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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
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A Contribuição do New Journalism em Apocalypse Now1
Gisele Krodel RECH2
Universidade Estadual Paulista, Bauru, SP
Resumo
Apocalypse Now, um dos filmes de guerra mais cultuados da história, apresenta fragmentos
da representação da realidade jornalística dentro de sua narrativa cinematográfica. São
analogias ao livro Despachos do Front, de Michael Herr, compilação de grandes
reportagens publicadas na Esquire durante o fenômeno do New Journalism, que serviu de
apoio ao processo de contextualização da obra-prima de Coppola. Neste artigo, é
apresentada uma destas apropriações, comprovando como a força narrativa emanada do
texto traduz-se – e transforma-se - imageticamente. Para a análise textual, partiu-se dos
conceitos de ekphrasis e fanopeia. Já a leitura fílmica dá-se a partir da proposta de Laurent
Julier e Michel Marie.
Palavras-chave: Apocalypse Now; Cinema; New Journalism; Fanopeia; Ekphrasis
Introdução
A Guerra do Vietnã, considerada a primeira guerra televisionada da história, talvez seja um
dos conflitos bélicos mais retratados em película. No entanto, dentre todos filmes com a
temática, talvez um dos mais emblemáticos – em especial por essa apropriação intensa das
referências contraculturais da época - seja Apocalypse Now, lançado em 1979. O filme
começou a ser esboçado pelo roteirista John Milius no final dos anos 60, mas o projeto só
começou a sair do papel quando o diretor Francis Ford Coppola, à frente da produtora
independente Zoetrope, decidiu investir na ideia original de Milius: falar da Guerra do
Vietnã utilizando como fio condutor da narrativa o aclamado romance Coração das Trevas,
de Joseph Conrad, publicado no início do século XX. A obra é centrada na missão dada ao
aventureiro Charles Marlow pela Companhia de Comércio Belga, que é descobrir o
paradeiro do Senhor Kurtz, um dos mais conceituados administradores dos entrepostos da
companhia. Ao transpor a saga aos leitores, Conrad constrói uma narrativa densa, cujos
nuances vão se acentuando conforme o grupo comandado pelo Capitão segue pelo
caudaloso rio que corta a densidade da mata do Congo, onde se passa a história.
Apocalypse Now tem muito de Coração das Trevas, inegavelmente, apesar de alguns
críticos falarem o contrário. De acordo com Milius (2010), a ideia de fazer um filme sobre o
1 Trabalho apresentado no GP Cinema, XV Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Doutoranda em Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp-Bauru) – giselerech@faac.unesp.br
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Vietnã começou a surgir nas rodas de conversa entre os então estudantes da Universidade
do Sul da Califórnia (USC), que incluíam, além de Milius, o diretor George Lucas. No
entanto, o insight de se valer de Coração das Trevas como base da narrativa
cinematográfica veio por meio de um professor de roteiro, Owen Black, nos bancos da
universidade. Ele comentou sobre o eterno desejo dos cineastas em adaptar o clássico de
Conrad - que Milius leu aos 17 anos – que até aquele momento não havia sido bem-
sucedido. Nem mesmo o cultuado Orson Welles conseguira fazê-lo. As palavras tiveram
um efeito misto de inspiração e provocação, influenciadas pelo espírito que Milius (2010)
define como "da selva como força dela mesma".
A despeito de toda a semelhança no que concerne à linha condutora da narrativa, o filme
dirigido por Coppola tem ainda outras apropriações, especialmente no processo de
contextualização da história para a época da disputa no Vietnã. O roteirista John Milius
(2010) não esconde a influência que teve das grandes reportagens escritas pelo
correspondente da revista Esquire, Michael Herr. Sobre o assunto, ele confirmou em
entrevista ao diretor Francis Ford Coppola em 2010. “Eu acredito que quando eu li algumas
das reportagens de Michael Herr eu realmente pude começar a colocar algo no papel e
pensar sobre isso".
Correspondente no front pela revista Esquire entre 1967 e 1969, Herr compilou no livro
Despachos do Front (Dispatches) as principais grandes reportagens escritas no período em
que esteve no Vietnã. A obra acabou se tornando uma das referências do New Journalism,
fenômeno encabeçado por nomes como Tom Wolfe, Gay Talese e Truman Capote. Com a
sua narrativa visceral dos horrores da guerra, o jornalista valeu-se de acurado trabalho
descritivo ao transpor ao papel os cenários, as referências e a essência do conflito
testemunhado por ele no período em que esteve no front.
A qualidade do texto neste processo foi decisiva para influenciar o trabalho de Milius e
acabou rendendo, posteriormente, o convite do diretor Francis Ford Coppola para que Herr
contribuísse com o texto na narração do filme, conforme atesta a tradutora de Dispatches
para o português. Segundo Bahiana (2005),
Um dos primeiros fãs deste livro foi Francis Ford Coppola, que imediatamente
contactou Herr para contribuir com ele no que viria a ser outra obra-prima,
Apocalypse Now. Embora Herr tenha sido creditado apenas no final, como autor
das falas em off do personagem de Martin Sheen, não é exagero dizer que a
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estética inteira de Apocalypse Now vem em linha direta de Despachos do Front,
é a sua mais perfeita tradução em movimento. (BAHIANA, 2005 p.10)
Apesar de outras influências no trabalho de Milius, uma imersão acurada na obra de Coppola pode
revelar nuances e analogias da obra de Herr a todo momento, Para o presente artigo, escolheu-se
uma sequência que verte toda a inspiração da obra do jornalista – menos literal do que abertura do
filme ou ainda a emblemática sequência ao som de A cavalgada das Valquírias – mas ainda assim,
cheia de inspiração no texto vívido de Herr. No percurso deste texto, são abordadas questões ligadas
às narrativas jornalístico-literárias – mais especificamente o New Journalism - e cinematográfica,
além de conceitos análiticos de ekphrasis e fanopeia, para o texto, e análise fílmica.
New journalism, fanopeia e ekphrasis
Quando se fala do New Journalism um dos nomes internacionais que surgem, quase
sempre, é o do norte-americano Tom Wolfe. O trabalho que o transformaria em uma das
figuras-chave do movimento que trazia às reportagens um ar literário começou em 1962,
com a publicação de reportagens especiais no New York Herald Tribune. Depois, vieram os
livros-reportagem, como The Kandy-KolorideTangerien – Flake Streamline Baby,
publicado inicialmente como uma série de reportagens na Esquire. O trabalho consistia,
como o próprio Wolfe (2005) explicou, a “mergulhar fundo na aventura de retirar a
narrativa jornalística do limbo e transformá-la, através de técnicas ficcionais e intensíssimos
esforços de reportagem, em objeto literário e documental e primeira grandeza”. O New
Journalism seria uma resposta aos leitores, que de acordo com Wolfe (2005), choravam de
tédio sem entender por quê.
A despeito de não ser considerado oficialmente o fundador do estilo, foi Wolfe (2005)
quem escreveu o manifesto do New Journalism, onde “admite que o movimento se
organizou movido muito mais pelo instinto do que em torno de uma teoria”. Apesar do
posicionamento enfático, ele registrou quatro recursos básicos que, de uma maneira ou
outra, podemos identificar como recorrentes nas obras dos autores vinculados ao
movimento. O primeiro era a construção cena a cena, o que tornava de suma importância a
se colocar no local onde se desenrolava a narrativa – no caso de Michael Herr, no front de
batalha. Em suma, o autor se valia de verdadeira testemunha dos fatos. Uma vez no local
das cenas, o autor também fazia o registro dos diálogos completos. O ato de dar voz ao
outro – ou a outros personagens – resultava no terceiro recurso, que era apresentar cenas
pelos pontos de vistas de diferentes personagens. Por fim, o autor precisava registrar
hábitos, roupas, gestos, maneiras de viajar, comer, modo de se comportar com superiores,
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inferiores e outras características simbólicas dos personagens, em verdadeira
contextualização do texto jornalístico-literário para o ambiente que estava sendo retratado.
Para Wolfe (2005, p.55), “o registro desses detalhes não é mero bordado em prosa. Ele se
coloca junto ao centro do poder do realismo”.
Toda esta verve descritiva é recorrente nas obras vinculadas ao fenômeno do New
Journalism. E Michael Herr e seu Despachos do Front se enquadram com folga no estilo.
Constituído pela compilação de algumas das grandes reportagens escritas valendo-se da
narrativa literária e produzidas entre 1967 e 1979, quando foi enviado como correspondente
de guerra pela revista Esquire, o livro-reportagem traz ainda, como complementação, as
reflexões de oito anos distantes da vivência. Segundo Bahiana,
Herr não se furta em deliberadamente construir um artefato estético sobre ela.
Não há outra saída, ele diz sem dizer, a matéria-prima é selvagem demais,
imponderável demais, indizível demais para ser transmitida com qualquer
afetação de imediatismo ou objetividade. (BAHIANA, 2005, p.10)
No labor de transformar o que testemunhava em plavras, Herr faz escolhas. É como se
colocasse uma moldura na realidade, em uma transferência de códigos. É neste processo de
recorte e escolha das palavras, de modo cuidadoso, que o texto vívido se constrói. Segundo
Pound,
o bom escritor escolhe as palavras pelo seu “significado”. Mas o significado não
é algo tão definido e predeterminado como o movimento do cavalo ou do peão
num tabuleiro de xadrez. Ele surge com raízes, com associações, e depende de
como e quando a palavra é comumente usada ou de quando ela tenha sido usada
brilhante ou memoravelmente. (POUND, 2007, p. 40)
É nesse jogo de escolhas e aplicações dos lexemas, pois, que em tese resulta no que o autor
chama de grande literatura, que para Pound (2007, p.24) “é simplesmente a linguagem
carregada de significado até o máximo grau possível”.
Dentro deste processo de significação ao grau maior, o autor acredita ser possível
identificar o que ele chama de modalidades de poesia – ou literatura – que seriam espécie
de ferramentas utilizadas pelos grandes escritores para alcançar a obra máxima. São elas a
fanopeia, a melopeia e a logopeia. Segundo Pound (2007, p.41), a primeira – que mais
interessa nesta análise - está diretamente ligada ao uso de “uma palavra para lançar uma
imagem visual na imaginação do leitor”. Ou seja: esmero na escolha das palavras e na
concatenação entre elas tornam-se capazes de projetar visualmente uma imagem pretendida
pelo escritor, em cuidadoso processo descritivo, caracterizando a tradução do poder visual
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da imagem. Pode-se, com relativa facilidade, aplicar essa teoria ao trabalho realizado por
Michael Herr em Despachos do Front. Em cada uma das grandes reportagens transpostas
na compilação, é possível perceber o recorte do autor e os elementos visuais que o
sensibilizaram.
Quando Herr exerce a verve testemunhal em seu trabalho, valendo-se dos cuidados ao
transpor para as páginas o detalhamento descritivo do ambiente de combate, evoca em seus
leitores automática visualização dos horrores da guerra – sejam eles explícitos, sejam eles
relacionados aos embates psicológicos que se estabelecem entre a linha tênue que separa a
depressão e a insanidade.
É nesse cuidado descritivo que se insere outro conceito ligado à retórica: a ekphrasis. Do
grego phrasô, fazer entender, e ek, até o fim, a ekphrasis, segundo Hansen (2006, p.1) era
usada nos progymnasmata, “exercícios preparatórios de oratória escrito por retores gregos
entre os séculos I e IV d. C.”. Os mesmos eram influenciados, dentre outros, pelos aspectos
epidíticos da ekphrasis, ou seja, aspectos explicativos, demonstrativos, com nuances de
ostentação. Devido a esta íntima relação entre a ekphrasis e a descrição acurada de algo, ela
foi aplicada por poetas que tinham nas obras de arte sua inspiração para exercer a arte da
descrição. De acordo com Hansen (2006, p. 2), neste caso “o narrador, pois, se colocaria
como intérprete da interpretação que o pintor fez da sua matéria”.
Para Hansen, no entanto, hoje o termo passou a ser aplicado nas mais diversas áreas,
incluindo outros tipos de arte ou ainda áreas de estudos.
Hoje, em tempos de desistoricização, o termo ekphrasis é usado para significar
qualquer efeito visual. Da biologia à música, passando pela arqueologia, pela
física, pela história literária, pela informática e por estudos culturais de gênero, o
termo é usado fora dos seus usos retóricos antigos, significando “efeito
sensorial”, “visualização”, “iconização”, “espetacularização”, “realidade
virtual”. (HANSEN, 2006, p.87)
Dentro desta lógica, é plenamente possível fazer uma analogia na qual o diretor Francis
Coppola faz as vezes do narrador, que se coloca como interpretador da interpretação que
Michael Herr fez, por meio do jornalismo literário, da matéria da guerra. Em suma, o
trabalho essencialmente descritivo – ou ekphrástico - do jornalista evocou imagens visuais
(leia-se fanopeia) que foram traduzidas em imagens pelo diretor. Ao fim e ao cabo, Milius e
Coppola também acabam se apoiando no exercício da ekphrasis, quando partindo das
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palavras carregadas de significação contidas nas grandes reportagens de Herr descrevem
visualmente o cenário de guerra, valendo-se da linguagem cinematográfica.
W.J.T. Mitchell (1994, p.152) afirma que a literatura pode refletir, dependendo do seu grau
de qualidade, o que ele denomina de esperança ekphrástica, que permite ao leitor, por meio
da construção imaginário ou metafórica, descobrir um sentido no qual a linguagem pode
fazer o que muitos escritores desejam: fazer o leitor ver, mesmo que não esteja no espaço
físico ou temporal da ação descrita. Ora, não estaria esta visão ekphrástica e evocativa
contida na reprodução imagética em Apocalypse Now? E mais: não seria essa sensação
vívida traduzida de modo ekphrástico por Coppola em seu filme?
Ao partir-se deste princípio, é possível perceber o uso da ekphrasis no processo de
apropriação do texto de Herr em vários momentos, como método de projeção visual, mas
que foge do sentido puramente literal e atinge um processo conotativo, já alcançado pela
evocação promovida pela fanopeia contida na obra de Herr. É nesse jogo que pode ser
percebido os fragmentos da não ficção – ou ainda representação do real – em Apocalypse
Now, cabendo na leitura imagens cinematográficas muito mais conotativas do que
denotativas, o que torna o filme ainda mais carregado de significação.
Análise fílmica
Quanto ao exercício de leitura do filmes – que seria todos este processo da busca do sentido
por trás do sentido, Jullier e Marie (2009, p.20) sugerem três tipos essenciais de análise: “no
nível do plano (parte do filme situada entre dois pontos de corte), no nível da sequência
(combinação de planos que compõe uma unidade) ou no nível do filme inteiro (combinação
de sequências)”. Ainda segundo Jullier e Marie,
A leitura de um simples plano conduz quase certamente a entrar nos detalhes e
na regulação dos parâmetros técnicos e a flertar com a leitura genética. Um
passo para trás permite vislumbrar uma sequência – encadenamento de planos, o
choque das imagens justapostas. O novo significado que nasce a consecução de
duas figuras consiste, assim, no que é essencial ao trabalho de leitura. (...) Um
passo a mais e, pela articulação das sequências entre elas a obra se constituí,
acabada, quase autônoma – na verdade, ela já não o é mais, pois sua leitura
mobiliza muitos códigos e múltiplos conhecimentos previamente requerido,
todos objetos exteriores a ela. Nesse estágio, é possível apreciar a forma como a
história foi contada e, literalmente, “falar do filme”. (JULLIER; MARIE, 2009,
p.21)
No presente trabalho, a ideia é ater-se aos planos de uma das sequências do filme que
possuem analogias flagrantes ou indiretas ao trabalho de Michael Herr em Despachos do
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Front, e como se dá construção análoga e conotativa por meio da narrativa cinematográfica.
Neste ponto, é importante recordar o que Metz nos ensina sobre analogia dentro do contexto
cinematográfico, que parte do conhecimento de que
muitas das coisas que o analista do filme pressupõe “já conhecidas” e que
representam por isso uma espécie de ponto inicial absoluto, após o qual começa
a aventura cinematográfica, são por sua vez produtos complexos e finais de
outras aventuras culturais e de diversas organizações cujo alcance, mais geral,
extravasa de muito o cinema, sem por isso excluí-lo. (METZ, 1972, p. 132)
Sequência de Kilgore e as cartas da morte
O personagem de Robert Duvall em Apocalypse Now pode não ser o protagonista da
história, mas nas sequências nas quais aparece, rouba a cena com passagens célebres como
aquela em que diz ao Capitão Willard e a seus homens. “Sente esse cheiro? Napalm, filho.
Nada mais no mundo cheira assim. Adoro o cheiro de napalm pela manhã. Uma vez
bombardeamos uma colina por 12 horas. Quando acabou eu fui até lá. Não encontramos um
deles. Nem um corpo de vietcongue. Mas o cheiro...aquele cheiro de gasolina, na colina
inteira, cheirava a...vitória”. O discurso traz muito da loucura da guerra e a caracterização
do personagem como oficial da cavalaria personifica a profusão de oficiais descrita por
Herr (2005) em Despachos do Front, quando ele diz que em “todo lugar que você ia você
via a mais marcante insígnia de todo o Vietnã, o distintivo no ombro preto e amarelo da
cavalaria”.
Figura 7 – Coronel Kilgore com seu distintivo preto e amarelo no ombro.
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Fonte: Apocalypse Now (1979)
É justamente ele quem protagoniza a sequência na próxima análise, que ocorre logo após
um ataque a uma comunidade norte-vietnamita. O Coronel Kilgore solicita a um
subordinado o “baralho da morte”. Enquanto o rapaz vai buscá-lo, o oficial da cavalaria é
interpelado por Capitão Willard questionando sobre o apoio à missão na abertura de
caminho para que ele e seus homens acessem o Rio Nung.
Figura 8 – Kilgore distribui as cartas da morte.
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Fonte: Apocalypse Now (1979)
Depois do breve diálogo, Kilgore recebe um pacote fechado de cartas de baralho, cujos
versos têm o símbolo da cavalaria junto à escritura death from above, um tipo de ataque
aéreo que causa grande destruição. Ele começa a distribuir as cartas sobre os corpos
estirados ao chão, destacando que nenhum merecia o ás – a maior carta do baralho.
A câmera corta para Capitão Willard, que com o cigarro ao canto da boca recolhe um sete
de copas e segue caminhando, enquanto vira a carta e vê o seu dorso. Lance entra no
quadro perguntando o que é aquilo e Willard responde: Cartas da Morte! Para mostrar aos
vietcongues quem é que fez isso. A câmera corta mais uma vez para Kilgore, que agacha
para colocar mais uma carta, desta vez nas mãos de um morto. Ele se levanta e caminha
com as costas para a câmera em direção a outra câmera – a de uma fotógrafa de guerra que
está cobrindo o combate, uma jornalista como o próprio Herr e como outros tantos que
viram as loucuras da guerra de perto.
No livro de Michael Herr, uma passagem muito semelhante nos remete às imagens do
filme. No relato da vida real, o inimigo norte-americano é o verdadeiro protagonista da
história, o algoz que faz troça com a morte e deixa o seu recado ao mesmo tempo cruel,
irônico e, por que não dizer, bem-humorado.
Eles não viviam dizendo que era preciso manter o senso de humor, então está
certo, até os vietcongues o tinham. Uma vez, depois de uma emboscada que
matou muitos americanos, eles cobriram o campo com cópias de uma fotografia
que mostrava mais um jovem americano morto, com uma piada mimeografada
atrás: “Sua radiografia já voltou do laboratório e acho que sabemos qual é o seu
problema”. (HERR, 2005, P.43)
No texto vívido de Herr, podemos notar a força da fanopeia na invocação de ideias das
palavras e a vivacidade descritiva conclamada na ekphrasis. O senso do humor citado por
Herr está na figura de Coronel Kilgore. A emboscada que matou muitos americanos – que
nos faz projetar imageticamente dezenas de corpos atirados ao chão.
Depois do breve diálogo, Kilgore recebe um pacote fechado de cartas de baralho, cujos
versos têm o símbolo da cavalaria junto à escritura death from above, um tipo de ataque
aéreo que causa grande destruição. Ele começa a distribuir as cartas sobre os corpos
estirados ao chão, destacando que nenhum merecia o às – a maior carta do baralho.
A câmera corta para Capitão Willard, que com o cigarro ao canto da boca recolhe um sete
de copas e segue caminhando, enquanto vira a carta e vê o seu dorso. Lance entra no
quadro perguntando o que é aquilo e Willard responde: Cartas da Morte! Para mostrar aos
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vietcongues quem é que fez isso. A câmera corta mais uma vez para Kilgore, que agacha
para colocar mais uma carta, desta vez nas mãos de um morto. Ele se levanta e caminha
com as costas para a câmera em direção a outra câmera – a de uma fotógrafa de guerra que
está cobrindo o combate, uma jornalista como o próprio Herr e como outros tantos que
viram as loucuras da guerra de perto.
Conclusão
A certa altura de Despachos do Front, Michael Herr intitula-se – e a seus colegas
correspondentes - de Aqueles Caras Malucos Que Cobrem A Guerra. Assim mesmo,
iniciando cada uma das palavras da frase com caixa alta, como forma de enfatizar o que diz.
O jornalista garante, ainda, que em qualquer outra guerra teriam feito filmes sobre eles, para
depois se demover da ideia, lembrando que o Vietnã era “constrangedor” e que se as
pessoas, em geral, não desejavam sequer ouvir falar dele, dificilmente se disporiam a
adentrar em uma sala escura, para passar um tempo sentadas prestando atenção na história
da cobertura.
Com esta crença, Herr (2005, p.190) afirma que “por isso, todos nós fomos obrigados a
fazer nossos próprios filmes, um filme para cada correspondente, e este era o meu”. A
referência, naturalmente, é ao texto de Despachos do Front. Talvez esta menção do
jornalista deixa transparecer a justificativa de um texto de tantas projeções imagéticas,
mesmo que se valha da linguagem escrita. Herr escreveu um livro, mas com os recursos
estilísticos utilizados, talvez o tenha feito para ser lido – como um filme. O que não é
estranho, levando-se em conta os efeitos visuais provocados pela turma do New Journalism
– vale aqui ressaltar o que Boynton (2013)3 diz sobre as possíveis adaptações de livros
vinculados ao fenômeno jornalístico-literário ao cinema, já que segundo o pesquisador,
muitos dos trabalhos de New Journalism já são tão cinemáticos por natureza e possuem
elementos fílmicos. “Acredito que muitas vezes fazer um filme não venha ao caso, porque a
parte que concerne à literatura é tão poderosa, já tem o sentimento do filme”.
É possível que esta vocação cinematográfica intrínseca no texto do New Journalism – e
presente em Despachos do Front – tenha sido o elemento fundamental para inspirar o
roteirista John Milius a iniciar a sua adaptação de Coração das Trevas para o contexto da
3 Diretor do departamento de Literacy Journalism, da New York University, que concedeu entrevista à
pesquisadora em março de 2013.
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Guerra do Vietnã. O que vale, aqui, é perceber que, mesmo que por vias inesperadas, de
certo modo, o desejo de Herr em ver suas experiências do front serem transportadas à tela,
se cumpre – mesmo que apresentado em fragmentos análogos dentro de uma história de
ficção, como pode-se perceber na sequência ora analisada.
É assim que se pode compreender a construção imagética de Apocalypse Now, aqui
exemplificada com a sequência do Coronel Kilgore e as cartas da morte, apoiando-se no
conceito de fanopeia e ekphrasis no processo de transcodificação de linguagens e
significados. Quando foi publicado, Despachos no Front foi aclamado pela crítica. No
Publishers Weekly, os textos de Herr foram encarados como verdadeira reprodução da
guerra. “Um livro fascinante, verdadeiro, de impacto visceral, cujas imagens colam à mente
como estilhaços de uma granada”, afirmou o autor da resenha, omitido na contracapa da
tradução para o português do livro. As palavras, no entanto, não nos deixam escapar o
conceito de fanopeia de Ezra Pound, que preconiza o efeito visual de um texto escrito com
maestria e da ekphrasis, pautada pela descrição acurada, que dá às palavras o poder de
unidas, promoverem verdadeira reconstrução da cena a cena, fortalecendo o sentido do eu
testemunhal.
Possivelmente, foi esse vigor no exercício da fanopeia e da ekphrasis que fez com que a
obra de Herr despertasse sensações de puro estro, primeiramente no roteirista John Milius e,
depois, no diretor Francis Ford Coppola, que confiou ao jornalista de guerra a pena para a
escritura do texto em off do protagonista do filme – fundamental para solucionar o
problema da montagem do filme, que levou quase dois anos. Nem sempre óbvias ou literais
– a bem da verdade, muito mais vezes de modo conotativo -, os nuances de fanopeia e
ekphrasis estão imbricados nos detalhes da contextualização do romance de Conrad para a
Guerra do Vietnã.
É como se o filme conduzisse o espectador para um jogo de significações e conotações
propostas, inicialmente, em um texto jornalístico-literário, propondo uma viagem ao
imagética à Guerra do Vietnã, onde a ficção é, por vezes, interrompida por referências não
ficcionais. Vale destacar que estas referências, nunca é excessivo reforçar, fazem parte do
recorte do real vivenciado por Michael Herr no Vietnã, o que no corpo da pesquisa foi
tratado como a representação jornalística do real.
A despeito de tratar-se de duas narrativas diversas, uma pautada pelo código linguístico – a outra em
uma linguagem imagética muito particular, as duas obras - Despachos do Front e Apocalypse Now -
conversam entre si o tempo todo, em um jogo de significado e significaçõs que perspassam a
representação do real mediante apropriações da não ficção, por meio de analogias e criação de
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conotação. Ao fim, seja no referencial da não ficção contada por Herr ou nas palavras ficcionais
pronunciadas pelo Coronel Kurtz no momento de sua morte, o que tempos nas duas obras é a
tradução perfeita da guerra: O horror! O horror!
Referências bibliográficas
APOCALYPSE now. Direção e produção Francis Ford Coppola. Roteiro: Francis Ford Coppola e
John Milius. Narração: Michal Herr. Manaus: Studio Canal, 2012. 1 DVD (153 min), son., color.
BAHIANA, Ana Maria. In: HERR, Michael. Despachos do front. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2005. P. 10
BOYNTON, Robert. Entrevista realizada por Gisele Krodel Rech na New York
University. Nova Iorque: 2013.
HANSEN, João Adolfo. Categorias epidíticas da ekphrasis. São Paulo, 2006: Revista
USP, n.71, p.85-105.
HERR, Michael. Despachos do front. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
JULLIER, Laurent e MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Senac
São Paulo, 2009.
METZ, Christian. Significação no Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.
MILIUS, John. Entrevista a Francis Ford Coppola. Disponível em: Cinematographos -
https://www.youtube.com/watch?v=JZswrVALi2M. Acessado em: março de 2012
MITCHELL, W. J. T. Picture Theory. Chicago: The University of Chicago Press, 1994.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2003. 10.ed.
WOLFE, Tom. Radical Chique e o novo jornalismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
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