nossa Senhora da Cidade de Ouro Preto. Sessão essa que foi relatada pelo Jornal
Universal no dia 30 de abril do mesmo ano. Em 1836, a mesa do Hospital da Santa Casa
93O Universal. 33 abril de 1830. 94VENÂNCIO, Renato Pinto. Entre dois Impérios...., p. 142-143. 95CABRAL, Henrique Barbosa Silva. Da obra Ouro Preto, Belo Horizonte, 1969, p. 57-77
53
recorreu à Câmara pedindo o estabelecimento da Roda, como declarava na sessão do
ano de 1830. Desse modo, o documento não deixa claro se foi estabelecida a Roda dos
Expostos em Ouro Preto em 1836:
Ilustríssimo Senhor = A Câmara Municipal desta cidade resolveu na sessão de 18 de maio próximo passado que a resolução de 23 de abril de 1830, se pusesse em prática quis por [sic] se remete a Vossa Senhoria afim de que sobre ela haja de declara a esta Câmara se será possível que nesse hospital se estabeleça a Roda de Expostos como declara a referida. Resolução afim de que a Câmara passa então dar as providências = Deus Guarda nossa Senhora Imperial Cidade de Ouro Preto de junho de 1836. Ilustríssimos Senhores Provedor e mais oficiais mesários da Santa Casa o presidente Antonio Ribeiro Fernandes [sic] – O Secretário Candido Oliveira Jacques96.
Existe outro documento, datado de 1838, que nos induz a pensar que realmente
não houve a concretização da instalação da Roda dos Expostos em Ouro Preto: “A
Câmara reconhecia a humanidade da Nossa Senhora, e sentiu-se por não levar o feito à
obra da instalação da Roda dos Expostos”:
Senhor Monarca = A Câmara Municipal desta cidade resolveram na sessão ordinária de 2 do corrente que declarasse a Nossa Senhora que não tendo-se podido levar afeito a Roda de Expostos para qual Nossa Senhora filantropicamente oferecera [sic] que venceu no ano de 1832 como coselheiro do conselho geral desta província, haja de tomar conta da dita quantia uma vez que a Câmara sede de direito que nela tinha = A Câmara reconhecido aos bons desejos que Nossa Senhora prestou a bem da humanidade tem agradecerem-lhe a sua oferta, sentindo não poder levar afeito a obra para que ela se destinara = Deus Guarde de a nossa leal cidade de Ouro Preto 3 de abril de 1838. Ilustríssimo Senhor Tenente Manoel Soares do Couto = O presidente José Batista de Figueiredo – O Secretário Candido de Minas Jacques97.
Contudo, parece que a Câmara de Ouro Preto continuava com os cuidados aos
expostos, utilizando o mesmo procedimento de auxílio – pagando os criadores de
expostos para que esses ficassem encarregados de pega-los na rua, de educá-los e
alimentá-los. Conforme o documento datado de 1850, os criadores continuavam a levar
96CMOP 308 Rolo 65 Flas 01 97CMOP 308 Rolo 65 Flas 01
54
os expostos até a Câmara no dia do pagamento para que fosse certificado que a criança
estava bem e assim oficializar o pagamento ao criador.
Ilustríssimo Senhor tendo A câmara municipal dessa cidade de fazer dividir pelos criadores de Expostos alguma quantia é chamando estes por meio das folhas públicas para comparecerem com os enjeitados a seu cargo, em dia 27 do corrente ás 10 horas da manhã e, faz ir o responsável assistência de Vossa Senhoria a fim de examinar as mesmas [sic] assiná-los se necessário por tanto assim [sic] para sua inteligência = Deus o guarde a Nossa Senhora de Ouro Preto 29 de maio de 1850 Ilustríssimo Senhor Doutor Bernardo Antônio Monteiro médico do partido = igual o presidente José Batista de Figueiredo = o Antônio Candido de Oliveira Jaques98.
Esses documentos, embora tragam informações precisas das modificações no
modo de agir das autoridades, os quais com relação aos cuidados com os enjeitados, não
há confirmação se houve a instalação da Roda dos Expostos. Além disso, percebe-se
uma intenção filantrópica dos presidentes das províncias de Minas, mas também não
encontramos indícios de sua concretização.
98CMOP 308 Rolo 65 FLAS 01
55
Capítulo 2 – O Universo da exposição de crianças em Vila Rica
2-1 O abandono: Reflexão Historiográfica
O interesse dos pesquisadores pelo tema do abandono de crianças surgiu na
segunda metade do século XIX. Várias pesquisas foram realizadas onde o abandono era
legalizado. Juristas, médicos e estudantes de medicina, por meio de suas “teses” de final
de curso, avaliaram os trabalhos das instituições de caridade e filantropia. Contudo,
raros foram os historiadores “profissionais” daquele período que se dedicaram ao
tema99.
Até os anos setenta do século XX, havia um vazio de publicações sobre o
assunto. A historiadora Isabel de Sá explica que o vácuo de pesquisas nesse período
ocorreu porque a Escola dos Annales - considerada o passo fundamental da
historiografia do período pós-guerra - empenhava-se, em suas primeiras inquietações,
com a história econômica e a interdisciplinaridade nas diferentes ciências sociais.
Também se verifica, nesse período, um descaso por pesquisas relacionadas à
história institucional da Santa Casa de Misericórdia, uma das principais instituições
encarregada dos cuidados dos expostos, já que este estabelecimento agregava mais um
caráter político do que econômico, tornando-se menos importante para as pesquisas da
época100.
Foi a partir de meados dos anos setenta, que a história da criança enjeitada veio
fazer parte do universo de pesquisa dos historiadores. O historiador Philippe Ariès,
embora não tenha se dedicado diretamente a história do abandonado de criança,
99SÁ, Isabel do Guimarães. A circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 12-13. 100SÁ, Isabel do Guimarães. A circulação de crianças na...., p. 12-14
56
demonstra-nos em seu trabalho História Social da criança e da família, a trajetória da
“descoberta da infância”, por meio de fontes iconográficas de períodos antigos e da
época Moderna.
Segundo o autor, até o fim do século XIII, a arte ignorava a infância ou não
queria representá-la. As crianças que existiam nessas pinturas não eram crianças que
possuíam caracterização ou expressão particular, mas sim “homens” em tamanho
reduzido. Além disso, essa recusa da arte em aceitar a morfologia infantil é considerada,
por Ariès, um traço em comum das civilizações arcaicas, período da história em que a
infância também não era legitimizada. Ainda de acordo com o autor, foi por volta do
século XV e XVI, no início da Idade Moderna, que a preocupação com a puerícia
começou a se refletir na sociedade e na iconografia religiosa da criança. As crianças não
eram mais pintadas como um homenzinho em miniatura e com o mesmo semblante,
passando a ser representadas com uma face delicada, ora sorrindo, ora chorando101.
Então, de acordo com Ariès foi no período convencionalmente chamado de
“Idade Moderna” que a preocupação ou atenção com a infância se tornou mais
acentuada, passando a criança de um estado de invisibilidade total para o de destaque na
lista de prioridades sociais. No entanto, muitos dos historiadores que trabalham com as
crianças abandonadas discordam com a cronologia do autor, quando ele ressalta que foi
no período Moderno que a puerícia passou a ter uma maior atenção. Tal critica se baseia
no fato de ter sido em razão de ser justamente nesse período, principalmente entre os
séculos XVIII e XIX, que houve um maior número de crianças enjeitados.
Porém, os fundamentos da análise do autor podem ser justificados exatamente
nessa época que começaram a ser criados mecanismos institucionais para o cuidado com
as crianças abandonadas. Não queremos aqui dizer que foi somente nessa época que
101ARIÈS Philippe. História Social da Criança..., p.51-52.
57
houve as primeiras instituições de assistência as crianças. John Boswell nos relata que, a
partir do século V, as crianças desassistidas ou crianças entregues pelos próprios pais ou
“responsável” foram assistidas por uma prática institucional criada pelos monges, que
se chamava oblação102. Entretanto, os mosteiros não contavam com a participação da
sociedade ou do Estado e nem representavam, de forma sistemática, a importância dada
à infância nos períodos modernos.
Dessa forma, ao tentarmos caracterizar o momento de redescoberta da infância,
somos remetidos diretamente ao momento histórico em que ocorreu grande prática do
abandono destas. Pois, no final dos anos 1980, houve, por parte dos historiadores da
“Nova História”, uma expansão de pesquisas relacionadas à história social acoplada
com a demografia histórica, a história da família, da pobreza, da assistência e da
infância abandonada.
Os pesquisadores, ao abordarem o tema crianças abandonadas em suas teses,
dividiram-se ao atribuir a causa que levavam os pais a abandonarem a criança. Os
historiadores franceses, como François Lebrun, associavam o abandono de crianças a
uma alternativa do método contraceptivo. Para ele, tal método foi uma maneira que a
família encontrou para planejar a estrutura doméstica – em vez do infanticídio
abandonava se a criança indesejada103. Esta hipótese também é defendida por Jean-
Pierre Bardet, que chamou o abandono de “a contracepção dos pobres, dos ignorantes e
dos desajeitados”104.
A historiadora Isabel de Sá associou o abandono de criança a uma importante
causa. Segundo ela, a exposição da criança de famílias desfavorecidas ocorria para que
os pais tivessem um maior controle do tamanho da prole. Assim, poderia haver uma
102BOSWELL, John. The Kindness of Strangers. The Western Europe from Late Antiguity to the Renaissance. Londres: Penguin Books, 1988, p.228 103LEBRUN, F. A vida conjugal no Antigo Regime. Lisboa: Coleção Prisma/Edições Rolim, s/ano. p. 151. 104BARDET. La contraception des pauvres, dês ignorants et dês maladroits.
58
redistribuição de crianças entre casas, de forma mais igualitária, existindo uma
circulação de crianças105. Ariès também trabalha com essa perspectiva de circulação;
ele nos revela que havia uma sociabilidade de movimentação de crianças, que foi
diminuindo à medida em que a “família nuclear” foi se estruturando106.
Nessa mesma temática, na década seguinte, o historiador Russell-Wood, ao
trabalhar com vários aspectos da história da Santa Casa de Misericórdia de Salvador,
buscou também compreender as causas do abandono de crianças daquela instituição.
Para ele, existiram dois fatores que povoaram a Roda dos Expostos dos baianos. O
primeiro, está associado à necessidade econômica dos pais. Segundo Russell-Wood, as
precárias condições econômicas dos pais não permitiam a criação dos filhos, sendo os
mesmos confiadas à Misericórdia durante o tempo necessário à reestruturação financeira
dessas famílias. O segundo fator de enjeitamento é atribuído pelo autor à prática do
adultério, por parte das mulheres brancas, que davam à luz crianças ilegítimas. Este
autor destaca que as mulheres brancas sofriam, nessa época, grande pressão social, não
ocorrendo o mesmo com as mulheres negras e mestiças107. Em sua opinião,
(...) nem sempre era produto de pais de classe baixa, e nem a mulher era sempre de cor. Houve escândalos entre as famílias mais nobres da sociedade baiana. A honra das moscas brancas tinha de ser preservada a qualquer custo. O estigma de desonra ligado à mãe solteira era infinitamente mais forte do que o estigma de ilegitimidade que o filho teria de suportar. Se as ameaças paternas e os “remédios” de ervas não dessem resultados, o nascimento da criança era mantido em segredo. Os registros de enjeitados contêm numerosos casos de crianças brancas deixadas na roda108.
Tal esclarecimento foi aceito pela historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva. A
autora - ao pesquisar sobre os expostos da capitania de São Paulo - declara que o
número de expostos era bem maior na Europa do que na América, uma vez que a
105SÁ, Isabel do Guimarães. A circulação de crianças na...., p. 106ARIÈS Philippe. História Social da Criança..., p.225-231 107RUSSELL-WOOD, A. J. R.. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755 Brasília: Universidade de Brasília, 1981, p. 234-263 108RUSSELL-WOOD, A. J. R.. Fidalgos e filantropos...,p. 245.
59
carência da população seguramente induzia os pais a enxergarem os filhos “mais como
um beneficio do que como uma sobrecarga”. Assim, para ela, os enjeitados do Brasil
colônia eram a comprovação de relações ilícitas de mulheres de classe social elevada,
“para as quais se colocava a questão de salvaguarda da honra”109.
Outra historiadora, que também defende essa mesma teoria, mas com certa
ressalva, é Sheila de Castro Faria. Em seu trabalho, a Colônia em Movimento, a autora
relaciona o abandono com relações também ilegítimas ou adulterinas. Para ela, é pouco
aceitável supor que filhos legítimos ou de casais coabitantes, mesmo pobres,
expusessem seus filhos, “mão-de-obra básica das unidades domésticas”. Segundo a
autora, isso só ocorria em áreas urbanas. Além disso, Faria acredita que as famílias mais
abastadas teriam capacidades ou recursos para encobrir gestações com mais facilidade
do que os pobres, contando, até mesmo, com aceitação dos familiares, assim como de
padres e jurídicos110.
Roupas especiais, viagens em companhia de parentes para lugares distantes (interioranos ou grandes cidades) e, principalmente, o fato de filhas de pais ricos não precisarem necessariamente aparecer em público (por não exercerem, no mais das vezes, atividade produtiva), tornava-as particularmente privilegiadas para esconder a gravidez, em relação às mais pobres, impossibilitadas de acesso a estes recursos. Para estas, registrar o filho natural tornava-se uma das únicas soluções possíveis e muitas vezes, posteriormente, colocar a criança em casa de padrinhos ou parentes mais abonados para que fosse criada111.
A maioria dos pesquisadores, que retrataram a infância abandonada, acredita que
abandono e ilegitimidade são sinônimos. Maria Odila Silva Dias, em relação à sua
pesquisa em São Paulo no século XIX, sugere que o costume de abandonar ou oferecer
os filhos para serem criados por outras pessoas era um “derivativo do índice muito
109SILVA, Maria Beatriz Nizza da. O problema dos expostos..., p. 148 110FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.69 111FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento..., p.76
60
elevado de filhos ilegítimos, principalmente de filhos de adolescentes entre 12 e 16
anos”112.
Laima Mesgravis, ao estudar os expostos da Santa Casa de Misericórdia de São
Paulo (1599?–1884), relaciona o abandono de crianças ao fenômeno da ilegitimidade e
da prostituição113. Luciano Figueiredo em, seu trabalho O Avesso da Memória, também
nos mostra que a prostituição, nas vilas mineiras, foi um oficio bastante perseguido
pelas autoridades. Havia vários motivos para isso, sendo um deles o fato de as
meretrizes enjeitarem as crianças, devido aos poucos recursos materiais que
possuíam114.
Em Vila Rica, encontramos dois documentos que relatam o esforço da Câmara
em combater o aumento do número dos expostos, culpando as meretrizes por tal ato, e
fazendo com que a população participasse desse controle sob pena de ser multada, por
meio de fintas.
(...) nesta Vila e sua Comarca várias mulheres com o ofício de meretrizes públicas as quais não se contentando com as referidas maldades vão à abominável ação de mandarem expor os filhos a que vulgarmente chamam enjeitados sendo dignas de castigo pelo prejuízo que dão às pessoas que costumam criar115.
a todas as pessoas de nossa jurisdição que caso saibam no seu distrito ou vizinhanças acham algumas referidas mulheres meretrizes públicas que tenham exposto ou enjeitado algumas crianças e estas estejam fazendo despesa a este senado o façam a saber a tal câmara ou a seu procurador; e esta notícia não só para os que já estão expostos na forma referida senão também para as que expuserem para o futuro, haja denúncia será tomada na dita câmara com todo o segredo e se evitará com esta diligência dos denunciantes a conta que está próxima a lançar-se por todas as pessoas desta Vila e sua Comarca116.
112DIAS, Maria Odila Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.142 113MESGRAVIS, Laima. A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1599?-1884). São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1976, 173 114FIGUEREDO, Luciano Raposo. O Avesso da Memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII, Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília, DF: Edunb, 1993, p. 84-85 115APM, CMOP, Cód. 77, Edital de 10/03/1763. 116APM, CMOP, Cód. 77, Edital de 10/03/1763.
61
Apesar dessas declarações, sabemos que várias foram as causas do abandono. O
historiador Renato Pinto Venâncio, ao avaliar os motivos que levaram ao abandono de
crianças no Rio de Janeiro e em Salvador no século XVIII e XIX, observa que várias
foram as causas que levaram ao abandono de crianças, como a pobreza, a morte dos pais
ou só da mãe, assim como os amores ilícitos117.
Em Vila Rica, por diferentes motivos, abandonavam-se tanto crianças de
famílias pobres como de famílias ricas. Como exemplo, temos um casal pertencente à
elite e que teve uma filha que se chamava Justina. Para salvaguardar a honra da família
e da mãe da criança, abandonaram provisoriamente a infante em casa de Ana Patrícia,
que a fez batizar em 21/06/1798, e escolheu para padrinho o alferes José Pereira de
Almeida. Depois de alguns meses, os pais se casaram e vieram buscar sua filha de
volta, legitimando-a perante o vigário. Justina foi registrada pelo padre da Matriz do
Pilar de Ouro Preto como filha legitima do capitão João Dias Magalhães Gomes e de
sua mulher, Tomásia Francisca de Araújo, pelo matrimônio subseqüente que ocorreu no
15/12/1798.118 A reputação da família ficou preservada após o casamento da filha. Fatos
como estes não foram raros.
Em 01 de agosto de 1803, Felipe foi batizado, após ter sido abandonado em casa
de Romana Teresa. Ao lado do assento do batismo está escrito que ele era filho legítimo
e o pai e a mãe pertenciam à elite. O pai era capitão e a mãe era Dona de “títulos”, que
aparecem antes dos nomes, nos demonstrando que os pais detinham alguma posse ou
status na sociedade. No referido documento lê-se: "é filho legítimo do capitão José
Fernandes de Lana e de D. Joaquina de Oliveira Jaques ao qual foi legitimado pelo
matrimônio subseqüente"119. Carolina, exposta em casa de Francisca Angélica, batizada
117VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas... 118Arquivo da Casa dos Contos Microfilme. Rolo 6.014, v. 40. 119Batizado em 1 de agosto de 1803, Id.8696.
62
em 27 de outubro de 1802, também foi “Legitimada pelo casamento subseqüente de
seus pais: sargento-mor Joaquim José de Souza e Josefa Camilla de Lelis”120.
No caso do exposto Delfino, os pais não apresentaram dados que pudessem
identificá-los como pessoas pertencentes à elite. Ao lado do assento, elaborado em
11/01/1796, era, “filho de Claudio da Silva Lima casado com Maria Margarida de Jesus,
cujo filho teve antes do matrimônio” (grifo meu)121.
O abandono da criança pelos pais poderia ser temporário, podendo até mesmo,
como vimos no caso da exposta Joaquina, ser estipulado o período para buscá-la.
"Joaquina exposta à porta de Inácia Maria, mulher solteira na noite do dia vinte e seis do
mês de Agosto do ano próximo passado. Batizada em 04 de setembro de 1785, com um
escrito que dizia a criasse por tempo de um mês, que depois a virão buscar"122.
Por outro lado, havia alguns casos em que o pai ficava com a responsabilidade
de criar o filho sozinho. Um dos motivos decorria do falecimento da mãe, levando o pai
– que muitas vezes se encontrava sem recurso financeiro ou psicológico – a abandonar o
filho. Este parece ter sido o caso de Joaquim, exposto "em casa de João Fernandes de
Oliveira". "(...) que declarou Alexandre Luis de Souza Pinto ser pai da criança
acima”123.
Há eventos de enjeitamento de crianças com enfermidade. Alguns pais sem
condições de cuidar da moléstia da criança a abandonavam, talvez pensado que dessa
forma poderiam salvaguardar a vida da criança. Eis alguns exemplos Thereza "exposta
em Thereza Maria dos Anjos, a qual tinha sido batizada em casa em perigo de vida pelo
Reverendo Luis Caetano de Oliveira Lobo"124; “Cecília exposta em casa de Anna
Pereira Pinta, em 22 de novembro de 1803, batizada em casa em perigo de vida pelo
120Banco de dados..., Batizado em 27 de outubro de 1802, Id. 8518 121Banco de dados..., Batizado em 11 de janeiro de 1796, Id. 458 122Banco de dados..., Batizado em 04 de setembro de 1785, Id. 455 123Banco de dados..., Batizado em 19 de janeiro de 1742, Id. 7 124Banco de dados..., Batizado em 22 de agosto de 1784, Id. 259
63
reverendo Nicolau Pimenta da Costa”125; Plácido "exposto em casa de Violeta Maria de
Santa Rosa, o qual tinha sido batizado em casa em perigo de vida pelo infante"126.
Outro motivo de enjeitamento em Vila Rica se relaciona ao declino da
economia, crescimento da pobreza e a imigração dos habitantes da área urbana. A
situação do abandono piorou no período de 1770 a1800. O pesquisador Iraci Del Nero
da Costa, em seu trabalho Vila Rica: População (1719-1826), percebeu, por meio da
análise de documentos batismais dos expostos da Igreja Nossa Senhora da Conceição do
Antônio Dias, que nos períodos da decadência do ouro e o empobrecimento resultaram
em um aumento significativo no número de abandonos. De acordo com os dados
levantados por este pesquisador, passou-se de 4 enjeitados batizados no decênio de
1724-1733 para 167, na década 1799-1808127. Esse cenário surgiu quando os pais ou as
mães solteiras, na impossibilidade de sustentarem os filhos, os abandonaram.
Desse modo, se compararmos o quadro 2 com o quadro 3, notamos que, na
década de 1760, a população de Vila Rica se encontrava em torno de 20.000 habitantes
e o número de expostos batizados na Matriz do Pilar atingia 49 batismos. Embora, o
dado populacional da década de 1796 faça referência a população do termo de Vila
Rica, percebemos que nesse período ocorria uma modificação na demografia
populacional da cidade de Vila Rica. Essa situação fez com que o batismo de exposto
alcançasse 191 batismos. No ano de 1804, observamos que a população de Vila Rica
atingiu 8.867 habitantes e o batismo de exposto, do final da década de 1799 juntamente
com a década de 1800, se somados os da Pilar e os da Conceição do Antonio Dias,
alcançaram cerca de 280 batismos.
125Banco de dados..., Batizado em 2 de dezembro de 1803, Id. 626 126Banco de dados..., Batizado em 22 de dezembro de 1783, Id. 244 127LUNA, Francisco Vidal e COSTA, Iraci del Nero da. Minas Colonial..., p. 27-28
64
Quadro 2 – População de Vila Rica 1760-1820
Cidade 1760 1779 1789 1796 1799 1804 1806 1808 1817 -1822
Vila Rica
c.20 000* - -
c. 20 000** -
8 867*
11 000* ou
12 000* 22 222** c. 8000*
Fonte: FONSECA, Cláudia Damasceno e VENÂNCIO, Renato Pinto. Vila Rica: Prospérité et déclin urbain dans le Minas Gerais (XVIIIe-XXe siècles). Artigo publicado em: Laurent Vidal. (Org.). La ville au Brésil (XVIIIe-XXe siècles) naissances et renaissances. Paris: Rivages des Xantons, 2008, v. p. 179-204. • Dados sobre a população da cidade aglomerada (paróquias de Pilar e AntonioDias)
• ** Os dados sobre a população da cidade e do município (termo)
Quadro 3 - Expostos por Década Batismo 1760-69 1770-79 1780-89 1790-99 1800-09 1810-19 1820-29
Expostos 49 91 141 191 113 8 4
Fonte: Banco de dados referente às atas paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto (CNPq, FAPEMIG), coordenado pela Profa. Dra Adalgisa Arantes Campos (UFMG).
O historiador Donald Ramos também associa o período de decadência do ouro
de Vila Rica com o momento de maior número de crianças abandonadas. Segundo ele,
foi nessa época que a população de Vila Rica se encontrava em dificuldades
econômicas, “obrigando” os habitantes a imigrar para outras regiões das Minas em
busca de trabalho. Em razão disso, as mulheres passaram a predominar em relação aos
homens, as quais chefiavam e sustentavam os seus domicílios. Acontecimento
semelhante também ocorreu no norte de Portugal, particularmente na cidade do Minho,
devido à emigração dos homens daquela cidade para região das Minas, principalmente
para Vila Rica. No início do século XVIII, sucedeu que naquela região houve uma
65
predominância de mulheres sobre os homens, que chefiavam a família e tiveram uma
grande taxa de crianças ilegítimas e abandonadas128.
O gráfico 2129 mostra-nos que houve em Vila Rica aumento no número de
crianças ilegítimas e expostas, principalmente nas décadas de 1790 e 1800, período esse
de crise da mineração. No ano de 1800, os ilegítimos ultrapassavam os legítimos. O
número de expostos também era elevado. Esse evento leva-nos a pensar que Vila Rica
poderia estar vivenciando um momento semelhante ao que ocorreu na cidade do Minho.
Gráfico 3 - Comparativo entre crianças legítimas, ilegítimas
e expostas
0
100
200
300
400
500
600
1750 1760 1770 1780 1790 1800 1810 1820
Décadas
Nú
mero
de c
rian
ças
Legitimos -
Ilegitimos -
Expostos -
Contudo, notamos que não uma, mais várias foram as causas do abandono de
crianças em Vila Rica. Com certeza cada evento apresentava suas particularidades, que
os assentos oficiais não puderam registrar com mais especificidades.
128RAMOS, Donald. Do Minho a Minas:a emigração para Minas Gerais, iniciada no período colonial especialmente oriunda da região norte de Portugal, reproduziu na América portuguesa padrões familiares semelhantes aos da origem. Revista do Arquivo Público Mineiro 133. 129Fonte: Banco de dados referente às atas paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto. LOTT, Mirian Moura. Casamento e famílias na Minas Gerais, Vila Rica – 1804 – 1839. Mestrado de História/UFMG, 2004, p. 36
66
2-2 Antropologia e a Circulação de Criança
Os antropólogos estudam, desde há muito tempo, a circulação de crianças em
sociedades contemporâneas. Foram eles que desenvolveram o conceito de “circulação
de crianças”. Para alguns deles a expressão designa crianças temporária ou
permanentemente confiadas a pessoas distintas dos respectivos pais biológicos.
Sobre essa temática, citaremos o antropólogo Jack Goody para melhor
esclarecermos a importância de percebermos a circulação de criança na sociedade
passada, pois o próprio autor, mesmo que de forma breve, faz uma alusão a alta taxa de
mobilidade das crianças abandonadas. Em seu trabalho Adoption in cross-cultural
perspective, Jack Goody aproxima a teoria da circulação de crianças a distinção entre
“fostering” (criação) e “adoption” (adoção). Fostering diz respeito ao procedimento de
criação da criança e não do sentido jurídico de estatuto ou de arrolamentos familiares
que a adoption envolve; a criação da criança por meio do “fostering” pode ser
temporário ou provisório, ao contrário da adoption que implica uma transferência
definitiva e legal da criança para outra família. Nessa perspectiva, Goody afirma que
havia possibilidade de crianças sem família – órfão e exposto – serem integradas em
outras famílias, mesmo que fosse na forma de adoção legal, pois as famílias criadoras e
amas de leite eram vistas como uma família “fostering”, além disso, talvez mais tarde a
criança poderia se tornar uma integrante da família acolhedora130.
Assim sendo, as crianças expostas eram entregues para famílias criadeiras ou
amas-de-leite, as quais se comprometiam a criá-las por tempo limitado ou ilimitado.
Quando a estadia era provisória, as crianças não voltavam para família de origem, eram
130GOODY, Jack. Adoption in cross-cultural perspective. Comparative Studies in Society and History, vol. 11, 1969, p. 55-78. Apud SÁ, Isabel do Guimarães. A circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 11.
67
enviadas para outras famílias ou para instituições assistenciais, contribuindo deste modo
para uma alta circulação dos mesmos.
Phillipe Áries, ao retratar a passagem da família medieval para a família
moderna, revela-nos que havia uma elevada mobilidade das crianças maiores de sete
anos de idade. Elas eram colocadas nas casas de outras pessoas, permanecendo nessas
casas até completarem 14 ou 18 anos. Durante esse tempo, a criança se tornava um
aprendiz, aprendendo serviços domésticos, artesanato e como se comportarem. Nessas
condições, “as crianças desde muito cedo deixavam sua própria família, mesmo que
voltasse a ela mais tarde, depois de adulta, o que nem sempre acontecia”. Essas crianças
de alta mobilidade não necessariamente eram pobres e os pais que enviavam os
respectivos filhos também recebiam em suas casas outras crianças para eles ensinarem.
Embora Ariès não se referisse exclusivamente à criança abandonada, ele nos revelou a
movimentação das crianças na Época Moderna, mostrando de forma cultural o
relacionamento da família com os filhos, que para o autor era uma realidade moral e
social, mais do que sentimental131.
A historiadora Isabel de Sá observa que muitas crianças não foram amamentadas
pelas próprias mães, mas por amas de leite, sendo que a maioria delas foram criadas
fora da casa dos pais e confiadas a outros agregados familiares para serem educadas e
outras eram simplesmente confiadas a terceiros como aprendizes. Tais transferências de
encargo levava os pais a permanecerem pouco tempo com seus filhos. Nessa
perspectiva, a autora associa o abandono de crianças a um ambiente de sistema
integrado marcadas pela mobilidade interfamiliar. Para ela, a circulação de crianças seja
expostas ou não ocorria tanto entre famílias dispostas a criá-las, quanto em instituição
de auxílio, o que mostra a movimentação das crianças enjeitadas.132 Dessa forma,
131ARIÈS Philippe. História Social da Criança..., p.225-231 132SÁ, Isabel do Guimarães. A circulação de crianças..., p. 10-22
68
identificamos na antropologia o conceito de circulação de crianças, para descrever a
alta mobilidade de crianças abandonadas de Vila Rica.
Acreditamos que o abandono de crianças era por natureza secreto, portanto, o indivíduo
que se expunha tinha como objetivo preservar a sua identidade e encontrar um lugar e
um horário seguro para abandonar o infante. Nas áreas urbanas das vilas coloniais, onde
as Rodas dos Expostos se faziam presentes, essas instituições ajudavam os pais a
conciliar tanto preservação da identidade como o lugar e o horário seguro para expor o
filho. Porém, como vimos, Vila Rica não possuía tal dispositivo, fazendo com que o
abandono de crianças fosse vivenciado em locais públicos, como nas portas das casas,
nas ruas, igrejas e hospitais. Deste modo, apresentaremos, por meio do quadro 4, a
mobilidade de um grupo de crianças enjeitadas, cuja trajetória foi identificada na
documentação analisada.
Quadro 4 - Mobilidade das Crianças
Nome do Exposto
Nome da pessoa que encontrou o
enjeitado
Dias que a criança permaneceu com o primeiro criador
Nome do criador permanente Local da exposição
Ana Procurador Atual da mesma câmara No mesmo dia
Rita Gonçalves de Carvalho
Rita Capitão José Alves
Maciel No mesmo dia Francisca Vaz crioula forra
Fazenda dos Calheirões
Anselmo Bernardo José da
Encarnação No mesmo dia Venância Josefa da
Câmara Freguesia Da Nossa
Sra. Conceição
Hipolita Romana Teresa No mesmo dia Lucia escrava do capitão Francisco
Domingos
Reverendo Vigário da Freguesia de Congonhas do
Campo No mesmo dia Dona Ressurreição
viúva Ouro Preto
Tereza Ana Machado 4 dias Manoel Antônio da Silva pardo forro
Freguesia Ouro Preto
Custódio Maria Álvares crioula forra 7 dias Antônio Marinho
Alto da Cruz da freguesia
Jacinto Ana Mendes de
Vasconcelos 8 dias Felícia Teixeira Assunção forra
Bairro de Padre Faria
Antônio Manoel Caetano 9 dias Paulo Dias
Luiz Capitão Domingos
da Cruz 10 dias Antônio Marinho Freguesia Da Nossa
Sra. Conceição
Mariano Reverendo
“Neucau” Pereira 11 dias Antônio de Paula
Coimbra
69
da Costa
José Maria da Silva
Aguiar 13 dias Feliciana Maria
parda forra Rua do Rosário
Maria João da Costa 13 dias
Rosa Maria mulher de Gonçalo de Souza Rabelo
Freguesia de Antônio Dias
Cândida
Capitão Thomás Joaquim de
Almeida (Frant) 13 dias Thomé Joaquim
Alves Rua Direita
Claudina Dona Francisca do
Pillar Eliana 15 dias
Ana Francisca de Andrade crioula
forra Freguesia Da Nossa
Sra. Pilar
Antônia Manoel da Silveira
Gato 15 dias Ana Maria de Faria rua das cabeças
Antônio
Doutor Desembargador
Intendente Antônio de Brito Amorim 17 dias
João Nunes Maurício
Joaquina Manoel dos Reis 20 dias Dona Ignácia Maria
dos Reis Freguesia Ouro
Branco
José Jerônimo de
Lemos 20 dias Antônio de Souza
Coelho Padre Faria
Joaquim Thomas de Aquino 21 dias Rita Maria da
Conceição Freguesia Itabira do
Campo Antônio Lucas de Souza 25 dias rua das cabeças
Francisco
Vitoriana Teixeira da Graça crioula
forra 26 dias Ângela Gomes Freguesia de Antônio Dias
Francisco Domingos Pinto 30 dias Margarida de Matos
crioula forra R de trás dita Matriz
Claudina João Nunes 1 mês João Coelho da
câmara
José João Rodrigues de
Macedo 1 mês Dona Rosa Maria
de Jesus
Francisco Josefa Correia da
Silva 1 mês Mariana Correia da
Silva Freguesia de Ouro
Preto
Manoel 1 mês Dona Ana Joaquina
de Souza Ozório Freguesia Da Nossa
Sra. Conceição
Francisco
João Machado crioulo forro
casado 1 mês Antônio Marinho
casado Padre Faria de Antônio Dias
Venância
Capitão Manoel Francisco de
Andrade 1 mês Francisca Ângela de
Souza parda forra rua nova do Sacramento
Filipe Capitão Francisco de Freitas Braga 1 mês
Francisca Ângela de Souza parda forra, e
desta Para Ignes Sebastiana
Cândido Marques
Guimarães 1 mês Baltazar Gomes de
Azevedo Freguesia Da Nossa
Sra. Pilar
Ignácio Coronel Cortes José da Silva 1 mês
Ajudante Manoel Álvares de Meireles
Luiza
Atual procurador da mesma câmara Capitão Francisco de Freitas Braga 1 mês
Capitão Manoel Antônio Morais
Adão
Reverendo Francisco Ferreira
da Cunha 1 mês Capitão Antônio
Leite da Silva Ponte do Caquende
70
Rosa João Pereira
Zacarias 1 mês Maria Dias Maciel
crioula forra
Bárbara João Pereira
Zacarias 1 mês Cipriana de Jesus
Batista viúva
Francisca Joana Lopes crioula forra 1 mês
Ana Marcelina crioula forra R. Vigário da Pilar
Vitoriano
Capitão Thomás Joaquim de
Almeida 1 mês Antônia Gomes de
Barros R. Santa Guitéria
Ignácio Alferes Luiz
Gomes da Fonseca 1 mês Ana Francisca parda
forra R. direita da casa da
câmara
Joana
Francisco Xavier de Andrade
Ferreira 1 mês Maria Pereira da
Gama Freguesia Da Nossa
Sra. Conceição
Guintiliana Alferes Domingos
Gonçalves 1 mês Maria Cristina de
Jesus Morro da Piedade
Antônia Alferes José de
Matos 1 mês Josefa da câmara
Freguesia Santo Antônio da Casa
Branca
Felicidade
Gerente Coronel José Duarte
Pacheco 1 mês Joana Maria preta
forra Cadeia de Ouro
Preto Joaquina Francisco José 1 mês Maria da Cruz Ponte do Caquende
Maria
Reverendo Joaquim Roberto
Silva 1 mês Caetana Maria r. dos Paulistas Ana (exposta
de Ana de Almeida) Ana de Almeida 1 mês Joaquim da Cunha r. do Rosário
Ignacia
Procurador do (Sena) do Capitão
Antônio Dias Botelho 1 mês
Catarina da Guarda, moradora da rua dos
paulistas
Rita Francisca Dionisia
(parda forra) 1 mês Marcelina Batista
crioula forra rua do ouro preto
Antônia Jerônimo de Souza
Lobo Libra 2 meses Edevirgem
Rodrigues de Souza
Graciana Manoel de Araújo
Pereira 2 meses Nazaré Ferreira de
São Lucas
Antônio
Coronel [Ventano] Fernandes de
Oliveira 2 meses Alferes Antônio
Martins
Fantina João Gomes
Batista 2 meses
Sargento mor Gonçalo da Silva
Morais Freguesia Da Nossa
Sra. Pilar
Francisco Manoel Luiz
Soares 2 meses Eliana Fernandes
crioula forra Padre Faria de Antônio Dias
Luiz Capitão Francisco de Freitas Braga 2 meses
Antônio Moreira Duarte
Maria Alferes Pedro
Oliveira Jaques 2 meses Manoel José da
Purificação Praça do Antônio
Dias
Joaquim
Sargento mor Teotônio Maurício de Miranda Ribeiro 2 meses
Capitão Luiz Alves Esteves
R. direita da casa da câmara
Sabino
Procurador da mesma câmara
Capitão Antônio Rodrigues Braga 2 meses
Francisca Arcangela de Souza
José Alferes João de 2 meses João da Silva de Arraial dos Paulistas
71
Oliveira Oliveira
Maria
Dona Francisca Xavier de
Vasconcelos 2 meses Felicia Matildes de
Vasconcelos
Francisca João Batista
Jacobina 3 meses Manoel Pereira da
Cunha R. direita da casa da
câmara
José Maria Roseira crioula forra 3 meses
Antônia Soares de Oliveira rua nova
Luiza
Doutor Paulo José de Lana Costa
Dantas 3 meses Antônia de Oliveira
Manoel Padre (...) Dias de
Almeida 4 mês Antônia Gomes de
Barros Freguesia de Ouro
Preto
Ana Benedita Doutor José Dias
Rosa Maciel 4 meses Dona Ana Guiteria
da Luz Alto da Praça
Maria Capitão Domingos da Rocha Pereira 4 meses Mexias dos Santos
Freguesia de Antônio Dias
Feleciana Domingos Pinto
Correia 4 meses Francisca Rodrigues
Chaves
Antônia
Reverendo Antônio da Silva
Pereira 4 meses Ana Maria Fernandes
Freguesia Santo Antônio da Casa
Branca
Catarina
Sargento Mor Manoel Pinto
Lopes 5 meses Catarina Dias
Ramos Ponte do Rosário
Maria Alferes Pedro de Oliveira Jaques 6 meses
Manoel José da Purificação
Freguesia Da Nossa Sra. Pilar
José Antônio Mendes da Cunha Jardim 7 meses Josefa da câmara
Freguesia Do Congonhas do
Campo
Manoel Antônio José dos
Santos 9 meses Maria Rosa dos
Anjos
Cândida João Gomes de
Batista 10 meses Ignácia da Silva de
São
José João Moreira
Ribeiro 11 meses Jacinto Alves de
Meireles Morro de Santa Ana
Manoel Capitão Francisco Caetano Ribeiro 11 meses
Manoel José Valasco
à porta do procurador da vila
Emerenciana Mariana Correia 1 ano Ana Luiza crioula
forra Praça dessa vila
Joaquim Maria Pereira
parda forra 1 ano Manoel Alves da
Cruz
Freguesia Santo Antônio da Casa
Branca
Cândida Alferes Francisco
Xavier Luis 1 ano Dona Angélica dos
Anjos
Maria Dona Valencia (...)
Clara de Jesus 2 anos Benedito Alves
Freguesia Do Congonhas do
Campo
Joana
Francisco Xavier de Andrade
Ferreira 3 anos Maria Pereira da
Gama Freguesia Da Nossa
Sra. Conceição
Guiteria Antônio de Moura 3 anos Jerônimo Pimenta da
Costa Matriz da cachoeira Fonte: Lista de Matrícula dos Expostos. No Arquivo Público Mineiro. CMOP, Enjeitados – Cód. 88 (1751-1784); Cód. 111 (1781-1790); Cód. 116 (1790-1796) e Cód. 123 (1796-1804).
72
Antes de analisar o quadro 4 são necessários alguns esclarecimentos. O número
total de crianças escritas, na Lista de Matrícula dos Expostos da Câmara de Vila Rica
(1770-1804), chegou a 603 registros, porém alguns documentos, embora padronizados,
diferenciam-se no conteúdo das informações que traziam. No quadro 4, conseguimos
registrar 80 casos de crianças que permaneceram por alguns dias, meses e anos nas
casas das pessoas que as encontraram, sem que o sujeito ou família tenha recebido
algum pecúlio, até serem enviados para os criadores permanentes, por intermédio do
auxílio da Câmara.
Embora esteja claramente identificado no quadro 4, veremos de maneira mais
detalhada na Planta133 de Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar, no capítulo seguinte, que
algumas das crianças foram abandonadas nas ruas, igrejas, praças e nas portas de
pessoas que parecia ser selecionadas pelos pais para encontrá-las. De modo geral,
podemos colher algumas evidências desse quadro. Calculamos que dos 80 indivíduos
que acharam os expostos, 40 deles não possuíam nenhum título e 40 deles possuíam
algum título como patente militar (coronel, tenente, alferes), oficiais do senado
(procurador), membros da igreja (reverendo, padre), donas e negras forras, sugerindo
que os pais selecionavam algumas pessoas para acolherem os seus filhos, sendo que a
maioria dos acolhedores possuía algum título. Notamos que, das 80 pessoas que se
tornaram criadores permanentes, 26 delas tinha algum título e as outras 55 não detinha
nenhum status.
Também constatamos que o tempo de transferência do exposto para a família
permanente podia variar. Alguns criadores temporários entregavam a criança à Câmara
no mesmo dia que as encontravam, como foi o caso do Procurador Atual da mesma
Câmara com a exposta Ana, que foi encontrada por ele e foi entregue no mesmo dia a
133 Mapa de Vila Rica de 1798
73
Rita Gonçalves de Carvalho134. Eis outras ocorrências semelhantes: Capitão José Alves
Maciel entregou a exposta Rita no mesmo dia, que a recebeu a Francisca Vaz crioula
forra135; Reverendo Vigário da Freguesia de Congonhas do Campo deu o exposto
Domingos a Dona Ressurreição mulher viúva136. Há casos de crianças que foram
entregues à Câmara depois de um mês. Este foi o caso da exposta Inácia, entregue ao
Procurador da Câmara, o Capitão Antônio Dias Botelho um mês após se abandonada à
Catarina da Guarda, moradora da rua dos paulistas137. O Reverendo Joaquim Roberto
Silva fez o mesmo com a exposta Maria. Depois de um mês, a entregou à Caetana
Maria138. Há casos de expostos que permaneceram um ano ou mais com a pessoa que o
encontrou. Maria Pereira, parda forra, permaneceu por um ano com o exposto Joaquim
até ele ser entregue a Manoel Alves da Cruz139; Dona Valencia (...) Clara de Jesus ficou
com Maria por dois anos, com uma criança que depois foi conferida a Benedito
Alves140; Antônio de Moura permaneceu por 3 anos com a exposta Guitéria, até ela ser
confiada a Jerônimo Pimenta da Costa141.
Tentamos mostrar que a mobilidade da criança em Vila Rica era alta. O exposto
era antes encontrado por uma pessoa selecionada pelos pais ou não, a qual decidiria se
ficaria com ela. Esse tempo de decisão, como vimos, podia variar e se por acaso as
pessoas que as achassem não quisessem ficar com a criança, a enviava para a Câmara,
para ser criada por outro criador. Essa circulação poderia ocorrer por diversos motivos.
Havia pessoas que não estavam aptas para criarem uma criança, outras que apenas não
queriam esse encargo, além de questões relacionadas com os conceitos de moralidade
social da época em questão. Isabel, por exemplo, foi deixada na casa de Manoel Martins 134APM, CMOP – Enjeitado Cód. 111(1781-1790) Matriculado 14/01/1786 – Folha, 30 135APM, CMOP – Enjeitado Cód. 116 (1790-1796) Matriculado 10/04/1793 – Folha, 50 136APM, CMOP – Enjeitado Cód. 123 (1796-1804) Matriculado 30/08/1800 – Folha, 70 137APM, CMOP – Enjeitado Cód. 123 (1796-1804) Matriculado 09/05/1801 – Folha, 80 138APM, CMOP – Enjeitado Cód. 123 (1796-1804) Matriculado 21/02/1801 – Folha, 78 139APM, CMOP – Enjeitado Cód. 116 (1790-1796) Matriculado 12/03/1796 – Folha, 63 140APM, CMOP – Enjeitado Cód. 123 (1796-1804) Matriculado 08/02/1804 – Folha, 85 141APM, CMOP – Enjeitado Cód. 123 (1796-1804) Matriculado 07/04/1804 – Folha, 86
74
dos Anjos, por esse último ser solteiro, ele a enviou para uma casa de família mais
capaz de lhe dar uma boa educação142. Também poderíamos pensar que o período em
que a criança abandonada permaneceu na casa da família que a encontrou ocorresse
devido à necessidade da Câmara de encontrar outro criador. Além disso, se o sujeito não
quisesse criar uma criança, a Câmara logo a enviava para outro criador. Este foi o caso
da enjeitada Maria, encontrada por Ana de Almeida que a entregou à Câmara, e esta
última a encaminhou a Joaquim da Cunha143. Situação semelhante foi vivenciada por
Filipe, exposto a Capitão Francisco de Freitas Braga, entregue pela Câmara a Ângela de
Souza, parda forra; essa última não quis ficar com o enjeitado e o enviou, com
aprovação da Câmara, a Inês Sebastiana144.
A casa da ama-de-leite foi outro lar em que algumas crianças ficaram por algum
tempo, sugerindo uma movimentação de crianças. Por causa da necessidade especial de
se alimentar um bebê, muitos criadores que não possuíam ama-de-leite em casa as
contratavam ou transferiam os bebês para essas a casas. Renato Venâncio afirma que as
amas-de-leite do Rio de Janeiro e de Salvador eram recrutadas principalmente na Zona
urbana, ao contrário do que ocorria na Europa, onde se buscavam de preferência amas
camponesas. Em São Paulo, a maioria das amas-de-leite da Roda da Santa Casa residia
em distantes bairros rurais.
Embora tenhamos poucos documentos que relatam o assunto em Vila Rica, há
sugestões de que algumas crianças foram enviadas para a residência da ama e outras
crianças tiveram privilégios de receber a ama na casa de seu respectivo criador. Este foi
o caso do alferes Manoel Francisco Carneiro, que pagou a ama-de-leite quatro oitavas
por mês para alimentar o enjeitado de nome José145. Não se tratava de uma ocorrência
142APM, CMOP, Cx. 71, Doc. 07 143APM, CMOP – Enjeitado Cód. 123 (1796-1804) Matriculado11/04/1801 – Folha, 564 144APM, CMOP – Enjeitado Cód. 111(1781-1790) Matriculado 13/08/1785 – Folha, 83 145APM, CMOP, Cx. 40, Doc. 16
75
isolada Manoel Carvalho recebeu uma enjeitada branca e “como é homem já de idade e
não tem negra de leite que a crie (...) foi preciso alugá-la146. Muitos desses criadores
pediram para Câmara repor o dinheiro que eles gastaram com o pagamento da ama, pois
segundo Ordenação Filipina, era de responsabilidade do Conselho camarario arcar com
a alimentação e vestimenta do exposto. Infelizmente para Vila Rica não temos nenhuma
estimativa de quanto se pagava uma ama e, além disso, temos pouca informação sobre
quem seriam elas e se havia uma classe de mulheres privilegiada para tal função. O que
observamos são casos, como o do criador Vicente Ferreira Fonseca, que pediu para a
Câmara a matrícula do exposto, para poder alugar uma negra147. Outra situação
semelhante foi o caso do Coronel citado acima, que precisou de uma negra de leite para
o enjeitado que havia acolhido. Muitos historiadores, que estudam sobre amas, relatam
que a maioria delas eram escravas, seguidas das pardas e brancas. As escravas, por
apresentarem em elevadas porcentagens de natalidade, eram as mais adaptadas para
amamentação dos infantes, o que se tornou mais uma atividade lucrativa para os
senhores que as enviavam para a Misericórdia para trabalharem como amas-de-leite148.
2-3 A exposição: amor ou desamor?
O abandono de crianças era visto pelos letrados e autoridades como uma atitude
de irresponsabilidade e de desamor dos pais com relação à prole. Muitos textos oficiais
demonstravam que o gesto dos pais em expor um filho era assimilado ao descaso e a
falta de moral. Renato Venâncio, em seu trabalho Famílias Abandonadas, observa que
são abundantes os relatos oficiais produzidos por instituições assistenciais e jurídicas
146APM, CMOP, Cx. 28, Doc. 24 147APM, CMOP, Cx. 36, Doc. 56 148LIMA, Lana Lage da Gama e VENÂNCIO, Renato Pinto. O Abandono de Crianças Negras no Rio de Janeiro. Apud PRIORE Mary Del (org). história da criança no Brasil. Editora: Contexto, 1996, p. 60-75.
76
que retratam o abandono de crianças como decorrência da falta de amor dos pais149. Na
própria documentação das leis das Ordenações150 lusitanas, notamos que há indícios
consideráveis de que o abandono era visto pelas autoridades como falta da moral e de
amor dos pais – os enjeitados eram “filhos de alguns homens casados, ou de solteiros ou
filhos de religiosas, ou mulheres casadas”151.
Segundo Venâncio, no século XVI, as leis passaram a cobrar a “criação dos
enjeitados de modo que as crianças não morressem por falta de criação”. Em
decorrência disso, os vereadores de Lisboa ficaram mais conscientes da atenção que
deveria ser exercida aos enjeitados, mas deixavam claro que as mães eram as principais
responsáveis pela ação do abandono.
A Igreja também apoiava tal discurso oficial. O jesuíta, Alexandre de Gusmão,
afirmou que “as mulheres da natureza humana se são ricas, se enfastiam de criar os
filhos a seus peitos, e os dão a outras mulheres para os criar; e se são pobres os
enjeitam, e talvez os desconhecem por filhos”152.
No discurso teológico, expor a prole era sinal da crueldade humana, em
desobediência aos ensinamentos católicos. Entretanto, de acordo com Venâncio,
algumas autoridades e letrados demonstraram ambigüidades ao estabelecerem distinções
entre as diferentes atitudes que consideravam negativas. Alguns preferiam combater o
infanticídio, por ser este mais cruel do que o abandono. Quase sempre se apoiava “uma
atitude compreensiva diante do último gesto, principalmente quando esse gesto não
punha em risco a vida da criança”153. A maneira ambígua com que os cristãos se
comportavam diante do abandono podia ser notada por meio dos elogios que a Igreja
149VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas..., p. 17-23 150Ordenações Manuelinas (1521), Livro I, título 67 e Ordenações Filipinas (1603), Livro I, titulo 88 151VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas..., p. 20 152VENÂNCIO, R. P., RAMOS, J. M. (org.). GUSMÃO, Alexandre de . Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 153VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas..., p. 19
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fazia as almas caridosas que recebiam os sem família. “Em certo sentido, o
enjeitamento, ao estimular a caridade alheia contribuía até mesmo para a difusão da
fé”154.
Na prática, essa atitude ambígua dos letrados – que se compadecia com o
enjeitamento – era um importante meio de salvaguardar a vida dessas crianças. No
vocabulário de Raphael Bluteau, há uma citação minuciosa a esse respeito:
Menino enjeitado (...) desamparado de seus pais (...) exposto no adro de uma Igreja, ou debaixo no limiar da porta de um convento, ou de pessoa particular, ou depositado no campo a Deus, e a ventura, cruelmente padece o castigo dos ilícitos concubinatos de seus pais. Para obviar a crueldade deste infanticídio, e a inumana desconfiança de alguns, cuja pobreza os obriga a este desatino, por não ter com que alimentar família mais números, em muitas partes da cristandade há hospitais com Rodas, onde se põem as tristes criaturas, e se dão a criar mulheres escolhidas, e aceiradas para este efeito155.
No entanto, ao contrário do que os letrados afirmavam, alguns pais
preocupavam-se com a exposição dos filhos e resistiam em abandoná-los. Uma das
fontes que mais contradiz os letrados são as mensagens que acompanhavam algumas
crianças. No quadro 5, selecionamos alguns exemplos de mensagens deixadas pelos
pais, será utilizado formato de tabela para melhor visualização.
Quadro 5 – Bilhetes anexados aos bebês pelos pais Freguesia de N. Sª Pilar de Ouro Preto
segunda-feira, 18 de setembro de 1752
Anna foi batizada "sub conditione". "Consta que Anna "aos dez ou onze dias deste presente mês se achou exposta no corredor das casas de José Alves Maciel e trazia hum escrito de letra
Freguesia de N. Sª Pilar de Ouro Preto
sábado, 28 de outubro de 1752
Thereza "exposta aos vinte e seis dias deste dito mês em casa de João Gonçalves Bragança desta dita freguesia o qual disse que a dita exposta trazia uma carta que dizia que a dita exposta
Freguesia de N. Sª Pilar de Ouro Preto
terça-feira, 11 de março de 1777
Antônio "exposto em casa do Reverendo vigário o Doutor Antonio Correa Mayrinck, e trazia um escrito que dizia ser filho de mulher branca e que se havia de chamar Antonio (...)".
154VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas..., p. 19 155BLUTEAU Raphael. Vocabulário Português e Latino. Tomo I. Coimbra: s.n; 1712, p. 577.
78
incógnita que dizia ter sido batizada.(...)".
nascera aos quinze deste mês vinha sem batizar, se chamasse Thereza".
Freguesia de N. Sª Pilar de Ouro Preto
segunda-feira, 15 de janeiro de 1781
Manoel "Exposto no Corredor das Casas do Capitão Antonio Leite da Silva(...) com um escrito que dizia se havia de chamar Manoel, e que fossem Padrinhos o sobredito Capitão, sua mulher Maria Fernandes".
Freguesia de N. Sª Pilar de Ouro Preto
segunda-feira, 11 de fevereiro de 1782
Cândida "exposta na madrugada do dia trinta, e hum do mês de Janeiro próximo passado no pátio das cazas de Dona Maria Izabel Coutinha viúva que ficou do falecido Antonio Affonso Pereira moradora no morro dos Ramos com um escrito que dizia que criasse pelo amor de Deus".
Freguesia de N. Sª Pilar de Ouro Preto
domingo, 4 de setembro de 1785
Joaquina "exposto a porta de Inacia Maria mulher solteira na noite do dia vinte e seis do mês de Agosto do ano próximo passado, com um escrito que dizia a criasse por tempo de hum mês, que depois a virão buscar".
Freguesia de N. Sª Pilar de Ouro Preto
quarta-feira, 11 de abril de 1787
Manoel "exposto a porta do Reverendo Vigário na noite do dia dez do corrente com um escrito que dizia se tinha batizado em casa e que se chamava Manoel".
Freguesia de N. Sª Pilar de Ouro Preto
29 de junho de 1781
"Antonia... exposta a porta de Jerônimo de Souza Lobo Lisboa, a doze do corrente mês, pelas dez horas da noite, e sendo por este entregue aos oficiais da Câmara, com um escrito o mandaram estes criar por Edvirges Rodrigues de Souza.
Freguesia de N. Sª Pilar de Ouro Preto
segunda-feira, 11 de janeiro de 1796 "Exposto em casa de Manoel Antônio da Costa morador nesta freguesia". Padrinho marido da madrinha. Ao lado do assento consta que Delfino "mencionado neste assento e filho de Cláudio da Silva Lima casado com Maria Margarida de Jesus cujo filho teve antes do casamento"
Fonte: Banco de dados referente às atas paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto (CNPq, FAPEMIG), projeto coordenado pela Profa. Dra Adalgisa Arantes Campos (UFMG). Lista de Matrícula dos Expostos. No Arquivo Público Mineiro. CMOP, Enjeitados – Cód. 88 (1751-1784); Cód. 111 (1781-1790); Cód. 116 (1790-1796) e Cód. 123 (1796-1804). VENÂNCIO, Renato Pinto. Entregues à própria sorte. Nossa História, ano 1, nº 9. Julho 2004, p.42-48.
As mensagens das mães traduziam a emoção ao exporem seus filhos: “peço-lhe
para criar esta criança, pelo amor de Deus que lhe pagará algum dia”156. Em outros
casos, as mães escolhiam quem iria cuidar de seu filho abandonado, às vezes era dado a
um amigo ou parente para criar. Este foi o caso, por exemplo, de “Ana Maria quando
156Banco de dados..., Batizado em 29 de novembro de 1785
79
pediu permissão à Câmara da cidade para criar Antônia, que tinha sido secretamente
confiada a ela pela mãe da criança, sua amiga e madrinha”157. Há ocorrência de pais
escolherem padrinhos para seus filhos, como o caso de Manoel "Exposto no Corredor
da Casa do Capitão Antônio Leite da Silva acompanhado de um escrito que dizia que
fossem Padrinhos, o sobredito Capitão e sua mulher Maria Fernandes"158; e também o
de “Antônio exposto à casa de Antônio Ribeiro de Andrade, em 05 de Janeiro de 1846,
"com uma cédula em que não havia outro esclarecimento, salvo o de pedir que ele e sua
irmã fossem padrinhos”159. Algumas mães estipulavam o tempo em que voltariam para
buscar o filho, Joaquina "exposto à porta de Inácia Maria mulher solteira com um
escrito que dizia que a criasse por um período de um mês, que depois a virão buscar"160.
Havia expostos cujas mães escolhiam o nome deles. Joaquim "exposto à porta de Anna
Maria de Faria parda forra e trazia um escrito no qual dizia que se chamava Joaquim
José (...)"161; Madrinha – solteira e padrinho João de Souza Benevides. Francisca
"exposta à porta de João de Souza Benevides (...) com um bilhete que dizia lhe
pudessem o nome de Francisca"162. Outros expostos vinham com o nome completo para
que, mais tarde, fossem identificados pelos pais. Como, por exemplo, a “Exposta Anna
Benedita nas casas do Doutor José Dias Rosa onde Mora Dona Anna Quitéria da Luz
Escoria Dormanda casada”163; o “Exposto Francisco de Assis na casa da Srta Francisca
Teodora do Pilar”164. Algumas mães especificavam no bilhete que a criança era branca,
para garantir que ela receberia o auxílio da Câmara. Este foi o caso da exposta Cândida,
que trazia um escrito que dizia ser “filho de mulher branca e que se havia de chamar
157APM, CMOP – Enjeitado Cód. 111(1781-1790) Matriculado 01/07/1780 – Folha, 125 158Banco de dados..., Batizado em 15 de janeiro de 1781, Id. 10029. 159Banco de dados..., Batizado em 19 de fevereiro de 1846, Id. 7080. 160Banco de dados..., Batizado em 04 de setembro de 1785, Id. 6455. 161Banco de dados..., Batizado em 11 de março de 1781, Id.10035. 162Banco de dados..., Batizado em 21 de outubro de 1780, Id. 10010. 163Banco de dados..., Batizado em 27 de junho de 1786, Id. 6504. 164Banco de dados..., Batizado em 28 de maio de 1838, Id. 6368.
80
Antônio (...)"165. Era também comum a solicitação do Batismo. Os pais se preocupavam
e muito com a salvação espiritual da criança. Christina exposta, aos nove dias do dito
mês, na porta de Miguel Borges e de sua mulher Suzana Borges, o qual exposto trazia
um escrito de que não estava batizada (...)"166; Anna "foi exposta em casa de Manoel
Gomes Pinheiro, a qual trouxe cédula de que não estava batizada(...)"167.
Por outro lado, alguns escritos diziam que a criança já tinha sido batizada.
Manoel "exposto à porta do Reverendo Vigário, na noite do dia dez do corrente ano,
com um escrito que dizia ter sido batizado em casa”168; Anna foi batizada "sub
conditione". Consta que Anna, "aos dez ou onze dias deste presente mês, se achou
exposta no corredor das casas de José Alves Maciel e trazia um escrito de letra
incógnita que dizia ter sido batizada(...)"169. Outra surpresa é a preocupação da mãe em
especificar os meses ou dias de vida da criança. Caso de Thereza "exposta, aos vinte e
seis dias deste dito mês, em casa de João Gonçalves Bragança desta dita freguesia o
qual disse que a dita exposta trazia uma carta que dizia que a dita exposta nascera aos
quinze deste mês vinha sem batizar, se chamasse Thereza”170.
Há alguns casos em que há testamentos de mães que deixava herança para os
filhos, inclusive o que fora exposto. A testadora Maria Joaquina Rosa de Lima, natural
de Vila Rica, moradora do Arraial de São Miguel, Comarca do Rio das Velhas, morava
em Vila Rica e migrou para São João Del Rei, onde teve três filhos e, por encontrar-se
em estado de solteira e de miséria, expôs o Joaquim e outras duas filhas. Ao que tudo
indica, Maria Joaquina era uma mulher pobre, solteira, imigrante e que não tinha como
sustentar a família dela.
165Banco de dados..., Batizado em 11 de março de 1777, Id. 5354. 166Banco de dados..., Batizado em 16 de setembro de 1760, Id. 4244. 167Banco de dados..., Batizado em 05 de agosto de 1770, Id. 4828. 168Banco de dados..., Batizado em 11 de abril de 1787, Id. 6662. 169Banco de dados..., Batizado em 18 de setembro de 1752, Id. 3802. 170Banco de dados..., Batizado em 28 de outubro de 1752, Id. 3838.
81
(...) que sendo no ano de Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e dezoito ao dezoito dias do mês de outubro do dito anno, nesse Arraial de São Miguel, Comarca do Rio das Velhas, Bispado de Mariana em casa de minha morada estando em meu perfeito juízo pela mercê de Deus e temedora da morte determino o meu testamento na forma seguinte: sou católica romano e nesta santa fé protesto viver e morrer e por isso rogo a Trindade Santíssima que pelos infinitos merecimentos da Paixão e Morte de meu Senhor Jesus Cristo que queiram valer a minha alma = Sou natural de Vila Rica, batizada na freguesia de Ouro Preto, filha legitima Antônio José de Lima Costa e Benta Nunes do Rosário já falecidos e sempre vivi em estado de solteira e por miséria tive três filhos, um por nome Joaquim que foi exposto em São João Del Rei, outra por nome de Anna Rosa e outra por nome Francisca de Paula que me dizem em boas estão casadas e como não sei com quem meu testamenteiro terá cuidado em indagar a saber onde moram três meus filhos porque a lei instituiu-os meus herdeiros das duas partes de meus bens que se acharem por meu falecimento. (...)171.
Venâncio, nos chama a atenção para a necessidade de diferenciar as crianças
expostas das assistidas. Sendo que para os letrados as primeiras eram aquelas
abandonadas pelas mães "em um terreno baldio" e deixadas para morrerem. Ao passo
que as assistidas eram abandonadas em hospitais, conventos e casas de família, numa
demonstração de preocupação e proteção daqueles que as enjeitavam172. No entanto,
esse último conceito pode parecer um pouco desapropriado para Vila Rica, se levarmos
em consideração que nela não havia um Convento ou uma Santa Casa de Misericórdia
aparelhada com a Roda dos Expostos, dispositivo apropriado para que o pai expusesse o
filho com segurança. Além disso, também não havia, pessoas preparadas para recolher
as crianças achadas nas ruas. Numa ata da Câmara de Ouro Preto de 1741, observamos
a preocupação da instituição em pavimentar as vias públicas para evitar que as
enxurradas, que desciam com força redobrada das ladeiras mais íngremes, causassem
danos aos passantes e aos edifícios173. Contudo, apesar desses obstáculos, notamos que
171Testadora: Maria Joaquina Rosa Lima, moradora do Arraial de São Miguel. 1834 Fl. 5. Agradeço com muito carinha a minha amiga Maura Brito, por me fornecer esse testamento. 172VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas..., p. 23 173VASCONCELOS, Sylvio. Vila Rica, Ed. Perspectiva, 1977.
82
muitos foram os casos de pais que escolhiam a porta ou a rua que melhor fosse para
enjeitar o pequerrucho.
Nessa perspectiva, conhecer mais sobre os lugares que as crianças eram
abandonadas nos permitiu analisar as estratégias utilizadas pelos pais ouropretanos ao
praticarem tal ação. Eles, ao escolherem algumas ruas para enjeitarem o filho, nos
possibilitaram notar a preocupação que os mesmos tiveram em selecionar o lugar
apropriado para que a criança fosse melhor recepcionada. Em 275 registros,
infelizmente, somente 168 nos permitiram identificar as ruas do abandono. Na planta de
Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar174 apenas esses registros são retratados.
174APM Notação CC- Cx. 94 – 20364. Planta da população da freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Vila Rica do Ouro Preto em 1798, elaborado pelo Vidal José de Sales.
83
84
Legenda da Planta de Vilar Rica de 1798
Registro das Ruas
Nome das Ruas Números de crianças enjeitados nas ruas
I Bairro das Cabeças 12
II Rua do Rosário 5
III Ponte do Caquende 5
IV Rua por cima da Capela do Rosário 1
V Capela do Rosário 3
VI Ponte Seca 1
VII Rua do Vigário 1
VIII Matriz do Pilar 10
IX Ponte São José 2
X Rua São José 5
XI Morro São José 1
XII Capela São José 3
XIII Rua do Sacramento 7
XIV Rua Nova 9
XV Rua Direita 8
XVI Rua da Santa Quitéria 2
XVII Capela da Nossa Senhora do Carmo 2
XVIII Beco do Carmo 2
XIX Rua Direita da Cadeia Nova 2
XX Rua Direita da Casa da Câmara 18
XXI Praça 5
XXII Rua dos Paulistas 6
XXIII Rua atrás da Matriz da Conceição do Antônio Dias 2
XXIV Praça da Matriz do Antônio Dias 1
XXV Rua que Segue a Barra 5
XXVI Rua Lateral da Matriz do Antônio Dias 1
XXVII Na Ponte do Antônio Dias 3
XXVIII Caminho Novo 1
XXIX Alto da Cruz 14
XXX Santa Efigênia (rua vira-saia) 2
XXXI Padre Faria 15
XXXII Santa Ana do Morro 6
XXXIII Taquaral 8
Ao analisarmos a Planta da cidade, percebemos que, a Freguesia do Pilar teve
mais expostos do que a Freguesia do Antônio Dias. Na primeira freguesia,
contabilizamos 96 registros que identificam os nomes das ruas que as crianças foram
abandonadas. A Freguesia de Antônio Dias totalizou 72 registros que identificam os
nomes das ruas.
Essas duas freguesias representavam o núcleo urbano da Vila Rica
Elas eram as mais populosas do que os freguesias rurais, além disso, centralizavam a
vida administrativa, militar e religiosa. Nelas residiam “33 dos 40 eclesiásticos
85
(82,50%) e 76,31% dos profissionais liberais, quatro quintos dos (80,62%) e 78,98%
das pessoas relacionadas em outros serviços”175. Isso nos mostra que, na Freguesia do
Pilar, a rua mais procurada pelos pais foi a “Rua Direita”, com 8 expostos. A Rua
Direita era próxima do centro administrativo onde as famílias dos potentados da Vila
habitavam, por isso, era umas das mais procuradas. Na rua do Sacramento foram
deixados 7 expostos; essa rua tem uma grande importância pois nela foi realizada a
grande festa do Triunfo Eucarístico. Nessa festa religiosa foi retirado o Santíssimo
Sacramento da Igreja do Rosário e o conduziu triunfalmente à Matriz do Pilar,
representando toda a opulência do ouro de Vila Rica. Por isso, mesmo acreditamos que
tal rua continuou a elite local. Temos, ainda, a rua do Vigário, com 1 exposto, a rua
Nova, com 9 expostos e a rua da Santa Quitéria, com 2. Na praça principal da Vila há 5
casos de expostos. Provavelmente esse lugar era bastante perigoso para quem estava
abandonando, por ser bastante visível, Ao mesmo tempo, a praça poderia ser um lugar
mais vistoso para a crianças serem encontradas de forma mais rápida e, também, tal
localização era perto do palácio dos governadores e da Casa da Câmara. Na rua da
Cadeia Nova houve 2 casos de expostos e na rua da Casa da Câmara encontramos 16
ocorrências de expostos. Essa rua, ao que parece, teve uma maior ocorrência, por ter
nela, a instituição responsável pelo auxílio, já que era a Câmara que pagava pela criação
do exposto. Nas pontes das freguesias deparamos com 8 expostos; na ponte do
Caquende, 5; na ponte Seca, 1 e 2 na ponte de São José.
Numa sociedade abundante de Irmandades religiosas, os pais não deixariam de
perder oportunidade de abandonar os seus filhos nas portas dessas Confrarias ou nas
ruas próximas a elas. As mais procuradas pelos pais foram a Matriz da Nossa Senhora
do Pilar; nela encontramos 10 casos de abandonos, sendo uns deixados na porta da
175LUNA, Francisco Vidal e COSTA, Iraci del Nero da. 3º capítulo Profissões atividades produtivas e posse de escravos em Vila Rica ao alvorecer do século XIX., p. 64-69.
86
Matriz e outros colocados atrás da Igreja. Na capela da Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos da Freguesia do Pilar encontramos 3 expostos; na rua por cima da capela do
Rosário 1, e na rua do Rosário mais 5. Na capela do São José dos Pardos encontramos 3
registros de expostos; no morro São José 1, e na rua São José, 4. Na Capela da Nossa
Senhora do Carmo Ordem Terceira identificamos 2 casos e no beco, atrás dela, 1. Essas
Irmandades representavam toda uma pomba de Ordem religiosa da Vila, porém
infelizmente não encontramos nenhum relato que diz que elas teriam prestado algum
auxílio aos expostos.
O bairro das Cabeças, que também fazia parte da freguesia do Pilar, teve 12
expostos; seu condicionante econômico era a dominância das atividades artesanais,
principalmente depois da febre do ouro176.
Na Freguesia do Antônio Dias, tão importante quanto a do Pilar, temos na Rua
Direita da freguesia 8 casos de expostos, sendo este o logradouro em que residia os
potentados administradores da freguesia. Na rua dos Paulistas, encontramos 6 casos de
abandono; nessa rua também habitavam pessoas de posses e, além disso, foi o local do
primeiro arraial da freguesia a ser povoado. No caminho novo deparamos com 1 caso;
na rua que segue a Barra encontramos 5; no morro da Santa Efigênia, na Vira-Saia,
encontramos mais 2 casos. Atrás da Matriz da Conceição do Antônio Dias,
identificamos 2 casos de expostos; em frente a ela, na praça, encontramos 1 e na rua
lateral dela deparamos com mais 1; Na ponte do Antônio Dias foram registrados 3
casos.
No Taquaral, Freguesia de Antônio Dias, achamos 8 ocorrência de expostos,
localização que seguia para o Caminho para Mariana. No Alto da Cruz, Padre Faria e
Santa Anna do Morro, foram abandonados respectivamente 14, 15 e 6 expostos.
176LUNA, Francisco Vidal e COSTA, Iraci del Nero da. 3º capítulo Profissões..., p. 65.
87
Sabemos que essas localidades concentravam sujeitos sociais relativos às ocupações
tradicionais ou em decadência – faiscadores, mineradores e roceiros. Há indícios de que
no Morro havia predominância de elevada concentração população escrava, que se
voltava para a atividade de mineração e faiscamento177.
Embora as ruas de Vila Rica não representassem um lugar apropriado para
enjeitar uma criança, era nelas que a maioria das mães os expunha. Entretanto, aqui
cabe fazer algumas indagações. Em Vila Rica, como vimos, na década 1799, começava
a registrar a distribuição da população chegando à década de 1806 com 8.867
habitantes178. Contudo, foi justamente nesse período, que houve um maior número de
expostos. Portanto, cabe perguntar como os pais abandonavam os filhos ocultamente?
Como as mães escondiam a gravidez? A sociedade participava dessa omissão? Os
padres, que tinha muito contato com a população, omitiam na hora de identifica a
origem das crianças?
O abandono nessa sociedade sugere uma teia de cumplicidades. A família para
salvaguardar a honra da filha utilizava os serviços secretos das parteiras e serviçais,
essas últimas mais aptas para auxiliar no ocultamento da gravidez da mãe. No trabalho
da Leila Mesgravis, são identificadas algumas mulheres grávidas de famílias potentadas
que iam para os Conventos para esconderem a “barriga”. Os padres também faziam
parte dessa teia. Alguns pais pediam os padres para escreverem bilhetinhos que eram
deixados junto às crianças, o que sugere que os padres provavelmente conheciam as
famílias das crianças expostas. Os textos dos bilhetes podiam como, observou Renato
Venâncio, trazer um escrito formal179��Exposto em casa de Izabel Pinheira Crioula
forra". Por vezes, porém, havia informações detalhadas, mas apresentadas somente
177LUNA, Francisco Vidal e COSTA, Iraci del Nero da. 3º capítulo Profissões..., p. 65. 178FONSECA, Cláudia Damasceno e VENÂNCIO, Renato Pinto. Vila Rica: Prospérité ET déclin urbain dans le Minas Gerais..., p. 190. 179Banco de dados..., Batizado em 12 de outubro de 1796, Id. 7777.
88
quando da recuperação da criança: "He filho do Coronel Nicolau Soares do Couto e de
Angélica Alves de Miranda em conseqüência de uma Provisão do Desembargo do Paço
que foi apresentada”180.
A omissão da exposição da identificação dos pais na exposição da criança
contou com o apoio do Estado. O alvará de 24 de maio de 1783, aprovado pela rainha
D. Maria I, é um exemplo desse tipo de aceitação. A resolução dizia que em todo o
Reino Português onde existissem expostos ali deverá haver uma Roda dos Expostos,
acomodada em um lugar restrito para assegurar a segurança e o anonimato das mães.
Acontecendo haver alguma mulher, que para evitar a sua desonra queira ir ter o seu parto à Casa da Roda, (que para este fim podendo ser, deverá ter um quarto separado com cama decente). A Ama Rodeira a receberá debaixo de todo segredo, e lhe procurará uma mulher bem morigerada ou parteira, que assista ao parto (...) sem que contudo se indague a qualidade da pessoa, nem faça algum ato judicial donde se possa seguir a difamação181.
A Igreja também se omitia e aceitava o abandono e, além disso, ainda estimulava
os cristãos a colherem o enjeitado como uma forma de caridade. “A criação dos
Enjeitados é uma obra de tanta caridade e Misericórdia que por si está recomendada a
todos os Fiéis, e ainda aos que o não forem, pois por ela se acode a umas Criaturas, aos
mais necessitados e desamparados, e se exercita o amor do Próximo”182.
Mas, nem todos da sociedade concordavam com o enjeitamento de crianças, pois
a Câmara de Vila Rica ameaçava a população com a criação de “fintas”, se ela não
denunciasse as mulheres que tinham enjeitado uma criança.
180Banco de dados..., Batizado em 28 de fevereiro de 1802, Id. 8453. 181Ordem Circular da Intendência Geral de Polícia de 24 de maio de 1783. In: A.J.G. Pinto. Compilação das providências que a bem da criação e educação dos Expostos ou Enjeitados se tem publicado e acham espalhadas em diferentes artigos da legislação pátria. Lisboa: Impressão Régia, 1820, p. 7. 182Compromisso da Mesa dos Enjeitados no Hospital Real de Todos os Santos Lisboa: s. n; 1716, s.p. Até a independência, as Casa dos Expostos brasileira seguiram esse regulamento. Apud. VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas..., p. 19
89
(...) a todas as pessoas de nossa jurisdição que caso saibam no seu distrito ou vizinhanças acham algumas referidas mulheres meretrizes publicas que tenham exposto ou enjeitado algumas crianças e estas estejam fazendo despesa a este senado o façam a saber tal Câmara ou a seu procurador, e esta notícia se ordena não só para os que já estão expostos, na forma referida senão também para as que expuserem para o futuro, haja denúncia será tomada na dita Câmara com todo o segredo e se evitará com esta diligencia dos denunciantes a conta que está próxima a lançar-se por todas as pessoas desta Vila e sua Comarca183.
Segundo Venâncio essa situação também foi vivenciada em Mariana. Os oficiais
da Câmara de Mariana instituíram um Alcaide para as “Mulheres Grávidas” da cidade:
Em 25 de setembro de 1748, os oficiais do Senado da Câmara de Mariana aprovaram um mandado no qual determinavam que o alcaide local deveria notificar “a toda mulher desta Cidade que não for casada em face de Igreja que se achar pejada para que depois de seu parto a vinte dias venha dar parte a este Senado do feto que teve. [grifo meu] O mandado de 1748 tinha por finalidade facilitar a identificação da mães que tentavam ludibriar a assistência. De certa forma, a deliberação lembra as déclarations de grossesse (declaração de gravidez) francesas, cujo objetivo também era o de combater infanticídios e identificar os pais das crianças abandonadas184.
Acreditamos que devem ter ocorrido várias denúncias, pois, segundo Laura de
Mello Souza, Minas Gerais foi marcada por uma sociedade de denúncias e “vigias”185.
Um dos casos que nos chamou a atenção foi o do exposto Jacinto que foi devolvida a
respectiva mãe. Consta na ata batismal que Jacinto, exposto em casa de Antônio Pereira
de Oliveira, "é filho natural de Maria Antônia de Mello que assim o confessou e desde a
infância o tornou ao seu regaço"186.
Ao que parece a exposição do infante era defendida por lei e podia ser feita sem
muitos problemas, salvo o caso de denúncia anônima, que exigia procedimentos
específicos.
183APM, CMOP, Cód 77, Edital de 10/03/1763. 184VENÂNCIO, Renato Pinto. Estrutura do Senado da Câmara. In: Termo de Mariana: História e documentação. Mariana: Imprensa Universitária da UFOP, 1998, p. 139-141. 185SOUZA, Laura de Mello e. Norma e Conflito..., p. 68-69. 186Banco de dados..., Batizado em 05 de junho de 1803, Id. 8673.
90
2-4 Assistência Camarária
Como vimos anteriormente, algumas Vilas de Minas não tinham uma Santa Casa
de Misericórdia e, se as tinham, muitas não eram apropriadas para receberem a
responsabilidade pela criação dos expostos, sendo o encargo dessa responsabilidade
transferido para a Câmara. A legislação que tratava da criação dos expostos originava-se
de Portugal, mas estendia-se ao Império português, contemplando, assim, Vila Rica.
Conforme as Ordenações Manuelinas e posteriormente Ordenações Filipinas, “não
havendo nenhuma possibilidade dos familiares e nem dos hospitais criarem o enjeitado,
as crianças deveriam ser criadas pelo fundo do Concelho”. Se esta instituição não
tivesse o pecúlio necessário, deveria cobrar “finta” à população para a criação dos
expostos, não necessitando de autorização prévia do corregedor da comarca ou de outras
instâncias superiores.
(...) pai, casado ou solteiro, devia custear a criação do filho, estabelecia-se uma hierarquia de responsabilidade o pai não podia pagar, pagava a mãe; no caso de nenhum deles o poder sustentar, os parentes da criança deveriam fazê-lo. No caso de não ser possível qualquer uma destas três hipóteses, a comunidade mandava a criança para os hospitais ou albergarias que se encarregavam da assistência aos pobres, que pagariam o sustento das crianças através dos seus fundos. Finalmente, na inexistência desses hospitais, as crianças deveriam ser criadas através de fundos dos concelhos; se estes os não tivessem, um imposto especial – a finta dos expostos – podia ser cobrado aos habitantes187.
A Câmara de Vila Rica, dessa forma, deveria auxiliar os expostos, pois, embora
fosse uma das vilas mais importantes de Minas, não possuía uma Santa Casa apropriada
para receber os enjeitados, como dito anteriormente. De acordo com Charles Boxer, a
Câmara e a Santa Casa de Misericórdia foram os dois pilares mais importantes para a
187SÁ, Isabel do Guimarães. A circulação de crianças..., p. 89
91
sustentação de todo o Império português188, mas, ao que parece, em Vila Rica, o
segundo pilar não estava bem estruturado.
A Câmara era constituída por um número variável de vereadores, eleitos entre os
homens bons, ou seja, entre os chefes de família potentados. Além dos vereadores, havia
o presidente da Câmara, um ou dois Juízes Ordinários, escolhidos localmente, o Juiz de
Fora, que era indicado pelo rei, o Juiz Ordinário e o Juiz de Órfãos. O corpo
administrativo era formado por procuradores, tesoureiros e escrivãos. Posteriormente, a
estrutura tornou-se ainda mais complexa pela incorporação de novos funcionários, como
os criadores de expostos, que tinham a função de criar o enjeitado189.
O Senado da Câmara tinha a prerrogativa de se corresponder diretamente com o
monarca reinante e, durante o momento em que estivessem em serviço, os vereadores
gozavam de várias imunidades judiciais190. Os oficiais eram responsáveis pela
manutenção da ordem, a divulgação das deliberações da Coroa, o serviço de mediação
entre a população local e o poder metropolitano, assim como pela resolução de
processos familiares, pela arrematação dos contratos, fiscalização da transmissão de
herança (repasse de testamentos), pela abertura de inquéritos, crimes, prisões e
devassas, cobrança de impostos, pelo controle de foros e cadeias, demarcação de terras,
aferição de pesos e medidas e pela fiscalização de vendas em açougues e matadouros.
Incumbia a ela também a função de construir e manter a infra-estrutura de Vila Rica,
como no caso da construção de pontes, ruas, prédios públicos, chafarizes, fornecimento
de água e ajuda financeiras às festas religiosas. Além disso, competiam à mesma as
funções assistenciais, como a criação de enjeitados e a contratação do cirurgião do 188BOXER, Charles Ralph. O Império Colonial Português. Lisboa, Edições 70, 1977, cap.12, “Conselheiros Municipais e Irmãos de Caridade”. Embora, sabemos que mesmo o segundo pilar não aparentasse estrutura, a vida religiosa da Vila continuava bem planejada com as Irmandades. 189VENÂNCIO, Renato Pinto. Estrutura do Senado da Câmara..., p. 138-141 190BOXER, Charles Ralph. O Império Colonial Português...p,266. Os vereadores lucravam com os privilégios do cargo, pois eles não podiam ser presos arbitrariamente, recebiam propinas quando assistiam às procissões religiosas e estavam isento de terem oficiais e soldados da Coroa alojados em suas casas, além disso, podiam ter cavalos e carroças a disposição deles.
92
partido, responsável pelo controle da propagação de doenças e pela expedição de cartas
de ofício de parteiras191.
No entanto, não era com bons olhos que os homens do Senado encaravam o
auxílio aos expostos e, por isso, houve muitas tentativas do Concelho de não pagar pela
criação de enjeitados. O historiador, Renato Júnio Franco, foi um dos primeiros
pesquisadores a trabalhar sistematicamente com os enjeitados de Vila Rica e nos
revelou que, desde a década 1740, a Câmara se mostrava desinteressada em auxiliar a
criação dos expostos. Segundo ele, na primeira metade dos oitocentos, houve algumas
ocorrências de resistência dos vereadores em custear a criação dos enjeitados. Esse fato
pode ser ilustrado pelo caso do Capitão Antônio Lopes Leão que, no ano de 1745, antes
de falecer, alforriou a escrava Narcisa Lopes e a pediu que criasse o exposto Mateus.
Narcisa, sem condição de criar o bebê que tinha apenas oito meses de idade, enviou uma
petição ao Senado alegando que precisava trabalhar e que o dito exposto precisava de
cuidados maiores. Os oficiais da Câmara receberam a criança e a mandaram ser criada
por um criador a quem por menos fizesse ou cobrasse pela criação, por não ser costume
de Vila Rica custear a criação de expostos192.
Outro acontecimento que nos chamou a atenção, descrito pelo mesmo autor, foi
o de José Antônio Martins. Ele, ao recorrer a uma instância maior para receber pela
criação de uma enjeitada, mostrou-se conhecedor de todas as leis que faziam referência
aos direitos dos expostos. José Antônio, casado, mandou, no ano de 1750, uma petição
para o Concelho dizendo ter uma enjeitada de nome Francisca e, alegando não ter renda
suficiente para pagar a quem lhe desse leite: “Peticionou então, indagando à Câmara
sobre ajuda de custo, oferecida pelo Senado, como ocorria na cidade de Mariana, a qual
assegurava, após apresentação da certidão de batismo, três oitavas por mês para o
191APM CMOP 1711-1889 (apresentação da Câmara de Vila Rica) 192FRANCO, Renato Júnio. Desassistidas Minas..., p. 94.
93
alimento de enjeitados”. A Câmara de Vila Rica logo indeferiu o pedido, o que fez José
Martins recorrer ao ouvidor da Comarca, Caetano da Costa Matoso, pedindo alguma
ajuda para a criação de Francisca193. O fato de José Martins recorrer ao ouvidor indica
que ele era uma pessoa que conhecia os direitos dos enjeitados; dessa forma, ele
imediatamente foi mostrando para o Caetano da Costa que conhecia o costume que
havia na cidade de Mariana, ou seja, o pagamento que a Câmara daquela cidade fazia ao
criadores de expostos. Além disso, José Martins demonstrou que conhecia as
Ordenações, principalmente o livro primeiro, título 88, parágrafo 11, que dizia que toda
municipalidade que não tivesse uma Santa Casa apropriada para os expostos caberia a
Câmara daquela jurisdição custear a criação da criança enjeitada. Tudo indica que o
ouvidor Costa Matoso interveio a favor de José Martins, pois o procurador da Câmara,
ao argumentar com o ouvidor, sobre o não pagamento a Martins pela a criação da
exposta Francisca, disse que não era costume de Vila Rica admitir despesas para
mulatos enjeitados, nem para criadores que não fossem pobres e, que, o auxílio de
expostos deveria ser feito pelo Hospital. Costa Matoso, apesar do argumento do
procurador, persistiu com o este sobre o pagamento dos criadores de enjeitados e José
Martins conseguiu o deferimento de seu pedido; porém isso só ocorreu no ano de 1751,
ano em que a exposta Francisca veio a falecer. José Antônio, então, recebeu por seis
meses e onze dias de criação194.
Encontramos, dessa forma, evidência de que havia muita petição contendo
pedido igual ou semelhante como feito por José Antônio. Então, após 1751, a Câmara,
levada pela inflação de tais pedidos, não teve alternativa senão começar a custear a
criação dos expostos. Desta maneira, os oficiais camarários começaram uma nova
tarefa, que seria a de uniformizar os pagamentos aos enjeitados, antes feitos de forma
193FRANCO, Renato Júnio. Desassistidas Minas..., p. 95-97. 194FRANCO, Renato Júnio. Desassistidas Minas..., p. 97.
94
desorganizada, em função da falta de interesse da Câmara em arcar com essa
assistência.
O Quadro 6, nos ajudará a visualizar as oscilações nos pagamentos realizados
pela Câmara, até chegar ao valor final na década de 1770.
Quadro 6 – Custeio da Criação dos Expostos Ano Valor a ser pago por
criador Valor transformado em
reis
1751 3 oitavas por mês durante os dois anos e os restantes cinco anos diminuísse o valor.
86$400
______
1751 3 oitavas por mês durante os dois primeiros anos e duas oitavas nos cinco anos subseqüentes.
86$400
144$000
1759 3 oitavas por mês durante os sete anos da criação.
302$400
1763 Ano em que se decidiram pagar 3 oitavas nos três primeiros anos e duas oitavas nos 4 quatros anos subseqüentes.
129$600115$200
1768 Ano em que alguns criadores recebiam 3 oitavas nos dois primeiros anos e 2 oitavas nos últimos cinco anos e outros recebiam 3 oitavas por mês por toda criação.
__________
__________
1772 Ano em que os vereadores decidiram por meio da resolução que seria de 24 oitavas nos três primeiros anos e 16 oitavas nos últimos quatro anos.
86$400
76$800
Fonte: Arquivo Público Mineiro na seção dos documentos da Câmara Municipal de Ouro Preto: CMOP, Cx.25, Doc. 23;CMOP, Cx. 36, Doc. 35; CMOP, Cód. 22; CMOP, Cód. 88, fls 29-31.
No ano de 1751, o Ouvidor era Caetano da Costa Matoso, o primeiro a tentar
organizar o pagamento dos expostos em conformidade com a Lei do Reino – o qual
95
estipulou que nos dois anos, de leite, se pagasse às ditas amas três oitavas por mês e daí
por diante “se lhes pagasse para baixo”195. No mesmo ano, como demonstrado no
quadro, foram os camaristas que, de acordo com a correção do Ouvidor, decidiram
pagar três oitavas por mês, durante os dois primeiro anos, assim como duas oitavas nos
anos subseqüentes. No entanto, em 1759 o criador Manoel de Carvalho entrou na justiça
contra a Câmara e ganhou a sentença de lei dada pela Relação do Rio de Janeiro, que
ordenava o pagamento de “três oitavas mensais durante os sete anos da criação, não
havendo razão para que depois do dito leite fossem menores as despesas do que antes,
devendo nestes termos ser igual para todos os anos de criação”196.
Em 1768197, como mostra o quadro, os oficiais da Câmara novamente discutiram
a correição dos pagamentos, pois havia pessoas que criavam expostos a duas oitava e
outros a três oitavas. “Deu por bem uniformizar todos os contratos, desde primeiro de
janeiro de 1763, em três oitavas nos três primeiros anos e duas oitavas nos anos
subseqüentes”198. Esse cálculo, possibilitou a Câmara encontrar um meio de agradar os
que exigiam as três oitavas e aqueles que embolsavam oitava e meia nos últimos quatro
anos.
Entretanto, foi em 26 de fevereiro de 1772 que os vereadores reuniram todos os
matriculantes e acordaram, na presença do Juiz e de outros oficiais, em conceder duas
oitavas de ouro por mês durante os três primeiros anos, completando 24 oitavas por ano,
e durante os quatro restantes o pagamento seria de 16 oitavas por ano199.
Portanto, ficou estipulado que o pagamento realizado pela Câmara aos criadores
de enjeitados, era de 24 oitavas de ouro por ano, durante os três primeiros anos do bebê
195APM, CMOP, Cx.25, Doc. 23. Caetano de Costa Matoso foi o primeiro corregedor de Vila Rica organizar o pagamento dos expostos, e toda estrutura de como seria feito esse pagamento para que o criador pudesse receber. Foi ele também, que institui o Livro da Lista de Matrícula. 196APM, CMOP, Cx. 36, Doc. 35. 197APM, CMOP, Cód. 22, Correição de 12/12/1768 198FRANCO, Renato Júnio. Desassistidas Minas..., p. 126. 199APM, CMOP, Cód. 88, Flash. 29-31.
96
(período de amamentação) e, durante os quatro anos seguintes, o valor diminuía para 16
oitavas anuais. Deste modo, temos que 1/8 valem 1$200 reis, ou seja, nos três primeiros
anos a media do pagamento foi de 2$400 reis por mês, sendo o calculo final desse
período de 86$400 reis, e nos quatros últimos anos de criação, de 1$600 reis por mês,
resultando em 76$800 reis. Assim, o fruto final da criação de um exposto até sete anos
de idade seria de aproximadamente 163$200 reis.
Para termos uma noção de quanto a Câmara gastava com a criação dos expostos,
decidimos comparar tal gasto com o valor de compra de 1 escravo. No ano de 1763, um
escravo custava em média 120$000 reis e, no ano de 1789, valia 125$000. Ora
conforme vimos a criação de um enjeitado, nesse período, gerava o pagamento de
163$200 reis; esse fato nos mostra que a despesa com o auxílio envolvia recursos que
dariam para o Concelho formar, anualmente, uma fazenda escravista para Vila200.
Os livros de receitas e despesas da Câmara também nos possibilitam analisar, de
forma detalhada, o quanto o Concelho gastou com a criação de enjeitados, entre as
décadas de 1770 a 1850. Nesse livro, a receita descrevia todo o rendimento que a
Câmara recebia por meio de impostos e toda a despesa que a mesma tinha com Vila
Rica. As demais despesas camarária, geralmente, eram com pagamentos de empregados,
consertos na casa, iluminações e lanternas de vidros, consertos de chafariz, impressões
de periódicos, conserto com ruas e pontes, festas religiosas e outros gastos.
200Os expostos de Catas Altas-Minas Gerais (1775-1875). In: RIZZINI, I. (org.). Olhares sobre a criança no Brasil: século XIX e XX. Rio de Janeiro: Petrobrás - Ministério da Cultura - USU Ed. Universitária - Amais, 1997.
97
Gráfico 4 - Gastos com Enjeitados x Despesa x Receita - Câmara Municipal de Vila Rica
0,00
20000,00
40000,00
60000,00
80000,00
100000,00
120000,00
140000,00
160000,00
180000,00
200000,00
1770-1779 1780-1789 1790-1799 1800-1809 1810-1819 1820-1829 1830-1839 1840-1849
Anos
Va
lore
s e
m R
éis
Gastos com Enjeitados
Despesa
Receita
Conforme o gráfico 4201, percebemos que, na década de 1780, a receita
camarária encontrava-se no valor de 46:224$208 e a despesa achava-se no valor de
45:924$208. Nessa década, os gastos com os expostos foram de 8:104$585,
representado esse valor cerca de 18% do gasto total da Câmara. Na década de 1790, a
receita foi de 50:550$460 e, a despesa, 51:166$548; nesta década, notamos que a
despesa sobressaiu a receita e os gastos com os enjeitados foram de 10:691$967,
representando um dispêndio de 21% da despesa total camarária. Esse fato é
surpreendente, porque, nesse período a Câmara encontrava-se em déficit, em função de
a principal atividade econômica , a mineração, encontrar-se em processo de decadência.
Em 1800, a receita foi de 51:190$846 e a despesa foi de 51:275$336. Novamente vimos
que a despesa sobressaiu a receita e o gasto com os expostos foram de 10:757$341,
mostrando-se outra vez um gasto de 21% com os enjeitados. No entanto, nas décadas de 201Fonte: APM, CMOP, Receita e Despesa da Câmara - Cód. 102, rolo 40, flash. 01; Cód. 106, rolo 41, flash 01; Cód. 110, rolo 42, flash 01; Cód 132, rolo 49, flash 01; Cód 154, rolo 51, flash 01; Cód 219, rolo 54-55, flash 01; Cód 228, rolo 55, flash 01; Cód 259, rolo 60-61, flash 01; Cód 324, rolo 66, flash 01e Cód 438, rolo 70, flash 01.
98
1810 e 1820, a despesa com os enjeitados ficou em torno de 15% a 4% respectivamente.
Nesse momento, parece que a receita foi se recuperando aos poucos, porque,
aparentemente nesses períodos Vila Rica voltou a se recuperar economicamente e a
investir em outras atividades. Além disso, temos que, em 1823, Vila Rica torna-se a
capital de Minas Gerais, passando a ser chamada de Ouro Preto, o que fez dela um dos
centros administrativos mais importante do Estado. Portanto, na década de 1830, a
receita foi exorbitante: 18:5770$312 e a despesa de 10:2143$982, e os gastos com os
expostos foi mais baixo: 1:983,448, um percentual de 2%, da recita total. Nesse
momento, cabe sublinhar, que a exposição da criança diminuiu. Deste modo,
acreditamos que o cofre público da Câmara de Ouro Preto voltou aos poucos a se
recuperar e os custos com as crianças abandonadas começou a suavizar.
No século XVIII, após a aceitação da Câmara em arcar com as despesas dos
enjeitados, houve um momento em que tais gastos tornaram-se exorbitantes. Isso levou
o Concelho a procurar alternativas para diminuí-los. A principal saída encontrada para
alcançar este objetivo foi a repressão ao abandono.
Em vários momentos, os vereadores fizeram com que os criadores de expostos
passassem por várias investigações. Uma das medidas consistia em um juramento sob
os Santos Evangelhos. Os criadores deviam jurar que eles não conheciam os pais ou
familiares das crianças. Isso aconteceu com o bacharel Luís Henrique de Freitas; o
procurador pediu que ele, sob o Evangelho, jurasse que não tinha notícias dos pais da
criança enjeitada. O bacharel negou em jurar e declarou não saber sobre os pais da
criança “e se soubesse não seria obrigado a dizer”202.
A maioria das pessoas contratadas pela Câmara para serem criadores de expostos
não eram, procurados como em Portugal, por funcionários encarregados em recolher as
202APM, CMOP, Cx. 25, Doc. 23.
99
crianças. Em Vila Rica, quaisquer pessoas que as encontrassem, poderiam, após batizá-
las, dar entrada na Câmara para receber a quantia paga pelo Senado, para ajudar na
criação. Esse fato foi um dos fatores que fez com que muitos dos oficiais desconfiassem
dos criadores, dizendo que alguns deles eram os pais legítimos dos enjeitados, que
expunham os filhos e os colhiam na forma de criadores, para que aproveitassem do
auxílio camarario.
(...) despesa que faz este concelho com a criação dos enjeitados, que até nesta ação há gente de tão grande consciência, que procuram utilizarem por este meio, fiados na aceitação, que a câmara faz dos tais inocentes, quando é de presumir não concorrer a qualidade de verdadeiro enjeite, mas sim um concluio entre os pais, ou mães com as pessoas que os enjeitam ou apresentam fingindo serem expostos só para perceberem o lucro que esperam (...)203.
Por meio do documento, que se encontra entre os avulsos do Arquivo Histórico
Ultramarino, podemos constatar outras reclamações dos camaristas, em relação ao
aumento de enjeitados que ficavam ao encargo da Câmara:
A providência que dá a Ordenação Livro primeiro, título oitenta e oito, parágrafo onze a criação dos enjeitados, não é bastante para a multiplicidade que deles ocorre ao encargo desta Câmara, assim brancos, como mulatos e crioulos, chegando a tanto o seu excesso e a liberdade de muitas mulheres, ainda sem serem recolhidas, que chegam a enjeitar seus filhos, só pelos não criarem, e o mais é que acontece haverem enjeitados de escravas, resultando daí uma gravíssima despesa a esta Câmara204.
Esse registro nos trás riquíssimas informações: 1º indica-nos que a tão falada
finta foi cobrada à população, porém nada adiantou para melhorar o financiamento da
criação dos expostos; 2º mostra-nos a insistência da Câmara em acusar as mulheres
grávidas pelo enjeitamento dos filhos, pois esse documento é de 1772, e, como vimos,
203APM, CMOP, Cód. 22, Correição de 14/12/1753. 204Arquivo Histórico Ultramarino. Representação dos oficiais da Câmara Municipal de Vila Rica sobre as despesas com a criação dos enjeitados. Cx.103, Doc.47, 1772.
100
desde 1763 a Câmara publicava edital pedindo que as pessoas denunciassem mulheres
meretrizes que tinham exposto ou enjeitado alguma criança; 3º adverte-nos que os
vereadores reclamavam que, do mesmo modo que os brancos, os bebês mulatos e
crioulos também chegavam em grande quantidade à Câmara; e o 4º é a acusação de que
as mulheres negras enjeitavam os seus filhos.
Deste modo, os dois últimos tópicos foram os que mais nos chamaram atenção.
Russel-Wood, ao pesquisar a diferença entre o auxílio de expostos na Bahia, onde
ficavam a cargo da Misericórdia, e, em Minas Gerais, onde recaíam sobre as Câmaras,
apontou para essa última, especificamente em Vila Rica, a exigência, além da cópia do
batismo, de uma certidão de brancura na hora dos acolhedores irem à Câmara darem
entrada no auxílio205.
Tudo indica que essa certidão de brancura, exigida pelo Concelho, era uma
forma de os vereadores controlarem a entrada dos expostos no auxílio. Parece que eles
não queriam custear a criação de mulatos e de crioulos porque estes estavam se
multiplicando demasiadamente. Tal fato também foi percebido na cidade de Mariana,
pela autora Laura de Mello e Souza, como uma forma de preconceito. Ao trabalhar com
o Livro de Matrículas de Expostos nº 558, num conjunto de 226 crianças inscritas, a
autora chamou atenção para quatro delas, que se diferenciavam completamente das
restantes. A Câmara recusava a criar três enjeitados da década de 1750, que se
suspeitava serem mulatos, e um, da década 1760, que era um menino escravo, devolvido
ao seu senhor. Para ela, todos esses processos singulares eram, possivelmente, ilegais206.
Vila Rica teve alguns editais e cartas endereçadas à Coroa, culpando as mulheres
pelo aumento da exposição de crianças crioulas e mulatas. Todavia, quando analisamos
os documentos do batismo da Freguesia do Pilar e a Lista de Matrícula, é raríssimo o
205RUSSELL-WOOD, A. J. R. Manuel Francisco Lisboa - Juiz de Ofício e Filantropo. Belo Horizonte, Escola de Arquitetura da UFMG, p. 31-32. 206SOUZA, Laura de Mello e. Norma e Conflito..., p. 63.
101
registro que descreve a cor da criança enjeitada. Isso deve ter ocorrido, porque o
primeiro Livro de Enjeitados, criado pelo Senado, correspondia ao período de 1751-
1768, sendo que somente nos anos de 1757, 1758 e 1759 foi exigido a certidão de
brancura, momento esse em que a Comarca, ou especificamente em Vila Rica, se
revelava temerosa ante a sociedade mestiça “que se ia inevitavelmente formando na
região”207. O livro de Matrícula do ano de 1757 foi escrito, dessa forma:
Silvério exposto em casa de Miguel Borges, morador de fronte do chafariz do Senhor do Bonfim e admitido neste Senado por despacho do mesmo, aos dezenove dias do mês de fevereiro de 1757, assim como consta do despacho posto no requerimento que fez ao mesmo Senado, e mostra por certidão de médico e cirurgião ser o dito enjeitado branco, o qual ele tinha estado as sua porta, primeiro de janeiro do presente ano, e como era justo dito requerimento mandará por este Senado se fizesse assento do dito enjeitado e que recebera por mês três oitavas de ouro e mostrou por certidão de batismo ser batizado aos 12 dias do mês de janeiro do presente ano, passando a dita certidão pelo coadjutor da Matriz de Ouro Preto, Manuel da Silva, e de tudo para constar fiz este termo por mandato do dito Senado e despacho dele em o dito dia 14 do mês de fevereiro do dito ano. José Antonio Ribeiro Guimarães, escrivão da Câmara, que o escrevi e assinei208.
Porém, contraditoriamente a esse assento, em 1763, a Câmara resolveu por
“bem” acolher a criação do “enjeitado Domingos, crioulo ou cabra”. Esse fato ocorreu,
porque por mais que o Concelho não aceitasse custear os expostos mulatos, crioulos ou
cabras, era dado por lei a eles o direito do financiamento da criação. Acreditamos que a
partir dessa década, os oficiais camararios pararam de pedir a certidão de brancura ao
criador, pois a Lista de Matrícula de Enjeitados só se organizou de forma sistemática a
partir da década 1760, o que nos permitiu observar que quase todos os expostos
inscritos na lista não faziam referência à cor.
207RUSSELL-WOOD, A. J. R. Manuel Francisco Lisboa... 31 208APM, CMOP – Enjeitado Cód. 61 (1751-1768) Matriculado 19/02/1757.
102
Certamente, algo começava a mudar para os expostos, pois agora a Câmara via-
se custeando a criação de qualquer exposto independentemente da sua origem. Contudo,
a Câmara de Vila Rica continuava procurando alguma maneira para diminuir os custos
com a criação dos enjeitados. A solução encontrada por ela foi que todo criador que
recebesse uma criança mestiça ou negra tivesse de assumir seus gastos e, em troca,
poderia utilizar-se do serviço dela gratuitamente por vinte e cinco anos.
(...) que por esse respeito se vê gravada com empenhos e sem as forças necessárias para as mais despesas públicas aqui é obrigada. E parece justo que Vossa Majestade adiante a dita providencia mandando que os enjeitados mulatos e crioulos que se criarem por conta da mesma Câmara lhe fiquem sujeitos até a idade de vinte e cinco anos para por ela se darem a quem os criar de graça pela grande utilidade de se servirem dele até a dita idade, pois só assim se poderá coibir a lassidão com que as mães enjeitam se diminuirá a grande despesa que com eles faz mesma Câmara209.
Esse documento pedia ao rei que aprovasse tal regulamento. No entanto, o rei
não só desaprovou o pedido, como repetiu o gesto com outro semelhante, feito pelo
Senado de Mariana, uma década antes, em 1763.
(...) o Conselho danificados com esta grande despesa. Se não efetua fazer se a cadeia desta cidade de que tanto se necessita sem que toda a vigilância que se tem posto nas freguesias por pessoas para isso destinadas seja bastante para se evitarem tais exposições que só poderão ter algum [ilegível] se VMagde for servido mandar que os expostos que legitimamente não forem brancos fiquem sujeitos pela criação a mesma Câmera para depois deles criados se disporem na forma a que for justo atenta a despesa do Conselho evitando-se por este meio que os forros o não enjeitem na sua posição da Sujeição em que ficam e da mesma forma os cativos por que suposta aquela pelas mães ou pais antes a quiseram atentas a seus próprios senhores do que a Câmara evitando se assim tanta despesa ao Conselho com se costuma fazer ao Conselho. Em Câmara da cidade Mariana de 16 de Março de 1763210.
O pedido de Vila Rica ocorreu no ano de 1772, três anos antes do Alvará
pombalino de 1775. Isso indica que a resolução pombalina veio para reforçar a questão
209AHU/MG-C.x:81, doc.:20 210AHU/MG-Cx.:103, doc.:47
103
dos cuidados com os enjeitados - que era obrigação da Santa Casa ou do Concelho em
custear os cuidados dos pequenos -; e, ainda, nesse mesmo Alvará, acrescentou-se que
independentemente da cor – negra ou mulata – o exposto gozaria automaticamente de
sua liberdade. Cremos que tal resolução se fez para impedir que os camaristas
insistissem na diferenciação de assistência entre os enjeitados.
Acreditamos que o abandono de crianças escravas, em Vila Rica, fosse raro no
final dos anos setecentos e no início dos oitocentos, em função do desinteresse dos
senhores de escravos em perdê-los. A historiadora Silvia Brugger, ao analisar os
documentos de registro paroquiais de batismo de São João Del Rei, relata-nos um caso
que implicava uma escrava que abandonou o filho para garantir a liberdade dele, já
tinha até conseguido a aprovação do padre; entretanto, o senhor descobriu e pediu o
menino de volta, o que “impediu o sucesso do projeto que a escrava Josefa traçara para
garantir a liberdade de seu filho”. No entanto, para a autora, casos como esses não
seriam corriqueiros numa sociedade colonial, e não deveria ser muito simples ocultar a
gravidez de uma cativa perante o seu senhor. Mas a autora não descarta a possibilidade
de ter havido casos semelhantes, como o de Josefa, que foram bem sucedidos e “estarão
irremediavelmente encobertos”211.
Dados complementares sobre o grande número de exposição de crianças
escravas em outros pontos da Colônia podem ser exemplificados com os fatos que
ocorreram na cidade do Rio de Janeiro, na década 1870. Lá, sim, houve um elevado
número de abandono de enjeitados mulatos e crioulos. De acordo com os historiadores
Lana da Gama e Renato Venâncio, a Lei do Ventre Livre de 1871, levou os senhores de
escravos daquela região a abandonarem os filhos de escravas, ao invés de os criarem, já
que viam nessa ação um grande benefício financeiro. Ao enviarem a criança à Roda dos
211BRUGGER, Silvia M. J. Minas Patriarcal: Família e Sociedade (São João del Rei – Séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007, p.198-199.
104
Expostos, os senhores ficavam isentos dos gastos com sua criação e, além disso, as
escravas tornavam-se amas-de-leite de aluguel, trazendo lucro rentável212.
(...) a prática dos senhores abandonarem os filhos de suas escravas na Casa dos Expostos, com o intuito de alugá-las como amas-de-leite. Isso lhes permitir auferir uma renda de 500$000 a 600$000 por ano, muito mais atraente do que a oferecida pelo governo em troca da cessão dos ingênuos. Com efeito, cada criança libertada aos oito anos facultava ao senhor o recebimento de títulos de renda com juros anuais de 6% sobre a indenização de 600$000, correspondendo a uns míseros 36$000 por ano. Não era, portanto, de estranhar, que os senhores preferissem auferir os lucros imediatos proporcionados pelo aluguel das amas-de-leite do que arcar com o ônus da criação de seus filhos, correndo o risco de só poderem aproveitar-se mais tarde do trabalho de metade das crianças que haviam sustentado, devido às altas taxas de mortalidade da época213.
Vários foram os editais espalhados, em Vila Rica, acusando as mães e as
escravas pelos abandonos, mas infelizmente não encontramos nenhum documento
sistematizado igual ao que foi encontrado em Mariana e em São João Del Rei, que
demonstrasse a diferença de tratamento dado entre as crianças brancas, mulatas e
negras.
Numa capitania onde a mestiçagem fazia parte do corpo da sociedade, negar essa
miscigenação seria insustentável por muito tempo. Mesmo que, a princípio, discursos
oficiais, como o do vice-rei marques do Lavradio, em seu famoso Relatório, de 1779,
que dizia que era “impossível sujeitar e acalmar os negros, mulatos, cabras, mestiços e
outras gentes semelhantes” de “tão más gentes”214, e de outros que perpassavam pelos
camaristas, levado-os a agir de ilegal no que se diz a respeito à criação de infantes
mestiços e negros, o tempo levaria a sociedade a assumir outras posturas. Ao que
parece, discursos com essas conotaçõs, quando relacionados às crianças enjeitadas e
direcionada ao Rei, não surtiam nenhum efeito, pois o próprio Rei reforçava que,
independente da origem do exposto, ele tinha que ser cuidado pelas autoridades 212LIMA, Lana Lage da Gama e VENÂNCIO, Renato Pinto. O Abandono de Crianças Negras..., p. 65-73 213LIMA, Lana Lage da Gama e VENÂNCIO, Renato Pinto. O Abandono de Crianças Negras..., p. 69-70 214Relatório do Marques do Lavradio – 1779, in Revista do Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. IV, p. 424 Apud. SOUZA, Laura de Mello e. Norma e Conflito..., p. 71.
105
responsáveis, conforme escrito nas Ordenações. A Câmara de Vila Rica, mesmo a
contra gosto, financiava a criação de todos os pequerruchos abandonados; entretanto, as
dívidas com os criadores pela criação, sempre se fez presente, sendo elas parciais ou
não, como nos mostra o gráfico a seguir.
Gráfico 5 -Montante Não Pago aos Criadores dos Enjeitados por Década
0
2000
4000
6000
8000
10000
12000
1770-1779 1780-1789 1790-1799 1800-1809 1810-1819 1820-1829
Anos
Mo
nta
nte
em
Réis
No gráfico 5 notamos que, a partir da década 1770, as dívidas começaram a
subir e nas décadas de 1780, 1790 e 1800, o montante não pago aos criadores foi maior.
Isso pode ter ocorrido por dois motivos: o primeiro é que na década de noventa, e no
ano de 1800, o cofre da Câmara encontrava-se em déficit e a despesa ultrapassou a
receita por dois anos. O segundo item a ser lembrado é que essa dívida com os criadores
ocorreu devido a Câmara não querer pagar os atrasados, para tentar diminuir a
exposição de crianças.
O déficit da Câmara com os criadores fez com que muitos deles recorressem à
justiça para que o Concelho restituísse a eles o restante que faltava. Esse acontecimento
106
ocorreu com a D. Candida Fernandes Neves, que pediu ao procurador José Reis Pombo
que cobrasse a Câmara a quantia que lhe deviam. O procurador da Câmara Francisco
José Ferreira pagou a José Reis a quantia de quarenta e dois mil, novecentos e setenta e
nove reis, que devia em razão dos custos da criação da enjeitada Libania215. Aconteceu,
também, com a criadora Maria Úrsula, que entrou na justiça por meio do seu procurador
José Dias Monteiro que recebeu os atrasados para ela na forma da Lei a quantia de cento
e trinta e quatro mil e quatrocentos reis216. Caso parecido ocorreu com a mulher do
Tenente Coronel Joaquim Manoel da Silva. Dona Barbara da Rosa, criadora da
enjeitada Maria, num encontro de foros recebeu, por meio do seu marido, que foi o seu
procurador, a quantia atrasada de quarenta e sete mil e trezentos e oitenta reis217.
O Concelho, mesmo não querendo ficar com encargo da criação dos enjeitados,
não tinha como fugir dessa função, pois mesmo havendo pessoas que os criassem sem
pecúlio algum, não era o suficiente para diminuir a sua obrigação de “tutor”. A Santa
Casa de Misericórdia, por sua vez, que seria a instituição mais apropriada para receber
os bebês abandonados, praticamente inexistia, no que dizia respeito ao socorro à
infância desvalida.
215APM, CMOP, Cód 259, rolo 60-61, flash, 01. 216APM, CMOP, Cód 324, rolo 66, flash, 01. 217APM, CMOP, Cód 324, rolo 66, flash, 01.
107
Capítulo 3 – A criança e a família criadeira
3-1 Recebendo os Expostos
Como vimos anteriormente, coube à Câmara de Vila Rica dar assistência aos
pequerruchos abandonados, sendo seu dever custear a alimentação e a vestimenta
destes.
Em Vila Rica, como não havia uma instituição especifica (Roda dos Expostos)
ou uma pessoa responsável para o recolhimento dos pequenos, estes últimos foram
abandonadas às portas de casas particulares, de Irmandades, pontes, praças e outros
lugares. Assim, até o momento em que essas crianças fossem encontradas, muitas delas
já haviam passado pelas imperícias do tempo, enfrentando as condições precárias das
ruas urbanas e dos perambular dos animais. De acordo com Francisco Antônio Lopes,
esses animais seriam em sua maioria os porcos que, freqüentemente, peregrinavam por
Vila Rica e, desde a década anterior, tinham se tornado objeto de seguidas críticas por
parte das disposições oficiais218.
A carta de fevereiro de 1795 ratifica o vagar dos animais nas ruas de Vila Rica e
expõe, em relação a esse assunto, a preocupação dos camaristas com os enjeitados
abandonados nas ruas. O Concelho explicava ao Ouvidor Geral a necessidade da Roda
dos Expostos, “logo que as mães envergonhadas davam a luz, abandonavam as crianças
às portas de casa particulares, momento em que alguns já as encontravam em situação
de quase a expirar, tendo até sucedido serem devorados por animais”219.
Deste modo, quando alguém encontrava um exposto que tinha suportado todos
aqueles desafios e permanecia com vida, cabia a ele a decisão de ficar com a criança ou
218LOPES, Francisco Antonio. Os Palácios de Vila Rica..., p. 187-190. 219LOPES, Francisco Antonio. Os Palácios de Vila Rica...,, p. 188
108
não. Em caso afirmativo, poderia optar por receber pela criação, sendo necessário dar
entrada na Câmara; se por acaso esse não quisesse criá-la, ele dava a criança para a
Câmara, que prontamente procurava outro criador para educá-la.
A aceitação da criança na Lista de Matrícula passava por todo um processo e
seguia algumas etapas. No princípio, na década de 1750, para o enjeitado ser aceito teria
que ser batizado. O criador, sobre os Evangelhos, teria que jurar que não conhecia os
pais do enjeitado e às vezes era pedido para que o criador o atestasse a brancura da
criança. Nas décadas posteriores, a partir de 1760, depois que alguns criadores
peticionaram às instâncias superiores para a não aceitação das exigências dos
vereadores, as quais não condiziam com as Leis das Ordenações, a Câmara passou
somente a exigir deles o certificado do batismo. Os criadores, estando em posse da
cópia da ata batismal, caso quisessem, podiam solicitar à Câmara o pagamento para a
criação dos expostos.
Após a concordância do concelho em custear a criação da criança enjeitada, ela
era escrita no Livro de Matrícula dos Expostos, que especificava, em cada folha, o dia,
mês e ano em que o criador deu entrada no auxilio camarario, além do nome dessa
criança e do local que ela foi encontrada. Algumas vezes, este livro registrava o nome
da pessoa que a encontrou, e o dia que a encontrou, o nome do reverendo que a batizou,
a igreja da freguesia desse reverendo, a apresentação da certidão do batismo, o nome do
criador, e o local onde ele morava e a especificação do valor a ser pago.
109
Fonte: Arquivo Público Mineiro. Câmara Municipal de Ouro Preto. Cód.88 (1751-1784)
110
As exigências da Câmara não se resumiam apenas à matricula do enjeitado.
Após o registro inicial, como foi descrito acima, os criadores passavam a receber, em
troca da criação, o pagamento anual de 24 oitavas de ouro por ano durante os três anos e
16 oitavas anuais nos últimos quatro anos. No entanto, para que esse pagamento fosse
feito, era preciso que o criador provasse que a criança estava viva e bem de saúde. Ele
era obrigado a apresentar a criança a cada três meses para receber o pecúlio. Caso
estivesse incapacitado de levá-la, podia enviar o atestado de vida do exposto emitido por
algum pároco ou por pessoas com bons cargos e, se assim o fizesse, o Senado aprovaria
o pagamento.
(...) Câmara de trez em trez mezes debaixo da pena de perdimento do Direito de cobrar o vencido em cada quartel que deixar de fazer a mencionada apresentação sem justa causa, ou mostrando por attestação do seu Reverendo pároco, ou do Commandante do Destricto a existência da dita Enjeitada, e com bom tratamento220.
Quando o pequeno morria, a câmara pagava os dias relativos ao período em que
a criança esteve viva. Este fato aconteceu com a criadora “Maria Nobre dos Santos.
Com o falecimento da sua enjeitada Antônia, ela recebeu o retroativo pela criação, que
ficou em 38,400 reis”221. Caso parecido ocorreu também com o “Sargento Florêncio
Pereira Campos, criador do enjeitado Sebastião, falecido, que recebeu pela sua criação
13,950 reis”222. Outro acontecimento semelhante ocorreu com “Floriano Antônio da
Silva,dos enjeitados Manoel e Manoel, ambos falecidos, que vencerão num valor da
criação 12,000 reis”; a Câmara, porém, só pagou 1,170 reis, e ficou devendo ao criador
10,830 reis223.
220Descrito nos documentos da Lista de Matrícula. 221APM, CMOP, Cx. 01 Doc. 27 222APM, CMOP, Cx. 01 Doc. 27 223APM, CMOP, Cx. 01 Doc. 27
111
Não obstante, já sabemos que o Concelho remunerava precariamente a criação
dos expostos. Assim sendo, como explicar quais foram os motivos verdadeiros que
levaram o criador a recolher o enjeitado? As indagações que permeiam este assunto são
muitas. O fato de ter havido uma variedade de criadores, como negras forras, indivíduos
de altas patentes, oficiais do senado, membros da Igreja e Donas, intui-se que haviam
diferentes motivações para se criar um enjeitado.
Diferentemente do que ocorreu na Europa, onde as instituições, como asilos ou
hospícios de expostos, eram responsáveis pela criação dos infantes, “desde o
nascimento até o casamento, a emancipação ou a morte”, salvo alguns casos de
raríssimas exceções, na América Portuguesa, o sistema de criação era informal ou
privado. Assim sendo, descartamos a idéia de imposição ou obrigatoriedade de criação
dos expostos, levando-nos a acreditar que foram particulares, além de variados, os
motivos que levaram tantas famílias a terem um exposto em sua casa.
Com certeza, o motivo religioso fez com que muitos criadores acolhessem os
infantes por meio da caridade, dando a eles comida, vestimenta e moradia, e alguns
deles não aceitaram receber nenhum pecúlio para criá-los. A generosidade da caridade
cristã de algumas famílias se demonstrava pela fé, pois muitas delas acreditavam que tal
ação salvaria as almas de seus familiares. A Igreja estimulou os fiéis a exercitarem essa
prática caritativa com os pobres, doentes e crianças abandonadas, prometendo a eles a
proteção da alma. A criadora Ana Maria solicitou à Câmara para criar, sem nenhum
pecúlio, a enjeitada Antônia, branca, “pelo muito amor que lhe tem, pois a mãe da
referida menina é amiga da mesma, só pede a quem a tem confiado este segredo e o não
quer revelar a qualquer outra pessoa”. O Concelho aceitou a petição em dezembro de
1782224. Nesse sentido, Renato Venâncio também nos demonstra a necessidade de
224APM, CMOP, Cx. 56, Doc. 57
112
algumas pessoas, residentes em Salvador, quererem exteriorizar a fé criando um
enjeitado sem nenhuma remuneração. “Em 28 de setembro de 1759, Theodozia dos
Santos compareceu à Santa Casa de Salvador afirmando que desejava acolher um
enjeitado pelo amor de Deus, sem estipêndio algum”225. “Que pediu para criar
gratuitamente por esmola e caridade”226. “Maria Rodrigues de Almeida pede a
concessão de um exposto para criar gratuitamente em satisfação de uma promessa que
fez”227.
A legislação oferecida às famílias criadoras poderia ser mais um dos motivos
que os induziram a criar uma criança abandonada. As compensações que as leis
portuguesas ofereciam a essas famílias eram muitas. As famílias que os criassem
ficavam isentas dos impostos que a Câmara aprovasse ou dos tributos requeridos para
construção e reforma de ruas, praças, pontes, iluminação, chafariz e casas de instituições
(cadeia, câmara). Além desses benefícios, os filhos e o marido da criadeira podiam
requerer dispensa dos serviços militares. Entretanto, não encontramos nenhum
documento que comprove se algum criador de Vila Rica utilizou alguma dessas
promulgações do Reino, que foram sendo criadas desde o século XVI228.
Outro motivo econômico também esteve presente na criação dos expostos.
Numa sociedade escravista “não assalariada”229, os enjeitados poderiam trazer
benefícios financeiros, já que o pagamento da criação rendia algumas oitavas de ouro.
Além disso, o criador teria uma mão-de-obra adicional e gratuita, pois se o acolhedor
quisesse ficar com a criança depois da criação de sete anos, ele poderia, sendo o exposto
obrigado a trabalhar para ele. Parece que essa agregação era mais importante do que a
ligação que se tinha com um escravo, porque “o exposto era livre e ligado a laços de
225VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas..., p. 63 226VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas..., p. 63 227VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas..., p. 63 228SÁ, Isabel do Guimarães. A circulação de crianças..., p. 93- 94 229MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança ..., p.137
113
fidelidade, de afeição e de reconhecimento com o seu criador”230. Segundo Maria
Marcílio, isso foi bem visível quando ela analisou Rol dos Confessados de Mariana de
1802,
uma mulher sozinha, chefe de fogo, tinha apenas um escravo. Certamente, sem recursos para comprar mais escravos, acolheu em sua casa, em épocas distintas, três crianças expostas, que naquele ano eram: Manoel José Cosme, de 22 anos; Maria, de quinze anos; e Francisca Chagas, de nove anos. Um outro casal, dessa mesma cidade e no ano de 1802, reunia em casa dois filhos, três escravos e três agregados expostos: um já provecto, de 61 anos; outro de 27 anos; e o último, de catorze anos231.
Contudo, não faltaram criadores que tratavam com maus-tratos os expostos. A
parda forra Floriana Maria, filha de pais incógnitos, fora exposta na casa do primeiro
marido da mulher de José Luís Reis, morador na Guarapiranga, onde trabalhou desde a
sua meninice no ofício doméstico e na roça, “com foice e enxada na mão como se fosse
escrava, sendo de seu nascimento livre e liberta”. Os falsos senhores, “por ingratos, ou
pouco temente a Deus, sem agradecimento ao atual benefício que estão recebendo da
suplicante, a castigam, maltratam, e metem em ferros com público escândalo”. Isso vez
com que Floriana Maria pedisse requerimento junto ao governador que “a deposite em
casa honrada onde se conserve a suplicante em honesta fama até conseguir estado de
casada”232. Suas súplicas foram ouvidas, e provavelmente ela deve ter ido morar como
uma agregada em outra família.
Carlos Bacellar, pesquisando uma série de listas nominativas da Vila de
Sorocaba, descobriu que, nos 251 domicílios da vila paulista, que viviam 222 expostos
88,4%, deles não havia escravos, somente dezessete, ou seja, 6,8% dos domicílios
230MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança ..., p. 137 231MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança ...,p. 137 232Requerimento que a S. Exa. Fez Floriana Maria, parda forra assistente em casa de José Luís dos Reis sobre ser liberta como dele consta, in: APM, SC, cód. 186, fls. 40V.
114
possuíam um único escravo233. Isso nos induz a pensar que esses criadores eram pobres,
e não tinham condições de comprar escravos, dessa forma, agregavam os expostos em
seus lares, para se beneficiarem de um trabalho gratuito, que poderia ser feito tanto nos
serviços domésticos quanto nas roças.
Outra razão dos criadores para criar um enjeitado, ainda relacionada com a
disponibilidade de mão-de-obra, estava explicitada em uma petição que os oficiais da
Câmara fizeram ao rei. Esse documento pedia ao rei a regulamentação para que todo
criador que recebesse uma criança mulata ou crioula e tivesse de assumir seus gastos,
poderia utilizar-se do serviço dela gratuitamente até completarem vinte e cinco anos.
(...) parece justo que Vossa Majestade adiante a dita providencia mandando que os enjeitados mulatos e crioulos que se criarem por conta da mesma Câmara lhe fiquem sujeitos até a idade de vinte e cinco anos para por ela se darem quem os criar de graça pela grande utilidade de se servirem deles até a dita idade, pois assim se poderá coibir a lassidão com que as mês enjeitam (...)234.
Essa medida, na verdade, objetivava reduzir os gasto da Câmara e coibir o
abandono. Caso tivesse sido aprovada, seria mais um dos motivos que atrairia as
famílias criadeiras a criar mais expostos, tratando-os como escravos fossem.
Portanto, a criação de um exposto era atraente não só para a pessoa intitulada
criadora, mas também para toda sua família. Os atrativos incluíam privilégios variados,
como a suposta salvação da alma, o ganho econômico (recebimento pela criação,
isenção de impostos, mão-de-obra “gratuita”) e a dispensa de serviços militares. Dessa
forma, a criação de expostos era uma oportunidade para o desenvolvimento de
estratégias familiares.
233BACELLAR, Carlos. Famílias e Sociedade em uma Economia de Abastecimento Interno. (Sorocaba nos séculos XVIII e XIX). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em História, Universidade de São Paulo, 1995, p. 320. 234AHU Cx. 103, Doc. 47
115
No que diz respeito ao sexo dos criadores que deram entrada na Lista de
Matrícula, a tabela 1 indica-nos que na década de 70 o perfil dos matriculantes
manteve-se equilibrado, mas os homens tenderam a ultrapassar as mulheres alcançando
51,5%. Na década de 1780, os matriculantes homens continuaram com a porcentagem
superior as das mulheres, atingindo cerca de 60,8% da entrada. Esse fator dos homens
matriculantes se manterem à frente das mulheres, é percebido pela Laura de Mello e
Souza, no estudo que ela fez dos enjeitados da cidade de Mariana. A autora constatou
em relação às décadas 1750 até 1790, que homens deram mais entrada na lista de
matrícula. Para a autora, isso poderia ter ocorrido devido ao elevado número de homens
como “cabeças dos fogos”. Além disso, ainda de acordo com Souza, nos finais das
décadas dos setecentos e no decorrer da década de noventa notamos que alguns assentos
de matriculantes se fez por intermédio de procuradores homens.
No entanto, a partir da década de 1790, as mulheres de Vila Rica se tornaram a
maioria das matriculantes em relação aos homens, elas chegaram atingir 53,1% das
matrículas. Diferentemente da cidade de Mariana analisada pela Souza, onde os homens
alcançaram 58,8% de matriculas em contrapartida com as mulheres que atingiram
41,2%. Desse modo, consideramos como hipótese que esse evento de Vila Rica deve ter
uma analogia com a evasão de homens para outras localidades de Minas, devido à crise
da atividade da mineração. Entretanto, no ano de 1820 os homens voltaram a superam
as mulheres no registro de matrícula.
Tabela 1 – Matriculantes Mulheres e Homens por décadas
Períodos Total de
Criadores Mulheres Homens % de Homens 1770-1779 95 46 49 51,5% 1780-1789 161 63 98 60,8% 1790-1799 188 100 88 46,8% 1800-1809 106 55 51 48,1%
116
1810-1819 8 4 4 50,0% 1820-1829 4 1 3 75,0% 1830-1839 8 2 6 75,0% 1840-1849 10 3 7 70,0% Total 580 278 302 47,9% Fonte: Lista de Matrícula dos Expostos. No Arquivo Público Mineiro. CMOP, Enjeitados – Cód. 88 (1751-1784); Cód. 111 (1781-1790); Cód. 116 (1790-1796) e Cód. 123 (1796-1804).
Na da Lista de Matrícula, é possível identificar algumas ocupações ou status do
criador. Alguns deles, como mostra a tabela 2, não tinham sua designação informada,
chegando atingir 37%. Porém, cerca de 58,6% das mulheres e 65,2% dos homens não
tinham nenhuma qualificação ou título, ou simplesmente os oficiais da Câmara não
acharam necessário descrever informações dessa natureza. Das mulheres criadoras, as
que se destacaram em maior quantidade foram às “crioulas forras” e as “Donas”,
atingindo um percentual de 13,1% e 12,0%, respectivamente. Essa concentração de
forras e Donas nos leva a refletir sobre um ponto interessante: a historiografia brasileira
trabalho somente com a possibilidade de que muitas das negras, forras ou mestiças,
eram pobres e para completarem suas rendas trabalhavam como prostitutas e criadoras
de enjeitados. Porém, a historiografia mais recente vem desconstruindo um pouco essa
imagem das alforriadas “miseráveis”, mostrando-nas agora como agentes participantes
da sociedade colonial - nas áreas econômicas, políticas e judiciárias. E, como
percebemos por meio da tabela, as porcentagens de “forras” e “donas” estão
equilibradas na tabela.
Ainda em relação às criadoras, um caso que nos chamou atenção foi da Lucia,
escrava do capitão Francisco Caetano Ribeiro, que criava uma exposta de nome
Hipolita, abandonada no ano de 30 de Janeiro de 1799, e no mesmo dia, mês e ano
Lucia deu entrada na Câmara para criá-la235.
235APM, CMOP – Enjeitado Cód. 123 (1796-1804) Matriculado 30/01/1799 – Folha, 507.
117
Notamos, na coluna dos criadores homens, que a maioria da ocupação ou status
deles estava assim distribuída: os capitães atingiam 8,5%, os Alferes atingiam 7,0%,
seguidos pelos Reverendos com 3,3%, Coronel, Doutor, Sargento-mor e Tenente
alcançando aproximadamente 2,0% cada um. Na análise dos criadores homens,
observamos que poucos foram os pardos e forros que deram entrada na Câmara,
alcançando estes 1,0%. Os militares, por outro lado, foram os que mais criaram
enjeitados. Entretanto, como demonstra a tabela, vários foram os criadores que não
colocaram a “titulação” antes do nome. Além disso, alguns desses homens com status
poderiam ser procuradores de algumas pessoas que necessitavam deles para matricular o
enjeitado. Evento como esse ocorreu com a criadora Maria Batista de Oliveira Viana,
viúva de Duarte Jesus da Cunha, que pediu ao seu procurador Modesto Ribeiro de Jesus
que assinasse por ela, em presença do fiscal e secretário da Câmara, a quitação da
criação da enjeitada Francisca. A criadeira também declarou que não sabia ler. O
número de criadores não letrados era grande na sociedade colonial, pois até mesmo
pessoas que possuíam grande status social não sabiam ler.
No mesmo dia mês e ano e lugar assim se achava presente Maria Batista de Oliveira Viana viúva de Duarte Jesus da cunha e por ela foi dito que por ter recebido do procurador da Câmara Antônio José Dias da Costa Coelho a quantia de oito mil por conta do que lhe devia da criação da enjeitada Francisca lhe dava quitação por mesma mais lhe fez repetido ano Câmara de como assim disse por não saberem ler pediu o Modesto Ribeiro de Jesus que por ela se assinasse em presença dado ao fiscal e em Candido de Oliveira Jaques Secretario que a escreveu e o rogo mediante o recibo de José Pedro de Carvalho236.
Tabela 2 - Ocupação e Status dos Criadores
Criadoras Nº % Criadores Nº %
Crioula Forra Viúva 1 0,3% Ajudante 1 0,4%
Crioula Solteira 1 0,3% Carcereiro 1 0,4%
236APM, CMOP, Cx. 4 Folha 28
118
Escrava 1 0,3% Casado 1 0,4%
Parda viúva 1 0,3% Padre 1 0,4%
Mulher Casada 2 0,7% Pardo Forro 1 0,4%
Solteira 2 0,7% Pardo Forro Casado 1 0,4%
Preta Forra 10 3,6% Pardo Viúvo 1 0,4%
Viúva 12 4,3% Sargente 1 0,4%
Parda Forra 14 5,1% Soldado 1 0,4%
Dona 33 12,0% Crioulo Forro 2 0,7%
Crioula Forra 36 13,1% Reverendo Vigário 2 0,7%
N/C 160 58,6% Tenente Coronel 2 0,7%
Total 273 100% Reverendo Doutor 3 1,1%
Preto Forro 4 1,5%
Sargento-mor 4 1,5%
Coronel 5 1,9%
Doutor 6 2,2%
Tenente 6 2,2%
Reverendo 9 3,3%
Alferes 19 7,0%
Capitão 23 8,5%
N/C 176 65,2%
Total 270 100% Fonte: APM, CMOP, Cx. 01 Doc. 27 Pagamentos aos criadores de Enjeitados
Conforme os documentos da Lista de Matrícula, observamos que alguns dos
criadores recolheram mais de três expostos. Em nossa análise, como demonstrado no
quadro 7, Dona Ana Teixeira da Souza Menezes criou 13 expostos, entre os anos de
1790 e 1811. Ela foi a criadora que mais procurou a Câmara para receber benefícios. Os
nomes dos expostos, provavelmente escolhidos por ela, eram bíblicos ou de origem
santa. Esse fato é evidenciado, principalmente, em relação aos nomes masculinos:
Abrão, Isaac, Pedro, Antônio e Francisco. Alguns nomes femininos também seguiram
essa tradição, como Maria e Isabel. Houve variação em relação aos anos em que Ana
Teixeira os inscreveu na lista de Matrícula. Em 1790 (10/11/1790), ela matriculou a
enjeitada Rosa; na metade da mesma década ela registrou José (28/05/1796) e no ano de
1801 (01/08/1801) matriculou o enjeitado Francisco. Embora não tenhamos minuciosas
119
informações sobre esta criadora, sabemos que ela recebia pela criação de todos os
expostos, excluindo, nesse caso, a hipótese de criação caridosa237.
Sebastiana Luíza do Sacramento, parda, forra e solteira, criou nove enjeitados.
Destes, seis eram homens e três mulheres. Deste total de enjeitados, nove crianças
foram abandonadas à sua porta, sendo duas delas entregues pela própria Câmara;
“Silvana infanta filha de pais incógnitos que aos cinco dias do Corrente foi dada pela
Câmara desta Vila a criar Sebastiana Luiza do Sacramento parda forra moradora
(...)”238. “João, exposto pelo Senado da Câmera, em casa de Sebastiana Luiza do
Sacramento parda forra"239. O fato de estes dois expostos terem sido entregues a
Sebastiana pela própria Câmara nos leva a pensar que esta criadora assumiu a função
social de receptora de enjeitados, fato comprovado em razão do número e freqüência
com que ela matriculava seus pequenos.
Sebastiana também desempenhou o papel de madrinha de dois expostos que ela
criava; o exposto José, que a teve como madrinha juntamente com Manoel Mendes
Barreto, como padrinho240. A exposta Fabiana também a teve como madrinha, ao lado
do Antônio Alves Carneiro, padrinho241. Contudo, a parda forra era solteira e não há
registros que informem sobre o fato de ela ter tido filhos legítimos, motivo talvez, que a
tenha levado a criar tantos expostos.
Catarina Dias Ramos, 53 anos de idade, parda forra e criadora de seis expostos.
Domiciliava-se no Rosário, era padeira e possuía uma casa de molhados do reino. Tinha
seis escravos, nenhum filho e duas agregadas que se encontravam sob sua custódia, as
quais eram Maria, parda de doze anos, e dona Maria, exposta de oito anos. Todos os
237APM, CMOP, Cx. 01 Doc. 27 238Banco de dados..., Batizada em 13 de agosto de 1772, Id. 5020 239Banco de dados..., Batizada em 10 de janeiro de 1779, Id 5540 240Banco de dados..., Batizada em 10 de agosto de 1773, Id 5116 241Banco de dados..., Batizada em 07 de outubro de 1777,Id 5399
120
seis expostos foram abandonados à porta de sua casa. Como aconteceu no caso descrito
anteriormente, ela também foi madrinha de dois deles, Manoel e Maria242.
Dona Maria Izabel Coutinho era casada com o português Antônio Afonso
Pereira e possuía vários imóveis, podendo ser considerada como uma mulher abastada.
Era moradora do morro de Ramos e teve, com seu marido, quatro filhos legítimos. Já
viúva, após a morte de seu marido, passou a criar quatro expostos, sendo que todos eles
foram abandonados em sua casa: “Cândida exposta na madrugada no pátio das casas de
Dona Maria Izabel Coutinho viúva que ficou do falecido Antônio Afonso Pereira com
um escrito que dizia a crie pelo amor de Deus”243; “Domingos exposto em casa de Dona
Maria Izabel Coitinha moradora no Morro de Antonio Afonso"244; “Francisco exposto
em casa de Donna Maria Izabel Coitinha"245 e “Anna exposta à casa de Maria Izabel
Coitinha”246. O fato de quatro expostos terem sido abandonados à porta desta mulher
pode estar ligado à boa condição financeira que possuía, levando muitas mães a
acreditarem que seus filhos seriam bem tratados por ela.
Coronel Sebastião Francisco Bandeira era casado com Maria Angélica de Jesus,
sendo ela madrinha de cinco crianças enjeitadas, que não estavam sob seus cuidados,
tendo uma delas recebido seu próprio nome. O Coronel era morador da rua da Câmara e
cuidou de oito expostos, sendo seis mulheres e dois homens. Ele acolheu, por exemplo,
uma criança que foi batizada "sub condicione (...) que aos vinte e oito do mês de Janeiro
pelas nove horas da noite se achou exposta Maria em casa de Sebastião Francisco
Bandeira (...)”247. Ao que tudo demonstra, o Coronel não tinha uma predileção em
relação ao sexo da criança, embora tenha criado mais mulheres do que homens. E a sua
242Banco de dados..., Batizada em 01 de dezembro de 1800 Id. 12160 243Banco de dados..., Batizada em 11 de fevereiro de 1782, Id. 5732 244Banco de dados..., Batizada em 14 de setembro de 1789, Id. 7131 245Banco de dados..., Batizada em 01 de janeiro de 1791, Id. 7398 246Banco de dados..., Batizada em 19 de março de 1791, Id. 7197 247Banco de dados..., Batizada em 01 de fevereiro de 1755, Id. 3983
121
esposa parecia colaborar com outros enjeitados que não os “pertenciam”, sendo
madrinha deles.
Manoel Vieira da Cunha, casado, foi criador de sete expostos. Seis deles foram
deixados à porta de sua casa e um deles, ele mesmo pegou para criar "o exposto Antônio
deixado na porta de Manoel Ferreira da Costa (...) o qual foi achado por Manoel Vieira
da Cunha que o levou para sua casa onde se acha criando”248. Manoel Vieira era mais
um dos homens casados que, além de chefiar sua casa, agregava crianças enjeitadas no
seio da sua família.
Quadro – 7 Criadores com mais de três expostos
Criadores Ocupação/
Status Expostos Data N de
expostos
João Pereira Zacarias Reverendo
Manoel, João,
Francisca e Graça
12/07/177911/02/178220/01/178329/11/1806 4
Maria Isabel Coutinho Dona viúva
Candida,Domingos,Francisco e
Anna
31/01/178200/00/178900/00/179100/001791 4
Hipólito Dias Cordeiro
Maria, Simão, Inácio e Joaquim
04/07/178204/11/179327/01/179713/10/1801 4
Diogo Jesus da Silva Senhor militar
Custódio, Anna,
Joaquina e Rosa
04/12/178429/10/178507/08/179709/03/1798 4
Rufina Maria de Faria
Maria,Jesus,
Serafim eLuis
19/01/181422/07/182208/10/182308/12/1827 4
José Veloso do Carmo Coronel
José,Luis,
Francisca,Manoel eEnjeitado
00/00/1779 00/00/1784
00/00/180300/00/180000/00/0000 5
Thomas Aquino Bello Doutor
João,Leonor,
Silvério, Thomas e
Maria
28/10/176629/10/178308/10/179400/00/179827/11/1802 5
Jacinto Coelho da Silva Sargento-mor
FantinaMaria,
Albina,
03/04/1984 16/03/179927/06/1802 5
248Banco de dados..., Batizada em 1 de agosto de 1779, Id. 5627
122
Feliciana eJoaquim
24/09/179124/09/1791
Maria Nobre dos Santos
Antônia,Enjeitada,
Francelina,Francisco e
Francisca
04/11/180727/12/181012/01/181213/09/181710/11/1827 5
Maria da Silva Aguiar Parda Forra
Serafim, Venâncio,
Raimundo,Maria,
Francisco eMaria
00/00/1765 00/00/177925/09/178000/00/178300/00/178300/00/1791 6
Jerônimo de Souza Lobo Lisboa
Anna,Maria,
Francisca,Antônia,
João eFrancisco
00/00/177500/00/177800/00/178100/00/178100/00/178600/00/1800 6
Catharina Dias Ramos Parda Forra - Padeira
Antônio,Manoel,
Joaquina,Maria,
Maria e Maria
00/00/179300/00/179400/00/179500/00/179600/00/180118/12/1803 6
Micaela Arcângela Soares
Manoel, Ezequiel, Antônia,
José, Maria e Elisa
15/08/179215/08/179215/08/179215/08/179215/08/179215/08/1792 6
Manoel Vieira Cunha
AntônioFrancisco,
Joaquim,Anna,Luis,
Camilo eBeatriz
00/00/177900/00/178100/00/178405/04/178400/00/178600/00/179000/00/1802 7
Romana Thereza Parda Forra viúva - parteira
Francisca,Joanna,
Anna,Maria,
Henriqueta,Francisco e
Emerenciana
00/00/178424/06/179217/03/179400/00/179800/00/179800/00/180115/07/1803 7
Sebastião Francisco Bandeira Capitão
Isabel,Maria,Luzia
Angelo,Umbelina,
Roque,Maria e
Jozefa
00/00/174628/01/175500/00/175700/00/176000/00/176300/00/178000/00/178100/00/1782 8
Sebastiana Luíza do Sacramento Parda Forra Solteira
Prudente,Vicente,
Sylvanna,José,
Anna,Fabianna,
João,
06/06/176600/00/177105/08/177200/00/177300/00/177500/00/177700/00/1779 9
123
Manoel eFernando
00/00/178000/00/1782
Ana Teixeira da Souza Menezes Dona
Anna, José,
Isaac,Francisco,
Abrão,Antônio,
Pedro,Outro Pedro,
João,Isabel,Maria,Anna eMaria
00/00/000028/05/179621/08/179901/08/180112/12/180107/06/1798
00/00/?00/00/?00/00/?00/00/?00/00/?00/00/?00/00/? 13
Fonte: APM, CMOP, Cx. 01 Doc. 27 Pagamentos aos criadores de Enjeitados; Lista de Matrícula dos Expostos. No Arquivo Público Mineiro. CMOP, Enjeitados – Cód. 88 (1751-1784); Cód. 111 (1781-1790); Cód. 116 (1790-1796) e Cód. 123 (1796-1804); Banco de dados referente às atas paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto (CNPq, FAPEMIG), coordenado pela Profa. Dra Adalgisa Arantes Campos.
Para compreendermos o perfil da exposição no período 1770-1849, analisamos
os Batismos dos Expostos ocorridos na Matriz do Pilar e os Livros de Matrículas de
Expostos, da Câmara de Vila Rica. Os dados do Batismo, apresentados na tabela 3,
revelam que, nesse período, foram batizados 566 crianças. Deste total, um elevado
número aconteceu no começo da década 1770, totalizando 91 batismos. Esse número é
alto, se comparado com a década anterior, quando houve 48 batismos de expostos. Na
década de 1780, o número de batismos de exposto chegou a 141 e, na década seguinte,
alcançou o auge de 191 batismos. Nos anos de 1800, notamos que o batismo dos
abandonados continuou elevado, atingindo a marca de 113 consagrações. No entanto,
nas décadas posteriores a 1810, o número de batismo dos expostos foi diminuindo
consideravelmente, totalizando o número de 48 batismos até a década de 1850.
Sabemos que já é consenso, entre os estudiosos do assunto, que o aumento do
abandono ocorreu em função de diferentes motivos, como a ilegitimidade, a crise
mineratória, a pobreza, os impasses ante a reorganização das atividades econômicas, as
doenças, o falecimento dos pais e a possibilidade de receberem, da Câmara, um valor
pela criação. Há a possibilidade de que a diminuição dos expostos poderia estar,
124
também, relacionada a diferentes fatores. Um deles poderia ser o elevado número de
casamentos que ocorreu a partir de 1815. Segundo a historiadora Mirian Lott, por volta
desta data, a população se estabilizou e voltou a crescer. Nesse período houve uma
maior ocorrência de casamento entre a população livre249 e consequentemente uma
redução de crianças abandonadas.
Outro fator pode estar relacionado com a economia de Minas Gerais. Para o
historiador Douglas Libby, a idéia de decadência econômica generalizada de Minas -
provincial do século XIX, não procede. Segundo ele, a economia mineira oitocentistas
caracterizava-se por uma acomodação evolutiva: “O colapso da mineração nunca
chegou a ser absoluto e as atividades alternativas ligadas à agricultura mercantil de
subsistência sempre estiveram presentes na história da região”250. Embora, em certos
momentos, alguns homens de Vila Rica, tenha emigrado para outras regiões em busca
de trabalho, é possível que tenha ocorrido o retorno destes para suas famílias ou, até
mesmo, que o restante de sua parentela tenha ido com eles morar, reduzindo o número
de crianças que teriam que ser abandonadas.
Podemos também relacionar o decréscimo das crianças abandonadas, como
observamos no gráfico 2251, com a alta ilegitimidade das crianças que se apresentaram
nas décadas de 1800 a 1820. Nesse período, conforme analisamos, o batismo dos
legítimos e dos expostos era menor do que os ilegítimos. Os legítimos252 atingiram
cerca de 628 batismos, os expostos 143 e os ilegítimos 1.132253. Esse aumento
considerável do número de ilegítimos supõe uma diminuição do número de expostos.
Esse fenômeno, de acordo com Mirian Lott, ocorreu por três motivos: 1º no início do 249LOTT, Mirian Moura. Casamento e famílias na Minas Gerais, Vila Rica – 1804-1839. Mestrado de História/UFMG, 2004, p.36 250LIBBY, Douglas as Cole. Transformção e trabalho: em uma economia escravista Minas Gerais no século XIX, São Paulo p. 48-49. 251Gráfico do capítulo 2-1 O abandono: Reflexão Historiográfica 252LOTT, Mirian Moura. Casamento e famílias na Minas..., p. 40. Fonte da autora foi retirada do Banco de dados da Matriz de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto. 253LOTT, Mirian Moura. Casamento e famílias na Minas..., p. 40
125
século XIX a miscigenação se fazia presente tanto na população livre quanto na
população escrava; 2º períodos de maior estagnação econômica possibilitaram à
manutenção dos escravos por meio da reprodução vegetativa, deixando os proprietários
empobrecidos mais independentes do tráfico internacional; e 3º a elevada freqüência das
alforrias, que “serviu como uma válvula de escape essencial para a reprodução do
sistema (escravista) como um todo”254. Esse evento levou ao reconhecimento de muitas
crianças ilegítimas, mas nem por isso, abandonadas.
A diminuição dos expostos poderia estar relacionada, também, com o
endividamento da Câmara com os criadores. Como vimos, nas três últimas décadas do
século XVIII, a Câmara devia aproximadamente 88% dos criadores e, nas três primeiras
décadas do século XIX, a Câmara ficou em débito com 72% dos criadores. Esse fato,
deve ter desestimulado muitos criadores a adotarem crianças para criarem à custa do
Concelho ou de mães que abandonavam seus filhos para receberem algum pecúlio da
Câmara: “Pagou o procurador da Câmara Francisco José Ferreira a Francisco Gales
Borge, por conta da criação do exposto Candido, que encontra com o mesmo e, que o
Concelho se acha a dever uma multa imposta no ano de 1832 a quantia de dezoito mil
seiscentos reis 18,600 Reis”255.
Diante dessa situação, pode nos parecer provável, também, que muitas famílias
tenham achado mais interessante a utilização dos expostos como mão-de-obra em
lavouras ou no trabalho doméstico, em vez de receber o pagamento da Câmara e muitas
vezes, com atraso, como descrito acima.
Ainda na tabela 3256, observamos que o número de expostos não se
diferenciavam tanto, quanto ao sexo. Entretanto, nas décadas 1790 e 1800, as meninas
254LOTT, Mirian Moura. Casamento e famílias na Minas..., p. 40. 255APM, CMOP, Cód 259, rolo 60-61, flash, 01 256Fonte: Banco de dados referente às atas paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto (CNPq, FAPEMIG)
126
representavam 56,5% e 60,1% respectivamente. Dessa forma, poderíamos pensar que,
no período coincidente com a crise mineratória, o abandono de homens representaria
um déficit de mão-de-obra familiar. No entanto, segundo Laura de Mello e Souza, essa
tendência não demonstraria uma intenção a preferir criar meninas a meninos. “Essa
diferença seria reflexo da flutuação natural”257.
Tabela – 3 Números de Batismo de expostos por décadas de 1770-1849
Décadas Total de expostos Meninos Meninas
% de Meninos
1770-1779 91 42 49 46,1% 1780-1789 141 72 69 51,0% 1790-1799 191 83 108 43,4% 1800-1809 113 45 68 39,8% 1810-1819 8 4 4 50,0% 1820-1829 4 3 1 75,0% 1830-1839 8 6 2 75,0% 1840-1849 10 5 5 50,0%
Total 566 260 306 45,9% Fonte: Banco de dados referente às atas paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto (CNPq, FAPEMIG).
A tabela 4 mostra-nos que não houve variação considerável em relação ao sexo
dos expostos matriculados nos períodos de 1770-1849, como aconteceu com as crianças
batizadas no mesmo período. Contudo, notamos que o número de entrada das crianças
nas matrículas foi um pouco maior do que o número de crianças batizadas pela Matriz
do Pilar, representando 50,6% e 49,3% concomitantemente. Além disso, os números de
matrícula por décadas não correspondiam aos números de batismo por décadas
semelhantes. Esse fato ocorria porque, inúmeras vezes, a criança era batizada em outra
freguesia e entregue à Câmara de Vila Rica para custear a criação. Caso, por exemplo,
de “Antônia, exposta na freguesia de Cachoeira do Campo, à noite, foi batizada pelo
Reverendo, da dita freguesia, e dada a Gabriel da Silva que deu entrada na Câmara
257SOUZA, Laura de Mello e. Norma e Conflito..., p. 55
127
10/05/1775”258; “Vicente, exposto em Congonhas do Campo, foi batizado pelo
Reverendo, na mesma freguesia, e dado a Catarina Nunes de Almeida que deu entrada
na Câmara 09/09/1775”259; “Antônia, exposta na freguesia de São Bartolomeu, à noite,
foi batizada na dita freguesia e dada a Custódio de Oliveira em 17/05/1780”260; “José,
exposto na freguesia do Itatiaia, batizado pelo Reverendo, da mesma freguesia, e dado
ao Reverendo José Ribeiro Novais, que deu entrada na Câmara em 04/06/1785”261;
Francisca, exposta na freguesia da Conceição de Antônio Dias, de madrugada, batizada
pelo dito Reverendo da freguesia, e dada a Francisca Maria (...) Maria de Moura, em
26/08/1790”262.
Tabela – 4 Números de Lista de Matrículas de expostos por décadas de 1770-1849
Décadas Total de expostos Meninos Meninas
% de Meninos
1770-1779 95 48 47 50,5% 1780-1789 161 82 79 50,9% 1790-1799 188 82 106 43,6% 1800-1809 106 43 63 40,5% 1810-1819 8 3 5 37,5% 1820-1829 4 2 2 50,0% 1830-1839 8 6 2 75,0% 1840-1849 10 5 5 50,0%
Total 580 271 309 46,7% Fonte: Lista de Matrícula dos Expostos. No Arquivo Público Mineiro. CMOP, Enjeitados – Cód. 88 (1751-1784); Cód. 111 (1781-1790); Cód. 116 (1790-1796) e Cód. 123 (1796-1804)
Pouco sabemos sobre a idade que as crianças possuíam quando eram
abandonadas ou quando o criador dava entrada delas na Câmara. Baseando-nos na
historiografia brasileira, onde encontramos vários relatos sobre a necessidade de
amamentação dos enjeitados, suspeita-se que a maioria dos abandonados era tomado
ainda recém-nascido. Entretanto, embora nos falte ainda informações precisas sobre
258APM, CMOP – Enjeitado Cód. 88 (1751-1784) Matriculado 10/05/1775. 259APM, CMOP – Enjeitado Cód. 88 (1751-1784) Matriculado 09/09/1775. 260APM, CMOP – Enjeitado Cód. 88 (1751-1784) Matriculado 17/05/1775. 261APM, CMOP – Enjeitado Cód. 111 (1781-1790 ) Matriculado 04/06/1785. 262APM, CMOP – Enjeitado Cód. 111 (1781-1790 ) Matriculado 26/08/1790.
128
essa questão, sabemos que alguns criadores pediram ao Concelho que pagasse pela ama-
de-leite. “A dita Câmara pagou a Camilla Francisca pela criação e amamentação da
enjeitada Maria Madalena (...)”263. Assim, tivemos conhecimento que, por meio das leis
do Reino e pelo dogmas da Igreja Católica, os indivíduos de zero a sete anos de idade
eram denominados de inocente e os maiores de sete eram designados de adultos. O
enjeitado, a partir dessa idade, ficava sob a responsabilidade do Juiz de Órfãos ou do
criador que o adotasse até que completasse 20 anos de idade, diferentemente das
crianças livres que recebiam a sua independência familiar com 25 anos de idade.
Vale ressaltar que, a cor dos expostos raramente era descrita na lista de matrícula
ou na ata do batismo. Esse fato ocorreu, eventualmente, depois do Alvará de 1775, que
concedia liberdade a todos os expostos, independentemente de sua cor. Logo, poucos
são as referências encontradas sobre a cor dos enjeitados entre 1775 a 1849. “Josefa,
preta, exposta à casa de Manoel de Faria Salgado, batizada, sábado 3 de março de
1770”264; “Bernardino, branco, exposto à porta do reverendo Dom José Joaquim da
Conceição Moins. Madrinha parda. Batizado em 22 de setembro de 1779”265; “Maria,
branca, exposta no corredor das casas do Capitão Veríssimo da Costa Pereira(...).
Batizada 29 de setembro de 1784”266; “Francisco, branco, exposto em casa de Dionísio
de Barros. Padrinhos – casados, mas não entre si. Batizado no domingo, 24 de maio de
1795”267; “Maria, branca, exposta em casa de Rita Barreta moradora do Morro de São
Sebastião. Batizada 21 de junho de 1799”268; “Domiciano, preto, exposto a José de
Faria Moço. Padrinho casado com madrinha, ambos pardos. Batizado na segunda-feira,
263APM, CMOP, Cx. 01 Doc. 27 Pagamentos aos criadores de Enjeitados 264Banco de dados..., Batizada em 03 de março de 1770, Id. 4788 265Banco de dados..., Batizada em 22 de setembro de 1779, Id. 5641 266Banco de dados..., Batizada em 29 de setembro de 1784, Id. 6161 267Banco de dados..., Batizada em 24 de maio de 1795, Id. 10864 268Banco de dados..., Batizada em 21 de junho de 1799, Id. 8124
129
1 de dezembro de 1800”269; Emilia, branca, exposta a Valentim Garcia Monteiro, "dia
dezesseis de Março. Batizada 19 de maio de 1822”270; “Francisco, pardo, de Assis
exposto na casa da Srta Francisca Teodora do Pilar, moradora na freguesia de Antônio
Dias. Batizado segunda-feira, 28 de maio de 1838”271; “Thereza, parda, exposta à casa
de Claudina Maria. Batizada 20 de julho de 1844”272.
3-2 A relevância do Batismo
O batismo se fez muito presente na sociedade cristã de Vila Rica. A cerimônia
batismal representava um ritual formal para a entrada da criancinha ao mundo dos
cristãos, o que as livrava do pecado do mundo. A preocupação com o batismo do recém-
nascido era comum em todo Reino Católico. Desde que São Tomás de Aquino
estabeleceu que a criança morta sem batismo iria para um lugar chamado limbo e que
ficava acima do purgatório. O purgatório, segundo os preceitos da Igreja Católica, era
um lugar entre o céu e o inferno; era um lugar intermediário para aquelas pessoas que
morriam e que haviam cometido pecados que não fossem tão graves. Passariam nesse
lugar um tempo até alcançarem a purificação da alma e, após alcançarem-na, iriam para
o céu. Já o limbo era um lugar nebuloso, ocupado por pagãos e inocentes que não
fossem batizados. Mesmo não tendo cometido nenhum pecado, esses últimos não
alçariam o céu e permaneceriam no nevoeiro273.
O batismo servia, então, na visão cristã da época, para garantir que as crianças,
caso viessem a falecer, fossem direto para o céu, na forma de anjinhos. Nisso se resumia
a grande preocupação das entidades cristãs: a vida espiritual da criança; uma vez
269Banco de dados..., Batizada em 01 de dezembro de 1800, Id. 12160 270Banco de dados..., Batizada em 19 de maio de 1822, Id. 1630 271Banco de dados..., Batizada em 28 de maio de 1838, Id. 6368 272Banco de dados..., Batizada em 20 de julho de 1844, Id. 2351 273SÁ, Isabel do Guimarães. A circulação de crianças..., p. 46
130
batizada, o que ocorreria depois não importava. Por isso, desde o final do século XV até
XIX, o funeral de uma criança morta era celebrado com festa, pois havia mais um
anjinho no céu.
Os pais, que amam os filhos com amor bem ordenado, mais razão têm de se lembrar da vida eterna dos filhos, que de se entristecerem pela morte temporal [...] E na verdade razão tem de se alegrar o pai na morte do inocente, por ter no Céu mais uma estrela, no jardim da Glória mais uma flor; entre os Espíritos Celestiais um Anjinho, e entre os Santos da Glória um filho274.
A mentalidade da época também colaborou para que o batismo fosse feito com
intuito de proteger os bebês das bruxas, que se encontravam na busca de crianças para
praticarem seus encantamentos. Segundo o padre Alexandre de Gusmão:
A primeira cousa pois a que devem atender os pais na criação dos filhos, enquanto são infantes, é aos perigos a que está exposta aquela tenra idade, enquanto não recebem a água do Batismo, pelo grande perigo de perderem a felicidade eterna morrendo sem ele275.
Deste modo, assim que a criança era colocada na Roda dos hospitais, ela era
batizada, sendo este um dos desígnios primordiais da Igreja Católica – não deixar os
bebês sem o sacramento do batismo, o que impossibilitaria a salvação de suas almas.
Essa imposição evidencia a influência dos preceitos da Igreja na assistência aos
expostos. Em uma visão global, podemos dizer que o dispositivo da Roda dos Expostos
traria a salvação completa à criança, livrando-as dos problemas terrestres, como o
infanticídio e o aborto, e celestiais, garantindo-as a salvação espiritual.
Embora Vila Rica tenha ficado desprovida do mecanismo da Roda dos Expostos,
a certidão de batismo seria o único meio de os criadores alcançarem os benefícios
assistenciais. Assim, para que eles pudessem matricular a criança no auxílio camarário
274GUSMÃO, Alexandre de. Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia. Lisboa: Typ. do Colégio, 1685. Ver também LE GOFF, Jacques. "Os limbos". Signum, Revista da ABREM, São Paulo, 2003 n. 5, p. 253-289, 2003. 275GUSMÃO, Alexandre de . Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia. Lisboa: s.n., 1685, p.170.
131
teriam que trazer a cópia da certidão e, de posse desse documento, teriam a garantia da
matrícula no livro e os oficiais do Concelho garantiriam a salvação das almas dos
pequerruchos.
Nota-se que, diferentemente dos expostos das cidades que tinham a Roda de
Expostos (uma instituição formal que estava prontamente preparada para recebê-los e
imediatamente já os consagrarem a Deus), os de Vila Rica dependiam, muitas vezes, da
informalidade e da caridade das pessoas. Muitos moradores os acolhiam nas portas de
suas casas sem compromisso de criá-los, fazendo-o apenas para que as criançinhas não
perecessem nas ruas. Em alguns casos, os abandonados permaneciam nesses lares por
somente uma noite, sendo entregues à Câmara no dia seguinte, já que a maioria dos
abandonos aconteciam à noite.
Essas crianças poderiam ser encontradas em perigo de vida. Para a criança
encontrada sem batismo e em risco de vida, sem tempo para receber solenemente o
batismo na Igreja, foi instituído pela mesma, o batismo in-extremis, que poderia ser
exercido por qualquer pessoa, desde que se utilizasse adequadamente a matéria (a água
e o sal) e a forma: “Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”:
“Francisca exposta inocente que, aos dez dias deste presente mês, pelas oito horas da
noite, foi exposta em casa de Maria Rangel. No dia quinze, do corrente, foi batizada em
casa em perigo de morte. E no dia 15 de maio, de 1777, foi feito o assento e o
coadjunto”276; “Thomé exposto à porta de Maria Joaquina de Castro. Havia sido
batizado em casa in periculo vitae”277. “Plácido exposto em casa de Violante Maria de
Santa Rosa, o qual tinha sido batizado em casa in periculo vitae pelo padre José
Fagundes Serafim"278. “Francisca foi batizada in periculo vitae pelo alferes João Pinto
276Banco de dados..., Batizada em 15 de maio de 1777, Id. 12160 277Banco de dados..., Batizada em 5 de janeiro de 1779, Id. 5702 278Banco de dados..., Batizada em 22 de novembro de 1783, Id. 6086
132
Ribeiro. Celebrante pôs os Santos Óleos. Assistiram ao ato João Pinto Ribeiro e
Leocádia Maria de Jesus”279.
Para as crianças que chegavam com uma certidão oficial de batismo à Câmara,
não era necessário serem novamente batizadas; porém se houvesse dúvida quanto a este
fato, o batismo era ministrado sub-conditione, isto é, condicionalmente. Observamos
nos assentos de batismo que, em alguns escritos em que não havia sinal de que a criança
tivesse sido batizada, isso gerava dúvida no Reverendo, que as mandava ser batizadas
novamente: “Pedro inocente exposto na noite do primeiro dia do corrente mês à Porta de
Paulo Martins, pardo, forro, morador no Morro do Ouro Podre, e não trazia sinal algum
por onde constasse tivesse sido batizado"280; “Exposto Vicente, padrinho morador na
Paraopeba freguesia de Nossa Senhora da Conceição dos Congonhas do Campo".
Vicente batizado "sub conditione”281; “Infante Joaquim, exposto aos nove dias do
Corrente à porta de Joanna Francisca, parda, forra, moradora nesta Vila, e não trazia
cédula alguma, nem de batismo”282; “Madrinha moradora na Passagem da Cidade de
Mariana. Batizei sub conditione por duvidar do primeiro batismo em casa, que me
disseram que tinham feito no exposto João, e lhe pus os Santos óleos”283.
A maioria dos nomes dados às crianças, após o batismo, eram referentes às
pessoas dos Santos Evangélicos ou dos Santos da Igreja Católica: João, José, Isaac,
Moisés, Pedro, Samuel, Maria, Francisco, Thomé. O batismo poderia ser realizado em
qualquer dia da semana.
Esse sacramento era condição essencial para que as crianças adquirissem almas
purificadas do pecado e também recebessem a sua identidade.
279Banco de dados..., Batizada em 29 de setembro de 1841, Id. 6704 280Banco de dados..., Batizada em 19 de setembro de 1770, Id. 4839 281Banco de dados..., Batizada em 24 de abril de 1771, Id. 4887 282Banco de dados..., Batizada em 16 de março de 1772, Id. 4991 283Banco de dados..., Batizada em 10 de janeiro de 1784, Id. 6102
133
3.3 Estratégias de apadrinhamento
Como demonstrado anteriormente, o batismo marcava o reconhecimento da
criança no mundo cristão. Além disso, foi responsável pela criação de um importante
laço afetivo na sociedade, envolvendo os pais e os padrinhos das crianças batizadas.
Cabia aos padrinhos, que eram escolhidos pelos pais, a função de guiarem as crianças
nos caminhos cristãos e viverem segundo a doutrina da Igreja Católica, assumindo a
função de verdadeiros “pais cristãos”.
Entretanto, o compromisso assumido pelos padrinhos para com seu afilhado não
se resumia somente às questões espirituais, abrangia aspectos econômicos também. Um
padrinho bem escolhido pelos pais, situado socialmente num patamar elevado e que
dispusesse de bons recursos econômicos e políticos, representaria, para o afilhado,
acesso a uma ampla rede de sociabilidade, principalmente, no universo colonial em que
as redes clientelares se faziam presentes.
Há vários pesquisadores que analisam as relações sociais entre diferentes grupos,
resultantes do apadrinhamento. Para esses estudiosos, o compadrio poderia criar ou
reforçar relações sociais, resultando em importantes alianças e elevando os laços
familiares para além da consangüinidade.
Os estudos referentes ao compadrio que abrangem os escravos mostram-nos que
raros foram os donos de cativos que os apadrinhavam. Esse fato ocorria porque os frutos
provenientes da relação de apadrinhamento se estendiam para muito além dos interesses
escravocratas, indo contra a mentalidade senhoril da época.
A pesquisadora Silvia Brugger, ao analisar o compadrio de pessoas cativas e
livres em São João Del Rei, nos séculos XVIII e XIX, percebeu que os padrinhos
nomeados para as crianças possuíam, em sua maioria, condições semelhantes ou
134
superior a de suas mães, sendo raros os filhos de mães livres que tiveram padrinhos
forros ou escravos. Mães forras tiveram majoritariamente homens livres como
compadrios; mães escravas tiveram menos filhos apadrinhados por pessoas livres,
embora a maioria delas preferissem essa opção.
Desse modo, notamos que a relação do apadrinhamento acontecia além da
cristandade. Nesse contexto, onde se encontrava as crianças enjeitadas nas redes de
apadrinhamento, quem eram esses padrinhos e quem os indicavam?
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia orienta, conforme o Santo
Concílio Tridentino, a Igreja, os pais ou a pessoa responsável pela criança nas escolhas
dos padrinhos para o ato batismal:
Conformando-nos com a disposição do Santo Concilio Tridentino, mandamos que no Batismo não haja mais que um só padrinho, e uma só madrinha, e que se não admitam juntamente dois padrinhos e duas madrinhas; os quais padrinhos serão nomeados pelo pai ou mãe, ou pessoa a cujo cargo estiver a criança; e sendo adulto, o que ele escolher. E mandamos aos Párocos não tome outros escolherem, sendo pessoa já batizadas, e o padrinho não será menor de quatorze anos, e a madrinha de doze, salvo de especial licença nossa. E não poderão ser padrinhos o pai ou mãe dos excomungados, os interditos, os surdos, ou mudos, e os que ignoram os princípios de nossa Santa Fé; nem Frade, Freira, Cônego Regrante, ou outro qualquer Religioso professo de Religião aprovada, (exceto o das Ordens Militares) per si, nem por procurador284.
A análise feita sobre as atas dos batismos dos expostos, de Vila Rica da Matriz
do Pilar, totalizou 566 batismos. Desse total, 67% dos expostos tiveram padrinho e
madrinha, 30% tiveram somente padrinho, 0,7% tiveram apenas madrinha e 3% não
tiveram nenhum dos dois.
Algumas crianças receberam os nomes dos padrinhos. Dessas, 14,8%, por serem
meninos, receberam os nomes dos padrinhos e 6,7% receberam os nomes das
madrinhas. Padrinho Francisco que, junto com a madrinha Anna Izabel Cândida de
284Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Livro Primeiro, titulo X.
135
Freitas, batizaram a exposta Francisca285. Padrinho Alberto Vieira Rijo que, juntamente
com a madrinha Josefa Teodora de Freitas, batizaram o exposto Alberto286. Madrinha
Jacinta Peregrina que, ao lado do padrinho José de Vasconcelos Perada e Sousa,
batizaram a exposta Jacinta287. Madrinha Mariana Aires da Crus que, junto com o
padrinho Emerencianno Maximino de Azevedo Coitinho, batizaram o exposto
Marianno288.
Uns dos expostos tiveram como madrinha algumas Santas da Igreja Católica. A
mãe ou a pessoa responsável que abandonou a exposta Francisca pediu, por meio de um
bilhetinho, que os padrinhos fossem o Reverendo Doutor José Alves de Souza e a Nossa
Senhora da Piedade. Francisca "Exposta à porta de Jerônimo de Souza Lobo Lisboa (...)
com uma cédula, que dizia fossem padrinhos o Reverendo Doutor José Alves de Souza,
e Nossa Senhora da Piedade"289. A exposta Quitéria teve como madrinha Santa Quitéria
e padrinho Domingos José Ferreira290. Esses fatos nos levam a pensar que era a mãe
quem pedia para que a Santa fosse madrinha de seu filho para garantir-lhe um destino
mais zeloso.
Às vezes, os bilhetes também indicavam os padrinhos. Antônio, exposto à casa
de Antônio Ribeiro de Andrade, em 05 de janeiro de 1846, veio acompanhado "com
uma cédula em que não havia outro esclarecimento, salvo o de pedir que ele, Antônio
Ribeiro de Andrade e sua irmã Rita Maria de Andrade, fossem padrinhos"291.
A maioria dos padrinhos que se apresentavam desacompanhado das madrinhas
não trazia nenhuma denominação antes do nome. Mas há alguns casos em que os
padrinhos indicavam, por meio do próprio nome, seu status socioeconômico. Maria,
285Banco de dados..., Batizada em 24 de novembro de 1788, Id. 6880 286Banco de dados..., Batizada em 02 de maio de 1794, Id. 7828 287Banco de dados..., Batizada em 18 de agosto de 1776, Id. 5296 288Banco de dados..., Batizada em 15 de novembro de 1801, Id. 8339 289Banco de dados..., Batizada em 03 de abril de 1773, Id. 5098 290Banco de dados..., Batizada em 05 de abril de 1802, Id. 12110 291Banco de dados..., Batizada em 19 de fevereiro de 1846, Id. 7080
136
exposta, batizada na Matriz do Pilar, teve como padrinho o Capitão Domingos
Gonçalves da Cruz em seu batizado292. Luis, exposto, também batizado na Matriz do
Pilar, teve como padrinho o Capitão José Veloso do Carmo293. Felipe, exposto, batizado
na mesma matriz, teve como padrinho o Procurador da Comarca e Capitão Francisco de
Freitas Braga294.
Alguns assentos de batismo nos mostraram que, na ausência da madrinha, havia
em seu lugar um segundo padrinho; Esse fato representou 0,7% das ocorrências. Nesse
caso, o segundo padrinho não se retratava como procurador de nenhuma criadora, como
era mais usual. Aconteceu com a madrinha da exposta Mariana, quando pediu ao seu
procurador, Luis Antônio, que a representasse no batismo. “Mariana, exposta à porta de
Antônio Ramos dos Reis, batizada sub conditione. Nesse caso, a madrinha era mulher
do padrinho e nomeou como seu procurador Luis Antônio de Távora, por não poder
comparecer à cerimônia do batismo”. Assim, ao que tudo indica, a escolha de um
segundo padrinho descumpria as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia que
deixa bem claro que não admitia juntamente dois padrinhos. O exposto Cipriano,
batizado em 26 de setembro de 1774, na Igreja da Matriz do Pilar, teve como padrinhos
José Fagundes Serafim e Antônio Soares de Oliveira295. O exposto Joaquim, batizado
em 18 de janeiro de 1786, na Igreja da Matriz do Pilar, teve como padrinhos Antônio
José da Costa e Antônio da Rocha296.
A maioria dos expostos batizados que se apresentavam sem madrinha e
padrinhos foram batizados em perigo de vida. Esse fato deve ter ocorrido porque muitos
deles foram encontrados em situação de penúria, precisando ser batizados às pressas.
Cecília, exposta em casa de Anna Pereira Pinta, batizada em casa, em perigo de vida,
292Banco de dados..., Batizada em 16 de julho de 1778, Id. 5474 293Banco de dados..., Batizada em 29 de novembro de 1779, Id. 5694 294Banco de dados..., Batizada em 03 de agosto de 1785, Id. 6354 295Banco de dados..., Batizada em 26 de setembro de 1774, Id. 5220 296Banco de dados..., Batizada em 18 de janeiro de 1786, Id. 6492
137
pelo Reverendo Nicolau Pimenta da Costa, não constando nenhum padrinho e nem
madrinha.
A maior parte dos padrinhos era livre, atingindo um percentual de 93,9% de
padrinhos livres e 64,1% de madrinhas livres. Alguns deles, como vimos acima,
batizavam as crianças sem acompanhantes; 5,1% dos padrinhos e 33,7% das madrinhas.
Padrinhos forros somavam 2%, sendo 0,3% de padrinhos e 1,7% de madrinhas.
Encontramos 0,1% de um padrinho escravo coartado; 0,3% de padrinho escravo e 0,3%
de madrinha escrava.
Padrinho livre, Miguel de Araujo Silva e madrinha forra, Teodora Maria do
Espírito Santo, "parda", batizaram a exposta Maria297. Padrinho, forro, João Barbosa,
"pardo", e madrinha livre, Maria do Nascimento, batizaram o exposto Manoel298.
Padrinho livre, Bernardino José de Sina, e madrinha escrava, Anna, batizaram o exposto
Bernardino299. Padrinho, Antônio da Costa Coartado, e madrinha, Eugênia Maria de
Jesus livre, batizaram a exposta Gertrudes300.
Alguns padrinhos e madrinhas batizaram mais de um exposto. Esse fato pode
estar associado a vários fatores como, por exemplo, a caridade ou porque as crianças
foram abandonadas na casa desses padrinhos e alguns deles, não podendo criá-las,
tornaram-se seus padrinhos. Poderiam também ser seus próprios filhos, filhos de
parentes ou de amigos próximos. Os padres e os reverendos foram os que mais
apadrinharam. Tal fato era regulamentado pelas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia que proibia cônegos, frades, freiras ou qualquer outro religioso
professo de religião aprovada de serem padrinhos. O padre Manoel Moreira Duarte foi
padrinho de 15 expostos, sendo que desse total, seis ele apadrinhou sozinho, sem
297Banco de dados..., Batizada em 24 de maio de 1785, Id. 6250 298Banco de dados..., Batizada em 19 de maio de 1804, Id. 1472 299Banco de dados..., Batizada em 22 de setembro de 1779, Id. 5641 300Banco de dados..., Batizada em 25 de março de 1789, Id. 6919
138
madrinha. O padre Joaquim Roberto da Silva apadrinhou oito crianças; dessas, três ele
apadrinhou sozinho, sem madrinha, e uma delas era criada pelo procurador da Câmara.
O Sargento-mor foi padrinho de cinco expostos, sendo que dois deles foram
abandonados em sua casa. Um desses dois ele apadrinhou sozinho, sem madrinha, e o
outro ele apadrinhou juntamente com Catarina Dias Ramos. Os outros quatros foram
abandonados na casa de Catarina Dias Ramos, sendo que três deles, ele apadrinhou
juntamente com Catarina Dias Ramos e somente um ele apadrinhou juntamente com
Maria Pereira de Vilas Novas. Há indícios de que o Sargento-mor e Catarina Dias
Ramos trocavam de função um com o outro. Ora ele recebia o exposto e o batizava
juntamente com ela, ora ela recebia o exposto e o batizava juntamente com ele.
Ana Maria de Queiros Coimbra, casada, foi madrinha de sete crianças, sendo
que duas delas foram enjeitadas à porta de sua casa. Ela nomeou seu marido como seu
procurador para que pudesse batizar uma dessas crianças. “Anna, exposta em casa de
Jerônimo de Souza Lobo Lisboa, procurador da madrinha e, também, seu marido”301.
Ana Maria de Faria, solteira, parda, forra, foi madrinha de seis crianças, sendo que três
foram abandonadas em sua casa.
Quadro – 8 padrinhos e madrinhas de mais de um exposto Padrinho Ocupação Condição
Social Nº de
crianças apadrinhada
Madrinha Ocupação Condição Social
Nº de crianças
apadrinhada João Dias Rosa
Livre 4 Ana Maria Caetana Pereira
Ajudante Livre 4
Domingos Francisco de Carvalho
Livre 4 Anna Maria da Silva
Livre 4
Paulo Pereira de Magalhães
Livre 4 Maria Angélica
Casada Livre 5
301
139
Narciso Antônio
Livre 4 Anna Maria de Queiros Coimbra
Casada Livre 7
Domingos de Amorim Lima
Livre 4
Manoel Antônio de Carvalho
Livre 4
Manoel Pinto Lopes
Sargento-mor
Livre 5
Luis Caetano de Oliveira Lobo
Reverendo Livre 6
Antônio Correa Mayrinck
Doutor Reverendo
Livre 6
José de Freitas Souza
Padre Livre 6
Joaquim Roberto da Silva
Padre Livre 8
José Carneiro de Moraes
Padre Livre 12
Fonte: Banco de dados referente às atas paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto (CNPq, FAPEMIG).
140
Capítulo - 4 Destinos prováveis
4.1 A morte na puerícia
Na sociedade colonial, havia muitas irmandades compostas por pessoas que
professavam a fé Católica. Quando os membros dessas irmandades faleciam, eles
recebiam grande atenção destas congregações. Muita energia era empregada com o
intuito de oferecer a eles enterros vistosos e bem planejados, além de missas e orações.
Como era costume nessa sociedade, muitas pessoas deixavam destacadas em
seus testamentos, a exigência de serem realizadas missas por suas almas, além de
expressarem o valor do recurso financeiro destinados para a realização destas. Muitas
vezes esses valores eram superiores aos valores destinados aos cuidados para com os
pobres e doentes.
A cerimônia fúnebre dos adultos e, em especial, a das crianças revestia-se de
muita sofisticação. Esse fato estava diretamente ligado à mentalidade daquele período,
baseada nos sermões dos pregadores. Estes proferiam que, vindo a criança a falecer
após o batismo, sua alma estaria livre do período que teriam de passar no Limbo, indo
diretamente para o céu. Essa situação era vista com conformismo pelos familiares e se
tornava um motivo de alegria e orgulho, explicitando-o por meio dos bonitos enterros
que se realizavam. Nesse contexto, de morte prematura, foi amplamente utilizado o
adjetivo “anjinho”. De acordo com Renato Venâncio, a própria palavra anjinho tornou-
se sinônimo de recém-nascido falecido, sendo utilizado freqüentemente nas atas de
óbitos.
Aos oito dias do mês de julho de mil setecentos e setenta e oito anos, faleceu um anjinho filho de José Machado de idade de nove meses.
141
Foi seu corpo amortalhado em pano branco, recomendado com assistência da Cruz da Fábrica e sepultado nessa Igreja Matriz302.
A morte de bebês era comum na sociedade colonial, tendo em vista as precárias
condições sanitárias e higiênicas características da época. Desse modo, a crença de que
os recém-nascidos falecidos se transformavam em anjos colaborava para amenizar as
dores familiares pelas perdas, conforme dito anteriormente. As famílias que não
encarassem esse fato de forma amenizada, estariam demonstrando sua falta de fé,
atributo de muita importância para a sociedade da época.
Segundo João José Reis, no contexto “angelical”, os pais não organizavam
lamuriosos cortejos fúnebres para os filhos. Em vez disso, anunciavam-no com
verdadeiras festas, onde se dançavam para os anjinhos, tocavam músicas, organizavam
peças de alegria e ofereciam comida e bebida. O cortejo fúnebre era acompanhado por
uma procissão festiva303.
Esses acontecimentos escandalizavam os viajantes estrangeiros, que se
espantavam com as atitudes dos pais diante da morte do filho, como observado por John
Luccok:
Em uma dessas ocasiões foi ouvida uma mãe que assim se exprimia: “ó como estou feliz! Ó como estou feliz, pois que morreu o último dos meus filhos! Que feliz que estou! Quando eu morrer e chegar diante dos portões do céu, nada me impedirá de entrar, pois que ali estarão 5 criancinhas a me rodear e a puxar-me pela saia e exclamando: Entra mamãe, entra! Ó que feliz que sou!” Repetiu ainda, rindo a grande304.
O que percebemos é que a morte de crianças era um fenômeno corriqueiro nessa
sociedade e atingia todas as classes sociais. Embora o número de mortos entre as
crianças enjeitadas fosse maior do que entre as crianças não-enjeitadas, o desejo de
302VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas..., p. 102 303REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 123. 304LUCCOK, J. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975. Citado por COSTA, J. F. Ordem Médica e norma familiar. Rio de Janeiro:Graal, 1989.
142
garantir a salvação das almas dos pequenos também não fazia distinção às condições
econômicas de seus pais ou criadores, fato evidenciado pela urgência em batizar todos
aqueles que eram abandonados para que, caso falecessem, fossem direto para o céu.
Os historiadores brasileiros que, pesquisaram sobre a morte dos enjeitados,
notaram que, “independentemente da cor ou do sexo”, eles “constituíram o segmento
social mais suscetível a morte precoce”. Maria Luíza Marcílio percebeu, por meio dos
registros de óbitos das Casas das Rodas, que nem mesmo os filhos de escravos
registraram índices de mortalidade tão altos quanto os enjeitados305. Renato Venâncio,
confirma essa informação, embora o pesquisador observe que em Vila Rica revelou o
contrário, ou seja, os índices de mortalidade infantil de enjeitados eram inferiores aos
dos filhos de escravos. Ainda, de acordo com o autor, esse fato pode ter ocorrido
porque, nem sempre havia a possibilidade das criadeiras, ou até mesmo dos párocos, de
se preocuparem em registrar óbitos de anjinhos que faleciam após o batismo. “Quantos
deles foram enterrados em fundos de quintal (...) ou beira de estradas?”306.
A observação de Venâncio, ratifica os documentos de óbitos da Matriz do Pilar
de Vila Rica. Poucos foram os documentos que notificaram os óbitos dos inocentes,
sendo que havia anos seguidos de outros anos em que nenhum registro de óbitos de
inocentes ou de inocentes abandonados fosse registrado. De acordo com análise de
Renato Franco, no período de 1760 a 1800, foram notificado somente 11,9 % (59 óbitos
para um universo de 495 nascimentos). No entanto, há períodos de melhora da
qualidade dos registros no recorte de 1763-1769, havia pelo menos uma morte de
enjeitado em cada ano, elevando a taxa de mortalidade para 62,9 % (22 óbitos e 35
nascimentos). Para ele, é possível que, entre os anos de 1760 e 1800, as notificações de
305MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança ..., p. 198-201 306VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas..., p. 112
143
óbitos sofreram algum sub-registro, até então desconhecido, “pois há anos em que
nenhum óbito de enjeitado foi anotado”307.
Na análise dos óbitos da Paróquia da Nossa Senhora do Pilar, priorizamos os
documentos relativos ao período do nosso estudo, que se situa entre 1770 e 1850.
Assim, contabilizamos 204 registros de óbitos de expostos. Se compararmos esses
registros com os 566 batismos de expostos da mesma Igreja, percebemos que o índice
de mortalidade é de 36,0%. Em outras palavras, o índice que é inferior ao das crianças
Escravas308. Na paróquia da Conceição do Antônio Dias, entre 1800-1809, a taxa de
mortalidade dos enjeitados foi de 19,13 %309, reforçando a suspeita de sub-registros.
As variações observadas, por meio da análise dos documentos, nos leva a
acreditar que muitos óbitos não foram registrados. Não sabemos exatamente quais
motivos levaram a esse anonimato, podendo ser: párocos e criadores que deixavam de
fazer o registro de óbitos, assim como crianças que foram enterradas em quintais das
casas dos criadores ou em terreno baldio, também havia a possibilidade dos criadores
não comunicarem, a Câmara e a Igreja, a ocorrência da morte.
As prováveis causas da mortalidade dos expostos começavam desde a idade
gestacional. Algumas mães podem ter feito tentativas mal sucedidas de aborto, podem
ter utilizado roupas apertadas que comprimiam ou escondiam a barriga e, o parto, pode
ter sido realizado em condições precárias, sem higiene ou assistência adequada.
Em um segundo momento, após o nascimento e conforme o lugar do abandono,
a criança teria que resistir às intimidações do tempo, como chuva, frio e calor, e às
ameaças de animais famintos. Caso a criança fosse encontrada com vida, passaria por
307FRANCO, Renato Júnio. Desassistidas Minas..., p. 166 308Banco de dados de batismo e óbitos de expostos, referente às atas paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto (CNPq, FAPEMIG) 309COSTA, Iraci Del Nero. Vila Rica: população (1719-1826)...p. 86.
144
mais testes de resistência: a aceitação, por parte do acolhedor, para recebê-la por pelo
menos uma noite aos seus cuidados, até ser transferida para outro domicílio.
Nas instituições de auxílio, os expostos também passavam por mais provações.
Por exemplo, na Roda dos Expostos da Santa Casa de Salvador, desde meados do
século XVIII até final do XIX, a mortalidade infantil sempre foi elevada. Essa situação
ocorria por várias situações: 1) Amas-de-leite mercenárias, que sustentavam mais de um
exposto; caso não fosse possível a elas sustentarem todos os expostos, utilizavam-se do
aleitamento artificial, às vezes pobres em nutrientes ou utilizavam alimentos sólidos
para crianças de idades prematuras. 2) A falta de condições mínimas de higiene, já que
não havia controle sobre esse aspecto. 3) Algumas crianças eram colocadas em
ambiente onde se encontravam pessoas doentes, expondo-as ao risco permanente de
contagio de doenças, como tuberculose.
Em Vila Rica, de acordo com Iraci Del Nero da Costa, as causas da morte das
crianças, descrita nos documentos de óbitos da Paróquia de Antônio Dias, estavam
relacionados juntamente com às dos adultos. As causas de óbito seriam: doenças
infecciosas e parasitárias; doenças do aparelho respiratório e doenças do aparelho
digestivo310. Cintia Ferreira Araújo, ao analisar os documentos de óbito dos enjeitados,
da Paróquia de Sá de Mariana, também nos mostrou algumas causas de doenças que
levaram à morte dessas crianças: febre maligna, ataque do peito, moléstia interna, fluxo
amalinado, inflamação no peito, problemas na bexiga; tosse, hidropesia do peito;
malina, sarnas recolhidas, apoplexia, ataque convulsivo/convulsões, constipação e de
repente311.
310COSTA, Iraci Del Nero. Vila Rica: população (1719-1826)...p. 92. 311ARAÚJO, Cíntia Ferreira. A Caminho do Céu: a infância desvalida em Mariana (1800-1850). Mestrado da UEP, campos Franca, 2005, p. 113-118.
145
Dos documentos de óbitos de expostos da Nossa Senhora do Pilar, somente
quatro registram as causas das mortes: três crianças morreram repentinamente e um
adulto morreu de acidente no trabalho.
Outras informações extraídas dos documentos dizem respeito à idade em que as
crianças chegaram a falecer. De acordo com o quadro 9, percebemos que a maioria das
crianças morreu antes mesmo de completarem alguns meses de vida. Outras, ao que
tudo indica, morreram entre um e dois anos de idade. Como também demonstra o
mesmo quadro, ocorreram 38 óbitos de expostos adultos, porém em somente nove deles
foi explicitada a idade.
Quadro –9 Idade do falecimento das crianças expostas Idade 0 3
meses 9
meses 1
ano 1,8 1,9 2 2,6 6 28 33 40 42 50 58 78
Quantidade 21 1 1 1 1 1 1 1 1 1 2 2 1 1 1 1
Fonte: : Banco de dados referente os óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto (CNPq, FAPEMIG)
Embora, tenhamos poucos documentos que demonstrem as altas taxas de
mortalidade dos expostos e as causas que os levaram a falecer, notamos que estas
crianças passaram por várias provações para se manterem vivas.
4-2 Assistência ao exposto após os sete anos de idade
Para a maioria das meninas e meninos expostos – que sobreviveram ao alto
índice de mortalidade dos primeiros anos de vida e cujos pais nunca mais cuidaram de
sua existência ou que nem sequer puderam permanecer com suas respectivas amas-de-
leite – poucas foram as saídas que se apresentaram em suas vidas, além da morte e da
rua.
146
Para essas crianças as Ordenações do Reino sancionaram uma lei que, assim que
um exposto completasse sete anos de idade e esse não tivesse criado laços de
estabilidade com a família que o criou, era dever dos Juízes de Órfãos se responsabilizar
pelo destino da criança. O Alvará Pombalino, de 1775, confirmou tal decreto das
Ordenações e acrescentou mais deveres aos Juízes de Órfãos. De acordo com o Alvará,
no artigo 8º, Pombal ordenou aos Juízes de Órfãos que, além deles encontrarem uma
família para as crianças órfãs, expostas e desamparadas312, eles deveriam também torná-
las pessoas ocupadas e não ociosas. Em outras palavras, ingressá-las em algum ofício.
Para que, mais tarde, essas se tornassem pessoas úteis a si e a monarquia.
Foi justamente a partir de fins do século XVIII, conforme vimos no tópico
Assistências aos enjeitados - caridade e filantropia, que surgiu na América Portuguesa
propostas e iniciativas de caráter filantrópico. O historiador Renato Pinto Venâncio
argumenta que, os estudos a respeito da filantropia no Brasil ainda são raros. As
pesquisas até agora realizadas, a respeito dos expostos, concentraram se no período da
“caridade”, ou seja, no período colonial. Poucos são os trabalhos que sublinham as
formas de auxílios filantrópicos antes da implementação da República, em 1889. Para
Venâncio, a falta de estudos das associações filantrópicas privadas frente aos expostos,
juntamente com ações mutualistas, deixam de preencher uma importante lacuna da
historiografia dos modos assistenciais até a década de 1930.
Os estudos a respeito da filantropia no Brasil ainda são raros. Mais raras ainda são as pesquisas que exploram o tema para períodos anteriores ao período republicano. Uma postura comum a esses estudos é a de sublinhar que, na república liberal, implantada em 1889, se constata a ausência de um Estado promotor de bem-estar social e de políticas de previdência.
312PINTO, Antonio J.G. Compilação das providências qua a bem da criação e educação dos Expostos ou Enjeitados se tem publicado e acham espalhados em diferentes artigos da legislação pátria, e que acrescem outras. Lisboa: Imprensa Régia, 1820. p.46.
147
Para o historiador Ronaldo Pereira de Jesus, que trabalhou com algumas das
associações mutualistas brasileiras, percebeu que elas eram bem diferenciadas - em sua
composição, motivação, temporalidade, clientela e objetivos. Segundo ele, as primeiras
mutuais do Brasil datam da primeira metade do século XIX e, embora algumas
permaneceram funcionando até os dias atuais, foram gradativamente esvaziando ao
longo das décadas de 1930 e 1940. Muitas delas tinham como objetivo a dedicação para
associações de proteção na ausência dos mecanismos formais de previdência pública.
Elas ofereciam pensões, indenizações, financiavam enterros, forneciam remédios,
atendimento hospitalar, entre outros cuidados313.
Na Europa do século XVIII, as propostas filantrópicas já existiam. Foi no século
das luzes que se redesenhava uma nova concepção nas relações entre as elites e os
desvalidos. As elites, nessa época, deixaram de enxergar os desvalidos como indivíduos
incapacitados e errantes, e passavam a encará-los como seres participantes do
movimento do progresso, dentro de um princípio de utilidade social. Essas
preocupações humanitárias das autoridades tiveram conotações mais filantrópicas do
que simplesmente caridosas.
Neste contexto que surgiu uma assistência mais organizada, freqüentemente
coletiva314, em que o Estado detinha um papel essencial. Nessa perspectiva, surgiram,
em diversos estados europeus, medidas legislativas que conduziram indivíduos
“improdutivos” para instituições que os tornavam produtivos.
Portanto, as crianças expostas ou desamparadas315 se integravam a essa nova
mentalidade assistencial. As autoridades as viam como seres úteis ao Reino. Por isso,
313JESUS, Ronaldo Pereira de. Mutualismo e Desenvolvimento econômico no Brasil do século XIX. Revista OIDLES – Vol 1 Nº 1 (septiembre 2007). 314Com a participação da filantropia privada. Pessoas que estavam dispostas auxiliar essa nova assistência filantrópica. 315Nesse período final de do XVIII e no decorrer do XIX as crianças expostas como as órfãs pobres eram misturadas a outras categorias de crianças desvalida ou desamparada.
148
neste momento, em que notamos que houve uma proliferação das Rodas dos Expostos,
em algumas sociedades européias, até mesmo no leste europeu, como na Rússia. Em
Portugal, a proliferação da Roda também foi registrada, tendo apoio de D. Maria I, que
expediu Alvará determinando que as Câmaras financiassem a criação dos expostos e as
Santas Casas de Misericórdias aparelhassem as suas instituições com a Roda dos
Expostos.
Deste modo, também na América Portuguesa, em fins do século XVIII, as
autoridades começaram a se preocupar com o crescente número de crianças desvalidas
que vagavam pelas ruas. Uma das soluções para esse problema foi a criação de
estabelecimentos que preparavam esses meninos para se tornarem indivíduos úteis.
Apropriavam-se, assim, da legislação portuguesa de 1775, que valorizava a utilização
das crianças órfãs, exposta e desamparada em algum ofício. Nesse contexto, não
podemos esquecer que esse mesmo Alvará deixava bem claro que todas as crianças
enjeitadas eram livres perante a lei, independentemente da sua cor.
Tal perspectiva continuou a ser observada no século XIX. Nessa temática o
aumento da povoação seria de relevância para a riqueza da nação. Assim, os expostos
deveriam ser educados com intuito de torná-los “membros úteis da sociedade”, uma vez
que os enjeitados eram “filhos do Estado”316.
Nesse momento, no Brasil, teve início a intensificação da criação de instituições
destinadas ao amparo de crianças maiores de sete anos de idade. Muitas dessas
instituições copiaram normas, leis, decretos e alvarás das instituições de Portugal. As
meninas expostas, que, após completarem sete anos, não fossem acolhidas pela família
que as criaram, eram enviadas aos Recolhimentos. Tal estabelecimento já tinha a função
316PINTO, Antônio Joaquim de Gouveia. Compilação das providencias que a bem da criação e educação dos expostos..., p. 03-04.
149
de recolher moças órfãs, expostas e mulheres pobres, para educá-las e prepará-las para
uma vida mais útil a sociedade317.
O termo Recolhimento se difere do termo convento por não haver nesse
estabelecimento a formação religiosa e vocacional de freiras318. Na América Portuguesa,
o Recolhimento de Salvador, no princípio do século XVIII, “se destinava
primordialmente as jovens de famílias de classe média, de idade casadoura, e cuja honra
estivesse ameaçada pela perda do pai, da mãe ou de ambos. Eram aceitas como
recolhidas ou reclusas, e ao casar-se recebiam um dote”319. Além dessas moças, esse
estabelecimento também recebia mulheres viúvas, solteiras ou mulheres cujos maridos
estivessem afastados da cidade.
Portanto, o Recolhimento dessa cidade acolheu somente meninas expostas no
final do século XVIII. As autoridades viram nessa instituição uma forma de preparar
essas meninas para vida familiar ou para o trabalho doméstico. Assim, em vez delas
vagarem pelas ruas das cidades, elas passaram a morar no Recolhimento e a receberem
educação no mesmo. As moças aprendiam as primeiras letras, assim como bordados,
costuras. Em outras palavras, aprendiam a ser uma boa esposa, algumas recebiam da
instituição dotes para o casamento.
Essas instituições se propagaram por várias cidades do Império, criando outras e
melhorando as antigas. Surgiram, desse modo, no século XIX, os Asilos de Órfãs, como
o de São Vicente de Paula, o de Santa Tereza, o de Santa Leopoldina, o de Nossa
Senhora da Conceição e o de Coração de Jesus. A educação das moças que
freqüentavam essas instituições era responsabilidade de irmãs de caridade. Algumas
vinham da França e se habilitavam para serem professoras de magistério, costureiras,
317MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança ..., p. 164 318RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e Filantropos..., p. 263 319RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e Filantropos..., p. 263.
150
dona de casa, além de acompanharem aula de música e de doutrinas cristãs. Tudo isso
dentro de uma perspectiva filantrópica.
Quadro – 10 Instituições de Acolhimento de Meninas Cidade Ano de Fundação Instituição Bahia 1801 Recolhimento de Nossa
Senhora da Misericórdia Mariana 1850 São Vicente de Paula
Rio de Janeiro 1854 Recolhimento de Santa Teresa / Asilo Santa
Leopoldina Desterro de Santa Catarina 1855 São Vicente de Paula
Pelotas 1855 Asilo de Nossa Senhora da Conceição
Rio Grande 1855 Asilo de Coração de Maria Maranhão 1855 Asilo de Santa Teresa
Recife 1855 Colégio das Órfãs Ceará 1856 Colégio dos Educandos
Menores Fortaleza 1856 São Vicente de Paula
Porto Alegre 1857 Colégio de Santa Teresa / Asilo Santa Leopoldina
São João Del Rei 1866 Recolhimento de Nossa Senhora
Fonte: MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998. VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas: Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX. Campinas, São Paulo: Papirus, 1999.
Os meninos expostos, órfãos e desvalidos também foram enquadrados nesta
perspectiva.
O primeiro movimento desse processo ocorreu com a fundação da Casa Pia de
Lisboa, criada em 1780, pelo Intendente Geral de Polícia Diogo Ignácio de Pina
Manique, que esteve presente na administração dessa instituição até momentos do seu
falecimento, em 1805. Os Colégios Pios eram guiados pelos princípios dos ideais
iluministas, que tinham como objetivo a recuperação das pessoas ociosas, marginais,
expostos e órfãos desvalidos. Essa transformação de elementos nocivos em súditos úteis
exigia a disciplina dos corpos e a educação para o trabalho, tornando-os pessoas
capazes para o desempenho de atividades consideradas importantes para o
151
engrandecimento de Portugal. Para tanto, foram criadas oficinas de tecelagem de
lonas, brins, cabos de laborar, tecidos de algodão e seda, meias, panos de linho e
fiações para todas estas manufaturas320.
O primeiro estabelecimento deste gênero de que temos conhecimento, aqui no
Brasil, foi à Casa Pia e Seminário de São Joaquim da cidade de Salvador. Ele foi
proposto em fins do século XVIII, como instituição criada para “cuidar da sustentação e
do ensino dos meninos órfãos e desvalidos, a fim de que, convenientemente educados e
com profissões honestas venham depois a ser úteis a si e à nação, que muito lucra com
bons costumes e trabalho”321.
Joaquim Francisco do Livramento, participante da Ordem Terceira de São
Francisco, membro de uma família distinta de Santa Catarina, foi o precursor da
administração desse estabelecimento. De passagem por Salvador, comoveu-se com a
situação dos meninos que viviam soltos pelas ruas. Deste modo, obteve da Rainha D.
Maria I, no ano de 1799, autorização para reunir recursos e construir a Casa Pia de
Órfãos, que foi estabelecida em 1808. Os menores recolhidos recebiam a instrução de
um sacerdote, que os instruía na doutrina cristã, fazendo-os aprender as primeiras letras,
e depois os encaminhando para as casas dos mestres de ofício. No entanto, em 1818,
passou-se a administração da Casa Pia para o governo da província, que viu nessa
instituição, uma contribuição para o crescimento da província322. Deste modo, em 1825,
o orfanato recebeu o nome definitivo: Casa Pia e o Colégio de Órfãos de São Joaquim.
O regimento, de 1831, sugere que a perspectiva filantrópica guiou a formação da
instituição.
320RODRIGUES, Neuma Brilhante. Para a utilidade do Estado e “Glória à Nação”: A Real Casa Pia de Lisboa nos Tempos de Pina Manique (1780-1805). Ver. Territórios e Fronteiras V. 1 N. 2 – Jul/Dez 2008, 27-28. 321Estatuto do Seminário S. Joaquim. Coleção de Leis do Império do Brasil – 1831. P, 61 http://www2.camara.gov.br/legislacao/index.html (acesso: 25 de junho de 2011). Ver também em: MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada... 322MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada..., p. 180-181
152
Art. 1º O Seminário de s. Joaquim é um estabelecimento de caridade pública, destinado a recolher os meninos orphãos pobres e desvalidos, a fim de serem nelle educados convenientemente, e habilitados ao exercício de misteres honestos e proveitos. Art. 2º este estabelecimento fica debaixo da immediata protecção do Governo, que solicito promoverá sempre seu melhoramento grandeza.323
Esse último regimento seguia a mesma perspectiva das Casas Pias de Portugal,
que era de tornar as pessoas desocupadas em pessoas produtivas. Os meninos para
serem aceitos na instituição, deveriam ter entre sete anos e nove anos, e só poderiam
ficar no seminário por um período de seis anos. Eles deveriam deixar o estabelecimento
ao completarem dezoito anos, em seguida aprenderiam aulas de jogo de armas e
manejo, habilidade necessária nas Guardas Nacionais. Finalizariam o ensino de
primeiras letras, depois seriam orientados para o ensino de ofícios mecânicos em casa
de mestres artesãos324.
No Rio de Janeiro, o primeiro estabelecimento para meninos carentes foi o
Seminário de Santo Antônio que, entre 1751 e 1850, acolheu 117 educandos, sendo
dezoito expostos. Entretanto, esse estabelecimento não preparava os meninos para as
funções de ofícios, efetivamente os preparavam para a carreira sacerdotal.
No entanto, na mesma cidade, também teve a Casa Pia de São Joaquim, ao que
tudo indica, também foi criada em 1818, e teve o regimento alterado no ano de 1831. As
verbas conseguidas para manter esse estabelecimento decorriam dos bons desejos dos
governos, da filantropia e da caridade, que tanto caracterizam os cidadãos brasileiros,
será aumentado o dito número na proporção acima estabelecida, e então por editais se
fará constar os lugares, que se houverem de preencher.
Para os meninos, a idade de ingresso na instituição compreendia entre sete e
onze anos; antes ou depois destes limites lhe será vedado o recebimento: outrossim
323Estatuto do Seminário S. Joaquim. Coleção de Leis do Império do Brasil – 1831, p. 62 324Estatuto do Seminário S. Joaquim. Coleção de Leis do Império do Brasil – 1831, p. 62
153
nenhum nele se demorará por mais de seis anos. As aulas ministradas eram de:
matemática, primeiras letras e desenhos, os mais avançados aprendiam aritmética e
álgebra até equações do 2º grau: no 2º geometria e trigonometria plana: no 3º
mecânica aplicada às artes. Nas oficinas aprendiam o jogo de armas, o exercício, e o
manejo das Guardas Nacionais e nas oficinas de artigos aprenderão a ser torneiro,
entalhador, litógrafo, abridor, ou qualquer outra de misteres adequados às nossas
precisões, e estão de civilização do país; que ali se possa estabelecer por ajuste da
Câmara Municipal, e aprovação do Governo325.
Em São Paulo, devido a Roda dos Expostos ter sido criada no século XIX, fez
com que as autoridades se preocupassem com o destino dos meninos após término da
criação, nos domicílios. Nesse intuito, em 1824, foram criados o seminário da Glória,
internato para meninas, e o Seminário de Santana, internato para meninos. Essas
instituições os ensinavam as primeiras letras e algum tipo de ofício326.
Nesse mesmo período de assistência filantrópica, além das Casas Pias e Colégios
de Órfãos, houve em Portugal instituições criadas pelo Alvará Régio, de 24 de março de
1764, que determinava o ensino de meninos desamparados à Colégios de Arsenal de
Guerra e da Marinha. Esses estabelecimentos, em Portugal, eram denominados
“Colégios da Intendência”. Na América Portuguesa, em fins do século XVIII, D. Maria
I notificou ser oportuno oferecer aos meninos órfãos e expostos aprendizagem nas
instituições de Guerra. Um Alvará Régio, de 1779, regulamentava a admissão desses
educandos desamparados. No entanto, essa admissão aconteceu de forma regular
somente a partir da década 1830. Um decreto reconheceu essa situação: “o estado
desgraçado em que se acham em geral órfãos pobres e miseráveis maiores de sete anos,
que, pelo abandono em que vive nas ruas, nenhum bem podem oferecer à sociedade”.
325Estatuto do Seminário S. Joaquim. Coleção de Leis do Império do Brasil – 1831..., p. 62- 64. 326MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada..., p. 183.
154
Assim, ordenou-se aos Juízes de Órfãos que encaminhassem os meninos desocupados
para as Companhias de Guerras. Os meninos enviados para esses estabelecimentos
poderiam permanecer neles por sete anos327.
Os estatutos das Companhias de Aprendizes do Arsenal da Guerra e das
Companhias de Aprendizes Marinheiros admitiam expostos, órfãos, indigentes e filhos
de pais pobres. A idade mínima estabelecida para admissão da primeira Companhia era
de oito a doze anos, sendo que até os catorze anos nada receberiam por seu trabalho,
eram considerados aprendizes. E a idade mínima permitida pela segunda Companhia era
entre quatorze e dezessete anos. As Companhias cuidariam de prover-lhes alimentação,
abrigo, vestuário, disciplina e ofícios. O cotidiano da Companhia era marcado pela
disciplina e pedagogia militares. Com horários para estudos de letras, aulas de músicas,
de ofícios (marceneiro, ferreiro, tanoeiro, pedreiro, tecelão e outras atividades) e rezas
cristãs. Eram a eles aplicados castigos correcionais caso não praticassem tais funções328.
Essas duas Companhias de Aprendizes concentravam-se em quase todas as
cidades litorâneas. As Companhias de Aprendizes de Marinheiros, segundo Renato
Venâncio, foram estabelecidas em dezessete cidades, sendo que a maioria se
concentrava no litoral nordestino. Eis as províncias que contaram com este
estabelecimento: (Pará) Belém, (Maranhão) São Luís, (Piauí) Teresina, (Ceará)
Fortaleza, (Paraíba) João Pessoa, (Pernambuco) Recife, (Bahia) Salvador, (Goiás-
Goiana) Ladário, (Rio de Janeiro) Rio de Janeiro, (Rio Grande do Sul) Porto Alegre,
(Paraná-Curitiba) Paranaguá e (Santa Catariana – Florianópolis) Desterro.
327MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada..., p. 184-190 328VENÂNCIO, Renato Pinto. Os aprendizes da guerra. In: PRIORE, Mary (org.). Historia das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999.
155
Quadro – 11 Estabelecimentos de Companhia de Aprendizes de Marinheiros Cidade Ano de Fundação Rio de Janeiro 1833 Bahia 1840/1855 Belém do Pará 1855 Maranhão 1855/1859 Santa Catarina 1862 Recife 1886 São Luis ? Pará ? Teresina ? Fortaleza ? Paraíba ? Salvador ? Paranaguá ? Desterro ? Porto Alegre ? Rio Grande do Sul ? Ladário (Goias) ? Fonte: VENÂNCIO, Renato Pinto. Os aprendizes da guerra. In: PRIORE, Mary (org.). Historia das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.
A maioria dessas Companhias começou a funcionar em meados do século XIX,
período esse em que os juristas começaram a categorizar a criança exposta, desvalida,
órfão e carente como menor delinqüente e infrator. De acordo com Fernando Londonõ,
a terminologia menor mudou a imagem da criança, de anjinho desprotegido para a de
criança perturbadora da ordem e de vadia. A criança abandonada que se entregasse a
vadiagem era caso de polícia para os juristas329. Nessa fase, a medicina, os juristas e o
Estado, enfatizavam a necessidade de mudança do procedimento de auxílio oferecido à
criança330. Era necessário para eles a reformulação de comportamento assistenciais
caritativos, com uso de técnicas cientificas. Assim, a caridade passava a ser vista como
falta de organização, de método de trabalho e de ordem. A filantropia incorpora essa
perspectiva e visa dar prosseguimento à obra de caridade, mas sob um novo
329LONDONÕ, Fernando Torres. Origem do Conceito Menor. In: PRIORE, Mary (org.). Historia das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. 330Juristas e médicos criaram um projeto de prisão modelo para os menores carentes ou infratores. Esse projeto baseava-se nos valores e as normas cientificas proposta pela assistência filantrópica, que segundo essa assistência os meios fundamentais de recuperação dos menores eram a educação, o trabalho e a disciplina.
156
entendimento de assistência. Não mais a esmola que humilha, mas a reintegração social,
das crianças desvalidas.
As ações filantrópicas, dessa forma, foram pensadas na sociedade como um
recurso racional e técnico para atender à questão social do menor desamparado. Tendo
como objetivos educar, formar, proteger e corrigir menores abandonados. Assim, novos
experimentos pedagógicos surgiram, como no caso das colônias agrícolas. Esses
estabelecimentos começaram a ser criados na segunda metade do século XIX. A função
de tais instituições visava a preparação dos meninos para o mundo do trabalho agrícola,
em substituição do trabalho escravo. Conforme observa Maria Luiza Marcílio:
O ensino agrícola e a vida segregada em fazendas eram vistos como fórmula ideal para retirar o jovem abandonado ou infrator das ruas, com o fim de instruí-lo e capacita-lo para o mundo do trabalho., e também como forma de prevenção ou, então, de regeneração da delinquência juvenil. Tal modelo era considerado o meio ideal para desenvolvimento do hábito e do amor ao trabalho e como uma forma de preparar meninos e meninas, para serem úteis a sociedade331.
Essas colônias se desenvolveram nas seguintes regiões: Pará, Belém, Recife,
Fortaleza, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. No entanto, a maioria delas, tiveram os
seus estabelecimentos em pleno funcionamento a partir da década 1870.
Quadro – 12 Instituições de Colônia Agrícola e/ou Industrial Cidade Ano de Fundação Instituição
Recife 1873 Colônia Agrícola Orfanológica e Industrial
Fortaldeza 1877/79 Colônia Agrícola Orfanológica e Cristina
Bahia 1886 Colônia Orfanológica Isabel de Salvador – Industrial e Agrícola
Pará 1899 Instituto Lauro Sodré tornando mais tarde Colônia Orfanológica Artística, Industrial
Belém 1899 Agrícola Providência Rio de Janeiro 1901 Colônia Penal Agrícola, na
331MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada..., p. 214.
157
Fazenda de Santa Mônica São Paulo 1902 Instituto Modelo ou Instituto
Disciplinar – Industrial e Agrícola
Belo Horizonte 1909 Instituto João Pinheiro – Colônia Agrícola
Fonte: MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.
Em Minas Gerais, também foi notório o desempenho dos presidentes da
província nos cuidados com os meninos expostos, órfãos e desvalidos. Em 1835, o
presidente da província Antônio da Costa Pinto ordenou que, nas cidades do Estado,
onde não houvesse a Roda dos Expostos, era obrigação das Câmaras Municipais
custearem e cuidarem da criação dos Expostos. Deste modo, várias Câmaras de Minas
continuaram e intensificaram suas responsabilidades com criação dos meninos: Ouro
Preto, Mariana, São José Del Rei, Barbacena, Lavras, Pouso Alegre, Itabira, Rio Pardo,
Campanha, Queluz, Sabará, Pitangui, Diamantina, Vila do Príncipe, Paracatu, Curvelo,
Minas Novas, Poruba e Auiruoca.
Alguns relatórios dos presidentes das províncias nos demonstra que algumas
instituições de Minas Gerais atuaram em prol do desenvolvimento da aprendizagem das
crianças maiores de sete anos de idade. São João del Rei, além de ser a primeira cidade
de Minas que aparelhou a Santa Casa de Misericórdia com a Roda dos Expostos, foi
também uma das primeiras cidades a criar um Recolhimento para moças. O intuito desse
estabelecimento era educar e ensinar as moças alguns ofícios e oferecer a elas dotes para
se casarem. A Santa Casa de Misericórdia de São João del Rei aparece descrita no
relatório do presidente da província como um estabelecimento bem sucedido. “O fundo
deste Hospital é de 69:910$224. Importou sua receita desde 20 de junho de 1857 a 20
158
do dito mês de 1858 na quantia de 10:976$186, e a despesa em 9:419$216. Houve um
saldo de 1:556$970”332.
Na cidade de Mariana, o Hospital da Santa Casa de Misericórdia foi edificado no
ano de 1833, com excelentes cômodos, apropriados para atender de 30 a 40 enfermos.
No entanto, a instituição não contou com administradores para dirigi-la e nem recursos
suficientes para ajudá-la a cuidar dos necessitados. Em 1854, a Santa Casa de
Misericórdia teve dificuldades para manter a assistência em atividade.
Conseqüentemente, não encontramos nenhum relato documental que comprove que nela
houve a instalação da Roda dos Expostos.
Ao hospital de caridade da leal cidade de Mariana faltam todos os recursos indispensáveis para preencher os filantrópicos fins de sua instituição, e por isso não tem podido prestar regularmente a humanidade enferma e desvalida os ofícios de caridade na conformidade de seus estatutos. O edifício com que está situado, além de carecer de muitos cômodos para os diferentes misteres a que é destinado, necessita de prontos reparos, principalmente na sua capela consagrada ao culto da Senhora Santa Ana333.
Todavia, em Mariana, existiram duas instituições com iniciativas filantrópicas,
que teriam como função proporcionar a educação para meninos e meninas - expostos,
órfãos e desvalidos. A instituição destinada às meninas recebeu o apoio do Bispo de
Mariana, que incentivou a vinda de Paris de doze filhas da caridade para instruir as
meninas carentes no ensino de gramática e em ofícios de costura e outros.
Devendo a província ao zelo verdadeiramente apostólico do virtuoso Prelado desta diocese o possuir hoje em seu seio a mais bela instituição de São Vicente de Paula nas filhas da caridade – que se estão estabelecendo na cidade de Mariana, quase que a providencia
332Relatório de Presidente de Província de Minas Gerais, (ano de 1859) apresentado pelo presidente Joaquim Delfino Ribeiro da Luz. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u257/000053.html (acesso: 01 de julho de 2011). 333Relatório do Presidente da Província de Minas Gerais, (ano de 1854) apresentado pelo presidente Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/458/000009.html (acesso: 01 de julho de 2011).
159
para d’ali se disseminarem oportunamente pela província e sendo acima de toda a expressão os benefícios que estes veneráveis anjos da terra prestam à humanidade enferma, à moral pública e a religião, julgo do meu imperioso dever mui particularmente recomendá-las334.
Para os meninos, o estabelecimento designado a eles foi o Colégio de Órfãos,
que também contou com o apoio do Bispo da cidade.
Deve também a província o zelo do Exm. bispo diocesano a inauguração de um colégio de meninos órfãos na cidade de Mariana, sem outros fundos além dos que lhe sugerira sua engenhosa caridade. Dirigiu-se aos párocos da província, como sabereis, enviando lhes pequenos folhetos pios e estampas de santos para a estação da missa conventual os distribuírem pelos fieis mediante uma esmola não menor de 40 rs, e é com esse tão precário subsidio que abriu o colégio, onde já tem bom número de meninos. Não posso deixar de recomendar a vossa esclarecida proteção tão pio estabelecimento335.
Esses dois estabelecimentos foram citados no relatório do presidente da
província, induzido por Alexandre Joaquim de Siqueira, no ano de 1850. A historiadora
Cínthia Araújo, levanta a hipótese de que o desaparecimento dos expostos na lista de
matrícula da Câmara de Mariana, a partir de 1833, estaria associado com a criação
dessas duas instituições. As quais passariam a ficar com a responsabilidade da criação
dos expostos desde bebês336. Portanto, o que sabemos dessas instituições é que o
Colégio de Órfãos também abrigou enfermos no seu estabelecimento, já que a Santa
Casa se encontrava inoperante.
Os enfermos desvalidos que necessitam da Santa Casa, são provisoriamente tratados na Casa dos Órfãos sob as vistas e desvelos das irmãs de caridade que espontaneamente se ofereceram a prestar-lhes seus serviços. O número de enfermos sobe a 16 e consta que nada
334Relatório de Presidente de Província de Minas Gerais, (ano de 1850) apresentado pelo presidente Alexandre Joaquim de Siqueira. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/454/000018.html (acesso: 01 de julho de 2011). 335Relatório de Presidente de Província de Minas Gerais, (ano de 1850) apresentado pelo presidente Alexandre Joaquim de Siqueira. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/454/000018.html (acesso: 01 de julho de 2011). 336ARAÚJO, Cíntia Ferreira. A Caminho do Céu..., p. 84.
160
tem faltado a estes infelizes para se restabelecerem dos incômodos corporais e espirituais. A par da saúde do corpo não se esquecem as irmãs da caridade da saúde do espírito dos que estão confiados aos seus cuidados. Convém que tão interessante asilo seja auxiliado a fim de que não definhe por falta de recursos337.
Em Vila Rica, conforme já vimos, desde a edificação da Santa Casa de
Misericórdia, em 1738, essa instituição sempre esteve prejudicada, pois, além de poucos
recursos financeiros destinada a ela, pouca também era a atenção desempenhada pelos
governadores para ajudá-la a exercer a função assistencial aos necessitados. Mesmo
depois da independência do Brasil, a Casa de Misericórdia da capital mineira, Ouro
Preto, apareceu descrita no relatório do presidente da província como uma instituição
que ainda apresentava muitas dificuldades. “(...) constantemente luta a Santa Casa de
Misericórdia desta Capital. Seus fundos, uns por sua fraqueza, outro por improdutivos,
não dão suficiente renda para fazer face as variadas incumbências do compromisso,
por que atualmente se rege”338.
Deste modo, em Ouro Preto, os cuidados com os expostos, até os sete anos de
idade, continuaram a cargo da Câmara, e o procedimento de escrevê-los na lista de
matrícula também continuou sendo o mesmo.
Quadro – 13 Livro de Matrícula dos Expostos da Câmara Municipal de Ouro Preto Nome dos Expostos
Nomes dos Criadores e suas moradas
Data da Matrícula
Batismo Preço Mensal da Criação
Pagamento Revista Observações
João Josefa Maria e moradora na rua de Sal
Em 30 de agosto de 1832
Em 2 de setembro de 1833 na Matriz do Sal
A 3 ano para o mês, vencidos até o fim de
Em 1833 de janeiro de 28 diário nº 9 a quantia de 10,200
Apresentada em 20 de dezembro de 1832
Com boa nutrição
337Relatório do Presidente da Província de Minas Gerais, (ano de 1854) apresentado pelo presidente Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/458/000009.html (acesso: 01 de julho de 2011). 338Relatório do Presidente da Província de Minas Gerais, (ano de 1854) apresentado pelo presidente Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos. . http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/458/000009.html (acesso: 01 de julho de 2011).
161
dezembro de 1832 10,200
Maria Joana Maria e moradora do Sal
Em 21 de Julho de 1832
Em 30 de Julho na Matriz de Sal
A 21 do mês vencido de fim de dezembro de 1832 6,300
EM 1833 janeiro diário nº 10 a quantia de 5,300
Apresentada em 21 de dezembro de 1832
Com pouca nutrição e doente. O médico prescreveu a Anna dieta
Fonte: APM, CMOP 3/4 caixa 08 folha 17
Entretanto, a cidade de Ouro Preto, também presenciou projetos filantrópicos.
No ano de 1837, o presidente da província Antônio da Costa Pinto, em seu relatório
presidencial, declarava que os lavradores da província de Minas não possuíam
conhecimento de como utilizar a terra para o plantio. Segundo as autoridades, eles
queimavam uma grande porção de terras sem necessidade:
Muito se tem clamado, posto que em vão, contra a destruidora rotina de nossos lavradores; elles entendem que não podem colher com vantagem os productos da Agricultura, sem que se tenha derrubado, e queimada uma grande porção de madeiras; em sua opinião as melhores terras dentro de pouco tempo se tornão irremediavelmente cançadas, abusando assim de um principio, alias verdadeiro, mas tomado em uma generalidade sem limites. O lavrador intelligente, e abastado costuma ter em reserva uma parte de suas terras; mas sabe prepara-la d’ antemão para ser vantajosamente cultivada em occasião opportuna; o nosso lavrador porem tudo espera só do tempo. Dest’arte tem-se visto desapparecer pouco a pouco maguifieas florestas, e o solo cobrindo-se de arbusto inúteis, e damnosos, vai perdendo sua primitiva fertilidade. Um dia virá talvez ainda, em que se há de experimentar a falta de madeiras para a contrucção dos Edificios, de maquinas, das estradas, e pontes, e das embarcações para a navegação de inumeráveis rios, que retalhão esta tão vasta, como importante Provincia. E certo que, entre muitos outros deveres, com que forão sobrecarregadas as Camaras Municipaes, incumbe-lhes também o de promover a Agricultura; mas ou seja pela deficiência de meios, ou pela morosidade, e carência de systema em seus trabalhos, ou seja finalmente pela amiudadas renovações dos Membros, que as compõe, não é menos certo que ellas pouco tem feito para corresponder á publica espectação. Accresce, que os Vereadores, ou são esses mesmos lavradores emperrados na rotina, que acharão em uso, em negociantes, que desconhecendo os verdadeiros interesse do Paiz, e conseguintemente os próprios, cuidosos exclusivamente do seu comercio não tomão á peito os melhoramentos da Agricultura339.
339Relatório do Presidente da Província de Minas Gerais, (ano de 1837) apresentado pelo presidente Antônio da Costa Pinto. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/440/000027.html (acesso: 01 de julho de 2011).
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Assim, para solucionar o problema da qualidade dos trabalhadores da
agricultura, o presidente da província Antônio da Costa Pinto, propôs para Câmara
Municipal fiscalizar esses trabalhadores. Além disso, o presidente presumiu também
que seria muito útil estabelecer uma “Fazenda Normal”, em Ouro Preto, que ensinasse
os meninos órfãos pobres teorias e lições de práticas sobre a indústria agrícola. Tal
projeto se inspirou em uma experiência paulista.
Presumido por tanto, que muito útil seria á Provincia o estabelecimento de uma Fazenda normal, onde á par do ensino da theoria, se dessem lições pratica da industria agrícola, e se empregassem todos os meios conducentes a faze-la prosperar em seus diversos ramos. Sobre este assunto, bastante fora, se me não engano, a adoção da Lei nº 14 de 25 de fevereiro do anno próximo passado, promulgada pela Assembleia Provincial de São Paulo. Os Orfãos pobres, e quaesquer outras pessoas, que por certo espaço de tempo se dessem aos trabalhos da Agricultura na Fazenda normal, sahirião optimos Feitores, que para dirigerem proveitosamente a cultura da Fazendas da Provincia serião por toda a parte procurados340.
Portanto, em 31 de março de 1840, o governo ouropretano autorizou que se
instituísse na cidade um Jardim Botânico, uma escola que ensinasse o trabalho da
agricultura para órfãos pobres (grupo ao qual os expostos pertenciam)341. Entretanto,
infelizmente, pouco sabemos a respeito desse projeto filantrópico. Acreditamos que tal
iniciativa filantrópica, em Ouro Preto, não prosperou como aconteceu nas cidades
litorâneas, principalmente na Bahia e no Rio de Janeiro, onde existiram vários tipos de
instituições com intuito de incentivarem os meninos e as meninas a aprenderem algum
oficio.
Portanto, para tentarmos responder sobre o destino dos expostos ouropretanos,
maiores de sete anos de idade, utilizamos os registros das Listas Nominativas de
340Relatório do Presidente da Província de Minas Gerais, (ano de 1837) apresentado pelo presidente Antônio da Costa Pinto. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/440/000027.html (acesso: 01 de julho de 2011). 341SIA-APM, Coleção de Leis Mineiras (1835-1889) Assembléia Legislativa Provincial t. 6, part. 1 p. 42-44.
163
1831342, disponíveis e organizadas pelo CEDEPLAR, sob orientação de Clotilde
Andrade Paiva.
Por meio dessa documentação, encontramos 12 expostos para o ano de 1831,
representados no quadro 14.
Quadro – 14 Condição dos Expostos maiores de 7 anos Nome do exposto Ocupação Idade
João Carlos de Figueiredo Murta
Estudante 07
Candido José de Figueiredo Murta
Estudante 08
Rodrigo José de Figueiredo Murta
Estudante 10
José Luis Estudante 11 Manoel Lavrador 17 José Joaquim Pereira Feitor 20 Genoveva Costureira 55 Fonte: Arquivo Público Mineiro (APM). Listas nominativas, Ouro Preto – 1831. Organizadas em Banco de Dados pelo CEDEPLAR/UFMG
Esse pequeno número de expostos, descrito nesse arrolamento, nos levou a
pensar em três hipóteses: 1º hipótese, poderia estar relacionada com a diminuição dos
expostos, que começou na década de 1810. Tendo que o abandono de crianças, a partir
da década de 1770, ficava em torno de 90 a 100, na década de 1820, esse registrado
ficava em torno de quatro a oito enjeitamentos; 2º hipótese, talvez estaria relacionado
com o falecimento precoce das crianças; 3º hipótese, seria inclusão desses expostos no
seio familiar; se tornando filhos dos seus criadores, e por isso, não foram descritas na
lista populacional como expostos; 3º hipótese é a incorporação desses expostos em
domicílios como agregados. Pois, a partir da década de 1830, os agregados começaram
aumentar nos domicílios, o que coincidiu com a diminuição dos expostos nos auxílios
342As listas nominativas são documentos manuscritos, elaborados por distritos pelos Juízes de paz, que contêm a relação nominal dos habitantes com algumas características pessoais e domiciliares. A maioria delas privilegia informações sobre dados do chefe de domicílio e sua família (nome, sexo, idade, estado conjugal, profissão e número de filhos presença/ausência de escravos e agregados), seus agregados e os escravos possuídos. A análise destas fontes nos possibilita identificar a população, suas características, sexo, condição étnico-social e atividades econômicas.
164
camarario. Eni de Mesquita argumenta que, os agregados constituem uma categoria
bastante heterogênea e sem posição definida no quadro econômico-social. São adultos
ou crianças sem propriedade que apareciam em muitos domicílios como formas de
alternativas de mão-de-obra, principalmente, quando se tratava de famílias não
escravistas343. Constatamos, dessa forma, que de 12 expostos, cinco não possuíam a
idade de sete anos, e nem a ultrapassava. Quatro deles, como demonstra o quadro14,
tinham a mesma ocupação - o de estudante. O interessante desse caso é que três desses
expostos apresentavam sobrenomes iguais, João Carlos de Figueiredo Murta, Candido
José de Figueiredo Murta e Rodrigo José de Figueiredo Murta. Ao analisarmos o fogo
em que eles se integravam, observamos que a chefe desse domicílio era D. Thereza Iria
Fideles, que tinha 45 anos e a sua ocupação era de costureira. Ela, além de ter em sua
moradia os três expostos, também registrou seis agregados e 31 escravos. Dos seis
agregados quatro terminavam com o sobrenome Figueiredo Murta (Alferes Lúcio José
de Figueiredo Murta, Manoel Avelino Neves Murta, Lucinda de Figueiredo Murta,
Thereza Iria de Figueiredo Murta), o que nos leva a supor que D. Thereza Iria Fideles
poderia ter alguma relação familiar com os agregados e os expostos; os adotando,
informalmente quem sabe, como membros de sua família. Já o restante dos “agregados”
– um tinha três anos, e esse foi descrito no rol de habitante como agregado, talvez
poderia ter sido “exposto”, que foi assentado na lista como agregado e a última
agregada mais idosa era Maria de Gonçalves de Jesus, uma fiandeira de 66 anos344.
D. Thereza era costureira e próspera. A maioria de suas escravas ocupava a
função de produção de tecidos (costureiras), ocupação também desempenhada por ela.
As funções das escravas foram descrita dessa forma: três costureiras, duas fiandeiras,
343SAMARA, Eni de Mesquita. A Família e domicílio em sociedades escravistas (São Paulo no século XIX). In: Congresso sobre a História da População na América Latina, 1989, Ouro Preto. Anais... São Paulo: Fundação SEADE, 1990, p. 81 344Arquivo Público Mineiro (APM). Listas nominativas, Ouro Preto – 1831. Organizadas em Banco de Dados pelo CEDEPLAR/UFMG
165
três fiandeiras aprendiz, duas cozinheiras e duas lavadeiras. E as funções dos escravos
foram: um pedreiro, um carvoeiro, um tropeiro, dois capineiros e dez lavradores. Existia
ainda, quatro escravos: Veríssimo, Elizeu, José e Evaristo, com as respectivas idades 6,
6, 4 e 1, os quais foram descritos na lista sem ocupação. Alguns agregados, exceto
Alferes Lucio que ocupava a função de negociante da fazenda e a estudante Thereza
Iria, os outros foram descritos com a ocupação semelhante as dos escravos e semelhante
também com a de D. Thereza: tropeiro, fiandeira e costureira345.
A importância de demonstrarmos essas ocupações é para notar que os expostos
estavam inseridos em um domicílio próspero; assim como receberam o sobrenome da
família. As suas ocupações foram descritas como de estudantes, sendo eles maiores de
sete anos de idade. Esse fato é interessante, se sugerindo que a presença de expostos em
domicílios prósperos não significava mão de obra complementar para residência.
Entretanto, acreditamos também que, findando o período estudantil, essas crianças
aprenderiam algum oficio do domicílio, porém elas continuariam tendo uma posição
privilegiada na residência, como aconteceu com alguns agregados.
José Luis foi outro exposto, identificado no quadro 14, com a ocupação de
“estudante”. Ele era de uma família modesta, constituída de três membros; sendo o
chefe do domicílio Antônio da Silva Diniz, professor de 40 anos, D. Maria Silveira,
esposa de Antônio, costureira de 33 anos e Juana, agregada cozinheira, de 60 anos.
Nesse caso, o que nos chamou atenção foi que a família do exposto José, mesmo
composta de poucos membros, permitiu ao pequeno de 11 anos uma ocupação de
estudante, claro que tal ocupação poderia mudar com o passar dos anos, mas o menino
poderia ser considerado um privilegiado, porque algumas famílias geralmente pequenas,
345Arquivo Público Mineiro (APM). Listas nominativas, Ouro Preto – 1831...
166
principalmente aquelas que não possuíam escravos apropriavam-se dos expostos para
torná-los mão-de-obra barata346.
O exposto Manoel, lavrador, morava numa residência que era composta: pelo
chefe de domicílio, Manoel da Silva, lavrador agrícola, de 69 anos, por quatro escravos
sem ocupações declaradas, sendo as suas idades de 24, 48, 55 e 55, idade ainda em
produtividade; e ainda por 10 agregados com as idades de 2, 3, 5, 8, 14, 17, 21, 29, 29 e
35, sendo que desses, seis ocupavam a função de lavradores e os outros quatro não
tinham ocupação declarada. O caso do exposto Manoel era uma ocorrência bem típica
do que acontecia com os outros expostos maiores de sete anos de idade. Primeiro:
provavelmente esse exposto não era estudante, porque, dos quatro agregados com
idades mínimas 2, 3, 5 e 8 anos (Francisca, Humbelina, Querina e Anna) nenhum deles
era estudante. Além disso, provavelmente esses mesmos meninos foram crianças
enjeitadas que foram descrita na lista de habitantes como “agregadas”; segundo:
geralmente o exposto exercia a mesma profissão de seu criador, o exposto Manoel
exerceu a mesma profissão do seu criador, que era de lavrador, terceiro, sabemos que o
emprego do trabalho infantil era intenso, como esse domicílio possuía poucos escravos
e muitos agregados, a presença dos agregados juntamente com a do exposto Manoel,
representou para o chefe desse fogo uma forma de aumentar a produção, sem a
necessidade da incorporação de mão-de-obra escrava, que custava caro347.
Observamos, no caso do exposto José Joaquim Pereira, que o seu
relacionamento com o seu criador era de “filho”. O criador de José Joaquim tinha dado
a ele e, ao seu único agregado, o seu mesmo nome e sobrenome – Capitão José Joaquim
Pereira. Ambos também ocupavam a mesma profissão, de feitor. Assim, além de seu
criador ser capitão, ele tinha 60 anos de idade, era casado com D. Ana Rosa, que tinha
346Arquivo Público Mineiro (APM). Listas nominativas, Ouro Preto – 1831... 347Arquivo Público Mineiro (APM). Listas nominativas, Ouro Preto – 1831...
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58 anos de idade, possuía 32 escravos e era proprietário de fazenda, estabelecimento
próspero de agropecuária. Por isso, acreditamos que o capitão, por não ter tido filhos e
por ser dono de escravos e de uma propriedade próspera, considerava o exposto e o
agregado como futuro herdeiros de seu grande negócio348.
O domicílio que a exposta Genoveva morava era composto de 42% de agregados
e 51% de escravos. Sua criadora foi D. Maria Úrsula da Silva, que tinha 81 anos de
idade e se encontrava enferma. A ocupação que Genoveva exerceria era de costureira,
profissão que ela aprendeu com a D. Maria349. Como observamos, muitos dos expostos
acompanhavam a profissão dos seus criadores. Desse modo, o futuro reservado para
alguns deles foi a admissão no mundo do trabalho, primeiro como aprendizes, e, mais
tarde, como agregados das famílias que os acolheram.
348Arquivo Público Mineiro (APM). Listas nominativas, Ouro Preto – 1831... 349Arquivo Público Mineiro (APM). Listas nominativas, Ouro Preto – 1831...
168
Considerações Finais
O abandono de crianças é um problema secular no Brasil e muitos são os estudos
que buscam explicar suas origens, causas e conseqüências. No decorrer do tempo, a
sociedade e as autoridades tomaram algumas medidas que objetivavam amparar o
infante desvalido. Entretanto, tais medidas nem sempre foram adotadas de forma
competente e eficaz. Criticamente podemos conceituar alguns dos mecanismos criados
em prol da proteção da criança como intenções políticas para resolver graves problemas
sociais e econômicos como o desconforto causado pelos expostos nas ruas e pela falta
de ocupação dessa população.
A sociedade de Vila Rica, como as demais sociedades das vilas mineiras, fez
dessa região (em relação às outras regiões da Colônia), um mundo diversificado de
experiências. Esse evento ocorreu devido alguns fatores: a descoberta do ouro -
momento tão esperado pela Coroa; o povoamento desenfreado da comarca; a
propagação de irmandades; as tentativas de normalização impostas pela Coroa e pela
Igreja; o aumento de alforriados, mestiços e desocupados; a decadência da atividade
mineradora; a imigração da população em sua maioria homens e a transformação de
Vila Rica, após a independência, na cidade da capital mineira Ouro Preto.
A família mineira, que também fazia parte dessa sociedade peculiar, se
demonstrou cada vez mais preparada para enfrentar as transformações que essa
sociedade lhe impunha. De acordo com Donald Ramos, nas últimas décadas do século
XVIII e inicio do século XIX, o perfil das famílias de Vila Rica muito se assemelhava
com a estrutura familiar do norte de Portugal (Minho e no Douro). O universo que
predominava nessas sociedades era formado por famílias chefiadas por mulheres, baixas
taxas de casamento, idade ao se casar mais tardia que o esperado, baixas proporções de
famílias nucleares sacramentadas pelo matrimônio e altas taxas de ilegitimidade e de
169
expostos.
(...) os emigrantes portugueses que vieram para Minas Gerais eram, em sua maioria, originários do norte de Portugal, onde a estrutura familiar e domiciliar diferia das outras partes do reino. Esses emigrantes trouxeram para Minas Gerais um conjunto particular de valores sociais e culturais que, no ambiente social e cultural mineiro, apesar das diferenças superficiais, era muito semelhante ao que haviam deixado para trás.350
Nesse contexto, de altas taxas de expostos, principalmente no final do século
XVIII fez com que legislação portuguesa tivesse impacto na sociedade ouropretana.
Portanto, neste trabalho procuramos compreender as formas assistenciais por meio da
caridade e da filantropia que viveu as crianças abandonadas de Vila Rica.
350RAMOS, Donald. Do Minho a Minas. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, nº 1, vol. 44, nº1, p. 132-153, jan./jun. 2008, p. 148.
170
Fontes e Referências Bibliográficas
Fontes:
Arquivo Público Mineiro – Casa dos Contos (APM – CC) Caixa e Rolo:
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01 (02), 01(11), 01(27), 02(10), 02(21), 02(25), 03(03), 03(40), 03(42), 03(43), 03(44), 03(51), 03(52), 04(04), 04(07), 04(12), 04(15), 04(27), 04 (28), 05(06), 05(14), 05(15), 05(34), 05(35), 06(02), 06(08), 06(09), 06(14), 06(15), 07(01), 07(05), 07(06), 07 (18), 07(23), 07(24), 07(27), 07(28), 07(29), 07(30), 07 (33), 8(10), 08 (01), 08(15), 08(19).
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Cód. 102, rolo 40, flash 01; Cód. 106, rolo 41, flash 01; Cód. 110, rolo 42, flash 01; Cód 132, rolo 49, flash 01; Cód 154, rolo 51, flash 01; Cód 219, rolo 54-55, flash 01; Cód 228, rolo 55, flash 01; Cód 259, rolo 60-61, flash 01; Cód 324, rolo 66, flash 01e Cód 438, rolo 70, flash 01.
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Arquivo Público Mineiro (APM):
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Banco de dados:
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Arquivo Publico Mineiro (APM) – Períodico Jornal Universal:
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