amigos.inimigos de porcos - harris

Upload: viviani-servilha

Post on 23-Feb-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/24/2019 Amigos.inimigos de Porcos - Harris

    1/10

    1

    Amigos e Inimigos de Porcos

    HARRIS, Marvin. Amigos e Inimigos de Porcos, em Vacas, Porcos e Br uxas. Rio deJaneiro: Ed. Civilizao Brasileira, 1980.

    Todos sabem que existem hbitos alimentares aparentemente irracionais. Os chineses gostam decarne de cachorro, mas desdenham o leite de vaca; ns apreciamos o leite de vaca, mas nocomeramos carne de cachorro; algumas tribos de ndios brasileiros adoram formigas, mas detestamcarne de veado. E assim vai pelo mundo afora.

    O mistrio do porco me impressiona como uma boa seqncia do amor s vacas. Impe-meo desafio de ter de explicar porque certas pessoas gostam e outras odeiam o mesmo animal.

    A metade do enigma que se refere aos inimigos do porco bem conhecida dos judeus,muulmanos e cristos. Jeov, Deus dos Hebreus, saiu dos seus cuidados (uma vez no Livro doGnesis e outra no Levtico) para denunciar o porco como imundo um animal que polui, se forprovado ou tocado.

    Cerca de 1.500 anos mais tarde, Al declarou ao seu profeta Maom que idntica seria areputao dos porcos para todos os seguidores do islamismo. Entre milhes de judeus e centenas demilhes de muulmanos, o porco continua a ser uma abominao, apesar do fato de podertransformar cereais e tubrculos em gorduras e protenas de alto valor e mais eficientemente do quequalquer outro animal.

    Menos conhecidas ainda so as tradies dos apreciadores fanticos do porco. O centromundial do amor ao porco situa-se na Nova Guin e nas ilhas Melansias do Sul do Pacfico. Paraas tribos horticultoras que habitam as aldeias dessa regio, os porcos so animais sagrados que sedevem sacrificar aos antepassados e comer em todas as ocasies importantes, tais como casamentose funerais. Em muitas tribos, deve-se matar o porco tanto para declarar guerra como para fazer apaz. Os nativos acreditam que seus ancestrais anseiam por carne de porco. to irresistvel a avidez

    pela carne suna entre vivos e mortos que, de tempos em tempos, organizam-se grandes festas, equase todos os porcos da tribo so devorados de uma s vez. Durante vrios dias, os aldeos e seusconvivas empanturram-se de grandes quantidades de carne, vomitando a que no conseguemdigerir, para dar lugar a ainda mais. Quando tudo termina, o rebanho suno de tal modo estreduzido que sero necessrios anos de assduo trabalho para o reconstituir. To logo o conseguem,porm, iniciam os preparativos para outra orgia de glutonaria. E assim prossegue o ciclo bizarrodesse aparente desmando.

    Principiarei pelo problema dos inimigos judaicos e islmicos do porco. Por que seria quedeuses to enaltecidos como Jeov e Al se haveriam dado ao trabalho de condenar um animalinofensivo, e at mesmo ridculo, cuja carne apreciada pela maior parte da humanidade?Estudiosos que aceitam as condenaes bblica e maometana dos porcos tm apresentado inmerasexplicaes. Antes da Renascena, a crena mais popular era de que o porco literalmente um

    animal sujo mais sujo que os outros porque se chafurda na prpria urina e come excrementos. Masa associao da sujeira fsica averso religiosa leva a certas incongruncias. As vacas mantidas emcurrais tambm patinham nas prprias fezes e urina: E vacas famintas comero com prazer dejeeshumanas. Ces e galinhas fazem a mesma coisa, sem que ningum se importe, e os antigos deviamter sabido que os porcos criados em pocilgas higinicas tornam-se pachorrentos mascotesdomsticos. Por ltimo, se apelarmos para padres de limpeza exclusivamente estticos, h aformidvel inconsistncia da Bblia ao classificar locustdeos e gafanhotos como limpos. Aproposio de que os insetos so esteticamente mais saudveis que os porcos no adiantar causados fiis.

  • 7/24/2019 Amigos.inimigos de Porcos - Harris

    2/10

    2

    Tais incoerncias foram reconhecidas pelo rabinado judaico no comeo da Renascena.Devemos a Moiss Maimnides, mdico da corte de Saladino, no sculo XIII, no Cairo, a primeiraexplicao naturalista da rejeio da carne de porco por judeus e muulmanos. Afirma Maimnidesque Deus havia imposto a interdio da carne de porco como uma medida de sade pblica. Essacarne tem exercido uma influncia malvola e daninha sobre o organismo, escreveu o rabino.

    Embora no se mostrasse nada explcito nos fundamentos mdicos de tal afirmao, Maimnidesera o mdico do imperador e sua opinio amplamente respeitada.

    Nos meados do sculo XIX, a descoberta de que a triquinose era causada pela ingesto decarne de porco mal cozida foi interpretada como uma prova da sabedoria de Maimnides. Os judeuscom idias reformistas rejubilaram-se com a racionalidade dos cdigos bblicos e prontamenterenunciaram ao tabu contra o porco. Quando devidamente cozida, a carne de porco no constituiameaa sade pblica e seu consumo no pode, portanto, considerar-se ofensivo a Deus. Istolevou os rabinos de convices estritas a lanar um contra-ataque a toda a tradio naturalista. SeJeov houvesse apenas querido proteger a sade de seu povo, t-lo-ia instrudo a comer apenas acarne de porco bem cozida, ao invs de determinar que absolutamente no a comesse. Eargumentava-se que era evidente que Jeov tinha algo mais em mente algo bem mais importantedo que o simples bem-estar fsico.

    Alm dessa inconsistncia teolgica, a explicao de Maimnides apresenta contradiesmdicas e epidemiolgicas. O porco um vetor de molstias humanas, mas tambm o so outrosanimais domsticos livremente consumidos por muulmanos e judeus. A carne de vaca mal cozida,por exemplo, constitui uma fonte de parasitas, principalmente de tnias, que podem alcanar umcomprimento de 5 a 7 metros no interior dos intestinos de um homem, provocar severa anemia emenor resistncia a outras doenas infecciosas. Bois, cabras e carneiros so tambm vetores debrucelose, uma infeco freqente nos pases subdesenvolvidos, que vem acompanhada de febre,calafrios, suores, debilidade, dores e sofrimentos. Sua mais perigosa forma a brucellosismelitensis, transmitida por cabras e carneiros. Seus sintomas so letargia, fadiga, nervosismo edepresso mental, muitas vezes confundidos com psiconeurose. Por fim, existe o antraz, umamolstia transmitida por bois, cabras, carneiros, cavalos e jumentos, mas no pelos porcos.Diversamente da triquinose, que raras vezes fatal e no chega sequer a produzir sintomas namaioria dos indivduos atingidos, o antraz apresenta, freqentemente, uma evoluo rpida quecomea com furnculos pelo corpo e termina em morte por envenenamento do sangue. As grandesepidemias de antraz, que antigamente assolaram a Europa e a sia, no foram controladas at queLouis Pasteur descobriu sua vacina, em 1881. A omisso de Jeov em proibir o contato com osvetores domsticos do antraz particularmente prejudicial explicao de Maimnides, pois arelao entre essa doena nos animais e nos homens j era conhecida desde os tempos bblicos. Talcomo vem descrito no Livro do xodo, uma das pragas lanadas contra os egpcios associa,claramente, toda a sintomatologia do antraz animal molstia no homem:

    ...e tornou-se um furnculo, desfazendo-se em pstulas sobre homens e animais. Eos mgicos no podiam manter-se em p diante de Moiss por causa dosfurnculos, pois havia furnculos nos mgicos e em todos os egpcios.

    Em face dessas contradies, a maioria dos telogos judeus e maometanos abandonou apesquisa de uma base naturalista para explicar a averso ao porco. Uma concepo decididamentemstica vem sendo acolhida ultimamente, e afirma que a graa a obter-se com a obedincia aostabus dietticos depende de no se saber exatamente, nem tentar descobrir, o que Jeov tinha emmente.

    A moderna cincia antropolgica tambm chegou ao mesmo impasse. Por exemplo: noobstante todas as suas falhas, Moiss Maimnides esteve mais perto de uma explicao do que SirJames Frazer, renomado autor de The Golden Bough. Declarou Frazer que os porcos, tal comotodos os chamados animais inferiores, eram a princpio sagrados; a razo de no os comer era

  • 7/24/2019 Amigos.inimigos de Porcos - Harris

    3/10

    3

    porque, inicialmente, muitos eram tidos por divinos. Isto no ajuda absolutamente cm nada, j queos carneiros, cabras e vacas tambm foram outrora adorados no Oriente Mdio, sendo a sua carnehoje muito apreciada por todos os grupos tnicos e religiosos da regio. Pelo raciocnio de Frazer avaca, em particular, cuja cria em ouro foi venerada aos ps do Monte Sinai, afigurar-se-ia, maislogicamente que o porco, um animal impuro para os hebreus.

    Outros especialistas tm sugerido que os porcos, da mesma forma que o restante dosanimais considerados tabus na Bblia e no Alcoro, foram antigamente smbolos totmicos dediversos grupos tribais. Isto bem pode ter de fato acontecido em algum ponto remoto da histria,mas, se o admitirmos, teremos tambm de admitir que animais puros como os bois, os carneiros eas cabras hajam ainda servido de totens. Em oposio a muita coisa escrita sobre o totemismo,totens no so, em geral, animais estimados como fontes de alimentos. Os totens mais popularesentre as tribos primitivas da Austrlia e da frica so relativamente inteis, como corvos etentilhes, ou insetos como mosquitos, formigas, pernilongos, ou mesmo objetos inanimados comonuvens e seixos. Ademais, ainda quando um animal de valor constitui um totem, no existe regraalguma invarivel que exija dos seus scios humanos que se abstenham de com-lo. Com tantasopes disponveis, dizer que o porco era um totem no explica absolutamente nada. Seria o mesmoque dizer: O porco era tabu porque era tabu.

    Prefiro a focalizao de Maimnides. Pelo menos esse rabino tentou compreender o tabu,ao coloc-lo num contexto natural de sade e doena, onde atuavam foras explcitas de ordemprtica e corriqueira. O nico obstculo consistia em que sua opinio sobre as condies reais daaverso ao porco restringia-se a uma estreita preocupao, tpica do mdico, com a patologiacorporal.

    A soluo do enigma do porco exige que adotemos uma definio bem mais ampla de sadepblica, que inclua os principais processos pelos quais os animais, plantas e pessoas conseguemcoexistir em comunidades naturais e culturais viveis. Creio que a Bblia e o Alcoro condenaram oporco porque a sua criao constitua urna ameaa integridade dos ecossistemas culturais enaturais bsicos do Oriente Mdio.

    Para comear, temos de levar em conta o fato de que os hebreus pr-histricos os filhos de

    Abrao, por volta do segundo milnio A.C. estavam culturalmente adaptados existncia nasridas regies escamadas e pouco habitadas entre os vales fluviais da Mesopotmia e do Egito. Atconquistarem o Vale do Jordo, na Palestina, no comeo do XIII sculo A.C., os hebreus erampastores nmades, vivendo quase que exclusivamente dos rebanhos de carneiro, cabra e gado.Como todos os povos pastores, mantinham estreitas relaes com os agricultores sedentrios quecontrolavam os osis e os grandes rios. Com o correr do tempo, essas relaes levaram a um estilode vida mais sedentrio e voltado para a agricultura. Assim parece haver ocorrido com osdescendentes de Abrao na Mesopotmia, os seguidores de Jos no Egito e os de Isaac no NegevOcidental. Contudo, mesmo durante o apogeu da vida urbana ou rural, sob os reis Davi e Salomo,o pastoreio de carneiros, cabras e gado continuou a ser uma atividade econmica muito importante.

    Dentro do contexto geral deste mltiplo complexo agrcola e pastoril a proibio divinacontra a carne de porco constitua uma sensata estratgia ecolgica. Os israelitas nmades no

    poderiam criar porcos nos seus ridos ambientes, enquanto que para as semi-sedentrias populaesagrcolas os porcos eram mais uma ameaa que um patrimnio.

    A razo bsica deste fato que as zonas de nomadismo pastoril no mundo correspondem aplancies e colinas desflorestadas e ridas demais para a agricultura pluvial e difceis de seremirrigadas. Os animais domsticos mais bem adaptados a tais regies so os ruminantes bois,carneiros e cabras. Os ruminantes possuem uma pana antes do estmago, que os habilita, maiseficientemente que aos outros mamferos, a digerir capim, folhas e outros alimentos constitudosprincipalmente de celulose.

  • 7/24/2019 Amigos.inimigos de Porcos - Harris

    4/10

    4

    O porco, porm, primordialmente uma criatura dos bosques e ensombradas margensfluviais. Embora seja onvoro, seu melhor ganho de peso provm de alimentos de baixo teor decelulose castanhas, frutas, tubrculos e especialmente cereais, fazendo-o um concorrente diretodo homem. No pode viver apenas de capim e, em parte alguma do globo, se encontram pastoresnmades criando um nmero razovel de porcos. Possui ainda a desvantagem adicional de no ser

    uma fonte de leite, alm de ser difcil de tanger a longas distncias.Acima de tudo, est o porco termodinamicarnente mal adaptado ao clima quente e seco do

    Negev, Vale do Jordo e outras regies da Bblia e do Alcoro. Comparado com os bois, carneiros ecabras, possui um ineficiente sistema de regularizao da temperatura do prprio corpo. Noobstante a expresso suar como um porco, foi recentemente provado que os porcos no podem,absolutamente, suar. Os seres humanos, os mais sudorparos dentre todos os mamferos, refrescam-se evaporando tanto quanto 1.000 gramas de lquido corporal por hora e para cada metro quadradode superfcie do corpo. O mximo que os porcos conseguem 30 gramas por metro quadrado. At ocarneiro evapora atravs da pele o dobro em lquido corporal. E os carneiros tambm tm avantagem da espessa l branca, que tanto reflete os raios solares como proporciona isolamento,quando a temperatura do ar ambiente se eleva acima da do corpo. Segundo L. E. Mount, doDepartamento de Pesquisas do Instituto de Fisiologia Animal de Cambridge, Inglaterra, os porcosadultos morrem se expostos luz direta do sol e temperatura acima de 36.7C. No Vale do Jordoregistram-se temperaturas de 43C quase que em todo vero, e h intensa luz solar durante o anointeiro.

    Para compensar a carncia de plo protetor e a incapacidade de suar, o porco necessitarefrescar a pele com umidade exterior. Prefere faz-lo chafurdando na lama fresca, mas cobrir apele com a prpria urina e fezes se no a encontra. Abaixo de 28.8C, os porcos mantidos empocilgas lanam os excrementos fora das respectivas reas de dormida e alimentao, ao passo queacima daquela temperatura entram a defecar indiscriminadamente por todo o chiqueiro. Quantomais elevada a temperatura, mais sujos se tomam. H portanto, algo de verdadeiro na teoria deque a impureza religiosa dos porcos fundamenta-se numa real sujeira fsica. Apenas no faz parte dasua natureza ser sujo em todo lugar; mas o quente e rido ambiente do Oriente Mdio que torna oporco demasiado dependente da ao de refrescar-se com o prprio excremento.

    Carneiros e cabras foram os primeiros animais a serem domesticados no Oriente Mdio,possivelmente desde 9.000 A.C. Porcos foram domesticados na mesma regio por volta de 2.000anos mais tarde. Anlises de ossos de animais, realizadas por arqueologistas em aldeias agrcolaspr-histricas, demonstram que o porco domstico era quase sempre uma parcela mnima da faunada aldeia, constituindo apenas uns 5% dos restos alimentares anuais. Isto o que seria de esperar deuma criatura que devia contar com sombra e poas de lama, que no poderia ser ordenhada e quecomia o mesmo alimento que o homem.

    Como j assinalei no caso da proibio hindu a propsito da carne de vaca, sob condiespr-industriais qualquer animal, criado principalmente por causa da sua carne, constitui luxo. Estageneralizao aplica-se tambm ao pastoreio pr-industrial, no qual raramente se exploram osrebanhos visando sobretudo a sua carne.

    Entre as antigas comunidades mistas de agricultura e pastoreio do Oriente Mdioavaliavam-se os animais domsticos principalmente como fontes de leite, queijo, couro, estrume efora de trao para o arado. Cabras, carneiros, gado bovino supriam amplas pores desses itens,mais um suplemento ocasional de carne magra. Desde o princpio, portanto, a carne de porco deveter sido um alimento de luxo, apreciado por sua natureza suculenta, tenra e gordurosa.

    Entre 7.000 e 2.000 A.C., tomou-se um luxo ainda maior. Ao longo desse perodo, apopulao humana do Oriente Mdio cresceu 60 vezes. Extenso desflorestamento acompanhou ocrescimento demogrfico, principalmente como resultado dos estragos permanentes causados pelos

  • 7/24/2019 Amigos.inimigos de Porcos - Harris

    5/10

    5

    grandes rebanhos de carneiros e cabras. gua e sombra, condies naturais apropriadas para acriao de porcos, foram ficando cada vez mais escassas, e a carne de porco tornou-se ainda maisum luxo ecolgico e econmico.

    Tal como no caso do tabu contra a carne de vaca, quanto maior a tentao, maior anecessidade da interveno divina. Esta relao geralmente aceita como conveniente para explicarporque esto os deuses sempre interessados em combater tentaes sexuais como o incesto e oadultrio. Aqui, estou aplicando-a simplesmente a um alimento tentador. O Oriente Mdio no olugar apropriado para criar porcos, mas sua carne continua sendo um prato apetitoso. As pessoassempre tm dificuldade em resistir por si mesmas a essas tentaes. Da ouvir-se Jeov dizer que osporcos eram impuros, no somente como alimento, mas tambm para serem tocados. Ouviu-se Alrepetir a mensagem pela mesma razo: no era ecologicamente conveniente criar porcos em grandesnmeros. Em pequena escala, a criao s serviria para aumentar a tentao. Melhor seria, portanto,interditar totalmente o consumo de carne de porco e concentrar-se na criao de cabras, carneiros ebois. O porco era gostoso, mas tornava-se muito dispendioso aliment-lo e mant-lo saudvel.

    Muitas dvidas persistem e, sobretudo, h que saber porque cada um dos animais proibidospela Bblia urubus, corvos, serpentes, caracis, mariscos, peixes sem escamas e outros mais veio

    a ser objeto do tabu divino. E porque judeus e maometanos, que j no vivem no Oriente Mdio,continuam, em variados graus de exatido e zelo, a observar suas antigas leis dietticas. De ummodo geral, parece-me que a maioria dos animais e aves proibidos abarca, precisamente, uma ouduas categorias. Alguns, como as guias, abutres e corvos, nem mesmo so fonte potencial dealimentos. Outros, como os mariscos, so obviamente irrecusveis para as populaes mistasagrcola-pastoris. Nenhuma destas categorias de criaturas interditas provocaria o tipo de perguntaque me propus responder, ou seja: como explicar um tabu to aparentemente estranho eantieconmico. Naturalmente nada existe de irracional em no se perder tempo a caar abutres parao jantar, ou no marchar cem quilmetros pelo deserto em busca de um prato de moluscos.

    Eis o momento apropriado para contestar a afirmao de que todas as prticas culinriassancionadas pela religio tm explicaes ecolgicas. Os tabus tambm tm funes sociais taiscomo ajudar o povo a pensar em si mesmo como uma comunidade parte. Esta funo bem

    servida pelo respeito moderno a regras dietticas entre maometanos e judeus fora de suas terras noOriente Mdio. A pergunta a fazer sobre essas prticas se elas, de algum modo, diminuem o bem-estar material dos judeus e muulmanos, ao priv-los de elementos nutritivos para os quais noexistem substitutos disponveis. Certamente, creio que a resposta ser negativa. Mas permitam-meresistir agora a outro tipo de tentao a tentao de explicar tudo.

    Penso que mais se aprender a respeito dos inimigos dos porcos se se atentar para o outrolado do enigma: seus amigos.

    O amor ao porco a nobre anttese do oprbrio divino que muulmanos e judeus lanamsobre a raa suna. Esta posio no se alcana atravs de um simples entusiasmo gustatrio pelocardpio porcino. Muitas tradies culinrias, inclusive a chinesa e a euro-americana, apreciam acarne e as gorduras do porco. Amor aos porcos outra coisa. E um estado de total comunho entreo homem e o animal. Enquanto a presena de porcos ameaa a condio humana dos muulmanos e

    judeus, no esprito do amor ao porco no se pode ser verdadeiramente humano, a no ser nacompanhia de porcos.

    Este amor inclui criar os leites como membros da famlia, dormir a seu lado, falar-lhes,toc-los e acarici-los, cham-los por nomes, gui-los com uma correia at o campo, chorar quandoficam doentes ou se machucam, e aliment-los com os melhores bocados da mesa familiar. Aocontrrio do amor hindu vaca, o amor ao porco inclui tambm a obrigatoriedade de o sacrificar ecomer em ocasies especiais. Por causa do abate ritual e das celebraes sagradas, o amor ao porcooferece maior possibilidade de comunho entre o homem e o animal do que no caso do agricultor

  • 7/24/2019 Amigos.inimigos de Porcos - Harris

    6/10

    6

    hindu e sua vaca. O clmax do amor aos porcos ocorre com a incorporao do porco como carne, nacarne do seu hspede humano, e do porco como esprito, no esprito dos ancestrais.

    Amor ao porco homenagear nosso falecido pai, esbordoando at a morte uma porquinhaquerida sobre sua sepultura e assando-a num forno de barro, cavado no mesmo local. Amor aoporco meter mancheias de banha fria e salgada boca a dentro do nosso cunhado, para faz-lo leal efeliz. Acima de tudo, amor ao porco a grande festa porcina celebrada uma ou duas vezes em cadagerao, quando a maioria dos porcos adultos so sacrificados e gulosamente devorados parasatisfazer a nsia dos antepassados pela carne do animal, preservar a sade da comunidade eassegurar a vitria nas guerras futuras.

    O Prof. Roy Rappaport, da Universidade de Michigan, fez um estudo detalhado da relaoentre porcos e os Maring, amantes dos porcos, um remoto grupo silvcola que vive nas montanhasBismarck na Nova Guin. No seu livro Pigs for the Ancestors: Ri tual in the Ecology of a NewGuinea Peaple, descreve Rappaport como o amor ao porco contribui para a soluo de problemashumanos bsicos. Nas condies de vida imperantes entre os Maring, poucas so as alternativasviveis. Cada subgrupo ou cl dos Maring promove um festival suno, em mdia de doze em dozeanos. Todo o festival inclusive as mltiplas preparaes, sacrifcios menores e grande matana

    final dura cerca de um ano e conhecido, na linguagem Maring, como um kaiko. Nas primeirosdois ou trs meses que se seguem imediatamente ao trmino de um kaiko, o cl se entrega lutaarmada com cls ou tribos inimigas, o que leva a muitas mortes e eventual perda ou conquista deterritrio. Porcos adicionais so sacrificados durante a batalha e tanto vencedores como vencidoslogo se vem inteiramente privados de porcos adultos com que reivindicar a proteo dosrespectivos antepassados. O combate cessa de repente e os combatentes retornam aos lugaressagrados para plantar rvores chamadas rumbim. Cada nativo masculino adulto participa desseritual, pousando as mos sobre a muda de rumbimao ser ela fincada ao solo.

    O feiticeiro dirige-se aos ancestrais, explicando que acabaram ficando sem porcos e estocontentes por haverem sobrevivido. Assegura-lhes que a luta j terminou e que no haver reinciode hostilidades enquanto o rumbim permanecer no solo. A partir de ento, os pensamentos eesforos dos sobreviventes estaro voltados para a criao de porcos; s quando um novo rebanho

    estiver formado e for suficiente para um grande kaiko com que agradecer convenientemente aosseus ancestrais, pensaro os guerreiros em desenterrar o rumbime voltar ao campo de batalha.

    Atravs do detalhado estudo de uma tribo chamada Tsembaga, pde Rappaport demonstrarque o ciclo todo constitudo do kaiko, seguido da luta, do plantio do rumbim, da paz, da criao deum novo rebanho, da erradicao do rumbime de um novo kaiko no um mero psicodrama decriadores de porcos que ficaram malucos. Cada parte deste ciclo vem integrada num complexoecossistema auto-regulador, que realmente ajusta o volume e a distribuio das populaes humanae animal dos Tsembaga, em conformidade com os recursos disponveis e as oportunidades deproduo.

    Uma questo bsica para a compreenso do amor aos porcos entre os Maring a seguinte:Como que o povo decide que j existe porcos suficientes para agradecer adequadamente aosantepassados? Os prprios Maring desconhecem quantos anos devem decorrer ou quantos porcos

    so necessrios para que se organize um novo kaiko. A possibilidade de um acordo baseado emnmero fixo de animais ou de anos pode seguramente ser desprezada, pois os Maring no tmcalendrio e nem h, em seu vocabulrio, palavras para indicar algarismos alm do nmero trs.

    O kaikorealizado em 1963 a que se refere Rappaport comeou na momento em que a triboTsembaga contava com 200 membros e 169 porcos. O significado desses nmeros, em termos detrabalho dirio de rotina e em relao s normas estabelecidas constitui a chave para decifrar okaikoe a durao de seu ciclo. A tarefa de criar porcos, bem como a de cultivar inhame, taioba ebatata-doce cabia s mulheres. Os leitezinhos eram levados para as plantaes juntamente com as

  • 7/24/2019 Amigos.inimigos de Porcos - Harris

    7/10

    7

    crianas. Depois de desmamados, suas donas os treinavam a segui-las como cachorros. Aps 4 ou 5meses, eram soltos na floresta para se cuidarem por si mesmos, at que suas donas os chamassem, noite, para complementar-lhes a alimentao com restos de comida ou inhames e batatas da piorqualidade. medida que os porcos cresciam, cada mulher devia trabalhar mais duramente a fim degarantir-lhes a rao diria.

    Enquanto o rumbimcrescia, assinalou Rappaport, as mulheres Tsembaga empenhavam-seem aumentar suas plantaes, cultivar mais inhame e batata-doce, e criar o maior nmero de porcosno menor tempo possvel, para que tivessem um nmero suficientemente grande de animais e assimorganizar o prximo kaiko, antes que o fizesse o inimigo. Porcos adultos, com cerca de 60 quilos,pesavam mais do que a mdia dos Maring adultos e, mesmo com sua busca diria de alimentos,esses animais exigiam das mulheres quase o mesmo esforo despendido para alimentar um adulto.Na erradicao do rumbim, em 1963, as mulheres Tsembaga mais operosas tinham meia dzia deporcos adultos para cuidar, alm do trabalho de produo agrcola para si e para sua famlia,cabendo-lhes ainda cozinhar, amamentar, cuidar das crianas e manufaturar utenslios domsticoscomo cestos, cordas, aventais e roupas. Rappaport calculou que s o cuidado de seis porcos exigiamais de 50% da energia diria despendida por uma mulher saudvel e bem alimentada.

    O aumento da populao de porcos normalmente acompanhado do aumento da populaohumana, sobretudo entre as tribos vitoriosas nas guerras imediatamente anteriores. Porcos e gentedevem ser mantidos com alimentos cultivados nas terras conquistadas, pelo fogo e pela enxada, floresta tropical que cobre as encostas das montanhas Bismarck. Como nas outras reas tropicais emque semelhante sistema de cultivo empregado, a fertilidade das plantaes dos Maring depende donitrognio fornecido ao solo pelas cinzas da vegetao queimada. Estas plantaes no podem serrepetidas por mais de dois ou trs anos consecutivos j que, uma vez extintas as grandes rvores, aschuvas torrenciais arrastam o nitrognio e outros nutrientes do solo. O nico remdio procuraroutro lugar e queimar nova extenso da floresta. Depois de mais ou menos uma dcada, a plantaoabandonada cobre-se novamente de rvores que podem ento ser queimadas. As reas j antescultivadas so as preferidas para novas plantaes por estarem cobertas de vegetao secundria eserem mais fceis de desbastar. Mas a recuperao das antigas queimadas no acompanha, nomesmo passo, o crescimento da populao humana e suna durante o perodo de trgua asseguradopelo lento crescimento do rumbim. Assim, novas clareiras devem ser abertas na floresta virgem.Enquanto h grandes extenses de florestas disponveis, o trabalho com as novas plantaesconsome grande parte do esforo extra de cada indivduo e, em conseqncia, diminui a taxa deretomo de cada unidade de trabalho investida na prpria manuteno e na manuteno de seusrebanhos.

    Os homens incumbidos de abrir novas clareiras na floresta devem trabalhar mais duramentepor causa da grossura e da altura das rvores virgens. Porm so as mulheres as mais sacrificadas,porque as novas plantaes ficam a distncias cada vez maiores do centro das aldeias. No apenasdevem cultivar reas mais extensas para alimentar suas famlias e seus porcos, mas tambmprecisam de muito mais tempo para alcanar os campos de trabalho e despender cada vez maisenergia para subir e descer as encostas com leites e crianas, levando para casa pesadas cargas de

    inhames e batatas-doces colhidas nas plantaes.Nova fonte de tenso resulta da necessidade de proteger as plantaes do ataque dos porcosadultos, que andam soltos por ali. Todas as plantaes devem ser protegidas por cercassuficientemente fortes para deter os animais. No entanto, uma porca de 150 libras um adversrioformidvel. Cercas so destrudas e plantaes invadidas com mais freqncia, medida que semultiplica o rebanho. De quando em vez uma mulher furiosa mata um porco invasor, e essesincidentes jogam vizinhos contra vizinhos e aumentam a sensao geral de insatisfao. ComoRappaport observa, os incidentes envolvendo porcos e homens multiplicam-se mais rapidamente doque os prprios porcos.

  • 7/24/2019 Amigos.inimigos de Porcos - Harris

    8/10

    8

    Para evitar tais incidentes e ficar mais peno de suas plantaes, os Maring comeavam aconstruir suas casas mais afastadas umas das outras, ocupando maior rea de terreno. Essa dispersodiminua a segurana dos grupos, em caso de novos ataques. Assim, todo o mundo tornava-se maisinquieto. As mulheres queixavam-se do excesso de trabalho, brigavam com os maridos e batiam nascrianas. Logo os homens punham-se a pensar se j no haveria porcos suficientes e ento desciam

    para verificar a altura do rumbim. As mulheres dobravam as reclamaes e, finalmente, os homensconcordavam, por unanimidade, que j era chegado o momento de dar incio ao kaiko, mesmo semcontar o nmero de porcos existentes.

    Durante o kaikode 1963, os Tsembaga mataram 3/4 de seus porcos, num total de 7/8 dopeso de carne disponvel. A maior parte dessa carne foi distribuda entre parentes e aliadosmilitares, convidados a tomar parte nas festividades que se prolongaram por todo o ano. Nos rituaisculminantes, realizados nos dias 7 e 8 de novembro desse mesmo ano, foram sacrificados 96 porcose sua carne e gordura foram distribudas entre duas ou trs mil pessoas. Os Tsembaga reservarampara si 2.500 libras de carne, ou seja, 12 libras para cada homem, mulher e criana, e essaquantidade foi consumida durante cinco dias consecutivos de irrestrita glutonaria.

    Os Maring aproveitavam o kaiko como ocasio para recompensar seus aliados pela

    assistncia anterior e garantir sua lealdade em hostilidades futuras. Os aliados, por sua vez,aceitavam o convite para o kaiko como oportunidade para verificar se seus hospedeiros estavamsuficientemente prsperos para garantir-lhes a continuidade da manuteno; sem dvida, essesaliados eram tambm grandes apreciadores de come de porco.

    Os convidados vestiam-se com suas melhores indumentrias. Usavam colares de contas ede conchas, ligas de cauri nas panturrilhas, cintos de fibras de orqudeas, tangas de listras purpreascom barras de pele de canguru e, estufando-lhes as ancas, pules de folhas sanfonadas. Coroas depenas de guia e papagaios, festoadas com caules de orqudeas, besouros verdes e cauris, eencimadas por uma ave-do-paraso empalhada, ornavam suas cabeas. Os homens levavam horaspintando o rosto com um desenho original e exibiam sua melhor pena de ave-do-paraso atravessadano nariz, juntamente com um disco favorito ou uma concha dourada encravada no lbio. Visitantese hospedeiros passavam muito tempo exibindo-se uns aos outros, danando no terreiro

    especialmente construdo para essa finalidade e abrindo caminho para unies amorosas com asmulheres e alianas militares com os homens.

    Mais de mil pessoas comprimiam-se no terreiro de dana para participar dos rituais queseguiam o grande sacrifcio de porcos testemunhado por Rappaport, em 1963. Pedaos de porcossalgados e destinados a prmios especiais amontoavam-se atrs das janelas de um prdio triangularpara cerimnias, adjacente ao terreiro de dana. Nas palavras de Rappaport:

    Do topo do prdio, vrios homens proclamavam para a multido, um a um, osnomes e as tribos dos homenageados. Ao ser aclamado, cada um dos homenageadosinvestia para a janela, brandindo a machadinha e gritando. Seus partidrios,lanando gritos de batalha, batendo os tambores, sacudindo as armas, vinham logoatrs dele. Os Tsembaga, a quem o homenageado havia ajudado na ltima batalha,enchiam-lhe a boca com pedaos de toucinho salgado e entregavam, pela janela,

    outros fardos de gordura para seus companheiros. Com o toucinho pendendo daboca, o heri retirava-se com os companheiros, gritando, cantando, soando ostambores, danando. Os nomes dos homenageados sucediam-se e, muitas vezes, ogrupo que entrava esbarrava com o que saa.

    Dentro dos limites impostos pelas condies tecnolgicas e ambientais dos Maring, todaessa encenao tem uma explicao prtica. Em primeiro lugar, a avidez pela carne de porco umadecorrncia racional da permanente escassez de carne na dieta habitual. Essa dieta bsica,constituda de vegetais e suplementada, ocasionalmente, com rs, ratos e raros cangurus, encontra

  • 7/24/2019 Amigos.inimigos de Porcos - Harris

    9/10

    9

    no porco domesticado sua melhor fonte potencial de protenas e gorduras animais de alto valornutritivo. Isto no significa que os Maring sofram de deficincia aguda de protenas. Pelo contrrio,sua dieta de inhames, batatas-doces, taioba e outros vegetais lhes fornece protenas vegetais emquantidades que satisfazem os padres nutricionais mnimos, sem os exceder muito. Obter protenasde porco , no entanto, uma coisa diferente. As protenas animais, em geral, so mais concentradas

    e metabolicamente mais ativas do que as protenas vegetais, o que explica a irresistvel tentao queos povos, vivendo em restritas dietas vegetarianas (sem queijo, leite, ovos ou peixes), sentem pelacarne.

    Alm disso, at certo ponto, h um sentido ecolgico no costume dos Maring de criarporcos. A temperatura e o grau de umidade so ideais. Porcos desenvolvem-se bem no ambientesombrio e mido das encostas e obtm poro substancial de seu alimento perambulando livrementepela floresta. A interdio completa ao porco soluo do Oriente Mdio seria a conduta maisirracional e antieconmica nestas condies. Por outro lado, o aumento ilimitado da populaosuna s poderia levar a uma competio entre homens e porcos. Permitindo-se tal aumento, acriao de porcos sobrecarrega as mulheres e pe em perigo as plantaes das quais dependem osMaring para sobreviver. A medida que cresce a populao porcina, as mulheres devem trabalharcada vez mais e acabam por encontrar-se alimentando porcos, em vez de alimentar gente. Quandoterras virgens so desbastadas para cultura, a eficincia de todo sistema agrcola cai verticalmente.E nesse momento que o kaikose realiza, cabendo aos ancestrais o papel de estimular a criao deporcos e, ao mesmo tempo, evitar que eles acabem por destruir as mulheres e as plantaes. Suatarefa, decididamente, mais difcil que a de Jeov ou de Al, j que bem mais fcil controlar umtabu total que um parcial. Contudo, a crena de que o kaikodeve ser celebrado to logo quantopossvel, para manter felizes os ancestrais, contribui, efetivamente, para livrar os Maring dosanimais que se tornaram parasitas e evitar que a populao de porcos se transforme num estorvo.

    Se os ancestrais so to espertos, por que ento no estabelecem um limite para o nmerode porcos que cada mulher deve criar? No seria prefervel manter um nmero constante de porcosa permitir o ciclo ilgico de extremos de abundncia e de escassez?

    Esta alternativa seria prefervel simplesmente se cada tribo Maring tivesse crescimento nulo

    de populao, no tivesse inimigos, exercesse uma forma diversa de agricultura, fosse governadapor legisladores poderosos e tivesse leis escritas em resumo, se eles no fossem Maring.Ningum, nem mesmo os ancestrais, pode prever quantos porcos representam excesso perniciosode uma coisa boa. O ponto em que os porcos se convertem, por seu nmero, em estorvo, nodepende de nenhuma combinao de constantes mas, ao contrrio, de um conjunto de variveis quese modificam de ano para ano. Depende do nmero de pessoas que houver na regio inteira e emcada tribo, do vigor fsico e do estado psicolgico de seus membros, da extenso de seu territrio,da rea de floresta secundria disponvel e das condies e intenes dos grupos inimigos vizinhos.Os ancestrais dos Tsembaga no podem simplesmente dizer: Guardars quatro porcos e nadamais, porque no h nenhum meio de garantir que os ancestrais dos Kundugai, Dimbagai,Yimgagai, Tuguma, Aundagai, Kauwasi, Monambant e de todos os demais concordem com estenmero. Todos estes grupos esto empenhados em lutas para fazer valer seus direitos a uma parcela

    de recursos disponveis. A guerra a conduta que pe prova tais reivindicaes. A gana insaciveldos ancestrais pela carne de porco uma conseqncia dessa disputa armada entre as tribos quecompem o povo Maring.

    Para satisfazer os ancestrais, torna-se necessrio um esforo mximo, no s no sentido deproduzir tanto alimento quanto possvel, mas tambm no de acumular provises sob a forma derebanhos de porcos. Este esforo, mesmo resultando em excedentes cclicos de porcos, reala ahabilidade do grupo para sobreviver e defender seu territrio. E isto feito de diversas maneiras.Primeiro, o esforo extra exigido pelo insacivel desejo dos antepassados eleva o nvel de ingestoprotica do grupo inteiro durante a trgua do rumbim, da resultando uma populao mais alta, mais

  • 7/24/2019 Amigos.inimigos de Porcos - Harris

    10/10

    10

    saudvel e mais vigorosa. Alm disso, relacionando o kaiko ao fim da trgua, os ancestraisgarantem que doses macias de gorduras e protenas de alta qualidade sejam consumidas no perodode maior tenso social os meses que precedem o deflagrar das guerras intertribais. Finalmente,preparando grandes quantidades extras de alimentos na forma de nutritiva carne de porco, as tribosMiring podem atrair e recompensar aliados no momento em que so mais necessrios, ou seja, logo

    antes de irromper a nova guerra.Os Tsembaga e seus vizinhos tm conscincia da relao que existe entre a bem sucedida

    criao de porcos e o poderio militar. O nmero de porcos abatidos durante a realizao do kaikodaos hspedes e aliados uma base acurada para avaliar a sade, a energia e a determinao dospromotores da festa. De uma tribo que no bem sucedida na acumulao de porcos no se podeesperar que tambm seja capaz de defender eficazmente seu territrio e, por isso, no atrair aliadosfortes. No so, pois, meras premonies irracionais de derrota que pairam no campo de batalha,quando os ancestrais no so homenageados com carne de porco suficiente durante o kaiko.Rappaport insiste corretamente, creio que, num sentido ecolgico fundamental, o tamanho dorebanho de porcos pertencente a uma tribo indicativo de seu poderio militar e torna vlidas ouinvlidas suas pretenses territoriais. Em outras palavras, do ponto de vista ecolgico, o sistemainteiro resulta da eficiente distribuio de plantas, animais e pessoas na regio.

    Estou certo de que, nesta altura, muitos leitores ho de insistir que o amor aos porcos inadequado e terrivelmente ineficaz, pois se prende a peridicas ecloses blicas. Se a guerra umaatividade irracional, tambm o ser o kaiko. Que me permitam novamente ceder tentao deexplicar tudo de uma vez. No prximo captulo discutirei as causas primrias do comportamentomilitar dos Maring. No momento, direi apenas que sua belicosidade no resulta do amor aos porcos.Milhes de pessoas que jamais viram um porco promovem guerras; nem por isso os avessos aoanimal, antigos e atuais, encarecem a pacificao das relaes entre os povos do Oriente Mdio.Dada a prevalncia das guerras na histria e na pr-histria da humanidade, podemos realmente nosmaravilhar com o engenhoso sistema imaginado pelos selvagens da Nova Guin para manterprolongados perodos de paz. Afinal, enquanto os rumbim dos vizinhos permanecerem de p, osTsembaga no tm que preocupar-se com provveis ataques. Pode-se talvez dizer o mesmo, masno mais, das naes que cultivam msseis em vez de rumbim.