amÂndio jorge morais barros - academia.marinha.pt · amÂndio jorge morais barros porto a...

592

Upload: others

Post on 01-Sep-2019

25 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • AMNDIO JORGE MORAIS BARROS

    PortoA construo de um espao martimo

    no incio dos tempos modernos

    Academia de Marinha2016

  • Ficha Tcnica

    Ttulo: Porto: a construo de um espao martimo no incio dos tempos modernos

    Autor: Amndio Jorge Morais Barros

    Edio: Academia de Marinha, Lisboa

    Reviso: Lus Couto Soares e Jos dos Santos Maia

    Design da capa: Atelier Joo Borges

    Data: 2016

    Tiragem: 250 ex.

    Impresso e Acabamento: ACD PRINT, S.A.

    Depsito Legal: 407309/16

    ISBN: 978-972-781-120-5

  • NOTA PRVIA

    O texto que se segue reproduz, no essencial, a dissertao de doutoramento apre-sentada Faculdade de Letras do Porto em 2 de Outubro de 2004 e classificada com nota mxima pelo jri constitudo por Aurlio de Oliveira, Hilario Casado Alonso, Francisco Ribeiro da Silva, Amlia Polnia e Francisco Contente Domingues. Em 2007 foi galar-doada com o Prmio Almirante Sarmento Rodrigues, concedido pela Academia de Mari-nha, e pelo Prmio Artur Magalhes Basto de Histria do Porto, outorgado pelo crculo Jos de Figueiredo da Fundao Engenheiro Antnio de Almeida.

    Desde ento tentei adequar um trabalho desenvolvido em dois volumes com cerca de duas mil pginas a uma publicao que pudesse ser acessvel e lida pelo maior nmero possvel de interessados. Essa tarefa demorou-me todo este tempo e s a pude concluir, dentro do possvel, porque colegas e amigos me fizeram perceber que ou publicaria agora o livro ou nunca mais o publicaria "como ele merecia". E, claro, tinham razo como sabem todos quantos passaram por este processo de rever a tese para publicao.

    Apesar de terem passado muitos anos demasiados desde a sua apresentao o texto mantm actualidade e originalidade pois o conhecimento da evoluo do segundo porto do reino portugus entre os sculos XV e XVI ainda escasso.

    Nesta verso alterei o ttulo do trabalho, tornando-o menos erudito e mais claro, e tentei eliminar todas as redundncias, repeties e erros. No o consegui fazer na tota-lidade pois cada vez que voltava ao texto encontrava mais motivos para o corrigir e a tarefa arriscava tornar-se interminvel. De qualquer modo, consegui apurar uma ou outra concluso que tinha, na altura, por menos segura, e matizei outras que tinha como adquiridas. Utilizei material que ento no me pareceu essencial incluir e agora me parece essencial integrar. No consegui actualizar a bibliografia como desejava. Inclu um ou outro ttulo que me pareceu pertinente acrescentar quer no mbito dos estudos sobre os portos quer no dos estudos sobre redes comerciais que, no caso do Porto foram essenciais para o desenvolvimento dos negcios martimos no perodo em anlise.

    Algum desequilbrio na extenso dos captulos deve-se ao facto de ter sido elimi-nada informao demasiado tcnica para ser apresentada em livro dirigido, tambm, a um pblico alargado.

    Para alm dos agradecimentos que registo nas pginas seguintes, devo expressar a minha gratido Academia de Marinha que, entretanto, me concedeu a honra de me fazer seu membro efectivo por me ter concedido um dos mais prestigiantes prmios que eu poderia alcanar e por aceitar publicar este livro.

  • AMNDIO JORGE MORAIS BARROS

    PortoA construo de um espao martimo

    no incio dos tempos modernos

    Academia de Marinha2016

  • memria do meu Pai

  • 11

    ndice

    Introduo ........................................................................................................ 19Apresentao sumria do livro ........................................................................... 19As fontes ........................................................................................................... 21Captulo 1 Organizao porturia da cidade do Porto nos sculos XV e XVI .... 25Captulo 2 A construo de uma frota: em torno da fbrica naval ...................163Captulo 3 A composio da frota do Porto .................................................. 373Captulo 4 As partes no negcio: navios, navegao e comrcio .................... 453Concluses gerais ............................................................................................ 496Fontes manuscritas .......................................................................................... 507Fontes impresssas ............................................................................................. 509Bibliografia ..................................................................................................... 514Anexos ............................................................................................................ 574

  • 13

    Agradecimentos

    Este trabalho durou vrios anos e s foi possvel com a ajuda de muita gente. Tanta, que impossvel ser aqui nomeada. Por isso, para no ser ingrato, estas linhas iniciais so para agradecer a todos quantos com uma pequena explicao numa conversa informal me ajudaram a perceber grandes problemas que me atormentavam, ou aqueles que com uma palavra de estmulo em momentos menos bons me fizeram prosseguir este projecto. Colegas, amigos, simples conhecidos interessados pela Histria, mestres com quem me fui cruzando nos aquivos, nas bibliotecas, nos congressos e nos corredores da Faculdade de Letras tiveram pacincia para me ouvir, esclarecer e incentivar.

    Mas h rostos com nome e apoios institucionais que devo, e desejo, individuali-zar. Comeo pelos segundos. Sem a bolsa que a Fundao para a Cincia e a Tecnolo-gia (antiga JNICT) me concedeu durante quatro anos teria sido impossvel realizar esta tarefa. Tal como j tinha acontecido com o seu antecessor, o INIC, que me apoiou na realizao do mestrado, estou reconhecido aos responsveis da instituio por terem aceitado financiar esta investigao, esperando continuar a merecer a sua confiana nos tempos vindouros.

    Quando comecei o trabalho era membro do Grupo de Estudos de Histria da Viti-cultura Duriense e do Vinho do Porto (GEHVID), uma equipa que marcou uma poca brilhante na investigao nacional, e quando o terminei, j integrava o Instituto de His-tria Moderna da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde tantos projectos de reconhecido valor nacional e, sobretudo, internacional, foram concretizados. Gaspar Martins Pereira, Francisco Ribeiro da Silva, Antnio Barros Cardoso, Amlia Polnia, Ins Amorim e Helena Osswald, que a ambos estiveram ligados, apoiaram o meu traba-lho desde o incio, mas foram, sobretudo, amigos. Por muitas razes, profissionais, mas antes de mais, pessoais, destaco a amizade de Gaspar Martins Pereira, incansvel no apoio que me tem dado ao longo de todos estes anos.

    Hoje, quando este livro se publica, eu e uma parte do grupo atrs nomeado, integra-mos o Centro de Investigao Transdisciplinar Cultura, Espao e Memria (CITCEM) da mesma Faculdade de Letras do Porto.

    No posso esquecer o apoio que me foi dado pelo meu orientador cientfico, Pro-fessor Aurlio de Oliveira. Devo-lhe o projecto e o interesse pelos fundos notariais, a partir de agora recorrentes na minha investigao, um acompanhamento atento, obser-vaes argutas e sugestes pertinentes que, em boa parte, ainda ficaram por cumprir e que espero vir a concretizar.

    Sou devedor da (enorme) amizade e do (muito) saber de Amlia Polnia. Autora de um trabalho de referncia na rea em que o presente estudo se enquadra, aturou-me literalmente durante todos estes anos, trocou comigo informaes essenciais, deu-me sugestes que enriqueceram esta dissertao e ajudou-me a organizar a imensa informa-

  • 14

    o em que na maior parte das vezes me encontrava perdido. Mas, muito mais do que isso, apoiou-me como s os amigos de verdade fazem nos momentos mais delicados que vivi. Muito obrigado.

    Integrado no projecto de investigao Hisportos, sobre os portos do noroeste de Portugal, hoje referncia internacional, tive a oportunidade de colaborar mais de perto com Helena Osswald e Ins Amorim, e perceber matrias bsicas para este trabalho e prioridades. Mas tudo isso secundrio em comparao com os laos de amizade que desde ento criei com elas, pessoas boas, presentes nos momentos difceis, e que tm em mim um amigo grato.

    Dirijo tambm um reconhecimento sincero a Antnio Barros Cardoso, sempre interessado pelo meu trabalho e demonstrando-o em actos que me sensibilizaram.

    Outro dos agradecimentos que devo, e quero muito, particularizar o da amizade e grande incentivo que recebo de Lus Alberto Marques Alves h muito tempo.

    Uma das dvidas de gratido que dificilmente poderei pagar a que tenho para com Lus Miguel Duarte. Amizade, cumplicidade, companheirismo de muitos anos. Desde muito cedo, a relao que crimos ultrapassou o formalismo acadmico e o do trabalho cientfico. Se verdade que lhe devo muito do meu percurso como investigador e dele tenho recebido conselhos e ideias que enriquecem os meus trabalhos, tudo isso secun-drio quando comparado com a amizade que nos une, a identificao de interesses, a partilha de ideias e ironias e sei l que mais.

    Nesta caminhada tive a fortuna de ser adoptado por um grupo de amigos que muito contriburam para a minha formao. Desse grupo, cujo ncleo duro era cons-titudo por Jos Augusto Pizarro (o primeiro a incentivar-me a investigar histria), Lus Miguel Duarte e Henrique David, falta o Henrique. Falta a sua boa disposio. Faltam as suas histrias. Falta-me a palmada que ele me daria nas costas, de contentamento, quando lhe dissesse que o trabalho estava entregue. Est entregue e -lhe dedicado.

    Sem palmada mas igualmente feliz sei que estaria Armindo de Sousa quando visse este livro concludo. Mal soube que eu me propunha estudar este tema, e conhecedor como ningum da histria da cidade, entusiasmou-se vendo nele o embrio de uma Hist-ria da regio norte que haveramos de encetar. Tambm o incluo na dedicatria desta tese.

    Maria Ondina do Carmo, sempre preocupada com o andamento do processo, e Pedro Teixeira Pereira, que me auxiliou na ordenao de dados, merecem uma palavra de apreo, assim como as colegas da Escola Superior de Educao de Santa Maria e, recente-mente os amigos da Escola Superior de Educao do Porto, a minha casa.

    Deixo tambm um profundo agradecimento a Miguel Nogueira. Incansvel na ela-borao dos mapas, no tratamento da imagem e grficos, nunca regateou as minhas insis-tentes e desesperadas solicitaes, em prejuzo do seu descanso pessoal. A ele se devem todos os recursos tcnicos que valorizaram esta dissertao. Devo ao Joo Borges a linds-sima capa deste livro e, mais do que isso, a sua camaradagem e amizade.

  • 15

    Durante a edio deste livro tive a satisfao de trabalhar com Jos Manuel dos Santos Maia e Lus Couto Soares, da Academia de Marinha, que foram incansveis na tarefa de lhe dar forma; mais do que isso: Lus Couto Soares, a quem tenho a honra de chamar amigo, enriqueceu-o com uma reviso cuidada e, acima de tudo, dedicada, sem a qual a obra seria muito mais pobre.

    Fora da Faculdade de Letras relembro as proveitosas trocas de impresses com Francisco Contente Domingues, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. As conversas que tivemos num encontro de Histria Martima em Pontevedra, e o acom-panhamento do seu trabalho, abriram-me perspectivas de estudo que tentei aproveitar. Lembro tambm as interessantes conversas com a Leonor Costa, do Instituto Superior de Economia e Gesto da Universidade Tcnica de Lisboa, de quem ouvi conselhos rele-vantes. Ambos me ofereceram sugestes, bibliografias e contactos essenciais para o estudo destas matrias.

    O Dr. Manuel Leo, porventura o mais assduo frequentador do Arquivo Distrital do Porto, foi sempre uma pessoa disponvel, aceitando trocar comigo informaes e indi-cando-me preciosos documentos; recordo-o hoje com saudade.

    Fora de Portugal tive o privilgio de escutar sbios conselhos de Jos Hinojosa Mon-talvo, da Universidade de Sevilha, Eduardo Aznar Vallejo, da Universidade de La Laguna, Canrias e de Alfonso Franco Silva (amigo oliventino de longa data), da Universidade de Cdiz. Agradeo a Maria Eugenia Cadeddu, na altura no Istituto Sui Rapporti Italo- -Iberici, de Cagliari, e hoje em Roma, incentivos e materiais pouco acessveis em Portugal.

    Gostaria de salientar tudo quanto devo a Hilario Casado Alonso, da Universi-dade de Valladolid: a disponibilidade em me ouvir, a sua gentileza em me enviar, do seu ficheiro pessoal, todas as referncias a navios e gentes de comrcio do Porto do sculo XVI inscritas no Consulado de Burgos, e as sugestes temticas e bibliogrficas que tanto enriqueceram o presente trabalho. Hoje somos amigos de casa, dedicados, e isso passou a ser mais importante do que tudo o resto.

    Durante alguns anos, passei mais tempo nos arquivos do Porto do que em casa. Recebi ajuda preciosa, sem qualquer restrio, no Arquivo Histrico Municipal e no Arquivo Distrital. Principalmente neste ltimo, no qual passei a maior parte do tempo s voltas com os notrios. Por no querer ser injusto para muitos dedicados tcnicos e funcionrios destes arquivos, estendo os meus agradecimentos a todos eles nas pessoas do Dr. Manuel Real, ento director da diviso de arquivos da Cmara Municipal do Porto, e no Manuel Ferreira, do Arquivo Histrico, e de Silvestre Lacerda (que s no me facultou mais documentao porque no havia mais para facultar) e do Sr. Mendes naquela que foi, na realidade, a minha primeira casa: o Arquivo Distrital do Porto.

    Os amigos, Paulo Jorge (PJ), Nuno Tiago, Z Alexandre, Vtor Teixeira, Dra. Armandina e Dr. Tvora (que hoje tambm recordo com saudade), o Adelino, a Cristina, o Csar Santos Silva, o Manuel Pizarro, muitos alunos e professores, foram

  • 16

    incansveis nos incentivos, bem como o Germano Silva, com quem h anos partilho muitas histrias do Porto

    Para alm de Eduardo Tvora, perdi o Z Alexandre Roseira. O tempo e a vida tinham-nos afastado mas a minha amizade por ele nunca esmoreceu; fazem-me falta as conversas e as viagens que ainda tnhamos pela frente. Gostaria tambm que este livro fosse uma pequena homenagem ao Paulo Cunha e Silva, que fez brilhar como nunca a cultura do e no Porto, e com quem trabalhei no Centro Interpretativo O Infante e os Novos Mundos.

    Como costume, a famlia (na qual englobo os meus sogros e os meus cunhados) fica para o fim. Porque famlia no se agradece, porque famlia no se pagam dvidas. Este trabalho deles. do meu sogro lvaro, que j nos deixou. da minha Me, que h uma vida que vive para dar o melhor aos filhos. dos meus irmos, que esto sempre presentes por mim. E da minha querida Susaninha que vive h demasiados anos com um marinheiro preguioso e resmungo do sculo XVI que lhe deve tudo. Fica a pro-messa de um rpido regresso ao sculo XXI.

    Mas porque os conheo bem, sei que no levam a mal que eu diga que este trabalho todo para o meu Pai. Foi com ele que aprendi a gostar de Histria, de histrias, que ele contava como ningum. Foi com ele que conheci o Prncipe Valente no Janeiro de domingo, e as aventuras do Capito Morgan contra piratas e flibusteiros. Foi com ele que aprendi a gostar do Porto. A conhecer as suas ruas e vielas. A olhar, horas a fio, para o Varna encalhado no Cabedelo, para as cheias do Douro. A imaginar este rio, onde ele aprendeu a nadar, repleto de navios e de movimento. Quis o destino que ele no estivesse aqui para ver o resultado desta curiosidade. Mas sei que onde quer que ele esteja, est feliz. Por mim. Por ns.

  • 17

    Abreviaturas

    ADP Arquivo Distrital do PortoAGI Archivo General de IndiasAHMP Arquivo Histrico Municipal do PortoAPSPM Arquivo Paroquial de S. Pedro de Miragaiacit citadoCENPA Centro de Estudos do Norte de Portugal AquitniaCNCDP Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos PortuguesesCorpus Codicum ver Bibliografia (Fontes impressas citadas e consultadas)fl. fliofls. fliosINCM Imprensa Nacional-Casa da Moedaliv. livro NA Ncleo Antigoo. c. obra citadap. pgina/pginasPo Cartrio Notarial do Porto, OfcioTT Torre do Tombovol. volume

  • 19

    Introduo

    O presente estudo procura analisar a actividade porturia e martima do Porto nos sculos XV e XVI nas suas diversas facetas.

    Estrutura-se em quatro captulos, uma concluso e um anexo documental que se pretende ligado com o volume de texto. Passo a apresentar sumariamente cada um desses captulos.

    Apresentao sumria do livro

    No primeiro, intitulado Organizao porturia da cidade do Porto nos sculos XV e XVI, depois de um breve balano terico e historiogrfico, que foca os aspectos poltico-institucionais, econmicos, territoriais e arquitectnicos da construo de um porto, com especial ateno ao urbanismo porturio, ligao entre o porto e o cenrio urbano (e demogrfico) em que se integra, entro a estudar de uma forma to aprofun-dada quanto possvel o caso do Porto: a organizao geral do espao, as obras na barra, a defesa, os trabalhos da estiva, o servio de pilotos, a organizao financeira e fiscal, a componente religiosa, a higiene e a sade martimas, sem esquecer aspectos to prosaicos como as necessidades de traduo ou informao aos utentes do porto. Em particular neste captulo tive a preocupao de fazer acompanhar o texto por uma srie de gravuras antigas do Porto e do Douro que, com a cartografia histrica e alguma fotografia actual, possibilitam uma leitura mais ntida do espao.

    Conhecidas as infraestruturas porturias e o respectivo funcionamento, o segundo captulo estuda A construo de uma frota: em torno da fbrica naval. Uma vez mais, uma sumria introduo ao tema cede o passo observao do Porto como cidade de animada construo naval. Creio ter reunido informaes nunca antes sistematizadas, e que desejava teis, para uma listagem e uma histria de todas as taracenas e estaleiros das duas margens do rio Douro: havia muitos, e julgo que a primeira vez que se fala deles. Tornava-se necessrio, depois, articul-los com outros estaleiros da costa portuguesa, o que se procurou fazer.

    Como se procurou, a seguir, responder pergunta: quem tomava a iniciativa de mandar construir um navio? Os privados e a Coroa, naturalmente. Mas pelo meio per-cebemos as empreitadas, encontramos contratadores e vamos estabelecendo pontes para o conhecimento das companhias comerciais e das redes mercantis.

    O levantamento possvel de modelos de embarcaes e de tcnicas de construo naval temas que precisariam de um desenvolvimento que aqui no lhes pude dar e de conhecimentos tcnicos que no possuo conduz-nos a um tema que, esse sim, tentei estudar detidamente: o cordame, fabrico e comercializao, as cordoarias do Porto.

  • 20

    A corda no aparece isolada, antes se integra na anlise do comrcio de materiais para a construo naval, assunto no qual tambm procurei fazer uma anlise exaustiva quanto possvel da compra e venda de madeiras, temtica que me ocupou bastante.

    O terceiro captulo visa conhecer A composio da frota do Porto. De h muito, na minha investigao, sentia que era a hora de passar das formulaes gerais sobre navios e mercadores para uma tentativa de inventariao sistemtica de embarcaes, de carac-tersticas, de envergaduras, de nomes, de proprietrios; no o mesmo falar de 20 barcos ou de 100 ou de 1 000. Comeo por levantar as informaes relativas ao sculo XV, para depois tentar definir o perfil da frota do Porto em determinados momentos do sculo XVI (1520, 1558-1559 e sintetizar toda a informao sobre os mesmos durante o sculo XVI). Esta anlise permite-me avanar com ideias que julgo serem pertinentes e merece-doras de discusso: as notrias diferenas entre as frotas disponveis em vrios momentos, desde o sculo XV, e as conjunturas que determinaram o seu perfil.

    Continuo a acompanhar as naus, navios, caravelas e galees da cidade na rota

    brasileira (por 1573), e utilizo as riqussimas informaes das aplices de seguro que se encontram no Arquivo do Consulado de Burgos. Com isto podemos perceber melhor qual o papel da cidade no sistema internacional de comrcio: na segunda metade de Qui-nhentos, o Porto est claramente no trato com o Brasil, secundarizando destinos como a Flandres e o Norte da Europa em geral, por um lado, e as cidades mediterrnicas, por outro. Alm disso, definiu muito melhor a vocao da cidade: comrcio, muito mais do que transporte.

    No podia evitar uma diligncia: tentar comparar a frota portuense com algumas das suas congneres que tm sido estudadas: as da Bretanha, do Pas Basco, da Cant-bria, de Mlaga, de algumas religies inglesas. Estabelecer essa comparao de um modo slido uma tarefa que levanta enormes dificuldades.

    O quarto captulo, As partes no negcio, debrua-se sobre assuntos como a pro-priedade dos navios, j aflorada antes, as despesas que estes acarretam, a administrao de um barco, o aproveitamento que dele fizeram os mercadores do burgo consoante as estratgias comerciais definidas pelas firmas, os rendimentos das embarcaes. E com isto ficam estudados, tanto quanto me foi possvel dentro dos limites de todo o tipo que um trabalho destes sempre comporta, o porto e os navios.

    Uma breve concluso procurar lembrar aquelas que eu penso serem as contribui-es mais originais da minha investigao, as ideias que eu gostaria de ver discutidas e validadas ou corrigidas pela comunidade cientfica.

  • 21

    As fontes

    Justificariam um captulo autnomo, e a abrir o livro. Mas a maior parte delas conhecida e tem sido estudada por muitos antes de mim. No tenho nada a acrescentar dos pontos de vista hermenutico ou heurstico. Sobre uma delas, os registos notariais, a sim: fui obrigado a fazer uma reflexo profunda para o tema que me ocupou, at porque fiz deles a documentao central deste trabalho.

    Descoberta apenas h algumas dezenas de anos pelos historiadores modernistas, a documentao notarial, durante muito tempo utilizada apenas como fonte secundria, atingiu um estatuto de maioridade com os trabalhos de J. Bono y Huerta, J. Monte-mayor, F. Brumont ou V. Vzquez de Prada. Entre eles, impem-se os estudos relativos s actividades mercantis e creditcias ou s prticas empresariais e industriais, no mbito dos estudos urbanos, dada a riqueza dos cartrios notariais das cidades. Que so volumosos, desorganizados (leia-se: no sumariados), difceis de ler e, no Porto, chegaram at ns em pssimo estado. Tentei encontrar neles o essencial da histria martima-mercantil do Porto de Quinhentos: a contabilizao dos navios, a identificao dos senhorios e mestres, o resumo das viagens efectuadas e as relaes de negcios entre os grupos envol-vidos acentuando a projeco internacional da economia martima do burgo, aspecto que penso ter sido, de alguma forma, conseguido, embora tivesse gostado de desenvolver muito mais o tema da actividade mercantil. Eiras Roel apresenta um apanhado das limi-taes com que se deparam os historiadores que trabalham estes fundos1: a questo de se saber quem vai ao notrio e porqu, no fundo a da representatividade da documentao. Quanto valem os casos que passam pelo notrio dentro do total de ocorrncias reais deci-didas, estabelecidas, contratadas sem escriturao? No o sabemos. Mas sabemos, todos ns que andamos pelos arquivos portugueses, que por poucas e por menos representati-vas que sejam, essas fontes nos valem de muito pois mais o que nos falta do que aquilo que temos. No entanto h ainda a acrescentar as perdas totais de muitos cartrios e as grandes lacunas entre os existentes. Em seguida, a veracidade. o que o mesmo investi-gador rotula como dissimulao notarial sobretudo quando os documentos se referem ao pagamento de taxas ou repartio de lucros das firmas. Estes quase nunca se indicam. H ainda a considerar o problema da adequao o que que os documentos notariais reflectem? A presso social, a conveno notarial ou as atitudes colectivas socialmente modeladas, ou todas elas ao mesmo tempo? Mas, pergunto, qual a documentao que, de forma directa ou indirecta, no manipulada? Finalmente a suficincia. Por muito valorizada que seja, a documentao notarial insuficiente para descobrirmos toda a dimenso da temtica social e econmica. Portanto, consciente desta realidade, tive o cuidado de recorrer a outras coleces.

    1 EIRAS ROEL, Antonio La metodologa de la investigacin histrica sobre documentacin notarial: para un estado de la cuestion. Introduccin general, in Actas del II Coloquio de Metodologa Histrica Aplicada La Documentacin Notarial y la Historia, vol. I. [Santiago de Compostela]: Universidad de Santiago de Compostela/Junta de Decanos de los Colegios Notariales de Espaa/Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Santiago, 1984, p. 13-30.

  • 22

    Os registos dos notrios foram cruzados com muitas outras fontes, entre as quais destaco desde logo a documentao municipal: actas de vereaes, livros de sentenas, livros do registo geral, livros de receitas e despesas, registos fiscais. Em segundo lugar, com a documentao da Igreja portuense, sobretudo do Cabido (sentenas e fisco revelaram-se os fundos mais teis). Em terceiro lugar, a documentao da confraria dos mareantes de S. Pedro de Miragaia (no entanto, no to rica para o sculo XVI do que para a cen-tria precedente e j por mim estudada na dissertao de mestrado). Era indispensvel a ptica da administrao central. Tentei chegar a ela atravs dos importantssimos ncleos da contadoria e da alfndega.

    No investi tanto quanto desejava na documentao guardada na Torre do Tombo. E embora me apetea dizer aqui que, pelo que sei, pelo que l procurei, pelas impresses que fui trocando e pelos trabalhos de outros investigadores que fui lendo, no penso que, para este tema especfico, tenha perdido informaes essenciais, susceptveis de modifi-carem ou matizarem as concluses a que cheguei, impe-se que deixe aqui esta ressalva.

    Por outro lado, trabalhei muito menos do que gostaria arquivos estrangeiros, excepo do j citado Arquivo do Consulado de Burgos e a Chancilleria de Valladolid; a razo simples e diz-se depressa: no tive tempo nem disponibilidade material para o fazer. E, no que toca a esta lacuna, j estou bastante menos seguro do que em relao Torre do Tombo. No me surpreenderia se neles encontrasse novidades. Note-se que no estou, em relao a esses arquivos, numa situao de total desconhecimento, porque muitos outros historiadores, portugueses e estrangeiros, os tm explorado: por todos, lembro os trabalhos de Hinojosa Montalvo sobre a presena portuguesa em Valncia, os de Lobo Cabrera sobre a mesma presena nas Canrias, os de Betsab Caunedo acerca da parti-cipao de mercadores nacionais nas grandes feiras de Castela ou os de Hilario Casado sobre a extenso internacional do trato portugus na Europa dos sculos XV e XVI.

    Entretanto, as investigaes que desenvolvi nos anos mais recentes (e as que apro-fundei no Archivo General de ndias, em Sevilha), permitiram-me alargar alguns conheci-mentos sobre a marinha mercante e os negcios martimos do Porto. Isso mesmo poder ser apurado a propsito dos rumos da frota e operaes dos mercadores, agora muito mais enriquecidos.

    dificuldade conhecida por todos ns, e descrita com finura por Umberto Eco, a procura do equilbrio entre a informao bibliogrfica e a anlise das fontes. Por vezes sentimos que estamos afogados em documentao e em fichas, a ponto de perder de vista os problemas e de tirar, dessas fontes, qualquer coisa de til. E ento vamos ler uma ou duas boas obras de referncia sobre o tema, que nos do ideias magnficas sobre os documentos aos quais comevamos a ficar insensveis. Outras vezes sentimo-nos, pelo contrrio, saturados de livros estrangeiros, com a incmoda sensao de que, por mais sedutores que sejam as respectivas teses, elas nada tm a ver com a realidade que nos ocupa. E ento largamos os livros e regressamos ao arquivo. E nisto andamos, procura do tal equilbrio que s com muita experincia de alcana, se que possvel chegar a um compromisso perfeito.

  • 23

    No meu trabalho, tentei tanto quanto pude acompanhar de forma equilibrada e proporcionada as leituras e o estudo e a reflexo sobre as fontes. E sinto que investi muito, para as minhas capacidades e possibilidades, no acompanhamento bibliogrfico, sobretudo nas obras estrangeiras mais recentes de que ia tendo conhecimento, e nas portuguesas em que este trabalho se tenta filiar: os estudos de Amlia Polnia, Leonor Costa ou Francisco Contente Domingues. Como tantas vezes acontece, o facto de ter lido muito, em vez de me sossegar, s me fez ter conscincia do muitssimo mais que ficou por ler.

    Esta , se se quiser, uma das limitaes desta investigao de que tenho conscincia: os livros que no pude ler. Sei que nunca se l tudo; mas, no caso presente, a quantidade de documentao relevante que tinha de ler e analisar tirou-me tempo para o indispen-svel acompanhamento bibliogrfico.

    Por outro lado e, como clssico, as introdues escrevem-se sempre no fim, pelo que comportam uma parte significativa de balano e de concluso este trabalho, como tantos outros, comeou com um objectivo e foi alterando a rota medida que iam surgindo escolhos ou ventos favorveis a encaminh-lo para outros destinos. Comecei com um tema provisrio: navegaes e comrcio martimo no Porto. Interessadssimo, ambicionava descobrir muitas novidades sobre o comrcio com o Brasil e o Norte da Europa. Quanto mais acumulava documentos e informaes, mais me sentia compelido a conter as ambies. Um segundo ttulo, mais sensato, seria O Porto e as navegaes no sculo XVI. Mas mesmo este tema era arriscado, porque, utilizando uma metfora conhecida, no se pode comear a construir uma casa pelo telhado: estavam por conhecer as bases de todo esse comrcio e essas viagens. Nada se sabia da geomorfologia da barra e do porto, das estruturas e das prticas porturias, dos navios, dos estaleiros, do cordame. A leitura de um livro j clssico, de Konvitz, sobre a planificao dos portos da poca Moderna fez-me perceber a importncia destes temas, da avaliao da capacidade de planificao e gesto dos portos e da sua afirmao, resultando de intervenes em locais com um passado porturio ou erguidos de raiz. Ao constatar este interesse, e aquilo a que hoje se chama governana, decidi, optar por me dedicar investigao desses temas de histria porturia, deixando para outros, e tambm para mim, mais tarde, se a vida mo permitir, a investigao do que era para ser, e do que o orientador cientfico desta tese, o Prof. Dr. Aurlio de Oliveira, sem dvida teria preferido que fosse, o tema nobre inicial: o grande comrcio martimo da cidade do Porto no sculo XVI. Espero ter contribudo com alicerces para essa empresa.

  • 25

    Captulo 1 Organizao porturia da cidade do Porto nos sculos XV e XVI

    A investigao sobre a organizao dos portos medievais e modernos tem suscitado a promoo de projectos, estudos e encontros cientficos de que resultaram boas publi-caes. Quanto a Portugal, trata-se de um campo de pesquisa que ainda est a dar os primeiros passos.

    De acordo com modelos propostos por historiadores interessados no tema, deve-mos considerar as condicionantes que determinam a construo/configurao de um porto ou a sua insero num sistema porturio, a saber, as de mbito poltico-institucio-nal, econmicas, territoriais e tecnolgicas.

    Na primeira parte do trabalho comearei por fazer uma breve incurso de carcter geral ao tema para, em seguida, enquadrar nesse esquema, tanto quanto a documentao o permita, as referncias aos diferentes factores presentes na organizao do porto do Porto entre finais da Idade Mdia e incios da poca Moderna.

    No perodo em anlise construiu-se uma rede internacional de portos que susci-tou a abertura de mltiplos circuitos, frequentados por diferentes tipos de navios, em constante adaptao s condies que se lhes deparavam e s cargas que transportavam. A uma geografia porturia medieval confinada Europa, a poca Moderna contraps uma dilatao de destinos que se estenderam a vrios continentes. Esse facto, mobili-zador de recursos tcnicos e sua inovao, mercadorias novas e tcnicas mercantis, teve a sua gnese nos portos, e, acima de tudo, na capacidade dos seus agentes, mostrando a importncia econmica destas entidades e, de certa forma, como elas contriburam para a formao de movimentos tendencialmente 'globais'. Estes movimentos 'foraram' uma modernizao dos portos tanto na sua configurao como na sua capacidade de movimentao de gentes, navios e meios. Se os espaos foram organizados em funo das novas solicitaes, dos novos negcios, dos novos operadores, as marinhas mercantes evoluram (fazendo desenvolver processos de construo naval como Richard Unger nos deu a perceber em trabalho recente2) para responder s exigncias que lhes eram, agora, colocadas. As marinhas fizeram-se imagem dos seus mercadores. Se verdade que os grandes portos 'coloniais' de Lisboa e Sevilha concitaram, desde h muito tempo, as atenes dos historiadores, os pequenos e mdios portos provaram estar na linha da frente destes processos. Veremos, nas pginas seguintes, como este tipo de realizaes e de resposta constante aos novos desafios fez parte do quotidiano do porto que aqui se examina.

    2 UNGER, Richard Shipping and Western European Economic Growth, in "International Journal of Maritime History", XVIII, 2, 2006, p. 85-104.

  • 26

    Amndio Jorge morAis bArros

    1. A organizao porturia. Aspectos poltico-institucionais

    A interveno dos poderes polticos revela-se capital na constituio de um porto. Em teoria, ela passa por um sem nmero de variveis: controlo de operaes, entraves impostos ao livre comrcio, capacidade de iniciativa no lanamento de obras, etc. Todos eles podem determinar a gnese dos portos e da sua funo.

    Jos Aguilar Herrando aponta uma srie de razes que sero revisitadas adiante, acerca da interferncia e esquematizao de um porto, determinantes no seu destino, por parte dos poderes polticos. Chama os exemplos de Sevilha e de Lisboa, beneficiados por polticas centrais que fizeram deles portos de monoplio. A integrao dos portos em sistemas imperiais, e da evoluo da sua categoria, visvel no caso de Sevilha que, da mesma forma que foi guindada a uma posio-chave nesse sistema ver, mais tarde, esse estatuto ser-lhe retirado, em favor de Cdiz, entretanto eleito como sede da carreira das ndias.

    A interveno do poder central sobre a funcionalidade e estatuto dos ancoradouros pode, em sentido inverso, conduzir decadncia e, mesmo, desaparecimento de portos. Porm, quando existe uma iniciativa local activa, essa tendncia passvel de ser invertida assistindo-se a processos de adaptao que permitem a sua viabilidade e, mesmo, a sua fortuna, como no caso em estudo. neste sentido que se aplica a discutvel expresso governana, relativamente vida porturia, e que dominar todo este trabalho.

    Por aqui passa tambm o tema do condicionamento do trfego, por imposies polticas. O porto tem uma componente militar muito forte desde logo notria nos trabalhos de engenharia e o conjunto das relaes polticas geridas pelo poder central reflecte-se no seu dia-a-dia: razes de estado podem determinar o bloqueio e consequente arredamento de parte da navegao, a liberdade de comrcio ou a restrio do mesmo, bem como o apresamento de navios e fazendas de uma dada nao, medidas que podem ter consequncias gravosas.

    Da mesma forma, a imposio de taxas de utilizao e pagamentos dos servios porturios afectam os utentes, podendo contribuir para o seu afastamento.

    Interveno do poder poltico, tambm, na escolha do prprio local onde o porto implantado. Daqui emerge a uma interessante questo, h algum tempo tratada por Hinojosa Montalvo: a das cidades-portos e a dos portos sem cidades. A eleio de um local mostra como esta temtica do porto, que fronteira, pode ser delicada.

    O porto , pela sua natureza e caractersticas, um local de encontro. Define-se, no mbito da engenharia, como um intercambiador modal entre os meios de transporte martimo e terrestre. espao de reunio, espao de operaes econmicas de interesse para diferentes regies, mais-valia indispensvel s economias locais e nacionais, noes cada vez mais reconhecidas pelos estados centrais medida que nos aproximamos do sculo XVI.

    Espao estratgico que interessa esteja organizado, protegido e controlado. Da a dimenso militar. que, no o esqueamos, os portos foram sempre lugares frgeis, ameaados. Locais possveis de entrada de inimigos e, por conseguinte, objecto de cui-dados especiais.

  • 27

    Captulo 1 organizao porturia da Cidade do porto nos sCulos XV e XVi

    2. A organizao porturia e os aspectos econmicos

    Sem surpresa, a dimenso econmica alicera todo o trfico e determina a natureza de um porto. Comrcio, transporte, abastecimento, pesca, guerra suscitam perfis, modos de actuao e projectam o porto. Talvez com excepo dos portos militares, e mesmo esses nos sculos XV e XVI, estes centros no raro combinam vrias destas facetas. Por sua vez, o modo como estendem o seu vorland, conjunto de rotas e circuitos geridos atravs do negcio, e a profundidade da sua integrao em complexos internacionais servem como factores de diferenciao, tornando-os hegemnicos ou secundrios3. Essa condio pode depender da maior ou menor capacidade de polarizao das economias em seu redor.

    Dado substancial o que decorre da relao estabelecida entre um porto, centro econmico, e o seu hinterland, regio alimentadora do seu trfico. Se esta conseguir ser capaz de gerar excedentes para colocar no mercado, a sade econmica do ancoradouro pode estar garantida. A criao de excedentes poder ter no mnimo dois efeitos:

    Estimular a criao de uma frota dedicada colocao dos produtos locais no mercado externo e, em resultado da aco desta e dos intercmbios por ela concretizados, estimular a circulao e animar o prprio porto com uma vasta gama de produtos dis-posio de um nmero crescente de compradores;

    Atrair clientes externos, gerar um trfico mais forte e um roulement econmico que concentre, pela criao a nvel local ou por aco da actividade comercial, maiores recursos, e contribua para o aumento da populao. Aguilar Herrando diz que esta uma constante da histria espanhola e universal, a tal ponto que os apogeus e declnios das cidades costeiras, e de algumas interiores situadas nas margens de rios navegveis, decor-rem em paralelo aos dos seus respectivos portos4.

    Sendo certo que o excedente importante, no dispensa a capacidade de empreen-dimento dos agentes locais quando se verificam as seguintes situaes:

    Falta desses mesmos excedentes por dificuldades de produo no quadro dos recursos econmicos locais;

    Dificuldades de colocao por desinteresse do mercado.Nestas situaes, cabe aos empreendedores a responsabilidade pela criao de est-

    mulos adicionais. Estes podem passar pelo investimento de recursos financeiros numa frota que possibilite o transplante, para o seu prprio porto, de alguma parte dos frutos gerados no trfego a longa distncia. Na prtica: investir, por exemplo, na criao de uma frota que possa interferir nas grandes rotas internacionais servindo de transportadora a

    3 GUIMER RAVINA, Agustn El vino y los puertos de la Europa Atlntica: Burdeos y Oporto (siglos XVIII a XIX), in Douro Estudos & Documentos, vol. VII (14), 2002 (4). Porto: GEHVID, 2002, p. 238-239. Afirma que tanto o Porto como Bordus foram hegemnicos no trato mundial de vinhos. Do mesmo, El sistema porturio espaol (siglos XVI-XX): perspectivas de investigacin, in Puertos y siste-mas porturios (siglos XVI-XX), Actas do colquio internacional El sistema porturio Espaol, Agustn Guimer Ravina y Dolores Romero (editores). Madrid: Ente Publico Puertos del Estado/CEDEX/CEHOPU/CSIC, 1996, p. 125-141, e a Introduo a esta obra, p. 9-15, trabalhos e bibliografia.

    4 AGUILAR HERRANDO, Jos La ingeniera en los puertos de la Edad Media, in Tecnologa y socie-dad: las grandes obras pblicas en la Europa medieval, XXV Semana de Estudios Medievales. Estella, 1995. Pamplona: Governo de Navarra, 1996, p. 241.

  • 28

    Amndio Jorge morAis bArros

    soldo de mercadores das zonas activas do comrcio europeu. A insero nesses circuitos e a sucesso de contratos de transporte, no fundo a consolidao de uma posio no mercado, tero como resultado a compensao de eventuais fraquezas prprias. No Porto do sculo XV, apesar da existncia de um conjunto de mercadorias5 interessantes para a economia europeia, a grande funo da frota cumprida no transporte internacional e s mais tarde h uma aposta segura na produo como suporte do trfico. que a estru-turao de um centro porturio inseparvel da aco dos agentes que nele actuam. Na classificao dos portos proposta por Guimer Ravina, o seu papel pode elevar o estatuto de um centro porturio. Nas pginas que se seguem veremos como a administrao da cidade e os mercadores do Porto se empenharam na construo deste espao para que ele se pudesse assumir, a prazo, como um ancoradouro de referncia no conjunto europeu.

    Mas devemos considerar ainda o seguinte, e isso comea a ser vlido para a poca que nos ocupa: da soma da oferta de excedentes, de mercadoria adquirida em mercados frequentados pelos navios de um dado porto e ainda da incluso deste mesmo porto em rotas de interesse internacional, resulta um poderoso factor de atraco de movimento, com consequncias no estatuto e organizao dessa estrutura.

    Assim, os portos actuam como espaos onde se concretiza a articulao de fluxos de bens provenientes de diversos sectores, sobretudo agrcola e artesanal. Como afirma Hinojosa Montalvo, na hora de explicar o grau de desenvolvimento destas estruturas, preciso ter em conta a natureza dos intercmbios, o seu volume, a interpenetrao das rotas martimas e terrestres, etc.6.

    Falou-se acima de factores econmicos determinantes na vida porturia. Talvez seja til falarmos tambm de aspectos da economia do porto e das infraestruturas. Da gesto, da capacidade de acolhimento das embarcaes e dos agentes de navegao neles actuan-tes, do sistema fiscal e dos servios administrativos. Do apoio estiva (barcas, carros de bois, quadro de trabalhadores especializados e indiferenciados) e dos edifcios adjacentes, para a carga e descarga. Do suporte navegao (exemplo: existncia ou no de um servio de pilotagem). Dos servios de construo/manuteno de naves, em suma, da organizao fsica do espao porturio em ordem sua eficcia.

    3. Uma geografia de vontade. Os condicionalismos territoriais

    Sendo que a escolha de um local favorvel para a instalao de um porto surge como uma evidncia, e que o ordenamento territorial (configurao das povoaes, dos rios, e das vias de comunicao) condicionou, favorecendo ou prejudicando certos portos relativamente a outros, estas escolhas e condicionantes esto na base de uma geografia de vontade que nos explicam como foram ultrapassados os fortes obstculos que afectavam

    5 Couros, sal, pescado e vinhos. Parte das relaes do Porto com Arago nos sculos XIV e XV funda-ram-se no transporte de pescado. E o sal tinha colocao internacional a partir daqui.

    6 HINOJOSA MONTALVO, Jos Ciudades porturias y puertos sin ciudades a fines de la Edad Media en el Mediterrneo occidental, in Tecnologa y sociedad, p. 265.

  • 29

    Captulo 1 organizao porturia da Cidade do porto nos sCulos XV e XVi

    o seu desenvolvimento7. Porque a geografia e as comunicaes influram de maneira capital na criao e estabelecimento dos portos8. Ligada a elas est a noo de hinterland, funcionando o porto na periferia como um servidor e um gateway por onde so exporta-das ou escoadas produes9. Para j, apontarei apenas o facto de este processo de avano do porto sobre o hinterland estar em curso desde muito cedo. No incio do sculo XV j a cidade se constitua numa verdadeira placa giratria, principal foco exportador de um territrio economicamente solidrio, numa lgica de conexo com as terras durienses e transmontanas mas, na generalidade, com a zona norte do reino, com o Entre Douro e Minho. Um exemplo: nas cortes de vora de 1436, afirmam os procuradores de Guima-res que, des o fundamento do mundo, costumavam carregar as suas mercadorias na cidade do Porto para Castela e outros lugares de fora do reino10.

    A promoo de um porto resulta do seu posicionamento como n de comunicaes terrestres e martimas, suscitando trficos a mdia e, sobretudo, longa distncia, com significado na diversificao e ampliao das operaes e servios que oferece. Tambm se poder acompanhar processo semelhante no caso do Porto.

    4. Em busca da eficcia: a tecnologia ao servio da organizao porturia

    Os recursos tecnolgicos variaram. Entre finais da Idade Mdia e princpios da poca Moderna, algumas limitaes de ordem tcnica foram sendo superadas e a enge-nharia porturia, se bem que ainda muito longe da evoluo que conhecer com a Revo-luo Industrial, comear a esboar-se, adaptando-se aos novos desafios suscitados pelo trfico martimo, constituindo-se num factor de estruturao dos portos e de ampliao do seu movimento, embora no seja possvel, na maior parte dos casos, avaliar a chamada produtividade porturia11.

    Entre os desafios que se colocavam s entidades responsveis pelos portos, Aguilar Herrando considera os seguintes:

    Aqueles que se ligam navegao e aos seus avanos, tais como a alterao das tipologias de navios, propulso, tamanho, tcnicas de construo naval e materiais nela implicados, manobrabilidade, ajudas navegao, entre outros;

    Os relacionados com tecnologias construtivas dos prprios ancoradouros: tipos de estruturas adoptadas, materiais aplicados, etc;

    7 Behavioural geography, conceito avanado por HOYLE, B. S. e PINDER, D. A. (ed.) European port cities in transition. Londres, 1992, referido por GUIMER RAVINA, Agustn El vino y los puertos de la Europa Atlntica, p. 240. KONVITZ, Josef W. Cities and the Sea: Port City Planning in Early Modern Europe. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1978.

    8 AGUILAR HERRANDO, Jos o.c., p. 241.9 GUIMER RAVINA, Agustn El vino y los puertos de la Europa Atlntica, p. 239.10 TT Chancelaria de D. Duarte, liv. 1, fl. 182v.11 A no ser desde os sculos XVIII e XIX. Estudos sobre portos europeus relacionam obras de grande

    envergadura, como molhes, com o aumento da tonelagem e do trfego; NATIVIDAD DE LA PUERTA Los vnculos entre la construccin naval y las obras civiles de los puertos en el siglo XIX, in Simposio de Historia de las Tcnicas La construccin naval y la navegacin (26 a 28 de Outubro de 1995). Cantbria: Universidade de Cantbria/Centro de Estdios Astillero de Guarnizo, 1996, p. 421.

  • 30

    Amndio Jorge morAis bArros

    A capacidade ou incapacidade terica dos responsveis na elaborao de estudos de clculo e desenho das estruturas;

    Por fim, os factores demonstrativos do grau de percepo do meio fsico onde o porto se implanta: conhecimento do clima martimo e/ou fluvial, comportamento e evoluo da faixa costeira, mars, ventos e suas variaes consoante as pocas do ano (res-ponsveis por fenmenos como o assoreamento), e os recursos aplicados para ultrapassar as dificuldades.

    5. Outros fenmenos porturios

    A estes aspectos devem juntar-se-lhes outros, decorrentes da prpria existncia dos portos, de ordem scio-cultural, nos quais conveniente enquadrar a anlise de fen-menos de urbanismo (padro residencial e estruturao viria em funo da actividade exercida), instituies sociais e culturais ligadas ao porto, criminalidade, cultura e men-talidade martimas, processos de transculturao, etc.12.

    este o plano geral de anlise para o caso do porto do Porto pois a sua organizao constitui um elemento basilar para a compreenso da evoluo econmica da cidade desde a poca Medieval. O seu estudo possibilitar um conhecimento mais amplo da vertebrao econmica (social e, como vimos, mesmo, cultural) do noroeste de Portugal, concretizada, de um modo geral, margem do esquema imperial lisboeta embora sem deixar de o ter em considerao13. De resto, num dilogo inter-porturio constante-mente procurado e realizado.

    Esboadas as principais linhas de orientao, impe-se referir os seus objectivos: Percorrer aspectos expressivos da organizao do porto, dos tempos medievos ao

    sculo XVI, dado constiturem uma resposta a solicitaes concretas, distintas no tempo e nas circunstncias, e os resultados obtidos;

    Fornecer elementos para visualizarmos os espaos de implantao desse mesmo porto e, em parte, a relao funcional estabelecida entre a cidade e cada um deles;

    Avanar dados sobre a organizao funcional do ancoradouro, no sentido em que ela enquadra a actividade naval da cidade, com reflexos no seu movimento geral e com consequncias na evoluo econmica da regio.

    6. O espao porturio do Porto. O reconhecimento do terreno

    Ao longo deste trabalho, ouviremos falar muitas vezes de lugares martimos do Porto e arredores. Farei algumas incurses por cada um deles e destacarei elementos significativos, visualizveis nos mapas que neste livro se incluem.

    Comecemos por considerar diferenas significativas entre a actualidade e o perodo que vamos analisar. Desde logo, que o fundeadouro se localizava junto cidade, em frente das suas muralhas, a mais de meia lgua da foz. Lada, Ribeira e S. Nicolau (hoje

    12 GUIMER RAVINA, Agustn Introduo ao livro Puertos y sistemas porturios (siglos XVI-XVIII) , p. 14.

    13 Projecto Hisportos, e O litoral em perspectiva histrica, sculos XVI a XVIII, actas do colquio. Porto: Instituto de Histria Moderna da Faculdade de Letras, 2002.

  • 31

    Captulo 1 organizao porturia da Cidade do porto nos sCulos XV e XVi

    todos integrados na freguesia de S. Nicolau), eram pontos fulcrais do universo martimo urbano do Porto medieval.

    A configurao do espao marginal pouco tinha a ver com a que conhecemos hoje em dia. O limite ocidental da cidade era a Porta Nova e, entre ela e a povoao da Foz estendia-se o arrabalde, primeiro, e o termo da cidade, depois. Entre o Porto e S. Joo da Foz, ento uma aldeia, o terreno encontrava-se em geral desocupado, ponteado, aqui e ali, por modestas aglomeraes humanas ribeirinhas que no estavam ligadas por qual-quer caminho marginal ao Douro.

    6.1. Miragaia

    Junto aos muros ficava a primeira concentrao populacional, o arrabalde de Mira-gaia, constitudo, logo no sculo XIII, em bairro ribeirinho ligado s actividades marti-mas, pesca e navegao comercial no mar. Apenas lhe fao aqui esta breve referncia pois ser o lugar mais visitado.

    6.2. Massarelos

    Depois de ultrapassada a zona chamada Monchique, ao cabo de Miragaia, onde viria a ser implantado um mosteiro de grandes dimenses no incio do sculo XVI, che-gava-se a Massarelos. Ou seja, iniciava-se o termo do Porto, a regio mais distante abran-gida pela jurisdio da cidade. Miragaia e Massarelos constituam o umland, isto , a zona fora da cidade mas que tratava directamente com ela em bases dirias e com influncia. Em 1758, a povoao de Massarelos ainda fazia parte do termo, estando integrada na comarca e terra da Maia; em 1769 foi anexada ao Porto e em 1835 passou a integrar as freguesias da cidade.

    Quem conhece o stio sabe que a distncia que separa Monchique de Massarelos curta. No entanto, na poca a que nos vimos reportando, a separao era bem real. No se sabe ao certo se haveria ligaes terrestres entre eles mas, se havia, eram caminhos interiores. No sculo XV, Massarelos ainda referido como monte maninho demons-trando que, nos seus contornos, o local era ainda ermo. A ligao marginal, completada por casas, s deve ter sido concretizada no sculo XIX14.

    Povoao antiga, pertencente colegiada de Cedofeita, Massarelos, tal como Mira-gaia, desfrutava da presena de uma praia fluvial15 que atraiu os moradores pesca e ao mar. Povoado insignificante no perodo medieval, dedicado pesca (vigorosa nos tempos subsequentes), desenvolver-se- na segunda metade do sculo XVI, graas s empresas martimas e armao mercante.

    Entre as vrias marcas da sua forte ligao ao mar como o cruzeiro setecentista do Senhor dos Navegantes ou as alminhas do Senhor dos Aflitos corre em Massarelos uma lenda, que a refora, mas que no passa disso mesmo, de uma lenda sem qualquer fundamento nos moldes em que divulgada: a da Confraria das Almas do Corpo Santo.

    14 OLIVEIRA, J. M. Pereira de O espao urbano do Porto. Condies naturais e desenvolvimento. Coim-bra: Instituto de Alta Cultura, 1973, p. 196-200.

    15 Desaparecida no sculo XIX com a obra da alameda por onde circularia o americano e, mais tarde, o carro elctrico.

  • 32

    Amndio Jorge morAis bArros

    Quem estuda estes fenmenos de devoo medieval (e moderna) e, mais do que isso, de associao de elementos de um determinado ofcio neste formato organizativo, sabe que as cidades s admitiam uma confraria que os congregasse. Ora, no Porto, a nica confraria medieval de mareantes era a de So Pedro de Miragaia. Com compro-misso, contas correntes e livros em ordem abrangendo mais de dois sculos de vida.

    Que tinha hospital e capela, e fazia as vezes de representao dos interesses dos mestres, pilotos e marinheiros do Porto (tambm dos cordoeiros e calafates que se lhes associaram no sculo XV) junto da Cmara e do Rei quando fosse caso disso.

    Isto diminui seja no que for a importncia martima de Massarelos? Nada! A liga-o medieval do lugar ao mar foi engrandecida nos tempos modernos, como se poder comprovar em muitas pginas deste livro; de resto, em termos quantitativos, tanto em navios como em mareantes, no final do sculo XVI o lugar j era, provavelmente, o que albergava o maior nmero de ambos e a sua prosperidade crescia. Porm, entre os mestres de naus e as gentes do lugar, a devoo s Almas intermediada por uma confraria da sua invocao s tardiamente se manifestou16. Os seus habitantes rezavam na igreja do Corpo Santo, outrora uma pequena ermida, ampliada na segunda metade do sculo XVI com o dinheiro das ddivas que os fregueses conseguiam juntar das suas viagens ao Brasil, e nela havia, realmente, uma confraria: mas do Santssimo Sacramento qual, ainda em 1599 o conhecido mestre e senhorio de Massarelos, Gonalo Fernandes Boeiro, deixava avultado legado testamentrio17.

    6.3. Lordelo do Ouro

    Muito mais longe, j com a foz do Douro vista, localizava-se Lordelo do Ouro. A primeira notcia do lugar data de 1144, altura em que D. Afonso Henriques fez carta de doao do couto do ermo de Santa Eullia, no termo de Bouas, ao lendrio cister-ciense Joo Cirita. Aqui, ir constituir-se uma granja pertencente ao mosteiro de S. Joo de Tarouca, onde sero exploradas salinas e aproveitados recursos pesqueiros18. A futura freguesia de S. Martinho de Lordelo do Ouro continuou a ser durante muito tempo um stio ermo, pontuado por campos e muitos pinheirais que isolavam a margem do interior. No eixo Ouro-Sobreiras-Santa Catarina, onde vir a ser implantado o maior estaleiro naval do Douro, as gentes, as escassas gentes que por a se fixaram, foram atradas pela

    16 Apesar de Jorge Conceio Rodrigues admitir a sua fundao no sculo XIV, todo o texto da sua disser-tao (que contm dados importantes sobre as devoes martimas portuguesas) confirma o que aqui digo: que se trata de uma confraria muito mais tardia; ver RODRIGUES, Jorge Manuel da Conceio A Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos e suas congneres de mareantes. Dissertao de Mestrado, dact. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2002.

    17 Nunca deixaria esse legado a essa confraria se houvesse a do Corpo Santo; esta confraria dever ter surgido apenas na segunda metade do sculo XVII, seno depois. A confraria ainda hoje existe e legitimamente comemora esta tradio, o que se entende; o que j no se entende muita gente (e com alguma responsabilidade social e cvica) querer faz-la passar por verdadeira. Ainda voltarei a este assunto. Sobre o testamento deste mestre de nau de Massarelos ver ADP Po 1, 3 srie, liv. 117, fl. 59.

    18 DIAS, Geraldo Coelho Cister irradiao de espiritualidade e cultura, in Cister no vale do Douro. Porto: GEHVID, 1999, p. 31; DE LA TORRE RODRGUEZ, Jos Ignacio A viso cisterciense do trabalho, in Cister no vale do Douro, p. 153-154.

  • 33

    Captulo 1 organizao porturia da Cidade do porto nos sCulos XV e XVi

    vida martima iniciando a sua relao com o mar pela pesca. Nas Inquiries de 1258 diz-se que os pescadores pagavam ao rei metade dos dulffinis et hiris tunie et balene que capturassem19. Nos finais da Idade Mdia j se dedicavam ao trfico martimo. Mais tarde, por fora do estmulo dado pela construo naval, a se estabeleceram homens do mar, capites de navios, mestres, contramestres, marinheiros, carpinteiros de acha e calafates.

    Como aconteceu com Massarelos, Lordelo s no sculo XIX (1836) foi integrado na cidade do Porto. Na altura, tinha dois mil habitantes.

    6.4. S. Joo da Foz

    Enfim, o couto beneditino (pertencente ao mosteiro de Santo Tirso) de S. Joo da Foz, entrada da barra. Raul Brando deixou-nos no incio do sculo XX imagens lite-rrias muito fortes que, de certa forma, encaixam naquilo que a terra seria na cronologia deste estudo: Esta vila adormecida estava a cem lguas do Porto e da vida20. Era lugar pequeno, distante da cidade e no sculo XIX (viria a integrar o Porto em 1836), termi-nava junto Senhora da Luz, onde havia um farol. Com origens na pesca (remontam ao sculo XII as primeiras menes ao lugar), forneceu no sculo XVI um aprecivel contingente de mareantes e navios marinha mercante e s armadas. No stio onde hoje encontramos o Passeio Alegre estendia-se um areal onde os pecadores varavam os barcos e consertavam as redes.

    Gravura 1 A Cantareira

    19 Corpus codicum, vol. I, p. 206.20 Marcas de um tempo desaparecido e arredado da mente de quem passa so tambm as casas dos

    martimos com um culo de onde se via partir ou chegar o navio onde estava um familiar: terra de embarcadios, de gente emigrada para o Brasil, dos homens da faina e dos carpinteiros do esta-leiro. Ver Raul Brando A Cantareira (1920), in Os pescadores, 3 edio. Lisboa: Ulisseia, 1995, p. 35-46. Mais referncias ao quotidiano e imaginrio martimos da Foz nas pginas 62 (a arte de fazer redes de pesca), 65-66 (a pesca da sardinha em 1900 e os almocreves espera na praia), 95-98, 102-103 (as mulheres da Foz), a impressionante descrio da morte do arrais (p. 109-113), etc.

  • 34

    Amndio Jorge morAis bArros

    6.5. S. Miguel de Nevogilde

    Areais havia muitos na costa de mar, entre a Senhora da Luz e Bouas, na actual freguesia de S. Miguel de Nevogilde, s tardiamente integrada no Porto, no cabo da qual ser implantada, depois da Restaurao, a fortaleza de S. Francisco Xavier, conhecida como Castelo do Queijo, nome dos rochedos sobre os quais foi erguida. A ligao com Bouas, promotora de contactos com o emergente surgidouro de Leixes, fazia-se atravs de caminhos marginando a costa, a que mais tarde se dar o nome de estrada de Carreiros.

    7. Novamente a cidade: o quantitativo demogrfico

    Regressemos cidade do Porto, para tentar contar pessoas e ligar a cidade com o rio e a actividade naval.

    Um dos aspectos estruturantes o do quantitativo demogrfico da cidade no perodo em estudo, uma vez que ele poder explicar uma parte do comrcio martimo desenvolvido. Dito de outra forma: seria essencial conhecer nmeros para vermos at que ponto o comrcio se fazia em funo da procura urbana ou se o seu desenvolvimento e direccionamento aconteciam em funo de solicitaes externas e de acordo com os ritmos do trato internacional. Quanto aos aspectos demogrficos estamos limitados pela falta de estudos, ressalvando-se o labor de Joo Jos Alves Dias21 e, mais relacionados com o Porto, os trabalhos de Helena Osswald. De acordo com esta investigadora, sendo a cidade, simultaneamente, sede do bispado, o centro urbano de maior projeco deste espao e um porto de mar com funes de exportao de gentes, ser de crer que aqui se cruzassem vrios ritmos e necessidades22.

    Sem nmeros fiveis vejamos o que, em linhas muito gerais, se sabe e se pensa que ter sido a evoluo da cidade entre a Idade Mdia e o sculo XVI.

    O primeiro grande arranque da populao ter ocorrido no sculo XIII, enqua-drando-se num fenmeno conhecido no Ocidente medieval. Depois de um primeiro perodo de organizao geral do burgo, em resultado da aco do bispo D. Hugo, nas pri-meiras dcadas do sculo XII, no fim dessa centria o Porto redimensionou-se e passou a representar para os habitantes de uma vasta regio, a norte e a sul do Douro, um stio de trocas com o mundo23. No sculo XIV, por motivos ainda pouco explicados, a cidade torna-se espao estratgico e abrigo de gentes que a procuraram, e houve que construir uma nova muralha, que teve consequncias na organizao do espao porturio.

    21 Especialmente Gentes e espaos (em torno da populao portuguesa na primeira metade do sculo XVI), vol. I. S/l: Fundao Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigao Cientfica e Tecnol-gica, 1996.

    22 A evoluo da populao na diocese do Porto na poca Moderna, in Actas do I Congresso sobre a diocese do Porto Tempos e Lugares de Memria homenagem a D. Domingos de Pinho Brando, vol. II. Porto: Centro de Estudos D. Domingos de Pinho Brando/Universidade CatlicaCentro Regional do Porto/Faculdade de Letras da Universidade do Porto Departamento de Cincias e Tcnicas do Patrimnio, 2002, p. 81.

    23 SOUSA, Armindo de Tempos medievais, in Histria do Porto, direco de Lus A. de Oliveira Ramos. Porto: Porto Editora, 1995, p. 132.

  • 35

    Captulo 1 organizao porturia da Cidade do porto nos sCulos XV e XVi

    Quanto a nmeros concretos, difcil apontar certezas. Como do conhecimento geral, no houve, na Idade Mdia preocupaes em saber-se o nmero exacto da popu-lao24 e os primeiros cmputos efectuados, entre finais do sculo XV e incios do sculo XVI, para alm de lacunares so difceis de interpretar. Os estudiosos, desde Agostinho Rebelo da Costa, passando por Ricardo Jorge, Magalhes Basto, Damio Peres25, Torcato Soares, Antnio Cruz ou o prprio Armindo de Sousa, andaram s voltas com o tema, avanando com nmeros dspares, entre os 4 000 e os 8 500 habitantes intra-muros no sculo XV. Na centria seguinte, na opinio de Antnio Cruz, o nmero de portuenses ter crescido, chegando a atingir, em finais do sculo cerca de 15 mil habitantes26.

    A ideia geral a de um crescimento contnuo da populao entre finais da Idade Mdia e incio da poca Moderna notado, entre outros, no aumento de funcionrios: os tabelies do judicial em 1528 passaram a ser em nmero de dez e, em 1532, passaram a ser onze27; e na diviso da cidade em vrias freguesias (S. Nicolau, Nossa Senhora da Vitria e S. Joo de Belomonte) com o desmembramento da nica existente no perodo medievo, a da S, o bispo Frei Marcos de Lisboa (1583) justificava esta medida pelo facto de a cidade ter ento cerca de 20 mil habitantes28. Esta parece ser a cifra consensual acerca do quantitativo populacional do Porto finissecular. Valor que, com variaes (acentuadas como ter sido o caso dos primeiros anos de Seiscentos com a cidade fustigada por mor-tfera epidemia de peste) se manter por todo o sculo XVII, apenas se alterando para mais do dobro (cerca de 55 mil habitantes) na segunda metade do sculo XVIII29.

    Este aumento populacional tardomedievo e quinhentista tambm se fez sentir, de forma desigual certo, no termo. E isso teve influncia directa na estruturao da cidade e nos negcios martimos. Armindo de Sousa, que nivela por baixo a ocupao humana do Porto medievo, considera existirem na cidade e no termo, por alturas do numera-mento (1527-1531 na comarca do Porto), 25 740 habitantes30, nmero que ter sido dilatado at finais de Quinhentos.

    Estabelecido por D. Fernando e sancionado (com vantagem) por D. Joo I, o termo jurisdicional do Porto permitiu cidade encontrar contribuintes fiscais e gentes para a navegao e comrcio. No entanto, cabe perguntar: estas escassas dezenas de milhar de pessoas seriam um estmulo para amplificar os tratos martimos, canalizar para o burgo

    24 Idem o.c., p. 189.25 Resume estudos anteriores em O sculo XV: uma repblica urbana (1 Populao: quantitativo

    e composio), in Histria da cidade do Porto, dir. de Damio Peres, vol. II. Porto: Portucalense Edi-tora, 1964, p. 7 e seguintes.

    26 Algumas observaes sobre a vida econmica e social da cidade do Porto nas vsperas de AlccerQuibir. Porto: Biblioteca Pblica Municipal, 1967, p. 33. Segundo o relatrio das visitas ad limina, o nmero total de almas em 1599 rondaria as 20 mil. AZEVEDO, Carlos de A cidade do Porto nos relatrios das visitas ad limina do arquivo do Vaticano, in Revista de Histria, vol. II. Porto: INIC/Centro de Histria da Universidade do Porto, 1979, p. 188.

    27 DIAS, Joo Jos Alves o.c., p. 137.28 AZEVEDO, Carlos de o.c., p. 178.29 LE BOUEDEC, Grard Activits maritimes et socits littorales de lEurope atlantique, 1690-1790.

    Paris: Armand Colin, 1997, p. 236-237.30 O.c., p. 179.

  • 36

    Amndio Jorge morAis bArros

    navios e produtos, ergu-lo em centro de negcios no qual finalizavam rotas ocenicas? pergunta a que tentarei responder ao longo de todo este livro.

    8. Urbanismo porturio

    Muita da circulao interna do burgo foi influenciada pela actividade de embarque e desembarque dos navios. Os plos fundamentais eram a zona ribeirinha da cidade junto muralha (concentrada na Ribeira e a montante e jusante desta praa) e em Mira-gaia. Assim, os principais eixos de circulao passavam pelas ligaes entre estes dois ncleos. A rua Nova, aberta entre finais do sculo XIV e a primeira metade do sculo XV representava, no fundo, a implantao de uma verdadeira estrada na zona baixa da cidade, a caminho de Miragaia. A Porta Nova ser um dos principais pontos de circula-o, suscitada pelo trato martimo31. Essa porta, disse Armindo de Sousa, polarizou em torno de si a vida do Porto burgus, mercantil, tornando-se palco de negcios, espao de festas, zona habitacional do maior prestgio e sala para recepo de reis e altas figuras32. Interessa-me a primeira parte desta afirmao, sobre a faceta comercial da rua. A sua abertura representou um facto urbano relevante. No se fez por acaso. Resultou, como afirmou Pereira de Oliveira, de um acto deliberado, de uma conjuno de vontades, do Rei e dos homens da Cmara, de corresponder expectativa de desenvolvimento da cidade baixa33, isto , da cidade comercial e dos comerciantes.

    Vejamos outras vias de circulao relacionadas com o porto martimo. Um dos eixos principais era a rua dos Mercadores, vital ainda antes do surgimento

    da rua Nova visto ser a nica artria que desembocava na praa da Ribeira, ligando parte alta do burgo.

    Entrando na Porta Nova, havia, desde o incio do sculo XVI, uma opo viria constituda pela rua da Ferraria de Baixo (actual rua de O Comrcio do Porto) pela qual se acedia ao largo de S. Domingos, relais importantssimo do trfego. Daqui, par-tia-se por Belmonte (ou Belomonte, que se desenhava em finais do sculo XV) e Taipas em direco Porta do Olival e Cordoaria, para onde era canalizado o trfego rumo a Matosinhos, Vila do Conde ou Braga e para mais perto [] para a Torre da Marca e quintas dentre Massarelos, o Bom Sucesso e Cedofeita.

    Mais tarde (desde 1521), a rua das Flores tornou-se a via mais concorrida pelo movimento para extra-muros em todas as direces.

    A rua das Flores, que visitaremos vrias vezes neste livro, vai-se transformar numa artria de elites, e num centro comercial importante. Desembocava num largo, de So Domingos, onde estavam as casas e armazns de alguns destacados homens de negcios do sculo XVI; a necessidade de uma ligao s ruas da Bainharia e dos Mercadores obri-gou construo de uma ponte a que, sem surpresa, se chamou ponte de So Domingos,

    31 DUARTE, Lus Miguel; AMARAL, Lus Carlos Os homens que pagaram a rua Nova. (Fiscalizao, sociedade e ordenamento territorial no Porto quatrocentista), separata da Revista de Histria. Porto: Centro de Histria da Universidade do Porto, vol. VI, 1985.

    32 Tempos medievais, p. 146.33 OLIVEIRA, J. M. Pereira de o.c., p. 233-234

  • 37

    Captulo 1 organizao porturia da Cidade do porto nos sCulos XV e XVi

    que tambm facilitava os acessos rua de Belmonte e Taipas, onde se concentraro os mercadores cristos-novos na mesma centria. possvel que a ponte se tornasse priori-tria em face dos sucessivos temporais que assolaram a cidade na dcada de 1550, ampla-mente documentados nas vereaes, desde a grande tempestade de 1551, que arruinou o lajeado da rua e praa da Porta Nova. Recorde-se que entre os dois morros corria o Rio de Vila, hoje encanado sob a rua de Mouzinho da Silveira, e o seu caudal devia estar muito aumentado de resto, na arrematao da obra diz-se que ela haveria de ser feita em arcos de pedra (arcos toscos e de alvenaria, com paredes de uma parte e da outra) para que a gua corresse mais facilmente. Os trabalhos, que estiveram a cargo do pedreiro Francisco Vaz, decorreram entre 1556 e 155934. Taipas, Belmonte, Flores, Largo e Ponte de So Domingos constituiro o centro de negcios mais cosmopolita do Porto, intimamente ligado dinamizao dos negcios porturios da cidade.

    Um dos pontos de conexo viria de maior interesse era a rua das Congostas. A primeira notcia sobre ela data de 1379. Correspondente ao traado do tramo inferior da actual rua de Mouzinho da Silveira at alturas do encontro com a rua de S. Joo, articulava-se com S. Nicolau mas, sobretudo, com a alfndega, desfrutando do n de S. Domingos como elemento escoador do trfego35. Transformaes na rede viria ocor-ridas entre finais da Idade Mdia e no sculo XVI ajudaro a redimensionar o papel deste eixo. A nota referida atrs, sobre a edificao da ponte de So Domingos, torna este quadro mais compreensvel.

    Mapa 1 Percursos organizados em funo da actividade porturia (scs. XIV-XVI)

    34 Para se fazer a ponte foi derrubada a capela dos Alvarinhos, que ali existia e estava danificada por um dos temporais, aproveitando-se a "terra e a pedra" desta capela para a sua construo, o que custou 600 reais ao municpio. Ver AHMP Vereaes, livros 20 e 21, respectivamente, fl. 89 e 7v.

    35 OLIVEIRA, J. M. Pereira de o.c., p. 423-427.

  • 38

    Amndio Jorge morAis bArros

    Deste modo, desde o sculo XIV realizava-se uma pequena revoluo urbanstica na zona ribeirinha da cidade, em ntima relao com a actividade porturia: a constitui-o do armazm rgio, em 1325, e a organizao do cais do Terreirinho que ele moti-vou, a abertura da rua Nova em finais desse sculo XIV, e a bolsa dos mercadores, logo no incio do sculo XV, representaram facetas de um ordenamento urbano suscitado pelo movimento de navios, com consequncias na vida do Porto de Quatrocentos e Quinhen-tos. Como afirmou Armindo de Sousa, a Baixa portuense, ribeirinha, comeou a afir-mar-se na segunda metade do sculo XIV [] por efeito da atraco do rio e do mar. Foi obra de pescadores, mareantes, funcionrios rgios da alfndega, moedeiros, armadores de navios, cambistas e mercadores. Gente do comrcio, da finana e da fiscalidade rgia e local. Mas tambm gente dos ofcios e do trabalho tarefa e jorna36.

    9. Ainda o reconhecimento do terreno

    Portanto, tudo muito diferente. Entre a malha urbana e a Foz, ncleos pouco povoados, a melhor forma de comunicar era pelo rio. Quando, em 3 de Abril de 1585, se decide, pela ensima vez, tomar medidas contra o contrabando de pescado que se fazia ao longo das margens, ordena-se ao alcaide, procurador da cidade e homens por eles arrola-dos que vo de barco aos ditos luguares de So Joo e Maarellos e Miraguaia e derribem quaesquer choupanas que acharem nos ditos luguares honde se diz que recebem ho dicto pescado37, como iro de barco, pelo tempo fora, todos aqueles que precisavam de chegar com pressa Foz.

    Outra diferena muito significativa: o nvel a que as coisas aconteciam. A cota topogrfica ribeirinha localizava-se a um plano cerca de dois metros inferior ao actual38. A fotografia do Postigo do Carvo aqui publicada mostra isso mesmo: um acentuado desnvel entre o que foi o terreno e o que ele hoje.

    Foto 1 Postigo do Carvo

    36 O.c., p. 150.37 AHMP Vereaes, liv. 27, fl. 82v.38 A praa da Ribeira como hoje se conhece foi feita com base em substanciais aterros.

  • 39

    Captulo 1 organizao porturia da Cidade do porto nos sCulos XV e XVi

    10. Um elemento incontornvel: o rio Douro

    Grande parte desta situao decorreu do aproveitamento hidroelctrico do Douro no sculo XX e da consequente construo das barragens, originando alteraes na fisio-nomia do rio e forando a normalizao do seu caudal. At essa altura, o Douro sofria mais os efeitos dos fenmenos naturais. Desde logo, notava-se com muito maior nitidez o regime de mars ao qual o rio estava e est sujeito. Estas, considerando ainda o que respeita s variaes normais do seu tipo, fazem-se sentir, mesmo nas grandes estiagens, em P de Moura, a cerca de 27 km da foz, e tm o seu limite absoluto um pouco mais a montante, a 33 km, em Areja39. A incidncia das mars reflectia-se em diversos aspectos da vida naval da cidade, seja nos condicionamentos ao trfego (e ao tipo de navios em consequncia da sua diferente lotao) na entrada da barra, na ancoragem, na estrutura-o dos servios pelas margens e na prpria construo naval, neste caso, com a probabili-dade de o funcionamento de certas estruturas dos estaleiros depender (ou estar de alguma forma ligado) desse mesmo regime de mars.

    Tambm era ntida a diferena entre as duas principais estaes. No Vero, estia-gens mais ou menos prolongadas; no Inverno, cheias mais ou menos violentas.

    Estas ocorrncias tinham efeitos sobre a navegao. Com maior influncia sobre o trnsito fluvial, complementar da actividade porturia mas em absoluto capital econo-mia urbana e alimentao do seu trato martimo, estas variaes sazonais, sobretudo as cheias, limitavam o acolhimento da navegao ocenica.

    Os dados do problema so os seguintes: a navegao do rio, j de si complicada pelo grande nmero de obstculos distribudos pela extenso navegvel do Douro era condicionada pelo estado do rio em cada uma das pocas, das mars e dos percursos.

    Um tabelamento de preos de transporte de mercadorias em barcas para o Porto, de 1545, informa-nos sobre as etapas percorridas desde S. Joo da Pesqueira (limite da nave-gao) at cidade, em tempo denchemtes dauguoa, expresso que deve ser entendida por caudal suficiente do rio e no por cheias40. Nele indica-se que a zona Poiares-Meso Frio era navegao de todo anno41. Mas, da para cima tudo se complicava. Do regime do Douro dependia muito o trnsito de Riba Douro. Este, quase cessava com as grandes estiagens e a drstica diminuio do caudal impossibilitando a circulao de barcos car-regados com fazendas como os vinhos, azeites, sumagres e cereais. O recurso s difceis (e poucas) estradas terrestres era a soluo mais corrente. Mas no satisfatria. Em 26 de Maro de 1567, com a cidade carenciada de vinhos para consumo e embarque, a Cmara constatava que os mercadores que trazio o dicto vinho no achavo barcas em que venderem o dicto vinho a prancha e o tornavo a levar o que era causa de no virem a cidade e asi se no achavo barcas por causa do frete do po a que andavo. O que era mau pois urgia meter os vinhos em tempo til, por tempo de trs meses, sob pena de no ser possvel faz-lo depois: por que neste meio tempo se poder despachar o dicto vinho e aver abundancia dele ante que o rio leve menos agoa42.

    39 PEREIRA DE OLIVEIRA, J. M. Pereira de o.c., p. 133. Hoje em dia cortado pelas barragens.40 Estas so designadas pela palavra enxurro.41 AHMP Vereaes, liv. 15, fl. 21v. Com cheias era praticamente impossvel, cumprir a viagem.42 AHMP Vereaes, liv. 24, fls. 109-109v.

  • 40

    Amndio Jorge morAis bArros

    No Inverno, tudo mudava. O furioso caudal de cheia do Douro, nos piores anos apenas ultrapassado por um ou dois grandes rios da Europa de Leste, tudo arrastava fazendo da navegao um autntico suicdio e causando profundas alteraes na barra. O rpido movimento das guas, arrastando areias e todo o tipo de detritos, conjugado com as mars do Oceano, tornava muitas vezes impossvel aos navios franquear a barra quando pretendiam entrar.

    Assim, a normalidade decorreria, grosso modo, entre finais de Setembro e meados de Dezembro, e de Maro (ms que podia ser com-plicado) a Junho. Portanto, cerca de sete meses de navegao despreocupada, registando-se picos sazonais coincidentes com os trficos martimos internacionais43. Normalidade que nos mostra-ria, se o vssemos, um Douro muito diferente daquilo que na actualidade. Um Douro cujas fainas ribeirinhas, para alm da influncia na urbanizao da Ribeira e de Miragaia, esto na gnese quase independente de Massarelos, Lor-delo do Ouro e S. Joo da Foz44.

    Um Douro diferente. Um Douro de leito mais cavado. Um Douro de praias. Eis outra grande diferena a assinalar. A praia, crucial no desenvolvimento ribeirinho, dominava na paisa-gem das margens definindo reas de acesso ao rio entrecortadas por elevaes e penhascos que as delimitavam. No sop do morro da Penaventosa onde o Porto se fez cidade, avultava o areal da Ribeira onde paravam os navios e onde se pude-ram ver, durante muito tempo, at o comrcio os obrigar a sair, os varais, os caractersticos dos ambientes piscatrios, que encontraremos em Massarelos ou na Foz, onde os homens secavam o peixe e estendiam as redes45. Para a praia da Ribeira convergia grande parte da actividade porturia, e ainda olharemos para ela nas gravuras do Porto. Mas a montante, onde vir a ser o limite oriental ribeirinho da muralha havia outra praia, em frente ao Codeal delimitada pelos penedos existentes junto casa do Laranjo, que persistir, dando origem ao nome do Postigo da Areia,

    43 Mais do que uma vez, os documentos afirmam esta coincidncia, referindo a presena de urcas espe-rando o pastel, sumagre, do Douro, e acar e algodo do Brasil. Quanto aos perodos de navegao no Douro, tambm so sugeridos pelos tabelamentos dos preos de barcas. O porto comea a animar- -se em Setembro, ms de movimentaes de navios nacionais e estrangeiros em busca dos vinhos e dos sumagres.

    44 OLIVEIRA, J. M. Pereira de o.c., p. 282.45 Varais da Ribeira no sculo XIV em Corpus Codicum, vol. I, p. 36.

    Gravura 2 Postigo da Areia (reconstituio)

  • 41

    Captulo 1 organizao porturia da Cidade do porto nos sCulos XV e XVi

    entrada ribeirinha da muralha situada nas suas imediaes46 e local de concentrao do trfego fluvial.

    Mais para jusante da Ribeira, perto do local onde ser edificada a alfndega rgia, havia tambm um areal que acolhia barcos. Esta tradio manteve-se com a construo de um primeiro molhe dando origem ao cais do Terreirinho47.

    Logo adiante, junto ao muro, nos Banhos, havia outra praia, aproveitada ainda na Idade Mdia para a construo de barcos, actividade que veio da Ribeira quando o espao ali comeou a minguar.

    Depois, era o extenso areal de Miragaia. A Porta Nova, ou Nobre, de acesso a este bairro, ter resultado do alargamento do postigo significativamente chamado da Praia. Nesta estacionavam barcas de passagem48, junto Porta Nova varava um sem-nmero de embarcaes de diferente calado e modelo e construam-se e aparelhavam-se navios.

    Adiante de Monchique, a praia de Massarelos. Era das grandes que o Porto tinha. No sculo XVI, junto a ela, e na areia, encontramos barcos de pescar e navios de alto bordo; tambm havia grande nmero de varais, objecto de compra, venda e aluguer, pois interessavam a quem fazia do mar o seu modo de vida. E por aqui eram muitos. Na segunda metade dessa centria chegamos mesmo a surpreender a construo, na praia, de navios mercantes.

    As praias esto na origem do desenvolvimento de lugares como o Ouro, a Canta-reira ou S. Joo da Foz. Podem ver-se em gravuras dos sculos XVIII e XIX.

    Na do Ouro acolheu-se o maior estaleiro naval do Porto moderno. A, e voltamos questo do nvel das guas do rio, formava-se uma pequena ilha, a ilha do Frade, recor-dando a granja de Cister?, onde ainda no incio do sculo XX os curiosos se postavam para ver o bota-fora dos navios.

    S. Joo da Foz praia de pescadores extensa; prolongava-se at ao Oceano, palco de todas as actividades relacionadas com o mar, com rochas sobre as quais ser construdo o forte de S. Joo Baptista da Foz em meados de Quinhentos.

    Na margem esquerda, e restringindo-me apenas ao troo defronte do Porto at foz, Vila Nova desfrutava de extenso areal, tambm visvel em gravuras e em fotografias dos sculos XIX e XX49.

    Por exemplo, a igreja de Santa Marinha e o convento de Corpus Christi foram edificados seno na areia, muito perto dela. Aqui houve construo naval activa, embora tardia, e, em tempos mais recentes, apinhavam-se na praia pipas de vinho duriense des-carregadas dos barcos rabelos antes de serem encaminhadas para os armazns (fenmeno

    46 Embora a localizao deste postigo se preste a alguma confuso; pode ser o que estava entre a Ribeira e o final da Lada, onde se concentravam, nos sculos XIV e XV, os tanoeiros: outra [quadrilha de vigilncia a cargo dos moradores em 1449] ataao pustigo dos tonoeiros de soa arrea; FERREIRA, J. A. Pinto Vereaoens, anos de 1401-1449. Porto: Cmara Municipal/Gabinete de Histria da Cidade, 1980, p. 407. Referncia anterior (1401) a este postigo que esta antre a porta da Ribeira e o postigo da llada, no mesmo livro, p. 44. Talvez se possa identificar tambm com o postigo de Joo Pais, junto mesma casa do Laranjo.

    47 Sobre esta praia ver OLIVEIRA, J. M. Pereira de o.c., p. 226.48 Como na Ribeira.49 Parte da aco do filme Aniki-bob de Manoel de Oliveira decorreu nela.

  • 42

    Amndio Jorge morAis bArros

    sobretudo notrio no sculo XIX) ou espera de navios que as levassem para outros portos. Hoje, um dos poucos stios onde ainda possvel vislumbrar areal na pequena enseada onde se ergue o estaleiro de barcos tradicionais da Cruz, na praia do mesmo nome.

    Para jusante, a margem do rio apresentava-se na generalidade com praias de dife-rente extenso, ocupando o chamado leito de inundao. Destacavam-se as de Valdamo-res ( qual se estende, mais tarde, o topnimo Vale da Piedade) onde viria a ser organi-zado o lazareto, pea fundamental da higiene martima, e a da zona da Afurada, onde se viria a esboar a comunidade piscatria que celebrizou o lugar, junto da pesqueira do mesmo nome.

    Gravura 3 O areal de Vila Nova em gravuras antigas do Porto

  • 43

    Captulo 1 organizao porturia da Cidade do porto nos sCulos XV e XVi

    A chegar barra, delimitando e configurando parte da baa de S. Paio, a enorme lngua de areia do Cabedelo sempre presente, sempre mudada, sempre perigosa, tambm teve aproveitamento no mbito da sade martima, tendo sido usada para o degredo dos navios no sculo XV.

    As praias originaram, por sua vez, uma distribuio de funes que, no seu con-junto, estruturaram o espao porturio da cidade do Porto.

    A sua funo econmica era reconhecida. Isso ntido em 1572. Numa listagem de taxas cobradas na alfndega do Porto aceitava-se como razovel que algumas mercadorias no fossem to oneradas dezimando se na praya como se custuma50. Outra informao anterior, de 1559, sublinha a importncia da praia, onde se desenrolavam concorridos negcios, recordando-nos, ao mesmo tempo, os efeitos do regime do rio e do mau-tempo sobre a mesma: em 17 de Abril, a Cmara interditava aos comerciantes a colocao de pipas na Ribeira porquanto a praia e a Ribeira estava e era muito pequena51. Para ter-minar, refira-se que ainda em 1597 (Janeiro, 24) se fez o embarque de gente na areia de Miragaia, onde estava uma nave preparada52.

    11. A gua: rios, ribeiros, regatos e fontes

    Em vrios dos lugares referidos funcionaram estaleiros ou espaos onde se fazia o aparelhamento de navios. Partilham algumas caractersticas; uma, transversal a todos, era a presena de cursos de gua.

    As primitivas taracenas da Ribeira ficavam perto do Rio de Vila, um simples regato, poludo quanto baste nos finais da Idade Mdia. Em Quebrantes e em S. Nicolau (no primeiro construram-se navios, no segundo aparelhavam-se os mastros), corria gua da serra de excelente qualidade. Nas mais tardias taracenas de Vila Nova passava um ribeiro. Em Miragaia, um rio, o Rio Frio, e duas fontes prximas dos lugares onde se faziam os barcos, a do Touro, que limitava o espao construtivo durante muito tempo, e a da Colher, mais adiante. Em Massarelos, a rua da Fonte de Massarelos e o actual chafariz junto ao rio do tambm a entender que a gua correria e seria abundante junto do areal onde se chegaram a fazer navios. Por fim, em Sobreiras, nos estaleiros do Ouro, havia tambem duas fontes (uma delas conhecida como a Fonte dos Flamengos). Outras havia.

    A gua, alm do abastecimento dos barcos constitua auxiliar precioso nestes pequenos complexos de construo. Para tratar materiais em geral, couros, fibras, cordas, mas indispensvel nas forjas e na carpintaria. No de crer que os pequenos ribeiros que corriam junto aos estaleiros do Porto fossem capazes de mover as rodas hidrulicas que accionavam serras como as que existiam em portos do reino vizinho53, no entanto, as

    50 TT Ncleo Antigo, n 110, fl. 238.51 Significa que nesse ano houve uma cheia; o acordo diz: que portanto no se posese nenha pipa de

    vinho e quem a poser pagara de pena mil reaes pagos da cadea para a cidade e cativos. Ordena-se tambm prego, lanado na areia perante muita gente que a se encontrava. AHMP Vereaes, liv. 21, fls. 26-27.

    52 AHMP Vereaes, liv. 33, fl. 26.53 O primeiro projecto de serra movida por este mtodo foi do arquitecto francs Villard de Honne-

    court, em 1230. O seu uso, todavia, s se generalizar no Renascimento, para o corte de grossos

  • 44

    Amndio Jorge morAis bArros

    guas correntes eram obrigatrias, por exemplo, no arrefecimento das serras e de outras ferramentas. Ou para molhar as madeiras, embora o Douro esteja ali ao p. Enfim, o labor dos fragoeiros e dos ferreiros no as dispensava.

    12. O porto medieval

    O primeiro assentamento porturio da cidade aproveitou-se de todos estes recursos naturais. Junto ao povoado, a praia da Ribeira foi o centro deste primitivo porto medievo. No prolongamento do ressio da praa homnima Pereira de Oliveira chama a ateno para a importncia funcional destes espaos na vida econmica da cidade concen-trava-se o mais significativo da vida martima portuense. Havia um local adequado para receber os barcos de pesca, um areal onde encalhavam os batis de descarga dos navios e um primeiro esboo de organizao do espao, com um ponto assinalado para a descarga das madeiras54. Desde cedo se documenta um movimento intenso. As embarcaes che-gavam, descarregavam, carregavam e partiam para Frana e para a Flandres. Para as Ilhas Britnicas. No entanto, entre barcos de pesca, navios de comrcio, maneio de mercado-rias, actividade das taracenas, venda de vinhos e muitas outras actividades, a confuso comeava a instalar-se. Em 1316 era j muito grande. Reflexo da evoluo econmica da cidade, o stio comeou a ser disputado.

    Naquele ano, sentiu-se a primeira necessidade de reorganizao do espao. No dia 13 de Maio queixavam-se os vereadores, acusando os homens do Bispo e do Cabido: que os agrauauam embargandolhes e tapandolhes os ressyos da Ribeyra hu carregam os barcos que vao para frana e hu descarregam os Baixees que tragem amadeyra e offerro e opescado55. evidente que este documento, extenso, contendo vrios agravos, pinta um quadro muito negro da situao, como convm em lide judicial. Porm, possvel que se comeassem a fazer notar sintomas de saturao do espao, usado para albergar variadas funes em terreno exguo.

    A interferncia do poder rgio na cidade ter apressado a desejada reorganizao. Em 1325 iniciou-se a construo da alfndega ou almazm real, ao cabo da rua da Fonte dOurina, elemento crucial para a definio de locais de carga e descarga, sobretudo desta, puxando a acostagem dos barcos para a seco do rio que lhe ficava mais prxima e dando origem, talvez ainda no sculo XIV, ao cais do Terreirinho, tambm designado da Reboleira-Fonte dOurina ou cais da Estiva. Mas, at isto acontecer, ainda seria pre-ciso percorrer outras etapas.

    A edificao da muralha, iniciada pela zona ribeirinha por volta de 1348, repre-sentou outro factor, dos mais decisivos, da estruturao do porto medieval. O muro, envolvendo a cidade da beira-rio, dos Guindais aos Banhos, ora assentava nas pedras, ora

    troncos de madeira. Em Espanha, este ser o nico procedimento utilizado que prescinde da fora dos homens e animais de tiro. Na Holanda empregavam-se moinhos de vento para o mesmo efeito. Puertos espaoles en la historia..., p. 176.

    54 Para obras da cidade e, sobretudo, construo naval. O processo de acomodao das madeiras um dos mais notados na estruturao dos portos medievais. ROSE, Susan Medieval naval warfare, 1000-1500. Londres e Nova Iorque: Routledge, 2002, p. 8.

    55 Corpus codicum, vol. I, p. 59.

  • 45

    Captulo 1 organizao porturia da Cidade do porto nos sCulos XV e XVi

    nas praias. Desde logo atraiu aos seus arcos, aos seus recantos abrigados, aos seus cober-tos, um bom nmero de artfices e tendeiros, elementos dinamizadores da economia martima, agentes interessados nos navios e no contedo das suas cargas. A sua edifica-o, desde o projecto inicial, comportava aberturas voltadas para o rio. Foi, portanto, previsto um aproveitamento da sua localizao para funes