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Xamanism suruwah transformaç

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  • Xamanismsuruwaha e

    transforma

  • Xamanismo suruwaha e transformaes

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil

    M I G U E L A P A R I C I O

  • 505Amazn., Rev. Antropol. (Online) 6 (2): 503-525, 2014

    Xamanismo Suruwaha e transformaes

    Xamanismo suruwaha e transformaes

    Resumo

    Na cosmologia Suruwaha, prevalece um quadro de sociabilidade em constante transformao, em que mais do que diferenas de humani-dade, identidades ou substncias, h alteraes fundadas na variao das posies csmicas dos sujeitos que interagem. A viso dos xa-ms transforma um mundo que est em desequilbrio permanente. O movimento entre posies csmicas incompatveis possvel para os xams, que circulam entre as mesmas em virtude da sua capacidade me-tamrica. Iniwa, a expresso Suruwaha para aquilo que de forma ampla chamamos xamanismo, emerge como capacidade relacional de conexo com outros sujeitos do universo. O conhecimento xamnico no cenrio Suruwaha se projeta fundamentalmente atravs dos seguintes eixos, ana-lisados neste artigo: capacidade de comunicao com os espritos, capa-cidade transformacional (jahuruwa) e potncia perigosa para a feitiaria, capaz de provocar a morte (mazaru).

    Palavras-chave: Suruwaha, xamanismo, rio Purus, transformaes ind-genas

    suruwaha shamanism anD transformations

    Abstract

    In Suruwaha cosmology, a framework with a sociality in constant trans-formation prevails. More than differences regarding humanity, identities or substances, there are alterations founded in the variation of cosmic positions between the subjects interacting. Shamans vision transfor-ms a world in constant imbalance. The movement between incompa-tible cosmic positions is possible for shamans, who surround between them because of their metamorphic abilities. Iniwa, the Suruwaha ex-pression for what we broadly call shamanism, emerges as a relational connection capacity with other subjects of the universe. In this article, shamanic knowledge in Suruwaha scenario is projected primarily throu-gh the following features: as a skill to communicate with the spirits; as a transformational capacity (jahuruwa); and as dangerous power for witchcraft, capable of causing death (mazaru).

    Keywords: Suruwaha, shamanism, Purus river, indigenous transforma-tions

  • 506 Amazn., Rev. Antropol. (Online) 6 (2): 503-525, 2014

    Aparicio, M.

    Chamanisme suruwaha et transformations

    Rsum

    Le cadre de sociabilit, dans la cosmologie Suruwaha, est en constan-te transformation. Au-del de diffrences dhumanits, didentits, ou de substances, il sagit bien daltrations fondes sur les positions cos-miques des sujets interagissant. La vision des chamans transforme un monde en dsquilibre permanent. Le mouvement entre les posi-tions cosmiques incompatibles est possible pour le chaman, qui circule entre elles en vertu de sa capacit mtamorphique. Iniwa, lexpression suruwaha pour dsigner de manire large ce que nous nommons cha-manisme, apparait comme une capacit relationnelle de connexion avec les autres sujets de lunivers. La connaissance chamanique, dans le sc-nario suruwaha se projette fondamentalement au sein des axes suivants, analyss dans cet article : en tant que capacit de communication avec les esprits; comme capacit transformationnelle (jahuruwa); et en tant que potentialit dangereuse dans le cadre de la sorcellerie, capable de provo-quer la mort (mazaru).

    Mots-cl: Suruwaha, chamanisme, leuve Purus, transformations indi-gnes

    Endereo do autor para correspondncia: Museu Nacional, Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, UFRJ, Quinta da Boa Vista, So Cristvo, Rio de Janeiro, RJ - CEP: 20940-040. E-mail: [email protected]

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    Xamanismo Suruwaha e transformaes

    Voc talvez no concorde comigo, mas para que as narrativas e descri-es possam funcionar, deve haver coisas que permaneam como no explicadas.

    Marylin Strathern (1999)

    A rede csmica Suruwaha1 se desen-volve de tal maneira que a exteriori-dade pe em movimento constante o mundo, em uma dinmica irredutvel de produo de alteraes (no sentido de que so alteridades as que do supor-te constituio do prprio mundo). Uma anlise da economia mitopotica da metamorfose (NuTI 2003) revela como as interaes entre os sujeitos do multiverso2, marcadamente caracteri-zadas na cosmoviso Suruwaha como socialidade em conlito, geram trans-formao jahuruwa.

    Estas transformaes (de pessoas em animais ou em plantas, de animais ou plantas em karuji, de deslocamentos na topograia csmica) so transforma-es do corpo (e por isso transforma-es perspectivas) e do mundo, ope-radas pela potncia xamnica. Neste sentido, a ao xamnica o princpio cosmopoltico das transformaes. Os seres humanos e no-humanos no partilham um mundo comum, mas mundos mltiplos que estabelecem intersees e relaes mutantes, com cruzamentos de modo geral conlitu-osos e interstcios que provocam uma espcie de comunicao inconstante, incidental.

    O que prevalece um quadro de socia-lidade em metamorfose, em que mais do que diferenas de humanidade, identidades ou substncias, h alterida-des fundadas na variao das posies

    csmicas dos sujeitos que interagem. A viso do xam transforma o mundo que est em desequilbrio permanente:

    Os animais antigamente eram pessoas, as pessoas com o tempo foram transformando-se em ps-saros, macacos. Numa noite, um homem transou com a esposa de outro homem. O jupar, que era xam, soube o que tinha aconteci-do e achou que era ruim. Fez com que a noite se prolongasse durante muito tempo. Durante muitos dias no amanheceu, as pessoas tinham que ralar mandioca no escuro e fazer pescarias com timb nos pe-quenos igaraps prximos, para conseguir alimento. O jupar era xam, somente ele conseguia ver na escurido, nos seus olhos sempre era de dia. Ele caava os animais que andam durante a noite, chega-va com caa na casa e as pessoas, surpresas, perguntavam-lhe como que conseguia caar: Meus olhos enxergam como se fosse de dia, ele disse.

    As pessoas sentiram fome, fazia muito tempo que no amanhecia, a noite se prolongou durante dias e dias. Foram pedir ao jupar que acabasse com aquela escurido to prolongada. O jupar saiu e can-tou, cantou muito e cheirou tabaco. Quando terminou seu canto, ama-nheceu (Zumari, 15/ 09/2000).

    Estamos perante mundos transforma-cionais onde as aparncias enganam (Rivire 1995), como mostra a prxima narrativa sobre o povo das vespas e o grande incndio. O hbito da fala di-versa corresponde a uma condio de estranhamento e inimizade; a gordura de um humano predado pelos outros-

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    Aparicio, M.

    -canibais regenera o corpo pela ao xmanica; o xam pode transitar entre o mundo prprio e o mundo alheio re-alizando a metamorfose do corpo, que efetua tambm a alterao da socialida-de: a condio de inimigos predadores deriva de condio subvertida de v-timas do xam e seus semelhantes. O fogo domstico da cozinha dos estran-geiros se transforma perigosamente em fogo predador, como efeito reverso da potncia xamnica.

    O povo das vespas matava as pessoas e as devorava. As vespas matavam as pessoas do povo com uma lana. Kahijawa era o dono do fogo. Ele tinha um irmo chamado Gunuri. Certo dia, Gunuri quis fa-zer uma visita casa do povo das vespas. Kahijawa lhe advertiu que no era bom ele ir, ele no falava a lngua das vespas e elas poderiam mat-lo. Era melhor que icasse: ele mesmo, Kahijawa, iria l, pois conhecia a lngua do povo das ves-pas. Contudo, Gunuri desatendeu o conselho do irmo e foi casa das vespas. L o mataram para comer.

    Kahijawa sentiu falta do seu irmo e se dirigiu casa do povo das ves-pas com uma lana e o recipiente onde ele guardava o fogo: era pa-recido com um ovo de inhambu. Quando chegou l, encontrou-se com Jaku, que morava na casa das vespas. Jaku tinha recebido as mos e os ps de Gunuri, e se dispunha a cozinh-los. Levava um pote de barro na mo e ia buscar gua no igarap prximo casa. Kahijawa lhe perguntou: O que que vai cozinhar com essa gua. Jaku res-pondeu: Gu, gu... Um tamandu! Kahijawa descobriu, pela fala duvi-dosa de Jaku, que ele estava men-

    tindo e que se tratava do seu irmo, morto pelo povo das vespas. Ento disse: Jaku, d-me gua. E nesse instante, matou Jaku. Com o seu poder de xam, tirou a pele do cor-po de Jaku, se revestiu com ela e es-condeu seu corpo debaixo dgua. De essa forma conseguiu entrar na casa do povo das vespas.

    As pessoas tinham sado para ca-ar, na casa estava somente a av de Jaku, que se chamava Kuzara. Kuzara era velha, ela estava perto de uma fogueira. No reconheceu Kahijawa, pensava que se tratava do seu neto Jaku. Kahijawa deixou o recipiente do fogo perto da fo-gueira, Kuzara perguntou o que era isso. um ovo de inhambu, disse Kahijawa. Kahijawa viu com triste-za que, em vrias panelas, tinham guardado a gordura do corpo do seu irmo. Passou e foi lambendo a gordura das panelas. Kuzara re-clamou: Para com isso, no lambe a banha dos teus parentes!. Ento, devido ao poder de xam de Kahi-jawa que estava lambendo as pane-las, Gunuri reviveu. A gordura se transformou no prprio corpo de Gunuri. O povo das vespas voltou da caada, e sentiu o cheiro do fogo de Kahijawa. Ele disse velha Ku-zara, mentindo: Av, vou defecar. Vai cozinhando esse ovo de inham-bu. Quando saiu, Kuzara colocou na panela o recipiente de fogo de Kahijawa, pensando que se tratava de um ovo de inhambu. O fogo ex-plodiu, a casa ardeu em chamas e as pessoas do povo das vespas mor-reram. O incndio se espalhou pe-los arredores da casa, avanou pela mata, a terra inteira se queimou.

    Kahijawa tirou a pele de Jaku com a qual tinha se revestido e pegou sua

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    Xamanismo Suruwaha e transformaes

    lana. A mata inteira continuava ardendo, as rvores se consumiam em chamas. Kahijawa voou, se transformou em todas as aves fu-gindo do incndio. Mais tarde, pela fora das suas palavras, surgiu uma imensa extenso de gua no oeste. O fogo no podia atravess-la. A mata continuou ardendo, no oeste icou um fogo permanente que ain-da hoje continua ardendo. Kahija-wa atravessou aquelas guas imen-sas. O povo das vespas morreu, a terra inteira icou queimada (Uhu-zai, casa de Hinijai, 13/10/1999).

    O movimento entre posies csmicas incompatveis possvel para os xams que circulam entre as mesmas, em vir-tude da sua capacidade metamrica. De novo, as transformaes incidem na socialidade dos diversos sujeitos, humanos e no-humanos, possibilitan-do inclusive reverses nas posies de consanguinidade e ainidade, de seme-lhana e de estranhamento, de preda-o e submisso, e operando a altera-o nos corpos.

    Tem-se a impresso de que a vida do-mstica, a convivialidade alcanada a partir da incorporao da diferena, mantm-se sempre de modo precrio. A alteridade, ao constituir a harmonia precria do prprio, ao ser absorvida para viabilizar a vida, tende a implodir a possibilidade da sociedade, e gera a alterao da rede de relaes e a trans-formao do mundo.

    O veado estava na maloca, tinha umas pupunhas que queria cozi-nhar. As pupunhas no eram iguais as nossas, pareciam com frutas de dagami. O veado tinha uma ilha jovem, muito bonita. Ele pediu

    ilha: Vai ao igarap pegar gua para cozinhar as pupunhas. A jo-vem desceu ao igarap; quando foi pegar a gua, viu na beira do mes-mo os espritos da bacaba. Pegou pedacinhos de pele das pupunhas e jogou-os neles, brincando. Os espritos da bacaba pegaram rapi-damente os pedaos de casquinha de pupunha, os comiam e icaram achando graa. Depois, eles icaram se escondendo ao redor da jovem, que icou assustada. As pupunhas se transformaram nos seus esp-ritos e tambm se esconderam da jovem, que icou com medo. Os es-pritos das pupunhas queriam levar a jovem para a sua casa.

    A ilha do veado chegou maloca assustada, magra e feia. O pai per-cebeu que alguma coisa ruim tinha acontecido com a sua ilha; icou muito irritado, mas no comentou nada. Cheirou tabaco, preparou uma lana e saiu em busca da casa dos espritos das pupunhas. Foi pe-los igaraps, seguindo um caminho que ele abria por baixo das guas. O veado era um grande xam. Des-ceu um igarap pequeno, chegou a outro maior, e a outro, e a outro, e a outro. Finalmente, andando por baixo das guas, chegou a um rio imenso, onde se encontrava a casa dos espritos das pupunhas. Ele estava muito irritado. Chegou com a lana, havia muita gente, todos com as suas lanas. Quando viram o veado chegar, todos se sentiram ameaados. O veado parou e dis-se: Esperem! Eu somente vim em busca da minha ilha... Mas um dos espritos das pupunhas queria tomar a sua ilha como esposa: ela era mesmo muito bonita. O vea-do disse: Eu vou dividir a minha

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    ilha em duas, uma icar comigo e outra ser a tua esposa. Com a sua fora de xam, o veado dividiu a jovem em duas, dando origem a duas moas iguais, muito bonitas. Uma icou como esposa do esprito da pupunha e a outra voltou a casa com o pai. Quando o veado che-gou a sua maloca com a ilha boni-ta, encontrou tambm com a ilha que tinha sido maltratada na beira do igarap(Kwakwai, caminho do igarap Kwariaha, 7/7/2001).

    INIWA, a CaPaCiDaDe De Cone-Xes Dos Xams

    Iniwa, a expresso Suruwaha para aqui-lo que de forma ampla chamamos xa-manismo, uma capacidade relacional de conexo com outros agentes do universo. Os xams emergem como mediadores por excelncia, como os agentes de uma cosmopoltica e, so-bretudo, como aqueles que dispem de certas capacidades de ao e transfor-mao, potencializadas pelas relaes que eles mantm com os agentes no-humanos, invisveis do cosmos (Sztutman 2012:454).

    Nesse sentido, refere-se mais a uma potencialidade do que a uma institui-o da sociedade, possui um carter de experincia mais do que de status. Corresponde, portanto, a uma diplo-macia csmica dedicada traduo entre pontos de vista ontologicamen-te heterogneos (Viveiros de Castro 2006:310). Tal capacidade de traduo e de translao entre perspectivas torna a qualidade xamnica condio confu-sa, difcil, escura: danuzyri.

    O poder do xam ambguo e peri-goso, e as pessoas que possuem esta potncia comumente a negam: iniwa hysukwanai eu no tenho poder de xam, falavam-me cotidianamente os pajs Suruwaha.

    A condio xamnica situada, de modo habitual, de forma distanciada, por isso, considera-se que houve um tempo ancestral em que os grandes xams operavam com excelncia, com um poder transformacional eminente, o tempo dos iniwa hixa. Se em um tem-po remoto, para os Suruwaha, todos os humanos eram xams, hoje o xa-manismo considerado um recurso escasso (Gow 1991). Nos meus anos de campo, apenas Xamtiria era consi-derado como detentor expressivo do poder iniwa, de alguma forma tambm Axa, e com menor domnio, alguns jovens Kwakwai, Hinijai, Uhuzai adentravam-se paulatinamente no co-nhecimento xamnico.

    Em alguns momentos, observei certa nostalgia em relao ao vigor dos iniwa hixa do passado. Uhuzai expressava seu temor em relao possibilidade de quebra na transmisso do conhecimen-to xamnico aps a morte de Xamti-ria, acontecida em 2001. Axa, Wahary, Kwakwai, Kimiaru e Hinijai iniciados atravs de recorrentes insulaes de tabaco por Xamtiria negavam em si prprios qualquer atribuio de xama-nismo. Em outra ocasio, o jovem Ania avaliava que os xams Suruwaha atu-ais tinham perdido seus poderes: no eram capazes de curar as doenas, no dominavam o feitio, no conseguiam sugar as pedras patognicas zama kuwi-ni no corpo das pessoas doentes.

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    Xamanismo Suruwaha e transformaes

    Tenho a impresso, contudo, que este deslocamento dos iniwa hixa a um mo-mento ancestral imaginado deve-se mais a essa necessidade de distncia e afastamento inerente ao perigo e risco da condio de iniwa do que a uma de-corrncia fragilizante do impacto ex-trativista sobre os coletivos Suruwaha. Kwakwai, em uma conversa em casa de Jadabu, rememorava os nomes de xams de geraes no to distan-tes: Ari, Ityhyru, Murixa, Nutu que transmitiu o conhecimento iniwa a Xa-mtiria , Mititu, Wyhy, Ynydy, Hahiu, Birikahywy, Imaidi, Tijiby, Irimyry, Damykanixi, Sadu, Budi, Zymkyrywy, Nuturi, Abykahuwy, Suwaidibu, Waga-ru, Aidimysa, Janu.

    Nas ltimas dcadas, com uma con-siderao de prestgio prxima dos iniwa hixa, Myzawai, Nutu, Budi e Xa-mtiria foram os detentores mais desta-cados da capacidade xamnica. Myza-wai (circa 1900-1930) pertencia aos Masanidawa e protagonizou a poca dramtica dos massacres perpetrados pelos Abamadi na poca do avano ex-trativista sobre os territrios dos cole-tivos que hoje compem os Suruwaha. lembrado como um xam agressivo nas relaes externas, tanto com ou-tros coletivos dawa quanto com estran-geiros. A ele so atribudas agresses xamnicas que provocaram a morte de Jarikimia e Zahi (esposa de Kujamini), dos Jukihidawa, e de Suruwaha3. Myza-wai liderou o enfrentamento aos Jara e aos Abamadi, e morreu durante os ataques que dizimaram os Masanidawa.

    Nutu (circa 1920-1965), ilho de Myza-wai e Kuxanja, foi iniciado no saber xamnico pelo seu prprio pai. As atu-

    ais geraes guardam uma lembrana especial dele, que manteve as prticas dos iniwa durante a crise que sucedeu poca dos massacres, com perda de territrios, isolamento e surgimento da prtica de ingesto de timb entre os Suruwaha.

    Wahary me contou que Nutu tinha um defeito fsico na regio cervical, seu pescoo permanecia rgido e no podia olhar para frente: precisava que a sua esposa, Xana, o guiasse nos ca-minhos na loresta. Contam que seu pai, Myzawai, obteve diversos perten-ces em encontro com sorveiros, entre os quais uma colher de metal. O uso constante que Myzawai fazia da mesma teria produzido em Nutu a deicincia no pescoo.

    Quando Nutu nasceu, Myzawai dei-xou de usar a colher e voltou a comer com as mos. Nutu no possua arco, nem lechas, nem zarabatana, pois no conseguia caar. Somente tinha o rap, que ele prprio elaborava. Circulam at hoje os relatos sobre suas aes de feitiaria4. Foi Nutu quem iniciou Budi e Xamtiria, transmitindo-lhes o conhecimento iniwa. Devido aos cons-tantes encontros de Nutu com os ku-rimia, o repertrio de cantos wajuma a ele atribudo amplo. Hoje em dia, os Suruwaha lembram e cantam as can-es que Nutu recebeu dos espritos--cantores.

    Budi (circa 1935-1992), ilho de Janu e Hamydwaga, era Idiahindawa. Contam que, quando era jovem, Dihiji matou Wani, uma criana com deicincia a quem envenenou com timb. Wani era ilho do irmo de Budi, que se en-

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    Aparicio, M.

    fureceu com essa morte. Budi lanou feitio contra Dihiji, advertindo-lhe que, quando tivesse ilhos, eles nasce-riam com os mesmos problemas que Wani. E assim ocorreu: anos depois, Dihiji casou com Bujini e tiveram dois ilhos Nawi e Hakani que nasceram com deicincias. Budi morreu ancio, na casa de Kwakwai, no igarap Kwa-riaha. Kwakwai me contou que, no lu-gar onde Budi faleceu, os espritos das plantas cultivadas (aha karuji) chegam s roas com frequncia: os espritos do milho, os espritos do car. Budi e as almas cantam nos roados, os esp-ritos das antas chegam e cantam junto: somente no permite que se aproxime o esprito da cobra.

    Xamtiria (1939-2001) tem sido de for-ma indiscutvel o xam com maior re-conhecimento nos ltimos anos. Sua igura despertava admirao, respeito e temor. Em contraste com a prtica ha-bitual Suruwaha, que no costuma re-correr a tecnnimos como substitutos dos nomes pessoais, Xamtiria (tambm conhecido como Igiantari) era chama-do de Kawakani ahadi, pai de Kawaka-ni.

    Continuamente, os Suruwaha apren-diam os cantos que Xamtiria, como kurimia agy, recebia dos espritos-canto-res, os kurimia. Era ele quem conduzia os principais rituais e festas de caadas e pescarias coletivas e quem dominava com maior detalhe as velhas histrias, muni dabukiri. Xamtiria faleceu no dia 26 de junho de 2001, no envenena-mento coletivo que acabou com a vida dos jovens Aruazy, Udy, Ynysa, Karari, Nyny e Axidibi (este ltimo, ilho de Xamtiria e Daiahka).

    noite, aps as primeiras mortes, Xamtiria, angustiado, tentava reanimar o corpo inerte do seu ilho Axidibi, insulando tabaco nas suas narinas e tentando fazer com que o poder iniwa penetrasse pelos dedos do ilho, j morto. Conforme os habituais ritos fu-nerrios, os corpos dos seis jovens per-maneciam no centro da casa de Kuxi, deitados nas redes costuradas ao modo de casulo, com as pernas lexionadas e as mos cobrindo a regio genital. Ao amanhecer do dia seguinte, Daiahka, me de Axidibi, disse ao seu esposo: Xamtiria, j somos velhos e perdemos o nosso ilho jovem. Quando eu nasci, voc j tinha recebido o suspensrio sukwady, voc j era caador de antas. Faz muito tempo que estamos juntos. No suporto mais, quero morrer, ve-nha tomar timb comigo. Xamtiria acompanhou a sua esposa. Poucas ho-ras depois, ambos faleceram.

    a ComuniCao Com o munDo Confuso (DANUZYRI) Dos esPri-tos

    O conhecimento xamnico no cenrio Suruwaha se projeta fundamentalmen-te atravs dos seguintes eixos: capaci-dade de comunicao com os espritos; capacidade transformacional (jahuruwa) e potncia perigosa para a feitiaria capacidade de provocar a morte (maza-ru).

    A comunicao com os espritos e ou-tros agentes no-humanos efetiva uma ao que transita entre o sociolgico e o cosmolgico, opera alteraes que circulam entre a quase-natureza e a quase-poltica (Sztutman 2005:178)

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    Xamanismo Suruwaha e transformaes

    e possibilita a circulao entre o mun-do dos humanos e outros mundos e agncias.

    As pessoas, quando morrem, ca-minham para o oeste, sobem ao cu e descem at a casa de Tiwiju, que ica ao leste. Wagy morreu e foi casa de Tiwiju, ele era um grande xam. Tabanuti e Jara sentiram uma grande saudade dele e decidiram segui-lo. Foram para o oeste, passa-ram pela casa de Kahijawa, o dono do fogo. Kahijawa guarda o fogo num recipiente parecido a um ovo de galinha.

    Subiram ao cu, encontraram ra-zes de hanaba e comeram. O hanaba uma planta muito parecida com a macaxeira, que cresce bem mais alta. As pessoas tm esta planta ainda hoje, no comem porque no gostam muito dela. Tabanuti e Jara chegaram casa de Tiwiju, nela en-contraram Wagy, de quem sentiam muita saudade. Havia muitas trom-betas huriatini tocando. Comeram um alimento doce, zama xiniaru, muito gostoso; acharam tudo bo-nito, muito bonito. Depois de uns tempos, desceram e regressaram casa das pessoas, contaram ao povo tudo que tinham visto e disseram que o lugar onde Wagy estava era de uma grande beleza (Uhuzai, casa de Hinijai, 13/10/1999).

    A rede dos iniwa , portanto, uma rede sociocsmica acessvel pela capacidade de troca de perspectivas que os xams possuem. Esta troca de perspectivas adquire uma aparncia confusa, difcil (danuzyri) para os humanos. Taussig (1993:344) prope para a anlise da funo xamnica o conceito de conhe-cimento social implcito, como capacidade

    de indagao do obtuso. O conhe-cimento daquilo que incomensurvel se instala nas intersees da vida cole-tiva, nas intersees entre a vida dos humanos jadawa e os agentes heterot-picos (Aparicio 2014), onde se produz liminarmente uma poltica csmica de conlitos, transformaes e socialida-des transversais.

    A troca de perspectiva aparece como metamorfose na viso, metamorfose de lugares, instabilidade dos corpos ou, como na narrativa a seguir, mudana de nomes para aqueles que transitam entre os diversos patamares do univer-so.

    Adiriwa era um grande xam dos antigos Jukihidawa. Havia um garo-to, adolescente, que um dia saiu de casa. Um esprito kurimia desceu do cu e encontrou com o garoto. O nome do garoto era Sawari Asa.

    Adiriwa perguntou a Sawari Asa o que era que ele tinha visto. Sawari Asa contou-lhe o acontecido, en-to Adiriwa respondeu: Voc j xam, mas no conte isso para ningum, conte as coisas s para mim. Sawari Asa era muito novo, ainda no tinha recebido o suspen-srio sukwady e j possua o poder dos xams. Adiriwa assoprou ta-baco nas suas narinas e disse-lhe: V embora!. Sawari Asa obedeceu, caminhou por debaixo da terra, aprendeu a subir ao cu e trans-formar-se em pssaro. Sawari Asa e um companheiro seu subiram ao cu, estava trovejando e foram casa do trovo. Sawari Asa disse ao trovo: Basta, no grites mais. E perguntou-lhe o nome. O trovo, Bai, respondeu a Sawari Asa: Ago-ra teu nome ser Baidawa, e o do

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    Aparicio, M.

    teu companheiro, Gaminaru.

    Baidawa e Gaminaru desceram casa dos Jukihidawa, contaram o acontecido e como o trovo tinha lhes dado novos nomes (Uhuzai, casa de Kuxi, 29/06/1999).

    O tabaco (kumadi) a planta dos xa-ms, o veculo que promove a comu-nicao entre os humanos jadawa e que permite o acesso s perspectivas dos jadawasu, dos espritos, o trnsito a ou-tras paisagens do cosmos. O consumo de tabaco inalado cotidiano, de uso contnuo tanto para os homens quanto para as mulheres: ele anima as pessoas a manterem-se ativas e bem dispostas, anulando a indolncia e a passividade (zama kahyzynaxu), d vigor e resistn-cia nas caadas e pescarias, na abertura de roas, no carregamento de mandio-ca, nos momentos de atividade fsica intensa, inclusive em situaes de mal--estar e dor5.

    noite, antes do descanso noturno, na casa se formam rodadas de conver-sa (habitualmente diferentes para ho-mens e mulheres, mas sem restrio de eventual acesso mtuo) em que algum oferece tabaco em forma de rap, no seu kahu6, s demais pessoas: um momento de partilha das atividades do dia, de comentrios sobre os assuntos mais signiicativos ou de transmisso das velhas histrias. Nessas rodadas, as pessoas costumam inalar o tabaco que lhes oferecido por outra pessoa na palma da mo (kumadi hixidiari).

    Durante meus anos de convivncia na aldeia, as rodadas noturnas de tabaco eram oferecidas com maior frequncia por Hamy, indiscutivelmente o adulto de maior prestgio no grupo, anitrio

    que oferecia um rap considerado de excelente qualidade e especialmente vigoroso. Em muitas ocasies, a ro-dada de tabaco promovida por Hamy no seu kahu congregava praticamente todos os homens adultos e jovens da casa, tanto em momentos de descon-trao como em momentos de maior gravidade.

    O tabaco do xam Xamtiria era tam-bm apreciado de forma especial. Se o tabaco age como um veculo de co-municao entre humanos, ele tambm est presente como meio de superar o conlito, a raiva, o perigo da quebra da socialidade domstica. Pessoas que manifestam sua ira, furiosas e, portan-to, prestes a abandonar um comporta-mento de jadawa, recebem doses altas de tabaco assoprado nas narinas (kuma-di ahutukwari), pois o tabaco produz um efeito tranquilizante, acalma e devolve o clima de convivncia harmoniosa. O tabaco tambm ajuda a superar o conlito que o caador vive ao chegar a casa (Aparicio 2014), aps ter abatido um animal na loresta com o veneno kaiximiani das suas lechas.O tabaco assoprado com recorrncia e de modo intenso pelos xams aos ini-ciantes o principal procedimento de transmisso do poder iniwa. Assim, nos ltimos anos, pessoas como Kwakwai, Hinijai e Kimiaru eram frequentemen-te assopradas com tabaco por Xamti-ria, para receber suas capacidades, da mesma forma que Xamtiria recebeu o iniwa de Nutu.

    O efeito da inalao de tabaco cha-ma-se muwy, um estado de embria-guez que facilita uma posio pas-

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    Xamanismo Suruwaha e transformaes

    sageira de conexo e percepo de outros lugares e agentes do cosmos. por isso que o consumo de tabaco propicia o canto e leva ao encontro com os espritos-cantores. As pes-soas que cantam durante a noite, procura de uma comunicao com os kurimia, aparecem ocasionalmente na casa para solicitar tabaco, partilham as notcias da experincia de encon-tro com os espritos e comunicam o nome dos mesmos.

    O efeito do tabaco, muwy, provoca uma situao de alterao dos sentidos e de instabilidade no corpo, alm de pr a pessoa tanto em um nvel de conecti-vidade com a sobrenatureza quanto de risco ao circular em condies de limi-naridade entre mundos. Assim como a fabricao e as modiicaes do corpo tm como consequncia a negao das possibilidades do desumano (Vilaa 2005), a condio instvel despertada pelo tabaco abre o comparecimento dos no-humanos, o que implica uma posio potencialmente carregada de perigo7.

    Em outros momentos, percebi como situaes de instabilidade dos corpos conduzem a posies de risco perante os espritos. Em 1997, a jovem Aga-rihu, picada por uma cobra beira do igarap Ihkiahini, sofria no somente por causa da dor fsica, mas tambm por causa da proximidade do esprito da cobra, kuwiri karuji, presente com seu veneno kaiximiani. Com o corpo alterado, a conexo com seres de ou-tros mundos pode tornar-se fatal.

    O poder do tabaco faz com que os xams, embriagados ao inalar, atinjam

    um estado de exploso do olhar (zubi batanari) que lhes d acesso perspecti-va confusa e incompreensvel (danuzyri) dos espritos. A capacidade de trnsito entre mundos incomensurveis para a maioria dos humanos deine a condi-o especial e estranha dos xams, que se tornam assim ambivalentemente humanos e no-humanos. O peril do antigo xam Birikahywy descrito da seguinte forma:

    Birikahywy sabia cantar muito, era xam, ele via muitos espritos kurimia quando icava embriagado pelo tabaco. Um xam jukihidawa assoprou muito tabaco em Biri-kahywy, ele sentiu a dor do taba-co, seus olhos icaram confusos, entrou na terra e viu muitos kuri-mia. Voou alto, igual a um pssaro, viu os kurimia e cantou (Uhuzai 1994 citado por Fank & Porta 1996:53).

    Junto com o tabaco, aparece tambm o canto wajuma, atravs do qual se re-aliza a comunicao do xam com os agentes da sobrenatureza. Uma das qualidades mais notrias dos xams Suruwaha sua condio de kurimia agy, a capacidade de preenso relacio-nal dos espritos-cantores. A compo-sio dos cantos wajuma se d atra-vs da obteno que o xam faz dos cantos dos kurimia, nos momentos de interlocuo que eles experimentam (Aparicio 2014). Os cantos so, desta forma, tentativas de descrio de ou-tros mundos confusos (danuzyri), em uma espcie de imaginao da viso que os sujeitos no-humanos tm do seu mundo.

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    Aparicio, M.

    transformao Do munDo, JAHURUWA

    Iniwa implica tambm capacidade de transformao do mundo: o xam o agente das metamorfoses, a instn-cia que percebe, opera e pensa o ca-rter transformacional do mundo. A transmisso dos cantos e dos mitos, protagonizada pelos xams, se projeta como relexo sobre as possibilida-des de ao (Sztutman 2005:197), em um mundo intensamente heterogneo, onde a transformao anterior forma, a relao superior aos termos e o intervalo interior ao ser. Cada ser mtico, sendo pura virtualidade, j era antes o que iria ser depois (Viveiros de Castro 2006:324).

    O xam possui a possibilidade de transmutao dos corpos os corpos emergem como o lugar da diferencia-o dos pontos de vista (Vilaa 2002) e movimenta assim a mutabilidade do mundo.

    No vero de 2000, ao avistar no cu noturno a passagem de um cometa, as pessoas correram apressadas para o interior da casa de Xamtiria. Kwakwai me explicou que, quando h um res-plendor intenso como aquele, maior que uma estrela-cadente, o povo ica alarmado, pois se trata do feitio de Xinamy, um antigo xam, iniwa hixa: o brilho do feitio8 de Xinamy anuncia tempos de doena. Diversas narrativas reletem esta capacidade transforma-cional do mundo inerente ao iniwa:

    [A friagem]

    Um macaco-prego mordeu os tes-tculos de Tiki Bihini. O homem passou um dia na rede, com muitas

    dores. Passou mais um dia, e outro dia, as dores persistiam. No tercei-ro dia, Tiki Bihini morreu. Coloca-ram seu corpo na rede, no centro da casa. Pouco depois o xam Wai-ku chegou em casa e icou turba-do com a notcia da morte de Tiki Bihini. Aproximou-se, tocou seu corpo e sentiu que ele estava frio, muito frio. Waiku cheirou tabaco, passou suas mos pelo corpo do fa-lecido, pegou o frio da sua pele, fez uma bola de frio e foi embora. O xam carregava o frio de Tiki Bihi-ni, subiu ao cu e assoprou, espa-lhando o frio no leste e no oeste, no norte e no sul. Uma intensa friagem pairou sobre a terra, o frio intenso no deixava ver o sol. Assim come-aram as friagens, no im da poca do inverno.

    Dois espritos kurimia assopraram tabaco do cu, cantaram ao redor do fogo e afastaram o frio que ha-via sobre a terra. O sol voltou a es-quentar, a mata aqueceu, a friagem passou. Contudo, aquela garoa fria cai sobre a terra sempre, no tem-po que precede chegada do ve-ro (Kwakwai, casa de Gamuki, 01/06/1996).

    [A anta]

    A anta era uma pessoa, era um xam. Disse: A terra no boa! Vamos, vamos, l no cu bem melhor!. Juntou muitos jovens e pediu que fossem buscar paus, pegaram muitos paus, incaram-nos no cho e foram amarrando um acima do outro, at l encima, muito alto, muito alto, mais alto do que esta casa. Amarraram um pau, e amarraram outro, e ou-tro, e muitos, o cu estava l encima. Foram subindo os paus, o xam ia frente de todos, levantou o seu ilho,

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    Xamanismo Suruwaha e transformaes

    levantou o seu outro ilho, e levantou tambm a sua esposa, levou encima todas as pessoas, ento ele disse: Acabaram os paus, tem que trazer mais paus! As pessoas carregaram mais paus, muita gente o seguia, havia apenas um pau e o xam se agarrava a ele, se agarrava com fora, at que ele disse: Cuidado, cuidado, aqui est ruim!. E tinha muita, muita gente, estavam muito acima, longe do cho. Assim est ruim, assim est ruim, desam, desam! As pessoas no desciam, e o pau quebrou, as pessoas caram, muita gente caiu do alto. As pessoas se transformaram em todos os pssaros, se transformaram em papagaios e macacos, no morreram ao cair, voaram e se transformaram em pssaros e macacos que pousa-ram nos galhos das rvores. A anta disse: Vou pousar num galho. Mas o galho se partiu, e a anta caiu. L encima ruim disse , vou icar no cho!. E permaneceu em terra, icou num barreiro em terra. Ao cair, quando o galho quebrou, resolveu permanecer no cho. A arara icou no alto, a anta achou ruim l. A arara desceu, pegou as penas do inhambu e subiu ao cu, e o inhambu icou em terra. Os inhambus icaram no cho, os papagaios voaram, os macacos--barrigudos icaram nas rvores. De-pois a anta foi embora, subiu ao cu, e disse: Aqui tem a fora dos xams. assim que contam (Ania, casa de Ikiji, 31/10/1997).

    Contra o eXCesso De ConVi-VnCia: o feitio, MAZARU

    De maneira ambivalente, junto com a funo conectiva em relao a outras instncias e sujeitos do cosmos, o xa-

    manismo Suruwaha apresenta tambm uma potencialidade desconectiva: os xams se deinem tambm pela sua capacidade de feitiaria. Pelo xamanis-mo, o jogo de perspectivas implica o risco da proximidade entre o humano, o animal, o sobrenatural, possibilitan-do transformaes entre agentes com socialidades em grande medida incom-patveis e conlitantes. O comparecimento da sobrenatureza, na sua condio de alteridade extrema, provoca deslocamentos na confor-mao da vida em sociedade. Tudo se passa como se o xamanismo desaias-se o excesso de convivncia, como se airmasse a impossibilidade do equil-brio domstico, constituindo um freio para a objetivao da coletividade (Sztutman 2003:10).

    Pela assim chamada feitiaria (maza-ru, expresso que designa tanto a mor-te quanto o feitio), o xamanismo estabelece jogos disjuntivos e lida com hostilidades sejam estas em relao aos no-humanos (o mundo heterot-pico dos espritos9) ou aos humanos diferentes (os estrangeiros waduna, os outros coletivos dawa e, inclusive, os prprios jadawa10, nos momentos de quebra da estabilidade precria da sua vida social).

    A capacidade de feitiaria se movi-menta, portanto, nos interstcios da socialidade suruwaha. Em princpio, todos os humanos podem adquirir o conhecimento xamnico, assim como todos tm poder de enfeitia-mento. Nos momentos de crise da relao social, em situaes de zawa de raiva , uma pessoa transmite fei-

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    Aparicio, M.

    tio11 ao seu rival atravs de um olhar furioso, de palavras ameaadoras, atravs do tabaco, ou atravs de um graveto, uma semente ou uma por-o de alimento; os xams tambm transmitem o feitio atravs de setas invisveis de zarabatana envenenadas com kaiximiani.

    No corpo do agressor que inala tabaco, a ponta dos dedos concentra a fora do feitio. Golpear com o cotovelo in-clusive de forma involuntria tam-bm transmite feitio (para neutralizar o efeito de um golpe involuntrio de cotovelo, o agressor succiona com os lbios a parte afetada, para impedir que o feitio se realize). Hamy relatava que Murixa, ilho de Atykawyry, dos Jukihidawa, irritado com Dadawa, dos Tabusurudawa, ofereceu-lhe uma pu-punha cozida na qual tinha colocado o seu feitio: Dadawa comeu a pupunha e morreu. A morte de Jarikimia, dos Jukihidawa, se deu a partir do feitio que Myzawai lanou atravs de um pe-dao de car.

    O tabaco dos xams age igualmente como um transmissor poderoso da feitiaria, como se constata em uma das verses da narrativa de Baka e Jatanamary (Fank & Porta 1996:129-130): nela, Uhuzai airma que kumadi muwini mazaru kahy (o feitio gosta da embriaguez do tabaco). Alguns Su-ruwaha referem-se antiga capacidade xamnica de manipular as coisas da dor, zama kuwini, substncias patog-nicas que em ocasies parecem anlo-gas tanto aos venenos (timb, tingui, kaiximiani e xihixihi os dois compo-nentes do curare) quanto aos objetos semelhantes ao dori dos Kulina e Jama-

    madi, as ijori dos Paumari e os arabani jarawara12.

    A capacidade de feitio dos iniwa est ativamente associada aos espritos ku-rimia: os xams Suruwaha agem em associao com eles para realizar o ata-que contra suas vtimas13. Porm, a lin-guagem da feitiaria uma linguagem de corporalidade: ela se desenvolve atravs do corpo do agressor e proje-tada sobre os corpos das vtimas.

    [Os feitios de Atybanawi e Atykawyry] Atybanawi pertencia ao povo dos Wahadawa. Os Waha-dawa eram pequenos, s Atybana-wi destacava pela sua estatura; por isso, ele era desprezado pelo seu povo. Decidiu ir embora e icar com sua mulher na casa dos Zama-dawa. Os Zamadawa vestiam rou-pas e sua fala era estranha, mas eles no eram Jara. Atybanawi saiu um dia para buscar veneno kaiximia-ni na mata. Enquanto subia numa rvore prxima ao cip, chegaram os Jakimiadi e assopraram nele um p parecido com a cinza do cupu. Atybanawi sentiu sono, dormiu e foi amarrado com uma embira e carregado pelos Jakimiadi. Na sua casa, os Jakimiadi queimaram seu cabelo e abriram seu ventre, mas Atybanawi ainda no morreu. Prepararam uma grande panela. Atybanawi se contorceu, sangrou e morreu cozinhado nas mos dos Jakimiadi.

    Antes destes acontecimentos, Aty-banawi tinha sido o primeiro a chegar casa dos Jukihidawa. Sua esposa o acompanhou, junto com Jakiwaki, Kimi e Xari. Levavam para eles faces e machados. Subi-ram o igarap Jukihi e chegaram

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    Xamanismo Suruwaha e transformaes

    maloca. No entardecer, chegou casa Atykawyry, um jukihidawa que tinha passado o dia caando, junto com um kurubidawa chamado Jari-kia. Acendeu um feixe de palhas se-cas de carana para iluminar e ver o rosto da esposa de Atybanawi, que estava menstruada nesses dias14. Atykawyry icou com raiva dos vi-sitantes e, com a ponta da faca, cor-tou o peito de Atybanawi.

    noite, os Zamadawa cantaram no centro da maloca, Atybanawi diri-gia o canto. Entre os Jukihidawa, somente Iruhwai se uniu aos can-tores. Cantaram at o amanhecer, ento os Jukihidawa pediram que acabassem com os cantos e fossem embora. Os xams jogaram feitio neles, os Zamadawa saram ento cedo, de manh. Desceram o iga-rap Jukihi e subiram o Riozinho nas suas canoas. Porm, Atykawyry decidiu segui-los. Naquele dia Aty-banawi comeou a sentir uma for-te diarreia, devida ao feitio dos Jukihidawa. Cada vez que defecava, suas fezes se transformavam numa ona-pintada que perseguia Atyka-wyry. As onas atacavam Atyka-wyry, at que conseguiram mat-lo. Antes de morrer, Atykawyry pegou o feitio dos espritos das frutas, e se transformou num Jakimiadi, assoprando seu feitio. Por causa desse feitio, os Jakimiadi matariam e comeriam depois Atybanawi. O povo dos Zamadawa icou com medo, foram embora em direo ao leste. Chegaram ao horizonte, onde a terra se encontra com o cu (Axa, casa de Dihiji, 25/04/1998).

    [Myzawai e Byso]15 Myzawai icou furioso por causa dos maus tratos que seu pai, Kixu, recebia de Byso. Ele era jovem. Disse com

    raiva: Byso nojento. Pegou ta-baco e inalou, pegou tambm uma brasa e saiu pelo caminho para pre-parar o feitio; no mato ele prepa-rou o feitio. O feitio de Myzawai no era como um caroo de fruta, Myzawai o sugava do seu prprio corpo, produzia o caroo do feiti-o da sua prpria carne (ymy). Ele disse: este feitio para Byso. Jo-gou feitio em Byso como se joga uma peteca com os dedos. Byso sentiu uma dor parecida causada por uma picada de vespa e se quei-xou: shshsh. Comeou a vomitar sangue, sentiu dores no peito, dei-tou na rede e continuou vomitando muito sangue. As pessoas se sur-preenderam: O que foi que acon-teceu? Muzawai permanecia cala-do (zamunda). Byso morreu e foi enterrado (Ania, casa de Kabuha, 30/10/2010).

    [Ixikuna] Ixikuna era jukihida-wa, ele tinha ido buscar macaxeira e caju junto com sua esposa e sua i-lha. Abaixo da foz do igarap Wan-tanaha, no igarap Jukihi, foi bater timb para pegar peixe. Os Jakimia-di escutaram as batidas de Ixikuna nas razes de timb tou, tou, tou. Ixikuna percebeu que os Jakimiadi estavam aproximando-se, e gritou chamando a sua mulher: Os Jaki-miadi esto chegando!. Disparou as suas lechas, mas no conseguiu matar os Jakimiadi. Cortou o pei-to de um deles com o faco, saiu muito sangue, mas o Jakimiadi no morreu, ele era muito forte. Ixikuna ento mostrou o feitio de morte que havia em suas mos: Olhem, estou cheio de feitio em minhas mos, eu no quero matar-vos, melhor que vo embora!. Os Jaki-miadi escutavam a Ixikuna, ele in-

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    Aparicio, M.

    sistia: Olhem minhas mos, esto cheias de feitio, vo embora!. Os Jakimiadi no mataram Ixikuna, que foi embora com sua mulher e sua ilha (Ikiji, casa de Kabuha, 29/10/2010).

    A igura liminar e ambgua do xam Suruwaha opera de maneira disruptiva atravs do enfeitiamento, denuncian-do a proximidade como um perigo, e produzindo a diferena (Vanzolini 2010:51). O feitio incide sobre diver-sos nveis de socialidade: no interior do grupo, nas relaes intergrupais dos di-versos coletivos dawa, e na poltica ex-terna. Nas relaes entre os humanos jadawa, tem-se a impresso de que a feitiaria age para desomogeneizar o prprio grupo, airmando a impossibi-lidade de um estado de identidade ple-na. Nas relaes intergrupais entre os diversos dawa , as alianas e disputas so desenvolvidas segundo as chaves prprias do idioma da feitiaria.

    A ritualidade adquire um papel crucial como cenrio destas relaes entre os dawa, pois estabelece um jogo de os-cilao entre cdigos de hostilidade e cordialidade (Sztutman 2003), pro-piciando a proximidade dos corpos, mas alterando a convivncia em uma consubstancialidade e comensalidade perigosas a partilha de cantos, tabaco e alimentos pode esconder a transmis-so do mazaru, como mostram diversas narrativas. Da condensao incentiva-da pelo ritual sucede a disperso: para neutralizar o risco de irrupo de feiti-aria, os coletivos se dispersam assim como, entre os Suruwaha contempor-neos, a tendncia de co-residncia de todos em uma s casa se perde com

    a irrupo das mortes por envenena-mento. Um tempo de disperso pacii-ca a rede de diferentes que reintentam a unio domstica. A convivialidade, assim como o ritual, realmente emer-ge como tentativa arrebatada, fada-da ao fracasso (Lvi-Strauss [1971] 2011:651).

    A feitiaria, como sociocosmologia de construo de fronteiras, projetada contra os inimigos como guerra. ver-dade que os limites entre feitiaria in-terna e externa no so totalmente n-tidos, porm, h um acento do carter guerreiro do xamanismo nas situaes de conlito com os waduna, como mani-festam os episdios dos xams masani-dawa nos enfrentamentos trgicos com os Abamadi e os Jara16.

    A ambiguidade persiste, pois a condi-o de inimigo coexiste com a posio de aliana. Neste sentido, se o xama-nismo age como diplomacia csmi-ca, postula-se para ele uma espcie de diplomacia poltica: no convm extra-polar a feitiaria nas relaes com os estrangeiros, como indicou o xam Ari ao mais jovem xam Myzawai, masani-dawa que organizou a guerra contra a frente extrativista17. A exacerbao da feitiaria pode produzir o risco da ven-detta permanente.

    H ainda uma percepo dos xams como protetores do povo frente ao pe-rigo estrangeiro:

    Os Masanidawa vieram, chegaram e viram os Jara. Eles chegaram ao entardecer, viram os Jara e per-maneceram sem dormir. Os Jara olhavam as suas mulheres e diziam: Vamos com-las, vamos mat-las. O xam masanidawa disse: Eu sou

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    Xamanismo Suruwaha e transformaes

    xam pegou seu feitio e o mos-trou aos Jara. Se vocs me come-rem, vo engolir o meu feitio, vo sentir muitas dores e vo se acabar. No dormiam. Porm, o xam ma-sanidawa pegou o sono, espalhou o sono e as pessoas dormiram. O xam confundiu as pessoas, saiu, dormiu l adiante no meio do ca-minho. Quando os Jara acordaram, os Masanidawa j tinham ido em-bora18.

    Esta condio protetora dos xams aparece em outras narrativas, como a do xam dos Amaxidawa, quando estes foram atacados pelos estrangeiros Jaki-miadi, descritos como canibais e jagy caadores de pessoas. Em sentido se-melhante, os Paumari, habitantes como os Suruwaha do vale do rio Cuniu, falam dos Jobiri: xams-guerreiros pro-tetores dos Paumari frente aos ataques dos brancos (Bonilla 2007).

    De modo geral, a hostilidade aparece como determinante na conigurao da rede relacional Suruwaha e nela a feitiaria se instala como ao conec-tada a diversas agncias, o que a faz transitar entre o sociolgico e o cos-molgico. Algumas pistas etnogricas tais como a transformao da ao xamnica Suruwaha, conectando a fei-tiaria com a prtica atualmente con-solidada de morte por envenenamento com timb (Aparicio 2014) parecem apontar na direo de uma tendncia dos coletivos Suruwaha (e, possivel-mente, dos Arawa do modo geral), ao perigo da proximidade e endoviolncia (Santos-Granero 2002)19, mesmo con-siderando que o esforo na construo da socialidade domstica constante, porm, precrio.

    Em outros contextos prximos ao cenrio Suruwaha, a intensiicao da feitiaria interna gerou processos transformacionais signiicativos na so-ciocosmologia e na posio outorgada ao xamanismo, como possvel obser-var, por exemplo, nos Jamamadi20 e nos Kulina21.

    O xam revela uma condio de su-jeito fraturado, na interseo entre as posies jadawa e jadawasu (humana e no humana ou ainda desumana): realizador de uma arte poltica capaz de tomar a perspectiva de outros sujeitos, confusa e perigosa para os humanos, mas acessvel ao conhecimento xam-nico, que traduz os eventos em aes (Viveiros de Castro 2002:357) protago-nizadas pelos no-humanos: espritos das plantas, espritos-cantores, zamaku-sa... Com a sua capacidade de vivenciar deslocamentos radicais, pela feitiaria ele assume uma posio de matador, ou seja, traslada-se ao ponto de vis-ta inimigo. Feitio e morte emergem, entre os Suruwaha, como mbitos de incidncia das transformaes xam-nicas.

    notas

    1 Os Suruwaha habitam nas terras irmes margem do rio Cuniu, subaluente do rio Purus, no Amazonas. Esto situados no corredor Arawa, ao longo do inter-lvio Juru-Purus, junto com a maior parte dos coletivos indgenas da fam-lia lingustica Arawa: os Deni, Paumari, Kamadeni, Banawa, Jarawara, Jamamadi e os isolados Hi Merim. Sua populao de aproximadamente 140 pessoas, que vivem na Terra Indgena Zuruaha, atu-almente sob proteo especial da Coor-

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    Aparicio, M.

    denao de ndios Isolados e de Recente Contato da FUNAI.2 No sentido multinaturalista apontado por Viveiros de Castro (1996, 2010), inspirado em William James.3 Narrativas atuais falam da morte de Su-ruwaha, liderana de um coletivo desapa-recido, como consequncia do feitio de Myzawai.4 Wihu era xam e transou com a ilha de Nutu. Nutu tambm era xam, este icou com muita raiva de Wihu por ele ter transa-do com sua ilha e botou feitio nele, disse que ia cair uma fruta perto dele e isso traria a sua morte. Wihu morreu com a idade de Xamtiria hoje, aproximadamente 56 anos. A morte dele aconteceu como Nutu havia falado, num casinha de acampamento dos Suruwaha, onde hoje a casa de Jadabu, s que na poca no havia roados ali. Wihu estava sentado no mato e caiu a fruta, do seu lado, morrendo em seguida (Xuburi, roado de Aijanima, 1994 citado por Fank & Porta 2006:273).5 Outras etnograias mostram o efeito atri-budo ao tabaco como produtor de bem--estar, vitalidade e fora, como entre os Jot da Guiana (Zent 2008).6 Kahu e o espao ocupado por uma rede na casa e corresponde rea domstica utili-zada por cada pessoa.7 A condio perigosa do tabaco aparece em diversos grupos da Amaznia. Entre os Matss, somente os xams podem ver o tabaco sem correr risco de morte ou de perda da viso. O nome dos especialistas xamnicos matss nunu chokit, inalador de tabaco rome~ya (com tabaco) entre os Marubo (Erikson 1999:260).8 Chama a ateno para a proximidade com os Jarawara; para estes, o brilho pa-rece ser sinnimo de feitio: em um mito, um bicho yama maka persegue um heri e, para enfatizar que o bicho era forte e

    poderoso, ou seja, cheio de feitio, o narra-dor diz que o corpo dele brilhava (Maizza 2012:78)9 O que deine propriamente os espritos na concepo Suruwaha no , a rigor, a sua condio espiritual, mas a sua condio heterotpica: eles se diferenciam dos hu-manos principalmente porque seu lugar constitutivamente outro, no tanto porque a sua natureza diferente. A heterotopia destes sujeitos do multiverso o trao que os diferencia dos jadawa, habitantes do es-pao humanizado.10 Sobre o dualismo concntrico jadawa/waduna como sistema de multiplicao das diferenas, e sobre a dinmica da rede de coletivos dawa que derivaram nos atuais Su-ruwaha, consultar Aparicio (2013).11 As expresses mais comuns que encon-trei so mazaru ihiari (dar feitio), maza-ru gamukwahari (lanar feitio), mazaru karukubari (atirar feitio karukubari expressa a ao de disparar setas com a za-rabatana). 12 Sobre o dori nos Kulina, consultar Pollo-ck (1985), Rangel (1994) nos Jamamadi ocidentais. Sobre as pedras ijori nos Pauma-ri, conferir Bonilla (2007). Sobre o arabani nos Jarawara, pesquisar Maizza (2012). 13 Bonilla (2007) faz referncia ao concur-so dos espritos auxiliares itavari nas aes xamnicas entre os Paumari. Em sentido anlogo, Maizza (2012) fala dos inamati como espritos auxiliares dos xams jarawa-ra. Entre os Jarawara, o termo arabani pode designar tanto o feitio quanto as pedras xamnicas ou os espritos auxiliares do xam. Para os Deni do Cuniu, arabani o nome em portugus com o qual tradu-zem o termo katuhe, pedra-feitio (Florido 2013). Para os Paumari, a expresso arabani designa o xam.14 O fato de um homem olhar para uma mulher menstruada considerado perni-

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    Xamanismo Suruwaha e transformaes

    cioso, nocivo: o sangue menstrual das mu-lheres provoca nos homens o amari kuwini, um mal que pode levar inclusive morte.15 Sobre os conlitos de feitiaria entre os Katukina (liderados por Byso) e os Ma-sanidawa (entre os quais Myzawai era um xam forte, iniwa hixa), consultar Aparicio (2014). 16 As narrativas Suruwaha identiicam os Abamadi e os Jara como principais agentes dos massacres que atingiram os Masani-dawa, os Sarukwadawa e outros coletivos dawa.17 Transcrevo as palavras de um relato de Ania sobre as relaes entre o xam Myza-wai e os Katukina do igarap Coat: Ari disse a Myzawai: Cuidado! Quando os estrangeiros descobrirem que voc matou algum deles, um dia eles ainda te mataro!. Mas Myzawai pensou: So simples Jara!. Muitos anos depois, um estrangeiro de fato mataria Myzawai.18 Traduo minha a partir da gravao do relato de Uhuzai em 1994, transcrita em Fank & Porta (1996). 19 Santos-Granero usa a expresso endowar-fare, deinida como war against peoples speaking ones own or related language, people who share ones own ethos, e a considera como uma caracterstica repu-diada de forma implcita ou explcita pelos Arawak. Talvez seja plausvel pensar num contraste neste sentido entre o ethos ara-wak, tal como pensado pelo autor, e o ethos arawa, no qual estariam inscritos os Suruwaha, entre outros. 20 Pode-se dizer que h uma transfern-cia de poder dos zopinehe para os homens comuns, na medida em que aqueles, por possurem poderes equivalentes, neces-sitam da violncia humana para concre-tizar a sua vingana. Evidencia-se, assim, a funo essencial do zopinehe que a de acusar; ele aponta a vtima e a comunidade

    uniica-se contra ela. Desse modo os ho-mens adquirem um poder excessivo, pois suas aes tornam vulnerveis os entes sagrados [...]. O modelo convencionado pelos Jamamadi contm um paradoxo fun-damental, qual seja, o de que devem aceitar a eliminao do seu zopinehe quando este acusado, correndo o risco de perder sua fonte de acusao. Explica-se, portanto, a necessidade de tornar clandestinas a exis-tncia e as atividades do zopinehe (Rangel 1994:191-192).21 No cenrio kulina, a exacerbao da fei-tiaria promoveu a prtica do homicdio dos xams, que se mantm at a atualidade. Transcrevo o relato do dirio de campo de Genoveva Amorim, que narra a morte do xam S. em uma aldeia kulina na dcada de 1990:

    S. saiu para pescar de manh. tarde, ele no voltou para casa. As pessoas estavam preocupadas e comeou a circular o comentrio de que algum tinha ouvido o grito de S. na vrzea, um grito horrvel, como se estivesse morrendo. Depois a his-tria foi tomando corpo e disseram que M. o tinha matado. Segundo os Madiha, M. tinha matado S. para vingar-se da morte da sua irm J., uma mulher jovem que estava grvida e que morreu durante o parto. Quando as pessoas souberam que J. tinha falecido, comearam a dizer que tinha sido por causa do feitio, e que o feitio era do xam S. Alguns Madiha o defendiam dizendo que S. j era idoso, que ele tinha curado o feitio de muitas crianas, que ele no teria nenhum motivo para provocar a morte de J, Mais tarde a famlia de J. chorou a morte dela, parecia que tudo estava tranquilo.

    noite alguns homens tinham sado para bus-car S., mas retornaram sem conseguir encontr-lo. R., irm de S., comeou a chorar. A lua brilha-va na aldeia, que preparava o ritual do rami. De repente o cu icou coberto de nuvens e se formou um temporal. Para os Madiha, era sina de que tinha morrido um xam forte. No dia seguinte, de manh, os homens se prepararam para buscar

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    Aparicio, M.

    S. Depois de algumas horas, voltaram com o seu cadver. Havia um clima muito tenso na aldeia. O corpo de S. estava numa canoa. Os homens comentavam os fatos. Tinham encontrado o corpo num matagal prximo no lugar onde ele costumava pescar. R. e B. mostravam as marcas dos golpes na cabea e nos braos, S. tinha sido morto a paula-das. Tambm tinham cortado a orelha com uma faca. Todos acreditavam que tinha sido morto por M. M. permanecia na sua casa, confeccionando um arco. Choveu o dia inteiro, os homens tiveram diiculdade para cavar o tmulo de S. Durante o dia, ningum saiu da aldeia. noite, os coment-rios reletiam uma sensao de medo dos espritos tokorimie. As pessoas acenderam as fogueiras, para que no faltasse fogo durante a noite.

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    Recebido em 06/03/2014

    Aprovado em 11/08/2014