Álvares de azevedo - lira dos vinte anos (1866)

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Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos Texto-Fonte: Obra Completa de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994. Publicado na “Semana Literária”, seção do Diário do Rio de Janeiro, 26/06/1866. Quando, há cerca de dois ou três meses, tratamos das Vozes da América do Sr. Fagundes Varela, aludimos de passagem às obras de outro acadêmico, morto aos vinte anos, o Sr. Álvares de Azevedo. Então, referindo os efeitos do mal byrônico que lavrou durante algum tempo na mocidade brasileira, escrevemos isto: Um poeta houve, que, apesar da sua extrema originalidade, não deixou de receber esta influência a que aludimos; foi Álvares de Azevedo. Nele, porém, havia uma certa razão de consangüinidade com o poeta inglês, e uma íntima convivência com os poetas do norte da Europa. Era provável que os anos lhe trouxessem uma tal ou qual transformação, de maneira a afirmar-se mais a sua individualidade, e a desenvolver-se o seu robustíssimo talento. A estas palavras acrescentávamos que o autor da Lira dos Vinte Anos exercera uma parte de influência nas imaginações juvenis. Com efeito, se Lord Byron não era então desconhecido às inteligências educadas, se Otaviano e Pinheiro Guimarães já tinham trasladado para o português alguns cantos do autor de Giaour, uma grande parte de poetas, ainda nascentes e por nascer, começaram a conhecer o gênio inglês através das fantasias de Álvares de Azevedo, e apresentaram, não sem desgosto para os que apreciam a sinceridade poética, um triste ceticismo de segunda edição. Cremos que este mal já está atenuado, se não extinto. Álvares de Azevedo era realmente um grande talento: só lhe faltou o tempo, como disse um dos seus necrólogos. Aquela imaginação vivaz, ambiciosa, inquieta, receberia com o tempo as modificações necessárias; discernindo no seu fundo intelectual aquilo que era próprio de si, e aquilo que era apenas reflexo alheio, impressão da juventude, Álvares de Azevedo, acabaria por afirmar a sua individualidade poética. Era daqueles que o berço vota à imortalidade. Compare-se a idade com que morreu aos trabalhos que deixou, e ver-se-á que seiva poderosa não existia, naquela organização rara. Tinha os defeitos, as incertezas, os desvios, próprios de um talento novo, que não podia conter-se, nem buscava definir-se. A isto acrescente-se que a íntima convivência de alguns grandes poetas da Alemanha e da Inglaterra produziu, como dissemos, uma poderosa impressão naquele espírito, aliás tão original. Não tiramos disso nenhuma censura; essa convivência, que não poderia destruir o caráter da sua individualidade poética, ser-lhe-ia de muito proveito, e não pouco contribuiria para a formação definitiva de um talento tão real. Cita-se sempre, a propósito do autor da Lira dos Vinte Anos, o nome de Lord Byron, como para indicar as predileções poéticas de Azevedo. É justo, mas não basta. O poeta fazia uma freqüente leitura de Shakespeare, e pode-se afirmar que

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  • lvares de Azevedo: Lira dos vinte anos

    Texto-Fonte:

    Obra Completa de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994.

    Publicado na Semana Literria, seo do Dirio do Rio de Janeiro, 26/06/1866.

    Quando, h cerca de dois ou trs meses, tratamos das Vozes da Amrica do Sr. Fagundes Varela, aludimos de passagem s obras de outro acadmico, morto aos vinte anos, o Sr. lvares de Azevedo. Ento, referindo os efeitos do mal byrnico que lavrou durante algum tempo na mocidade brasileira, escrevemos isto:

    Um poeta houve, que, apesar da sua extrema originalidade, no deixou de receber esta influncia a que aludimos; foi lvares de Azevedo. Nele, porm, havia uma certa razo de consanginidade com o poeta ingls, e uma ntima convivncia com os poetas do norte da Europa. Era provvel que os anos lhe trouxessem uma tal ou qual transformao, de maneira a afirmar-se mais a sua individualidade, e a desenvolver-se o seu robustssimo talento.

    A estas palavras acrescentvamos que o autor da Lira dos Vinte Anos exercera uma parte de influncia nas imaginaes juvenis. Com efeito, se Lord Byron no era ento desconhecido s inteligncias educadas, se Otaviano e Pinheiro Guimares j tinham trasladado para o portugus alguns cantos do autor de Giaour, uma grande parte de poetas, ainda nascentes e por nascer, comearam a conhecer o gnio ingls atravs das fantasias de lvares de Azevedo, e apresentaram, no sem desgosto para os que apreciam a sinceridade potica, um triste ceticismo de segunda edio. Cremos que este mal j est atenuado, se no extinto. lvares de Azevedo era realmente um grande talento: s lhe faltou o tempo, como disse um dos seus necrlogos. Aquela imaginao vivaz, ambiciosa, inquieta, receberia com o tempo as modificaes necessrias; discernindo no seu fundo intelectual aquilo que era prprio de si, e aquilo que era apenas reflexo alheio, impresso da juventude, lvares de Azevedo, acabaria por afirmar a sua individualidade potica. Era daqueles que o bero vota imortalidade. Compare-se a idade com que morreu aos trabalhos que deixou, e ver-se- que seiva poderosa no existia, naquela organizao rara. Tinha os defeitos, as incertezas, os desvios, prprios de um talento novo, que no podia conter-se, nem buscava definir-se. A isto acrescente-se que a ntima convivncia de alguns grandes poetas da Alemanha e da Inglaterra produziu, como dissemos, uma poderosa impresso naquele esprito, alis to original. No tiramos disso nenhuma censura; essa convivncia, que no poderia destruir o carter da sua individualidade potica, ser-lhe-ia de muito proveito, e no pouco contribuiria para a formao definitiva de um talento to real. Cita-se sempre, a propsito do autor da Lira dos Vinte Anos, o nome de Lord Byron, como para indicar as predilees poticas de Azevedo. justo, mas no basta. O poeta fazia uma freqente leitura de Shakespeare, e pode-se afirmar que

  • a cena de Hamlet e Horrio, diante da caveira de Yorick, inspirou-lhe mais de unia pgina de versos. Amava Shakespeare, e da vem que nunca perdoou a tosquia que lhe fez Ducis. Em torno desses dois gnios, Shakespeare e Byron, juntavam-se outros, sem esquecer Musset, com quem Azevedo tinha mais de um ponto de contato. De cada um desses caram reflexos e raios nas obras de Azevedo. Os "Bomios" e "O Poema de Frade", um fragmento acabado, e um borro, por emendar, explicaro melhor este pensamento. Mas esta predileo, por mais definida que seja, no traava para ele um limite literrio, o que nos confirma na certeza de que, alguns anos mais, aquela viva imaginao, impressvel a todos os contatos, acabaria por definir-se positivamente. Nesses arroubos da fantasia, nessas correrias da imaginao, no se revelava somente um verdadeiro talento; sentia-se uma verdadeira sensibilidade. A melancolia de Azevedo era sincera. Se excetuarmos as poesias e os poemas humorsticos, o autor da Lira dos Vinte Anos raras vezes escreve uma pgina que no denuncie a inspirao melanclica, uma saudade indefinida, uma vaga aspirao. Os belos versos que deixou impressionam profundamente; "Virgem Morta", " Minha Me", "Saudades", so completas neste gnero. Qualquer que fosse a situao daquele esprito, no h dvida nenhuma que a expresso desses versos sincera e real. O pressentimento da morte, que Azevedo exprimiu em uma poesia extremamente popularizada, aparecia de quando em quando em todos os seus cantos, como um eco interior, menos um desejo que uma profecia. Que poesia e que sentimento nessas melanclicas estrofes! No difcil ver que o tom dominante de uma grande parte dos versos ligava-se a circunstncias de que ele conhecia a vida pelos livros que mais apreciava. Ambicionava uma existncia potica, inteiramente conforme ndole dos seus poetas queridos. Este af dolorido, expresso dele, completava-se com esse pressentimento de morte prxima, e enublava-lhe o esprito, para bem da poesia que lhe deve mais de uma elegia comovente. Como poeta humorstico, Azevedo ocupa um lugar muito distinto. A viveza, a originalidade, o chiste, o humour dos versos deste gnero so notveis. Nos "Bomios", se pusermos de parte o assunto e a forma, acha-se em Azevedo um pouco daquela versificao de Dinis, no na admirvel cantata de Dido, mas no gracioso poema do Hissope. Azevedo metrificava s vezes mal, tem versos incorretos, que havia de emendar sem dvida; mas em geral tinha um verso cheio de harmonia, e naturalidade, muitas vezes numeroso, muitssimas eloqente. Ensaiou-se na prosa, e escreveu muito; mas a sua prosa no igual ao seu verso. Era freqentemente difuso e confuso; faltava-lhe preciso e conciso. Tinha os defeitos prprios das estrias, mesmo brilhantes como eram as dele. Procurava a abundncia e caa no excesso. A idia lutava-lhe com a pena, e a erudio dominava a reflexo. Mas se no era to prosador como poeta, pode-se afirmar, pelo que deixou ver e entrever, quanto se devia esperar dele, alguns anos mais. O que deixamos dito de Azevedo podia ser desenvolvimento em muitas pginas, mas resume completamente o nosso pensamento. Em to curta idade, o poeta da Lira dos Vinte Anos deixou documentos valiosssimos de um talento robusto e de uma imaginao vigorosa. Avalie-se por a o que viria a ser quando tivesse desenvolvido todos os seus recursos. Diz-nos ele que sonhava, para o teatro, uma reunio de Shakespeare, Calderon e Eurpedes, como necessria reforma do gosto da arte. Um consrcio de elementos diversos, revestindo a prpria individualidade, tal era a expresso de seu talento.