12 meses no funchal
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TRANSCRIPT
12 MESES NO FUNCHAL
António Fournier [Organização]
Colecção “Funchal 500 Anos” [n.o 16]
COORDENAÇÃO GERAL
Francisco Faria Paulino
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Susana Sousa e Silva
CAPA
Le Départ, Martha Telles, óleo s/ tela, 1983
Museu de Arte Contemporânea do Funchal
DESIGN GRÁFICO
José Brandão | Susana Brito | Elisabete Rolo
[B2 Design]
IMPRESSÃO
Rainho & Neves, Lda.
ISBN
978 - 989 - 8182 - 01 - 2
DEPÓSITO LEGAL
276 179 / 08
TIRAGEM
1000 exemplares
EDIÇÃO
Empresa Municipal “Funchal 500 Anos”
Rua de Santa Maria, 170
9060-291 Funchal
www.funchal500anos.com
PREFÁCIO
Um Funchal eternoAntónio Fournier
JANEIRO
No Tempo de JaneiroAna Margarida Falcão
FEVEREIRO
Fevereiro, 1938Irene Lucília Andrade
MARÇO
Funchal, em MarçoFrancisco Fernandes
ABRIL
ParábolaMargarida Gonçalves Marques
MAIO
MaioLaura Moniz
JUNHO
JuneMaria Rosa Basílio
Índice
007
017
027
029
032
036
042
JULHO
Ruas de JulhoVítor Sousa
AGOSTO
Agosto Nelson Veríssimo
SETEMBRO
Violante, olhos de marHelena Marques
OUTUBRO
Aguarela de um outubro melancólicoMaria Aurora Homem
NOVEMBRO
No Funchal, o maquinistaAntónio Fournier
DEZEMBRO
Em Dezembro quando as gaivotas enlouquecemJoão Carlos Abreu
SOBRE OS AUTORES
046
050
054
060
062
071
075
Prefácio007
Prefácio
Um Funchal eterno
Uma ilha à distância é como um cirro de cinza
ou um veleiro, uma vaga sombra no horizonte.
Vista de dentro é do tamanho do mundo.
Sant’Ana Dionísio, Atlânticas
Leva sempre Ítaca no teu coração, mas não apresses o regresso, encontrei uma vez
esta máxima num livro de Claudio Magris. E há também uma anedota de
Umberto Eco que li em tempos, em que às vezes penso: um emigrante, depois
de longos anos de ausência, um dia decide regressar à sua cidade natal. No com-
boio, já perto da estação de onde outrora partira, põe-se a imaginar quanta
gente estará à sua espera. À chegada, verifica para sua decepção que não há
nenhum comité de boas-vindas: a estação está vazia! Desiludido, porque queria
abraçar um amigo, transmitir toda a alegria de voltar a casa, sentir o calor dos
irmãos que acolhem o filho pródigo, pousa as malas no chão e olha à volta,
desesperadamente, à procura de algo ou alguém que o faça sentir em casa. Ao fundo
vê um homenzinho a varrer a estação. Aproxima-se e reconhece um antigo
colega de escola. Corre para ele e abraça-o efusivamente. O outro, surpreen-
dido, exclama: “Olá Giovanni, há quanto tempo! Estás de partida?”
Quantas vezes partindo, permanecemos na ilha, e quantas vezes ficando,
nos ausentamos? Quantas vezes vivendo quotidianamente a cidade, abandona-
mos os minutos, deixamos para trás os dias, e só nos lembramos daqueles que
fazem parte da nossa paisagem sentimental, quando damos de repente com
eles nas páginas terminais de um jornal? Quantas vezes partimos ou fazemos de
conta que partimos daquele castelo onde fomos e de onde nunca regressaremos?
A memória desliza sub-repticiamente para trás, à procura de um tempo feliz que
12 Meses no Funchal008
só existe na cabeça do habitante mental dos lugares, aquele que vive, como nenhum
outro, um presente eterno numa primavera perene. Mas isso tem os seus custos,
e ele sabe-o, torna-o numa espécie de guardião de um segredo, de uma dor antiga
que o corrói por dentro, que o faz temer o regresso e ansiar por ele todos os dias.
O tempo, esse, faz a todos nós – os que ficam e os que partem – o que se espera
que ele faça: avança, levando consigo aquilo que amamos. O mundo entretanto
passa por debaixo dos pés vorazes, mentais. Todos os dias o habitante mental das
ilhas se fixa num instante longínquo cristalizado na espessura do tempo.
Como no quadro de Martha Telles. A cor, como se sabe, é uma paisagem
moral. O automóvel aguarda a partida na sua indiferença metálica e descapotá-
vel, e os pais, já fantasmas, preparam-se para accionar esse mecanismo assas-
sino. As árvores negras e ancestrais como a figura longilínea do avô, observam
a cena que se desenrola à luz de outro sol. As sombras sábias cavam sulcos
profundos num território solar. O silêncio, que se mede na distância entre os
pais e as crianças, torna a cena ainda mais pungente. A terra vermelha e fofa,
boa de comer como diria Ernesto Leal, assiste a tudo, nutrindo o lugar, unindo
um arquipélago humano já fracturado à partida. Na casa feita da mesma maté-
ria quente e sentimental, a avó fica só. A menina, vestida do mesmo branco
imaculado das irmãs, assiste de longe àquela parte dela própria que lhe é assep-
ticamente cortada. À direita, o labirinto de círculos vegetais prepara-se para
acolhê-la, na sua tentativa de reelaborar o luto, breve ou definitivo.
A partida é uma das formas de sofrimento humano. Por isso o regresso é
também, inevitavelmente, um doce veneno, um cálice amargo. Regressar a uma
ilha é atravessar o vazio, o frio, o medo, a voragem dos dias, a perda de referên-
cias. A ilha estará lá ainda, ainda existe para lá das nuvens? Há dez anos que
parto e regresso ao Funchal, e se vivi mal durante muito tempo esta espécie de
esquizofrenia de imaginar a minha cidade natal a crescer longe da minha vista,
e este sentimento de culpa de crescer longe dela, hoje já me habituei à situação
de exílio perene e de insularidade portátil que me permite partir com nostalgia
e regressar com saudade. Regressar com frequência para que não aconteça o
mesmo que àquele emigrante. Estar no Funchal como se nunca tivesse partido,
não deixar que o regresso seja tão atroz. Mas a qual Funchal regressar? Um ano,
trezentos e sessenta e seis dias, não há um único dia igual ao outro. Oito mil
setecentos e oitenta e quatro horas. Todas irrepetíveis. Quinhentos e vinte e sete
mil e quarenta minutos. Todos inexoravelmente perdidos. Mais de trinta e um
milhões e meio de segundos, cada um pautado por 150 mil corações que batem
em uníssono. Um lugar que é como quem diz o Funchal, uma cidade em festa.
Prefácio009
Um ano que é como quem diz 2008, um ano de fogo. Era preciso eternizar
literariamente este tempo, deixar uma radiografia onírica desta cidade de orquí-
deas assassinas, poetas malditos e comboios fantasmas.
É difícil dizer exactamente como e quando o Funchal mudou. Pequeno porto
de mar de repente transformado em florescente capital do açúcar por onde anda-
ram Zarco e Colombo e tantos outros famosos e anónimos pioneiros da aventura
marítima europeia que ali deu com eles os primeiros passos, ponto de passagem
de todas as rotas que demandaram o grande oceano em direcção às suas duas
portas austrais ou mais plausivelmente em direcção ao Nada, o Funchal disfruta
hoje da qualidade do seu tempo suspenso, celebrando a sua fama internacional
de bonsai atlântico e o seu eterno destino de periferia primaveril da Europa, pro-
legómeno e epitáfio de todos os impérios inconsúteis. Na atmosfera exuberante
dos seus jardins tropicais conversa-se sobre os pequenas nadas, nas suas ruas
calcetadas cultiva-se as regras da convivência samaritana e a moral da aparência
burguesa, nas suas casas de prazeres e angústias ritualiza-se a ocasião social do
chá implantada pelas velhas famílias inglesas, ao sabor de recordações gulosas
dos tempos da cidade doce. O comportamento british está tão interiorizado que
se o renega e imita todos os dias, separando-nos altivamente uns dos outros,
unindo-nos a todos no nosso cosmopolitismo contaminado de invejazinhas de
província, na nossa forma aprimorada e ressentida de ser português, na nossa
resistência irónica e inócua a todos os destinos coloniais.
Dentro cresce uma espécie de narcisismo cósmico. Surdo e visceral, o cor-
dão enrola-se ainda mais à volta da ilha. A serpente morde a cauda. Nos quin-
tais as crianças sonham. A matéria-prima do lugar torna-se subitamente oní-
rica. Uma memória cristaliza-se. Onde estão as canas de açúcar que se roubava
dos camiões a caminho do engenho, combustível doce para as rodas dentadas
do nosso desejo? Para onde voaram as joeiras de cana, papel-manteiga e bar-
bante, estrelas coloridas nas tardes de vento, umbilicalmente ligadas ao cora-
ção do sonho? Que destino tiveram os carrinhos de verga e cana com que se
procurava desvendar sozinhos o melhor caminho para os nossos labirintos
futuros? Sobreviverão ainda as lagartixas cuja posse mortal e infantil se dispu-
tava com os francelhos medievais que pairavam sobre os maracujás, pitangas e
araçás da nossa paixão? Um véu de ilusão avançará ainda do mar, território do
infinito de onde provinham as projecções oníricas que contaminavam estas
paragens? Em que dura realidade encalhou o Elsinor, o veleiro-fantasma em
que nos anos trinta do século XX se rodava um filme baseado num conto de
Jack London, cujas luzes durante a noite causavam o pânico na cidade sensível?
12 Meses no Funchal010
Para que nova guerra cósmica fugiu o submarino alemão que em 1916 a des-
pertou do seu longo sonho de séculos? Que destino cruel levou o comboiozi-
nho com asas que transportava todos os dias, rigorosamente a horas, os seus
passageiros para lugar nenhum?
O Funchal mudou realmente neste dealbar de um novo milénio? Uma melo-
dia cega e triste continua a ecoar pelas suas ruas populares, dando um toque
cesário àquela parte da cidade; o último vagabundo novecentista continua a per-
correr a pé, perdido no seu autismo, a estrada até Papagaio Verde, passando
completamente à margem da velha Europa que continua a estanciar ociosamente
a oeste da cidade; os velhotes no Lazareto, no outro extremo, continuam a jogar
às cartas debaixo do carvalho, indiferentes ao que resta do último navio abalro-
ado pela ilha na sua longa deambulação pelo tempo, cobrindo-se como eles de
ferrugem; nos becos mesmo no coração da cidade, os territórios sentimentais
continuam a ser guardados por cães que acendem olhares furtivos por detrás de
persianas, mal se dobra a esquina. O vilão continua a apoiar à parede a sua indo-
lência, numa verticalidade inclinada e observadora, mãos cruzadas, olhando de
lado as coisas, comentando a vida da periferia do tempo. O funchalense continua
a passar apressado pelas esplanadas burguesas temendo mais do que o olhar
inocente do estrangeiro, o olhar do seu inimigo íntimo, aquele que conhece tão
bem quanto ele os segredos da nossa alma amorável e cínica, seu irmão, eterno
rival, eterno Caim. E quando o encontra, se os olhos não o puderem evitar, é uma
falsa efusão, como se o não visse há séculos, como se tivesse de facto partido.
De resto, o Funchal continua a ser separado pelas suas três eternas ribeiras,
à volta das quais se concentram três formas diferentes de viver a cidade: a parte
popular a nascente, onde desagua todos os dias a enchente de vida laboriosa
oriunda do hinterland madeirense, que percorre as ruas num misto de espanto
e vergonha perante as novas catedrais brancas do comércio em que futuriza o
seu desejo; o Funchal burguês que vive a cidade no presente absoluto, nos seus
gestos simbólicos, pausados e patriarcais de velhos comerciantes, donos ilusó-
rios do lugar; o Funchal turístico a poente, onde invernam as cabeleiras louras
vindas do frio, em busca dos sinais do lugar onde outrora vivia o tio abastado
de Jane Eyre, e os turistas provenientes da parte mais ocidental da Europa
(tão próxima e tão distante) talvez ainda a tentarem sintonizar a cidade real
com o imaginário que traziam de “uma ilha quentinha, cheia de ananases, com
muitos casinos e um yes a cada esquina” como disse Sant’Ana Dionísio.
Depois, esta multidão colorida, contrastante, diferentemente vestida, os de
fora na sua primavera fora de estação, os da ilha no seu inverno perenemente
Prefácio011
ameno, uns ao ritmo de quem flana, outros ao ritmo de quem corre para lado
nenhum, cruza-se, acotovela-se nas esquinas, encontra-se e desencontra-se nas
mesmas pontes migratórias por onde passou ao longo de séculos, um tout le
monde composto de aventureiros do velho e novo mundo, mercadores italianos
e corsários magrebinos, piratas franceses e oficiais britânicos, jesuítas espa-
nhóis e sultões persas, pintores flamengos e pregadores escoceses, preceptoras
berlinenses e gibraltinas ociosas, aristocratas russos e princesas austríacas,
comerciantes sírios e odaliscas turcas, infantas tísicas e poetas sonhadores,
monarcas exilados do seu sonho witteleuropeu e ditadores latino-americanos
órfãos da sua tirania, mas também toda uma turba indistinta, anónima e apá-
trida, de escravos, vagabundos, vadios, mendigos, emigrantes e emigrados,
visionários, pedintes, degradados, utópicos, condenados, famintos, proscritos
e exilados que desapareceu nas mesmas veias azuis e impuras dos funchalen-
ses. Por isso, as árvores, as flores, as pedras, os homens da cidade profunda são
sábios e inocentes.
O céu de estrelas dançantes sobre o Funchal assistiu a tudo. Pelas mãos terre-
nas dos seus habitantes, sobreviventes de séculos, passaram todos os tráficos,
consumaram-se todos os crimes: sangue de dragão e mãos de sangue, presépios
de Nápoles, retábulos da Flandres, cristais de Veneza, nácares do Mar das Péro-
las, pipas de Madeira para Napoleão e exércitos de alfinim para o Papa, peles de
Mobydick, telegramas e cabos submarinos, postais do Cabo e selos do Panamá,
correio aéreo de zeppelins e estilhaços de bombas de Uboats, lembranças de
Dover, despojos de Varna, aguarelas de Römer, porcelanas das Índias, missangas
africanas, calhas enferrujadas, âncoras órfãs e corpos carbonizados, hidroaviões
de folha e aviões de papel, esquadras transatlânticas e barcos de cabotagem, flo-
res de fogo, magnólias e gatos angorás, berlindes e carrinhos de linha, agulhas e
dedais, dragonas para esquadras de fantasia e pistolas para duelos passionais,
beijos em cartas manchadas, recados com travo a dor, ódio e fome, rebuçados de
funcho, carne azeda e pão duro, moedas de mergulhança, lenços sujos ou filigra-
nados, seda e organdins, cruzes e ex-votos, forcas e amarras, pelourinhos e carros
de cesto, foices e baionetas, bostas de boi e seringas de drogados.
No Funchal todas as paixões são botanicamente moduladas pela cor dos chei-
ros e pelo cheiro das cores, num fulgor policromático que mais do que um seu
topos literário, é um lugar comum tão incontornável quanto o cerco do oceano; no
Funchal todos os vícios são alimentados pela pressão onírica do mar de onde
chegam os grandes cisnes do mundo, e pela pressão melancólica do campo que
se esbate contra as pequenas quintas que o absorvem e dignificam, e os quintais,
12 Meses no Funchal012
mais modestos, onde ele cresce selvaticamente junto com as galinhas e os instin-
tos. Por cima, o céu ilumina-se de uma limpidez conivente com a alegria botâ-
nica, e a colmeia inclinada e solarenga que é o Funchal sorri, acesa por um ines-
perado caleidoscópio de cores; ou então, pelo contrário, as nuvens adensam-se
em nembos pensativos que descem inclementemente sobre a cidade, exerci-
tando uma terceira forma de pressão solidária nas guelras dos seus habitantes,
metabolizando-se no sangue, tornando-os esquivos e sorumbáticos.
Nos cafés literários, todos diferentes, na sua atmosfera cosmopolita e alma pro-
vinciana – o Golden, o Pátio, o Teatro – os visionários sonham, os intelectuais
conspiram, os poetas extinguem-se, por entre uma fauna ridente e ociosa que está
para o Funchal como quem está para uma fotografia dos Vicentes. Por detrás das
fachadas principais, enquanto as televisões e os ecrãs sintonizados mais que nunca
com o mundo, policromatizam a velha e a nova penúria, uma população inteira de
abelhas operosas pulula e lateja, esventrando as casas e as lojas, entrando e saindo,
subindo e descendo, insuflando linfa espiritual na velha capital europeia do açúcar,
cobrindo tudo com algum daquele pó doirado que teima em reluzir até ao fim da vida,
de que fala Raul Brandão. Repetem desde tempos imemoriais os mesmos gestos,
os mesmos passos. Os nossos misteriosos passos quotidianos. Os nossos glorio-
sos gestos anónimos. O pensamento precisa do afecto. Não se pensa literariamente
uma cidade sem afecto. A beleza dos lugares está no seu implícito que ninguém
pode narrar, no imortal que ninguém pode contar, no que foge ao contingente, no
que subjaz para sempre ao literário. Mas é desse poço obscuro e profundo, desse
reino sonâmbulo e flutuante onde pulsa intensamente a alma nobre e plebeia de
uma cidade quinhentista, que é preciso beber continuamente.
Todos os anos, em finais de Maio, o tapete amarelo de tipuanas na Pena volta a
resvalar para o fundo da memória, quando se cruza momentaneamente com a
floração dos jacarandás nas ruas centrais do Funchal e a cidade parece flutuar
numa nuvem de cor. De cada vez que atravesso esse corredor, ao voltar à ilha, entro
num outro Funchal, vejo-o já do outro lado dessa clepsidra de pétalas amarelas que
voltei a inverter ou que o tempo voltou a inverter por mim. E talvez porque o faça
assim tão sazonalmente, me apercebo melhor da lenta e inexorável oscilação da
cidade. Parar e olhar o mar a partir da janela de tipuanas que se abre na Avenida
Arriaga, entre o Golden e a praça da Restauração, sem ser ameaçado por aquele
mecanismo metálico e assassino do quadro de Martha Telles é já um regresso a um
tempo anterior ao meu, uma pequena jóia íntima: parar pela primeira vez no meio
de um Funchal devolvido a sua dimensão humana, sintonizar-me com a minha
cidade, reapropriar-me do sentido da pertença, repetir um gesto imortal.
Prefácio013
De Folgore da San Gimignano são recordados os Sonetti dei Mesi dedicados
a cada um dos meses do ano, e mais recentemente Mário Cláudio estruturou
da mesma maneira o seu contuário As Máscaras de Sábado. Desde sempre a
escrita literária joga com o alfabeto do tempo, porque ambas, vida e literatura,
utilizam os mesmos dados da experiência. Neste calendário lúcido e evocativo,
onze escritores contam o Funchal na fugacidade de uma permanência. Perten-
cem a diferentes gerações, compreendidas entre os 20 e os 70 anos, aquelas
que se cruzam no arco plausível de uma existência humana, testemunhas lite-
rárias de um lugar e de um século que já abandonámos, que já nos abandonou
definitivamente. Há oito anos que somos órfãos de uma parte de nós e essa
fractura simbólica persiste neste livro: se exceptuarmos os meses de julho e
setembro que reescrevem o mito fundador a partir do ponto de vista dos eter-
nos proscritos da História, o feminino e o plebeu, quase todos os outros regres-
sam a esse tempo afectivo. E quando o tempo de janeiro abre o ano com o
Funchal dos anos oitenta, embora seja também o meu, de repente apercebo-me
de que é já tão distante, irremediavelmente distante, pertença de uma substân-
cia cardíaca que já nenhum de nós possui, mas de que somos simultaneamente
guardiões e prisioneiros.
Em sua homenagem, em homenagem ao que de Funchal vive em nós, cons-
truiu-se imaginariamente esta cidade, sempre igual e sempre diferente como
as buganvílias sobre as nossas ribeiras sentimentais de modulação e caudal
variáveis, que renascem todos os anos dando aquela impressão de eternidade
que Ferreira de Castro aqui e só aqui intuiu. Esta é uma cidade literária entre
tantas outras possíveis. Porque há também uma outra cidade íntima, aquela
que os olhos eternizam na penumbra e nenhuma escrita pode registar, porque
os seus habitantes, melhor que ninguém, a reescrevem, vivendo-a na primeira
pessoa todos os dias. Aquilo que se ama verdadeiramente permanece, nunca
nos poderá ser arrancado, escreveu uma vez Blaise Cendrars. E com Rilke
aprendemos que são os lugares a reconhecerem-nos, são eles a trazerem até
nós a memória dos passos que já foram nossos e as pegadas dos outros que
repercorremos e repetimos. São eles a trazerem água límpida à consciência.
Água daquele poço profundo e insondável que é a cidade mental pertença
exclusiva de cada um de nós. Onze escritores beberam dessa fonte da eterna
juventude e viverão literariamente para sempre.
Depois da città dolente e melancólica dos escritores oitocentistas que a
demandavam à procura de um ideal que se chamava saúde (Júlio Dinis, Antó-
nio Nobre), depois do Funchal ridente e pitoresco de jornalistas cosmopolitas
12 Meses no Funchal014
sintonizados com uma época de explosão do turismo (Hugo Rocha, Luís Tei-
xeira, Norberto de Araújo) depois do Funchal integrado em périplos de reco-
nhecimento por um Portugal continental, insular ou colonial (Brito Camacho,
Henrique Galvão, Raul Brandão) ou como ponto de passagem nas rotas de
cabotagem sentimental das ilhas (Vitorino Nemésio), depois do Funchal roma-
nescamente recriado por Teixeira Gomes, Jaime Cortesão, Ferreira de Castro,
Assis Esperança, Marmelo e Silva, Natália Correia e Agustina Bessa-Luís, fal-
tava uma visão de conjunto, a partir de dentro, do Funchal.
Todavia, repito, este Funchal de invenção, esta cidade de fantasia é cons-
ciente de que a cidade real continuará a viver para além de todas as visões lite-
rárias, alimentando-se de todas mas resistindo a reconhecer-se em qualquer
uma delas, englobando-as no seu património simbólico, para as desmentir
logo de seguida, porque o Funchal é não só uma cidade no meio do Oceano, é
também uma cidade no meio do Tempo. Estes doze contos peregrinos no tempo
contam pois a sua acção sobre a memória literária do Lugar. Um ano passado
no Funchal é simultaneamente muito e pouco tempo, mas um sonho é por
natureza itemporal, porque se espraia pelos confins de um território imaginá-
rio tão vasto como o universo ou tão pequeno como a gota de água em que ele
por inteiro se reflecte. Agradeço a todos os onze escritores terem sonhado
comigo este Funchal eterno, e habitado durante um ano a cidade literária que
eles próprios inventaram.
António Fournier
António Fournier (Organização)017
Janeiro
No Tempo de JaneiroAna Margarida Falcão
Contava-se em casa de Ana Lima que o seu antepassado Augusto Teodoro fora
o responsável pelo enriquecimento e ascensão social da família. Vivendo no Norte
da Ilha, o próprio desconheceria as suas origens mais remotas, pois raras eram as
notícias sobre o povoamento do Arquipélago da Madeira, mesmo para quem as
pesquisasse nas antigas crónicas. Ignorava, pois, se descenderia de ambiciosos
nobres em busca de ascensão ou de criminosos que cumpriam as suas penas
mas, no seu íntimo, sempre ouvira a voz de uma crença secreta e inconfessável
que lhe repetia ser ele descendente dos últimos e não dos primeiros.
Em finais do séc. XVIII dedicara-se Augusto Teodoro ao cultivo da vinha e das
cerejeiras pretas, cultivos estes interactivos e pouco ortodoxos pois o suco quase
negro das cerejas dava mais cor ao vinho do Norte, tornando-o equiparável ao do
Sul da Ilha, de modo a poder ser exportado para Tenerife e, depois, para a Ásia.
Contra esta fraude nortenha se uniram, em Janeiro de 1788, dezanove negocian-
tes de vinho da Madeira, na maioria ingleses, o que originou, a 27 de Fevereiro
seguinte, um edital do Governador da Ilha com medidas rigorosas no sentido de
extinguir as cerejeiras pretas e acabar de vez com a falsificação.
Perante tais factos, fizera Augusto Teodoro contas e mais contas, balanços e
mais balanços, até que a indecisão se transformara em clara e inabalável von-
tade: venderia as propriedades do Norte e mudar-se-ia com a família para o
Funchal, onde compraria a nobre casa desde sempre sonhada, na qual viveria
em paz o descanso que lhe restava de vida, tendo como única actividade, como
sempre ambicionara, fazer os possíveis e os inpossíveis por frequentar uma
sociedade que ele sabia sempre ter aberto as portas ao dinheiro.
Assim fora comprado por Augusto Teodoro, no mês de Abril de 1788, o Solar
dos Espinheiros, na Rua da Carreira, no Funchal, e de imediato se procedera a
obras que, apesar de orquestradas pela sua mão pesada e rude, mantiveram a
12 Meses no Funchal018
traça e os pormenores originais por graça da sua divina falta de imaginação e
de saber. Apenas no jardim mandara arrancar o matagal de arbustos e as árvo-
res que podiam viver quinhentos anos, cheios de flores delicadas, frágeis e
brancas, ou de bagas vermelhas e medicinais, talvez porque ignorasse a sua
íntima ligação com o nome do Solar. Segundo os cálculos de Augusto Teodoro
os arranjos deveriam estar prontos em Setembro, pois planeara já passar o
Natal bem instalado na cidade, mas acabaram por sofrer algum atraso devido a
sucessivos contratempos que haviam surgido na adega.
Uma das duas entradas para o Solar, a de serviço, porta mais simples, sem
escadaria nem vitrais como a principal, dava directamente para a adega, e vários
foram os acidentes ali ocorridos, contabilizáveis em frequentes ataques convul-
sivos e maléficos de dois mestres até aí saudáveis, ferimentos graves e quase
inexplicáveis de cinco operários e, ainda, a morte súbita e misteriosa do capataz
que controlava os trabalhadores. Além de tudo isto, acontecera, vezes sem
conta, os operários depararem com arranjos que tinham sido dados na véspera
como prontos e que surgiam desfeitos na manhã seguinte, a tal ponto que
vários trabalhadores tinham recusado trabalhar na adega, dizendo-a amaldiço-
ada ou embruxada. Assim, só no dia 31 de Dezembro de 1788 acabara Augusto
Teodoro a mudança definitiva e pudera ver entrar a esperança de liberdade do
ano de 1789 festejando em família, no imenso salão de baile, nesse dia ainda
sem outros frequentadores.
A 26 de Agosto de 1815, quando Augusto Teodoro sentira aproximar-se o fim
do seu tempo e passara já o governo dos rendimentos a seu filho primogénito,
João Teodoro, assolara a Ilha, de clima habitualmente sempre ameno, um grande
e quase nunca visto aluvião. As margens das ribeiras não estavam preparadas
para tal portento de força da natureza e as águas, pejadas de terra, pedras, lodo e
os mais diversos materiais, haviam galgado as margens e aberto caminho através
de campos e cidade, invadindo ruas e casas, semeando o pânico à sua passagem.
Assim acontecera na Ribeira de São João, onde a enchurrada arrastara cerca de
vinte casas, desde a ponte de São Paulo, no extremo oeste da Rua da Carreira, a
meia centena de metros do Solar, no qual as águas loucas ainda haviam galgado
o baixo muro que sustentava o gradeamento do jardim e, mais abaixo, invadido a
adega e as cozinhas, situadas ao nível da rua.
Contava-se na família de Ana Lima que fora já João Teodoro quem man-
dara altear o muro do jardim e presidira ao reparo dos restantes estragos do
aluvião, concluídos precisamente a 31 de Dezembro desse ano, e dizia-se
ainda que, depois desse Janeiro, ele nunca mais voltara a ser o mesmo filho
António Fournier (Organização)019
cumpridor e sereno. Após a morte de Augusto Teodoro, que ocorrera justa-
mente na passagem de ano, às primeiras horas de 1816, João Teodoro deam-
bulara demasiados dias pela casa em obstinado e ziguezagueado silêncio.
Estas primeiras manifestações de desequilíbrio mental, atribuíveis ao des-
gosto e ao luto, ultrapassariam, lá por finais do mês de Janeiro, as raias da
normalidade, e quem primeiro se deu conta disso foi a criadagem, pois João
Teodoro transferira as suas deambulações silenciosas para a Rua da Carreira,
a qual percorria manhã, tarde e, por vezes, mesmo noite, em passo lento,
compassado e milimetricamente igual, para diante e para trás, para trás e
para diante. Contra seu hábito desde que vivia no Solar, agora passara a sair e
a entrar atravessando sempre a adega e as cozinhas, utilizando invariavel-
mente a porta de serviço e, na soleira desta, quer saísse quer entrasse, parava,
perfilava-se, tirava o chapéu negro, protegia com ele o coração e fazia uma
profunda vénia dirigida à segunda coluna da esquerda, a que suportava o arco
central da adega.
E assim continuaria, dia após dia, persistente e inofensivamente, até à sua
morte, com a qual João Teodoro só se encontraria ao atingir a considerável
idade de 101 anos. Apesar desta longevidade, Maria Augusta Teodoro Lima,
mãe de Ana Lima, não assistira aos bizarros rituais deste estranho avô pois
grande parte da família se radicara já, por casamento ou profissão, em Lisboa,
e apenas em criança ela viera algumas vezes passar férias ao solar. Mas ouvira
contar que, na noite da passagem de ano de 1881, vinha a família de regresso
dos festejos, às primeiras horas de Janeiro de 1882, quando, depois de procu-
rar em vão João Teodoro por todos os quartos do Solar, dera com ele em camisa
de noite, morto e desfraldado, como um fantasma, abraçado ou colado – como
se de uma tardia e despropositada amante se despedisse com fervor – à segunda
coluna da esquerda da adega, aquela que sustentava o arco do meio, o mesmo
junto ao qual fora encontrado, em 1788, o capataz que aparecera misterio-
samente morto.
Em Julho de 1987 Ana Augusto Lima terminou o seu curso de arquitectura
em Roma. Regressada a Lisboa, entre várias hipóteses de estágio e colocação
surgira-lhe uma na Ilha da Madeira. Apesar de a família se ter radicado há
muito em Lisboa, Ana Lima sentiu uma atracção muito forte por aquela ilha
que abrigara gerações e gerações dos seus antepassados. Tinha conhecimento
de que sua mãe, Maria Augusta Lima, herdara um velho solar, o Solar dos Espi-
nheiros, abandonado no Funchal, na Rua da Carreira, e começou a desenvolver
12 Meses no Funchal020
dentro de si a vontade de, simultaneamente, fazer estágio e recuperar o solar,
entusiasmada pelos pais, com quem debatera o assunto.
Um estúpido acidente de carro deixou-a lesionada por dois meses e impe-
diu-a de concretizar a viagem em Outubro, como planeara, mas, apesar de o
estágio ter sido adiado para Janeiro, não quis deixar de passar o famoso fim
de ano na cidade do Funchal. A 30 de Dezembro de 1987 encontrava-se, pois,
instalada num hotel da Baixa funchalense, situado entre o Jardim Municipal
e a Rua da Carreira. A 31, desceu algumas ruas até ao Cais da Cidade para se
surpreender com o espectáculo de fogo de artifício, impossível de ser fixado
em película fotográfica ou fílmica que seja, tal a essencialidade, para o dis-
frutar, de uma osmose directa entre o olhar e o cenário vivo. Ainda emocio-
nada, Ana Lima deixou-se depois arrastar pelo movimento dos transeuntes e
deambulou pelas ruas cheias de vozes, música, luz e cor. A intensidade das
iluminações e o calor das gentes era tal que lhe transmitia, apesar de se
encontrar sozinha, a segurança acompanhada de um passeio diurno. Às pri-
meiras horas de Janeiro de 1988, já cansada, deu por si a completar o per-
curso circular da baixa, encontrando-se à entrada de uma estreita e longa
rua. Na parede do prédio de esquina podia ler-se, sobre rectângulo negro, e
escrito a branco, como gordas letras desenhadas a giz em quadro de aula, a
designação «Rua da Carreira».
Não pôde deixar de rir baixinho e, vinte minutos depois, deu consigo junto
ao seu Solar dos Espinheiros, recuando para melhor contemplar a fachada de
cal enegrecida pontuada por desbotados varandins trabalhados em ferro outrora
verde escuro. Observou depois os dois grandes portões de madeira: um, mais
simples e tosco, ao rés da rua, e outro, mais trabalhado, encimado por um vitral
e situado no topo de uma escadaria de pedra. Ana Lima rodou então o olhar um
pouco para a esquerda e focou-o num muro decrépito acima do qual se vislum-
bravam árvores enriçadas e vegetação desordenada. Sentiu uma necessidade
súbita e imperiosa de lá entrar e ainda pensou voltar ao hotel, onde deixara
documentação e chaves da herança de Maria Augusta Lima mas, ao desviar-se
de um grupo de bem animados transeuntes, apoiou-se sem querer contra o
portão secundário do solar, sentindo, ao mesmo tempo, que perdia o equilíbrio
pois a velha porta cedeu como se lhe acompanhasse o corpo, num convite estra-
nhamente silencioso, imperioso e rápido.
A luz viva das iluminações de Natal da rua penetrava com moderação no
espaço rectangular, muito longo, que se estendia à sua frente, apenas cortado
por três arcos suportados por colunas. Devia ter sido a antiga adega e, na suave
António Fournier (Organização)021
penumbra, adivinhavam-se-lhe os vestígios de um uso antigo, tamisados por
um suave arco-íris, como se uma síntese das luzes coloridas do exterior tei-
masse em entrar. Ainda parada na soleira de pedra da larga porta, a vontade do
corpo sem pender nem para fora nem para dentro, Ana Lima reparou com
espanto que um foco avermelhado de luz se desprendia do arco-íris e ilumi-
nava a coluna esquerda que sustentava o arco do meio dos três arcos da adega.
Nesse preciso momento, a imaginação fez-lhe ver, por uns segundos, a vivifica-
ção hipotética da narrativa ouvida à mãe e que descrevia o vulto de seu bisavô
João Teodoro, desfraldado em camisa de noite antiga, como lençol de fantasma,
já morto e ainda abraçado à coluna. Um arrepio gélido percorreu-lhe o corpo e
a alma e fê-la recuar para a rua, que sabia cálida de temperatura e de gente, e
dar meia volta, apressando-se em direcção ao hotel, sem se preocupar sequer
em fechar a pesada e danificada porta que deveria ter sido a da serventia da
adega e das cozinhas do Solar.
Nas ilhas o ritmo da terra e do ar é mais lento e o saborear dos dias, gosto-
sos ou amargos que sejam, acalma com maresia a pressa do mundo. Passara-
-se quase um ano sem que Ana Lima quase desse conta disso e, perto do Natal
de 1988, deu por terminadas as obras de restauração imprescindíveis para
que se pudesse instalar no Solar dos Espinheiros, à Rua da Carreira. Transfor-
mara em atelier a imensa adega e parte das cozinhas adjacentes, aproveitando
o mais que pudera traves, vigas, madeiras, recantos, nichos, prateleiras, pipas
e armários, mantendo a grande porta que outrora fora entrada de serviço
como acesso destinado apenas ao atelier; reconstruíra, ao fundo, os desapare-
cidos e breves lances de escada, mantendo a ligação interior que conduzia a
um pátio que, por sua vez, dava acesso às traseiras da casa principal e ao jar-
dim, este ainda bastante próximo do matagal que encontrara, apesar de algu-
mas operações de limpeza. Mas Ana gostava dele assim e mandara apenas
plantar alguns espinheiros que esperava florissem de branco e dessem bagas
cor de sangue, a fazer jus ao nome do Solar.
Da parte principal do imóvel, com acesso pelo alto e largo portão enci-
mado por vitral, ao cimo da escadaria exterior de pedra, Ana Lima fizera recu-
perar apenas o essencial à sobrevivência da casa: estuques, soalhos, rodapés,
florões e frisos de gesso nas paredes, tectos e lambris, deixando, com prazer,
que o sentimento de velho solar abandonado continuasse a fazer-se respirar
e sentir. Decidira manter quase todos os quartos vazios, povoados apenas
pelas folhas secas que, do jardim, levadas por um vento leve que ali parecia
12 Meses no Funchal022
também viver, penetravam na casa pelas janelas agora quase sempre aber-
tas. Praticamente só mobilara, e muito parcialmente, o imenso salão que
devia ter sido destinado a festas ou bailes, desdobrando-o em quartos imagi-
nários: no recanto mais afastado da entrada, ao fundo, dispusera um antigo
roupeiro de porta com espelho, uma velha camilha madeirense com balda-
quim e uma caixa de açúcar vinda da área das cozinhas; noutro recanto,
mais ao centro esquerdo, um sofá de três lugares e as suas duas cadeiras de
braços, forrados a meio ponto com cenas campestres em medalhões; no cen-
tro direito, uma mesa de abas encostada à parede, ladeada por duas cadeiras
de assento de palhinha. Espalhara, por entre estes móveis, alguns almofa-
dões das cores dos vitrais das bandeiras de porta da casa e comprazia-se com
os grandes espaços que mediavam os núcleos de móveis e que separavam
estes do hall de entrada, deixado vazio na pura exibição dos seus belíssimos
materiais naturais.
Coincidência ou não, Ana Lima planeara abandonar o hotel e mudar-se
para o Solar no princípio de Dezembro desse ano de 1988 mas, nos últimos
dias de Novembro, súbita doença de Maria Augusta Lima, que levou a inter-
venção cirúrgica, mesmo que não grave, fê-la deixar a Ilha e ficar depois em
Lisboa a passar o Natal. Recuperada a mãe, passados os dias natalícios, Ana Lima,
num súbito impulso, decidiu repetir a data e hora da sua primeira viagem,
chegando pela segunda vez ao Funchal, desta vez directamente para o Solar
dos Espinheiros da Rua da Carreira, no dia 30 de Dezembro. Mas a 31, apesar
de já ter feito amizades na cidade, um forte impulso impeliu-a a tomar a deci-
são de repetir a ida solitária ao Cais da Cidade e o passeio lento pela Baixa. No
regresso, percorrida quase toda a Rua da Carreira, ao passar pelo portão de
serviço do Solar, Ana Lima não conseguiu evitar a paragem que um ano antes
fizera e, ao transpor a entrada, quase não se surpreendeu ao ver um foco
avermelhado de luz, vindo do exterior, a iluminar a coluna esquerda que sus-
tentava o arco do meio dos três arcos da adega, fazendo-a rever, por uns largos
segundos, a visão do vulto lendário de seu bisavô João Teodoro, em camisa de
noite antiga, branca e desfraldada como lençol de fantasma, ainda abraçado à
coluna. Um renovado e gélido arrepio voltou a percorrer-lhe o corpo e a alma,
fazendo-a recuar para a rua e dar meia volta, subindo em correria a escadaria
de pedra para entrar, contra seu costume, pelo portão principal. Nessa noite,
às primeiras horas da madrugada de Janeiro de 1989, Ana Lima teve o pri-
meiro de três sonhos que haviam de mudar por completo a sua visão do
mundo, o seu destino na terra e a sua missão na vida.
António Fournier (Organização)023
No primeiro sonho, ocorrido a essas primeiras horas do ano de 1989, era
noite e Ana deu por si a dançar no centro de uma clareira no meio de um denso
bosque; em seu redor ardia um círculo de fogueiras que deixavam entrever,
parcialmente ocultos pela chama, vultos que agitavam bem alto ramos da
mágica e poderosa sorveira-brava que, com as suas bagas cor de sangue, lhe
faziam lembrar os espinheiros do Solar. Ana sentiu, mais do que soube, que
estava algures num tempo da Irlanda, quando o seu nome significava fertili-
dade e abundância mas também temor. Sem que o comandasse, o seu corpo,
quando rodava, ora oferecia reflexos luminosos de amor e afecto, ora projectava
sombras terríveis e devoradoras. As vozes vindas do outro lado do círculo de
fogueiras ressoavam no seu cérebro, repetindo vezes sem conta, até ao estonte-
amento e à vertigem, e sem que ela discernisse o seu significado imediato, a
frase. «a vida está latente na morte que se oculta».
Ana Lima acordou deitada no chão gelado do lajedo da adega, sentindo-se
transformada em deusa telúrica, e logo que conseguiu erguer-se nos antebra-
ços rastejou até o que sentia serem os seus domínios, no jardim, e deixou-se
cair, imóvel, junto a um buxo de ramos de espinheiro, onde permaneceu em
delírio até ao alvorecer. Três dias depois, já recuperada, racionalizou o incidente
e o seu próprio comportamento, explicando-o pela forte gripe que se lhe seguira,
e não pensou mais no acontecimento. Já mesmo quase esquecera o estranho
caso quando, exactamente um ano depois, - e após o agora já inevitável per-
curso pela baixa funchalende e subsequente encontro com o antepassado na
adega -, às primeiras horas de Janeiro de 1990, pouco depois de adormecer, se
manifestou o segundo dos misteriosos sonhos.
Ana sabia que estava de novo numa ilha, possivelmente de novo na Irlanda
ou então num país nórdico, entre o dia e a noite, pois à sua volta celebravam-se
as festas do Solstício de Verão, início da vitória das trevas sobre a luz, quando
as árvores sagradas são guardadas por fadas. Mas em seu redor, e cada vez mais
próximos, podia reconhecer variados seres mitológicos do Bem e do Mal: drui-
das, gigantes, profetisas, elfos e faunos, ogres e fadas aproximavam-se dela
cada vez mais e uma formosa feiticeira, que parecia guiá-los e a quem chama-
vam Sidi, trazia pela arreata um bela égua vermelha cujas rédeas entregou a
Ana, dizendo-lhe que era Lai, a égua de fogo, e que a conduziria à pedra mágica
da poesia que une a vida à morte e o efémero à eternidade. Mas, pelo caminho,
Ana tinha que afrouxar continuamente a cavalgada para que Lai se detivesse
junto de certos arbustos que logo se cobriam de flores brancas em tudo idênti-
cas às dos espinheiros do jardim do Solar. Quando chegaram perto de um
12 Meses no Funchal024
imenso lago, a égua de fogo transformou-se num belo cisne branco de tama-
nho desmesurado que, depois de atravessar parte do lago, se elevou nos ares e
conduziu Ana numa viagem vertiginosa por sobre terra e mar, durante a qual
o vento lhe sussurrava sem descanso, mas desta vez docemente, a frase: «a vida
está latente na morte que se oculta».
Quando Ana Lima acordou tinha a certeza de que ela e a bela égua verme-
lha Lai, depois transformada em imenso cisne branco, se dirigiam para a
redescoberta de uma ilha perdida no tempo, onde ela encontraria a pedra
mágica da poesia que une a vida à morte e o efémero à eternidade. Tornou a
fechar os olhos, procurando continuar o sonho, e chegou mesmo a descer até
á adega e a abraçar-se à segunda coluna, onde horas antes tornara a ver o vulto
do bisavô João Teodoro. Deixou depois escorregar o corpo até ao chão mas
mantendo a cabeça apoiada à pedra, como se numa possível osmose com o
seu antepassado residisse o desvendamento de um segredo ou a resposta à
continuação do seu sonho. Mas este não havia de voltar antes da passagem do
ano de 1990 para o ano de 1991.
A 31 de Dezembro de 1990, Ana Lima repetiu o ritual dos anos anteriores
mas quase com pressa, na ânsia de regressar ao Solar pela porta da adega.
Desta vez havia de aproximar-se do vulto, em camisa de noite antiga e branca,
de João Teodoro. Mas quando, às primeiras horas de Janeiro de 1991, entrou
pela porta da adega não viu o vulto esperado e, em vez disso, sentiu que uma
força poderosa a guiava e a fazia abraçar-se à coluna da adega. Assim ficou até
deixar-se cair sobre o lajedo, vencida pelo cansaço e pela espectativa. Então
adormeceu e sonhou.
No seu terceiro sonho era de novo noite e Ana montava ainda o magnífico
cisne branco que anteriormente fora Lai, a égua de fogo, e sobrevoava o mar em
direcção a uma ilha deserta que ela logo imaginou ser o abrigo da pedra mágica
da poesia que une a vida à morte e o efémero à eternidade. Mas, ao aproximar-
-se, viu que a ilha não era deserta e que o cisne a fazia sobrevoar uma bonita
cidade encravada no mar, rodeada por um anfiteatro de montanhas pontuado
de pequenas luzes de casario disperso. Ana não conseguiu deixar de se sentir
decepcionada, pois sabia que numa ilha povoada não iria encontrar a sonhada
pedra mágica da poesia, mas à desilusão seguiu-se a surpresa, ao verificar que
o cisne pairava e descia, aproximando-se cada vez mais das ruas da cidade que,
de perto, estavam cheias de luz, música, vozes e côr, até a deixar pousada frente
a um muro quase em ruínas e desaparecer no ar com a rapidez de um relâm-
pago. Abandonada, Ana constatou, por si mesma, estar frente ao Solar dos
António Fournier (Organização)025
Espinheiros num tempo em que Augusto Teodoro, e depois dele João Teodoro,
e depois deste ela própria, Ana Teodoro Lima, o haviam por três vezes recupe-
rado. Ana sentiu que devia entrar pela porta principal, entreaberta já num con-
vite, e dirigir-se a um dos altos espelhos paralelos que ladeavam a entrada.
Ao olhar-se na superfície espelhada, manchada pelo tempo, viu apenas reflec-
tida a imagem de um estranho torso com cabeça de dupla face que, de perfil,
lhe falava, alternadamente e com timbres de voz diversos, ora na direcção do
seu ombro direito, ora na direcção do esquerdo:
«Sou Janus, o deus romano dos portões e das portas, das entradas e das saí-
das, do pôr-do-sol e da alvorada, dos começos e dos términus, do amor e do
ódio, da guerra e da paz, do passado e do futuro, da plenitude e da miséria. Sou
aquele que erradamente deu nome ao mês de Janeiro. E tu és um dos meus
reflexos, Ana, mulher gémea de Ani, meu irmão e deus etrusco dos céus mais
altos e insondáveis. Tal como o teu antepassado descobriu, neste solar os habi-
tantes devem assumir o poder de Ana, Ani ou ainda Aine, meu lado feminino
e ambíguo que oferece a sua fertilidade e afecto mas também a sua dimensão
sombria e devoradora. Todos comandamos as portas do bem e do mal, da luz e
das trevas, da justiça e da injustiça; todos somos entidades simultaneamente
diversas e unas e através de todos nós se manifesta a instabilidade única do
momento em que a vida está latente na morte que se oculta. Representamos o
mais que efémero instante, o limite entre fim e início, o encontro entre duas
instâncias que se tocam num instante sem dimensão, a porta entre Dezembros
e Janeiros, entre mortes e vidas. Sempre que quiseres sentir-me, desce à adega
deste Solar, coloca-te na soleira da porta e vira-te de frente para a coluna
esquerda que sustentava o arco do meio. Podes saudar-me e ver em mim o teu
reflexo de prémio ou de castigo, mas nunca me dirijas a palavra antes do final
de um tempo e o início de outro.»
Ao acordar, Ana Teodoro Lima sabia o significado da frase: «a vida está
latente na morte que se oculta»; sabia agora que o seu percurso de vida seria o
símbolo do encontro de duas instâncias que se tocam num instante sem dimen-
são, num instante que representa, para além dos paradoxos da vida e do tempo,
a incerteza do ser ou a incerteza que, afinal, guia, à sombra da morte, o per-
curso de toda e cada vida humana. Sabia que iria passar a cumprimentar o
tempo, do limiar ambíguo da porta, em direcção à coluna esquerda do segundo
arco da velha adega na Rua da Carreira, no Funchal, acenando com mão leve e
alegre, cada vez que entrasse ou saísse do Solar dos Espinheiros, pois agora
sabia qual a sua missão. A mão esquerda de Ana Lima estava pousada nas pági-
12 Meses no Funchal026
nas de um livro aberto sobre o lençol branco, um livro que ela juraria ter dei-
xado caído no chão, abandonado há já vários dias. Era, de um conjunto de
ensaios de Borges, um texto intitulado «O Tempo» e um fio muito brilhante de
luz, vindo de nenhures, sublinhava uma frase: Não poderíamos imaginar pre-
sente puro: seria nulo. O presente contém sempre uma partícula do passado e uma
partícula de futuro, e parece que isso é necessário ao tempo. E Ana Teodoro Lima
repetiu baixinho e acrescentou, muito lentamente, num murmúrio: «necessário
ao tempo... e necessário à vida».
Funchal, Janeiro de 2008
António Fournier (Organização)027
Fevereiro
Fevereiro, 1938Irene Lucília Andrade
Tudo haveria de decidir-se em Fevereiro e Fevereiro era ela nesse mês das
suas vésperas mais felizes. Ainda que houvesse um mundo enorme, cidades,
montanhas e mares, águas de todas as formas, luzes de todos os brilhos, que
lhe dissessem vulgaridades sobre felicidade e outras inflexões, ela, só ela, sabia
que Fevereiro ia dentro de si como se o mundo se resumisse ao potencial do
seu ventre. Fevereiro movia-se, circulava pela sua cabeça, envolvia-lhe o corpo,
descia-lhe até aos pés e voltava a subir.
Era suave e fresco sob a chuva com um sol mortiço coroando os beirais no
Largo do Chafariz e as carantonhas da fonte tinham naquele dia o riso protec-
tor dos anjos como se tudo à volta declinasse alegria por vê-la passar.
Entre a Catedral e os jacarandás media-se a maior avenida que alguma vez
houvera, sem que fosse preciso mais espaço, nem definições para a vida, nem
invenções de coisas por descobrir. A alegria ia assim dentro dela e mais nada.
Ali ficava o Convento do Carmo e em frente A Benamor e a loja do João onde
iria comprar um lenço. Um lenço lindo... se vissem! Para pagar mais tarde, que
o comércio facilitava o crédito aos de poucos haveres, quanto mais aos paren-
tes. Eram indescritíveis as cores e o padrão do lenço. Nunca vira um pano
assim. Imaginem o íris da seda com a supremacia do amarelo canário, um
turquesa claro raiado de branco como uma espuma assomando a praias jamais
conhecidas, que as daqui puxam para o cinza, basalto rolado, as únicas que lhe
era dado conhecer. Era um lenço de beira-mar com viagens em fundo, uma
ideia que a ninguém contou e fazia parte dum futuro que ia docemente emba-
lando no ventre.
Os canários haveriam de entoar um coro frenético, empolgante e assombro-
samente belo no viveiro do quintal, quando ela por ali andasse com o lenço nos
ombros. Amarelo atrai amarelo e por isso os canários haveriam de cantar a beleza
12 Meses no Funchal028
que exibia a sua cor. E Fevereiro continuava nos passos dela determinado e
promissor. Era um mês de algumas chuvas acautelando reservas em Aquário,
o signo do seu desejo, a arca da sua aliança, ia o Inverno no pino da metade
final, que os dias cresciam e traziam às vezes uma brisa menos fria no princí-
pio da tarde, um fiozinho subtil de Primavera e a cidade parecia-lhe o lugar
mais confortável do mundo.
Ainda raros automóveis circulavam, havia pouco tempo tinha sido retirado
o rastro do carro americano por onde uma carruagem puxada por cavalos fun-
cionava em trilho de calhas entre a Sé e a estação do Pombal. A cidade moder-
nizava-se, as lojas proliferavam, a Rua do Carmo abrira ao comércio um com-
plexo familiar que constava de chapelaria, loja de tecidos, perfumaria com bar-
bearia anexa. A Benamor publicitava a marca de perfumes da época, a gama
completa, essências, sabonetes, pó de arroz. A loja do João era a dos tecidos e
acessórios de vestuário em cuja montra o lenço pontificava um toque de irresis-
tível atracção. Esse fora um momento de supremo prazer, a hora em que deci-
dira cobrir os ombros dessa cor de sol que resplendia, amarelo canário engas-
tado numa orla de espuma e o mar anunciado em pequenas ondas de cor tur-
quesa. No seu ventre a vida continuava a saltar, Fevereiro crescia dia a dia e as
pequenas gotas dos beirais enfeitavam um orgulho de rainha a que só bastava
o domínio natural das paisagens oferecidas aos olhos, rainha seria, não por ser
herdeira de valores dinásticos, mas apenas senhora dum reinado de emoções e
enleios superior a todas as riquezas. Era magnífico o efeito dos pingos de chuva
nos beirais, teara de brilhantes que lhe ornamentava a fantasia e agitava dentro
dela um poema de sangue e amor.
As manhãs descreviam aquele mês como se não houvesse noites, que os
luares eram claros, luminosos, e tudo, como disse, porque Fevereiro era ela e a
sua grandiosa gravidez. Brevemente saberia que uma filha haveria de ser a
permanente luz dos seus dias, a quem chamaria adorada.
Uma filha a quem ofereceria a beleza do lenço posto nos ombros na hora da
maior festa da sua vida. A expectativa definia-lhe essa hora como o aconche-
gante umbral do futuro. Depois, ao longo do tempo, era só deixar que, de Feve-
reiro em Fevereiro, até muito tarde, a lucidez lhe permitisse evocar sempre o
mês mais feliz de todos os seus amores.
António Fournier (Organização)029
Março
Funchal, em MarçoFrancisco Fernandes
Esta posição é confortável... Estou de cabeça para baixo, os braços cruzados, as
mãos fechadas, fortemente cerradas, mesmo junto à cara. As pernas estão dobradas
de tal forma que os pés se juntam às mãos. O dorso está arqueado para que esta
posição seja possível. Acreditem, é mesmo confortável, embora possa não parecer.
Não consigo fazer muitos movimentos com a cabeça, mas isso não me faz
falta. Na verdade, o espaço por aqui já foi mais generoso. Altura houve em que
até podia nadar cá dentro, neste quentinho. Agora não, fico só no aconchego,
ouvindo uma batida compassada que me adormece. Não preciso fazer nada.
Alguém faz tudo por mim, e fá-lo tão bem feito que nada me falta.
Lá fora ouço vozes que falam entre si de coisas que não entendo, umas vezes
baixinho, outras mais alto. Ainda há pouco falavam da casa, do quarto para
mim, de uma pintura na parede, de datas,... Bem, não percebo nada, mas pare-
cem preocupados com algo que deve estar quase a acontecer. Não sei porquê,
mas acho que está relacionado comigo...
Outras vezes acho que falam para mim, as vozes ficam doces, sinto que me
tocam levemente. Cantam para mim. Ouço música. Essas vozes têm nome:
mãe e pai. Ela fica horas falando comigo. Ele, menos tempo, e quando me toca
é desajeitado: toca-me nas costas ou acaricia-me um pé. Ela parece saber sem-
pre onde me encontro, adivinha sempre as minhas voltas.
Tenho um pressentimento que o tal acontecimento deve estar muito perto
de ocorrer. Há uma agitação diferente lá fora. Por outro lado, a comidinha
aqui vai rareando, por enquanto estou bem, mas nunca se sabe... Falam de
mim e falam Março.
12 Meses no Funchal030
O espaço que me entala a cabeça, está ficando mais largo. Sinto que algo
me empurra para baixo, de tempos a tempos, e com intervalos cada vez
mais curtos. A batida do meu coração acelerou. Tenho fome! Não tenho
espaço para me mexer. Apetece-me espreguiçar, mas não sei como. Há vozes
estranhas lá fora.
Outra vez aquele empurrão, como se me quisessem expulsar deste quenti-
nho. E outro! E mais outro! Ouço a mãe. Ouço o pai. Há muito movimento lá
fora, a posição da mãe mudou. Isto está ficando incómodo cá dentro, a sério!
Quero sair daquiiii!!
Faço força com a cabeça, mas isto não abre. Sinto que me puxam para fora.
O espaço é apertado, não consigo sair. Esforço-me. Ouço várias vozes desco-
nhecidas. Parece que me querem ajudar a sair daqui. Já não era sem tempo!
Acho que são muitos a ajudar, mas não há maneira de sair.
Ouço gritar. Sinto que me puxam pela cabeça. Sem cerimónias! Calma aí
que isto é frágil, ainda fico com a cabeça deformada, pá! E eles a puxar
Valeu a pena mais um esforço. A cabeça já está lá fora. Agora estou preso
pelos ombros. Continuam a puxarrrrr...E já está!
Ui, esta luz... não consigo abrir os olhos. Tantas vozes. Estão a festejar.
Metem-me um tubo na boca. Ar! Ar! Quero ar! Ouço-me gritar, berrar. Sou eu
que grito assim! Estou novamente de cabeça para baixo. Atiram-me para cima
da mãe. Um rapaz????, pergunta a mãe. Um rapaz!, dizem todos.
Sou eu!
Estou numa casa pequena, na Rua das Árvores, tem um outro nome, eu sei,
é uma data, mas prefiro “das Árvores”, são plátanos, estão lá debruçados sobre
a ribeira, que ainda escorre água de uma invernia que recusa o tempo à prima-
vera que vem aí.
António Fournier (Organização)031
Por vezes passa um carro, massacrando o empedrado e expelindo fumos
para as janelas térreas da casa, que estremece. A rua acaba um pouco mais
acima, na Ponte de Pau, e depois diverge para o Caminho de D. João e o Cami-
nho dos Saltos, que nascem em forquilha, com um fontanário no vértice da
ladeira que se divide.
Da casa do lado chega o odor de pão fresco, ainda antes do sol se mostrar,
temperado pelas vozes dos que caminham para o mercado, para as casas de
bordados, para o porto, para o comércio. De permeio, há conversas acaloradas,
com restos de noite bebida.
Logo pela manhã ouço o ronco do vapor do Cabo, que chega inchado de
gente que vem da estranja e fica umas horas no Funchal, primeiro debruçados
nas amuradas enquanto decorre a manobra de fundear, deliciando-se com a
perícia dos bomboteiros que agitam toalhas bordadas, e da miudagem que
mergulha pelas moedas, que vai armazenando na boca.
Depois desembarcam em lanchas ronceiras e sobem a medo a escada lodosa
do cais, onde são novamente assediados pelo labor artesão em forma de “bor-
dado Madeira” e cestos de vimes. À beira do cais os carros de bois aguardam
para ganhar frete em concorrência com os táxis descapotáveis, ansiando por
uma volta à ilha que safe a jornada, em dia de vapor.
Uns ficam logo ali, outros encaixam-se na esplanada do Sunny Bar ou na
esquina do mundo para um café, antes de percorrerem a rua principal, olhos
na Sé e fitos no mercado.
E o frio de Março só me deixa uma breve espreitada na janela, no colo da mãe
que perscruta as horas no relógio do Hinton, perpendicular à parede da fábrica,
adornado de rendas de ferro verde.
São seis da tarde. O pai deve estar a aparecer.
Em breve chegarão à beira da fábrica os carros carregados de canas, prontos
para serem engolidos pela usina que, pontualmente, às oito da manhã, quatro
da tarde e meia-noite, apitará o silvo que avisa a mudança dos turnos operários.
Entrarão carros cheios, sairão vazios para novas cargas e longas esperas, noite
adentro, no espaço das árvores e na fronteira da ribeira.
O fumo traz o cheiro dos melaços que se cozem entre o ranger das máqui-
nas, que espremem sumo e rejeitam o bagaço seco que voltará à terra, agora
como adubo de outros cultivos.
Mais tarde sairão sacas de açúcar de tons pardos e ali permanecerão, mais
tempo, as enormes cubas de álcool à espera de outros fins.
No frio de Março, fui recebido no Funchal de 1952.
12 Meses no Funchal032
Abril
ParábolaMargarida Gonçalves Marques
Poucas coisas abalavam a pequena urbe que era o Funchal de 1920. Por isso
ninguém se admiraria que o anúncio de um casamento tivesse alvoroçado a
cidade e acordado os populares naquela manhã de Verão pleno. Raramente
alguém casava ao meio-dia na Catedral e nem sempre acontecia que a noiva
fosse a filha de um Senador da República. Daí o empenho dos curiosos de mar-
car lugar, bem cedo, no adro e arredores para não perder pitada dos mais ínfi-
mos pormenores que, mais tarde, dariam assunto para longas e apetitosas con-
versas de soalheiro.
O cortejo de carros de bois, que trazia os noivos, os familiares e os convida-
dos entre os quais, diziam os mais informados, se contavam vários ministros
vindos expressamente da metrópole, hipnotizou a multidão que se apinhava
nas imediações da Sé. Os boieiros apresentavam-se vestidos de lavado, com os
seus fatos brancos e chapéus de palhinha, e as cortinas dos carros-trenó, apa-
nhadas aos lados sob o toldo de oleado preto, resplandeciam de alvura anilada
e permitiam entrever a elegância dos trajes femininos. Tudo se conjugava para
compensar a ansiosa espera e deslumbrar a imaginação dos desocupados.
A pouco e pouco, ordenadamente e sem delongas de maior, os convidados
iam saindo dos carros e formavam pares, que se antecipavam no interior do
templo manuelino, à chegada da noiva.
E, pelo braço do pai, Beatriz apeou-se, linda como a multidão esperava, o véu
de renda descido sobre o rosto em modesto recato. Descrever a beleza da noiva
parece-me escusado. Beatriz era bela como o são quase sempre as raparigas de
dezoito anos. Tinha vivos olhos castanhos da cor dos cabelos cacheados, que
emolduravam uma face de porcelana. Mas, na opinião do velho tio Januário, os
seus pés eram motivo de especial enlevo: tão pequeninos e brancos que, no seu
estilo gongórico, ele os descrevia como «um susto de neve».
António Fournier (Organização)033
Quando já casados, José Maria e Beatriz saíram da Catedral, o povo não
lhes regateou as palmas, o arroz e as pétalas de rosa, gratificado por não
terem sido defraudadas as suas esperanças e sinceramente desejando-lhes os
melhores augúrios.
Depois da cerimónia , um almoço de requintada ementa na Quinta Pavão
reuniu os cerca de trezentos convidados. Ao fim da tarde, os noivos seguiram
em lua-de-mel para Lisboa com ternas despedidas no cais da cidade. A viagem
prolongar-se-ia por dois meses até Itália, com regresso ao Funchal directamente
do porto de Génova.
Estavam já instalados na ampla casa do Ribeiro Seco, que José Maria herdara
de uma madrinha, quando o jovem casal teve a confirmação de que o seu pri-
meiro filho vinha a caminho.
Beatriz, no meio de inegável felicidade, apenas lamentava a distância que
a separava da moradia dos pais na Rua das Mercês. Agora grávida, mais frá-
gil na sua sensibilidade, medindo as horas que o marido passava no enge-
nho de açúcar, apetecia-lhe estar todos os dias com a família, para seguir de
perto o enxoval que a mãe preparava para a criança, com rendas e bordadi-
nhos, cosido à mão, como era da praxe. E isto sem falar das peças tricotadas,
especialidade da velha avó. Outra coisa preocupava Beatriz: precisava resol-
ver as dúvidas que sempre a assaltavam, na sua estreia de maternidade,
temente de qualquer gesto desastrado que fizesse perigar a integridade do
seu menino.
E um dia, já o marido saíra cedo para acudir ao desgoverno numa das máqui-
nas do engenho, Beatriz, sentindo mais vivas as saudades dos pais e sem dar
conhecimento à velha ama que a criara e fizera questão de acompanhá-la depois
de casada, tomou sozinha o primeiro carro de bois que passava naquele fim de
mundo e ordenou ao boieiro que rumasse à rua das Mercês.
Os dois bois pequenos e mansos, de pelagem castanho-dourada, como eram
os seus semelhantes ilhéus, puseram-se em marcha, fazendo tilintar os choca-
lhos do pescoço. O boieiro, de vez em quando, dizia:
— Vem cá pr´a mim, boizinho. Vem cá.
Abril esbanjava cores, aromas e trinados e, no silêncio apenas interrom-
pido pelo ruído deslizante do carro, Beatriz inebriava-se com a generosidade
da mãe Natureza. As quintas iam desfilando com seus festões de gaitinhas
amarelas e com as nuances do roxo e do vermelho intenso das buganvílias
que se desdobravam como colchas exóticas no cinzento dos muros. Para
completar a sua euforia, ela pôde admirar, através de um portão entreaberto,
12 Meses no Funchal034
o leque rendilhado e majestoso da cauda de um pavão branco, passeando
lentamente pelas áleas de uma vivenda cor de rosa. Teria gozado plenamente
aquele dia usurpado à sua forçada clausura, não fora uma pontinha de
remorso a toldar-lhe a alegria da liberdade.
— Precisa de muito repouso- dissera o médico da família.
Só se deu conta de que algo corria mal no itinerário, quando percebeu
que o boieiro seguia por ruas e travessas desconhecidas, distanciando-se a
seu ver e cada vez mais do destino pretendido. O carro começou a deslizar
de canto a canto, em tremendos solavancos que lhe provocavam incómo-
dos terríveis.
A certa altura, numa decisão arbitrária, o boieiro, completamente embria-
gado, via-o agora, parou o carro no primeiro desvão da estreita rua e, sem mais
aquelas, estendeu-se na berma do empedrado e adormeceu, roncando em
haustos profundos e regalados.
Beatriz depressa se arrependeu da ousadia daquele passeio. Dores estranhas
atormentavam-lhe os rins e a sua agonia, por se ver só e longe de qualquer alma
conhecida, aumentava a cada instante.
Quando, passada mais de uma hora, viu sair da porta verde de uma casa
uma mulher já não muito nova mas ainda bonita, agarrou-se à ideia de pedir-
-lhe socorro.
— Ajude-me, por favor.
A outra, num breve olhar, avaliou a jovem burguesa nitidamente grávida.
Tornou atrás nos mesmos passos, abriu a porta que acabara de fechar e,
amparando Beatriz, levou-a para o interior. Foram dar a uma sala de equilibra-
das proporções, com janelas vestidas de damasco vermelho, inúmeras almofa-
das dispersas por tudo quanto eram cadeiras, poltronas e sofás e até sobre os
tapetes que amorteciam os passos num conforto asiático.
Meia dúzia de raparigas rodearam Beatriz e fizeram-na recostar-se numa
«chaise-longue» de veludo acolchoado. Olharam-na com curiosidade e simpa-
tia. Algumas eram da mesma idade que ela, bonitas como ela.
Beatriz tomou o chá de tília que lhe ofereceram e, quando a viu mais calma,
a sua anfitriã sugeriu-lhe que contasse o que acabava de acontecer para que
pudesse ser mais eficaz o auxílio a prestar.
Inteirada, a mulher temeu que a criança pudesse nascer ali, o que não con-
viria a ninguém, muito menos ao seu próspero negócio. Chamou então uma
velha, aposentada com certeza do seu ofício, e ordenou-lhe que fosse depressa
ao engenho de açúcar e trouxesse quanto antes o marido da senhora.
António Fournier (Organização)035
José Maria não queria acreditar no que os seus ouvidos escutavam. E não
sabia nem da missa a metade. A única coisa que percebeu era que Beatriz deso-
bedecera ao médico, saíra de casa sem o prevenir e fora recolhida por desco-
nhecidos depois da aventura do boieiro bêbado.
Ao chegar à morada indicada pela velha, José Maria apeou-se do trem e
não teve dificuldade em classificar a casa que dera abrigo à sua mulher. Viu
Beatriz serena, rodeada de atenções, pequena rainha no meio das suas
damas de honor. E mau grado o ambiente duvidoso, acalmou a sua ira e
engoliu a série de admoestações que trazia engatilhadas. Fez cálculos rápi-
dos. Eram sete da tarde. Em breve anoiteceria e os clientes começariam a
chegar. Tornava-se urgente tirá-la daí. Discretamente, agradeceu o bem-fazer
daquela incrível samaritana e retomou com Beatriz o trem de aluguer para-
do à porta.
Nessa mesma noite, pôs o médico a par do acontecido. Ele examinou Beatriz
e declarou não haver motivo para preocupação. Deviam ambos ficar gratos à
desconhecida que proporcionara à futura mãe umas horas de relaxe físico e
mental, abalada como ficara com o inusitado passeio.
Dois dias depois nascia- lhes o primeiro filho. A criança viera perfeita. A mãe
estava bem. As «Notas Mundanas» do Diário de Notícias local deram relevo ao
bom sucesso de Beatriz.
Quando a família começou a pensar no baptizado , seguido de uma festa
linda como impunha a entrada de um novo cristão no seio da Igreja, o nome já
tinha sido escolhido.
— Victor.
— Victor?- estranhou o avô. Não há entre nós, nem de um lado nem de outro
ninguém com esse nome. Sabe bem, Beatriz, que é tradição na nossa família
usar Alexandre, Vasco, José, Pedro ...
— Mas o nosso filho será Victor, pai – reafirmou José Maria. Estivemos a
consultar um livro sobre o significado dos nomes e vimos que Victor quer dizer
vencedor. Será Victor.
- Concorda, Beatriz?
- Plenamente, pai.
Ela trocou um olhar cúmplice com o marido. Os avós não poderiam saber
nunca que o seu neto primeiro quase viera ao mundo num bordel e que fora
graças à bondade e discernimento de uma tolerada que a criança nascera sau-
dável e a mãe resplandecia como uma rosa de Abril. Eles também não pode-
riam saber jamais que a dona do bordel se chamava Victorine.
12 Meses no Funchal036
Maio
MaioLaura Moniz
Do jardim jorrava uma cascata de flores amarelinhas que Dona Maria Engrácia
Nunes dos Santos gostava de olhar através da janela do seu quarto. Uma nesga
de Funchal surgia-lhe assim, emoldurada às vezes por buganvílias, outras por
jacarandás fecundos. Era um Maio suculento, o deste ano, e mãos cheias de mio-
sótis prometiam-se para mais tarde, dentro da forma de coração desenhada em
redor dos pés de cada uma das árvores, obedientes sentinelas daquela casa.
Dona Maria Engrácia Nunes dos Santos fechou os olhos para apreciar aquele
lado da existência que mais a dominava – saborear as cores e os sabores que
estas sugeriam e o sorriso que estes lhe desenhavam sobre os lábios antes que
se tivessem de repente endurecido num rito social.
Dona Maria Engrácia Nunes dos Santos inclinou-se e estendeu a mão para a
pequena sineta que tinha a seu lado. Era altura de chamar a nova empregada e
saber o andamento das ordens que lhe dera. Não que esperasse duma servente
algo mais do que dizer se acabara ou não as várias voltas que lhe atribuíra.
Gostava de ver nos olhos das criadas de campo o tom de subserviência, o sor-
riso de plástico de ocasião que punham para as patroas e para os patrões, o
revirar de insolente humildade das suas mãos por detrás das costas, ou, nas
mais jovenzitas, o agarrar desesperado das saias rodadas e dos aventais, para
não caírem de vergonha e medo.
Dona Maria Engrácia tocou a sineta e esperou. Veva apareceu percorrendo a
alcatifa sem rumor. Era um dia solarengo e a sua figura alta não deixava sombra
sobre as estantes, nem sobre o desbotado papel de parede, nem sobre o piano
velho, nem sobre o tom mais claro das jarras e jarrinhas e bibelots de porcelana
que Dona Maria Engrácia coleccionara durante toda a vida.
Dona Maria Engrácia antegozava já a sua primeira reprimenda à recém che-
gada. Um só deslize, um só esquecimento, uma só nervura encarquilhada do
António Fournier (Organização)037
tempo que lhe destinara enchê-la-ia de prazer. Mas Veva respondera com pre-
cisão e desenvoltura e Dona Maria Engrácia perdera, pela primeira vez na vida,
uma batalha contra uma serviçal.
Eram três da tarde. Dona Maria Engrácia tinha descido ao Funchal. Cha-
mara o taxista que a deixara ao pé do Golden Gate. Calcorreara a Avenida
Arriaga, debruçara o olhar para o topo dos edifícios citadinos, como se visitasse
a cidade pela primeira vez, enveredara a seguir, sem pensar, pelos habituais
trilhos de memória e chegara à igreja de São Pedro onde fizera as suas habi-
tuais orações. À saída tivera os habituais dedos de conversa com as senhoras
suas amigas. Tecera os habituais elogios ao esplêndido mês de Maria de sua
veneração e enviara as suas costumeiras invectivas à juventude cansada que
nada devia ao tempo que ela vivera. Era conhecida pela sua devoção e obras de
caridade e participação no círculo de beneficência da cidade. Dona Maria Engrá-
cia fora a esposa modelo, a jovem perfeita, a irmã adorada, a viúva infeliz e fiel,
a mãe de honestos filhos e era agora a senhora elegante e fina, de entre as
senhoras finas e elegantes do Funchal. Dona Maria Engrácia, com pele rosada,
lábios delgados, cabelo branco, olhos azuis de anjo, só lhe faltavam as asas para
chegar ao céu. E todos achavam que no céu havia já um lugar reservado, tão
incorruptível e inquebrável parecia cada fibra do seu carácter e da sua paciente
e nobre vida de funchalense.
Dona Maria Engrácia dirigia-se para casa agora e o sol de Maio brilhara durante
todo dia. Apetecia-lhe descansar sob os ramos das árvores de casa bebendo um
sumo de maracujá, sonhando com um verão de praia no Porto Santo. Beberia
sumos e comeria saladas e contaria velhas histórias aos netos e seria o paraíso
– falar-lhes-ia da sua juventude transcorrida impecavelmente, do seu casamen-
to com o falecido marido, desfiaria o seu infindável leque de memórias perfeitas
e felizes onde não havia lugar para fome, nem miséria, nem guerras esquecidas,
nem labutas incómodas, nem sufocos inúteis e vãos de plebe.
Era Maio e num dia assim Deus pavoneava-se despudoradamente pela ilha.
Dona Maria Engrácia, sentada no táxi, agradecia à única divindade que conhe-
cia a vida admirável que tivera. Agora chegaria a casa, entraria, depositaria a
mala sobre o divã, retiraria o lenço do pescoço, calçaria as sandálias amarelas,
envergaria o seu vestido mais leve, pois era Verão, um verão prematuro, diria à
criada que lhe preparasse o lanche, transportaria o seu corpo de 79 anos para o
jardim, estender-se-ia sobre o cadeirão, abriria um dos seus livros preferidos,
respiraria o ar da tarde profunda e sacramente, e diria sou feliz. Sou perfeita.
12 Meses no Funchal038
Tenho uma vida imaculada e santa. A mim ninguém nunca apontará com o
dedo. E iria sentir a sua pele de pêssego acariciada pelo ar quente da tarde, as
suas faces encherem-se de suor delicado, o perfume channel entrar-lhe pelas
narinas lembrando-lhe a sua ociosa e próspera realidade de todos os anos.
Dona Maria Engrácia abriu o portão de ferro da sua casa na parte alta da
Rochinha. Através deste o jardim bombardeava os visitantes de perfumes flori-
dos e irisados. Dona Maria Engrácia atravessou o seu Éden escondido, acari-
ciada por verdes tons e garridas cores inesperadas. A entrada principal da sua
casa era talvez uma das mais bonitas do Funchal, uma espécie de jardim secreto
e fantástico que poucos conheciam. Nada ao acaso. Nem os ramos que se agita-
vam contrariavam o calendário quotidiano da sua existência. Nem as pedrinhas
do jardim tinham sido dispostas de forma a irritá-la ou contrariá-la. Havia um
coração para cada árvore desenhado no chão, havia uma mão cheia de flores
para cada estação, para que nada ali faltasse. A parte mais importante da casa,
dizia ela, era ou o jardim ou então a cozinha. O coração de toda a existência
estava subordinado à decoração desses espaços, os momentos de lassidão e
desespero curavam-se no sono, o despertar e a acção deviam-se unicamente ao
que os olhos viam e a boca saboreava. Como uma religião. Como a construção
de uma catedral. A catedral da sua vida assentava sobre esses eternos pilares de
energia. Cor e sabor. Olhar e boca. Jardim e cozinha.
Dona Maria Engrácia abriu a porta que dividia a sua sombra entre a cozinha
e o jardim. Qual não foi pois o seu espanto quando, chegando à sala e olhando
através da janela, viu Veva atarefada sobre o jardim, banhando-o com a sua
sombra, invadindo-o com a sua existência. Dona Maria Engrácia nesse momento
sentiu um baque feroz no coração, uma vertigem que a dividiu em duas. Uma
delas não recordou. O que esquecera, esquecido estava e ela não recordou. Sen-
tiu apenas um calafrio inusitado e regressou ao quarto. Eram cinco da tarde
quando ouviu uma sirene e nesse momento a outra parte de si achou que estava
a acordar. Ainda não pusera o casaco de lã que retirara do roupeiro. Tivera um
grande esquecimento. Vestiu o casaco lentamente. Os seus braços começavam
a cansar-se de repente. Deviam ser cinco da tarde quando ouviu a sirene. Depois
ficou à espera. A campainha do portão tardava em tocar. A sirene devia ser para
ela. Dona Maria Engrácia intuíra que a campainha e a sirene, não de ambulân-
cia, deviam ser para ela. Como se tivesse estado à espera ao longo desses anos,
uma longa viagem de comboio perante paisagens deslumbrantes, e só o bater
ligeiro das asas da viagem sobre a sua cabeça. E durante a longa viagem ela
ainda não recordara nada. A recordação era importante mas ela não se lem-
António Fournier (Organização)039
brara. Ainda. E o sol continuava a brilhar por cima da sua cabeça e a sua vida
por mais umas horas continuaria a fazer sentido e o bater do seu coração con-
tinuaria em lenta cadência a acompanhar o dlinguedlongue do relógio de
parede, imperturbável perante as formas desregradas da existência, regular
como o voltejar de borboleta da Lua em volta da Terra. Dona Maria Engrácia
continuaria à espera dentro de casa, olhando os movimentos no jardim, a cala-
midade do fim do dia abatendo-se com o sol dourado, depois vermelho, que se
esvaía no horizonte.
Veva tinha uma única fotografia do tio mais novo. Veva era pequenina
quando o tio a levantara no ar com os seus braços fortes e lhe tentara dizer
– isto era o que lhe contava a sua mãe – que tinha trazido do Funchal uma botas
azuis, novinhas, de verniz, para ela. Veva era pequenina mas, de cada vez que
o tio aparecia lá em casa, deixava-se encantar com o som da voz do tio Carlos
que trabalhava no Funchal e por isso raramente conseguia ir a Machico. Veva
era pequenina e eram demasiado pobres para procurarem o tio Carlos quando
este tardou meses em aparecer, e depois anos. Veva cresceu a pensar nas botas
azuis que o tio lhe trouxera e na única fotografia que este deixara de si, pegando
nela ao colo, com aquele ar pasmado que ele tinha. O tio Carlos era um gigante
peludo que pouco falava e que, quando ela chorava, a levava ao colo e lhe can-
tava cantigas de embalar que mais ninguém em Machico conhecia. O tio Carlos
cheirava à erva dos jardins do Funchal e tinha mãos calejadas, rosto escuro,
tostado, o mais humilde do mundo. Tinha um colar, um fio de prata com um
pendente em marfim, o seu único tesouro. Veva lembrava-se da máscara escul-
pida, um dos olhos perfurados no qual ela enfiava raminhos de erva enquanto
o tio cantava e ela deixava de chorar.
A mãe de Veva dissera-lhe que o tio um dia voltaria, fora ao Funchal com-
prar mais umas botas e andava muito ocupado. Veva sentava-se muitas vezes
na beira da estrada, com pés descalços, esperando o tio com as botas novas
vindas do Funchal e só chegando à adolescência é que percebera que às vezes
há viagens sem regresso e talvez a viagem do tio tivesse sido uma dessas. Em
Abril de 2007, com a mãe adoentada que já não conseguia bordar à noite, Veva
decidira procurar um trabalho para ajudar a pagar as contas. Vira um anúncio
no Diário de Notícias do Funchal. Procuravam uma empregada para uma casa
particular, ofereciam cama e comida. E Veva lá fora para uma entrevista e
tinha sido aceite. Começara a trabalhar no dia 9 de Maio. Conhecera o filho da
Senhora Dona Maria Engrácia e habituada que estava a tarefas domésticas e
12 Meses no Funchal040
todo o tipo de lida caseira não lhe parecera nada de impraticável. Tinham com-
binado que começava na segunda semana de Maio, que se apresentaria à nova
patroa pela manhã. Veva contara à mãe que iria servir numa nova casa, na
Rochinha, e a mãe dissera-lhe sem fazer muito caso ah sim pequena... teu tio
trabalhava na Rochinha antes de mudar de trabalho.
Veva não pensava no tio Carlos quando começou a limpar o jardim. Aquela
zona parecera-lhe descurada, pouco limpa, algumas folhas caídas, um
pedaço de gesso que despontava no meio da erva, talvez a falta de jardineiro
permanente e a insistência da senhora em tratar sozinha das plantas e do
jardim. Veva achou que podia ajudar, afinal tinha acabado todas as voltas que
tinha para fazer e ainda lhe sobrava espaço nesse dia, dois dias de trabalho
não lhe tinham parecido nada extenuantes e pela tardinha do dia seguinte
tinha telefonado à vizinha para poder falar com a mãe e contar como era a nova
patroa e o novo trabalho e que até tinha tempo para limpar o jardim. A mãe
dissera-lhe que em Machico o tempo não estava mau mas que uma espécie
de nevoeiro estava a entrar pelo mar adentro. Não se lembrava de outro dia
assim na sua vida.
Falaram de muitas coisas, de galinhas, de bordados, da telenovela preferida,
e depois Veva voltou para casa. A senhora Dona Engrácia esperava o jantar e
que lhe preparasse o banho e não a iria deixar sair mais tarde para telefonar.
Veva retirara as folhas soltas de todo o jardim, mondara o terreiro, varrera,
podara, limpara aqui e ali, por puro prazer. Sentia a brisa fresca que vinha do
mar, o cheiro húmido de Maio. Olhando a linha do horizonte vira as nuvens
baixas que iam cobrindo a cidade, o sol que brilhava por cima encontrava um
cobertor espesso de vapor.
Quando puxou o pedaço de gesso que despontava no meio das flores fê-lo
sem pensar. Puxou, num gesto normal e distraído, até encontrar inesperada
resistência. A conclusão fugaz do momento foi: um ramo, afinal não é gesso.
E foi puxando até sentir nos dedos uma forma perceptível, sólida. Só então
olhou. Só então viu o colar. Ficou-se a olhar esse momento mudo. Revirou o
marfim nas mãos sujas, tentou enfiar um dedo na agora mínima entrada da
máscara. Começou a vir-lhe de longe a verdade. O tio chegando a casa com as
botas novas na cidade.
Nesse instante Dona Maria Engrácia chegava transportando o ilusório sol
do seu último dia de amnésia. Depois chegara-se à janela. Dona Maria Engrá-
cia viu. Viu tudo. Veva com mãos nervosas que afastava a terra e as plantas
António Fournier (Organização)041
daquele pedaço de jardim e que descobria, escavando a terra húmida, o que
um dia fora um pescoço, um crânio, um tórax. Veva que enfiada no tórax
encontrava aquela faca que há anos desaparecera do faqueiro preferido de
Dona Engrácia. Veva que, em câmara lenta, se levantava e afastava para olhar
melhor, para perceber melhor, com a mão direita fechando o pedaço de mar-
fim, e depois olhava na sua direcção. Dona Engrácia cujo olhar se fixara sobre
a faca vira Veva, a única batalha que não ganhara, caminhar lentamente para
o portão. Veva que saía. Dona Engrácia que dizia está despedida e que, duas
agora, uma delas esquecida, voltara ao quarto para ir buscar um casaco. Para
onde iria certamente faria frio.
12 Meses no Funchal042
Junho
JuneMaria Rosa Basílio
gosto de ir a casa da avó
a minha mãe deixa-me ir sozinha é perto desço a minha rua passo no largo entro
no beco que cheira a enxofre e saio no torreão junto aos dois plátanos enormes há
uma fonte pública com duas bicas atravesso para o outro lado desço as escadas são
quinze degraus subo uma pequena rampa e chego ao alpendre cheio de vasos de
fetos e avencas e sansevérias e jarros no meio está uma mesa com uma toalha posta
em losango com um vaso de avencas à volta cadeiras de ripas
a porta está sempre encostada a minha avó é surda pode não ouvir bater
subo ao primeiro andar no cimo da escada há um relógio de pé alto que dá as
horas vou ao quarto de jantar e ponho-me à janela a ver correr a ribeira que ali
defronte soa melhor porque bate e faz remoinho numas pedras um pouco mais
abaixo as buganvílias estendem-se de um ao outro lado da ribeira
gosto dos móveis de carvalho claro estilo inglês e da cómoda miniatura que
é da prima irene que vive nos açores e a deixou ali quando vinha do brasil
cobiço-a mas a avó ignora o meu desejo a irene tornou a passar para o brasil
mas não levou a cómoda que não sei que fim levou
gosto de estar à janela da minha casa
estamos no são joão a bandeira passou à nossa porta seguram-na uns miú-
dos atrás estão os mordomos e mais atrás ainda os músicos a bandeira é linda
no fundo está desenhada a figura do santo de túnica curta e sandálias e com o
cordeiro às costas a minha mãe deu-me uma moeda preta que joguei na ban-
António Fournier (Organização)043
deira quando passava o meu avô às vezes é mordomo porque tem uma loja na
rua da carreira que pertence à freguesia do santo
a minha mãe gosta de ir ao arraial de são joão eu também gosto vamos a pé
porque é perto da nossa casa a minha mãe gosta de chegar antes das dez da
noite porque depois aparecem muitos romeiros e não conseguimos entrar na
capela que é pequena e fica logo a tope
a capela está cheia de cravos brancos e vermelhos e a rua da ribeira está
enfeitada com ramos de murta gosto dos seus pequenos frutos que me lem-
bram tabaibos estrancinho-os com os dedos para sentir-lhes o cheiro
o ar rescende a carne de vinhadalhos e o meu pai escolhe a tasca onde vamos
cear quase sempre a minha mãe discorda esperamos que haja uma mesa livre
e sentamo-nos eu tomo sempre uma laranjada os meus pais bebem sangria de
vinho doce e comem iscas de carne de porco a minha mãe diz que em casa a
carne nunca sabe assim tão bem eu como uma isca de bife de atum com molho
depois de comer ficamos um pouco a escutar a música a banda de que mais
gostamos é a dos artistas
outras vezes vamos cear a casa da avó atum salprezado e batatas cozidas com a
pele pimpinelas e feijão cozidos com a casca gosto quando ficam com sal a mais
às vezes a avó traz para a mesa algumas cebolas de escabeche que sobraram do
natal eu e os meus primos comemos na cozinha na mesa comprida onde há sem-
pre café na cafeteira coberta com um tapa bule e pão grande no cesto de verga
a noite de são joão é sempre mágica ouvimos contar histórias de encantos e
feiticeiras o fernão aproveita para nos meter medo quando estamos sentadas
no banco de correr da cozinha num dos pés ele põe uma corda fininha que
puxa e o banco começa a andar
no centro da mesa está um candeeiro de petróleo que projecta sombras dis-
formes são feiticeiras diz o fernão e a rita e a teresa dão gritinhos de medo e a
tia filó vem à cozinha ver que gritos são aqueles
a tia filó namora há muitos anos com o vieira na noite de são joão ela quer
sempre saber se vai casar com ele ou não deita azeite num copo com água e
12 Meses no Funchal044
procura adivinhar o significado da figura que se forma outras vezes faz a
sorte com um ovo acabou solteira e com a mania de ir ver casamentos em
são pedro e na sé
as primas e eu prendemos uma chave num fio de cabelo que suspendemos
sobre um copo a chave oscila bate no rebordo as vezes que bater dão a letra do
nome do homem com quem casaremos
mas o encanto maior é ir ver a sombra no mar vamos até à parte redon-
da do fim do cais ali estou eu projectada com os meus pais sou tão peque-
na estou de mão dada com a minha mãe que bom para o ano estaremos
todos vivos
são só um quarto de quilo mas são tão bonitos e cheiram tão bem
a minha mãe encarregou-me de partir a fruta para a salada é quinta feira
de corpo de deus a família virá para ver passar a procissão a minha mãe fez
bolo de nata tirada do leite durante duas semanas há canja e sandes de
galinha e de carne assada a salada de fruta não pode faltar há anos em que o
ananás vem dos açores mandado pelo tio jorge
gosto do cheiro que o ananás deixa nas mãos corto a laranja de umbigo que
também veio dos açores já deitei a papaia tem uma polpa macia é a vez de cor-
tar os morangos gosto de ver-lhes o coração é um fruto lindo os que parto
cheiram bem pena serem só um quarto de quilo
neste ano saio na procissão levo a farda branca do colégio quando pas-
sei à minha porta estavam todos à janela a ana sentada em cima de uma
almofada parecia uma boneca a minha avó está contente porque a neta
saiu na procissão
as ruas por onde passámos também se enfeitavam com murta levei um
raminho para casa cheguei já era alpardinho estavam a beber os licores feitos
pelo meu pai e a minha mãe falava na verbena de são pedro que é o seu santo
predilecto diz sempre com orgulho que nasceu na freguesia de são pedro que
é onde moramos agora
António Fournier (Organização)045
o colégio fica ali ao lado este é o mês do sagrado coração de jesus inter-
rompemos as aulas ao meio dia quando toca a sineta vamos para a capela
rezar a ladainha
estamos na aula de inglês a dona gabriela a nossa elegante professora per-
gunta-nos qual o mês do ano em que os dias são maiores entreolhamo-nos não
sabemos ela junta os lábios grossos e pintados de vermelho une-os em forma
de beijo e diz “june”
15 de Novembro de 2007
12 Meses no Funchal046
Julho
Ruas de JulhoVítor Sousa
Já muito tempo se passou desde que me semearam nos tempos desta
cidade. Séculos. Nasci e penei longe, na Mouraria. Pelo bulício daquelas ruas,
rumorejavam apelos de novos Mundos, e era de Belém, diziam, que partiam
naus e caravelas para os lugares impossíveis da quimera. Não compreendia a
ânsia daqueles que queriam dilatar o Mundo, quando a pequenez do meu já
era de uma infinda dor. Um dia, bêbado, arrastei os pés descalços pelos solos
torcionários, mas apagou-se-me a consciência durante a viagem. Não me
lembro de chegar a Belém, mas lembro-me de que nunca mais regressei ao
bairro onde gostava de agonizar, para viver a morte onde nasci. Muitos anos
depois, quando o sonho de morrer na Mouraria se desfazia no degredo da
segunda descoberta, descobri-me, quase anónimo, nas letras de um poeta.
Nem velho era, mas converteram-me no “velho do Restelo”. Até compreendo
que, com o bafo do vinho rasca que deveria inquinar o ar quando vomitava
agoiros, aquele poeta semi-cego me visse velho. Perdoo-o. Mas nunca lhe
perdoei ter sido, por ele, roubado ao berço, impondo-me o Restelo. Redimiu-
-se, porém, com uma nova mentira, atribuindo-me um “aspecto venerando”
que o fingimento poético exigia.
Eu detestava o Restelo, porque de lá via as águas, e aquela opressora linha do
horizonte. Na minha alienação de bêbado, o sufoco aumentava perto das águas,
porque sentia o fio do horizonte aferroar-se à garganta, esmagando a imensi-
dão do meu nada. Nunca tinha confessado o medo que o mar e o rio me infun-
diam. Não podia fazê-lo, aliás, porque não tinha amigos. O meu verbo era
mudo lá fora. Só tinha voz dentro de mim. Mas, naquela manhã de Julho que
se eclipsou nas brumas da memória, eternizando-se em letras de um fulgor
alheio, o meu medo infiltrou-se, clandestino, na armada que zarpava, anteci-
pando monstros nebulosos nas águas plácidas do Tejo. Deverão ter tentado
António Fournier (Organização)047
calar-me, não sei. Mas sei que me puniram, detendo-me num calabouço.
Depois, lançaram-me na turbulência dos meus temores, e exilaram-me num
local de onde não podia fugir deles.
Era uma ilha. Ilha da Madeira, como a baptizaram. Cheguei à ilha numa
tarde fúlgida de Verão. Se certas estavam as contas do meu desespero, corria o
mês de Julho. Depois de tanto tempo, sei que, naquela tarde, nasceu o triste
fado da minha eternidade, noutros. Quando lá cheguei, desembarquei sem
mais nada para além do ferrete do ostracismo. Ao meu lado, muitos abandona-
vam a caravela curvados pelo peso do estigma, mas só eu sangrei a virgindade
daquela terra. Caí e amparei a minha implosão com as mãos. Fitei-as, e no
caudal de sangue desfilavam as almas feridas das esquinas.
Comecei, desde logo, a trabalhar a terra virgem, desflorando-a com as minhas
mãos de tantos chãos. Os homens trabalhavam sem tréguas, porque se avolu-
mava a crença na elevação daquela vila a cidade, por graça régia. Roubávamos
à terra o ar selvagem e puro, vestindo-a com as cores da civilização. E a civili-
zação não se fazia sem a cruz inquisidora. Por ordem do Rei, grande parte dos
recursos foi canalizada para a construção de uma Sé opulenta, perto do mar. O
Rei, de filiação divina, queria que a Sua omnipresença fosse perceptível logo à
chegada, e por isso os homens aproximaram a Cruz de Cristo dos céus. Por
insistência minha, trabalhei nos pormenores finais da Cruz. Queria, lá em
cima, sentir-me mais perto de um céu em que não acreditava, e de uma divin-
dade que me abandonara. Nos escassos minutos de descanso, enquanto os
companheiros de degredo regressavam ao solo, eu levitava sobre aquele mar
de funcho, e sussurrava ânsias e segredos à liberdade que voava. Ainda hoje,
séculos depois, as minhas ânsias de liberdade elevam-se quando uma gaivota
pousa no cimo de uma cruz, e os meus segredos viajam nos trinados crípticos
que ela oferece ao vento.
Desde a minha chegada à ilha, percebi que, para me cumprir como implo-
são, não podia coabitar, sempre, com o chão. Só cai quem se eleva, e eu, naquela
condição rastejante, nem queda conseguia ser. Quis ser, então, a altura, pelo
que solicitei a minha inclusão nos trabalhos da torre sineira. De manhã, esca-
lava os andaimes, já com o escasso farnel que me garantia o dia. Trabalhava,
comia e repousava lá em cima, na minha miséria alta. Por essas alturas, a soli-
dão era descontínua, já que mantinha algum contacto com um navegador
proscrito, acusado de incitar uma rebelião de escravos, durante a viagem para
a ilha. Não o abordei, porque nunca abordava ninguém. Mas ele reconheceu-
-me. Disse-me que integrava a armada que partiu de Belém, na manhã esque-
12 Meses no Funchal048
cida da minha eternidade. O seu discurso jorrava, candente, mas mutilei-o
porque só uma curiosidade me satisfazia, e nenhum mundo novo me interes-
sava. Então, soube que o fio do horizonte era ilusório, como um adiamento
constante. Recebi a novidade com um suspiro indefinido, abafado por um
escarcéu festeiro. A graça régia havia chegado, finalmente. Eu não sabia viver
sem os meus medos.
A comemoração da elevação a cidade foi longa e ruidosa, como só as festas
religiosas conseguem ser. No templo, um aglomerado indefinido agradecia a
Deus e ao Rei o Reinício. Nesse dia, um novo pedido fez-me sineiro. Vi e ouvi
tudo, através de uma frincha no telhado. Depois de o Corpo de Cristo ser aco-
lhido por saciados e famintos, era a hora de ressoarem os sinos. Irromperam
badaladas estranhas, guturais, num som em gradual definhamento. Nas faces,
os trejeitos dubitativos duraram pouco. Todos sabiam por quem dobravam os
sinos, mas ninguém soube quem com eles se dobrava. Com a corda apertada
ao pescoço, desfiz-me naquelas badaladas secas, e vivi a minha morte numa
dor sem horizonte.
Nem o meu adeus pude escolher. Se fosse poeta, reinventava-me só para
poder morrer num alívio. Mas todas as cidades precisam de uma alma escura,
pelo que a Cidade do Funchal não podia nascer amputada. Votaram-me a um
novo degredo, desta vez fragmentado pelas esquinas promíscuas. Ao longo dos
séculos, quase tudo mudou nesta cidade que vi nascer, e não me deixa morrer.
Os tempos deram novos matizes ao sangue e sabores renovados à dor antiga.
Angústias sem rosto petrificaram-se em calçadas museológicas, e anciãos
falam de ruelas onde já não podem morrer.
Ruelas onde já ninguém pode morrer, menos os loucos, que também me
herdaram. Todos os anos, eles descem até ao centro da cidade, num ritual
apócrifo de consagração aos guardiães ocultos da cidade. Julho. “Julho é o mês
do nosso orgulho”, vociferam. Quando alguém os aborda, alegando que “Nin-
guém vos percebe”, riem-se com o despudor de sãos bêbados, e respondem
que “Ninguém não existe”.
Em Julho, principalmente em Julho, a alma velada do Funchal exibe-se,
com todo o mórbido esplendor da fidelidade à dor. Desde os adros das igrejas,
os homens das esquinas, em silêncio, assistem ao tropel de destinos cruza-
dos. Asseguram a identidade da cidade quando os nativos tiram férias dela, e
estrangeiros as invadem. Alguns erram pela cidade, num silêncio soturno e
curvado. Por vezes, quando vêem um louco a gritar o absurdo calado, des-
viam-se ou escondem-se, porque sabem que a cidade só lhes reserva as esqui-
António Fournier (Organização)049
nas se respeitarem o pacto do silêncio. De outro modo, desfazer-se-iam na cal
asséptica que consome a loucura. Muitos loucos, quando compreendem,
finalmente, o apelo de silêncio da cidade, calam-se e abrigam-se em esquinas
renovadas. Mudos, vivem durante todo o ano a lealdade desprezada, mas não
lamentam a sua sorte. Assumem o legado da alma obscura, e convertem-se
em escudeiros lúcidos de uma cidade em trânsito imóvel. Uma cidade de
Ninguém. A cidade deles.
Quando os homens abandonam as esquinas, andam com a palma das mãos
viradas para o alto, e fitam-nas com uma intensidade hipnótica. Têm nas mãos
todas as ruas do Funchal, em plantas sobrepostas desenhadas a sangue por
gerações de quedas. Os mais velhos, que herdaram linhas traçadas por poeira
e pedras, ainda hoje, cansados, procuram novas ruas para cair e dormir.
Durante o dia, todos jazem nos adros das igrejas, ou nas escadas de uma
capela, movidos por impulsos que não controlam, nem compreendem. Quase
sempre, no alto, uma gaivota sobranceira acompanha-os no silêncio, perscru-
tando a cidade. Ambos partem quando repicam os sinos tumulares de mais
um dia. Nessas badaladas, eu canto os lamentos seculares daquelas almas que
a cidade ignora.
Alguns homens não regressam às esquinas, no crepúsculo, e caminham por
camadas extintas da cidade, perdidos num tempo paralelo. Quando desapare-
cem, diz-se que foram morrer em ruas que já não existem. Nas ruas de Julho,
que só nós recordamos, memórias de uma cidade de Ninguém.
12 Meses no Funchal050
Agosto
Agosto Nelson Veríssimo
Agosto só motiva quem muda de terra. Voltar à ilha, ficar pelo Funchal com
um trabalho da Faculdade para fazer, destinado a uma cadeira irremediavelmente
remetida para a segunda época de exames, arrasava o mês de supostas férias, ora
soalheiro ora sombrio. Os meus amigos estavam no Porto Santo ou nas Caná-
rias. O bar do Teatro, para mim, estava mesmo vazio. Andava com aquele caderno
de notas, aconselhado no curso, à procura da história que não aparecia.
Se a história recomendada fosse de livre escolha, estaria safo. Havia mulhe-
res despertas para amores secretos que nem a pura ficção suplantaria. Mas o
tema proposto não se compadecia com encontros estivais. O professor solici-
tara episódio insólito da emigração madeirense. Faltava-me paciência para pro-
curar velhos emigrantes e descobrir aventuras singulares em arraiais de Verão,
por essa ilha de festas em continuados fins-de-semana.
Havia uma jovem de cabelos negros que falava entusiasticamente das festas
em São Vicente, numa dessas tardes de café. Não conseguia entender aquele
seu arrebatamento, e ela desafiava-me a lá ir. Talvez por ser mais velho e estar
pouco habituado a essas festas que agora atraíam a juventude para os velhos
arraiais. Pormenorizadamente, ela descrevia-me, com particular afecto, a dis-
coteca ao ar livre e as muitas barraquinhas. Vinha-me, porém, à memória ima-
gem diversa. Era a banda de música no coreto, brincos e despiques esganiça-
dos, a procissão, a espetada nos braseiros e muitas pessoas que, apinhadas,
subiam e desciam ruas estreitas, umas alegres, outras a cumprir o ritual.
A moça de cabelos de azeviche não parava de falar da festa dos Lameiros e
da animação que por lá costumava existir. Eu necessitava de uma história,
uma boa história, relacionada com a emigração madeirense, e que me poderia
render uma nota elevada na disciplina final da licenciatura em Jornalismo. O Fun-
chal parecia esgotado. Pelo dia, contava o bronzear. As noites tinham pouco
António Fournier (Organização)051
interesse. Uma monotonia. Nem a música conseguia arrancar das cadeiras
imperturbáveis bebedores. Havia casais de turistas mais folgazões, umas
moças estrangeiras interessantes e as habituais da terra nas esplanadas e
bares. São Vicente pareceu-me hipótese interessante. Pelo menos, ficaria a
saber o que tanto entusiasmava aquelas meninas, com casa arrendada para o
fim-de-semana glorioso nos Lameiros.
Com automóvel emprestado, lá me decidi a conhecer o arraial predilecto da
juventude. Nada de especial, em princípio, pude constatar. Boa música. Muita
cerveja. Grande movimento. Diversão com muitos copos, e pouco mais. De modo
que decidi espreitar as mercearias e bares das redondezas. Gente mais velha.
Aqui poderia estar a chave. O segredo era ouvir. Descobrir os embarcados, acer-
car-me deles e desencantar a cobiçada história.
Havia conversas exaltadas sobre a Venezuela, sem qualquer proveito. Assal-
tos a supermercados e fazendas, sequestros e pouco mais. Sem pronúncia cas-
telhana, um homem já idoso, de vez em quando, lembrava que, na África do
Sul, tudo era diferente. E nada mais adiantava. Fixei-me nos seus gestos e pala-
vras. Parecia esconder qualquer coisa. O chapéu de palhinha não lhe cobria só
a cabeça. Por muito que lhe perguntassem as razões da diferença, ele agarrava-
-se ao copo e sorvia largo gole de cerveja, sem deixar escapar qualquer explica-
ção. Eu também bebia cerveja no canto do balcão, indiferente às conversas do
grupo que me rodeava. A jovem de cabelos negros bem se esforçava por me
desviar daquele posto de observação, mas, dizia-lhe baixinho, que me parecia
divisar ali a ponta de uma boa história, o que ainda mais a aborrecia.
Fora para Jornalismo por gosto, apesar de não receber apoio consensual de
familiares e amigos mais próximos. A média do 12.º ano permitia-me escolher
outro curso. Prevaleceu, todavia, a primeira opção e, já quase no final da licen-
ciatura, podia afirmar que fora correcta. Não estava, porém, habituado a traba-
lhar em Agosto. Aquela malfadada disciplina a isso obrigava. Julgo que o objec-
tivo era incutir nos futuros jornalistas a ideia de que em qualquer mês se pode-
ria fazer uma reportagem, ou, melhor, de que haveria que inventar notícias
para um mês de agenda política menor. O homem, que sempre lembrava as
diferenças da África do Sul, apercebeu-se da minha insistente atenção às suas
enigmáticas frases soltas. De repente, deixou o grupo e dirigiu-se para o largui-
nho em frente da mercearia.
Aproveitei o momento e acerquei-me. Desconfiado, perguntou-me se era da
polícia. Expliquei-lhe que estava ali por causa das amigas que me acompanhavam.
Elas tinham-me convencido a conhecer a festa dos Lameiros. Verdadeiramente,
12 Meses no Funchal052
o que pretendia era uma boa história sobre emigrantes, por causa do curso que
frequentava, e aproveitava o tempo para ver se conseguia ouvir alguma coisa inte-
ressante. Apesar destas explicações, o homem não parava de me fazer perguntas,
sendo a última sobre a minha intenção ou não de publicar essa história em algum
jornal. “Não. Ainda não sou jornalista. É só um trabalho para o curso e com nomes
fictícios.” Voltou a entrar na mercearia e pediu mais uma cerveja, colocando-se no
mesmo lugar. Defronte, imitei-o na bebida.
Passado algum tempo, saí convencido de que ali nada conseguiria obter.
E deambulei pelo espaço da festa até às sete, hora em que habitualmente termi-
nava. Numa das minhas fugas ao grupo, cansado com a estridência da música,
encontrei o homem das diferenças, e perguntei-lhe se ia ou não explicar-me as
suas razões. Confessou, então, que não era dali. Nascera e vivia também no
Funchal. Só estava nos Lameiros pelos amigos e por uma mulher, já bem velha,
que nos últimos anos habitava naquele sítio, na companhia de uma filha viúva.
Naquela maior aproximação, convidei-o para um encontro tranquilo no Fun-
chal. Ele concordou: na terça-feira seguinte no bar junto à porta principal do
mercado, por volta das 10 h.
Esperei-o pontualmente no dia aprazado. Quando chegou, já eu tomava
um café na esplanada. Sentou-se e pediu também um café com leite. Foi difí-
cil o retomar da conversa. O ambiente também não ajudava. Pessoas que
entravam e saíam do mercado. O trânsito nas ruas circundantes. Turistas que
fotografavam a fachada. Depois de muitos rodeios, haveria de brotar a histó-
ria que me fez passar na famosa disciplina e deixou-me o resto de Agosto
livre para outros devaneios:
“Eu fui para o Cabo ainda nem tinha 15 anos, com uns primos meus mais
velhos. A gente arranjou trabalho na pesca num navio duns rapazes duma
freguesia da costa de baixo. Eu não sabia pescar, nem nadar. Mas tudo se
aprende. O pior é que um dos pescadores da embarcação resolveu tomar
conta de mim, sem eu pedir. De tudo o que eu ganhava tinha que lhe dar
metade. Às vezes, escondia o que recebia a mais, mas ele ameaçava-me e
batia-me. Cada um deles tomava conta de um novato, dizia-se, e a todos iam
exigindo metade dos salários. Assim, eu não conseguia amealhar nem man-
dar nada para a Madeira, para a minha mãe se sustentar e depositar no banco.
Falavam que noutros barcos também era igual. Passaram-se cinco anos e não
conseguia levantar cabeça. Ele dizia que se eu não entregasse o dinheiro ia ser
perseguido, e até podiam matar-me. Um meu primo, mais chegado, tinha
António Fournier (Organização)053
vivido o mesmo, mas conseguiu livrar-se do seu protector depois de uma vio-
lenta rixa. Então, enchi-me de coragem e, quando a gente estava a pescar em
mar alto, dei-lhe um empurrão, abiquei-o, e até hoje ninguém mais soube
dele. Foi dado por desaparecido, em acidente de trabalho. Depois mudei de
embarcação, e nunca mais me fizeram uma daquelas. Carrego com isto para
a cova, mas olhe que só assim consegui fazer a minha vida. E à mãe desse
malvado, nos últimos anos, mando sempre entregar algum dinheiro, quando
vou à festa dos Lameiros, só porque sei que ela precisa.”
12 Meses no Funchal054
Setembro
Violante, olhos de marHelena Marques
Subo à torre da Casa Grande para olhar o mar. Venho todas as tardes, mesmo
quando uma bruma espessa e leitosa desce das montanhas e cobre campos,
ruas e casas com um véu de mistérios. O mar é como o tempo: indecifrável e
inquietante na sua infinita capacidade de surpreender. E embora o mar conti-
nue a não trazer notícias de Estêvão e o tempo persista em não anunciar a
minha iminente entrada no mosteiro, este espaço de solidão e de silêncio que
todos entendem e respeitam nesta casa, contribui para reconciliar-me com as
incertezas da minha vida. Os avós, minha única família, envelhecem visivel-
mente, de mês para mês, procurando manter a mesma confiança no regresso
de Estêvão. Mas porque eu própria já não consigo afastar premonições e temo-
res de solidão, decidi assegurar-lhes com tranquila e inabalável convicção que,
se Deus entender chamá-los à Sua presença antes de Estêvão vir reclamar a sua
prometida, poderão partir em paz, porque saberei honrar o pacto estabelecido
com eles e assumirei, de alma serena, os votos monásticos.
Venho todos os dias à Casa Grande, porque D. Maria de Noronha, minha
madrinha, que foi amiga dilecta de minha mãe e mantém por minha avó pro-
funda estima, sempre me franqueia as portas e o coração e me acolhe como
se sua filha fosse. Para aqui chegar, tenho apenas de atravessar o jardim, pois
foi nas suas vastas orlas exteriores que fizeram casa as famílias mais próxi-
mas do capitão-donatário. É um prazer quotidiano percorrer este enorme
espaço, rico em flores de múltiplas espécies e cores, que crescem em exube-
rância sob as frondosas copas de árvores robustas e nobres, árvores nativas,
desconhecidas no Reino, sobreviventes do grande incêndio que, há muitas
décadas, abriu espaço, lá em baixo, para a construção da cidade. Foi assim que
aprendi pela voz de meu avô, Afonso Peres, escrivão que foi, na juventude, de
João Gonçalves Zarco, o primeiro capitão-donatário do Funchal, e cumpre as
António Fournier (Organização)055
mesmas funções, mau grado os anos, junto de seu filho e sucessor João Gon-
çalves da Câmara, o senhor desta cidade, desta gente e desta casa, em nome
de El-Rei Dom Manuel.
A Casa Grande, que toda a cidade conhece por Casa das Cruzes, foi constru-
ída num lugar alto, sobranceiro à baía, bem perto da Igreja da Conceição de
Cima, a que o novíssimo Mosteiro de Santa Clara se apoiou para crescer. Quando
D. Isabel de Noronha, freira clarissa em Beja, regressou ao Funchal para assu-
mir o alto cargo de primeira abadessa do mosteiro de Santa Clara, os meus avós
levaram-me à praia para assistir ao desembarque da filha mais velha de João
Gonçalves da Câmara e D. Maria de Noronha, aos quais uma bula papal havia
recentemente concedido o padroado do mosteiro. Porque minha avó tinha ensi-
nado D. Isabel e todos os seus irmãos a ler, escrever e contar, tivemos fácil e
rápido acesso à nova abadessa. Apesar de eu ter apenas sete anos nesse Inverno
de 1497, recordo claramente o carinho com que D. Isabel abraçou minha avó, e
a minha própria emoção ao fazer-lhe a vénia e beijar-lhe a mão. E recordo, tam-
bém, a curiosa excitação de me encontrar tão perto da nau que trouxera as mon-
jas de Lisboa e que me pareceu maior do que olhada de longe, da torre da Casa
Grande, mais volumosa e mais sólida para enfrentar com segurança a vastidão,
o poder e os perigos do oceano, de que sempre ouvira falar.
Acompanhei, depois, os meus avós às cerimónias religiosas que assinala-
ram, festiva e solenemente, a inauguração do convento há tanto tempo espe-
rado pelas gentes da Madeira, que sempre e muito tinham sofrido ao ver partir
para o Reino as jovens que respondiam ao apelo da vocação monástica.
Apesar da clausura imposta às clarissas, D. Maria de Noronha tinha rece-
bido do Papa permissão para visitar suas filhas (D. Joana também tomara véu
em Beja e regressara à Ilha com sua irmã), podendo fazer-se acompanhar de
algumas familiares e amigas. E foi assim que me tornei frequentadora assí-
dua do convento, atenta às histórias que ouvia contar às monjas, e logo fervo-
rosa admiradora de Clara e Francisco de Assis, esses eleitos de Deus que
encontravam, no serviço e no bem dos outros, paz e alegria para cantar as
maravilhas da Criação.
Ao longo dos meses e anos seguintes, acompanhei minha madrinha,
inúmeras vezes, nas suas frequentes visitas a Santa Clara. Enquanto mãe e
filhas conversavam em terna alegria, compensando as saudades do prolon-
gado afastamento, passeava eu pelos jardins e pelos claustros, na compa-
nhia de jovens freiras ou noviças, quase todas amigas e companheiras de
D. Isabel e D. Joana, com elas vindas do convento de Beja ou a elas reuni-
12 Meses no Funchal056
das, em comunhão de fé, na hora jubilosa da chegada. Sempre gostei, par-
ticularmente, do claustro gótico, com as suas austeras arcadas de pedra e o
seu jardim central, zelosamente tratado. E também me agradava muito o
jardim dos cheiros, essa pequena horta, junto das cozinhas, onde cresciam
dois esguios funchos e um loureiro e eram cultivadas plantas igualmente
odoríferas, como a hortelã, os orégãos, a segurelha, a salsa, a erva cidreira,
a erva doce e tantas outras, destinadas a ser utilizadas, com sabedoria e sub-
tileza, na confecção das refeições e da delicada doçaria que se tornou famosa
em toda a Ilha.
Não tenho a menor dúvida de que serei, no mosteiro, tranquilamente feliz.
Sofrerei, por certo, a ausência definitiva de Estêvão – mas também a sofreria, e
talvez mais dolorosamente ainda, se permanecesse no mundo. Agrada-me o
silêncio da clausura, apenas cortado pela voz dos sinos. Aceitarei sem reserva
as regras e a disciplina. Gosto das orações e dos cânticos, da paz e da solidão
pessoal - e espero que D. Isabel, na sua indulgência, me permita subir à torre
da Igreja e olhar o mar, como faço aqui, na Casa Grande. Se tiver de entrar no
convento, a única dor que levarei é a de ter perdido Estêvão, é de Lisboa o ter
levado de mim.
Perguntei, uma vez, ao meu avô, como era a vida na Corte. E ele, naquele seu
modo lento de quem pesa pensamentos e palavras, respondeu-me que na Corte
tudo se passa como aqui na Ilha, só que numa escala muito mais vasta e numa
medida muito mais sumptuosa, mais complexa também, em que os ricos são
incomparavelmente mais ricos, os pobres tão pobres como os nossos mas em
muito maior número, e as intrigas mais vis, ínvias e traiçoeiras – enfim, dema-
siada gente, demasiados enredos, tramas e tumultos para um soberano gerir e
superar, a par dos pesados negócios do Reino com o resto da Europa e do cres-
cente avanço dos Portugueses pelos mares desconhecidos.
Não sei se partirei, algum dia, numa nau, rumo à Corte. Não sei. Mas gosta-
ria tanto… E fico-me a imaginar como será uma viagem pelo mar e pelo tempo,
que sentiria eu se percorresse os caminhos das ondas, se perdesse a terra de
vista e ficasse apenas, dias e dias e dias, entre céu e água, entre nada e nada.
Será belo ou assustador? Ou belo e assustador ao mesmo tempo? Imagino que
será muito belo e um pouco assustador. O avô diz e repete que só os insensatos
não respeitam o mar. Eu respeito o mar, sem dúvida que respeito, e sei que teria
medo de uma tempestade, teria pavor das vagas altíssimas e dos ventos indo-
máveis, como meu pai terá sentido por certo. Mas se me fosse dado viajar até
ao Reino, como viajou Estêvão, correria o risco sem hesitar. Entraria na nau
António Fournier (Organização)057
sem temores e ficaria na amurada a ver as gaivotas regressarem à praia e a terra
desaparecer na distância. E permaneceria apoiada à amurada a olhar o mar,
incansavelmente a olhar o mar, à espera do porto desconhecido.
Quando quer arreliar-me, o avô chama-me Violante-olhos-de-mar. E explica
que não é apenas porque a cor dos meus olhos passa do azul ao verde, percor-
rendo todas as tonalidades intermédias, mas também (continua ele, troçando
de mim) porque é da contemplação do mar, das tempestades que o escurecem
até ficar azul escuro, da concentração de algas que o torna verde ou das calma-
rias que lhe devoram toda a cor, que esses cambiantes se alimentam. O avô ri
do meu embaraço, mas eu não levo a mal os comentários porque sei quanto me
quer bem e apenas pretende distrair-me da saudade dolorosa e permanente dos
pais que quase não tive. E essa saudade perene, essa profunda mágoa, essa
imensa nostalgia de um amor que não me foi dado receber, explicarão por
certo, e melhor do que qualquer outra coisa, as sombras que por vezes me obs-
curecem os olhos e lhes retiram a luz e o brilho. Penso, até, que essa orfandade
de alma nunca irá desaparecer dentro de mim – ou então desaparecerá somente,
e por graça especial de Cristo Nosso Senhor, no dia em que eu própria gerar
uma criança, um filho de Estêvão, e puder dar-lhe todo o amor que não tive
tempo de receber de meus pais e que, repetidamente o pressinto, me será então
devolvido com abundante generosidade.
Minha mãe morreu quando eu nasci, minutos depois de eu ter brotado dela
num último espasmo de dor. Colocaram-me nos seus braços que se estendiam
para mim. O seu rosto exausto e exangue iluminou-se ao aconchegar-me ao
peito e um sorriso de bem-aventurança entreabriu-lhe os lábios para logo se
apagar. Meu pai fechou-lhe os olhos, olhos de mar, olhos de morte, ajoelhou no
chão, junto da cama, e deitou a cabeça encostada à dela.
Dois anos depois, meu pai desapareceu num naufrágio, quando a caravela
em que seguia para Porto Santo, em missão do capitão-donatário, foi apanhada
por uma tempestade de ventos cruzados e se desfez contra os rochedos da
Ponta de S. Lourenço.
As únicas memórias que guardo de meus pais, inestimáveis memórias, são
os retratos de ambos, muito jovens, pintados por um mestre flamengo, um
desses homens sempre curiosos e ávidos de viagens que, na época áurea do
açúcar, vinham de Antuérpia à Madeira fazer a entrega pessoal de pintura sacra,
encomendada pelos ricos comerciantes locais para suas residências e capelas.
Alguns desses mestres pintores aceitavam pequenos trabalhos, enquanto aguar-
davam a partida de uma das naus que rumava aos Países Baixos, carregada de
12 Meses no Funchal058
açúcar. Os retratos de Simão e Leonor, meus pais, fixados na incomparável per-
feição da juventude, comovem-me até às lágrimas: encontro em minha mãe
estes meus olhos de mar de que fala o avô; e no meu pai, as mesmas sobrancelhas
alongadas para as têmporas sob a testa alta e o mesmo cabelo castanho claro, cor
de favo de mel, igual ao meu, segundo diz a avó.
Uma das razões por que subo, todas as tardes, à torre da Casa Grande é ver
as naus e as caravelas acabadas de chegar, como se me fosse possível adivinhar
a presença, em alguma delas, de uma carta de Estêvão – ou do próprio Estêvão.
Já lá vão três anos, tinha eu quinze, quando mestre Filipe Anes, seu pai, regres-
sou ao Reino, respondendo à chamada irrecusável de Francisco Arruda, mestre
de obras reais, então a trabalhar na construção do Mosteiro dos Jerónimos.
A mulher e os filhos partiram com ele, naturalmente, mas ficou firmado, entre
as duas famílias, o compromisso de Estêvão regressar logo que estivesse ini-
ciado na arte de trabalhar as cantarias, segundo os novos padrões alusivos aos
descobrimentos. Em três anos, recebi apenas quatro cartas de Estêvão, cartas
de muito bem-querer e confirmação de todos os nossos projectos, é certo, mas
tão poucas, tão espaçadas no tempo, que me deixaram marcas de insatisfação e
amargura. Procuro vencer a tristeza chamando-me à razão, obrigando-me a
raciocinar com lucidez e bom senso, repetindo, uma e outra vez, para mim
mesma, que são longas e acidentadas as viagens, sempre incerto o seu destino
final, impõe-se manter a fé e a confiança.
Procuro distrair-me olhando a cidade que não cessa de crescer a Oriente, em
torno da igreja de Santa Maria do Calhau, onde vivem os artesãos e suas famí-
lias. As ribeiras, que ficarão caudalosas e turbulentas com as chuvas de Inverno,
traçam riscos sinuosos de Norte para Sul, das montanhas até ao mar, e as pontes
de madeira que ligam as margens, começaram a ser substituídas por pontes de
pedra. Esta Casa das Cruzes onde me encontro é, sem dúvida, a mais nobre e
imponente da cidade, embora a nova classe abastada dos comerciantes de açú-
car comece a afirmar sua ascensão e importância com casas sobradadas, assen-
tes no antigo Campo do Duque, cerca da Sé, da Alfândega Nova, da Casa do
Concelho e do Paço dos Tabeliães, uma urbe nova e nobre que, segundo diz meu
avô, será em breve o verdadeiro centro do Funchal. Algumas dessas casas sobra-
dadas, com cobertura de telhas, ostentam pequenas torres, corpos centrais ele-
vados acima do telhado, com janelas nas quatro faces, que permitem uma exce-
lente visão do mar e da sempre esperada chegada das naus e caravelas.
Também os moinhos de açúcar cresceram por todo o lado e multiplica-se o
seu nome na toponímia da cidade: Largo dos Moinhos, Travessa dos Moinhos,
António Fournier (Organização)059
Beco dos Moinhos, Rua dos Moinhos. Até ao próprio mar se estendeu já a
influência do açúcar produzido nos engenhos locais, tornando-se comum,
Europa fora, falar da rota do açúcar como se todos os caminhos conduzissem à
Madeira, trazendo prosperidade para uns, é certo, mas deixando os que mais
trabalham na mesma vil e apagada miséria.
Passos leves estão a subir a escada, mas nem olho. Será, por certo, uma das
crianças em busca de companhia e de uma história, ou trazendo-me qualquer
recado. Mas nem olho. Continuo virada para poente, os olhos vagueando pelo
mar, acompanhando a eclosão do crepúsculo que, neste findar de Setembro, já
se reveste da majestade e do fulgor que atingirá o apogeu com o avançar do
Outono. O sol está tão baixo que incendeia o mar e a terra, acende brilhos e
reflexos, ouros velhos, vermelhos densos, laivos roxos, que cintilam e se mul-
tiplicam na ondulação das águas. Estêvão esteve aqui, comigo, em inúmeras,
inesquecíveis vezes, em crepúsculos como este. Partilhámos tantos momen-
tos semelhantes, unidos na quieta contemplação da beleza perdulária do
poente, dominados pela majestosa, gloriosa despedida do sol, que é como se
sentisse de novo o seu corpo a colar-se suavemente às minhas costas, numa
viva e quente evocação, numa dádiva mágica da memória. Mas logo uns bra-
ços familiares envolvem os meus e uma boca inesquecível percorre-me a nuca
e os ombros. Percebo então que não se trata de um fantasma provindo da
minha saudade desesperada. E volto-me dentro do seu abraço e sorrio como
sei nunca ter sorrido na vida, e olho-o com toda a paixão, com toda a luz da
minha imensa alegria.
No andar de baixo, soam risos e palmas. Estêvão e eu descemos a escada ao
seu encontro. #
12 Meses no Funchal060
Outubro
Aguarela de um outubro melancólicoMaria Aurora Homem
É outono.
Sinto-o nos pingos de água que como uma cortina, fecham o meu olhar
estendido pela praça. Aconchego-me num malvasia perfumado no canto da
esplanada e releio um poema de Baptista. Quando levanto os olhos já o sol,
fulgurante, se instala sobre o repuxo prateado, a centrar a ampla praça. Gosto
destes pequenos momentos que recorto na convulsão dos dias. Revoadas de
pombas baixam da grande árvore de fogo, rompem da torre e despenham-se
dos beirais à mão do milho que ondula no ar.
É outono e chuvisca a espaços. Estou só e adoro esta solidão propositada.
A fachada da Igreja do Colégio no seu maneirismo e aparente rigidez jesuí-
tica enquadra um canto da praça e convida à meditação. Em frente o municí-
pio, palácio oitocentista de equilibrada elegância limita-a a norte e alinha-se em
múltiplas varandas e janelas a vasculhar o que lhe passa à porta. Leda e o Cisne
pousam no jardim interior. Dois ciprestes rematam a frente, em arcos, do Palá-
cio Episcopal e a escadaria é um convite assinado a açúcares e a sonhar a Flan-
dres em roteiros de arte.
É outono, o sol foi-se, caem sombras sobre a paisagem, sombras leves, ras-
gadas a tempos por résteas de luz.
Não sei se te amei no comboio do Vouga a resfolegar pelas serras beirãs. Ou se
te inventei nas margens do Sena, na descida dos Champs Elysées ou nas areias do
Chambre d’Amour em Biarritz, talvez na mansarda de Rue Royale de Sainte Marie
em Bruxelas, ou no Blue Hoot em Düsseldorf. Possivelmente quando te aconche-
guei ao peito na Casa das laranjas ao rés duma levada em Câmara de Lobos.
É outono, penso em ti, deixou de chover, sinto-me menos só.
Pela praça um grupo de políticos polemiza apressado com ar de quem
manda. Uma sobranceria típica de pequenos ditadores espartilhados em fatos
António Fournier (Organização)061
escuros e gravatas exuberantes. Um padre de sotaina apertada minuciosa-
mente desce as escadas do Colégio. Atravessa em passo miúdo a malha preta e
branca que atapeta o chão. Quatro crianças de bata azul debruçam-se no fonte-
nário onde agora se pendura um arco-íris. E de novo uma chuva muito fina
empurra os passeantes para a protecção das portas.
É outono. E estou à tua espera numa tarde incaracterística, cheira a malvasia
e a terra molhada.
O meu olhar vai trazer-te de longe, acima de quem passa, o corpo recortado
na moldura da praça, o passo elástico, os ombros levantados, cabelo aloirado a
descair na testa. Pareces-me neste momento, a esbanjar juventude, um atleta
na maratona da vida. Mesmo de muito longe sei que és tu. E que chegarás pon-
tualmente como nas outras tardes (eu adianto-me sempre, sobressaltada).
Estás mais perto: a mão a afastar o cabelo da testa, a alisar a face, a descair
no bolso direito. A cara a abrir-se num sorriso jovem. A tua boca aflora o meu
rosto. Acredito que saibas do meu coração alvoroçado, da intensidade da minha
ternura, deste amor tenro que se encostou a estes dias outonais em que tudo
parece esmaecer à nossa volta.
Não sei quantas vezes te amei desde que te instalaste nos meus olhos talvez
nos campos de Tours, nas noites de serenata na Sé Velha, nas corridas de toiros
de Pamplona, no Trastevere num setembro aloirado, em Sintra, na Estalagem
da Raposa ou sentados no Louvre enfeitiçados ao olhar de Gioconda ou no Prado
extasiados com as meninas de Velásquez. Talvez num bar de hotel ao sabor
dum gin tónico ouvindo o João Luís a tocar Gershwin. Certamente num terraço
sob o Cabo Girão a ouvir Albinoni de madrugada.
É outono. Estás comigo. E chove. E saboreio um malvasia e estendo o olhar
sobre esta praça e esbarro com o obelisco nacionalista que Raul Lino aqui dei-
xou rematado com as armas da cidade. Ficarás o tempo exacto de tomar uma
bica. Tens o mundo todo à tua espera.
A chuva sossegou. Apressadas, as pessoas cruzam-se na praça. Parece-me
que o sol se pôs no teu olhar. Aceno-te uma despedida. É tarde na tarde deste
outono sereno. É outono. Também em mim. Tenho 70 anos. E preciso destes
momentos para segurar a vida.
12 Meses no Funchal062
Novembro
No Funchal, o maquinistaAntónio Fournier
o coração abandona o corpo
para apanhar o último comboio
Yao Jingming
Em memória de Ernesto Leal
Não sei se sabe, meu jovem amigo, no fundo as melhores respostas são
aquelas que se dão a perguntas inexistentes. Mas está bem, aprecio a sua
curiosidade. São as iniciais do meu nome: Ez Loomis. Mas isto não é um livro,
é só um pequeno caderno onde vou anotando as minhas impressões. Sabe, é
preciso paciência para traduzir a memória em imagens. Paciência e algum
sentido de humor. Viajar é uma guerrilha constante contra o esquecimento.
Quando se começa a viagem depois é sempre difícil parar. E quando isso acon-
tece, há a tendência a cair na melancolia. Por isso evitamos estar parados
muito tempo no mesmo lugar. Somos como árvores sem raízes. É como se
com o tempo as nossas raízes no mundo se tornassem fluidas, aquáticas, olhe,
um pouco como esta cidade.
Sim, sempre fui um viajante. Está-me no sangue. Quando era criança tinha
um caderninho como este e passava horas a desenhar os enormes navios trans-
atlânticos que fundeavam diante da minha cidade. Li recentemente que o Nef-
talí Reyes tem uma locomotiva em sua casa em Isla Negra. E não era o Stelio
Éffrena que tinha um navio de guerra verdadeiro entre as árvores da sua pro-
priedade num lago não longe daqui? Percebo-os. Abandonaram a vida de
nómadas, mas é como se continuassem a viajar numa dimensão paralela. Pes-
soas como eles têm muita dificuldade em resistir ao apelo da viagem. Nas
António Fournier (Organização)063
noites de luar, sentem como que uma agitação no sangue, aquele arrepio que
percorre o corpo todo antes da partida. Então, levantam-se e entram nas loco-
motivas ou nas canhoneiras dos seus sonhos. São como sonâmbulos. Sonham
a vida que tiveram. Creia-me, são poucos os que têm essa sorte.
Tem razão, já explico: imagine ontem quando cheguei, uma criança em
terra firme, entretida a desenhar barcos da janela do seu quarto. Diga-me: não
lhe parece que para aquela criança que vê ao longe o comboio em que eu viajo,
a atravessar a laguna rente ao espelho de água, é como se visse um navio a
atravessar a linha do horizonte? Agora imagine, quando ainda havia comboios
e barcos a vapor como no meu tempo. Então era a mesma coisa: uma chaminé
a deitar fumo ao longe. É natural que aquela criança se ponha a imaginar para
onde irá aquele navio, que paragens desconhecidas visitará. Invejará a sorte
dos passageiros, imaginá-los-á aventureiros, românticos, destemidos. Sonha
que está dentro daquele navio que vê ao longe.
Agora veja a ironia: eu que estou naquele comboio, que não conheço aquela
criança, nem ela me conhece a mim, de repente passo a estar dentro do seu
sonho. Eu que passei a vida a viajar, estou na sua linha de horizonte. Mas já não
na minha. É esse o meu dilema. Aquela criança preferia estar no meu lugar, e eu,
se calhar, hoje, preferia estar no lugar dela. A certa altura, percebi que o que pro-
curava, tinha deixado para trás. Quando pensamos ter finalmente encontrado o
que procurámos a vida inteira, somos já diferentes, irreconhecíveis a nós mes-
mos. Quer simplesmente dizer que crescemos. Como o gato, que tem sete vidas,
e precisa de morrer seis vezes para conhecer a última. Olhe, é como se começasse
aqui hoje, terça-feira, um de Novembro de 1966, uma nova vida para mim.
Sabe, na minha terra havia um homem, a quem chamavam wizard of the
north, que um dia saiu de casa decidido a conhecer o mundo, e se pôs a cami-
nhar, sempre ao longo da costa, com a linha do horizonte ao fundo. Viajou
durante semanas. Viu os barcos a passar ao longe, assistiu ao nascer do sol,
atravessou os campos, encharcou a roupa à chuva e caminhou ao sol, cantou nas
feiras, venerou os mortos e adormeceu a olhar as estrelas. Depois de ter cami-
nhado muito, um dia reconheceu à sua frente a porta de casa: tinha voltado ao
ponto de partida! O feiticeiro descobriu que afinal vivia numa ilha. Foi preciso
ele fazer essa caminhada para perceber realmente o que isso significava. Pois
bem, também eu sou uma espécie de aprendiz de feiticeiro, ando a fazer o meu
percurso circular, só que a uma ilha muito maior.
Sim, lembro-me muito bem da minha infância. Passava as noites a obser-
var o Atlântico. Às vezes, a lua surgia inteira e ficava a cintilar sobre as águas.
12 Meses no Funchal064
Era uma lua de coral, um enorme olho frio e inquietante parado no céu. O seu
reflexo escorria até às ruas da minha cidade que se abriam para o mar, e a noite
entrava assim lentamente nela. Era como se um rio de esquecimento a sub-
mergisse. Ficava tudo hipnotizado, imerso naquela luz pálida. Outras vezes
não havia lua e o céu não se distinguia do oceano. As estrelas confundiam-se
com as luzinhas dos barcos que passavam ao longe. Punha-me a observar todo
aquele tráfego nocturno, aqueles pequenos periscópios de luz. Era estranho.
Para onde iam, porque é que não tocavam a ilha? Ficava triste. De vez em
quando chegava um navio vindo do horizonte. Era uma estrela cadente, e eu
fazia um pedido. Quando chegavam vários ao mesmo tempo, o coração estre-
mecia de felicidade e eu adormecia sonhando que viajava naqueles cascos vaga-
bundos. Sabe, quando penso na minha infância, é como se fosse um sonâm-
bulo. Tenho sempre o mesmo sonho, quer que lhe conte?
A primeira coisa que sinto é uma aragem fria debaixo dos pés. De repente
abro os olhos. Olho à volta, um pouco assustado, e vejo que o meu quarto não
tem tecto nem paredes, é noite, o céu está cheio de estrelas. Tento levantar-
-me, olho para baixo e então apanho um susto. Nada, não há nada debaixo dos
meus pés. Estou suspenso no vazio! Oiço o vento na folhagem, olho de novo
para cima e apercebo-me que estou pendurado a uma árvore, mesmo à beira
do abismo. Sou um enorme coração verde que palpita, uma anona presa a um
ramo frágil. Pouco a pouco vou-me habituando à situação, é uma sensação
agradável, é como se eu fosse uma substância pura, sublimada. A certa altura
vejo um enorme veleiro a aproximar-se suspenso e silencioso, as velas enfu-
nadas, a âncora pendurada no vazio. Por detrás, uma lua enorme paira no céu.
O veleiro passa mesmo por cima de mim, vejo-lhe as luzes acesas, o casco
escuro, luzidio. A âncora roça na copa da árvore e eu vou agarrado a ela.
Sabe, tenho pensado que andar de barco é um pouco como voar. Se pensar
bem, estar num barco no meio do oceano é como estar suspenso sobre um
abismo. Se calhar é por isso que na minha ilha damos aos barcos nomes de
aves: Bútio, Falcão, Gavião. Como vivemos cercados pelo mar, é como se esti-
véssemos condenados a viver nas montanhas, como se sentíssemos uma espé-
cie de nostalgia da planície. O vale está escondido nas profundezas do oceano.
Observando-o do alto, o mar parece mesmo uma muralha azul que esconde da
vista o que está do outro lado. Não é difícil para uma criança pôr-se a imaginar
o que haverá por detrás dele. É difícil explicar esta sensação. Numa cidade plana
como esta, vendo um navio, não tenho a percepção do seu ponto de partida
nem de chegada, é um único plano em movimento. Mas quando o mar é visto
António Fournier (Organização)065
de cima, um barco que parte parece um caracol que vai subindo a parede dei-
xando atrás de si um rasto branco, e depois a certa altura desaparece. Fica uma
nuvem ao longe, um indício de mistério.
Você também vive numa ilha, não? Gostei muito da primeira impressão que
tive deste lugar. Ontem havia uma greve e os comboios estavam todos atrasados.
Estava muito cansado, tinha dormido pouco e a viagem parecia interminável.
Chovia e o nevoeiro cobria tudo. Percebi a certa altura que estava a atravessar o
mar. Estava sozinho na carruagem, e ouvia o barulho cadenciado do comboio a
deslizar nos carris e no entanto estava a andar sobre o mar! Não havia dúvida,
via a água ali mesmo, a brilhar. Às tantas, ouvi o chiar característico de um com-
boio quando trava. Compreendi que tinha chegado. Apeei-me, havia vapor por
todo o lado, estava frio, era como a toca de uma moreia gigantesca. E foi ao sair
dela, aos primeiros raios do sol, que me deparei com este cenário inesperado, o
aspecto etéreo dos palácios como nuvens pairando sobre as águas, os reflexos
dourados das abóbodas, o verde-garrafa da água como um veludo macio. Apa-
nhei um choque, vi uma cidade que parecia nascer das águas.
Bem vê, para mim uma estação ferroviária é como uma câmara escura, con-
serva a memória de todas as partidas e de todas as chegadas. É como atravessar
uma passagem secreta entre o estado sólido e o gasoso, que é a matéria dos
sonhos. Entrar nesta cidade assim é como se me tivesse sublimado numa outra
dimensão. Foi como se tivesse chegado às portas de Atlântida, percebe. Na
minha ilha, conta-se que quando o nevoeiro vem do mar e cobre tudo, ouvem-
-se vozes numa língua estranha, sons de baleias, há quem diga que em certas
circunstâncias, se chega a divisar palácios fabulosos quase ao alcance da mão.
A avó Vicência contava que uma vez estava a pôr a roupa a enxugar. O sol via-se
mal, coado pelo lençol. De repente viu sombras humanas. Afastou o lençol e...
nada. A planície oceânica estava calma como azeite. Está a ver, é como se eu
tivesse afastado o lençol e esta cidade tivesse surgido aos meus olhos ainda a
escorrer água, novinha em folha.
Estou hospedado aqui perto, nas Zattere, o meu hotel fica mesmo junto ao
canal. Não podia ter escolhido melhor lugar! Estive entretido até há pouco a
ver os barcos a passar. Cheguei a uma conclusão: aqui de manhã, os grandes
navios passam todos na mesma direcção, saem para o alto mar, imagino. Esta
manhã passou um grande transatlântico branco com a chaminé amarela e
um enorme C pintado. Pus-me a imaginar: quem sabe se aquele navio não irá
aportar justamente à minha ilha? Está a ver o paradoxo de que lhe falava?
Pensar que aquelas pessoas poderão estar daqui a uns dias num lugar onde já
12 Meses no Funchal066
não ponho os pés há quase cinquenta anos! É por isso que lhe dizia que habi-
tamos sempre o sonho de alguém.
Lembro-me que quis ser um viajante no dia em que conheci o capitão Marks.
Na minha ilha, havia um serviço fluvial de steamboats. Transportava forasteiros
até à nascente do rio que era um famoso local de vilegiatura, onde havia vários
hotéis de luxo e jardins frescos e misteriosos. Era um lugar onde o tempo pare-
cia ter parado, envolto numa atmosfera féerica e cosmopolita. Ali, no meio do
oceano, longe de tudo, veraneavam reis, príncipes e nobres vindos de toda a
Europa. Vinham para se curarem das doenças do frio e da alma naquela cidade
amena, cheia de bananas e papaias, sob a qual pairava uma nuvem de spleen.
Era uma cidade povoada de anjos louros e diáfanos, só que feridos de morte.
Tossiam e um besouro vermelho aflorava aos lábios. Eu e os meus amigos cos-
tumávamos ver todos aqueles viajantes passar, todas aquelas fardas e vestidos
elegantes, todas aquelas línguas estranhas, parecia um circo exótico que desfi-
lava diante dos nossos olhos. O nosso maior sonho era ser tripulantes daquele
steamboat, como Mark Twain.
Você viu Mary Poppins? O capitão Marks era como o almirante Boom. Lem-
bra-se do almirante Boom? Aquele oficial da marinha reformado, que tinha
apetrechado o sótão da sua casa como a proa de um barco, e todos os dias, a
uma determinada hora, ordenava uma salva de canhão, que obrigava a vizi-
nhança a proteger as porcelanas de casa. Na minha cidade todas as casas que
davam para a baía tinham uma torre, que sobressaía do telhado. Quando um
navio aparecia no horizonte era ver todos os capitães Boom da ilha de monó-
culo, a perscrutar a distância. O capitão Marks pertencia à Esquadra Submarina
de Navegação. O steamboat era a menina dos seus olhos.
Aos domingos engalanava-o e descia o rio, recolhendo a bordo os elementos da
esquadra, vestidos a rigor, com a farda de cerimónia. Depois, parava num deter-
minado ponto e a parada continuava então a pé por entre canas de açúcar, bana-
nais e plantações de tabaco. Contruíam pontes de fragatas, corvetas, canhoneiras
em cima das árvores, adaptavam os terraços e a torres das suas casas com altos
mastaréus, com gáveas e traquetes, sobre os quais drapejavam ao vento os galhar-
detes e as flâmulas de sinalização. Faziam sinais de bandeiras entre as casas, havia
senhas que eram passadas na cidade durante a semana, para combinar o próximo
objectivo estratégico. Homens feitos brincavam aos marinheiros.
Uma vez até, o nosso rei visitou a ilha e ficou admirado com aquela compa-
nhia luzente e aprumada que lhe fazia a continência com ar tão marcial. O rei
apreciou e retribuiu a saudação. E quis saber a que arma pertenciam. Quando
António Fournier (Organização)067
soube, conta-se que não gostou nada da brincadeira. Mas há uma coisa que
ninguém sabe, contou-me o capitão Marks em pessoa: na madrugada seguinte,
fugindo ao protocolo, o rei subiu o rio sozinho com ele, no steamboat. O rei com
os seus bigodes louros e aristocráticos, conduzia o steamboat e fazia soar o
apito, ao passo que o capitão Marks metia lenha na caldeira. Onde é que já se
viu um maquinista monárquico e um rei proletário!? Imagine, um barco fan-
tasma a subir o rio àquela hora, o que nunca acontecia. As pessoas que mora-
vam ao longo das margens e que costumavam despertar com o primeiro apito
do steamboat acordaram muito mais cedo nesse dia. E eles os dois ficaram ali a
conversar e a beber Madeira até ao amanhecer. O velho capitão Marks falava-
-nos sempre com orgulho daquela noite memorável em que o rei, que era um
grande oceanógrafo, lhe contara as suas viagens.
Mas havia também uma esquadra rival, a Esquadra Torpedeira de Navegação
a que pertencia o outro steamboat comandado pelo capitão Rose. Os dois eram
velhos lobos do mar, e apesar de pertencerem a esquadras rivais, eram grandes
amigos. O rio tinha-os aproximado, o rio e a paixão comum pelos barcos a
vapor. Referiam-se sempre àquela vez em que a Esquadra Torpedeira resolvera
apropriar-se do steamboat do capitão Marks. O capitão Marks costumava fazer
uma breve paragem a meio do percurso, ao fim do dia. Quando nos aproximá-
vamos, sentia-se o cheiro a pão fresco e ele incumbia sempre um de nós, o que
era motivo de orgulho, a “assaltar” a mercearia, sem que ele parasse o steamboat,
apenas abrandando a marcha. Içávamos o Jolly Roger, saltávamos para terra,
íamos buscar o pão e depois voltávamos a saltar para bordo.
Ora, foi ali que a esquadra rival resolveu preparar o assalto. A inteira compa-
nhia estava escondida entre as bananeiras, armada e em pé de guerra. De um
momento para outro, ouviu-se o toque de combate e viu-se todos aqueles vultos
a saírem do crepúsculo, como uma brigada de piratas. Intimaram o capitão
Marks a render-se e a entregar-lhes o steamboat. Mas ele, que amava aquele barco
acima de qualquer outra coisa, manteve o sangue-frio, e disse com a maior das
calmas que se quisessem, viessem buscá-lo. Pegou na pá do carvão e mal tenta-
ram a abordagem, foi correndo com todos eles à pazada. Era vê-los a saltarem,
surpresos com tão acérrima defesa. Eles com espadas em punho e o capitão,
franzino mas resoluto, a empurrá-los para fora, entre as gargalhadas dos que
assistiram àquela memorável cena. Depois, acabaram todos ali na tasca a beber
um copo. Eram crianças que tinham acabado de brincar à batalha naval.
Só que uma vez foi mesmo a sério. Era uma manhã de inverno, era final de
novembro, início de dezembro, já não me lembro bem. De repente a cidade
12 Meses no Funchal068
acordou com uma explosão. Estava-se numa guerra muito grande, a n° 1, mas
ali a guerra parecia estar muito longe. Naquele dia, porém, a guerra bateu
mesmo à nossa porta. Nunca me esquecerei do barulho das explosões e dos
gritos que ecoaram por toda a cidade. Um submarino alemão estava a atacar
o porto. Na baía estavam fundeados três navios. Em pouco tempo, o subma-
rino meteu a pique um a um, começando pelo navio de guerra francês, aquele
que podia oferecer maior resistência. Foi um pandemónio. A princípio nin-
guém percebia o que se estava a passar. Depois, viu-se aqueles corpos todos a
boiar na água... Mal refeita da surpresa, a guarnição de terra pôs-se a disparar
com canhões do tempo de Napoleão, e o submarino, a coberto de um veleiro
fundeado na baía, começou a bombardear a cidade. Na estação fluvial, quando
ouviram as bombas a cair na cidade, meteram-se todos no outro steamboat
que começou a subir o canal o mais depressa que podia, procurando refúgio
no interior da ilha.
O capitão Marks preparava-se para a primeira viagem do dia. Estava a fazer
a barba e observou tudo da torre de sua casa. Com o seu monóculo, via nitida-
mente aquele caixão flutuante soltando esguichos de fogo, o silvo, o silêncio, e
depois o estrondo e os gritos de pânico. Era uma afronta, dizia ele, os combates
marítimos são no mar, não se ataca uma cidade indefesa. Ele tinha orgulho em
pertencer à Esquadra Submarina de Navegação, era uma questão de honra. Aca-
bou de fazer a barba. Vestiu com calma a farda de combate, o boné, os galões
dourados e a espada, trouxe a bandeira monárquica que o rei em pessoa lhe
tinha oferecido, e ordenou que deitássemos carvão na caldeira e atestássemos
o depósito de água. Depois, deu ordem de combate.
Estou ainda a vê-lo. Montou a pequena columbrina que tinha preparado
desde o dia do incidente com a esquadra rival, tomou posição à proa e com
numa mão a espada desembainhada e na outra a bandeira, ordenou então que
avançássemos a toda a brida, descendo o canal, para defrontar o submarino.
Seria um combate desigual, entre David e Golias: o nosso pequeno CFM n° 3
contra o imponente U-47, da imperial marinha de guerra prussiana. A certa
altura, cruzou-se com o outro steamboat que vinha da cidade, apinhado de
gente. Passando por eles a toda a velocidade, fez a continência e gritou “Prepa-
rar-se para a abordagem, tigres de Mompracem”, perante o olhar estupefacto
de todos. Parece que o estou a ver, como num velho filme mudo, a sépia,
fumando cachimbo e vociferando ao mesmo tempo.
Soube-se depois que já na noite do dia anterior, tinha acontecido uma coisa
incrível. Um barco de pesca estava na faina, os pescadores apontavam as lanter-
António Fournier (Organização)069
nas para a água, tinham lançado as redes e agora estavam a recolhê-las. Via-se
ao longe as luzes familiares da costa, estava uma noite calma. Ouvia-se a água
a bater no barco, tchap, tchap, tchap, e o farol iluminava compassadamente o
mar, incidindo sobre todo aquele alegre fervilhar prateado. A pesca ia ser boa.
Estavam todos alegres. De repente, um deles pareceu ouvir um barulho estra-
nho, os risos foram abrandando, até que se silenciaram de todo. Puseram-se à
escuta: dir-se-ia que qualquer coisa se aproximava, vinda do fundo. Então, no
momento exacto que a luz do farol iluminou o mar, viram despontar das pro-
fundidades um monstro escuro e assustador. Imagine o susto que foi. Alguns
desmaiaram, outros ficaram paralisados de medo. Nunca tinham visto nada
assim. Sabe o que pensaram? Mobydick? O Nautilus? Não, não, nada disso!
Oiça só. Pensaram que eram os atlantes que se vinham vingar por eles esta-
rem ali a roubar, com as suas redes, os pássaros e as borboletas dos jardins
submersos da Atlântida!
Ah sim, o capitão Marks… Bem, a verdade é que ele nunca chegou ao mar.
Não, meu bom amigo, o capitão Marks não chegou a defrontar o submarino
inimigo. Não podia. É que o seu barco, aquele fabuloso steamboat no qual subi
e desci todos os dias o rio da minha infância, não era um barco mas um com-
boio, uma pequena locomotiva a vapor. Aquele rio era uma linha de caminho-
-de-ferro a cremalheira, e o steamboat do capitão Marks, um comboiozinho que
subia lentamente até ao cimo do monte por entre muros cobertos de musgo,
bananeiras e canas de açúcar. E subia tão lentamente que parecia que estáva-
mos parados e que era a ilha que ia descendo, engolida pelo mar. Agora que
penso nisso, subir naquele comboio era como se escapássemos ao oceano.
Não sabe o que é uma cremalheira? Tem razão, percebo a sua perplexidade.
Conhece esses fechos-éclair que agora se usam? O que é que evita que o fecho
se abra? Aquele pequeno pinhãozinho que se prende ao fecho. A única maneira
de o comboio não escorregar pela encosta abaixo, era esse pinhão que ia encra-
vando na cremalheira. A locomotiva, ao subir, fechava uma enorme cicatriz
aberta na terra, e ao fazê-lo, soltava vapor que parecia provir directamente das
vísceras vulcânicas da ilha. E toda a ilha ficava coberta por uma única nuvem
libertada por aquele pequeno vulcão ambulante. Esta é última imagem que
conservo da ilha. No barco que me levava para longe dela, vi aquele comboio-
zinho que subia em direcção ao tecto de nuvens baixas, fumegando como se
as aspirasse, como se elas fossem o seu combustível, antes de desaparecer
envolto nelas. Esse rio é desde então o meu fio do horizonte. Nunca mais o vi
desde os meus onze anos.
12 Meses no Funchal070
E já agora, lamento muito decepcioná-lo, você já deve ter percebido. Eu não
sou a pessoa que você está a pensar. Sei que mora algures nesta cidade. Ontem
julguei até ter-me cruzado com ele, ali na Ponte delle Maravegie. Quando você
me propôs esta entrevista, tive a certeza que era ele. Achei que não me levaria
a mal se eu tomasse o seu lugar por uma hora. No fundo, as conversas mais
importantes fazem-se sempre com os grandes ausentes.
Sabe, quando viajamos, vivemos com várias cidades na cabeça, mas só temos
uma única cidade mental. Um dia descobrimos que a cidade que procurámos
a vida inteira, a nossa Samarcanda, é a cidade da nossa infância de onde parti-
mos para nunca mais voltar. Imagino muitas vezes que regressarei ao entarde-
cer. Então aquele comboiozinho descerá das nuvens, para me vir buscar. Nele
subirei ao Monte como se fosse a primeira vez, sem olhar para trás. Só então
me virarei para contemplar de novo a linha do horizonte. Então poderei final-
mente adormecer. Voltarei a ser sonâmbulo. Voltarei a chamar-me Ernesto.
Ernesto Leal, do Funchal.
António Fournier (Organização)071
Dezembro
Em Dezembro quando as gaivotas enlouquecemJoão Carlos Abreu
Dezembro nasceu nos olhos brilhantes da criança que tão impacientemente
começara já em Junho a sonhar com o Natal. Repetidas vezes perguntava à mãe
porque não era ainda Dezembro. Ele queria que fosse Natal não pelos brinque-
dos mas sim pela lapinha gigante que a mãe lhe oferecia todos os anos. Naquela
manhã a mãe disse-lhe que já tinha tirado os pastores das caixas em que fica-
vam guardados, em armários, de um ano para outro, cobertos com areia do
Porto Santo para que não se partissem. Pastores comprados no Talassa e feitos
à mão pelo mestre Eduardo, especializado nesta arte. Só o menino Jesus, S. José,
Maria e os Reis Magos tinham direito a uma gaveta almofadada. Todos os cui-
dados eram poucos para conservar estas verdadeiras peças de arte que herdara
dos avós. Aliás o avô João e a avó Joana eram amantes de viagens aos mais
recônditos recantos da terra. Falavam correctamente três idiomas, francês,
inglês e espanhol. Passaram uma grande temporada em Demerara onde fize-
ram uma pequena fortuna. O presépio compraram-no em Nápoles, na casa de
um velho artesão, Giovanni Battista.
Habitualmente as searas de trigo e de milho em grão deitavam-nas no dia de
Nossa Senhora da Conceição. O Manuel João, irmão mais velho do pequeno
Fernando, descobriu que usando a tesoura de costura da mãe podia por as sea-
ras todas da mesma altura. Cortava-lhe as pontas e à medida que cresciam
aparava-as. Assim elas permaneciam sempre frescas.
Chegou ao tão desejado dia: a mãe, Mariana Rodrigues de Sá, montou a
base da lapinha com cadeiras, bancos velhos e caixotes de frutas às ripas.
Colocando aqui e ali umas tábuas de madeira de pinho tosco, ia dando forma
à sua imaginação. A lapinha ocupava mais de metade do espaço do escritório
do pai. Os dois filhos do casal esfregaram as mãos de contentes, quando viram
o António, empregado da casa, chegar com um carregamento de socas de cana
12 Meses no Funchal072
vieira arrancados do Toco. Espalhou-as pelo chão. A mãe com a sua imensa
fantasia foi colocando um a um aqueles tocos enrugados criando os espaços
adequados à lapinha. Seguiu-se uma segunda fase: enquanto o Manuel João
ponha ao lume a panela com farinha e água para fazer as papas que iam ser-
vir de cola para ensopar os jornais, o Fernando, sob a orientação da mãe colo-
cava-os cuidadosamente sobre as socas: nasciam os caminhos, as veredas os
riachos e os lagos. Depois o pai, que desfizera o vioxéne em água quente, ini-
ciava a pintura do papel. Fazia-o com muita atenção para que não se rompes-
sem os jornais. Aos miúdos estava ainda reservada a missão de soprarem os
pós dourados, prateados, vermelho e verde metálicos. Os pós eram postos
sobre um pedaço de papel. Eles sopravam-nos dando ao castanho do papel
tonalidades diferentes e atraentes. Divertiam-se muito porque quando acaba-
vam de espalhar os pós estavam com os narizes e as faces prateadas e doura-
das, ficavam irreconhecíveis.
Na distribuição dos pastores todos tinham uma palavra a dizer: havia o guar-
dador de rebanhos com mais de vinte ovelhas. As casas de cartolina cobertas de
palha de milho tinham o seu lugar próprio. Outro sim a procissão, a banda de
música e o casamento. No fundo dos lagos eram postos espelhos para reflecti-
rem a sombra dos cisnes de barro.
Naquela manhã corria uma aragem muito fresca. Era a brisa do mar que
invadia as ruas mais próximas e as flores que se fecharam com a noite abriam-
-se com claridade da manhã que nascia. A mãe vestiu apressadamente o casaco
de abafo, em lã aos quadrados, pretos e brancos, enfiou nas cabeças das crian-
ças os barretes escoceses e meteram-se rua abaixo. De mãos dadas chegaram à
igreja, já ali havia começado a missa do parto. O celebrante era o padre Manuel,
conhecido pela sua pontualidade e pelo copinho de aguardente que logo pela
manhã bebia – é para aquecer, costumava dizer. Encontraram na igreja um
casal de ingleses, os Smith, que festejavam a sua quinta visita à Madeira, mas
curiosamente era a primeira vez que participavam numa “missa do parto”.
Estavam muito intrigados com a cerimónia, pois nunca ouviram referências a
estas missas. D. Mariana, no seu inglês do Colégio Alexandre Herculano, onde
estudara, tentou explicar-lhe que as missas tinham início no dia 16 de Dezem-
bro. Eram nove novenas em honra a Nossa Senhora do Parto, antes do dia da
consoada, com cânticos especiais. Terminadas as missas o povo vinha para a
rua cantar, bailar e comer. Os Smiths estavam maravilhados e já na rua entra-
ram na roda com uma alegria esfusiante. Aliás, eles não tinham muito a ver
António Fournier (Organização)073
com a forma de ser dos ingleses. Eram de religião anglicana, divertidos e sobre-
tudo muito comunicativos. Por isso decidiram sair de Chichester onde viviam
para passarem todo o mês de Dezembro na Madeira.
D. Mariana explicou-lhes que as missas do parto só aconteciam na ilha,
eram uma velha tradição que se arrastara através dos tempos. D. Raquel,
amiga da família Rodrigues de Sá, interveio para dizer que lera muito recen-
temente que para além da Madeira as mesmas missas se celebravam nas
Filipinas, país muito católico, de arreigadas tradições religiosas. D. Raquel
acrescentou que não se admiraria nada que fossem levadas para ali por
algum madeirense. Aliás – exemplos não faltavam de tradições introduzidas
por emigrantes madeirenses: o caso do jogo do bicho que da Madeira passou
ao Brasil e ainda a braguinha madeirense hoje um famoso instrumento do
Hawai, o ukulele. Mais espantoso: os portugueses inventaram o famoso five
o’clock tea na Inglaterra.
As noites da Madeira são fascinantes, mas em Dezembro com o céu límpido
e estrelado é convidativo a passeios nocturnos, às vezes sob uma aragem ligei-
ramente fresca, mas agradável. Dezembro é conhecido pelo mês da família e da
amizade. A ilha reflecte-se no mar.
Dizem os antigos que os madeirenses se debruçam nos varandins do cais
– como se estes fossem amuradas de navios fundeados na baía, e deitam no
Oceano Atlântico os seus segredos mais íntimos. Formulam votos de desejos
frutos de sonhos sonhados.
Os Smith são convidados dos Rodrigues de Sá para assistirem ao grande
espectáculo de fogo de artifício na noite de 31 de Dezembro – um espectáculo
único, jamais igualado no mundo. A Sra. Smith fez questão de dizer que esco-
lheram também o mês de Dezembro para poderem assistir ao famoso fim do
ano na ilha, tão exaltado por milhares de visitantes.
Cerca das 22 horas as duas famílias foram para bordo do paquete Santa Maria,
onde os festejos de fim do ano eram rijos e conhecidos pela sua extraordinária
gastronomia. Três orquestras abrilhantavam a noite que desceu de mansinho
sobre a baía resplandecente de luz.
Quando os Smith se aproximaram das varandas do navio não esconderam
a sua comoção perante a grandiosidade do espectáculo. A Sra. Smith escon-
deu com as suas mãos longas os olhos e deixou que as lágrimas corressem
livremente pela face – foi apenas um retroceder no tempo para recordar alguns
amigos desaparecidos – disse. Ernesto João Rodrigues de Sá apressou-se a infor-
12 Meses no Funchal074
mar que entre as quatro baías mais bonitas do mundo estava o Funchal. As ou-
tras eram: Sidney, Hong - Kong e Rio de Janeiro.
Wonderful! Wonderful! exclamavam sem parar os Smith, deixando derra-
mar o champanhe sobre as mãos. Entraram no salão de festas sob uma chuva
de serpentinas e dançaram loucamente até a noite morrer nas ondas ligei-
ras do atlântico, onde o Santa Maria estava reflectido esplendorosamente
na sua iluminação.
Para mim o mês de Dezembro constitui sempre uma viagem na memória
onde estão arquivados todos os natais da minha existência. Vem de pequeno
este meu desejo de segredar a palavra amor que em Dezembro ganha mais
força, porque em Dezembro todas as coisas acontecem numa perspectiva dife-
rente. Têm razão os meus compatriotas, é a festa da família, a festa da amizade.
Pelo menos para mim assim é.
Na minha casa, como na maioria das casas madeirenses, faziam-se os pick-
les com mostarda e caril e os licores de tangerina, de cacau, de ovos, de anis e
o mais delicioso de todos o Tin-tan-tum. Nunca ninguém me explicou até
hoje porque se chama Tin-tan-tum. Aos 72 anos de idade procuro ainda uma
explicação para tal nome. Um meu amigo costumava dizer: embebeda-te com
Tin-tan-tum e saberás a razão do nome. Um dia alguém me insinuou que o
nome do mais delicioso de todos os licores caseiros foi inventado por uma
mulher muito bonita, pele de chocolate, alta, cabelos negros, olhos verdes,
que completamente bêbeda numa noite misturou vinho Madeira, passas
canela e tantos outros ingredientes numa garrafa de álcool que tinha à mão.
Quando refeita da bebedeira no dia seguinte lhe perguntaram que licor era
aquele, respondeu com o seu sorriso branco e charmoso: Tin-tan-tum e logo
acrescentou: um licor tão delicioso e misterioso como misteriosas são as noites
madeirenses que se prolongam nos nossos corpos nus cobertos de orquídeas. Justa-
mente em Dezembro, onde todas as coisas acontecem na ilha e onde pela
manhã bem cedo as gaivotas enlouquecem na sedução dos percursos que as
conduzem do céu ao mar.
Sobre os Autores077
Ana Margarida FalcãoNasceu no Funchal. É Professora na Universidade da Madeira, onde se dou-
torou na especialidade de Teoria da Literatura/Literatura Portuguesa, com
defesa da dissertação intitulada Os Novos Shâmanes – um Contributo para o
Estudo da Narratividade na Poesia Portuguesa mais Recente. Tem participado e/
ou co-organizado anualmente Colóquios e Seminários e publicado textos críti-
cos e textos literários. Colaboradora regular de programas da RTP-M, RTP-I e
RDP-M, bem como de revistas da especialidade, entre as quais «O escritor»,
«Dédalus» e «Islenha», da qual é directora da secção literária. A sua escrita está
ainda presente em diversas antologias de narrativa e de poesia, algumas das
quais traduzidas para francês, italiano e húngaro, tendo co-organizado Litera-
tura de Viagem – Narrativa, História, Mito, (ensaios) e publicado Um Arquipé-
lago de Escritores-Viajantes, (monografia), Olargo ou o percurso de um habitante
(conto/s) e Z de Zacarias (romance).
Irene Lucília AndradeNasceu no Funchal. Frequentou a extinta Academia de Música e Belas Artes
da Madeira e, em 1968, licenciou-se em Pintura pela Escola Superior de Belas
Artes de Lisboa. Entre 1962 e 1975 colaborou com o Posto Emissor do Funchal,
onde foi realizadora e fez teatro radiofónico. Tem colaborado em encontros de
poesia e em iniciativas culturais de vária índole, sendo também autora de textos
e canções de carácter juvenil, alguns editados em disco e em obras de carácter
pedagógico. Integrou diversas colectivas de Pintura na Madeira e nos Açores e
tem publicado textos em jornais e revistas nacionais. É autora de livros de poe-
sia, entre os quais, Hora Imóvel (1968); O Pé Dentro d�Água (1980); A Mão que
Amansa os Frutos (1991); Estrada de um dia Só (1995); Protesto e Canto de Atena
(2002); Água de Mel e Manacá (2002). De ficção: Angélica e a sua Espécie (1993);
Porque me Lembrei dos Cisnes (2000); A Penteada Ou o Fim do Caminho (2004);
Crónica Breve da Cidade Anónima, À Hora do Tordo (2008). Está representada
nas antologias Ilha 2, Ilha 3 e Ilha 4 (1979, 1991 e 1994); Narrativa Literária de
Autores da Madeira. Século XX (1990); Duplo Olhar (1997); Récits Contempo-
rains de Madère (1997); Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera (2001); Sauda-
des da Ilha (2003); Nostalgia dei Giorni Atlantici (2005); Pontos Luminosos – Açores
e Madeira (2006); Contos Madeirenses (2006); Os Sons Atrás do Mar (2007);
Crónica Madeirense, 1900-2006 (2007).
12 Meses no Funchal078
Francisco FernandesNasceu no Funchal em 1952. É economista, mestre em Gestão do Desporto
e doutorando em Motricidade Humana, ramo de Ciências do Desporto. É actu-
almente responsável pelos pelouros de Educação, Desporto e Cultura do Governo
Regional da Madeira. Publicou obras nas áreas da investigação, narrativa, lite-
ratura infantil e romance. As suas peças de teatro – Andaime (2002) e O Natal
de Joana (2004), foram adaptadas para telefilme, pela RTP-M. Dois dos seus
contos infantis, O Diogo quer ser Futebolista (Porto, 2005) e A Estrela Perdida
(Porto, 2006) estão incluídos no Plano Nacional de Leitura. O seu romance
A Casa do Penedo da Gaivota (Porto, 2004) foi distinguido com Menção Hon-
rosa pelo Prémio Edmundo Bettencourt e o seu conto A Esquina do 95 (2005),
recebeu o prémio António Feliciano Rodrigues (Castilho). Está representado
na antologia Crónica Madeirense, 1900-2006 (Porto, 2007).
Margarida Gonçalves MarquesNasceu no Funchal em 1929. Desenvolveu a sua vida profissional na docên-
cia até 1979, ano em que ingressou na carreira técnica superior, sempre no
sector da Educação, até à sua aposentação em 1993. Colaborou, nos anos cin-
quenta e sessenta do século XX, no Diário de Notícias do Funchal, assinando
crónicas e contos com o pseudónimo de Teresa Passos Vela. Presentemente,
dedica-se à família, ao voluntariado e à escrita. Um dia depois do outro, o seu
primeiro romance, obteve o Prémio Vergílio Ferreira, instituído pela Câmara
Municipal de Gouveia, em 1999. O seu segundo romance Noventa e Nove Jus-
tos, aparece em 2003. Ambos foram editados pelas Publicações Dom Quixote,
Lisboa. Está representada nas antologias: Contos Madeirenses (Porto, 2005);
Quarenta (Lisboa, 2005), Nostalgia dei giorni atlantici (Asti, 2005), e Crónica
Madeirense, 1900-2006 (Porto, 2007).
Laura Moniz Nasceu em Santo António da Serra em 1967. É Leitora de Língua Portuguesa
na Universidade de Trieste, cidade em que reside actualmente. Revelou-se com
o conjunto “Nuvens e lugares”, na revista Atlântico (1988) tendo ainda partici-
pado nas obras colectivas Poet’Arte 90, Vers’Arte 91 e Ilha 4 (Funchal, 1994).
Sobre os Autores079
Integra as colectâneas Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera (2001), 10+1
Poetas para Estar (2004), Poesia no Porto Santo, organização PEN Club (2004),
Nostalgia dei giorni atlantici (2005), Contos Madeirenses (2005), Pontos Lumino-
sos (2006), Sapori incontri fragranze (2006). É autora de Cartas para um Tenente
(poesia, Funchal, 1996); O Templo Móvel, (poesia, Porto, 2002); Lupus in Fabula
(poesia, Funchal, 2002); A Musa das Coisas Pequenas (poesia, Funchal, 2002)
e Cerejas (contos, Vila Nova de Gaia, 2007).
Maria Rosa Basílio Nascida no Funchal, viveu até à adolescência na Madeira, tendo-se transfe-
rido para Lisboa onde concluiu a licenciatura em Direito na Universidade
Clássica de Lisboa, aí se estabelecendo como advogada. Actualmente dedica-se
à escrita das suas memórias familiares. Publicou o conto “Tra due maree” na
antologia Nostalgia dei Giorni Atlantici (Asti, 2005).
Vítor Sousa Nasceu no Funchal em 1984. Depois de ter cursado Psicologia na Univer-
sidade do Algarve, regressou à Madeira, onde é finalista em Comunicação,
Cultura e Organizações, na Universidade da Madeira. Durante o ano lectivo
2005/2006 estudou em Pisa, no âmbito do programa europeu Erasmus.
Dessa estadia na Toscana nasceu o seu primeiro livro O Tricot do Tempo (Lisboa,
2007). Ainda em 2005, tornou-se impulsionador involuntário da campanha
presidencial de Manuel Alegre, depois de ter lançado uma petição “online”
que exortava à candidatura do poeta. Como consequência, foi convidado para
a Comissão de Honra do candidato. É autor do blog Estranho Estrangeiro
(http://estrangeiros.blogspot.com).
Nelson VeríssimoNasceu no Funchal em 1955. Licenciado e doutorado em História, é pro-
fessor da Universidade da Madeira, desde 2002. De 1987 a 2002, dirigiu a
revista Islenha: temas culturais das sociedades atlânticas, editada no Funchal.
12 Meses no Funchal080
É autor de mais de oitenta artigos e comunicações sobre História do Atlân-
tico, Património Cultural e História da Educação, publicados em revistas,
portuguesas e estrangeiras, e em actas de Congressos Nacionais e Interna-
cionais. Colabora regularmente no Diário de Notícias do Funchal, desde
1984. Publicou diversos livros de História, organizou três antologias literá-
rias e editou um livro de crónicas da sua autoria. Está representado nas
antologias Nostalgia dei Giorni Atlantici (Asti, 2005) e em Crónica Madeirense,
1900-2006 (Porto, 2007).
Helena Marques De famílias madeirenses, nasceu em Carcavelos em 1935. É autora dos
romances O Último Cais (1992), A Deusa Sentada (1994), Terceiras Pessoas
(1998) e Os Íbis Vermelhos da Guiana (2002) e do livro de contos Ilhas Contadas
(2007), todos editados por Publicações Dom Quixote. Recebeu o Prémio
Revista Ler / Círculo de Leitores, o Grande Prémio de Romance e Novela da
Sociedade Portuguesa de Escritores, o Prémio Máxima de Revelação e o Pré-
mio Bordallo de Literatura da Casa da Imprensa. Está traduzida em alemão,
espanhol, italiano, grego, búlgaro e romeno. É casada com o jornalista Rui Cama-
cho e tem quatro filhos – uma tradutora e três jornalistas.
Maria Aurora Homem Natural do Sátão – Viseu onde nasceu em 1937, vive no Funchal desde
1974. Antiga jornalista de órgãos de comunicação escrita e audiovisual de
Lisboa, na Madeira tem exercido os mais activos papéis de agente e dinami-
zadora cultural, organizando e participando activamente em debates, coló-
quios e feiras do livro, programas de rádio e de televisão. É assessora cultural
na Câmara Municipal do Funchal e editora da revista Margem. Autora de
livros infantis e de um livro de crónicas, publicou os seguintes livros de poe-
sia: Raízes do Silêncio (Funchal, 1982); Ilha a Duas Vozes (em co-autoria com
João Carlos Abreu, Funchal, 1988); Cintilações (Funchal, 1994); Uma Voz de
Muda Espera: Monografia Sentimental (S. Pedro do Sul, 1995); 12 Textos de
Desejo (Funchal, 2003); Antes que a Noite Caia (Vila Nova de Gaia, 2005);
Discurso Amoroso (Porto, 2006). De ficção: A Santa do Calhau (Lisboa, 1992);
Para Ouvir Albinoni (Ponta Delgada, 1995); Leila (Vila Nova de Gaia, 2005).
Integra as antologias Narrativa Literária de Autores da Madeira, Século XX
(Funchal, 1990); Récits Contemporains de Madère (Funchal, 1997); Nostalgia
dei Giorni Atlantici (Asti, 2005); Contos Madeirenses (Porto, 2005).
António Fournier Nasceu no Funchal em 1966. Antigo assistente na Universidade da Madeira,
vive actualmente em Itália onde é docente de Língua e Tradução portuguesa e
brasileira na Universidade de Turim, tendo sido anteriormente Leitor de Língua
e Cultura Portuguesa pelo Instituto Camões na Universidade de Pisa. Organi-
zou as seguintes antologias: Nostalgia dei Giorni Atlantici (Asti, 2005); Arte do
Voo de José António Gonçalves (Vila Nova de Gaia, 2005), Lusitania Express: 20
Storie per un Film Portoghese (Asti, 2006). Coordenou ainda os números mono-
gráficos da revista literária Margem dedicados, respectivamente, aos escritores
Ernesto Leal (Outubro 2007) e José António Gonçalves (Maio 2008).
João Carlos Abreu Nasceu no Funchal em 1935. Antigo jornalista, estudou em Roma e parti-
cipou nos trabalhos de imprensa do Concílio Ecuménico do Vaticano II.
Viveu em Bolzano – Itália e na Inglaterra. Preside actualmente à Associação
“CRIAMAR”. Foi durante 24 anos Secretário Regional de Turismo e Cultura.
Tem organizado e participado em Congressos, Colóquios e Seminários sobre
literatura, ambiente e turismo. É membro do PEN CLUB. Colaborou em jor-
nais e revistas portuguesas e estrangeiras. Publicou as seguintes obras em
prosa: Dona Joana Rabo de Peixe; Mete-me no Teu Coração; Dos Deuses ao Turismo
dos nossos Dias; Viagem ao Coração; O Turismo das Culturas; Carta aos Autarcas
da Minha Terra. Os seus poemas estão traduzidos e publicados em revistas da
especialidade em França, Itália e Espanha. Publicou os livros (poesia): Porta
Aberta; Água no Mar; Da Ilha e de Mim; Poemas do Silêncio; Vozes que Navegam
Dentro de Mim; A ilha a Duas Vozes; Sobre o Voo da Gaivota. Está ligado à Cidade
Antiga do Funchal pela sua recuperação. Recuperou ainda o centro da Vila de
São Vicente e o Bairro dos Pescadores de Madalena do Mar. É detentor de vários
prémios literários e de turismo.
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