amor, perda e angÚstia: reflexÕes a partir de um...
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AMOR, PERDA E ANGÚSTIA: REFLEXÕES A PARTIR DE UM CASO CLÍNICO
Patrícia do Socorro Nunes Pereira1
Roseane Freitas Nicolau2
Jamile Luz Morais3
O que será que me dáE que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimularO que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem descanso, nem nunca teráChico Buarque (Flor da pele)
Este trabalho, resultado do grupo de Pesquisa “O Sintoma do Corpo4”, tem como
objetivo discutir, através de um caso atendido na Clínica-Escola de Psicologia da
UFPA, a angústia e seus efeitos no corpo. A paciente, a quem chamamos Mara, queixa-
se da relação com a mãe, de quem diz ressentir-se pelo fato da mesma não lhe destinar a
atenção e o afeto que almeja, não se sentindo de fato amada por ela.
Em decorrência da separação dos pais, Mara foi criada pela avó que a explorava
e maltratava física e verbalmente, delegando a ela duras tarefas domésticas, como cuidar
da casa, dos irmãos e de um bebê, filha de sua tia. Relata que a avó só se dirigia a ela
para cobrar o bom cumprimento dessas atividades, não demonstrando qualquer atitude
de afeto em relação a ela. O descumprimento de tais obrigações resultava em
verdadeiras torturas, que iam desde xingamentos até pancadas na cabeça. Segundo
Mara, estes maus tratos a impediram de aprender a ler e escrever.
Além dos maus tratos, foi assediada e abusada sexualmente pelo companheiro de
sua avó aos dez anos de idade. Os abusos tornaram-se freqüentes, até o momento em
que a avó o flagrou abusando de outra criança, expulsando-o de casa. Embora tenha
comunicado inúmeras vezes a avó do abuso sofrido, ela não acreditava:
1 Psicóloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará
(UFPA), membro do grupo de Pesquisa “O Sintoma do Corpo”. Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Psicanalista, professora do Programa em Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e
coordenadora do grupo de Pesquisa “O Sintoma do Corpo”. Endereço eletrônico: [email protected] Psicóloga, mestre em Psicologia pela UFPA, membro do grupo de Pesquisa “O Sintoma do Corpo”.
Endereço eletrônico: [email protected]. 4 Grupo de pesquisa desenvolvido na clínica de psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
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“Minha avó nunca acreditou, nem depois que ela pegou ele ‘tocando nas
partes’ da menina de cinco anos que ela pegou pra criar. Fiquei menstruada a
primeira vez, depois não menstruei mais, a vovó achava que eu tava grávida, falou uma
porção de coisa, me xingou muito. Depois fiquei doente, com inflamação séria. Vim
com a vovó pra Belém, fui ao médico, e ela disse pra ele que eu tinha caído em cima de
um pau, que tive uma queda, de pernas abertas. O médico disse que não mentisse, pois
podia afirmar que aquilo não era de queda e sim conseqüência de uma relação
forçada, que eu tinha ferimento no útero”.
Posteriormente, já casada, Mara passou a sentir dores na região pélvica, tanto
durante a relação sexual, quanto fora dela. Além disso, relata dores intensas na cabeça e
desmaios. Sobre as dores na região pélvica, diz ter sido submetida a diversos exames e
avaliação ginecológica, não sendo detectada nenhuma alteração. Relacionava as dores
de cabeça e desmaios a situações de tensão e ansiedade, o que nos leva a pensar que as
dores manifestadas no real de seu corpo vinham sinalizar uma dor psíquica: a dor de não
ter se sentido amada. Paradoxalmente, era esse mesmo sentimento que a empurrava para
uma atitude de buscar incessantemente esse amor, insistindo em visitar a mãe todos os
fins de semana. A mãe, além de não lhe dar a devida atenção, agredia-a verbalmente,
principalmente quando bebia. Tal situação causava-lhe intenso mal estar, forte dor de
cabeça e culminava em desmaios. Nem mesmo o fato de ter machucado a cabeça num
desses episódios fez com que sua mãe se sensibilizasse, continuando a demonstrar
indiferença.
No texto sobre o narcisismo, Freud (1914/2004) aponta para a importância do
amar e ser amado, dizendo que assim como “um forte egoísmo protege contra
adoecimento” (p. 106), também podemos adoecer se não pudermos amar e ser amado.
Mara ama, porém sente a ausência de amor, o que manifesta através das dores no corpo.
Em Ansiedade, dor e luto Freud (1926/1996), afirma que a dor, quando ocasionada
pela perda do objeto amado, manifesta-se na mesma intensidade de uma dor vivenciada
na parte danificada do corpo. Mas, neste caso, seria possível separar a dor física da dor
psíquica?
Em Além do Princípio do Prazer, Freud (1920/ 2006) remete à dor física e diz
que esta seria fruto de um afeto intenso e sem mediação psíquica. A dor, uma vez
aparecendo para o sujeito como algo intenso, avassalador, sentido no orgânico, revela
também um psiquismo fragilizado que não é capaz de simbolizar tamanha quantidade de
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afeto. Nessa perspectiva, podemos dizer que a dor física decorrente desse afeto intenso e
sem mediação reflete a própria dor psíquica de um sujeito desamparado psiquicamente.
Assim, as dores físicas sentidas por Mara refletem a sua própria história de dor,
pois ao ser abandonada pela mãe, não encontrou amor nos braços da avó, ficando em
completo desamparo. Besset (2002), ao fazer apontamentos sobre os fundamentos
freudianos, trata da ligação do desamparo com o amor e angústia e afirma que o sujeito,
na impossibilidade de possuir e satisfazer-se com o objeto amado, experimenta o
desamparo, ou melhor, a angústia de desamparo. Ao se submeter à análise, o que buscava
Mara? Estaria procurando, através da transferência, ter esse amor? Ela diz: “Eu sei que
aqui eu tenho quem me ouça, sei que a senhora quer me ajudar”. Sobre a transferência,
Freud afirma:
Na transferência, todas essas ocasiões indesejadas em situações afetivas e dolorosas são repetidas e revividas pelo neurótico com especial habilidade [...] Por fim, não podendo mais ser a criança [...] desejada de sua infância, substituem-na pela intenção – ou pela suposta promessa de receberem um grande presente que lhes seria dado, mas que acaba sendo tão irreal quanto a imagem da criança desejada que fica a imaginar (1920/ 2006, p. 146).
Na análise, antes de demandar um saber sobre o seu sofrimento, Mara
demandava acolhimento, proteção e amor, revelando não só o desejo da imagem da
criança amada como também a sua falha na inscrição materna. Freud (1914/ 2004) nos
diz da importância da mãe para a constituição do Eu e, posteriormente, do sujeito do
desejo. No momento em que a criança sente-se capturada pelo outro que cuida e lhe dá
amor, é ela quem possibilita a emergência do Eu e, posteriormente, por intermédio da
castração, a do sujeito do inconsciente, faltoso e desejante em sua constituição. No
entanto, o que pode acontecer quando a criança não se sente amada e capturada por este
outro?
Lacan, ao afirmar que o desamparo humano relaciona-se com a falta de garantia
no Outro (PEREIRA, 1999), aponta a incompletude do sujeito, no sentido de sua ex-
sistência na linguagem. A angústia, como um afeto que não engana, cala o sujeito na
medida em que o coloca diante do encontro com o real, irrepresentável no âmbito das
palavras. As dores incontornáveis experimentadas por Mara representavam o afeto não
simbolizado no corpo, em sua forma praticamente pura.
Em Inibições, Sintoma e Angústia, Freud (1926/1996) pontua que a angústia se
faz acompanhar de sensações físicas mais ou menos definidas que podem ser referidas a
órgãos específicos do corpo. No caso de Mara, o afeto, ao não ter encontrado um lugar
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no Outro, denota “a ausência do objeto amado ou de seu amor” (BESSET, 2002, p.
208), deixando-a na infelicidade do desamparo. Ao falar do abuso sexual sofrido e dos
maus tratos da avó, Mara coloca o analista como testemunha desse desamparo e, ao
mesmo tempo, demanda algo que até então sentiu nunca ter experimentado: o amor.
Nesse momento, Mara ainda não é capaz de metaforizar essa angústia que a toma e se
materializa em seu corpo em forma de dor, podendo experimentar o que não engana,
que não tem remédio nem nunca terá: a angústia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BESSET, V. Angústia e desamparo. In: Revista Mal-Estar e Subjetividade. Universidade de Fortaleza, vol. 2, n. 2, set/ 2002, p. 203-215.
FREUD, S (1914). Á guisa de introdução ao narcisismo. In: Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Luiz Alberto Hanns (trad.). Rio de Janeiro: Imago, 2004.
_________. (1920). Além do princípio do prazer. In: Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Luiz Alberto Hanns (trad.). Rio de Janeiro: Imago, 2006.
_________. (1926). Inibição, sintoma e angústia. In: Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XX.
_________. (1926). Angústia, dor e luto. In: Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XX.PEREIRA, M. E. C. Pânico e desamparo. São Paulo: Escuta, 2002.