1. jurisdiÇÃo constitucional - barroso
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JURISDIO CONSTITUCIONAL:
A TNUE FRONTEIRA ENTRE O DIREITO E A POLTICA
Lus Roberto Barroso1
Sumrio: I Introduo. II - A Ascenso institucional do Judicirio. 1. A jurisdio constitucional. 2. A judicializao da poltica e das relaes sociais. 3. O ativismo judicial. 4.
Crticas expanso da interveno judicial na vida brasileira. 4.1. Crtica poltico-ideolgica.
4.2. Crtica quanto capacidade institucional. 4.3. Crtica quanto limitao do debate. 5.
Importncia e limites da jurisdio constitucional nas democracias contemporneas. III -
Direito e poltica: a concepo tradicional. 1. Notas sobre a distino entre Direito e poltica.
2. Constituio e poderes constitudos. 3. A pretenso de autonomia do Judicirio e do Direito
em relao poltica. 3.1. Independncia do Judicirio. 3.2. Vinculao ao Direito posto e
dogmtica jurdica. 3.3. Limites da separao entre Direito e poltica. IV - Direito e poltica: o
modelo real. 1. Os laos inevitveis: a lei e sua interpretao como atos de vontade. 2. A
interpretao jurdica e suas complexidades: o encontro no marcado entre o Direito e a
poltica. 2.1. A linguagem aberta dos textos jurdicos. 2.2. Os desacordos morais razoveis.
2.3. As colises de normas constitucionais. 2.4. A interpretao constitucional e seus
mtodos. 3. O juiz e suas circunstncias: influncias polticas em um julgamento. 3.1. Valores
e ideologia do juiz. 3.2. Interao com outros atores polticos e institucionais. 3.2.1.
Preservao ou expanso do poder da Corte. 3.2.2. Relaes com outros Poderes, rgos e
entidades estatais. 3.3. Perspectiva de cumprimento efetivo da deciso. 3.4. Circunstncias
internas dos rgos colegiados. 3.5. A opinio pblica. 4. A autonomia relativa do Direito em
relao poltica e a fatores extrajudiciais. V O Supremo Tribunal Federal: contramajoritrio e representativo. VI - Concluso: entre a razo e a vontade.
I. INTRODUO
O presente captulo est dividido em trs partes principais. Na primeira,
narra-se a ascenso institucional do Judicirio nos ltimos anos, no Brasil e no mundo. So
apresentados, assim, os fenmenos da jurisdio constitucional, da judicializao e do
ativismo judicial, bem como as crticas expanso do Judicirio na vida brasileira. O tpico
se encerra com a demonstrao da importncia e dos limites da jurisdio constitucional nas
democracias contemporneas. A segunda parte dedicada concepo tradicional das
relaes entre Direito e poltica, fundada na separao plena entre os dois domnios. A
Constituio faz a interface entre o universo poltico e o jurdico, instituindo o Estado de
1 Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
Mestre pela Yale Law School. Doutor e Livre-Docente pela UERJ. Pesquisador Visitante na Harvard Law School. Ministro do Supremo Tribunal Federal.
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direito, os poderes constitudos e fazendo a distino entre legislar, administrar e julgar. A
atuao de juzes e tribunais preservada do contgio poltico por meio da independncia do
Judicirio em relao aos demais Poderes e por sua vinculao ao Direito, que constitui um
mundo autnomo, tanto do ponto de vista normativo quanto doutrinrio. Essa viso, inspirada
pelo formalismo jurdico, apresenta inmeras insuficincias tericas e enfrenta boa quantidade
de objees, em uma era marcada pela complexidade da interpretao jurdica e por forte
interao do Judicirio com outros atores polticos relevantes.
A terceira parte introduz uma questo relativamente nova no debate
jurdico brasileiro: o modelo real das relaes entre Direito e poltica. Uma anlise sobre o
que de fato ocorre no exerccio da prestao jurisdicional e na interpretao das normas
jurdicas, e no um discurso convencional sobre como elas deveriam ser. Trata-se de uma
especulao acerca dos elementos e circunstncias que motivam e influenciam um juiz, para
alm da boa aplicao do Direito. Com isso, procura-se superar a persistente negao com que
os juristas tradicionalmente lidam com o tema, proclamando uma independncia que no
desse mundo. Na construo do argumento, examinam-se algumas hipteses que produzem os
chamados casos difceis, que exigem a atuao criativa de juzes e tribunais; e faz-se,
igualmente, uma reflexo acerca dos diferentes mtodos de interpretao e sua utilizao em
funo do resultado a que se quer chegar. Por fim, so identificados diversos fatores
extrajurdicos relevantes, capazes de repercutir em maior ou menor medida sobre um
julgamento, como os valores pessoais do juiz, as relaes do Judicirio com outros atores
polticos e a opinio pblica, dentre outros.
Entre o ceticismo do realismo jurdico e da teoria crtica, que equiparam
o Direito ao voluntarismo e poltica, e a viso idealizada do formalismo jurdico, com sua
crena na existncia de um muro divisrio entre ambos, o presente estudo ir demonstrar o
que j se afigurava intuitivo: no mundo real, no vigora nem a equiparao nem a separao
plena. Na concretizao das normas jurdicas, sobretudo as normas constitucionais, Direito e
poltica convivem e se influenciam reciprocamente, numa interao que tem complexidades,
sutilezas e variaes2. Em mltiplas hipteses, no poder o intrprete fundar-se em
elementos de pura razo e objetividade, como a ambio do Direito. Nem por isso, recair
2 O termo poltica utilizado nesse trabalho em uma acepo ampla, que transcende uma
conotao partidria ou de luta pelo poder. Na acepo aqui empregada, poltica" abrange qualquer influncia extrajurdica capaz de afetar o resultado de um julgamento.
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na discricionariedade e na subjetividade, presentes nas decises polticas. Entre os dois
extremos, existe um espao em que a vontade exercida dentro de parmetros de
razoabilidade e de legitimidade, que podem ser controlados pela comunidade jurdica e pela
sociedade. Vale dizer: o que se quer balizado pelo que se pode e pelo que se deve fazer.
II. A ASCENSO INSTITUCIONAL DO JUDICIRIO3
1. A jurisdio constitucional
O Estado constitucional de direito se consolida, na Europa continental,
a partir do final da II Guerra Mundial. At ento, vigorava um modelo identificado, por vezes,
como Estado legislativo de direito4. Nele, a Constituio era compreendida, essencialmente,
como um documento poltico, cujas normas no eram aplicveis diretamente, ficando na
dependncia de desenvolvimento pelo legislador ou pelo administrador. Tampouco existia o
controle de constitucionalidade das leis pelo Judicirio ou, onde existia, era tmido e pouco
relevante. Nesse ambiente, vigorava a centralidade da lei e a supremacia do parlamento. No
Estado constitucional de direito, a Constituio passa a valer como norma jurdica. A partir
da, ela no apenas disciplina o modo de produo das leis e atos normativos, como estabelece
determinados limites para o seu contedo, alm de impor deveres de atuao ao Estado. Nesse
novo modelo, vigora a centralidade da Constituio e a supremacia judicial, como tal
entendida a primazia de um tribunal constitucional ou suprema corte na interpretao final e
vinculante das normas constitucionais.
A expresso jurisdio constitucional designa a interpretao e
aplicao da Constituio por rgos judiciais. No caso brasileiro, essa competncia
exercida por todos os juzes e tribunais, situando-se o Supremo Tribunal Federal no topo do
sistema. A jurisdio constitucional compreende duas atuaes particulares. A primeira, de
aplicao direta da Constituio s situaes nela contempladas. Por exemplo, o
3 A Parte I deste trabalho, especialmente os captulos II e III, beneficia-se da pesquisa e de algumas
passagens de texto anterior de minha autoria, Judicializao, ativismo judicial e legitimidade democrtica, publicado na Revista de direito do Estado 13:71, 2009.
4 V. Luigi Ferrajoli, Pasado y futuro Del Estado de derecho. In: Miguel Carbonell (org.),
Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 14-17; e Gustavo Zagrebelsky, El derecho dctil: ley, derechos, justicia, 2005, p. 21-41.
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reconhecimento de que determinada competncia do Estado, no da Unio; ou do direito do
contribuinte a uma imunidade tributria; ou do direito liberdade de expresso, sem censura
ou licena prvia. A segunda atuao envolve a aplicao indireta da Constituio, que se d
quando o intrprete a utiliza como parmetro para aferir a validade de uma norma
infraconstitucional (controle de constitucionalidade) ou para atribuir a ela o melhor sentido,
em meio a diferentes possibilidades (interpretao conforme a Constituio). Em suma: a
jurisdio constitucional compreende o poder exercido por juzes e tribunais na aplicao
direta da Constituio, no desempenho do controle de constitucionalidade das leis e dos atos
do Poder Pblico em geral e na interpretao do ordenamento infraconstitucional conforme a
Constituio.
2. A judicializao da poltica e das relaes sociais 5
Judicializao significa que questes relevantes do ponto de vista
poltico, social ou moral esto sendo decididas, em carter final, pelo Poder Judicirio. Trata-
se, como intuitivo, de uma transferncia de poder para as instituies judiciais, em detrimento
das instncias polticas tradicionais, que so o Legislativo e o Executivo. Essa expanso da
jurisdio e do discurso jurdico constitui uma mudana drstica no modo de se pensar e de se
praticar o Direito no mundo romano-germnico6. Fruto da conjugao de circunstncias
5 Sobre o tema, v. o trabalho pioneiro de Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Resende de Carvalho,
Manuel Palacios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos, A judicializao da poltica e das relaes sociais no Brasil, 1999. V. tb., Giselle Cittadino, Judicializao da poltica, constitucionalismo democrtico e separao de Poderes. In: Luiz Werneck Vianna (org.), A democracia e os trs Poderes no Brasil, 2002. Vejam-se, ainda: Luiz Werneck Vianna, Marcelo Baumann Burgos e Paula Martins Salles, Dezessete anos de judicializao da poltica, Tempo Social 19:39, 2007; Ernani Carvalho, Judicializao da poltica no Brasil: controlo de constitucionalidade e racionalidade poltica, Anlise Social 44:315, 2009, e Em busca da judicializao da poltica no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem, Revista de Sociologia Poltica 23:115, 2004; Rogrio Bastos Arantes, Judicirio: entre a justia e a poltica, In: http://academico.direito-rio.fgv.br/ccmw/images/9/9d/Arantes.pdf, e Constitutionalism, the expansion of justice and the judicialization of politics in Brazil. In: Rachel Sieder, Line Schjolden e Alan Angell, The judicialization of politics in Latin America, 2005, p. 231-62; Martonio MontAlverne Barreto Lima, Judicializao da poltica e comisses parlamentares de inqurito um problema da teoria constitucional da democracia, Revista Jurdica da FIC 7:9, 2006; Luciano da Ros, Tribunais como rbitros ou como instrumentos de oposio: uma tipologia a partir dos estudos recentes sobre judicializao da poltica com aplicao ao caso brasileiro contemporneo, Direito, Estado e Sociedade 31:86, 2007; e Thais Florencio de Aguiar, A judicializao da poltica ou o rearranjo da democracia liberal, Ponto e Vrgula 2:142, 2007.
6 V. Alec Stone Sweet, Governing with judges: constitutional poltics in Europe, 2000, p. 35-36 e 130.
A viso prevalecente nas democracias parlamentares tradicionais de ser necessrio evitar um governo de juzes, reservando ao Judicirio apenas uma atuao como legislador negativo, j no corresponde prtica poltica atual. Tal compreenso da separao de Poderes encontra-se em crise profunda na Europa continental.
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diversas7, o fenmeno mundial, alcanando at mesmo pases que tradicionalmente
seguiram o modelo ingls a chamada democracia ao estilo de Westminster , com soberania
parlamentar e ausncia de controle de constitucionalidade8. Exemplos numerosos e
inequvocos de judicializao ilustram a fluidez da fronteira entre poltica e justia no mundo
contemporneo, documentando que nem sempre ntida a linha que divide a criao e a
interpretao do Direito. Os precedentes podem ser encontrados em pases diversos e distantes
entre si, como Canad9, Estados Unidos
10, Israel
11, Turquia
12, Hungria
13 e Coreia
14, dentre
muitos outros. No incio de 2010, uma deciso do Conselho Constitucional francs e outra da
Suprema Corte americana produziram controvrsia e a reao poltica dos dois presidentes15
.
Na Amrica Latina16
, o caso da Colmbia um dos mais significativos17
.
7 Para uma anlise das condies para o surgimento e consolidao da judicializao, v. C. Neal Tate
e Torbjrn Vallinder (eds.), The global expansion of judicial power, 1995, p. 117.
8 V. Ran Hirschl, The new constitutionalism and the judicialization of pure politics worldwide, Fordham
Law Review 75:721, 2006-2007, p. 721. A referncia envolve pases como Canad, Israel, Nova Zelndia e o prprio Reino Unido.
9 Deciso da Suprema Corte sobre a constitucionalidade de os Estados Unidos fazerem testes com
msseis em solo canadense. Este exemplo e os seguintes vm descritos em maior detalhe em Ran Hirschl, The judicialization of poltics. In: Whittington, Kelemen e Caldeira (eds.), The Oxford handbook of law and politics, 2008, p. 124-5.
10 Deciso da Suprema Corte que definiu a eleio de 2000, em Bush v. Gore.
11 Deciso da Suprema Corte sobre a compatibilidade, com a Constituio e com os atos
internacionais, da construo de um muro na fronteira com o territrio palestino.
12 Decises da Suprema Corte destinadas a preserver o Estado laico contra o avano do
fundamentalismo islmico.
13 Deciso da Corte Constitucional sobre a validade de plano econmico de grande repercusso
sobre a sociedade.
14 Deciso da Corte Constitucional restituindo o mandato de presidente destitudo por impeachment.
15 Na Frana, foi anulado o imposto do carbono, que incidiria sobre o consumo e a emisso de gases
poluentes, com forte reao do governo. V. Le Monde, 12 jan. 2010, http://www.lemonde.fr/politique/article/2010/01/12/m-devedjian-je-souhaite-que-le-conseil-constitutionnel-soit-a-l-abri-des-soupcons_1290457_823448.html. Nos Estados Unidos, a deciso em Citizens United v. Federal Election Commission, invalidando os limites participao financeira das empresas em campanhas eleitorais, foi duramente criticada pelo Presidente Barak Obama. V. New York Times, 24 jan. 2010, p. A-20.
16 Sobre o fenmeno na Amrica Latina, v. Rachel Sieder, Line Schjolden e Alan Angell, The
judicialization of politics in Latin America, 2005.
17 De acordo com Rodrigo Uprimny Yepes, Judicialization of politics in Colombia, International Journal
on Human Rights 6:49, 2007, p. 50, algumas das mais importantes hipteses de judicializao da poltica na Colmbia envolveram: a) luta contra a corrupo e para mudana das prticas polticas; b) conteno do abuso das autoridades governamentais, especialmente em relao declarao do estado de emergncia ou estado de exceo; c) proteo das minoriais, assim como a autonomia individual; d) proteo das populaes estigmatizadas ou aqueles em situao de fraqueza poltica; e e) interferncia com polticas econmicas, em virtude da proteo judicial de direitos sociais.
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H causas de naturezas diversas para o fenmeno. A primeira delas o
reconhecimento da importncia de um Judicirio forte e independente, como elemento
essencial para as democracias modernas. Como consequncia, operou-se uma vertiginosa
ascenso institucional de juzes e tribunais, assim na Europa como em pases da Amrica
Latina, particularmente no Brasil. A segunda causa envolve certa desiluso com a poltica
majoritria, em razo da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em
geral. H uma terceira: atores polticos, muitas vezes, preferem que o Judicirio seja a
instncia decisria de certas questes polmicas, em relao s quais exista desacordo moral
razovel na sociedade. Com isso, evitam o prprio desgaste na deliberao de temas divisivos,
como unies homoafotetivas, interrupo de gestao ou demarcao de terras indgenas18
.
No Brasil, o fenmeno assumiu proporo ainda maior, em razo da constitucionalizao
abrangente e analtica constitucionalizar , em ltima anlise, retirar um tema do debate
poltico e traz-lo para o universo das pretenses judicializveis e do sistema de controle de
constitucionalidade vigente entre ns, em que amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal
por via de aes diretas.
Como consequncia, quase todas as questes de relevncia poltica,
social ou moral foram discutidas ou j esto postas em sede judicial, especialmente perante o
Supremo Tribunal Federal. A enunciao que se segue, meramente exemplificativa, serve
como boa ilustrao dos temas judicializados: (i) instituio de contribuio dos inativos na
Reforma da Previdncia (ADI 3105/DF); (ii) criao do Conselho Nacional de Justia na
Reforma do Judicirio (ADI 3367); (iii) pesquisas com clulas-tronco embrionrias (ADI
3510/DF); (iv) liberdade de expresso e racismo (HC 82424/RS caso Ellwanger); (v)
interrupo da gestao de fetos anenceflicos (ADPF 54/DF); (vi) restrio ao uso de
algemas (HC 91952/SP e Smula Vinculante n 11); (vii) demarcao da reserva indgena
Raposa Serra do Sol (Pet 3388/RR); (viii) legitimidade de aes afirmativas e quotas sociais e
raciais (ADI 3330); (ix) vedao ao nepotismo (ADC 12/DF e Smula n 13); (x) no-
18 V. Rodrigo Uprimny Yepes, Judicialization of politics in Colombia, International Journal on Human
Rights 6:49, mimeografado, 2007, p. 57. V. tb. Jos Ribas Vieira, Margarida Maria Lacombe Camargo e Alexandre Garrido Silva, O Supremo Tribunal Federal como arquiteto institucional: a judicializao da poltica e o ativismo judicial. In: Anais do I Forum de Grupos de Pesquisa em direito Constitucional e Teoria dos direitos, 2009, p. 44: Em casos politicamente custosos, os poderes Legislativo e Executivo podem, de um modo estratgico, por meio de uma inrcia deliberada, abrir um espao para a atuao ativista dos tribunais. Temas profundamente controvertidos, sem perspectiva de consenso na sociedade, tais como a abertura dos arquivos da ditadura militar, unies homoafetivas, aborto, entre outros, tm os seus custos polticos estrategicamente repassados para os tribunais, cujos integrantes no precisam passar pelo crivo do voto popular aps suas decises.
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recepo da Lei de Imprensa (ADPF 130/DF). A lista poderia prosseguir indefinidamente,
com a identificao de casos de grande visibilidade e repercusso, como a extradio do
militante italiano Cesare Battisti (Ext 1085/Itlia e MS 27875/DF), a questo da importao
de pneus usados (ADPF 101/DF) ou da proibio do uso do amianto (ADI 3937/SP). Merece
destaque a realizao de diversas audincias pblicas, perante o STF, para debater a questo
da judicializao de prestaes de sade, notadamente o fornecimento de medicamentos e de
tratamentos fora das listas e dos protocolos do Sistema nico de Sade (SUS)19
.
Uma observao final relevante dentro deste tpico. No Brasil, como
assinalado, a judicializao decorre, sobretudo, de dois fatores: o modelo de
constitucionalizao abrangente e analtica adotado; e o sistema de controle de
constitucionalidade vigente entre ns, que combina a matriz americana em que todo juiz e
tribunal pode pronunciar a invalidade de uma norma no caso concreto e a matriz europia,
que admite aes diretas ajuizveis perante a corte constitucional. Nesse segundo caso, a
validade constitucional de leis e atos normativos discutida em tese, perante o Supremo
Tribunal Federal, fora de uma situao concreta de litgio. Essa frmula foi maximizada no
sistema brasileiro pela admisso de uma variedade de aes diretas e pela previso
constitucional de amplo direito de propositura. Nesse contexto, a judicializao constitui um
fato inelutvel, uma circunstncia decorrente do desenho institucional vigente, e no uma
opo poltica do Judicirio. Juzes e tribunais, uma vez provocados pela via processual
adequada, no tm a alternativa de se pronunciarem ou no sobre a questo. Todavia, o modo
como venham a exercer essa competncia que vai determinar a existncia ou no de
ativismo judicial.
3. O ativismo judicial
Ativismo judicial uma expresso cunhada nos Estados Unidos20
e que
foi empregada, sobretudo, como rtulo para qualificar a atuao da Suprema Corte durante os
19 V. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude.
20 A locuo ativismo judicial foi utilizada, pela primeira vez, em artigo de um historiador sobre a
Suprema Corte americana no perodo do New Deal, publicado em revista de circulao ampla. V. Arthur M. Schlesinger, Jr., The Supreme Court: 1947, Fortune, jan. 1947, p. 208, apud Keenan D. Kmiec, The origin and current meanings of judicial activism, California Law Review 92:1441, 2004, p. 1446. A descrio feita por Schlesinger da diviso existente na Suprema Corte, poca, digna de transcrio, por sua atualidade no debate contemporneo: Esse conflito pode ser descrito de
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anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954 e 196921
. Ao longo desse perodo,
ocorreu uma revoluo profunda e silenciosa em relao a inmeras prticas polticas nos
Estados Unidos, conduzida por uma jurisprudncia progressista em matria de direitos
fundamentais22
. Todas essas transformaes foram efetivadas sem qualquer ato do Congresso
ou decreto presidencial23
. A partir da, por fora de uma intensa reao conservadora, a
expresso ativismo judicial assumiu, nos Estados Unidos, uma conotao negativa,
depreciativa, equiparada ao exerccio imprprio do poder judicial24
. Todavia, depurada dessa
crtica ideolgica at porque pode ser progressista ou conservadora25 a ideia de ativismo
diferentes maneiras. O grupo de Black e de Douglas acredita que a Suprema Corte pode desempenhar um papel afirmativo na promoo do bem-estar social; o grupo de Frankfurter e Jackson defende uma postura de auto-conteno judicial. Um grupo est mais preocupado com a utilizao do poder judicial em favor de sua prpria concepo do bem social; o outro, com a expanso da esfera de atuao do Legislativo, mesmo que isso signifique a defesa de pontos de vista que eles pessoalmente condenam. Um grupo v a Corte como instrumento para a obteno de resultados socialmente desejveis; o segundo, como um instrumento para permitir que os outros Poderes realizem a vontade popular, seja ela melhor ou pior. Em suma, Black-Douglas e seus seguidores parecem estar mais voltados para a soluo de casos particulares de acordo com suas prprias concepes sociais; Frankfurter-Jackson e seus seguidores, com a preservao do Judicirio na sua posio relevante, mas limitada, dentro do sistema americano.
21 Sobre o tema, em lngua portuguesa, v. Lus Roberto Barroso, A americanizao do direito
constitucional e seus paradoxos. In: Temas de direito constitucional, t. IV, p. 144 e s. (O legado de Warren: ativismo judicial e proteo dos direitos fundamentais). Para uma interessante biografia de Warren, bem como um denso relato do perodo, v. Jim Newton, Justice for all: Earl Warren and the Nation he made, 2006.
22 Alguns exemplos representativos: considerou-se ilegtima a segregao racial nas escolas (Brown
v. Board of Education, 1954); foram assegurados aos acusados em processo criminal o direito de defesa por advogado (Gideon v. Wainwright, 1963) e o direito no-auto-incriminao (Miranda v. Arizona, 1966); e de privacidade, sendo vedado ao Poder Pblico a invaso do quarto de um casal para reprimir o uso de contraceptivos (Griswold v. Connecticut, 1965). Houve decises marcantes, igualmente, no tocante liberdade de imprensa (New York Times v. Sullivan, 1964) e a direitos polticos (Baker v. Carr, 1962). Em 1973, j sob a presidncia de Warren Burger, a Suprema Corte reconheceu direitos de igualdade s mulheres (Richardson v. Frontiero, 1973), assim como em favor dos seus direitos reprodutivos, vedando a criminalizao do aborto at o terceiro ms de gestao (Roe v. Wade).
23 Jim Newton, Justice for all: Earl Warren and the Nation he made, 2006, p. 405.
24 V. Randy E. Barnett, Constitututional clichs, Capital University Law Review 36:493, 2007, p. 495:
Normalmente, no entanto, ativismo judicial empregado para criticar uma prtica judicial que deve ser evitada pelos juzes e que merece a oposio do pblico. Keenan D. Kmiec, The origin and current meanings of judicial activism, California Law Review 92:1441, 2004, p. 1463 e s. afirma que no se trata de um conceito monoltico e aponta cinco sentidos em que o termo tem sido empregado no debate americano, no geral com uma conotao negativa: a) declarao de inconstitucionalidade de atos de outros Poderes que no sejam claramente inconstitucionais; b) ignorar precedentes aplicveis; c) legislao pelo Judicirio; d) distanciamento das metodologias de interpretao normalmente aplicadas e aceitas; e e) julgamentos em funo dos resultados.
25 Como assinalado no texto, a expresso ativismo judicial foi amplamente utilizada para estigmatizar
a jurisprudncia progressista da Corte Warren. bem de ver, no entanto, que o ativismo judicial precedeu a criao do termo e, nas suas origens, era essencialmente conservador. De fato, foi na atuao proativa da Suprema Corte que os setores mais reacionrios encontraram amparo para a segregao racial (Dred Scott v. Sanford, 1857) e para a invalidao das leis sociais em geral (Era
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judicial est associada a uma participao mais ampla e intensa do Judicirio na concretizao
dos valores e fins constitucionais, com maior interferncia no espao de atuao dos outros
dois Poderes. Em muitas situaes, sequer h confronto, mas mera ocupao de espaos
vazios.
No Brasil, h diversos precedentes de postura ativista do STF,
manifestada por diferentes linhas de deciso. Dentre elas se incluem: a) a aplicao direta da
Constituio a situaes no expressamente contempladas em seu texto e independentemente
de manifestao do legislador ordinrio, como se passou em casos como o da imposio de
fidelidade partidria e o da vedao do nepotismo; b) a declarao de inconstitucionalidade de
atos normativos emanados do legislador, com base em critrios menos rgidos que os de
patente e ostensiva violao da Constituio, de que so exemplos as decises referentes
verticalizao das coligaes partidrias e clusula de barreira; c) a imposio de condutas
ou de abstenes ao Poder Pblico, tanto em caso de inrcia do legislador como no
precedente sobre greve no servio pblico ou sobre criao de municpio como no de
polticas pblicas insuficientes, de que tm sido exemplo as decises sobre direito sade.
Todas essas hipteses distanciam juzes e tribunais de sua funo tpica de aplicao do
Direito vigente e os aproximam de uma funo que mais se assemelha de criao do prprio
Direito.
A judicializao, como demonstrado acima, um fato, uma
circunstncia do desenho institucional brasileiro. J o ativismo uma atitude, a escolha de um
modo especfico e proativo de interpretar a Constituio, expandindo o seu sentido e alcance.
Normalmente, ele se instala e este o caso do Brasil em situaes de retrao do Poder
Legislativo, de um certo descolamento entre a classe poltica e a sociedade civil, impedindo
que determinadas demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. O oposto do ativismo
Lochner, 1905-1937), culminando no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte, com a mudana da orientao jurisprudencial contrria ao intervencionismo estatal (West Coast v. Parrish, 1937). A situao se inverteu no perodo que foi de meados da dcada de 50 a meados da dcada de 70 do sculo passado. Todavia, depois da guinada conservadora da Suprema Corte, notadamente no perodo da presidncia de William Rehnquist (1986-2005), coube aos progressistas a crtica severa ao ativismo judicial que passou a desempenhar. V. Frank B. Cross e Stefanie A. Lindquistt, The scientific study of judicial activism, Minnesota Law Review 91:1752, 2006-2007, p. 1753 e 1757-8; Cass Sunstein, Tilting the scales rightward, New York Times, 26 abr. 2001 (um notvel perodo de ativismo judicial direitista) e Erwin Chemerinsky, Perspective on Justice: and federal law got narrower, narrower, Los Angeles Times, 18 mai. 2000 (ativismo judicial agressivo e conservador).
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a auto-conteno judicial, conduta pela qual o Judicirio procura reduzir sua interferncia
nas aes dos outros Poderes26
. A principal diferena metodolgica entre as duas posies
est em que, em princpio, o ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair o
mximo das potencialidades do texto constitucional, inclusive e especialmente construindo
regras especficas de conduta a partir de enunciados vagos (princpios, conceitos jurdicos
indeterminados). Por sua vez, a autoconteno se caracteriza justamente por abrir mais espao
atuao dos Poderes polticos, tendo por nota fundamental a forte deferncia em relao s
aes e omisses desses ltimos.
4. Crticas expanso da interveno judicial na vida brasileira
Diversas objees tm sido opostas, ao longo do tempo, expanso do
Poder Judicirio nos Estados constitucionais contemporneos. Identificam-se aqui trs delas.
Tais crticas no infirmam a importncia do papel desempenhado por juzes e tribunais nas
democracias modernas, mas merecem considerao sria. O modo de investidura dos juzes e
membros de tribunais, sua formao especfica e o tipo de discurso que utilizam so aspectos
que exigem reflexo. Ningum deseja o Judicirio como instncia hegemnica e a
interpretao constitucional no pode se transformar em usurpao da funo legislativa.
Aqui, como em quase tudo mais, impem-se as virtudes da prudncia e da moderao27
.
4.1. Crtica poltico-ideolgica
Juzes e membros dos tribunais no so agentes pblicos eleitos. Sua
investidura no tem o batismo da vontade popular. Nada obstante isso, quando invalida atos
do Legislativo ou do Executivo ou impe-lhes deveres de atuao, o Judicirio desempenha
um papel que inequivocamente poltico. Essa possibilidade de as instncias judiciais
sobreporem suas decises s dos agentes polticos eleitos gera aquilo que em teoria
26 Por essa linha, juzes e tribunais (i) evitam aplicar diretamente a Constituio a situaes que no
estejam no seu mbito de incidncia expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinrio; (ii) utilizam critrios rgidos e conservadores para a declarao de inconstitucionalidade de leis e atos normativos; e (iii) abstm-se de interferir na definio das polticas pblicas.
27 V. Aristteles, tica a Nicmaco, 2007, p. 70 e 77: Em primeiro lugar, temos que observar que as
qualidades morais so de tal modo constitudas que so destrudas pelo excesso e pela deficincia. (...) [O] excesso e a deficincia so uma marca do vcio e a observncia da mediania uma marca da virtude....
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constitucional foi denominado de dificuldade contramajoritria28
. A jurisdio constitucional
e a atuao expansiva do Judicirio tm recebido, historicamente, crticas de natureza poltica,
que questionam sua legitimidade democrtica e sua suposta maior eficincia na proteo dos
direitos fundamentais29
. Ao lado dessas, h, igualmente, crticas de cunho ideolgico, que
veem no Judicirio uma instncia tradicionalmente conservadora das distribuies de poder e
de riqueza na sociedade. Nessa perspectiva, a judicializao funcionaria como uma reao das
elites tradicionais contra a democratizao, um antdoto contra a participao popular e a
poltica majoritria30
.
4.2. Crtica quanto capacidade institucional
Cabe aos trs Poderes interpretar a Constituio e pautar sua atuao
com base nela. Mas, em caso de divergncia, a palavra final do Judicirio. Essa primazia
no significa, porm, que toda e qualquer matria deva ser decidida em um tribunal. Para
evitar que o Judicirio se transforme em uma indesejvel instncia hegemnica31
, a doutrina
constitucional tem explorado duas ideias destinadas a limitar a ingerncia judicial: a de
28 Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 16-23: A questo mais profunda que o
controle de constitucionalidade (judicial review) uma fora contramajoritria em nosso sistema. (...) [Q]uando a Suprema Corte declara inconstitucional um ato legislativo ou um ato de um membro eleito do Executivo, ela se ope vontade de representantes do povo, o povo que est aqui e agora; ela exerce um controle, no em nome da maioria dominante, mas contra ela. (...) O controle de constitucionalidade, no entanto, o poder de aplicar e interpretar a Constituio, em matrias de grande relevncia, contra a vontade da maioria legislativa, que, por sua vez, impotente para se opor deciso judicial.
29 Um dos principais representantes dessa corrente Jeremy Waldron, autor de Law and
disagreement, 1999, e The core of the case against judicial review, Yale Law Journal 115:1346, 2006. Sua tese central a de que nas sociedades democrticas nas quais o Legislativo no seja disfuncional, as divergncias acerca dos direitos devem ser resolvidas no mbito do processo legislativo e no do processo judicial.
30 V. Ran Hirschl, Towrds juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism,
2004. Aps analisar as experincias de Canad, Nova Zelndia, Israel e frica do Sul, o autor conclui que o aumento do poder judicial por via da constitucionalizao , no geral, um pacto estratgico entre trs partes: as elites polticas hegemnicas (e crescentemente ameaadas) que pretendem proteger suas preferncias polticas contra as vicissitudes da poltica democrtica; as elites econmicas que comungam da crena no livre mercado e da antipatia em relao ao governo; e cortes supremas que buscar fortalecer seu poder simblico e sua posio institucional (p. 214). Nos Estados Unidos, em linha anloga, uma corrente de pensamento referida como constitucionalismo popular tambm critica a ideia de supremacia judicial. V., dentre muitos, Mark Tushnet, Taking the constitution away from the courts, 1999, p. 177, onde escreveu: Os liberais (progressistas) de hoje parecem ter um profundo medo do processo eleitoral. Cultivam um entusiasmo no controle judicial que no se justifica, diante das experincias recentes. Tudo porque tm medo do que o povo pode fazer.
31 A expresso do Ministro Celso de Mello. V. STF, DJ, 12 mai.2000, MS 23.452/RJ, Rel. Min. Celso
de Mello.
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capacidade institucional e a de efeitos sistmicos32
. Capacidade institucional envolve a
determinao de qual Poder est mais habilitado a produzir a melhor deciso em determinada
matria. Temas envolvendo aspectos tcnicos ou cientficos de grande complexidade podem
no ter no juiz de direito o rbitro mais qualificado, por falta de informao ou de
conhecimento especfico33
. Tambm o risco de efeitos sistmicos imprevisveis e indesejveis
podem recomendar uma posio de cautela e de deferncia por parte do Judicirio. O juiz, por
vocao e treinamento, normalmente estar preparado para realizar a justia do caso concreto,
a microjustia34
, sem condies, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decises sobre um
segmento econmico ou sobre a prestao de um servio pblico35
.
4.3. Crtica quanto limitao do debate
O mundo do Direito tem categorias, discurso e mtodos prprios de
argumentao. O domnio desse instrumental exige conhecimento tcnico e treinamento
especfico, no acessveis generalidade das pessoas. A primeira consequncia drstica da
judicializao a elitizao do debate e a excluso dos que no dominam a linguagem nem
tm acesso aos locus de discusso jurdica36
. Institutos como audincias pblicas, amicus
32 V. Cass Sunstein e Adrian Vermeulle, Intepretation and institutions, Public Law and Legal Theory
Working Paper No. 28, 2002: Ao chamarmos ateno para as capacidades institucionais e para os efeitos sistmicos, estamos sugerindo a necessidade de um tipo de virada institucional no estudo das questes de interpretao jurdicas (p. 2). Sobre o tema, v. tb. Adrian Vermeule, Foreword: system effects and the constitution, Harvard Law Review 123:4, 2009.
33 Por exemplo: em questes como demarcao de terras indgenas ou transposio de rios, em que
tenha havido estudos tcnicos e cientficos adequados, a questo da capacidade institucional deve ser sopesada de maneira criteriosa. 34
Ana Paula de Barcellos, Constitucionalizao das polticas pblicas em matria de direitos fundamentais: o controle poltico-social e o controle jurdico no espao democrtico, Revista de Direito do Estado 3:17, 2006, p. 34. Tambm sobre o tema, v. Daniel Sarmento, Interpretao constitucional, pr-compreenso e capacidades institucionais do intrprete. In: Cludio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm (coords.), Vinte anos da Constituio Federal de 1988, 2008, p. 317: [U]ma teoria hermenutica construda a partir de uma imagem romntica do juiz pode produzir resultados desastrosos quando manejada por magistrados de carne e osso que no correspondam quela idealizao....
35 Exemplo emblemtico nessa matria tem sido o setor de sade. Ao lado de intervenes
necessrias e meritrias, tem havido uma profuso de decises extravagantes ou emocionais em matria de medicamentos e terapias, que pem em risco a prpria continuidade das polticas pblicas de sade, desorganizando a atividade administrativa e comprometendo a alocao dos escassos recursos pblicos. Sobre o tema, v. Lus Roberto Barroso, Da falta de efetividade constitucionalizao excessiva: direito sade, fornecimento gratuito de medicamentos e parmetros para a atuao judicial. In: Temas de direito constitucional, tomo IV, 2009.
36 V. Jeremy Waldron, The core case against judicial review, The Yale Law Journal 115:1346, p. 133:
A judicializao tende a mudar o foco da discusso pblica, que passa de um ambiente onde as
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curiae e direito de propositura de aes diretas por entidades da sociedade civil atenuam mas
no eliminam esse problema. Surge, assim, o perigo de se produzir uma apatia nas foras
sociais, que passariam a ficar espera de juzes providenciais37
. Na outra face da moeda, a
transferncia do debate pblico para o Judicirio traz uma dose excessiva de politizao dos
tribunais, dando lugar a paixes em um ambiente que deve ser presidido pela razo38
. No
movimento seguinte, processos passam a tramitar nas manchetes de jornais e no na
imprensa oficial e juzes trocam a racionalidade plcida da argumentao jurdica por
embates prprios da discusso parlamentar, movida por vises polticas contrapostas e
concorrentes39
.
5. Importncia e limites da jurisdio constitucional nas democracias
contemporneas
A jurisdio constitucional pode no ser um componente indispensvel
do constitucionalismo democrtico, mas tem servido bem causa, de uma maneira geral40
.
Ela um espao de legitimao discursiva ou argumentativa das decises polticas, que
coexiste com a legitimao majoritria, servindo-lhe de contraponto e complemento41. Isso
razes podem ser postas de maneira aberta e abrangente para um outro altamente tcnico e formal, tendo por objeto textos e ideias acerca de interpretao (traduo livre e ligeiramente editada).
37 Rodrigo Uprimny Yepes, Judicialization of politics in Colombia, International Journal on Human
Rights 6:49, 2007, p. 63: O uso de argumentos jurdicos para resolver problemas sociais complexos pode dar a impresso de que a soluo para muitos problemas polticos no exige engajamento democrtico, mas em vez disso juzes e agentes pblicos providenciais.
38 Exemplo emblemtico de debate apaixonado foi o que envolveu o processo de extradio do ex-
militante da esquerda italiana Cesare Battisti. Na ocasio, assinalou o Ministro Eros Grau: "Parece que no h condies no tribunal de um ouvir o outro, dada a paixo que tem presidido o julgamento deste caso". Sobre o ponto, v. Felipe Recondo e Maringela Galluci, Caso Battisti expe crise no STF. In: Estado de So Paulo, 22.11.2009.
39 Em 22 abr.2009, diferentes vises sobre a relao Judicirio, mdia e sociedade levaram a uma
rspida discusso entre os Ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. V. http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2009/04/22/na-integra-bate-boca-entre-joaquim-barbosa-mendes-179585.asp.
40 V. Dieter Grimm, Jurisdio constitucional e democracia, Revista de Direito do Estado 4:3, 2006, p.
9: A jurisdio constitucional no nem incompatvel nem indispensvel democracia. (...) [H] suficientes provas histricas de que um estado democrtico pode dispensar o controle de constitucionalidade. (...) Ningum duvidaria do carter democrtico de Estados como o Reino Unido e a Holanda, que no adotam o controle de constitucionalidade. Sobre o tema, inclusive com uma reflexo acerca da posio de Dieter Grimm aplicada ao Brasil, v. Thiago Magalhes Pires, Crnicas do subdesenvolvimento: jurisdio constitucional e democracia no Brasil, Revista de direito do Estado 12:181, 2009, p. 194 e s.
41 Eduardo Bastos de Mendona, A constitucionalizao da poltica: entre o inevitvel e o excessivo,
p. 10. Artigo indito, gentilmente cedido pelo autor. Para uma defesa do ponto de vista de que as
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se torna especialmente verdadeiro em pases de redemocratizao mais recente, como o
Brasil, onde o amadurecimento institucional ainda se encontra em curso, enfrentando uma
tradio de hegemonia do Executivo e uma persistente fragilidade do sistema representativo42
.
As constituies contemporneas, como j se assinalou, desempenham dois grandes papis:
(i) o de condensar os valores polticos nucleares da sociedade, os consensos mnimos quanto a
suas instituies e quanto aos direitos fundamentais nela consagrados; e (ii) o de disciplinar o
processo poltico democrtico, propiciando o governo da maioria, a participao da minoria e
a alternncia no poder43
. Pois este o grande papel de um tribunal constitucional, do Supremo
Tribunal Federal, no caso brasileiro: proteger e promover os direitos fundamentais, bem como
resguardar as regras do jogo democrtico. Eventual atuao contramajoritria do Judicirio
em defesa dos elementos essenciais da Constituio se dar a favor e no contra a
democracia44
.
Nas demais situaes isto , quando no estejam em jogo os direitos
fundamentais ou os procedimentos democrticos , juzes e tribunais devem acatar as escolhas
legtimas feitas pelo legislador, assim como ser deferentes com o exerccio razovel de
discricionariedade pelo administrador, abstendo-se de sobrepor-lhes sua prpria valorao
poltica45
. Isso deve ser feito no s por razes ligadas legitimidade democrtica, como
cortes constitucionais deve servir como instncias de fortalecimento da representao poltica, v. Thamy Pogrebinschi, Entre judicializao e representao. O papel poltico do Supremo Tribunal Federal e o experimentalismo democrtico brasileiro, mimeografado, 2009.
42 Um dos principais crticos da judicial review, isto , possibilidade de cortes de justia declararem
a inconstitucionalidade de atos normativos, Jeremy Waldron, no entanto, reconhece que ela pode ser necessria para enfrentar patologias especficas, em um ambiente em que certas caractersticas polticas e institucionais das democracias liberais no estejam totalmente presentes. V. Jeremy Waldron, The core case against judicial review, The Yale Law Journal 115:1346, p. 1359 e s.
43 Lus Roberto Barroso, Curso de direito constitucional contemporneo, 2009, p. 89-90.
44 Para uma crtica da viso do Judicirio como instncia de proteo das minorias e de defesa das
regras democrticas, v. Luciano da Ros, Tribunais como rbitros ou como instrumentos de oposio: uma tipologia a partir dos estudos recentes sobre judicializao da poltica com aplicao ao caso brasileiro contemporneo, Direito, Estado e Sociedade 31:86, 2007, p. 100-1, onde averbou: Pode-se afirmar que tribunais so instituies que operam rigorosamente dentro dos limites que a dinmica das outras foras polticas e institucionais lhes impem, raramente decidindo fora do crculo de preferncias dos atores polticos. A idia de que tribunais salvaguardam a democracia e a Constituio contra tudo e contra todos, como muitas vezes se veicula nos crculos acadmicos, pode ser considerada ingnua.
45 Na jurisprudncia norte-americana, o caso Chevron o grande precedente da teoria da deferncia
administrativa em relao interpretao razovel dada pela Administrao. De fato, em Chevron USA Inc. vs. National Resources Defense Council Inc. (467 U.S. 837 (1984) ficou estabelecido que, havendo ambiguidade ou delegao legislativa para a agncia, o Judicirio somente deve intervir se a Administrao (no caso, uma agncia reguladora) tiver atuado contra legem ou de maneira irrazovel.
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tambm em ateno s capacidades institucionais dos rgos judicirios e sua impossibilidade
de prever e administrar os efeitos sistmicos das decises proferidas em casos individuais. Os
membros do Judicirio no devem presumir demais de si prprios como ningum deve,
alis, nessa vida , supondo-se experts em todas as matrias. Por fim, o fato de a ltima
palavra acerca da interpretao da Constituio ser do Judicirio no o transforma no nico
nem no principal foro de debate e de reconhecimento da vontade constitucional a cada
tempo. A jurisdio constitucional no deve suprimir nem oprimir a voz das ruas, o
movimento social, os canais de expresso da sociedade. Nunca demais lembrar que o poder
emana do povo, no dos juzes.
III. DIREITO E POLTICA: A CONCEPO TRADICIONAL
1. Notas sobre a distino entre Direito e poltica
A separao entre Direito e poltica tem sido considerada como
essencial no Estado constitucional democrtico. Na poltica, vigoram a soberania popular e o
princpio majoritrio. O domnio da vontade. No Direito, vigora o primado da lei (the rule of
law) e do respeito aos direitos fundamentais. O domnio da razo. A crena mitolgica nessa
distino tem resistido ao tempo e s evidncias. Ainda hoje, j avanado o sculo XXI,
mantm-se a diviso tradicional entre o espao da poltica e o espao do Direito46
. No plano
de sua criao, no h como o Direito ser separado da poltica, na medida em que produto
do processo constituinte ou do processo legislativo, isto , da vontade das maiorias. O Direito
, na verdade, um dos principais produtos da poltica, o trofu pelo qual muitas batalhas so
disputadas47
. Em um Estado de direito, a Constituio e as leis, a um s tempo, legitimam e
limitam o poder poltico.
J no plano da aplicao do Direito, sua separao da poltica tida
como possvel e desejvel. Tal pretenso se realiza, sobretudo, por mecanismos destinados a
evitar a ingerncia do poder poltico sobre a atuao judicial. Isso inclui limitaes ao prprio
46 V. Larry Kramer, The people themselves: popular constitutionalism and judicial review, 2004, p. 7.
47 V. Keith E. Whittington, R. Daniel Kelemen e Gregory A. Caldeira (eds.), The Oxford handbook of
law and politics, 2008, p. 3.
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legislador, que no pode editar leis retroativas, destinadas a atingir situaes concretas48
. Essa
separao potencializada por uma viso tradicional e formalista do fenmeno jurdico. Nela
se cultivam crenas como a da neutralidade cientfica, da completude do Direito e a da
interpretao judicial como um processo puramente mecnico de concretizao das normas
jurdicas, em valoraes estritamente tcnicas49
. Tal perspectiva esteve sob fogo cerrado ao
longo de boa parte do sculo passado, tendo sido criticada por tratar questes polticas como
se fossem lingusticas e por ocultar escolhas entre diferentes possibilidades interpretativas por
trs do discurso da nica soluo possvel50
. Mais recentemente, autores diversos tm
procurado resgatar o formalismo jurdico, em uma verso requalificada, cuja nfase a
valorizao das regras e a conteno da discricionariedade judicial51
.
2. Constituio e poderes constitudos
A Constituio o primeiro e principal elemento na interface entre
poltica e Direito. Cabe a ela transformar o poder constituinte originrio energia poltica em
estado quase puro, emanada da soberania popular em poder constitudo, que so as
instituies do Estado, sujeitas legalidade jurdica, rule of law. a Constituio que
institui os Poderes do Estado, distribuindo-lhes competncias diversas52
. Dois deles recebem
48
Dieter Grimm, Constituio e poltica, 2006, p. 13.
49 O termo formalismo empregado aqui para identificar posies que exerceram grande influncia
em todo o mundo, como a da Escola da Exegese, na Frana, a Jurisprudncia dos Conceitos, na Alemanha, e o Formalismo Jurdico, nos Estados Unidos, cuja marca essencial era a da concepo mecanicista do direito, com nfase na lgica formal e grande desconfiana em relao interpretao judicial.
50 Para Brian Z. Tamahana, Beyond the formalist-realist divide: the role of politics in judging, 2010, a
existncia do formalismo jurdico, com as caractersticas que lhe so atribudas, no corresponde realidade histrica. Segundo ele, ao menos nos Estados Unidos, essa foi uma inveno de alguns realistas jurdicos, que se apresentaram para combater uma concepo que jamais exisitiu, ao menos no com tais caractersticas: autonomia e completude do direito, solues nicas e interpretao mecnica. A tese refoge ao conhecimento convencional e certamente suscitar polmica.
51 V. Frederick Schauer, Formalism: legal, constitutional, judicial. In: Keith E. Whittington, R. Daniel
Kelemen e Gregory A. Caldeira (eds.), The Oxford handbook of law and politics, 2008, p. 428-36; e Noel Struchiner, Posturas interpretativas e modelagem institucional: a dignidade (contingente) do formalismo jurdico. In: Daniel Sarmento (coord.), Filosofia e teoria constitucional contempornea, 2009, p. 463-82. Sobre as ambiguidades do termo formalismo, v. Martin Stone, verbete formalismo. In: Jules Coleman e Scott Shapiro (Eds), The Oxford handbook of jurisprudence and philosophy of law, 2002, p. 166-205.
52 O poder constituinte, titularizado pelo povo, elabora a Constituio. A Constituio tem por
propsito submeter a poltica ao direito, impondo a ela regras procedimentais e determinados valores substantivos. Isso no significa, todavia, quer a judicializao plena quer a supresso da poltica, mas a mera existncia de limites, de uma moldura, como referido por Dieter Grimm, que acrescentou:
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atribuies essencialmente polticas: o Legislativo e o Executivo. Ao Legislativo toca,
precipuamente, a criao do direito positivo53
. J o Executivo, no sistema presidencialista
brasileiro, concentra as funes de chefe de Estado e de chefe de governo, conduzindo com
razovel proeminncia a poltica interna e externa. Legislativo e Executivo so o espao por
excelncia do processo poltico majoritrio, feito de campanhas eleitorais, debate pblico e
escolhas discricionrias. Um universo no qual o ttulo principal de acesso o voto: o que
elege, reelege ou deixa de fora.
J ao Poder Judicirio so reservadas atribuies tidas como
fundamentalmente tcnicas. Ao contrrio do chefe do Executivo e dos parlamentares, seus
membros no so eleitos. Como regra geral, juzes ingressam na carreira no primeiro grau de
jurisdio, mediante concurso pblico. O acesso aos tribunais de segundo grau se d por via
de promoo, conduzida pelo rgo de cpula do prprio tribunal54
. No tocante aos tribunais
superiores, a investidura de seus membros sofre maior influncia poltica, mas, ainda assim,
est sujeita a parmetros constitucionais55
. A atribuio tpica do Poder Judicirio consiste na
aplicao do Direito a situaes em que tenha surgido uma disputa, um litgio entre partes. Ao
decidir a controvrsia esse o entendimento tradicional , o juiz faz prevalecer, no caso
concreto, a soluo abstratamente prevista na lei. Desempenharia, assim, uma funo tcnica
de conhecimento, de mera declarao de um resultado j previsto, e no uma atividade
criativa, suscetvel de influncia poltica56
. Mesmo nos casos de controle de
constitucionalidade em tese isto , de discusso acerca da validade abstrata de uma lei , o
[U]ma poltica totalmente judicializada estaria no fundo despida de seu carter poltico e por fim reduzida administrao (Constituio e poltica, 2006, p. 10).
53 Note-se que no mbito da atuao poltica do Legislativo inclui-se, com destaque, a fiscalizao do
governo e da administrao pblica. Importante ressaltar, igualmente, que nos pases presidencialistas e no Brasil, especialmente , o chefe do Executivo tem participao destacada no processo legislativo, seja pela iniciativa seja pelo poder de sano ou veto. Sobre o tema, v. Clmerson Merlin Clve, A atividade legislativa do Poder Executivo, 2000, p. 99-118.
54 Salvo no tocante ao chamado quinto constitucional, em que h participao do chefe do Executivo
na designao de advogados e membros do Ministrio Pblico para o tribunal (CF, art. 94).
55 Nos tribunais superiores Superior Tribunal de Justia, Tribunal Superior Eleitoral, Tribunal
Superior do Trabalho e Superior Tribunal Militar , a indicao de seus ministros feita pelo Presidente da Repblica, com aprovao do Senado Federal (exceto no caso do TSE). Ainda assim, existem balizamentos constitucionais, que incluem, conforme o caso, exigncias de notrio saber jurdico e reputao ilibada, idade e origem funcional. V. CF, arts. 101, 104, 119, 111-A e 123.
56 Sobre a interpretao jurdica como mera funo tcnica de conhecimento, v. Michel Troper,
verbete Interprtation. In: Denis Alland e Stphane Rials Dictionnaire de la culture juridique, 2003, p. 843.
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Judicirio estaria fazendo prevalecer a vontade superior da Constituio sobre a deciso
poltica majoritria do Legislativo.
3. A pretenso de autonomia do Judicirio e do Direito em relao poltica
A maior parte dos Estados democrticos do mundo reserva uma parcela
de poder poltico para ser exercido pelo Judicirio, isto , por agentes pblicos que no so
eleitos. Quando os rgos judiciais resolvem disputas entre particulares, determinando, por
exemplo, o pagamento de uma indenizao por quem causou um acidente, decretando um
divrcio ou o despejo de um imvel, no h muita polmica sobre a legitimidade do poder que
exerce. A Constituio confere a ele competncia para solucionar os litgios em geral e disso
que se trata. A questo ganha em complexidade, todavia, quando o Judicirio atua em disputas
que envolvem a validade de atos estatais ou nas quais o Estado isto , outros rgos de
Poder seja parte. o que ocorre quando declara inconstitucional a cobrana de um tributo,
suspende a execuo de uma obra pblica por questes ambientais ou determina a um hospital
pblico que realize tratamento experimental em paciente que solicitou tal providncia em
juzo. Nesses casos, juzes e tribunais sobrepem sua vontade de agentes pblicos de outros
Poderes, eleitos ou nomeados para o fim especfico de fazerem leis, construrem estradas ou
definirem as polticas de sade.
Para blindar a atuao judicial da influncia imprpria da poltica, a
cultura jurdica tradicional sempre se utilizou de dois grandes instrumentos: a independncia
do Judicirio em relao aos rgos propriamente polticos de governo; e a vinculao ao
Direito, pela qual juzes e tribunais tm sua atuao determinada pela Constituio e pelas
leis. rgos judiciais, ensina o conhecimento convencional, no exercem vontade prpria,
mas concretizam a vontade poltica majoritria manifestada pelo constituinte ou pelo
legislador. A atividade de interpretar e aplicar normas jurdicas regida por um conjunto de
princpios, regras, convenes, conceitos e prticas que do especificidade cincia do
Direito ou dogmtica jurdica. Este, portanto, o discurso padro: juzes so independentes da
poltica e limitam-se a aplicar o direito vigente, de acordo com critrios aceitos pela
comunidade jurdica.
3.1. Independncia do Judicirio
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A independncia do Judicirio um dos dogmas das democracias
contemporneas. Em todos os pases que emergiram de regimes autoritrios, um dos tpicos
essenciais do receiturio para a reconstruo do Estado de direito a organizao de um
Judicirio que esteja protegido de presses polticas e que possa interpretar e aplicar a lei com
iseno, baseado em tcnicas e princpios aceitos pela comunidade jurdica. Independncia e
imparcialidade como condies para um governo de leis, e no de homens. De leis, e no de
juzes, fique bem entendido57
. Para assegurar que assim seja, a Constituio brasileira, por
exemplo, confere magistratura garantias institucionais que incluem autonomia
administrativa e financeira e funcionais, como a vitaliciedade, inamovibilidade e
irredutibilidade de remunerao58
. Naturalmente, para resguardar a harmonia com outros
Poderes, o Judicirio est sujeito a checks and balances e, desde a Emenda Constitucional n
45, de 2004, ao controle administrativo, financeiro e disciplinar do Conselho Nacional de
Justia. Em uma democracia, todo poder representativo, o que significa que deve ser
transparente e prestar contas sociedade. Nenhum poder pode estar fora do controle social,
sob pena de se tornar um fim em si mesmo, prestando-se ao abuso e a distores diversas59
.
3.2. Vinculao ao direito posto e dogmtica jurdica
O mundo do Direito tem suas fronteiras demarcadas pela Constituio e
seus caminhos determinados pelas leis. Alm disso, tem valores, categorias e procedimentos
prprios, que pautam e limitam a atuao dos agentes jurdicos, sejam juzes, advogados ou
membros do Ministrio Pblico. Pois bem: juzes no inventam o Direito do nada. Seu papel
o de aplicar normas que foram positivadas pelo constituinte ou pelo legislador. Ainda quando
57 Registre-se a aguda observao de Dieter Grimm, ex-juiz da Corte Constitucional alem: A
garantia constitucional de independncia judicial protege os juzes da poltica, mas no protege o sistema constitucional e a sociedade de juzes que, por razes distintas da presso poltica direta, esto dispostos a desobedecer ou distorcer a lei (Dieter Grimm, Constitutions, constitutional courts and constitutional interpretation at the interface of law and politics. In: Bogdan Iancu (ed.), The law/politics distinction in contemporary public law adjudication, 2009, p. 26).
58 V. Constituio Federal, arts. 95 e 99. Sobre o tema, v. Lus Roberto Barroso, Constitucionalidade e
legitimidade da criao do Conselho Nacional de Justia, Interesse Pblico 30:13, 2005.
59 Em texto escrito anteriormente criao do Conselho Nacional de Justia, e tendo como pano de
fundo disputas politizadas ligadas privatizao e aos planos econmicos, escreveu Carlos Santiso, Economic reform and judicial governance in Brazil: balancing independence with accountability. In: Siri Gloppen, Roberto Gargarella e Elin Skaar, Democratization and the judiciary, 2004, p. 172 e 177: Excessiva independncia tende a gerar incentivos perversos e insular o Judicirio do contexto poltico e econmico mais amplo, convertendo-o em uma instituio autrquica, incapaz de responder s demandas sociais. (...) Independncia sem responsabilidade poltica (accountability) pode ser parte do problema e no da soluo.
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desempenhem uma funo criativa do Direito para o caso concreto, devero faz-lo luz dos
valores compartilhados pela comunidade a cada tempo. Seu trabalho, portanto, no inclui
escolhas livres, arbitrrias ou caprichosas. Seus limites so a vontade majoritria e os valores
compartilhados. Na imagem recorrente, juzes de direito so como rbitros desportivos: cabe-
lhes valorar fatos, assinalar faltas, validar gols ou pontos, marcar o tempo regulamentar,
enfim, assegurar que todos cumpram as regras e que o jogo seja justo. Mas no lhes cabe
formular as regras60
. A metfora j teve mais prestgio, mas possvel aceitar, para no
antecipar a discusso do prximo tpico, que ela seja vlida para qualificar a rotina da
atividade judicial, embora no as grandes questes constitucionais.
No est em questo, portanto, que as escolhas polticas devem ser
feitas, como regra geral, pelos rgos eleitos, isto , pelo Congresso e pelo Presidente. Os
tribunais desempenham um papel importante na vida democrtica, mas no o papel principal.
Dois autores contemporneos utilizaram expresses que se tornaram emblemticas para
demarcar o papel das cortes constitucionais. Ronald Dworkin referiu-se a frum de
princpios. Em uma sociedade democrtica, algumas questes decisivas devem ser tratadas
como questes de princpios morais ou polticos e no como uma questo de poder
poltico, de vontade majoritria. So elas as que envolvem direitos fundamentais das pessoas,
e no escolhas gerais sobre como promover o bem-estar social61
. J John Rawls explorou a
idia de razo pblica. Em uma democracia pluralista, a razo pblica consiste na
justificao das decises polticas sobre questes constitucionais essenciais e sobre questes
de justia bsica, como os direitos fundamentais. Ela expressa os argumentos que pessoas
com formao poltica e moral diversa podem acatar, o que exclui, portanto, o emprego de
60 Em uma das audincias que antecederam sua confirmao como Presidente da Suprema Corte
americana, em setembro de 2005, John G. Roberts Jr. voltou a empregar essa metfora frequente: Juzes so como rbitros desportivos (umpires). Eles no fazem as regras; eles as aplicam. O papel de um rbitro, assim como o de um juiz, muito importante. Eles asseguram que todos joguem de acordo com as regras. Mas um papel limitado. A passagem est reproduzida em Week in review, New York Times, 12 jul. 2009. V. a ntegra do depoimento em http://www.gpoaccess.gov/congress/senate/judiciary/sh109-158/55-56.pdf.
61 V. Ronald Dworkin, A matter of principle, 1985, p. 69-71. A fiscalizao judicial assegura que as
questes mais fundamentais de moralidade poltica sero apresentadas e debatidas como questes de princpio, e no apenas de poder poltico. Essa uma transformao que no poder jamais ser integralmente bem-sucedida apenas no mbito do Legislativo. Por exemplo: a igualdade racial, a igualdade de gnero, a orientao sexual, os direitos reprodutivos, o direito do acusado ao devido processo legal, dentre outras, so questes de princpio, e no de poltica.
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doutrinas abrangentes, como as de carter religioso ou ideolgico62
. Em suma: questes de
princpio devem ser decididas, em ltima instncia, por cortes constitucionais, bom base em
argumentos de razo pblica.
3.3. Limites da separao entre Direito e poltica
Direito , certamente, diferente da poltica. Mas no possvel ignorar
que a linha divisria entre ambos, que existe inquestionavelmente, nem sempre ntida, e
certamente no fixa63
. Do ponto de vista da teoria jurdica, tem escassa adeso, nos dias que
correm, a crena de que as normas jurdicas tragam sempre em si um sentido nico, objetivo,
vlido para todas as situaes sobre as quais incidem. E que, assim, caberia ao intrprete uma
atividade de mera revelao do contedo preexistente na norma, sem desempenhar qualquer
papel criativo na sua concretizao. H praticamente consenso, na doutrina contempornea,
de que a interpretao e aplicao do Direito envolvem elementos cognitivos e volitivos. Do
ponto de vista funcional, bem de ver que esse papel de intrprete final e definitivo, em caso
de controvrsia, desempenhado por juzes e tribunais. De modo que o Poder Judicirio e,
notadamente, o Supremo Tribunal Federal, desfruta de uma posio de primazia na
determinao do sentido e do alcance da Constituio e das leis, pois cabe-lhe dar a palavra
final, que vincular os demais Poderes. Essa supremacia judicial quanto determinao do
que o Direito envolve, por evidente, o exerccio de um poder poltico, com todas as suas
implicaes para a legitimidade democrtica64
.
IV. DIREITO E POLTICA: O MODELO REAL
1. Os laos inevitveis: a lei e sua interpretao como atos de vontade
62
John Rawls, Political liberalism, 1996, p. 212 e s., especialmente p. 231-40. Nas suas prprias palavras: (A razo pblica) se aplica tambm, e de forma especial, ao Judicirio e, acima de tudo, suprema corte, onde haja uma democracia constitucional com controle de constitucionalidade. Isso porque os Ministros tm que explicar e justificar suas decises, baseadas na sua compreenso da Constituio e das leis e precedentes relevantes. Como os atos do Legislativo e do Executivo no precisam ser justificados dessa forma, o papel especial da Corte a torna um caso exemplar de razo pblica. Para uma crtica da viso de Rawls, v. Jeremy Waldron, Public reason and justification in the courtroom, Journal of Law, Philosophy and Culture 1:108, 2007.
63 V. Eduardo Mendona, A insero da jurisdio constitucional na democracia: algum lugar entre o
direito e a poltica, Revista de direito do Estado 13:211, 2009, p. 212.
64 Sobre o conceito de legitimidade e sua evoluo, v. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, 2008,
Quatro paradigmas do direito administrativo ps-moderno, p. 33-47.
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No mundo romano-germnico, comum fazer-se referncia ao Direito
como uma cincia. A afirmao pode ser aceita, ainda que com reserva, se o termo cincia for
tomado no sentido de um conjunto organizado de conhecimentos, que guarda uma lgica
interna e tem princpios, conceitos e categorias especficos, unificados em uma terminologia
prpria. Mas intuitiva a distino a ser feita em relao s cincias da natureza. Essas
ltimas so domnios que lidam com fenmenos que se ordenam independentemente da
vontade humana, seja o legislador, o pblico em geral ou o intrprete. So cincias que se
destinam a explicar o que l j est. Sem pretender subestimar complexidades
epistemolgicas, so domnios em que o anseio cientfico por objetividade e comprovao
imparcial se realiza mais intensamente. J o Direito se insere no campo das cincias sociais e
tem, sobretudo, uma pretenso prescritiva: ele procura moldar a vida de acordo com suas
normas. E normas jurdicas no so reveladas, mas, sim, criadas por decises e escolhas
polticas, tendo em vista determinadas circunstncias e visando determinados fins. E, por
terem carter prospectivo, precisaro ser interpretadas no futuro, tendo em conta fatos e casos
concretos.
Como consequncia, tanto a criao quanto a aplicao do Direito
dependem da atuao de um sujeito, seja o legislador ou o intrprete. A legislao, como ato
de vontade humana, expressar os interesses dominantes ou, se se preferir, o interesse
pblico, tal como compreendido pela maioria, em um dado momento e lugar. E a jurisdio,
que a interpretao final do Direito aplicvel, expressar, em maior ou menor intensidade, a
compreenso particular do juiz ou do tribunal acerca do sentido das normas. Diante de tais
premissas, possvel extrair uma concluso parcial bastante bvia, ainda que frequentemente
encoberta: o mantra repetido pela comunidade jurdica mais tradicional de que o Direito
diverso da poltica exige um complemento. distinto, sim, e por certo; mas no isolado
dela. Suas rbitas se cruzam e, nos momentos mais dramticos, se chocam, produzindo
vtimas de um ou dos dois lados: a justia e a segurana jurdica, que movem o Direito; ou a
soberania popular e a legitimidade democrtica, que devem conduzir a poltica. A seguir se
exploram diferentes aspectos dessa relao. Alguns deles so ligados teoria do Direito e da
interpretao, e outros s circunstncias dos juzes e rgos julgadores.
2. A interpretao jurdica e suas complexidades: o encontro no marcado entre
o Direito e a poltica
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2.1. A linguagem aberta dos textos jurdicos
A linguagem jurdica, como a linguagem em geral, utiliza-se de signos
que precisam ser interpretados. Tais signos, muitas vezes, possuem determinados sentidos
consensuais ou de baixo grau de controvrsia. Embora nem sempre as coisas sejam simples
como parecem, h pouca dvida do que signifique municpio, oramento ou previdncia
complementar. Mas a Constituio se utiliza, igualmente, de inmeras clusulas abertas, que
incluem conceitos jurdicos indeterminados e princpios. Calamidade pblica, relevncia e
urgncia ou crime poltico so conceitos que transmitem uma ideia inicial de sentido, mas que
precisam ser integrados luz dos elementos do caso concreto. E, em relao a eles, embora
possam existir certezas positivas e negativas sobre o que significam ou deixam de significar,
indiscutvel que h uma ampla rea de penumbra que se presta a valoraes que no podero
refugir a algum grau de subjetividade. O fenmeno se repete com maior intensidade quando
se trate de princpios constitucionais, com sua intensa carga axiolgica, como dignidade da
pessoa humana, moralidade administrativa ou solidariedade social. Tambm aqui ser
impossvel falar em sentidos claros e unvocos. Na interpretao de normas cuja linguagem
aberta e elstica, o Direito perde muito da sua objetividade e abre espao para valoraes do
intrprete. O fato de existir consenso de que ao atribuir sentido a conceitos indeterminados e a
princpios no deve o juiz utilizar-se dos seus prprios valores morais e polticos no elimina
riscos e complexidades, funcionando como uma bssola de papel.
2.2. Os desacordos morais razoveis
Alm dos problemas de ambiguidade da linguagem, que envolvem a
determinao semntica de sentido da norma, existem, tambm, em uma sociedade pluralista
e diversificada, o que se tem denominado de desacordo moral razovel65
. Pessoas bem
intencionadas e esclarecidas, em relao a mltiplas matrias, pensam de maneira
radicalmente contrria, sem conciliao possvel. Clusulas constitucionais como direito
vida, dignidade da pessoa humana ou igualdade do margem a construes hermenuticas
distintas, por vezes contrapostas, de acordo com a pr-compreenso do intrprete. Esse
65 Sobre o tema, na literatura mais recente, v. Christopher McMahon, Reasonable disagreement: a
theory of political morality, 2009; e Folke Tersman, Moral disagreement, 2006.
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fenmeno se revela em questes que so controvertidas em todo o mundo, inclusive no Brasil,
como, por exemplo, interrupo de gestao, pesquisas com clulas-tronco embrionrias,
eutansia/ortotansia, unies homoafetivas, em meio a inmeras outras. Nessas matrias,
como regra geral, o papel do Direito e do Estado deve ser o de assegurar que cada pessoa
possa viver sua autonomia da vontade e suas crenas. Ainda assim, inmeras complexidades
surgem, motivadas por vises filosficas e religiosas diversas.
2.3. As colises de normas constitucionais
Constituies so documentos dialticos e compromissrios, que
consagram valores e interesses diversos, que eventualmente entram em rota de coliso. Essas
colises podem se dar, em primeiro lugar, entre princpios ou interesses constitucionalmente
protegidos. o caso, por exemplo, da tenso entre desenvolvimento nacional e proteo do
meio-ambiente ou entre livre-iniciativa e represso ao abuso do poder econmico. Tambm
possvel a coliso entre direitos fundamentais, como a liberdade de expresso e o direito de
privacidade, ou entre a liberdade de reunio e o direito de ir e vir (no caso, imagine-se, de
uma passeata que bloqueie integralmente uma via de trnsito essencial). Por fim, possvel
cogitar de coliso de direitos fundamentais com certos princpios ou interesses
constitucionalmente protegidos, como o caso da liberdade individual, de um lado, e a
segurana pblica e a persecuo penal, de outro. Em todos esses exemplos, vista do
princpio da unidade da Constituio, o intrprete no pode escolher arbitrariamente um dos
lados, j que no h hierarquia entre normas constitucionais. De modo que ele precisar
demonstrar, argumentativamente, luz dos elementos do caso concreto, mediante ponderao
e uso da proporcionalidade, que determinada soluo realiza mais adequadamente a vontade
da Constituio, naquela situao especfica.
Todas essas hipteses referidas acima ambiguidade da linguagem,
desacordo moral e colises de normas recaem em uma categoria geral que tem sido referida
como casos difceis (hard cases)66
. Nos casos fceis, a identificao do efeito jurdico
decorrente da incidncia da norma sobre os fatos relevantes envolve uma operao simples,
de mera subsuno. O proprietrio de um imvel urbano deve pagar imposto predial. A
66 Sobre o tema, v. Ronald Dworkin, Taking rights seriiusly, 1997, p. 81 e s.; e Aharon Barak, The
judge in a democracy, 2006, p. xiii e s.
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Constituio no permite ao Chefe do Executivo um terceiro mandato. J os casos difceis
envolvem situaes para as quais no existe uma soluo acabada no ordenamento jurdico.
Ela precisa ser construda argumentativamente, por no resultar do mero enquadramento do
fato norma. Pode um artista, em nome do direito de privacidade, impedir a divulgao de
sua biografia, escrita por um pesquisador? Pode o autor de uma ao de investigao de
paternidade exigir que o indigitado pai se submeta coativamente a exame de DNA? Em
ambos os casos, que envolvem questes constitucionais privacidade, liberdade de expresso,
direitos da personalidade, liberdade individual a soluo para a disputa no encontrvel
pr-pronta no sistema jurdico: ela precisa ser desenvolvida justificadamente pelo intrprete.
2.4. A interpretao constitucional e seus mtodos
Em todas as hipteses referidas acima, envolvendo casos difceis, o
sentido da norma precisar ser fixado pelo juiz. Como se registrou, so situaes em que a
soluo no estar pronta em uma prateleira jurdica e, portanto, exigir uma atuao criativa
do intrprete, que dever argumentativamente justificar seu itinerrio lgico e suas escolhas.
Se a soluo no est integralmente na norma, o juiz ter de recorrer a elementos externos ao
direito posto, em busca do justo, do bem, do legtimo. Ou seja, sua atuao ter de se valer da
filosofia moral e da filosofia poltica. Mesmo admitida esta premissa a de que o juiz, ao
menos em certos casos, precisa recorrer a elementos extrajurdicos , ainda assim se vai
verificar que diferentes juzes adotam diferentes mtodos de interpretao. H juzes que
pretendem extrair da Constituio suas melhores potencialidades, realizando na maior
extenso possvel os princpios e direitos fundamentais. H outros que entendem mais
adequado no ler na Constituio o que nela no est de modo claro ou expresso, prestando
maior deferncia ao legislador ordinrio67
. Uma pesquisa emprica revelar, sem surpresa, que
67 Cass Sunstein, Radicals in robes, 2005, identifica quatro abordagens no debate constitucional:
perfeccionismo, majoritarianismo, minimialismo e fundamentalismo. O perfeccionismo, adotado por muitos juristas progressistas, quer fazer da Constituio o melhor que ela possa ser. O majoritarianismo pretende diminuir o papel da Suprema Corte e favorecer o processo poltico democrtico, cujo centro de gravidade estaria no Legislativo. O minimalismo ctico acerca de teorias interpretativas e acredita em decises menos abrangentes, focadas no caso concreto e no em proposies amplas. O fundamentalismo procura interpretar a Constituio dando-lhe o sentido que tinha quando foi ratificada. Para uma dura crtica ao minimalismo defendido por Sunstein, v. Ronald Dworkin, Looking for Cass Sunstein, The New York Review of Books 56, 30 abr. 2009 (tambm disponvel em http://www.nybooks.com/articles/22636).
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os mesmos juzes nem sempre adotam os mesmos mtodos de interpretao68
. Seu mtodo ou
filosofia judicial mera racionalizao da deciso que tomou por outras razes69
. E a surge
uma nova varivel: o resultado baseado no no princpio, mas no fim, no resultado70
.
Nesse ponto, impossvel no registrar a tentao de se abrir espao para
o debate acerca de uma das principais correntes filosficas do Direito contemporneo: o
pragmatismo jurdico, com seu elemento constitutivo essencial, que o consequencialismo.
Para essa concepo, as consequncias e resultados prticos das decises judiciais, assim em
relao ao caso concreto como ao sistema como um todo, devem ser o fator decisivo na
atuao dos juzes e tribunais71
. O pragmatismo jurdico afasta-se do debate filosfico em
geral, seja moral ou poltico inclusive o que mobilizou jusnaturalistas e positivistas em torno
da resposta pergunta o que o direito? e se alinha a um empreendimento terico
distinto, cuja indagao central : como os juzes devem decidir?72. No o caso, aqui, de
68 Sobre o ponto, v. Alexandre Garrido da Silva, Minimalismo, democracia e expertise: o Supremo
Tribunal Federal diante de questes polticas e cientficas complexas, Revista de direito do Estado 12:107, p. 139: importante destacar que no h um magistrado que em sua prtica jurisdicional seja sempre minimalista ou perfeccionista. Nos casos da fidelidade partidria, da clusula de barreira e da inelegibilidade, por exemplo, o Min. Eros Grau assumiu um posicionamento nitidamente minimalista e formalista, ao passo que no caso do amianto aproximou-se, conforme foi visto, do modelo perfeccionista.
69 Para essa viso ctica, v. Richard A. Posner, How judges think, 2008, p. 13, onde registrou que as
filosofias judiciais so ou racionalizaes para decises tomadas por outros fundamentos ou armas retricas.
70 V., ainda uma vez, Alexandre Garrido da Silva, Minimalismo, democracia e expertise: o Supremo
Tribunal Federal diante de questes polticas e cientficas complexas, Revista de Direito do Estado 12:107, p. 139: Frequentemente, os juzes tendem a fazer um uso estratgico dos modelos anteriormente descritos tendo em vista fins previamente escolhidos, ou seja, optam pragmaticamente pelo modelo mais adequado para a resoluo do problema enfrentado no caso concreto. Sobre o consequencialismo isto , o processo decisrio fundado no resultado , v. Diego Werneck Arguelles, Deuses pragmticos, mortais formalistas: a justificao consequencialista das decises judiciais, dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em direito Pblico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ, mimeografado, 2006.
71 Sobre o pragmatismo filosfico, v. Richard Rorty, Consequences of pragmatism, 1982. Sobre o
pragmatismo jurdico, no debate norte-americano, vejam-se, dentre muitos: Richard Posner, Law, pragmatism and democracy, 2003; e Jules Coleman, The practice of principle: in defence of a pragmatic approach to legal theory, 2001. Em lngua portuguesa, v. Diego Werneck Arguelhes e Fernando Leal, Pragmatismo como [meta] teoria normativa da deciso judicial: caracterizao, estratgia e implicaes. In: Daniel Sarmento (coord.), Filosofia e teoria constitucional contempornea, 2009; Thamy Pogrebinschi, Pragmatismo: teoria social e poltica, 2005; e Cludio Pereira de Souza Neto, A interpretao constitucional contempornea entre o construtivismo e o pragmatismo. In: Maia, Melo, Cittadino e Pogrebinschi (orgs.), Perspectivas atuais da filosofia do direito, 2005.
72 Sobre esse ponto especfico, v. Diego Werneck Arguelhes e Fernando Leal, Pragmatismo como
[meta] teoria normativa da deciso judicial: caracterizao, estratgia e implicaes. In: Daniel Sarmento (coord.), Filosofia e teoria constitucional contempornea, 2009, p. 175 e 187.
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se objetar que uma coisa no exclui a outra. A realidade incontornvel, na circunstncia
presente, que o desvio que conduz ao debate sobre o pragmatismo jurdico no poder ser
feito no mbito desse trabalho. E isso no apenas por afast-lo do seu eixo central, como
tambm pela complexidade da tarefa de qualificar o que seja pragmatismo jurdico e de
sistematizar as diferentes correntes que reivindicam o rtulo.
3. O juiz e suas circunstncias: influncias polticas em um julgamento73
No modelo idealizado, o Direito imune s influncias da poltica, por
fora de diferentes institutos e mecanismos. Basicamente, eles consistiriam: na independncia
do Judicirio e na vinculao do juiz ao sistema jurdico. A independncia se manifesta, como
assinalado, em garantias institucionais como a autonomia administrativa e financeira e
garantias funcionais dos juzes, como a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de
subsdios. Como regra geral, a investidura e a ascenso na carreira da magistratura se d por
critrios tcnicos ou por valoraes interna corporis. Nos casos em que h participao
poltica na nomeao de magistrados para tribunais, ela se esgota aps a posse, pois a
permanncia vitalcia do magistrado no cargo j no depender de qualquer novo juzo
poltico. A autonomia e especificidade do universo jurdico, por sua vez, consistem em um
conjunto de doutrinas, categorias e princpios prprios, manejados por juristas em geral a
includos juzes, advogados, membros do Ministrio Pblico e demais participantes do
processo jurdico e judicial que no se confundem com os da poltica. Trata-se de um
discurso e de um cdigo de relao diferenciados. Julgar distinto de legislar e de
administrar. Juzes no criam o Direito nem definem as aes administrativas. Seu papel
aplicar a Constituio e as leis, valendo-se de um conjunto de institutos consolidados de longa
data, sendo que a jurisprudncia desempenha, crescentemente, um papel limitador dessa
atuao, pela vinculao aos precedentes. Direito e poltica, nessa viso, constituem mundos
apartados.
H um modelo oposto a esse, que se poderia denominar de modelo
ctico, que descr da autonomia do Direito em relao poltica e aos fenmenos sociais em
geral. Esse o ponto de vista professado por movimentos tericos de expresso, como o
73 As ideias que se seguem beneficiaram-se, intensamente, das formulaes contidas em Barry
Friedman, The politics of judicial review, Texas Law Review 84:257, 2005.
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realismo jurdico, a teoria crtica e boa parte das cincias sociais contemporneas. Todos eles
procuram descrever o mundo jurdico e as decises judiciais como so, e no como deveriam
ser. Afirmam, assim, que a crena na objetividade do Direito e a existncia de solues
prontas no ordenamento jurdico no passam de mitos. No verdade que o Direito seja um
sistema de regras e de princpios harmnicos, de onde um juiz imparcial e apoltico colhe as
solues adequadas para os problemas, livre de influncias externas. Essa uma fantasia do
formalismo jurdico. Decises judiciais refletem as preferncias pessoais dos juzes, proclama
o realismo jurdico; so essencialmente polticas, verbera a teoria crtica; so influenciadas
por inmeros fatores extrajurdicos, registram os cientistas sociais. Todo caso difcil pode ter
mais de uma soluo razovel construda pelo intrprete, e a soluo que ele produzir ser,
em ltima anlise, aquela que melhor atenda a suas preferncias pessoais, sua ideologia ou
outros fatores externos, como os de natureza institucional. Ele sempre agir assim, tenha ou
no conscincia do que est fazendo.
O modelo real, como no difcil de intuir, ter uma dose razovel de
cada uma das vises extremas descritas acima. O Direito pode e deve ter uma vigorosa
pretenso de autonomia em relao poltica. Isso essencial para a subsistncia do conceito
de Estado de direito e para a confiana da sociedade nas instituies judiciais. A realidade,
contudo, revela que essa autonomia ser sempre relativa. Existem razes institucionais,
funcionais e humanas para que seja assim. Decises judiciais, com frequncia, refletiro
fatores extrajurdicos. Dentre eles incluem-se os valores pessoais e ideolgicos do juiz, assim
como outros elementos de natureza poltica e institucional. Por longo tempo, a teoria do
Direito procurou negar esse fato, a despeito das muitas evidncias. Pois bem: a energia
despendida na construo de um muro de separao entre o Direito e a poltica deve voltar-se
agora para outra empreitada74
. Cuida-se de entender melhor os mecanismos dessa relao
intensa e inevitvel, com o propsito relevante de preservar, no que essencial, a
especificidade e, sobretudo, a integridade do Direito75
. Pois justamente este o objetivo do
presente tpico: analisar alguns desses elementos metajurdicos que influenciam ou podem
influenciar as decises judiciais. Confira-se a sistematizao a seguir.
74 V. Barry Friedman, The politics of judicial review, Texas Law Review 84:257, 2005, p. 267 e p. 269,
onde averbou: Se, como os juristas vm crescentemente reconhecendo, direito e poltica no podem ser mantidos separados, ainda precisamos de uma teoria que possa integr-los, sem abrir mo dos compromissos com o Estado de direito que esta sociedade tanto preza.
75 Sobre a ideia de direito como integridade, v. Ronald Dworkin, O imprio do direito, 1999, p. 271-
331.
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3.1. Valores e ideologia do juiz
Como assinalado, o realismo jurdico, um dos mais importantes
movimentos tericos do Direito no sculo XX, contribuiu decisivamente para a superao do
formalismo jurdico e da crena de que a atividade judicial seria mecnica, acrtica e unvoca.
Enfatizando que o Direito tem ambiguidades e contradies, o realismo sustentava que a lei
no o nico e, em muitos casos, sequer o mais importante fator a influenciar uma
deciso judicial. Em uma multiplicidade de hipteses, o juiz que faz a escolha do resultado,
luz de suas intuies, personalidade, preferncias e preconceitos76
. Em linha anloga, mas
dando proeminncia absoluta ao elemento poltico, a teoria crtica77
, no mundo romano-
germnico, e os critical legal studies, nos Estados Unidos, sustentaram que decises judiciais
no passam de escolhas polticas, encobertas por um discurso que procura exibir
neutralidade78
. Tanto o realismo quanto a teoria crtica refluram drasticamente nas ltimas
dcadas, mas deixaram uma marca indelvel no pensamento jurdico contemporneo79
. Mais
recentemente, um conjunto de estudos empricos, oriundos, sobretudo, da cincia poltica,
recolocaram no centro do debate
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