ameaça à liberdade de culto

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de 13 a 19 de setembro de 2012 4 brasil 5 Cristiano Navarro da Redação EM MARCHA, carregando faixas e mis- turando cantos de louvor com ameaças e incitação ao ódio, um grupo de centenas de evangélicos mobilizou-se na noite do dia 15 de julho e tentou invadir o terreiro de pai Jairo de Iemanjá Sabá, localizado no bairro do Varadouro, em Olinda (PE). As imagens da saída do grupo foram re- gistradas pelo lósofo e babalorixá Éri- co Lustosa, no vídeo Cristãos agredin- do Terreiro de Candomblé, publicado no Youtube. Em um segundo vídeo-testemunho, também publicado no Youtube pelo Jornal do Commercio, Lustosa, lem- brou que o grupo gritava “Sai daí, Sa- tanás!” e que ameaças foram feitas por um sujeito desconhecido durante a in- vasão. “Cuidado porque eu me conver- ti evangélico, mas eu sou ex-matador”, gritava o manifestante. Assustados, tan- to pai Jairo de Iemanjá, quanto Érico Lustosa, se negaram a voltar a falar so- bre o assunto. O fato ocorrido em Olinda não é isola- do. A onda de inquisição de grupos neo- pentencostais contra religiões de matriz africana tem crescido no estado de Per- nambuco. No primeiro semestre deste ano, foram registradas a invasão e a des- truição de sete terreiros de religião de matriz africana no agreste pernambu- cano. O estopim do acirramento e per- seguição aos cultos de matriz africana se deu após o assassinato de uma criança de nove anos de idade, degolada na cida- de Brejo da Madre de Deus, também lo- calizada na região do agreste. Logo após a descoberta do cadáver, a polícia veio a público e descreveu o crime como sen- do fruto de um “ritual de despacho”. Daí pra frente, programas locais de rádio e TV, policialescos e proselitistas, passa- ram a insuar o ódio contra as religiões de matriz africana. “A mídia não separou o joio do trigo ao associar um crime de uma religiosidade que não tem nada a ver. Essa associação feita pelos programas de televisão poli- da Redação Seja por parte de outras religiões ou por parte do próprio Estado, registros históricos demonstram perseguições aos cultos de matriz africana. Diferen- tes de outras épocas – especialmente durante o período do Estado Novo e da ditadura militar, quando a perseguição religiosa foi mais dura – o país garan- te hoje em sua Constituição o direito ao culto. “A liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exer- cício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”. Mais do que isto, hoje as comunidades de ter- reiro são reconhecidas pela União co- mo comunidades tradicionais, estan- do assim sua existência física e cultural sob a proteção do Estado. O boom do avanço do poder evangé- lico assusta suas vítimas. “Hoje, o Es- tado até reconhece as comunidades de terreiros, mas a sociedade passou a nos criminalizar com as TVs e as rádios evangélicas que dizem que somos o sa- tanás. E, promovidos por essas mídias, eles se acham no direito de acabar com o Orixá da alma brasileira e pra isso va- le qualquer coisa, inclusive a violência física”, critica mãe Beth. A partir da eleição de 1986, que ele- geu o Congresso Nacional Constituin- te, os pentecostais tiveram um cres- cimento de 900%, passando de dois deputados federais para dezoito, en- quanto os chamados protestantes his- tóricos elegeram dezesseis deputa- dos, dando origem ao termo Banca- da Evangélica. Já nas últimas eleições em 2010, segundo o Departamento In- tersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), foram eleitos 63 deputados fe- derais e três senadores que se declara- ram evangélicos. O forte crescimento da bancada evangélica, que já representam 13,2% do total de deputados da Câmara, acompanha também a forte ascensão dos protestantes no Brasil. De acordo com dados do Censo de 2010, divulga- dos pelo IBGE, os evangélicos somam 42,3 milhões de éis, ou seja, 22,2% da população. A nova ordem Na avaliação da Rede Afrobrasileira Sociocultural, o aumento da participa- ção política evangélica nas câmaras mu- nicipais, estaduais e federal, vem culmi- nando com uma enxurrada de projetos de lei que restringem os cultos de ma- triz africana. “São projetos mascarados com a bandeira do meio ambiente, mas voltados ao ataque religioso aos povos de terreiro, proibindo a imolação de animais, oferendas em áreas públicas, bosques, e cemitérios; além da questão sonora”, analisa um documento divul- gado pela rede. Para além da violência explícita quan- do há invasão de um terreiro, agressão física a um membro das religiões de matriz africana ou ofensas por meio dos veículos de comunicação, o advoga- do Thiago Hoshino que atua na asses- soria de terreiros pela organização Ter- ra de Direitos do Paraná chama a aten- ção para as violências do Estado. “Pa- ra mim, tão ou mais grave do que a vio- lência explícita são os casos de violência institucional”. Ou seja, quando se utili- za o Estado e o poder econômico em di- versas esferas para perseguição das ma- trizes africanas. “As inuências vão de juízes, a políticos, comerciantes, etc. A inuência é tão grande que parece que eles leram Gramsci muito bem” expli- ca Hoshino. A rede Afrobrasileira Sociocultural avalia que há ainda projetos das ban- cadas em benefício próprio como a ins- tituição do ensino religioso obrigatório em busca do proselitismo religioso e o projeto de lei regulamentando a pros- são de Teólogo de autoria do então se- nador Marcelo Crivella (pastor da Igre- ja Universal). Na visão da Rede, o cres- cimento da bancada evangélica também gera a inserção de seus apadrinhados políticos nas mais diversas áreas do ser- viço público, ocupando setores estraté- gicos, permitindo desta forma uma ges- tão de temas de seus interesses. (CN) da Redação Em Pernambuco, uma reação organi- zada às violências contra as religiões de matriz africana tem sido articulada pe- los movimentos sociais. “Aqui estamos fazendo um movimento ecumênico, tra- zendo ciganos, índios, cristãos, para co- meçar – politicamente, qual é a desses caras? Questionar o Estado que garante a concessão de grupos que promovem a violência e o ódio. Ameaçando o direi- to inalienável ao credo que cada cida- dão tem, de ter seu credo e sua cultura”, arma a yalorixá do Ilê Axé Oxum Ka- rêe de Olinda, mãe Beth de Oxum. Mãe Beth destaca que não são apenas as religiões de matriz africana que estão sob pressão, mas toda a cultura popular advinda desta raiz. “Eles têm um projeto de poder político perigoso de ganhar ci- dade, estados, assembleias legislativas e a presidência da República e tirar o ori- xá, voduns e os encantados da vida do povo. Querem tirar, satanizar nossa cul- tura e tirar a brincadeira do nosso coti- diano, que é nosso coco, a ciranda, os afoxés, os maracatus de baque solto, de baque virado, o jongo, o tambor de crio- la. Tirar essa cultura que é oriunda dos terreiros afro e indígena”, denuncia. Leis de silêncio são armas utilizadas contras estas manifestações. “Todas as leis de convivência urbana têm sido utilizadas para fechar terreiros, ou se- da Redação Para o psicólogo e ebome (que em Ke- tu signica: “meu irmão mais velho”) do Ilê Axé Kalamu FunFun , Vicente Gal- vão Parizi, a ignorância dá origem ao medo das religiões de matriz africana. Parizi, que é mestre em ciências da religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, entende que boa parte deste medo foi alimentado pelos preconceitos social e racial. “Não pode- mos esquecer que houve uma Bula Pa- pal que dizia, em nome de Deus, que os negros não possuíam alma e por isso podiam ser escravizados”. Brasil de Fato – Por que as pessoas têm medo das religiões de matriz africana? Vicente Galvão Parizi – Acho que fundamentalmente o medo vem da ig- norância e de ideias pré-concebidas. Mas há vários aspectos a serem obser- vados. Vou relacionar alguns. Em seu livro Notas sobre a religião dos Orixás e Voduns, Pierre Verger apresenta do- cumentos sobre o encontro dos brancos colonizadores e os africanos e como os brancos, em especial os padres, não po- diam entender uma cultura – e uma re- ligião – tão diversa. Por exemplo: Exu era cultuado ao ar livre, portanto havia assentamentos aos pés de árvores. Ao ver adeptos dando dobale [saudações a orixás] nesses assentamentos, os bran- cos concluíram que tratava-se de culto a arvores. E nos documentos compila- dos por Verger encontramos isso: tra- ta-se de pagãos que têm árvores por deuses. Entretanto, nada mais longe da realidade! Outra confusão é que Exu é represen- tado com chifres. Para os padres cris- tãos, chifre é privilegio de Satanás, por- tanto Exu é o demônio. E concluíram que os africanos eram adoradores de Sa- tã. E por aí vai: a ignorância e o desco- nhecimento gerando interpretações fal- sas que, muitas delas, até hoje continu- am assombrando corações e mentes. Outro aspecto desconhecido pela maioria é que as religiões africanas são monoteístas. Há um deus único – olo- rum, olodumare, qualquer que seja o nome – e suas manifestações – os ori- xás. Ou seja, os Orixás não são deuses, são manifestações de deus, são as for- ças criadoras de Olorum, as forças da natureza. Mas para a maioria das pes- soas que desconhecem a religião, tra- ta-se de uma religião com muitos deu- ses. Nesse sentido, o monoteísmo cris- tão se enxerga como superior, e as reli- giões africanas passam por “primitivas e politeístas”. Mas o aspecto crucial, creio eu, é a questão do sacrifício de animais. As re- ligiões cristãs passaram a abordar o sa- crifício a partir apenas do aspecto sim- bólico: na consagração o sacerdote in- voca o corpo e o sangue de Cristo e os éis ingerem a hóstia se alimentando desse corpo e desse sangue. Nas religi- ões de matriz africana, o sangue é efe- tivamente derramado. Mais uma razão para que se diga que são religiões pri- mitivas, que o desenvolvimento do cris- tianismo as superou. Como se dá a construção deste medo? Tudo o que é diferente de mim me causa no mínimo estranheza. Foi as- sim com os colonizadores brancos na China, no Japão, na América e na Áfri- ca. Para poder entender o diferente de mim, não posso apenas observar, ape- nas ver e não perguntar. Não questio- nar impede que se compreenda o que realmente acontece. Não adianta ver pessoas tomando café, ou ler livros so- bre o café: apenas tomando café po- derei entender o que realmente é to- mar café. O medo, a meu ver, é causado pela ig- norância, pelo desconhecimento, pe- la falta de diálogo da majoridade cristã com os adeptos de religiões africanas. O preconceito contra as religiões de matriz africana se dá em conjunto com as questões racial e social? Certamente. Não podemos esquecer que houve uma Bula Papal que dizia, em nome de Deus, que os negros não possuíam alma e por isso podiam ser escravizados. No Novo Mundo, as reli- giões de matriz africana eram privilé- gio de negros, escravos e pobres. Por- tanto, praticadas pelos brancos apenas às escondidas. Nesse sentido, o papel de Joãozinho da Goméia [adepto do can- domblé] foi crucial, e sua ida para o Rio de Janeiro, sua entrada no meio políti- co, seus shows em teatros, a feitura de brancos etc, tudo serviu para divulgar a religião no meio de brancos e de pesso- as de estrato social superior. Como você vê o crescimento das religiões neopetencostais detentoras de poder em diversas esferas institucionais (político, judiciário, econômico, de comunicação) que pregam contra as religiões de matriz africana? Com muito temor. Na sua maioria, são cristãos fundamentalistas, atendo- se à forma da lei e não ao seu sentido. Em tese, Jesus pregava o amor a todos, mas na prática o que o cristianismo ge- rou foram religiões absolutamente in- transigentes com o diferente. A Inqui- sição com suas fogueiras é a melhor de- monstração disso. Mas no Brasil de ho- je, a Inquisição continua acontecendo nos rituais de exorcismo contra gays e lésbicas, baseadas na ideia de que Exu é a personicação do demônio; está presente nos ritos de renúncia a Sata- nás, em que adeptos quebram seus ibás de feitura e renunciam em voz alta aos orixás. Muitos desses sacerdotes esti- mulam ações concretas, como ataques a terreiros e adeptos nas ruas fazendo despacho, assim como ataques a gays e lésbicas nas ruas. Nesse momento, es- tamos assistindo pela primeira vez a uma eleição em que o candidato apoia- do pelos neopentecostais – Celso Rus- somanno – tem chance real de ser es- colhido como prefeito de São Paulo. Fato inédito e que demonstra a união dessas forças. (CN) As perseguições do Estado e da lei Bancada evangélica ameaça o direito à liberdade religiosa dos cultos de matriz africana Organizados para resistir Marginalizados nas pautas dos movimentos sociais, comunidades de terreiro procuram organização O medo, a ignorância e o preconceito “Tudo o que é diferente de mim me causa no mínimo estranheza” , análisa psicólogo “A gente sabe que os pastores na TV aberta ocupam a casa das pessoas cotidianamente pregando essa intolerância” “O Estado até reconhece as comunidades de terreiros, mas a sociedade passou a nos criminalizar com as TVs e as rádios evangélicas” A Inquisição de nossas matrizes A Inquisição de nossas matrizes LIBERDADE RELIGIOSA Por meio de suas rádios e TVs, neopentencostais acirram seu discurso de intolerância contra religiões de matriz africana cialescos foi só o estopim para as agres- sões. Mas a gente sabe que os pastores na TV aberta ocupam a casa das pesso- as cotidianamente pregando essa intole- rância ”, arma mãe Beth de Oxum, ya- lorixá do Ilê Axé Oxum Karêe, membro da Comissão Nacional de Povos Tradi- cionais de Terreiro. Com o aumento do número de ame- aças e agressões, os povos tradicionais de terreiro, integrantes da jurema sagra- da, do candomblé, da umbanda, do tere- cô, do batuque, do tambor de Mina Je- je e Nagô, do xangô pernambucano, da kimbanda, rezadeiras, oradores do Nor- deste, catimbozeiros e pajés sentiram-se obrigados a informar por meio de nota pública que não praticam sacrifícios hu- manos em suas liturgias e rituais. “Nos- sas teologias não concebem a morte hu- mana como caminho para alcançar qual- quer benefício na vida e desconhecemos qualquer ritual pertinente a esta práti- ca condenável. Expugnamos completa- mente estes atos absurdos de assassina- to em nome de qualquer deus”, arma- ram em nota. Em agosto, o pedido de proteção aos terreiros feito por representantes da Se- cretaria de Desenvolvimento Social e Di- reitos Humanos, do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial, da Se- cretaria de Defesa Social e do Ministério Público de Pernambuco foi atendido pe- la Polícia Militar, que destacou agentes para cuidar destes casos. Tortura Outro caso recente que revoltou as comunidades de terreiro ocorreu no - nal de 2010, quando Bernadete Souza Ferreira dos Santos, yalorixá e coorde- nadora de educação do assentamento Dom Helder Câmara, em Ilhéus, Sul da Bahia, de 42 anos, foi torturada por po- liciais militares. Enquanto recebia um Orixá, yalorixá foi puxada pelos cabe- los e jogada em cima de um formiguei- ro. Os polícias pisaram no pescoço e dis- seram: ‘só assim para o demônio sair’. Depois de uma série de torturas, Berna- dete foi colocada em uma cela reservada para homens. O caso de Bernadete ain- da espera por julgamento. ja, quando um toque de atabaque pas- sa do limite de decibéis, ou há denúncia de sacrifício de animais, baixa a vigilân- cia sanitária para fechar o local”, desta- ca o advogado Thiago Hoshino, da Ter- ra de Direitos, que assessora comunida- des de terreiro. Contraponto O terreiro Ilê Axé Oxum Karêe tem uma rádio livre chamada Amnésia FM, 88.5, onde se divulga a música e notí- cias relacionadas ao terreiro. Para mãe Beth, é fundamental utilizar todos os meios possíveis para alertar o avanço do discurso do ódio. “Acho que é mui- to perigoso porque as pessoas não estão se atentando a isso. Os movimentos so- ciais não estão atentos e quando a gen- te for perceber o resultado bem drástico que isso possa advir talvez seja até um pouco tarde”. (CN) “Não podemos esquecer que houve uma Bula Papal que dizia, em nome de Deus, que os negros não possuíam alma e por isso podiam ser escravizados” A bancada evangélica já representa 13,2% do total de deputados da Câmara Mãe Beth de Oxum, da Comissão Nacional de Povos Tradicionais de Terreiro Alex Oliveira/Setur José Cruz/ABr sambadadecoco.wordpress.comCruz/ABr

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A Inquisição de nossas matrizes

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  • de 13 a 19 de setembro de 20124 brasil 5

    Cristiano Navarroda Redao

    EM MARCHA, carregando faixas e mis-turando cantos de louvor com ameaas e incitao ao dio, um grupo de centenas de evanglicos mobilizou-se na noite do dia 15 de julho e tentou invadir o terreiro de pai Jairo de Iemanj Sab, localizado no bairro do Varadouro, em Olinda (PE). As imagens da sada do grupo foram re-gistradas pelo fi lsofo e babalorix ri-co Lustosa, no vdeo Cristos agredin-do Terreiro de Candombl, publicado no Youtube.

    Em um segundo vdeo-testemunho, tambm publicado no Youtube pelo Jornal do Commercio, Lustosa, lem-brou que o grupo gritava Sai da, Sa-tans! e que ameaas foram feitas por um sujeito desconhecido durante a in-vaso. Cuidado porque eu me conver-ti evanglico, mas eu sou ex-matador, gritava o manifestante. Assustados, tan-to pai Jairo de Iemanj, quanto rico Lustosa, se negaram a voltar a falar so-bre o assunto.

    O fato ocorrido em Olinda no isola-do. A onda de inquisio de grupos neo-pentencostais contra religies de matriz africana tem crescido no estado de Per-nambuco. No primeiro semestre deste ano, foram registradas a invaso e a des-truio de sete terreiros de religio de matriz africana no agreste pernambu-cano. O estopim do acirramento e per-seguio aos cultos de matriz africana se deu aps o assassinato de uma criana de nove anos de idade, degolada na cida-de Brejo da Madre de Deus, tambm lo-calizada na regio do agreste. Logo aps a descoberta do cadver, a polcia veio a pblico e descreveu o crime como sen-do fruto de um ritual de despacho. Da pra frente, programas locais de rdio e TV, policialescos e proselitistas, passa-ram a insufl ar o dio contra as religies de matriz africana.

    A mdia no separou o joio do trigo ao associar um crime de uma religiosidade que no tem nada a ver. Essa associao feita pelos programas de televiso poli-

    da Redao

    Seja por parte de outras religies ou por parte do prprio Estado, registros histricos demonstram perseguies aos cultos de matriz africana. Diferen-tes de outras pocas especialmente durante o perodo do Estado Novo e da ditadura militar, quando a perseguio religiosa foi mais dura o pas garan-te hoje em sua Constituio o direito ao culto. A liberdade de conscincia e de crena, sendo assegurado o livre exer-ccio dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteo aos locais de culto e as suas liturgias. Mais do que isto, hoje as comunidades de ter-reiro so reconhecidas pela Unio co-mo comunidades tradicionais, estan-do assim sua existncia fsica e cultural sob a proteo do Estado.

    O boom do avano do poder evang-lico assusta suas vtimas. Hoje, o Es-tado at reconhece as comunidades de terreiros, mas a sociedade passou a nos criminalizar com as TVs e as rdios evanglicas que dizem que somos o sa-tans. E, promovidos por essas mdias, eles se acham no direito de acabar com o Orix da alma brasileira e pra isso va-le qualquer coisa, inclusive a violncia fsica, critica me Beth.

    A partir da eleio de 1986, que ele-geu o Congresso Nacional Constituin-te, os pentecostais tiveram um cres-cimento de 900%, passando de dois deputados federais para dezoito, en-quanto os chamados protestantes his-tricos elegeram dezesseis deputa-dos, dando origem ao termo Banca-da Evanglica. J nas ltimas eleies em 2010, segundo o Departamento In-tersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), foram eleitos 63 deputados fe-derais e trs senadores que se declara-ram evanglicos.

    O forte crescimento da bancada evanglica, que j representam 13,2% do total de deputados da Cmara,

    acompanha tambm a forte ascenso dos protestantes no Brasil. De acordo com dados do Censo de 2010, divulga-dos pelo IBGE, os evanglicos somam 42,3 milhes de fi is, ou seja, 22,2% da populao.

    A nova ordemNa avaliao da Rede Afrobrasileira

    Sociocultural, o aumento da participa-o poltica evanglica nas cmaras mu-nicipais, estaduais e federal, vem culmi-nando com uma enxurrada de projetos de lei que restringem os cultos de ma-triz africana. So projetos mascarados com a bandeira do meio ambiente, mas voltados ao ataque religioso aos povos de terreiro, proibindo a imolao de animais, oferendas em reas pblicas, bosques, e cemitrios; alm da questo sonora, analisa um documento divul-gado pela rede.

    Para alm da violncia explcita quan-do h invaso de um terreiro, agresso fsica a um membro das religies de matriz africana ou ofensas por meio dos veculos de comunicao, o advoga-do Thiago Hoshino que atua na asses-soria de terreiros pela organizao Ter-ra de Direitos do Paran chama a aten-o para as violncias do Estado. Pa-ra mim, to ou mais grave do que a vio-lncia explcita so os casos de violncia institucional. Ou seja, quando se utili-za o Estado e o poder econmico em di-versas esferas para perseguio das ma-trizes africanas. As infl uncias vo de juzes, a polticos, comerciantes, etc. A infl uncia to grande que parece que eles leram Gramsci muito bem expli-ca Hoshino.

    A rede Afrobrasileira Sociocultural avalia que h ainda projetos das ban-cadas em benefcio prprio como a ins-tituio do ensino religioso obrigatrio em busca do proselitismo religioso e o projeto de lei regulamentando a profi s-so de Telogo de autoria do ento se-nador Marcelo Crivella (pastor da Igre-ja Universal). Na viso da Rede, o cres-cimento da bancada evanglica tambm gera a insero de seus apadrinhados polticos nas mais diversas reas do ser-vio pblico, ocupando setores estrat-gicos, permitindo desta forma uma ges-to de temas de seus interesses. (CN)

    da Redao

    Em Pernambuco, uma reao organi-zada s violncias contra as religies de matriz africana tem sido articulada pe-los movimentos sociais. Aqui estamos fazendo um movimento ecumnico, tra-zendo ciganos, ndios, cristos, para co-mear politicamente, qual a desses caras? Questionar o Estado que garante a concesso de grupos que promovem a violncia e o dio. Ameaando o direi-to inalienvel ao credo que cada cida-

    do tem, de ter seu credo e sua cultura, afi rma a yalorix do Il Ax Oxum Ka-re de Olinda, me Beth de Oxum.

    Me Beth destaca que no so apenas as religies de matriz africana que esto sob presso, mas toda a cultura popular advinda desta raiz. Eles tm um projeto de poder poltico perigoso de ganhar ci-dade, estados, assembleias legislativas e a presidncia da Repblica e tirar o ori-x, voduns e os encantados da vida do povo. Querem tirar, satanizar nossa cul-tura e tirar a brincadeira do nosso coti-diano, que nosso coco, a ciranda, os afoxs, os maracatus de baque solto, de baque virado, o jongo, o tambor de crio-la. Tirar essa cultura que oriunda dos terreiros afro e indgena, denuncia.

    Leis de silncio so armas utilizadas contras estas manifestaes. Todas as leis de convivncia urbana tm sido utilizadas para fechar terreiros, ou se-

    da Redao

    Para o psiclogo e ebome (que em Ke-tu signifi ca: meu irmo mais velho) do Il Ax Kalamu FunFun , Vicente Gal-vo Parizi, a ignorncia d origem ao medo das religies de matriz africana.

    Parizi, que mestre em cincias da religio pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, entende que boa parte deste medo foi alimentado pelos preconceitos social e racial. No pode-mos esquecer que houve uma Bula Pa-pal que dizia, em nome de Deus, que os negros no possuam alma e por isso podiam ser escravizados.

    Brasil de Fato Por que as pessoas tm medo das religies de matriz africana?Vicente Galvo Parizi Acho que fundamentalmente o medo vem da ig-norncia e de ideias pr-concebidas. Mas h vrios aspectos a serem obser-vados. Vou relacionar alguns. Em seu livro Notas sobre a religio dos Orixs e Voduns, Pierre Verger apresenta do-cumentos sobre o encontro dos brancos colonizadores e os africanos e como os brancos, em especial os padres, no po-diam entender uma cultura e uma re-ligio to diversa. Por exemplo: Exu era cultuado ao ar livre, portanto havia assentamentos aos ps de rvores. Ao ver adeptos dando dobale [saudaes a orixs] nesses assentamentos, os bran-cos concluram que tratava-se de culto a arvores. E nos documentos compila-dos por Verger encontramos isso: tra-ta-se de pagos que tm rvores por deuses. Entretanto, nada mais longe da realidade!

    Outra confuso que Exu represen-tado com chifres. Para os padres cris-tos, chifre privilegio de Satans, por-tanto Exu o demnio. E concluram que os africanos eram adoradores de Sa-t. E por a vai: a ignorncia e o desco-nhecimento gerando interpretaes fal-sas que, muitas delas, at hoje continu-am assombrando coraes e mentes.

    Outro aspecto desconhecido pela maioria que as religies africanas so monotestas. H um deus nico olo-rum, olodumare, qualquer que seja o nome e suas manifestaes os ori-

    xs. Ou seja, os Orixs no so deuses, so manifestaes de deus, so as for-as criadoras de Olorum, as foras da natureza. Mas para a maioria das pes-soas que desconhecem a religio, tra-ta-se de uma religio com muitos deu-ses. Nesse sentido, o monotesmo cris-to se enxerga como superior, e as reli-gies africanas passam por primitivas e politestas.

    Mas o aspecto crucial, creio eu, a questo do sacrifcio de animais. As re-ligies crists passaram a abordar o sa-crifcio a partir apenas do aspecto sim-blico: na consagrao o sacerdote in-voca o corpo e o sangue de Cristo e os fi is ingerem a hstia se alimentando desse corpo e desse sangue. Nas religi-es de matriz africana, o sangue efe-tivamente derramado. Mais uma razo para que se diga que so religies pri-mitivas, que o desenvolvimento do cris-tianismo as superou.

    Como se d a construo deste medo?

    Tudo o que diferente de mim me causa no mnimo estranheza. Foi as-sim com os colonizadores brancos na China, no Japo, na Amrica e na fri-ca. Para poder entender o diferente de mim, no posso apenas observar, ape-nas ver e no perguntar. No questio-nar impede que se compreenda o que realmente acontece. No adianta ver pessoas tomando caf, ou ler livros so-bre o caf: apenas tomando caf po-derei entender o que realmente to-mar caf.

    O medo, a meu ver, causado pela ig-norncia, pelo desconhecimento, pe-la falta de dilogo da majoridade crist com os adeptos de religies africanas.

    O preconceito contra as religies de matriz africana se d em conjunto com as questes racial e social?

    Certamente. No podemos esquecerque houve uma Bula Papal que dizia,em nome de Deus, que os negros nopossuam alma e por isso podiam serescravizados. No Novo Mundo, as reli-gies de matriz africana eram privil-gio de negros, escravos e pobres. Por-tanto, praticadas pelos brancos apenass escondidas. Nesse sentido, o papel deJoozinho da Gomia [adepto do can-dombl] foi crucial, e sua ida para o Riode Janeiro, sua entrada no meio polti-co, seus shows em teatros, a feitura debrancos etc, tudo serviu para divulgar areligio no meio de brancos e de pesso-as de estrato social superior.

    Como voc v o crescimento das religies neopetencostais detentoras de poder em diversas esferas institucionais (poltico, judicirio, econmico, de comunicao) que pregam contra as religies de matriz africana?

    Com muito temor. Na sua maioria,so cristos fundamentalistas, atendo-se forma da lei e no ao seu sentido.Em tese, Jesus pregava o amor a todos,mas na prtica o que o cristianismo ge-rou foram religies absolutamente in-transigentes com o diferente. A Inqui-sio com suas fogueiras a melhor de-monstrao disso. Mas no Brasil de ho-je, a Inquisio continua acontecendonos rituais de exorcismo contra gays elsbicas, baseadas na ideia de que Exu a personifi cao do demnio; estpresente nos ritos de renncia a Sata-ns, em que adeptos quebram seus ibsde feitura e renunciam em voz alta aosorixs. Muitos desses sacerdotes esti-mulam aes concretas, como ataquesa terreiros e adeptos nas ruas fazendodespacho, assim como ataques a gays elsbicas nas ruas. Nesse momento, es-tamos assistindo pela primeira vez auma eleio em que o candidato apoia-do pelos neopentecostais Celso Rus-somanno tem chance real de ser es-colhido como prefeito de So Paulo.Fato indito e que demonstra a uniodessas foras. (CN)

    As perseguies do Estado e da leiBancada evanglica ameaa o direito liberdade religiosa dos cultos de matriz africana

    Organizados para resistirMarginalizados nas pautas dos movimentos sociais, comunidades de terreiro procuram organizao

    O medo, a ignorncia e o preconceitoTudo o que diferente de mim me causa no mnimo estranheza, anlisa psiclogo

    A gente sabe que os pastores na TV aberta ocupam a casa das pessoas cotidianamente pregando essa intolerncia

    O Estado at reconhece as comunidades de terreiros, mas a sociedade passou a nos criminalizar com as TVs e as rdios evanglicas

    A Inquisio de nossas matrizesA Inquisio de nossas matrizesLIBERDADE RELIGIOSA Por meio de suas rdios e TVs, neopentencostais acirram seu discurso de intolerncia contra religies de matriz africana

    cialescos foi s o estopim para as agres-ses. Mas a gente sabe que os pastores na TV aberta ocupam a casa das pesso-as cotidianamente pregando essa intole-rncia , afi rma me Beth de Oxum, ya-lorix do Il Ax Oxum Kare, membro da Comisso Nacional de Povos Tradi-cionais de Terreiro.

    Com o aumento do nmero de ame-aas e agresses, os povos tradicionais de terreiro, integrantes da jurema sagra-da, do candombl, da umbanda, do tere-c, do batuque, do tambor de Mina Je-je e Nag, do xang pernambucano, da kimbanda, rezadeiras, oradores do Nor-deste, catimbozeiros e pajs sentiram-se obrigados a informar por meio de nota pblica que no praticam sacrifcios hu-manos em suas liturgias e rituais. Nos-sas teologias no concebem a morte hu-mana como caminho para alcanar qual-quer benefcio na vida e desconhecemos qualquer ritual pertinente a esta prti-ca condenvel. Expugnamos completa-mente estes atos absurdos de assassina-to em nome de qualquer deus, afi rma-ram em nota.

    Em agosto, o pedido de proteo aos terreiros feito por representantes da Se-cretaria de Desenvolvimento Social e Di-reitos Humanos, do Conselho Estadual de Promoo da Igualdade Racial, da Se-cretaria de Defesa Social e do Ministrio Pblico de Pernambuco foi atendido pe-la Polcia Militar, que destacou agentes para cuidar destes casos.

    TorturaOutro caso recente que revoltou as

    comunidades de terreiro ocorreu no fi -nal de 2010, quando Bernadete Souza Ferreira dos Santos, yalorix e coorde-nadora de educao do assentamento Dom Helder Cmara, em Ilhus, Sul da Bahia, de 42 anos, foi torturada por po-liciais militares. Enquanto recebia um Orix, yalorix foi puxada pelos cabe-los e jogada em cima de um formiguei-ro. Os polcias pisaram no pescoo e dis-seram: s assim para o demnio sair. Depois de uma srie de torturas, Berna-dete foi colocada em uma cela reservada para homens. O caso de Bernadete ain-da espera por julgamento.

    ja, quando um toque de atabaque pas-sa do limite de decibis, ou h dennciade sacrifcio de animais, baixa a vigiln-cia sanitria para fechar o local, desta-ca o advogado Thiago Hoshino, da Ter-ra de Direitos, que assessora comunida-des de terreiro.

    ContrapontoO terreiro Il Ax Oxum Kare tem

    uma rdio livre chamada Amnsia FM,88.5, onde se divulga a msica e not-cias relacionadas ao terreiro. Para meBeth, fundamental utilizar todos osmeios possveis para alertar o avanodo discurso do dio. Acho que mui-to perigoso porque as pessoas no estose atentando a isso. Os movimentos so-ciais no esto atentos e quando a gen-te for perceber o resultado bem drsticoque isso possa advir talvez seja at umpouco tarde. (CN)

    No podemos esquecer que houve uma Bula Papal que dizia, em nome de Deus, que os negros no possuam alma e por isso podiam ser escravizados

    A bancada evanglica j representa 13,2% do total de deputados da Cmara

    Me Beth de Oxum, da Comisso Nacional de Povos Tradicionais de Terreiro

    Alex Oliveira/Setur

    Jos Cruz/ABr

    sambadadecoco.wordpress.comCruz/ABr