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AMABILIA BEATRIZ PORTELA ARENHART COLCHA DE RETALHOS – A COSTURA DE PROJETOS DE VIDA NO COLETIVO DA ECOS DO VERDE Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas. Linha de Pesquisa: Identidades e Sociabilidades. Orientador: Dr José Ivo Follmann São Leopoldo 2006

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AMABILIA BEATRIZ PORTELA ARENHART

COLCHA DE RETALHOS A COSTURA DE PROJETOS DE VIDA NO COLETIVO DA ECOS DO VERDE

Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de mestre.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais Aplicadas.

Linha de Pesquisa: Identidades e Sociabilidades.

Orientador: Dr Jos Ivo Follmann

So Leopoldo

2006

Livros Grtis

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AGRADECIMENTOS

Ao Livio, meu namorado e companheiro desde 22 de fevereiro de 1984. Amor,

obrigada pelas prosas, pelas flores roubadas, pelo afago, pelo riso! Obrigada

especialmente por ter caminhado lado a lado comigo na empreitada do

mestrado.

Tas e ao Jlio, filha e filho amados, por terem sabido esperar a minha volta,

por terem compreendido as minhas ausncias, por terem reivindicado a minha

presena.

Ao professor Jos Ivo Follmann, pela ateno, compreenso e presena,

mesmo na ausncia. Professor, quando pequena, ouvia meus pais dizerem

que um doutor no precisa mostrar-se constantemente e dizer para todo

mundo quais so os seus dotes. Ele sabe se achegar s pessoas. Ao contrrio

daqueles que sabem pouco e alardeiam os seus grandes conhecimentos.

Doutor Jos Ivo Follmann, voc sempre me faz recordar esse aprendizado que

meus pais me deixaram.

Aos colegas, companheiros de caminhada no mestrado: obrigada pela fora e

pela presena! Luciane Toss Weber, um beijo muito especial pela insistncia.

Valeu amiga!

Professora Sonia Mercedes Lenhard Bredemeier, uma Mestra aquela que

consegue ajudar a despertar no aprendente o desejo pelo saber. Voc uma

Mestra sbia. Obrigada.

Aos catadores de materiais reciclveis da Associao Ecos do Verde, pela

solidariedade para com esta pesquisadora, uma vez que, com muita solicitude,

atenderam ao convite e participaram desta pesquisa. Continuem catando

esperana e construindo esse projeto de vocs! Muito obrigada!

AGRADECIMENTO ESPECIAL

A minha me Edith a Tita , mulher pobre e muito corajosa. Instalou em

meu projeto de vida o desejo pelas letras, pela leitura, pela escrita. Dizia sempre

que nada tinha para deixar aos filhos como herana seno os estudos. E

completava: quando terminares o ginsio, vais trabalhar de dia e estudar de

noite, para ser algum na vida. Na sua simplicidade, no se dava conta de que

ns j ramos algum na vida; j tnhamos recebido nossos traos, nossas

marcas; j ramos os filhos da Tita. Contadora de histrias, envolvia-nos com

enredos sempre iguais e sempre diferentes. Para acalmar a fome e fazer o sono

tomar conta de nossos corpos, s vezes enfraquecidos pela espera das

compras que o pai iria trazer. Era difcil para um trabalhador assalariado

sustentar seus seis filhos, pagar aluguel e outras despesas. O fiado era a

chance que tnhamos, quando ele conseguia convencer o dono do armazm.

Caso contrrio, voltava muito, muito tarde, para driblar os olhares dos

pequeninos...

Mas conseguimos aprender a caminhar... E voc Tita, instalou em ns o

desejo e nos fez acreditar na promessa de que um dia ns iramos conseguir.

Suas histrias serviram de alicerce, pois sempre apontavam para algum lugar l

adiante...

Estou convencido de que o mundo contemporneo

necessita de uma sociologia da escuta. No um

conhecimento frio, que pra no nvel das faculdades

racionais, mas de um conhecimento que considera os

outros como sujeitos. No um conhecimento que cria

distncia, uma separao entre observador e observado,

mas um conhecimento capaz de ouvir, isto , um

conhecimento que consegue reconhecer as necessidades,

as perguntas, as interrogaes de quem observa, mas

tambm capaz de, ao mesmo tempo, colocar-se

verdadeiramente em contato com os outros (ALBERTO

MELUCCI, em maio de 2000, em Yokohama, no Japo, in:

IHU On-Line, So Leopoldo, 11 de agosto de 2003).

RESUMO

Esta pesquisa prope uma reflexo sobre o ser humano como ser de projeto que se estrutura, social e psiquicamente, tambm nas relaes de trabalho. Os grupos de pertencimento, entre eles os de trabalho, constituem redes necessrias para que o sujeito possa, entrelaado pelos seus vnculos familiares, comunitrios e sociais, constituir seu projeto de vida e sua identidade. A tcnica utilizada para a pesquisa foi Histrias de Vida Temticas e os sujeitos pesquisados foram catadores de materiais reciclveis que, organizados em uma associao, construram um projeto coletivo que possibilitou uma re-avaliao e o fortalecimento de seus projetos pessoais. Esse projeto coletivo, chamado Ecos do Verde, constituiu-se em uma identidade coletiva que tem valorizado o catador associado como um trabalhador importante na complexa teia do meio ambiente preservado, construindo-se como sujeito que trabalha e tem seu lugar na sociedade contempornea, que tudo descarta.

Este estudo utilizou-se da metfora da colcha de retalhos para pensar a constituio da identidade do sujeito catador. Cada retalho costurado colcha representa os fragmentos vividos, nos diferentes grupos de pertencimento e nos diferentes momentos da vida do ser humano. Cada fragmento insubstituvel para compor a histria e a identidade de um sujeito. E, somente quando os retalhos vo sendo costurados, que o pano vai se constituindo enquanto colcha. Assim o catador. Ele refora as laadas da linha, costura os retalhos da vida, enlaa os fragmentos de sua prpria histria, costurando sua histria nas histrias de outros, e vai compondo sua colcha de retalhos. Esse sujeito, ao mesmo tempo que re-siginifica o lixo em objeto de valor, resignifica o seu projeto de vida e se torna trabalhador. De tudo isso, est surgindo a identidade mediada pela Ecos do Verde: sujeito trabalhador, catador digno, reciclador da dor e da misria. Missioneiro valente e corajoso, herdeiro das terras de Sep!

Palavras chave: sujeito catador projeto coletivo grupo vnculos identidade

ABSTRACT

This research aims to reflect about the human being as a project being who is being structured, socially and psychically , also in the work relations. The groups to which a person belongs to, among them working groups, always intertwined with family, community and social ties, constitute the necessary links to constitute his life and identity project.. The technique used for this research was Stories of Thematic Lives and the people studied were recycling material collectors . They are organized in an association and founded a collective project which has enabled a re-evaluation and the strengthening of their personal projects. This collective project, called Echos of the Green, constitutes a collective identity which has given value to the associated collector as an important worker in the complex web of the environmental preservation, considering him someone who works and has his place in the contemporary society which throws out almost everything. This study used the patchwork metaphor to create the identity constitution of the garbage collector. Each patch sewed to the patchwork represents the fragments gone through by individuals in the different groups and in the different moments of life . Each fragment is irreplaceable in order to form the story and the identity of a subject.. And only when the patches are being sewed together the fabric becomes a bedspread. Thats the way the garbage collector exists. He strengthens the threads, sews the patches of his life, entangles the fragments of his own life, sewing his into the life of others, thus making up his own patchwork. This worker, while turning garbage into an object of value, rethinks his project of life and becomes a worker. From all this surges the identity mediated by Echos of the Green :a hard worker, a worthy collector, a recycler of pain and misery. A courageous and brave missionary (missisoneiro), inheritor of the land of Sep! Key-words: garbage collector - collective project group links identity

SUMRI0

INTRODUO.....................................................................................................09 1 RAZES DA TERRA PRIMEIRAS HISTRIAS.............................................25 1.1 Santo ngelo Capital das Misses ........................................................... 31 1.2 Projeto Coletivo Ecos do Verde: Outras Histrias e Novas Costuras...........34 1.3 Lixo Resignificado e Reciclado ....................................................................41 1.4 Catadores de Materiais Reciclveis: Quem So Esses Sujeitos? ................45 2 O TRABALHO NA ERA DA INDUSTRIALIZAO ........................................52 2.1 Trabalho: O Po Nosso de Cada Dia ...........................................................56 2.2 O Trabalho e o Capital .................................................................................59 2.3 O Trabalho na Era do Descartvel: A Vida do Sujeito Contemporneo .......62 2.4 O Desemprego Como Mutilador de Relaes .............................................67 2.5 Precarizao Vnculos: Os Laos se Desenlaam ......................................71 3 SER HUMANO COMO SER DE PROJETO ....................................................75 3.1Grupo como Ancoradouro ............................................................................84 3.3 Vnculos: as Costuras Necessrias .............................................................90 4 VIDAS E SIGNIFICADOS ...............................................................................96 4.1 O Descartvel na Contemporaneidade ......................................................103 4.2 Criando Possibilidades ..............................................................................105 4.3 Resignificando Vidas .................................................................................106

5 REFERNCIAS ........................................................................................... 110

INTRODUO

O ser humano delineia sua vida a partir de projetos. Estes esto sempre

em construo. Ao longo de seus dias, um ser humano poder ter vrios

projetos que fazem parte de seu projeto maior de vida. Em alguns casos, esses

projetos ocorrem antes da concepo, quando pessoas pensam, imaginam e

fazem planos para ter um filho (biolgico ou no) e, em outros, a partir da

gestao. Assim, so outros seres humanos que vo construindo o projeto

inicial de um sujeito. Sartre aponta que o homem , antes de mais nada, aquilo

que se projeta num futuro. [...] Nada existe antes desse projeto (1984, p. 6).

Esses projetos possuem caractersticas pessoais de cada um dos

sujeitos que o vivenciam, entrelaados com projetos de outros seres humanos

que fazem ou fizeram parte de seu grupo. A partir de diferentes influncias, cada

ser humano vai se construindo em sua singularidade. Dessa forma, a identidade

de um ser humano est perpassada por seus projetos, por suas vivncias,

expectativa de caminho e acessrios, que ir levar consigo na caminhada para

alcanar o objetivo almejado. Na rea de Cincias Sociais, Follmann (2001, p.

53-59) um dos pesquisadores que adotou essa forma de falar da identidade de

um ser humano. Ele argumenta que a identidade constituda de quatro

dimenses: a do projeto, a da motivao, a das prticas e a das trajetrias

vividas.

Os projetos pessoais trazem em seu bojo marcas, influncias de

diferentes pessoas e de diferentes vivncias entrelaados pelo coletivo e vice-

versa. Coletivo esse que incorpora as particularidades de cada um formando um

conjunto. Assim, o coletivo tem traos que so de cada um e de todos e, ao

mesmo tempo, se metamorfoseia com as mudanas e diferenas de cada um

dos seus membros.

Para refletir essa temtica e compreender de que forma os projetos

pessoais e coletivos articulam-se mutuamente e servem de ancoragem para

que um e outro possam ser construdos, foram escolhidos como o objeto de

estudo, os catadores de materiais reciclveis que fazem parte de um projeto

coletivo. Estes catadores so scios da Associao de Catadores de Materiais

Reciclveis Ecos do Verde. Tal associao situa-se no municpio de Santo

ngelo, no estado do Rio Grande do Sul.

Essa associao fruto de um agrupamento de pessoas que decidiram

trabalhar em conjunto para que, organizados em um objetivo comum, pudessem

dar conta de suas necessidades e enfrentar de uma maneira mais fortificada e

organizada as dificuldades oriundas do desemprego, Conforme enfatiza Sartre

(2002, p. 452), um grupo se constitui a partir de uma necessidade ou de um

perigo comum e define-se pelo objetivo comum que determina sua prxis

comum.

O objetivo inicial da formao desse grupo foi de obter trabalho e renda,

uma vez que eles estavam desempregados. A atividade remunerativa estava

vinculada a pequenos biscates, como coleta espordica de materiais reciclveis,

jardinagem, serventia na construo civil, entre outros. Segundo Castel, essa

uma condio de inteis para o mundo, que nele esto sem verdadeiramente

lhe pertencer. [...] No esto ligados aos circuitos de trocas produtivas,

perderam o trem da modernizao e permanecem na plataforma com muito

pouca bagagem (1998, p. 530).

Assim, o trabalho coletivo, organizado em uma associao, legalmente

estabelecida e socialmente reconhecida e valorizada, possibilitou aos

trabalhadores em questo um resgate da sua humanidade. Castel considera

que a vida social no funciona s com trabalho [...], porm o que permite esticar

o arco e fazer partirem as flechas em vrias direes uma fora extrada do

trabalho (1998, p. 578). Insistente em sua afirmao, Dejours (2000) coloca

que o trabalho faz parte da realizao do ego e quem no pode acess-lo estar

excludo de um importante mediador social.

Tendo a compreenso de que o trabalho uma forma de integrao

social e funciona como um importante organizador social e psquico da vida do

ser humano, realizar uma pesquisa com um grupo que encontrou, no coletivo,

uma maneira de incluso no mundo do trabalho formal e legalmente

reconhecido, vem ao encontro do propsito da presente pesquisa: trabalho

enquanto projeto de vida, enquanto integrador social e enquanto possibilitador e

fortalecedor de vnculos.

A razoabilidade da escolha dessa temtica fortalecida justamente

porque vivemos em uma sociedade que preza o trabalho como uma das mais

importantes formas de insero social. Contudo, contraditoriamente, essa

mesma sociedade priva parcelas enormes da populao do acesso a um posto

de trabalho formal. Se o sujeito humano tem no trabalho um dos pontos de

ancoragem de seu viver, priv-lo disso significa deix-lo deriva, levando-o

muitas vezes desumanizao. Lucks (apud ANTUNES, 1997, p. 123)

sustenta que o trabalho mostra-se como momento fundante de realizao do

ser social, condio para sua existncia; o ponto de partida para a

humanizao do ser social e o motor decisivo do processo de humanizao do

homem.

Sendo o ser humano um ser de projeto (FOLLMANN, 2001), que

necessita de terceiros para a constituio de sua humanidade e do seu ser

social, um dos pontos principais de sua articulao no vivido a sua relao

com os outros. Logo, podemos dizer que o sujeito prioritariamente algum que

se constitui em grupo. Para Sartre, os outros so a mediao do sujeito com o

mundo, assim sendo, o outro indispensvel minha existncia tanto quanto,

alis, ao conhecimento que tenho de mim mesmo (1984, p. 16). Dessa forma,

os vnculos familiares, comunitrios e/ou sociais servem de ancoragem social e

psquica para um sujeito.

Ao escolher a temtica e o objeto de pesquisa, o estudo do tipo de

trabalho bem como dos produtos e materiais manuseados parte indissocivel

do objetivo deste trabalho. Trabalhar com o lixo, com o que fora descartado pela

sociedade, no qualquer tipo de trabalho nem tem a mesma significao que,

por exemplo, ser pedreiro, domstico, jardineiro. Ao lixo est associada a idia

de impuro, contagioso, resto, coisas imprestveis, enfim, lixo representa o i-

mundo, o no mundo. Junc no escamoteia essa questo; para ela, o lixo

simboliza o velho, o que j no serve, o caos da mistura, as imperfeies, e

deve ser levado para longe (1997, p. 35). Bottari (apud JUNC, 1997, p. 116)

coloca que, na viso da sociedade em que vivemos, quem trabalha com o

refugo urbano, com o resto, com ele se confunde, tornando-se tambm lixo. Em

Santo ngelo, os catadores tambm sofrem com esse tipo de discriminao.

Isso ocorre, principalmente com os catadores autnomos, enquanto os

associados da Ecos do Verde so mais aceitos e valorizados. medida que se

organizaram e construram um sujeito coletivo que lhes deu sustentao no s

econmica, mas tambm social, readquiriram seu valor social. Tal qual os

materiais que eles trabalham, que momentaneamente perderam seu valor de

uso, e, recuperados, retornam cadeia de produo como objetos de valor

econmico. Esses sujeitos, oriundos de camadas muito pobres da populao e

excludos do mercado de trabalho formal, conseguiram, atravs de um projeto

coletivo, re-apropriar-se do estatuto de trabalhador e voltar ao mercado de

trabalho.

A questo norteadora desta pesquisa interrogava se a necessidade de

trabalho e manuteno da vida, a possibilidade de construir ou dar continuidade

ao projeto de vida de cada um dos sujeitos associados, estaria sendo embalada

por essa rede de relaes, construes e interaes coletivas que a Ecos do

Verde, possibilitando, a partir disso, que o dia-a-dia dos seus associados, seus

projetos, suas vivncias, sejam grvidos de sentido, de expectativas, de

cidadania, de desejos, de presente e futuro. Enfim, que possam ser atores de

sua prpria histria individual e coletiva!

Assim, havia me proposto a investigar se o trabalho realizado na Ecos do

Verde, de forma individual e coletivizada, possibilitava aos sujeitos que

trabalham, resignificando o lixo, a construo ou a continuao do seu projeto

de vida. Se o coletivo Ecos do Verde est dando sustentao ao projeto

individual desses trabalhadores.

O objetivo geral da pesquisa pode ser reformulado nos termos que

seguem: verificar em que sentido a Associao Ecos do Verde foi e um

espao que possibilita a continuidade e/ou o fortalecimento dos projetos de vida

dos sujeitos escutados.

Os objetivos especficos so:

a) Verificar em que sentido os projetos individuais foram responsveis

pela construo do projeto coletivo da Ecos do Verde;

b) Verificar se o projeto coletivo da Ecos do Verde tem contribudo para a

sustentao das identidades pessoais, possibilitando a continuidade/retomada

do projeto pessoal;

c) Verificar como os associados da Ecos do Verde percebem a identidade

coletiva e como se relacionam com ela;

d) Procurar observar as relaes e reaes dos sujeitos pesquisados com

as atividades que realizam e qual a importncia social, poltica e econmica que

eles conseguem perceber.

Pesquisar a inter-relao entre o projeto individual, perpassado e/ou

sustentado pelo coletivo, justifica-se pelo fato de oportunizar a interface entre o

terico e o prtico. O enlace terico-prtico possibilitar ao pesquisador delinear

um conceito de identidade, a partir do projeto pessoal do sujeito, entrelaado

com o projeto coletivo. Esse entrelaamento, permeado pelos vnculos que cada

sujeito constri com os outros, uma vez observado, pesquisado e discutido,

possibilitar uma construo terica que representa o vivido. Assim, o propsito

da presente pesquisa investigar se o trabalho coletivizado, materializado na

Associao Ecos do Verde, contribui para a sustentao do projeto individual do

sujeito pesquisado (entendendo que fazem parte do projeto individual o

pertencimento, os vnculos familiares-comunitrios-sociais, a prpria

identidade1). Para Melucci (2004, p.45), a construo da identidade depende do

retorno de informaes vindas dos outros.

Estando entre eles, embora no seja uma deles, tive a possibilidade de

acreditar e de me embriagar dessas utopias, para, s assim, poder dar s

palavras o sentido mais aproximado do que eu ouvi, vi e, de certa forma, vivi!

Trabalho este, que devo confessar me emociona. como se eu pudesse

tambm vivenciar a experincia de dar continuidade a um projeto que o

resgate de minha prpria histria. Freud argumenta que nossas opes esto

perpassadas por desejos inconscientes. As escolhas no so apenas de

interesse social. Elas esto perpassadas pelos afetos do pesquisador. Talvez

esteja em algum cantinho latente de minha prpria histria o interesse que tenho

em realizar minha pesquisa com este grupo especial, bem como a tentativa de

resgatar a importncia da coletividade na vida do sujeito. Melucci (2004, p. 16)

ilustra bem esse meu enamoramento: como observador, no estou fora do

campo que descrevo e, por isso, no temo mostrar-me apaixonado.

O presente estudo foi sendo construdo pela escuta, pela escrita e pelos

conceitos-ferramenta que auxiliaram no entrelaar prxico entre as questes

levantadas (tericas) e a pesquisa de campo (questes prticas), a partir de

Histrias de Vidas Temticas. Tal qual os separadores, eu tambm realizei um

movimento de procurar-achar algo, alguma histria de vida que pudesse trazer

um significante importante para esta produo terica e tambm para minha

vida pessoal. O desejo do pesquisador no est ausente nessa relao. A

ousadia est na proposta de no s carregar comigo a academia ao encontro

desses trabalhadores, mas tambm de caminhar no mesmo cho, olhar a

mesma estrada, cada um a partir do vis de seu prprio olhar e de sua histria:

os associados, resignificando e re-valorizando o que fora jogado fora pela

sociedade, e a pesquisadora, procurando na histria deles o enlace entre o

coletivo e o individual que, cada um e todos, esto construindo. Ao fazer tal

1Walon, apud Pourtois (1999, p.58) por meio das relaes com o outro que a pessoa se constri. [...] a identidade nunca concluda definitivamente.

articulao, possvel pensar em uma aproximao entre a academia e o

barraco de reciclagem.

Pesquisar os sujeitos que trabalham com o que fora descartado, jogado

fora pela sociedade, traz em seu bojo uma proposta grvida de ousadia.

Audcia de trazer de volta para o convvio social, simbolicamente, aquilo que foi

rejeitado pela sociedade. E, nesse sentido, falo no somente do lixo, mas

tambm do sujeito que tem como a tarefa diria remexer o lixo da sociedade (o

resto - o que no tem mais valor) e retirar o (ainda) aproveitvel. Esta a nfase

prioritria deste trabalho: o sujeito humano, na sua realidade nua e crua. Esse

resgate quer propor a interao do sujeito do lixo com o sujeito do saber. Quer

articular o saber-vivido com o saber-ouvido. Trazer o sujeito do lixo para a

academia para que ele conte sua histria e ns possamos articular, re-aprender

e construir saberes. Esta a ousadia.

No possvel ignorar que a minha formao em Psicologia possibilita

realizar uma escuta que valoriza os entremeios das falas, os lapsos, os

esquecimentos. Segundo Mezzano, (1998, p. 47), o olhar psicolgico d um

tom especial ao mtodo de histria oral, relacionando-o com o mtodo da

associao livre, proveniente do campo psicanaltico, no qual se considera

valiosa toda lembrana ainda que com distores e lacunas.

Ademais, a academia possibilita que a proposta de re-organizao das

relaes de trabalho e, conseqentemente, dos projetos de vida do sujeito

catador, saia do ventre da Ecos do Verde e ganhe o mundo. Seja projetada para

alm de suas entranhas e torne-se pblico seu papel de re-insero desses

sujeitos. Re-insero esta que no acontece apenas nas relaes de trabalho,

mas tambm na plenitude da vida do catador e de seu grupo de vivncia. Alm

disso, um trabalho cientfico poder ajudar outras reas do conhecimento a

compreender o trabalho cooperativo, associativo, solidrio, como foi o caso em

que a prpria Ecos do Verde se viu envolvida (litgios trabalhistas).

Aos sujeitos pesquisados, este trabalho poder possibilitar um resgate de

sua Histria, a partir de sua prpria fala, de seu prprio relato. Ao fazer essa

reconstituio, eles podero re-elaborar desejos, expectativas e construir

projetos mais fortificados pela re-leitura e pela solidariedade do grupo. Poder

fortalecer e/ou resgatar sua identidade de sujeito individual e coletivo. Citando

Follmann (2001, 51):

na maneira com que um indivduo ou um grupo (uma coletividade) estabelece a relao entre seu futuro e seu passado ou, ainda, entre seus projetos e sua trajetria, que temos, de forma particular, as manifestaes principais para desvendar qual sua identidade.

A sua histria de vida, sendo levada para dentro do mundo do saber,

como objeto de valor, poder estimular, revigorar e fortalecer seu projeto de

vida. De catador de objetos desprezados, descartados, de sobras, torna-se

protagonista de pesquisa, de estudo, de um conjunto de elaboraes escritas.

Por inserir novamente no mundo o que fora jogado fora e dar a ele um novo

significado, torna-se alvo de interesse acadmico e passa a ser re-inserido no

mundo das aprendizagens acadmicas. E isto um novo projeto de vida, tanto

para o sujeito individual quanto para a coletividade da Ecos do Verde.

Para ilustrar a reflexo do projeto de vida como passado-presente-futuro,

podemos utilizar a imagem da esteira por onde circulam os materiais que so re-

aproveitveis. A esteira est colocada em um determinado lugar que possibilita

o acesso de todos os que nela trabalham e que tm como tarefa apreender o

objeto que ser re-significado. Cada objeto sempre novo, um outro que

colocado no movimento circulante. Mas so tambm velhos conhecidos, porque

trazem traos, constituies e semelhanas que se aproximam daqueles que j

foram; ou apenas velhos, porque perderam sua capacidade momentnea de

valor e, dessa forma, preciso que sejam investidos de um novo valor. Algumas

vezes, os objetos passam e no so notados nem apreendidos. So olhados e

no so vistos. Num momento seguinte, um objeto semelhante resgatado.

um movimento de vai-e-vem contnuo. Vai-e-vem no da esteira, mas do olhar e

da significao que cada um d ao objeto que, passa e passa ou passa e

apreendido.

Assim como a esteira da Ecos do Verde, assim como a esteira da Vida,

esta proposta quer fazer circular por entre o meio acadmico as histrias de vida

dos separadores de materiais reciclveis da Ecos do Verde e, num movimento

de reciprocidade, interao, interlocuo, levar os dizeres e saberes da

academia at esses sujeitos para que possam, usufruindo da presente

pesquisa-estudo, sentirem-se mais fortificados na sua capacidade de

compreenso e construo de seus prprios projetos: individuais e coletivos.

Sendo o homem/mulher, um ser que se estrutura nas relaes sociais, os

outros dessa/as relao/relaes so imprescindveis para que o sujeito possa

dar continuidade aos seus projetos de vida. Projetos estes que interpendem das

relaes grupais.

A fim de introduzir o leitor ao marco terico deste trabalho de

investigao, valho-me de uma prola da literatura brasileira. Monteiro Lobato

em sua obra Urups 2 tem um conto chamado Colcha de Retalhos, que traz a

histria de uma av, chamada Joaquina, que costurava uma colcha de retalhos

para sua neta, para quando a menina casasse. Cada retalho representava uma

etapa da vida de sua neta e ela ia costurando esses retalhos para construir a

colcha, ao mesmo tempo que reconstrua a histria de sua neta amada:

Cada retalho tem uma histria e me lembra um vestidinho de Pingo dgua. Este foi a primeira camiseta que vestiu. [...] Este azul, de listras, lembra um vestido que a madrinha lhe deu aos trs anos. [...] Este vermelho de rosinhas foi quando completou os cindo anos. [...] Este c, de xadrezinho, foi pelos sete anos, e eu mesma o fiz. [...] Pingo d gua j sabia temperar um virado, quando usou este aqui de argolinhas roxas em fundo branco. [...] Este, cor de batata, foi quando tinha dez anos e caiu de sarampo (1966, ps. 131-132).

Os retalhos de tecidos, somando-se uns aos outros pelos pontos de

costura, constituram uma colcha. E no cotidiano da vida que a colcha de

retalhos vai sendo costurada.

Analogamente, no cotidiano de meus estudos, ao pensar na constituio

de um referencial terico para este trabalho, fui selecionando alguns autores

que pudessem contribuir para minha pesquisa. Procurei construir um corpo

terico que fosse capaz de dar sustentao ao meu projeto, que contribusse

para o avano da discusso, no que se refere ao sujeito humano como um ser

de projetos, pessoais e coletivos; tambm no que se refere ao trabalho como

estruturante do sujeito, bem como questo da fragilidade dos vnculos na

sociedade em que estamos vivendo.

2 Lobato, Monteiro. Urups, Obras Completas. Vol. 1, 1966, Editora Brasiliense.

Procurei fazer com que os autores me ajudassem a costurar os objetivos

do trabalho aos objetivos da academia e dos sujeitos pesquisados. Tarefa

rdua e cheia de apreenses. Contudo, comeo a costurar alguns conceitos-

ferramenta, como a av de Pingo dgua utilizava tesoura, agulha, linhas e

retalhos para fazer uma colcha pano que serve para cobrir o lado nu da

cama, que utilizado por cima dos lenis deixando-a arrumada, organizada.

Assim, espero que os referenciais que uso sirvam para arrumar e organizar meu

estudo, sem transformar-se em mero amontoado de retalhos sem consistncia.

Os autores que do sustentao a esta pesquisa esto agrupados

segundo os temas principais de estudo. Embora no decorrer da Introduo j

esteja sendo anunciado quem so os meus companheiros nesta tarefa de

costurar retalhos de letras, idias e histrias vividas e sonhadas, apresento-os,

segundo os temas estudados:

- para trabalhar o ser humano como ser de projeto, busco interpretar a

histria dos associados da Ecos do Verde com Sartre, Follmann, Melucci;

- em relao questo do grupo como ancoradouro do sujeito, sigo

tecendo meu escrito juntamente com Melucci, Rivire, Fernandez, Sartre;

- quanto aos vnculos, costuras necessrias no cotidiano da vida, o

pensamento de Paugam, Castel, Sartre, foram imprescindveis;

- para tratar do trabalho, como ponto de amarrao e estruturao de um

sujeito, tenho a companhia de Dejours, Ricardo Antunes, Castel, Junc, Hannah

Arendt.

No decorrer do desenvolvimento da pesquisa, alm desses autores

mencionados, outros so de inestimvel contribuio: Bosi, Carreteiro, Castells,

Freud, Gaiger, Guareschi, Guatari, Touraine. Dessa forma, retomo a sabedoria

da av de Pingo Dgua: a existncia se concretiza no conjunto, costurado

juntamente com a histria de cada frao. Cada fibra que teceu o pano, cada

linha que emendou os retalhos, cada um dos retalhos da colcha so

imprescindveis para sua confeco.

A colcha de retalhos da av Joaquina, do conto Urups, de Monteiro

Lobato, foi utilizada por ela para contar a histria da neta. Cada retalho era

como um cone da lembrana de cada fase. E dessa forma, atravs de cada

retalho e sua histria, a av reconstrua a histria de vida de sua neta e a sua

prpria histria. Carreteiro (2003, p. 284) destaca que a histria de vida, ao

mesmo tempo que, contempla a histria de um grupo social, faz tambm um

apelo histria de um indivduo ou de indivduos em suas singularidades.

Em uma pesquisa de campo com seres humanos, preciso olhar para

alm da colcha de retalhos como algo decorativo ou de utilidade prtica.

preciso perceber as histrias que esto por detrs dos retalhos. preciso que o

pesquisador se disponha a colocar o ouvido a servio da sua proposta de

trabalho e olhar para alm das aparncias. Com esse escutar, est entrelaado

o olhar, o ouvir, o pensar, o caminhar, o sorrir 3.

A Histria de Vida se apresenta como uma tcnica metodolgica que

possibilita ao pesquisador inteirar-se do tema de seu interesse e, ao mesmo

tempo, perceber como o entrevistado se coloca dentro do tema. Para um bom

desenvolvimento da pesquisa, a metodologia deve poder contemplar os

objetivos do projeto, mas, acima de tudo, deve servir de ferramenta para a

interao entre pesquisado e pesquisador. O relato oral, hoje denominado

histria oral, uma fonte de conservao e de difuso do conhecimento e do

saber. Para Querioz (1987, p. 274-275), a

histria oral termo amplo que recobre uma quantidade de relatos a respeito de fatos no registrados por outro tipo de documentao, ou cuja documentao se quer completar. Colhida por meio de entrevistas de variada forma, ela registra a experincia de um s indivduo ou de diversos indivduos de uma mesma coletividade. Neste ltimo caso, busca-se uma convergncia de relatos sobre um mesmo acontecimento ou sobre um perodo do tempo. A histria oral pode captar a experincia efetiva dos narradores, mas tambm recolhe destas tradies e mitos, narrativas de fico, crenas existentes no grupo, assim como relatos que contadores de histrias, poetas, cantadores inventam num dado momento. Na verdade tudo quanto se narra oralmente histria, seja histria de algum, seja histria de um grupo, seja histria real, seja ela mtica.

3 Becker (1977, p. 132) assinala que o cientista deve entrar suficientemente na situao para ter dela uma viso global.

A partir da dcada de 50, a histria oral reaparece como tcnica cientfica

de pesquisa. Durante muito tempo foi questionada a objetividade bem como, as

implicaes psicolgicas que a tcnica suscitava. Diziam alguns autores que

essa forma de pesquisa estava impregnada de subjetividade, que poderia

maquilar os dados obtidos, levando a uma interpretao no objetiva dos dados

colhidos e da proposta pesquisada. Seu reaparecimento acontece na Psicologia

Social e tem como finalidade o esclarecimento de problemas de memria

enquanto ao humana estruturante (QUEIROZ, 1987).

Neste trabalho, a principal tcnica utilizada foi Histrias de Vida Temtica,

que consistiu em realizar entrevistas anotadas com alguns associados, com

temas previamente escolhidos, segundo os objetivos da pesquisa. importante

ressaltar que esta tcnica trabalha com a memria, recordaes, anseios e

desejos do entrevistado bem como com os recortes que o prprio entrevistado

faz, a partir de sua subjetividade. Pode-se dizer que isto o que se busca em

histrias de vida e, como nos diz BOSI (1995), o que interessa quando

trabalhamos com histria de vida a narrativa da vida de cada um, da maneira

como ele a re-constri e do modo como ele pretende que seja sua a vida assim

narrada 4. A histria de vida pode ser considerada um instrumento privilegiado

para anlise e interpretao, na medida em que incorpora experincias

subjetivas mescladas a contextos sociais. Queiroz enfatiza que a histria de vida

se define como o relato de um narrador sobre sua existncia atravs do tempo,

tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou [...] e que foram

significativos (1987, p. 275).

Trabalhar com Histrias de Vidas como se a prpria histria do

pesquisador tambm perpassasse a histria dos pesquisados. O risco que

corremos exatamente esse: no nos distanciarmos o suficiente para

mantermos a autonomia da escrita. De outro lado, a escrita sempre feita a

partir do olhar que olha. E quem olha algo, olha aquilo que lhe fala. Assim, o

pesquisador ir escrever o que ouviu. Nem sempre o que se ouve o que se

4 Confira Guita G. Debert (1986, p. 141-156).

fala, o que o sujeito est a dizer. Esta uma das limitaes da tcnica 5.

Contudo, o pesquisador obtm os ganhos da relao aproximada e isso que

d legitimidade ao trabalho e cria a aceitabilidade por parte do pesquisado.

Para a pesquisa aqui relatada, acompanhei alguns momentos do cotidiano

da Ecos do Verde h um ano e meio. Minha participao tem sido de escuta e

presena solidria 6.

Foram realizadas entrevistas individuais, orientadas pelas temticas

enfatizadas, ficando sempre em aberto a possibilidade de utilizar a prpria fala

do entrevistado para ser re-utilizada como pergunta, indagao ou

problematizao.. Os registros dos dados foram realizados em gravaes de fita

K7 e no dirio de campo. No dirio de campo foram anotadas as falas no

gravadas, bem como as impresses e observaes do prprio pesquisador,

acerca do contexto no qual foi realizada a entrevista 7.

O nmero total de associados da Ecos do Verde 38 trabalhadores,

sendo 31 do sexo masculino e 7 do sexo feminino. Na usina de reciclagem

trabalham 30 catadores. Destes, 4 so do sexo feminino e 26, do sexo

masculino. No ponto de compra, situado na cidade, trabalham 8 catadores,

sendo 3 do sexo feminino e 5 do sexo masculino.

A presente pesquisa foi realizada com os 30 catadores que trabalham na

usina. Destes, foram entrevistados nove associados 30% -, dois do sexo

feminino e sete do sexo masculino.

A Histria de Vida Temtica a histria de vida ou histria oral, orientada

a partir de temas que tenham mais interesse para o enfoque da pesquisa e/ou

para o problema a ser pesquisado. Assim, no estudo em questo, os temas

escolhidos como prioridades so:

5 Novo (1998, 101 diz que o ser humano implica-se com outros seres humanos. (...) Entendemos que os processos afetivo-emocionais esto na base das prticas e mediatizam a nossa relao com o mundo. 6 Pereira apud Vasconcelos, (2004, p. 38) o pesquisador dever estar familiarizado com o problema a ser estudado. 7 Ver, Yves Winkin, (1999, 129-145).

Filiao/origem: Neste enfoque, a prioridade foi a famlia de origem, seus

pais e/ou cuidadores/acolhedores; quais as condies e as experincias com

relao ao trabalho dos mesmos; qual a regio de nascimento e crescimento do

entrevistado.

Grupo de pertencimento atual: A entrevista foi dirigida para que o

entrevistado falasse do seu respectivo grupo de pertencimento na atualidade;

quem e quantos so os membros que compem o grupo; quem seu

companheiro/a; tem filhos e quantos so; os filhos pertencem a este

relacionamento ou so de relacionamentos anteriores, seu/sua ou de seu

companheiro/a; como a relao entre filhos, enteados e outros que fazem

parte do grupo familiar; qual a idade dos integrantes do grupo; qual a situao

financeira e de trabalho do grupo familiar: trabalham em qu e onde; qual o

bairro em que residem; possuem casa prpria; pagam aluguel ou habitam em

casa cedida; qual a infra-estrutura da moradia: peas, banheiro, ptio; mveis e

utenslios.

Histria de vida profissional do entrevistado: Nesta temtica, o interesse

consistiu em fazer com que o entrevistado pudesse re-construir sua trajetria e

suas relaes de trabalho. Interessava tambm que fosse observado se as

relaes de trabalho tiveram vnculo empregatcio ou no. Importava tambm ter

presente a escolaridade do entrevistado e se havia realizado algum curso de

formao profissional.

Relao com a Ecos do Verde: Neste enfoque, a prioridade principal foi a

participao na Ecos do Verde: o entrevistado scio fundador ou de que forma

comeou a participar (J conhecia a associao? Como soube do trabalho?

Quem o apresentou?); como foram as relaes iniciais (acolhimento,

aprendizado, relacionamento); como v e/ou sente o trabalho em grupo; o que

esse trabalho representa para ele, para seus colegas, para sua famlia, para a

sociedade.

A organizao da atividade de pesquisa de campo foi planejada da

seguinte forma: a pesquisadora reservou de um a trs turnos semanais para a

pesquisa de campo na Usina, alternando manh e tarde.

Havia sido combinado tambm a participao da pesquisadora (como

ouvinte) em assemblias, reunies, encontros. Essas atividades foram

realizadas, mas de salientar que esses momentos j faziam parte do meu

dirio, uma vez que j vinha tendo oportunidades de participao.

Para apresentar o relatrio da pesquisa, a Introduo destaca a temtica

pesquisada, o problema formulado, os objetivos e hipteses levantadas, bem

como a metodologia utilizada. Aponta tambm os referenciais tericos que

serviram de costura na colcha de retalhos da Histria de Vida dos sujeitos

pesquisados.

No captulo I, visando a contextualizao scio-cultural do objeto de

pesquisa, apresentada a histria do municpio e da Associao Ecos do

Verde. Julgando-se conveniente faz-se referncia Histria dos antepassados;

os Sete Povoados Jesutico-Guaranis, que trazem em seu rastro a utopia de que

um mundo melhor possvel.

O captulo II apresenta uma breve contextualizao histrica do trabalho,

discutindo a importncia do trabalho como ponto de sustentao da vida

cotidiana do sujeito. Traz presente tambm a importncia dos vnculos e as

dificuldades oriundas da falta de trabalho.

O captulo III discute o ser humano como um ser de projeto desde o seu

nascimento. Dessa forma, s possvel pensar o ser humano como um ser

eminentemente grupal e que precisa do outro para constituir-se enquanto

sujeito.

O captulo IV apresenta a articulao entre sociedade contempornea e as

relaes de trabalho na era do descartvel. Traz tambm um breve relato das

entrevistas a partir das temticas escolhidas.

Quanto s Histrias de Vidas que foram sendo contadas, esto presentes

em diferentes momentos do conjunto da dissertao, sempre que o recorte foi

importante e/ou necessrio. Estas histrias so a seiva de que se alimenta este

trabalho.

Enfim, este escrito tem por finalidade apresentar o que fora coletado nas

entrevistas, colocando um ponto que apenas momentaneamente final.

Poderamos dizer que so recortes do momento, com estrutura de durabilidade,

contudo sempre merc de novas descobertas, novas escritas.

1 RAZES DA TERRA PRIMEIRAS HISTRIAS

A vida no tem sentido a priori. Antes de algum viver, a vida,

em si mesma no nada; quem a vive que deve dar-lhe um sentido;

e o valor nada mais do que esse sentido escolhido (SARTRE, 1984, p.21).

A histria o fio condutor da humanidade, que entrelaa o vivido com o

advir, criando experincias/vivncias do presente, de um determinado momento,

que, ao ser pensado, j histria. Para Melucci (2004, p.13), as experincias

cotidianas parecem minsculos fragmentos isolados da vida... Contudo, nessa

fina malha de tempos, espaos, gestos e relaes que acontece quase tudo o

que importante na vida social.

Ao retomar a histria do municpio de Santo ngelo para poder falar da

Associao Ecos do Verde, ressurge na memria a Histria das Misses e a

experincia das Comunidades Jesutico-Guaranis. muito comum nessa regio,

pessoas que ao se agruparem para lutar por um objetivo (especialmente,

aquelas que so e/ou esto despojadas de boas condies econmicas e

sociais), fazerem referncias a essa histria. Dessa forma, uma pesquisa que

tem como ponto de referncia a questo da identidade pessoal e coletiva,

parece vir ao encontro de fragmentos de nossa reminiscncia. Comeo, ento, a

delinear o meu propsito: construir um corpo, dar forma a ele e inseri-lo na

linguagem. Linguagem sempre simblica, neste caso, discurso escrito. Antes

imaginado, vivido, rabiscado.

Na linha do tempo, a histria da Regio das Misses, terra onde est

localizada a Associao de Catadores de Materiais Reciclveis Ecos do Verde,

remonta aos idos de 1626, quando chegaram a estes pagos os padres jesutas

espanhis. Foram eles que comearam a fundar redues onde os ndios

guaranis viviam em comunidades organizadas. Na segunda fase desse trabalho

dos jesutas, foram construdos sete povoados missioneiros, com suas igrejas,

estncias e ervais. O povoado de Santo ngelo Custdio foi fundado no ano

1707.

Em 1750, o Tratado de Madrid estabeleceu novos limites entre as terras

de Portugal e Espanha. Tal tratado estabelecia que a Colnia do Sacramento,

povoao portuguesa no rio da Prata, seria entregue Espanha. Em troca,

passariam para Portugal os Sete Povoados Missioneiros. Os ndios no

aceitaram deixar suas terras, casas e gado, para fixar-se do outro lado do rio

Uruguai. A reao dos missioneiros provocou a Guerra Guarantica (1754-

1756)8, j que eles decidiram enfrentar os exrcitos de Portugal e Espanha.

Pouco adiantou a luta dos bravos guerreiros guaranis. Em 1756, a Guerra

8 Porto (1943, p.429) A Guerra das Misses se assim pode ser classificada essa seqncia de chacinas, em que dois exrcitos disciplinados e aparelhados com as melhores armas do tempo se atiraram contra chusmas de ndios quase indefesos, uma das pginas mais dolorosas da histria das Misses.

acabou com o povo desta terra (os ndios guaranis) e, em 1767, os jesutas

foram expulsos 9.

A vida cotidiana nas Comunidades Jesutico-Guaranis era diferente de

nossa realidade. Porm, como essas comunidades so lembradas e citadas

inmeras vezes para encorajar grupos, associaes e movimentos de pobres e

desamparados de nossa regio, salutar buscar o que poderia aproximar

vivncias to distintas.

Um ponto de destaque, que interessa Associao Ecos do Verde e

sociedade como um todo, que nas aldeias jesutico-guaranis no havia

pobreza, misria ou fome 10. Para suprir as necessidades da populao, havia

duas formas de propriedade: Tupanba e Abamba. A primeira consistia na

propriedade comunal, para cujo cultivo todos dedicavam parte de seu tempo. O

objetivo dessa propriedade era atender o exrcito, as vivas, os rfos e outros

que no podiam cultivar uma roa privada. Tambm poderia valer-se da colheita

comum o grupo familiar que no retirava alimentao suficiente da propriedade

privada. A segunda forma era caracterizada pela roa particular, onde cada

famlia trabalhava para obter seu sustento. Algumas famlias trabalham em

comum com outras, tambm a roa particular (sistema de muxiro/mutiro)11. A

propsito, Furlong (1962, p. 398) afirma que:

Por lo que respecta a la agricultura no hay que olvidar que em cada reduccin hubo el Abamba y el Tupamba, esto es, el campo que era propriedad de cada ndio, y que cultivaba para si y para los suyos, y el campo cultivado, por turnos, por todos los ndios, y cujos productos eram para la comunidad.

Um outro ponto interessante o fato de os ndios guaranis terem

trabalhado melhor, mais organizados e animados, quando trabalhavam em

grupos. Como eram de uma cultura extrativista, precisavam de motivao e

incentivo para trabalhar de forma mais sistemtica. Isto era necessrio pelo fato 9Dos Sete Povos que existiam no Rio Grande do Sul restam hoje os vestgios de quatro deles e que foram tombados como Patrimnio Histrico Nacional: So Nicolau, So Loureno Mrtir, So Joo Batista e So Miguel. Tambm h vestgios escondidos sob as ruas, terrenos e prdios das cidades de So Borja, So Luiz Gonzaga e Santo ngelo. Em dezembro de 1983, a UNESCO - Organizao das Naes Unidas para Educao, Cincia e Cultura - reconheceu como Patrimnio da Humanidade os remanescentes da reduo de So Miguel. 10 Segundo NEUMANN, 1986, p. 60, toda a populao missioneira trabalhava para o bem comum da reduo. 11 Conferir em ARNALDO BRUXEL, 1987, p.61-62.

de as redues terem um grande contingente de pessoas. Ademais, os guaranis

gostavam de conversar enquanto faziam suas atividades. Segundo Bruxel

(1987, p. 62):

As redues no podiam sustentar-se apenas com caa e pesca, mel e frutas silvestres. Para alimentar tanta gente em rea to limitada, era necessrio empenhar todas as energias no trabalho agrcola, bem organizado. [...] No era fcil habitu-los ao trabalho e mant-los ocupados. [...] Da a necessidade de muita organizao. [...] Muito contribuiu para o bom xito a modalidade do trabalho em grupo, pois os ndios eram extremamente gregrios e muito tagarelas.

Outra questo que merece a re-leitura para os dias de hoje, era a

preocupao com a natureza, responsvel por parte de sua alimentao e

sobrevivncia. Evidentemente, na poca, no se tinha a industrializao dos

dias atuais, mas era constante o cuidado e a preocupao que esse povo tinha

com o ambiente em que vivia.

Com relao ao trabalho, possvel dizer tambm que o mesmo no

servia aos interesses privados e nem tinha como fim a excluso dos membros

da comunidade. O trabalho servia para construir laos e prover as necessidades

do grupo familiar e do grupo comunitrio.

Atualmente existem muitos grupos de pesquisa que tm como objetivo

resgatar a histria desse povo. Alguns esto preocupados com o resgate

verdico dos fatos e outros, com a questo da herana mitolgica, religiosa e

utpica dos guaranis das misses jesuticas, atravs de re-leituras feitas no

presente. Os preparativos para a celebrao dos 250 anos da morte de Sep

Tiaraju ( 07 de fevereiro de 2006), em So Gabriel-RS, tm contribudo para

contextualizar, refletir e discutir a histria dos guaranis dos Sete Povoados

Missioneiros 12. Nessa histria, destaca-se a figura do ndio Sep Tiaraju, sendo

um referencial simblico muito forte na regio. Embora as pessoas e

organizaes da regio trabalhem no nvel simblico que somos herdeiros

dessa terra, que foram doadas por Deus e So Miguel, a figura que se

sobressai nestas Histrias/Estrias a de Sep Tiaraju.

12 No momento em que a escrita desse trabalho est sendo realizada, os preparativos para a celebrao dos 250 anos da morte de Sep, est sendo realizado atravs de comits, em vrias cidades do estado. Quando o presente trabalho estiver sendo apresentado para a banca examinadora, esta celebrao j ter acontecido.

Sep Tiaraju foi Corregedor indgena nas Misses. Era um ndio j

evangelizado. Por ser um ndio cristo, reunia em sua pessoa a tradio tribal

herdada de seu povo e tambm, a mstica e a doutrinao dos jesutas. Como

lder poltico, destacou-se pela sua coragem e pela deciso de enfrentar o

exrcito inimigo. Aps sua morte, foram atribudos a ele inmeros atos de

valentia na luta e na defesa de seu povo. Para compreender a histria de Sep

e a simbologia acerca do mito, destaco alguns autores que podero conduzir o

leitor pelo fantstico caminho da leitura literria: O poema Lunar de Sep, de

Simes Lopes Neto, em seu livro Lendas do Sul; Manoelito Ornellas, em sua

obra O Santo Heri das Tabas; Alcy Cheuiche em seu livro Sep Tiaraju.

Para Regina Zilberman (1994, p. 117),

o mito no , pois, apenas um tipo de relato, mas se compe de uma rede peculiar de temas que dizem respeito ao aparecimento de uma instituio ou hbito e de motivos no interior dos quais se verificam a magia e o predomnio do mundo natural que so recorrentes na cultura humana e afianam a permanncia desta modalidade de expresso.

Mito, lenda ou personagem vivo, h quem diga que Sep Tiaraju ainda

est presente nestas plagas. No s em pinturas, gravuras, esttuas, lendas.

Est presente como o Sopro do Minuano que faz eco por entre os povoados,

pois contam os antigos desta terra 13 que, quando a noite silencia e nem a

coruja tem coragem de sair da toca, ouve-se apenas o alarido dos quero-queros

anunciando que no alto da coxilha, o bravo guerreiro So Sep volta para rever

a Terra que um dia foi de seu povo. Terra que se encharcou do sangue Guarani

e que ainda geme a morte de seus filhos 14. Ornellas (1966, p. 50), eleva Sep

ao posto de primeiro caudilho riograndense. Ele defende que a imaginao

popular canonizou o ndio e deu-lhe um fulgor de santidade. Para esse autor,

Sep no uma criao da fantasia. um heri de carne e osso.

13 Referncia aos moradores das beiras das estradas, sem terra desde h muito tempo, que sobreviviam de pequenos servicinhos nas fazendas das redondezas. Povo que conheci muito bem pois fazem parte de minha memria e de minha histria. (So Miguel, So Loureno, So Joo Batista). 14 No dia 07/02/2006 ser celebrado 250 anos da morte de Sep Tiaraju. A Celebrao ser atravs da Romaria da Terra, em So Gabriel-RS. Na regio das Misses esto previstos para acontecer vrios eventos para refletir a questo da terra, a questo indgena, a questo ecolgica, a questo da pobreza. Tais eventos procuram recuperar a histria e propor polticas pblicas para tais temas. Esto sendo criados comits, composto por entidades, para organizar as discusses e organizar as celebraes.

Para Abbagnano (1998p. 674),

o mito a justificao retrospectiva dos elementos fundamentais que constituem a cultura de um povo. O mito no uma simples narrativa, nem uma forma de cincia, nem ramo de arte ou histria, nem uma narrativa explicativa. Cumpre uma funo sui generis, intimamente ligada natureza da tradio, continuidade da cultura, relao entre maturidade e atitude humana em relao ao passado. A funo do mito , em resumo, reforar a tradio e dar-lhe maior valor e prestgio, vinculando-a mais elevada, melhor e mais sobrenatural realidade.

Assim, sob o iderio guarantico repleto de simbolizaes religiosas,

mitos e lendas, muitos grupos, associaes, organizaes, como a Ecos do

Verde, se animam e se fortalecem. Acreditando serem herdeiros desse povo,

sentem-se encorajados a buscar o que seu por herana. uma forma de

manter a esperana e de continuar a luta. No sistema simblico missioneiro,

Sep Tiaraju pertence ao grupo das categorias culturais relevantes, cujo status

epistemolgico no depende de sua observabilidade (LARAIA, 2004, p.63).

O Frei Srgio Grgen props uma lei em que declara Sep heri

missioneiro rio-grandense, instituindo o dia de sua morte (07 de fevereiro),

como data oficial. Na presena de lderes indgenas, no dia 30 de novembro de

2005, o governador Rigotto assinou a lei que torna Sep Tiaraju heri oficial do

estado 15.

No ser possvel deixar de falar de Sep neste escrito, sem convidar o

leitor a se envolver nos encantos desse trecho literrio de Ornellas (1966, p.

105), que conta um suposto dilogo sobre a morte do bravo missioneiro, entre a

ndia Jussara, sua amada, e um ndio que tinha acompanhado Sep, na trgica

batalha:

- E Sep, o chefe dos guaranis? Os ndios se entreolharam, pvidos, sem voz. - Sep - disse por fim um guerreiro - foi o deus da batalha. Muito antes do grande combate, trs dias apenas, ele enfrentou com poucos homens, quase mil inimigos. Lutou como ningum at hoje lutou em terras das Misses. Sua cabea destacava-se entre os corpos que se chocavam. No era um homem que lutava, era uma fora que os homens desconhecem. - Sep, filha de Tuja, subiu aos cus num cavalo de fogo, e, ele mesmo, voltou ao combate de Caiboat, coroando a sua cabea por um arco de luz lutando de novo e certamente para de novo morrer com seus irmos. Sep concluiu o ndio que narra o fim trgico de sua tribo morreu como um heri e

15 Conferir Jornal Zero Hora (RS), quinta-feira, 1 de dezembro de 2005, p. 35 (geral).

como um santo. Ele passa, de noite, entre as nuvens com um resplendor a luzir no fundo do cu, montado num cavalo de fogo.

1.1 SANTO NGELO CAPITAL DAS MISSES

O municpio de Santo ngelo est localizado na regio noroeste do Rio

Grande do Sul, distante 442 km da capital do Estado. Foi um dos Sete

Povoados Jesutico-Guaranis 16. Possui atualmente uma populao estimada

em 76.973 habitantes, sendo que 11.206 pessoas habitam a zona rural e 65.967

residem na zona urbana17. A rea total do municpio de 676,60 Km.

Dentre as atividades econmicas desenvolvidas no municpio,

correspondem ao setor primrio aquelas atividades ligadas diretamente terra

(agricultura, pecuria, extrativismo). Atualmente, no municpio, planta-se

principalmente milho, soja e trigo. Para a subsistncia, cultiva-se feijo,

mandioca, batata, arroz, legumes, verduras, etc.

O setor secundrio diz respeito transformao da matria-prima em

bens de consumo (atividade industrial, construo civil e minerao). A

economia do municpio tinha como referncia as safras de soja e milho. Como,

nos ltimos anos, a extenso territorial diminuiu acentuadamente devido s

emancipaes, atualmente as atividades bsicas da economia do municpio so

as pequenas indstrias e a prestao de servios. Existem atualmente cerca de

200 indstrias, em especial, de pequeno porte, em diferentes setores: derivados

16Os sete Povoados em ordem de Fundao: So Francisco de Borja; So Nicolau; So Luiz Gonzaga; So Miguel Arcanjo; So Loureno Mrtir; So Joo Batista; Santo ngelo Custdio. 17 Dados fornecidos pela Secretaria do Planejamento do Municpio de Santo ngelo-RS, datado de 2002.

do leite, confeitarias e padarias, vesturio, frigorficos (porcos e aves), curtume,

fundio de ferro, metalrgicas, artefatos de cimento, esquadrias de madeira,

serralherias, estruturas metlicas, calados, reciclagem de papel, baterias,

artefatos de couro, bebidas, sabo, produtos qumicos, artefatos de plstico,

funilarias, velas, bombas de chimarro, leo, rao, entre outras (FREITAS,

2005).

E o setor tercirio refere-se a atividades variadas, como comrcio,

profisses liberais, prestao de servios (trabalho na rea financeira,

educao, sade, informtica), meio ambiente e ecologia. Associada a estes

dois ltimos, e mantendo-se de forma autnoma, est includa no setor tercirio

a atividade que este projeto toma como objeto de estudo, que a destinao do

lixo produzido pela cidade (domstico, comercial e industrial). Saliento que, para

a presente pesquisa, o que interessou mais enfaticamente a questo dos

sujeitos que trabalham com o lixo produzido na cidade.

O municpio tambm dispe de inmeros servios pblicos de

competncia do Estado e da Federao (educao, sade, segurana,

judicirio, etc.). Quanto a esses servios, pela sua localizao, o municpio de

Santo ngelo um plo regional. Tem ainda inmeras lojas, instituies

bancrias e/ou financeiras, farmcias, supermercados. Conta tambm com bons

servios de transporte: rodovirios, com vrias possibilidades de locomoo

para cidades da regio e capital, bem como outros Estados; Rede Ferroviria

para a escoao dos produtos; aeroporto regional. Inmeras atividades na rea

turstica movimentam a regio, devido aos remanescentes arquitetnicos,

esculturais e outros, ligados aos Povoados Guaranticos. Na rea de Educao

possu uma bem organizada rede de ensino municipal e estadual, alm de duas

Instituies de Ensino Superior: Instituto de Ensino Superior de Santo ngelo

IESA e a Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Misses

URI.

Nos ltimos anos, o municpio de Santo ngelo sofreu inmeras

alteraes quanto ao seu meio ambiente. Um dos fatores que contriburam para

isso foi o aumento da populao em sua zona urbana, ocorrido de forma no

planejada, com infra-estrutura precria e sem servios bsicos, como: sade;

saneamento; servios coletivos de atendimento s crianas (creches, casas de

acolhimento); servios de ateno ao meio ambiente para evitar a devastao

das matas nativas, fauna e flora; recolhimento e destino para o lixo que

produzido, etc.

No caso especfico do lixo, at o final dos anos 90, seu destino era os

depsitos (lixes) a cu aberto, mantidos pelo poder pblico, e os depsitos

clandestinos. Atualmente, existe uma rea oficial (municipal) para onde so

levados os resduos slidos, localizada a uma distncia aproximada de 10 Km

da cidade, junto Usina de Asfalto da Prefeitura Municipal. Nesse lugar,

encontra-se tambm o Aterro Sanitrio, para onde levado o lixo mido. Em

maro de 1997, foi instalada a Usina de Reciclagem de Resduos Slidos, que,

atualmente, operada pela Associao Ecos do Verde (FREITAS, 2005).

No dia 1 de setembro de 1998, o municpio iniciou a coleta seletiva

(separar o lixo considerado seco do lixo que considerado mido) 18. Mas,

somente em 2003, a implantao do sistema de coleta seletiva do lixo, que

realizada por uma empresa terceirizada, foi estendida para todos os bairros. O

lixo mido colocado em aterro sanitrio. Os materiais reciclveis so

separados e acondicionados de acordo com sua constituio, para,

posteriormente serem vendidos a indstrias de reciclagem.

Para que a coleta seletiva obtenha xito em seus propsitos,

necessrio que a populao contribua efetivamente, separando de forma

adequada o lixo que produz. Em cada bairro, o lixo seco e o lixo mido so

recolhidos em dias alternados. Contudo, muitas pessoas continuam tendo

dificuldades de adaptar a separao do seu lixo em recipientes diferenciados

(lixo mido/seco) e observar o calendrio de coleta.

Atravs de pesquisa (fev/2003 a mar/2004) realizada por aluna do curso

de Geografia, Aline Hoffmann Marx, sob orientao da Prof e Ms. Carmem

Regina Dorneles Nogueira, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai

e das Misses campus de Santo ngelo, patrocinada pela FAPERGS, foi

18 Lixo seco: papel, papelo, plsticos, vidros, metais (latas, alumnio, ferro), isopor. Lixo mido: restos de comida, cascas, restos de vegetais, erva mate, papel higinico, fraldas descartveis, absorventes, etc.

possvel obter dados atualizados sobre a Coleta Seletiva do municpio, os quais

podero contribuir para uma melhor estruturao da mesma 19.

Segundo dados da pesquisa mencionada, a maioria da populao

(67,64%) possui o hbito de separar o lixo seco do mido, sendo que 63,97%

esto informados sobre o horrio adequado para colocar nas lixeiras o material

a ser coletado. Para 62,14% da populao, a coleta seletiva importante, e

para 48,9% o lixo mido deveria ser coletado diariamente. Esses dados no so

coerentes com o que se observa na Ecos do Verde. Olhando o lixo que chega

na Usina de Reciclagem da Ecos do Verde, percebe-se muito lixo misturado

(mido/seco).

Ao ser perguntada sobre o que mudou com a coleta seletiva do lixo,

75,73% da populao disse que o volume de lixo espalhado pela cidade tem

diminudo; 15,44% responderam que diminuiu o nmero de catadores nas

lixeiras e 8,83% disseram que no houve mudana. Para melhorar a coleta

seletiva, 89,33% da populao sugeriu campanhas de conscientizao acerca

da importncia de separar o lixo. Dessa forma estaria ajudando no combate

poluio, na melhoria da sade pblica e ajudaria as pessoas que trabalham

com a reciclagem a obterem maior ganho. Segundo dados da pesquisa, a

quantidade de lixo que o municpio recolhe por dia de 35 a 40 toneladas.

1.2 PROJETO COLETIVO ECOS DO VERDE: OUTRAS HISTRIAS E NOVAS COSTURAS

19 Relatrio de bolsa de iniciao cientfica: Impactos Scio-ambientais da Implantao da Coleta Seletiva do Lixo no municpio de Santo ngelo. Bolsista: Aline Hoffmann Marx. Orientador: Carmem Regina Dorneles Nogueira. Fevereiro de 2003 maro de 2004. Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Misses. Bolsa da FAPERGS.

Embora tmidos e desorganizados, alguns trabalhadores comearam a

catar materiais reciclveis de forma mais sistemtica e diria. Havia uma certa

disponibilidade de materiais, alguns compradores e poucos catadores. Embora a

venda dos materiais fosse precria, o resultado compensava e era melhor que

ficar desempregado. Contudo, era preciso articular-se para fortalecer e valorizar

tanto o trabalho como o trabalhador. Ento, comearam a organizar-se em uma

associao na regio sul da cidade. A relao mais aproximada dos catadores

entre si possibilitou a delineao de projetos para o grupo ou em grupo.

Dessa forma, entre aqueles que nada tinham a no ser as mos para

catar, um embrio coletivo comea a tomar forma. E, pensando em melhores

condies de vida com trabalho e cidadania, foi gestado, em Santo ngelo-RS,

um projeto coletivo, o qual se chamou Cooperativa Ecos do Verde - Cooperativa

de Coletores de Materiais Reciclveis de Santo ngelo LTDA 20. Surgiu nos

anos de 1994 e 1995, a partir de um grupo de trabalhadores desempregados

que viviam de biscates. A maioria era moradores do Bairro Harmonia (Santo

ngelo-RS). Comearam a conversar sobre uma forma de conseguir trabalho e

renda. Reuniram-se com os vizinhos e comearam a discutir algumas

possibilidades. Inicialmente, montaram uma associao de catadores de papel,

qual deram o nome de Associao dos Catadores de Lixo da Zona Sul de

Santo ngelo ACLISA. A associao teve dificuldades na obteno de um

local para realizar o depsito dos materiais e fazer um ponto de venda. Aps

inmeras negociaes com o Poder Pblico Municipal, foi oferecido para a

Associao uma Usina de Reciclagem, no interior do Municpio.

De posse dessa proposta, eles transformaram a associao em

cooperativa, pois, na poca, dessa forma, era mais fcil operacionalizar as

documentaes e exigncias legais. No dia 08/06/1996 foi realizada a

Assemblia de fundao da Ecos do Verde, com 14 scios, tendo como objetivo

separar e vender os materiais reciclveis (papel, plsticos, vidros, ferros, cobres,

etc...). Segundo Tomazzi, (2003, p. 18), uma das maiores dificuldades

encontradas foi a falta de documentao dos interessados. Alguns no tinham

Carteira de Identidade, outros no tinham CPF, outros, ainda, nenhum dos dois. 20 Recentemente, a cooperativa foi transformada em Associao, por facilitar algumas questes legais.

Os documentos legais para o efetivo funcionamento da cooperativa foram

obtidos em maro de 1997. Em julho do mesmo ano, iniciaram-se as atividades

na Usina de Reciclagem e Compostagem de Lixo de Santo ngelo. Inicialmente,

no havia transporte coletivo e/ou pblico at a Usina, e a distncia de

aproximadamente 10 Km da cidade. Muitos trabalhadores iam a p ou de

bicicleta. Atualmente, a Prefeitura disponibiliza um nibus que leva os

trabalhadores de manh (8:00) e os busca no final da tarde (17:30). O almoo

realizado no local e cada um responsvel pela sua alimentao. Alm da

Usina de Reciclagem, a Ecos do Verde dispe de um ponto de compra dentro

do permetro urbano, onde recebe doaes e compra materiais dos catadores

que circulam pela cidade. Esse ponto de compra fundamental, uma vez que os

catadores que circulam na cidade, retiram o lixo valorizado, antes que o

caminho o recolha 21.

A Ecos do Verde firmou parceria com a Prefeitura de Santo ngelo, em

julho de 1997, para realizar a reciclagem na Usina de Reciclagem, sendo que o

local do Poder Pblico e as mquinas so da Associao. Nesse local, os

caminhes da empresa coletora descarregam todo o lixo que recolhido como

sendo seco, e separado, acondicionado e/ou enfardado e fica esperando a

comercializao.

Em janeiro de 2003, comeou a funcionar um projeto chamado Gente

Cuidando de Gente, que tem por objetivo realizar um trabalho junto aos

catadores individuais que circulam pela cidade. Segundo o cadastramento feito

pela Prefeitura, atravs da Secretaria de Assistncia Social, Trabalho e

Cidadania, existem aproximadamente 100 catadores em Santo ngelo, atuando

nas ruas. Esse projeto resultado do apoio e engajamento de vrias pessoas e

entidades do municpio, incluindo a Ecos do Verde e a Secretaria Municipal de

Assistncia Social, Trabalho e Cidadania (TOMAZZI, 2003).

21 A Ecos do Verde prestou assessoria para um grupo de catadores da cidade de Santa Rosa, distante aproximadamente 55km de Santo ngelo. Por um determinado perodo (de 2000 2002), o grupo da cidade vizinha fez parte da mesma cooperativa. Atualmente, o grupo de Santa Rosa tem associao prpria. Outra experincia semelhante aconteceu com um grupo de catadores de Giru, municpio localizado 35km aproximadamente de Santo ngelo. No momento, este grupo tambm tem sua prpria associao.

O recolhimento seletivo do lixo Coleta Seletiva um trabalho que

necessita de conscientizao constante. H a necessidade de construir uma

nova cultura a respeito das sobras que a sociedade gera: o que fazer com o

resduo do produto que se vai ou se pretende comprar? Como descartar,

acondicionar, aproveitar e para onde direcionar tais resduos? Nesse momento,

as iniciativas a respeito dessas preocupaes giram em torno da seleo e

reciclagem.

A partir da organizao da Ecos do Verde, Santo ngelo teve um

aumento elevado de pessoas que catam o lixo. Desde cedo, pessoas com

carrocinhas, carrinhos, bicicletas, sacos, vo dando uma nova forma aos

movimentos da cidade. Existem vrios caminhos por onde circulam os

catadores: alguns percorrem os bairros residenciais, antes que os caminhes

coletores passem, retirando o que lhes interessa. Outros, catam no centro e

recolhem preferencialmente mais papelo.

Atualmente, o material que chega at a usina de reciclagem um lixo do

qual, na maioria das vezes, j foi catado a parte rentvel. Assim, o trabalho da

Ecos do Verde precisa ser intensificado para que os seus associados tenham

acesso ao material reciclvel que a sociedade se desfaz e possam ter maior

rendimento. A partir dessa realidade, surgiu a idia da Associao tambm

comprar material dos catadores que percorrem as ruas. Como o catador que

anda de porta em porta (de lixeira em lixeira) tem a possibilidade de vender seu

material para outros receptores, a Ecos do Verde precisa criar um diferencial

que atraia os vendedores de materiais. Dessa forma, o que vai definir quem

vende para quem, so questes pessoais, que vo desde o dinheiro que o

comprador empresta para a compra do gs, de remdios, at a distncia do

ponto de entrega, a relao de amizade, o preo, etc.

A Associao de Catadores de Materiais Reciclveis Ecos do Verde

oferece dois estmulos bsicos aos catadores individuais/autnomos: o

emprstimo de um carrinho coletor (so ao todo 30 carrinhos) e um preo

diferenciado para quem aceitar entrar nessa parceria. Alm disso, recebem

formao, informao e orientaes para realizarem a tarefa de maneira mais

adequada. Esses catadores fazem parte do Projeto Gente Cuidando de Gente

que tem como parceiro o Poder Pblico Municipal e entidades privadas. Para

fazer parte desse grupo, ter acesso ao carrinho e o preo mais elevado, o

catador dever entregar o material coletado Associao Ecos do Verde.

A Ecos do Verde, que at o ano de 2004 era uma cooperativa,

transformou-se em uma Associao. Tal acontecimento deve-se ao fato de que

a cooperativa vinha sofrendo processos trabalhistas, sob a alegao de que a

mesma contratava trabalhadores e no os pagava devidamente. Interpelada em

juzo, numa ao trabalhista j julgada, a Ecos do Verde foi condenada a pagar

as indenizatrias trabalhistas, e espera o julgamento de outras quatro. Os

julgadores no compreenderam a realidade da Cooperativa Ecos do Verde e

no fizeram nenhum tipo de estudo de caso para averiguar sua forma de

funcionamento. A Ecos do Verde foi tratada como se fosse uma cooperativa de

fachada, conhecida como cooperativa gato22. Foram retirados, por ordem

judicial, valores monetrios da Ecos do Verde que se encontravam em bancos.

Tambm foi penhorado um automvel Kombi, usado para o transporte de

materiais doados por empresas e instituies. O referido veculo de

fundamental importncia para a Ecos do Verde, pois algumas instituies doam

os materiais, especialmente papis e documentos, sob a condio de que sejam

picotados no local. Para esta tarefa, necessrio levar a mquina picadeira.

Alm do veculo, um computador, de uso da Ecos do Verde, tambm est

penhorado. Sem ter muita sada e sem conseguir convencer as autoridades

competentes de que funcionavam como uma cooperativa, o grupo de

associados comeou um estudo para a transformao da cooperativa em uma

associao. Entenderam os associados que essa forma de constituio legal

deixaria mais claro quais os vnculos entre os catadores e a associao.

Conflitos desse tipo, embora tragam desgastes emocionais e perdas

financeiras, contribuem para a reflexo do grupo, bem como daqueles que esto

dispostos a fazerem parte dele. Talvez seja interessante destacar que nem

todos que participam ou pretendem participar de uma associao tm de fato a

necessria compreenso desse tipo de empreendimento. Seria ideal que os

22 Cooperativa Gato o nome popular de cooperativas de fachada, a que trabalhadores se associam, sem contudo participarem dos lucros. Tal procedimento, serve para driblar a legislao trabalhista, impostos e encargos sociais que uma empresa privada est obrigada.

integrantes de um projeto desse tipo tivessem oportunidades de reflexo e

discusso acerca do que um projeto coletivo. Contudo, no dia a dia, torna-se

algo de difcil execuo, pois, quando as pessoas aparecem para participar

nesse tipo de empreendimento, fazem-no por necessidades econmicas

imediatas; como diz o ditado popular, minha preciso para ontem. O

aprendizado acerca do trabalho coletivo, da colaborao, da cooperao,

acontece durante a execuo das atividades. Segundo o ex-presidente da

associao Ecos do Verde, Adair Tomazzi, este um risco que um projeto

desse tipo corre. No tem como conhecer os projetos pessoais de cada

trabalhador antes que ele esteja participando do projeto coletivo e invivel a

formao pedaggica prvia. possvel tambm que se detectem contradies

no prprio bero do projeto, ou seja, prticas que venham a contradizer o

objetivo. Contudo, no meu interesse tal vis e no irei realizar nenhum tipo

de pesquisa a esse respeito.

Costurando os rasgos que apareceram, remendando alguns retalhos

pudos, re-elaborando histrias e estrias, a Ecos do Verde tem nove anos de

existncia. Durante sua trajetria, houve muitos tropeos, medos e audcias.

Mas continua caminhando e construindo seu projeto e conta hoje com 41

associados que fazem a separao dos materiais reciclveis, e 25 catadores de

materiais reciclveis, que recolhem esses materiais pela cidade. Esses

catadores mantm com a Associao uma relao de parceria: a Ecos do Verde

fornece o carrinho para catar e transportar os materiais e um preo melhor

para os produtos que os mesmos entregam Associao. No caso dos

associados, a relao de cooperao: o trabalho feito em conjunto, de forma

cooperativa, e as decises so tomadas pela assemblia. A maioria dos

catadores, parceiros do empreendimento, realiza suas atividades de maneira

informal: eles prprios fazem seus horrios, buscam seus objetivos e no

dependem de estar cotidianamente sob o compromisso de cumprir tarefas que

um trabalho formal exige. Conversando com alguns deles, foi possvel constatar

que eles gostam e preferem esse tipo de relao com a Ecos do Verde (ou com

algum outro comprador de materiais reciclveis). Saliento que a relao desses

catadores no parece ser de explorao, pois de seu interesse estarem livres

para ir por onde quiserem. Esto livres tambm para deixar de entregar seus

materiais cooperativa, quando quiserem. O carrinho e o preo diferenciado

so estmulos da Ecos para angariar os catadores livres. Contudo, eles podem a

qualquer momento deixar de entregar-lhe seus materiais.

Os associados da Ecos mantm uma relao de trabalho formal, devendo

cumprir horrios. As faltas no justificadas (ao trabalho), dentro das regras

estabelecidas por eles, so descontadas. Fazem rotatividade nas funes de

catar, enfardar, limpar, organizar. A participao em eventos, cursos, encontros

de formao, que sejam de interesse coletivo, estimulada, no sendo

descontado o dia (de trabalho), por tratar-se de falta justificada. O valor total das

vendas, descontadas as despesas, dividido em partes iguais entre os

associados.

A formao e a discusso sobre a organizao acontecem de forma

contnua e permanente. Discutem-se as vantagens do trabalho cooperativo, tais

como: trabalhar em conjunto, em cooperao; realizar a venda coletiva; utilizar a

coleta seletiva como possibilidade de obter o material de trabalho, o que s foi

possvel por estarem organizados em cooperativa/associao; estar respaldado

por uma instituio que reconhecida e valorizada. Segundo Tomazzi (2003,

p.19) no s o resultado econmico que d um clima de contentamento, que

realiza as pessoas. So as vitrias conjuntas. ganhar pelo trabalho realizado

(o resultado do trabalho e esforo). Mas sentir alegria, satisfao de pertencer

a uma equipe. De acordo com os prprios trabalhadores, o fato de pertencerem

cooperativa torna-os mais respeitados e mais valorizados. No somos

catadores que remexem lixo. Somos cooperadores que fazem uma ao

ecolgica e ajudam o meio ambiente (M.E). dessa forma que eles se

compreendem. Tal pensamento afina com o referencial da economia solidria,

pois, segundo Gaiger:

Os empreendimentos econmicos solidrios extrapolam o econmico e acabam sendo empreendimentos de carter social, educativo, comunitrio. A autogesto sustenta ser possvel compatibilizar objetivos econmicos com objetivos sociais, objetivos produtivos com objetivos humanos. Se a vida material, a vida econmica, serve para garantir nossa sobrevivncia, ela deveria garantir tambm a nossa humanizao, no o seu oposto (2001, p. 62).

A organizao e a realizao do trabalho de forma coletiva [e/ou

cooperada] propicia a integrao e valorizao dos trabalhadores, podendo vir a

questionar as relaes de opresso, misria e excluso a que esto submetidos.

Serve tambm de apoio e de motivao23 para dar sustentao aos projetos

pessoais. Essa sustentao extremamente necessria, visto que os sujeitos

pesquisados se encontram em situao de fragilidade scio-econmica e

psquico-emocional. fundamental, tambm, como suporte para o trabalho que

realizam, pois, embora discursemos que trabalhar com reciclagem e materiais

re-aproveitveis politicamente correto, que trabalho igual aos outros e

importante para o meio ambiente, o fato que, real e concretamente, eles

mexem e re-mexem diariamente restos, sobras, lixo! Podemos pensar em

reciclagem, re-significao, mas o produto primeiro, que desce pelo cone e

distribudo na esteira , de fato, lixo! Daiani Barboza (2000, p. 54) diz que o lixo

visto como podre e intil; algo que pode ser jogado fora.

1.3 LIXO RE-SIGNIFICADO E RECICLADO

Foi no sculo XIX que o lixo passou a ser considerado algo que precisa

de cuidados apropriados. Essa preocupao surge devido ao aumento da

populao e, conseqentemente, do lixo produzido. Mas no s o lixo foi para

os arredores: tudo o que poderia lembrar atividades sujas, mal-cheirosas e

desagradveis, foi afastado do convvio. Podemos citar os aougueiros,

ferreiros, pobres, doentes, etc. Carlos Mine (apud Grippi, 2001, p. XIII) destaca

que o lixo matria prima fora do lugar. A forma segundo a qual uma

sociedade trata seu lixo, seus velhos, os meninos de rua e os doentes mentais,

atesta o seu grau de civilizao. O tratamento do lixo domstico (...) uma

questo cultural.

23Ver FOLLMANN (2001, p. 56-57).

O lixo tornou-se uma questo mais e mais preocupante na medida em

que a industrializao avana. Vivemos a era do descartvel. A grande

produo de lixo no encontra formas de aproveitamento e nem local para

armazenamento. Diferente do lixo orgnico, que se decompunha e/ou virava

adubo, a sociedade teria de se preparar para conviver com o lixo inorgnico.

Dados do IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) do conta de

que, atualmente, no Brasil, so recolhidas cerca de 240 mil toneladas dirias de

lixo urbano. Segundo pesquisa realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatstica), 68% do lixo recolhido em municpios com cerca de 20

mil habitantes so despejados em lixes ou alagados24.

Segundo o dicionrio de Aurlio Ferreira (1986), lixo tudo o que no

presta mais e se joga fora; coisa ou coisas inteis, velhas e sem valor; sujeira,

sujidade, imundcie; ral.

J para Houaiss (2001) a palavra lixo significa:

qualquer objeto sem valor ou utilidade, detrito oriundo de trabalhos domsticos ou industriais que se joga fora; uso formal ou de forma pejorativa: coisa ordinria, malfeita, feia; pessoas sem qualquer dote moral, fsico ou intelectual; a camada mais baixa da sociedade; escria, ral.

Dessa forma, pode-se entender que a palavra lixo significa algo que

perdeu a utilidade, ou que no queremos mais usar, aquilo que sobra, que se

joga fora, que sujo, intil, velho ou que no tem mais valor. Podemos pensar o

lixo como todo e qualquer resduo proveniente das atividades humanas ou

gerado pela natureza.

Associada ao lixo est a questo do descartvel. Com o passar dos

anos, mais e mais objetos descartveis passaram a fazer parte de nossas vidas

dirias: sacos e sacolas de supermercados, garrafas, talheres e pratos,

telefones celulares, pilhas, baterias, aparelhos eletrodomsticos em geral, etc.

O lixo, para efeitos de coleta seletiva, dividido em dois grupos:

24 Informaes obtidas no site: http://www.ibire.org.br/lixo.htm no G o o g l e; em 24 jun. 2005.

http://www.ibire.org.br/lixo.htm

- lixo mido: composto de objetos no re-aproveitveis e/ou que se

decompem. Ex.: restos de alimentos, de vegetais, cascas, erva mate, papel

higinico, absorventes, fraldas descartveis, etc.;

- lixo seco: composto de objetos passveis de re-aproveitamento. Ex.:

papel, papelo, plsticos, metais, isopor, etc.

Ainda podemos classificar os resduos em:

- lixo domiciliar: constitudo pelo lixo produzido nas casas, bares,

lanchonetes, restaurantes, reparties pblicas, lojas, supermercados, comrcio,

empresas, organizaes em geral. composto por sobras de alimentos,

embalagens, papis, papeles, plsticos, vidros, pilhas, componentes eltrico-

eletrnicos, etc. O destino desses materiais o aterro sanitrio. Quando

separado adequadamente, poder ser feito a reciclagem de acordo com os dois

grupos citados acima.

- lixo industrial: o lixo produzido pelas indstrias, que possui

caractersticas prprias dependendo das matrias-primas utilizadas. Deve ter

um lugar apropriado para ser armazenado e/ou reciclado.

- lixo hospitalar: pode ser perigoso. Necessita ser acondicionado e

transportado em veculos especiais. Seu destino dever ter um tratamento

especfico ou ser destinado para um local apropriado. O ideal que seja

incinerado.

- lixo agrcola: composto basicamente por esterco, adubo qumico,

fertilizante, veneno qumico. O maior problema desse tipo de lixo as

embalagens que, at o momento, no tm destinao apropriada. O ideal seria

a obrigatoriedade do recolhimento das embalagens por parte da empresa que

vende o produto contido nelas, para um destino adequado 25.

- lixo tecnolgico: composto por TVs, rdios, aparelhos e/ou

componentes eltrico-eletrnicos em geral. semelhana do lixo agrcola,

deveria ser recolhido pela empresa vendedora do produto.

25 Isso deveria valer para todo o tipo de embalagem que est conectado com o produto vendido.

Segundo dados do IBGE, o Brasil produz 240 mil toneladas de lixo por

dia. Cada pessoa produz em torno de 5 kg de lixo, semanalmente. Isso poder

ser alterado dependendo do poder aquisitivo e do perfil consumidor da

populao. O que influencia tambm a quantidade de produtos

industrializados que so colocados a disposio. Quanto mais resduos esses

produtos deixarem para trs, mais lixo produzido.

At o presente momento, no Brasil, o poder pblico municipal o

responsvel pelo processo de coleta, transporte, tratamento e destinao final

dos resduos (seco ou mido). Nenhuma empresa que utiliza embalagens no

degradveis em seus produtos colocados venda responsvel pela

destinao do resduo.

Segundo dados do CEMPRE Compromisso Empresarial para

Reciclagem, 237 municpios brasileiros realizam programas de coleta seletiva,

sendo que a maior concentrao destes est nas regies sudeste e sul do pas.

Em Santo ngelo, a coleta seletiva feita desde 1998, recolhendo-se o

lixo seco e o lixo mido, em dias alternados. A populao responsvel pela

separao do seu lixo. Ela deve coloc-lo, devidamente acondicionado e

segundo escalas pr-estabelecidas, 26 em frente a sua residncia ou

estabelecimento pblico/privado, para que o caminho coletor o leve para o

aterro sanitrio ou para a usina de reciclagem. Esse processo de seleo

encontra dificuldades em seu efetivo funcionamento, especialmente no que diz

respeito separao do lixo por parte da populao.

A separao do lixo e a coleta seletiva so fundamentais para o processo

de reciclag