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A materialidade do texto-imagem na narrativa fílmica: interface com a literatura Bento Matias Inicialmente convém esclarecer que o nosso conceito de materialidade vai além da matéria. Poderíamos argumentar sobre isso a partir de diversas posturas teóricas, utilizaremos aqui o pensamento de Paul Laurentiz: A matéria é a preocupação mecânica com o suporte material, ao passo que a materialidade abrange o potencial expressivo e a carga informacional destes suportes, englobando também a extramaterialidade dos meios de informação. (LAURENTIZ, 1991, p. 102) Usualmente, a matéria a materialização da imagem estão ligadas a uma análise que vislumbra sua percepção dentro de uma forma semelhante ao do signo linguístico, valorizando a referência, a mimese e a arbitrariedade. Contudo essa percepção merece estar calcada em meios mais específicos de caracterização, como cor, sombra, profundidade e velocidade, onde se buscam leituras mais afinadas na sua definição. Ferdinand de Saussure 1 na sua visão semiológico-científica entende o significante, em qualquer parâmetro, voltado para a sua condição de substrato do signo. O signo lingüístico, composto por significante e significado, bem como o seu caráter de arbitrariedade, estará na base da análise de todo e qualquer elemento de significação. Na literatura o envolvimento daquele que interpreta com o significante implica a aceitação automática do significado como a outra face do signo que se lê. O interpretante e a atmosfera que o envolve é condição fundamental na circulação dos sentidos. Essa subjetividade no estabelecimento dos sentidos faz com que a leitura seja individualmente única, proporcionando sensações e conceituações específicas do sujeito. Se entendermos a imagem ícone, como propõe Peirce 2 - como objeto imaginário proveniente das condições idiossincráticas do sujeito e não como uma realidade física, a sua interpretação, grosso modo, assemelhar-se-ia a da escrita. O grande problema na aceitação dessas circunstâncias na leitura de um filme são as algemas da formalização que prendem o significado e apagam a historicidade do sentido. Assim, é importante que se quebre o mecanismo analítico que opera com uma 1 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral, 2000 p. 15-25 2 PEIRCE, C. Semiótica, 1999

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  • A materialidade do texto-imagem na narrativa flmica: interface com a literatura

    Bento Matias

    Inicialmente convm esclarecer que o nosso conceito de materialidade vai alm

    da matria. Poderamos argumentar sobre isso a partir de diversas posturas tericas,

    utilizaremos aqui o pensamento de Paul Laurentiz:

    A matria a preocupao mecnica com o suporte material, ao passo que a materialidade abrange o potencial expressivo e a carga informacional destes suportes, englobando tambm a extramaterialidade dos meios de informao. (LAURENTIZ, 1991, p. 102)

    Usualmente, a matria a materializao da imagem esto ligadas a uma anlise

    que vislumbra sua percepo dentro de uma forma semelhante ao do signo lingustico,

    valorizando a referncia, a mimese e a arbitrariedade. Contudo essa percepo

    merece estar calcada em meios mais especficos de caracterizao, como cor, sombra,

    profundidade e velocidade, onde se buscam leituras mais afinadas na sua definio.

    Ferdinand de Saussure1 na sua viso semiolgico-cientfica entende o significante, em

    qualquer parmetro, voltado para a sua condio de substrato do signo. O signo

    lingstico, composto por significante e significado, bem como o seu carter de

    arbitrariedade, estar na base da anlise de todo e qualquer elemento de significao.

    Na literatura o envolvimento daquele que interpreta com o significante implica a

    aceitao automtica do significado como a outra face do signo que se l. O

    interpretante e a atmosfera que o envolve condio fundamental na circulao dos

    sentidos. Essa subjetividade no estabelecimento dos sentidos faz com que a leitura

    seja individualmente nica, proporcionando sensaes e conceituaes especficas do

    sujeito. Se entendermos a imagem cone, como prope Peirce2 - como objeto

    imaginrio proveniente das condies idiossincrticas do sujeito e no como uma

    realidade fsica, a sua interpretao, grosso modo, assemelhar-se-ia a da escrita. O

    grande problema na aceitao dessas circunstncias na leitura de um filme so as

    algemas da formalizao que prendem o significado e apagam a historicidade do

    sentido. Assim, importante que se quebre o mecanismo analtico que opera com uma

    1 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingustica Geral, 2000 p. 15-25

    2 PEIRCE, C. Semitica, 1999

  • referncia pr-estabelecida, fundando no processo de significao o pressuposto em si,

    desvinculando do cone, por exemplo, a interpretao pelas regras convencionais, sem

    se abster da articulao do simblico e do ideolgico.

    Como estabelecer ento uma materialidade textual para o cinema no prisma da

    interpretao? Em princpio, a desconstruo do acesso s nuances da imagem

    centrado no signo a proposta, que tem como intento maior a expresso visual. As

    especificidades icnicas, como cor, tamanho, deslocamento, tridimensionalidade ou

    perspectiva, circunscrevem o texto cinematogrfico como unidades visuais associadas

    mantenedoras de personalidades prprias. Enquanto texto visual o material flmico

    guarda em si traos dos planos de expresso que compuseram a sua estrutura

    produtiva, como os elementos expressivos dos ngulos de cmera escolhidos pelo

    cineasta, os tipos de montagem e iconografia ou os enquadramentos e as edies com

    intenes narrativas. Temos a um norte para chegarmos a uma possvel lgica da

    interpretao cinematogrfica e da materializao de sua identidade enquanto texto.

    Ou seja, a assimilao e o reconhecimento pelo espectador da estrutura produtiva do

    filme, com todos os seus elementos citados acima que vo gerar sentidos. O texto

    icnico cinematogrfico, por conseqncia, um todo composto de inmeros registros,

    que ao iluminar a grande tela, torna-se nico.

    As ponderaes sobre o texto cinematogrfico e suas relaes com a lingstica

    e a literatura amplo e deparamos constantemente com idias como: a dupla

    articulao do cinema, o correlato flmico do fonema ou a sintaxe combinatria das

    sequncias. O fato que o filme entra na grande rea da linguagem e pode ser

    considerado como texto porque expressa, significa, comunica, e o faz com meios que

    satisfazem essas intenes. E se o filme texto, sua classificao normal entre os

    textos, depois de mais de cem anos de histria, entre os textos narrativos. A maioria

    dos estudos que contemplam a relao literatura-cinema o faz na interface

    romance/filme. O romance e o filme, com suas linguagens especficas, constituem

    duas variantes da macroestrutura narrativa. Essas duas variantes materializam-se na

    superfcie de uma estrutura bsica compartilhada, mimetismo profundo, em direta

    relao com a capacidade narrativa do ser humano, que constitui o espao da

    narratividade, paralelo a outros dois espaos clssicos da mesma srie, o da

  • poeticidade e o da teatralidade, sem deixar de perceber e chamar a ateno para o

    entrelaamento de seus viadutos e pontes, abaixo do cu comum da ficcionalidade.

    So perfeitamente observveis no modo de narrar do romance e do filme os aspectos

    estruturais que comungam dos mesmos ideais na elaborao e na materializao

    desses dois produtos, como acontece na estruturao do tempo no romance Os ratos3,

    de Dyonlio Machado, em confronto com o filme Amarelo manga4, dirigido por Cludio

    Assis.

    Em Os ratos a materialidade se converge para a angstia do tempo, pois

    Naziazeno, que acorda muito cedo, tem vinte e quatro horas para resolver seu grande

    desespero que pagar a conta do leiteiro e continuar com o fornecimento do leite para

    o seu filho. Aparentemente simples, a discusso do tempo ganha complexidade no

    decorrer do romance. Dyonlio Machado com maestria vai esfolando toda a ferida

    social, na qual a personagem est imersa, exacerbando a angstia universal do ser

    humano merc do tempo e do dinheiro. O filme Amarelo manga comea com a

    personagem Lgia acordando muito cedo, o que nos apresentado atravs de uma

    cmera area sobre o quarto para em seguida passear pelo ambiente, causando-nos

    uma sensao de aprisionamento, em seguida vem a fala: Primeiro vem o dia, tudo

    acontece naquele dia [...] mas logo depois vem o dia outra vez e vai, e vai, e vai e

    sem parar. Todo o filme se desenrola no passar de um dia, onde as frustraes e as

    angstias existencialistas e sociais so magnificamente exploradas por Assis, tendo o

    tempo como aspecto determinante na narrativa, quando se materializa enquanto

    instante.

    Ao falar da beleza do instante no cinema, que diferenciado do instante da

    leitura de uma obra literria, Leo Charney, no ensaio Num instante: o cinema e a

    filosofia da modernidade, explicita toda a beleza dessa materialidade instantnea:

    Essa nfase na sensao momentnea, que comeou na crtica esttica de Pater, foi mais plenamente desenvolvida pelos dois crticos emblemticos da modernidade, Walter Benjamin e Martin Heidegger, que associaram o momentneo experincia da viso. No instante da viso nada pode ocorrer, escreveu Heidegger em Ser e tempo, cujas aspas em instante da viso visam ressaltar a impossibilidade de viver, de estar em um instante de viso. Nada pode ocorrer no instante da viso porque ele sempre nos escapa, na frase de

    3 MACHADO, Dyonlio. Os ratos. Planeta do Brasil, 2004

    4 Amarelo manga. Direo de Cladio Assis. Brasil. 103 min., 2002

  • Heidegger, antes que possamos reconhec-lo. Podemos reconhecer a ocorrncia do instante somente depois do instante em que ele pareceu ocorrer. A cognio do instante e a sua sensao nunca podem habitar o mesmo instante. (CHARNEY, 2004, p. 319)

    As distintas ocorrncias dos instantes na literatura e no cinema no criam muros

    entre eles que impeam o receptor de compreender os textos e perceber as suas

    qualidades numa possvel interface ou numa adaptao. A cognio do instante e os

    fluidos sensacionistas, que acontecem em momentos diferenciados, vo aflorar de

    acordo com a individualidade subjetiva, na busca dos sentidos dos signos ou das

    imagens. Desse modo, a mesma histria pode ser materializada por intermdio do

    texto literrio ou do filme, ou ainda pela adaptao do signo imagem, como no caso

    da transposio da literatura para o cinema.

    A alteridade da literatura e do cinema se estabelece no momento em que so

    produtos artsticos distintos, as suas convergncias e divergncias passam por

    diversos fatores e condies de elaborao, produo de sentidos e inteleco. A

    relao entre as duas clara, seja na narrativa ou no solo da imaginao. A

    aproximao se estabelece de maneira to efetiva que no mais somente o texto

    literrio que adaptado e absorvido pela sinergia do cinema, as tcnicas da criao

    cinematogrfica se concretizam em luzes autnomas e a literatura se rende e as

    absorve, materializando narrativas sgnicas a partir da beleza do movimento constante

    das imagens.

    Referncias

    Amarelo manga. Direo de Cladio Assis, Brasil, 103 min., 2002.

    CHARNEY, Leo. Num instante: o cinema e a filosofia da modernidade, In: CHARNEY,

    Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. (org.) O cinema e a inveno da vida moderna, So

    Paulo: Cosac & Naify, 2004.

    LAURENTIZ, Paulo. A holarquia do pensamento artstico, Campinas: Edunicamp.

    MACHADO, Dyonelio. Os ratos, So Paulo: Planeta do Brasil, 2004.

    PEIRCE, C. Semitica, Rio de Janeiro: Perspectiva, 1999.

    SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingustica geral, So Paulo: Editora Cultrix,

    2000.