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66 Revista Brasileira de Neurologia » Volume 50 » Nº 3 » jul - ago - set, 2014 Rev Bras Neurol. 50(3):66-9, 2014 Nota HISTÓRICA Aloysio de Castro, o precursor da neurossemiologia no Brasil Aloysio de Castro, the pioneer of neuro-semiology in Brazil Péricles Maranhão-Filho 1 1 Professor adjunto IV de Neurologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); neurologista do Instituto Nacional de Câncer “José Alencar Gomes da Silva” (Inca) do Rio de Janeiro – Hospital do Câncer I HC-I. Endereço para correspondência: Dr. Péricles Maranhão-Filho. Av. Prefeito Dulcídio Cardoso, 1680/1802 – 22620-311 – Rio de Janeiro, RJ, Brasil. www.neurobarra.com RESUMO Este artigo trata de um pouco da vida e obra de um excepcional pro- fessor, médico, crítico literário e musical, compositor e poeta. Aloy- sio de Castro perfez um curso médico excepcional e o concluiu de modo brilhante e inovador com tese a respeito das desordens da marcha, posteriormente considerada uma “verdadeira obra literária” . Em 1907, de volta ao Rio de Janeiro, após ter passado por treina- mento em Paris com Pierre Marie, instituiu o primeiro ambulatório didático da cidade do Rio de Janeiro, e, alguns anos depois (1914), publicou o primeiro livro brasileiro totalmente voltado para a neu- rossemiologia. Nesse livro, Aloysio de Castro mais uma vez inova, apresentando fotografias – e não desenhos – e trechos de filmes dos seus pacientes, tornando-se também um dos pioneiros na cinemato- grafia como método de investigação e de ensino médico no Brasil. Palavras-chave: Aloysio de Castro, neurossemiologia, iconografia. ABSTRACT This article deals with some aspects of the life and work of a great teacher and physician, who was also musical and literary critic, com- poser and poet. Aloysio de Castro fulfilled an exceptional medical school course and concluded it in a brilliant and innovative way pre- senting a thesis on gait disorders, which came to be defined as a “genuine literary work” . In 1907, back to Rio de Janeiro, after having undergone training in Paris with Pierre Marie, he installs the first in- structional clinic in the city of Rio de Janeiro, and some years later (1914), publishes the first Brazilian book devoted entirely to neuro- semiology. In this book Aloysio de Castro once again innovates by presenting photographs – and not drawings – and film clips of his pa- tients, and thus becomes one of the pioneers in the cinematography as a method of research and medical education in Brazil. Keywords: Aloysio de Castro, neuro-semiology, iconography.

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66 Revista Brasileira de Neurologia » Volume 50 » Nº 3 » jul - ago - set, 2014

Rev Bras Neurol. 50(3):66-9, 2014

Nota HISTÓRICA

Aloysio de Castro, o precursor da neurossemiologia no Brasil

Aloysio de Castro, the pioneer of neuro-semiology in Brazil

Péricles Maranhão-Filho1

1 Professor adjunto IV de Neurologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); neurologista do Instituto Nacional de Câncer “José Alencar Gomes da Silva” (Inca) do Rio de Janeiro – Hospital do Câncer I HC-I.

Endereço para correspondência: Dr. Péricles Maranhão-Filho. Av. Prefeito Dulcídio Cardoso, 1680/1802 – 22620-311 – Rio de Janeiro, RJ, Brasil. www.neurobarra.com

RESUMOEste artigo trata de um pouco da vida e obra de um excepcional pro-fessor, médico, crítico literário e musical, compositor e poeta. Aloy-sio de Castro perfez um curso médico excepcional e o concluiu de modo brilhante e inovador com tese a respeito das desordens da marcha, posteriormente considerada uma “verdadeira obra literária”. Em 1907, de volta ao Rio de Janeiro, após ter passado por treina-mento em Paris com Pierre Marie, instituiu o primeiro ambulatório didático da cidade do Rio de Janeiro, e, alguns anos depois (1914), publicou o primeiro livro brasileiro totalmente voltado para a neu-rossemiologia. Nesse livro, Aloysio de Castro mais uma vez inova, apresentando fotografias – e não desenhos – e trechos de filmes dos seus pacientes, tornando-se também um dos pioneiros na cinemato-grafia como método de investigação e de ensino médico no Brasil.

Palavras-chave: Aloysio de Castro, neurossemiologia, iconografia.

ABSTRACTThis article deals with some aspects of the life and work of a great teacher and physician, who was also musical and literary critic, com-poser and poet. Aloysio de Castro fulfilled an exceptional medical school course and concluded it in a brilliant and innovative way pre-senting a thesis on gait disorders, which came to be defined as a “genuine literary work”. In 1907, back to Rio de Janeiro, after having undergone training in Paris with Pierre Marie, he installs the first in-structional clinic in the city of Rio de Janeiro, and some years later (1914), publishes the first Brazilian book devoted entirely to neuro-semiology. In this book Aloysio de Castro once again innovates by presenting photographs – and not drawings – and film clips of his pa-tients, and thus becomes one of the pioneers in the cinematography as a method of research and medical education in Brazil.

Keywords: Aloysio de Castro, neuro-semiology, iconography.

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“Não procurai a verdade na palavra dos médicos, buscai sòmente o consôlo.

Aos médicos e aos caçadores se reserva o direito de mentir desencarnadamente.”

Aloysio de Castro7

Aloysio de Castro nasceu na cidade do Rio de Ja-neiro, em 14 de junho de 1881. Era filho de Francis-co de Castro e Maria Joana Monteiro de Castro. Seu pai, que também foi médico, professor e diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, conheci-do como “o divino mestre”, faleceu prematuramente em 1901, aos 45 anos, acometido por pneumonia pestosa (peste bubônica) contraída de um paciente que ele havia examinado poucos dias antes.1,2

Aloysio de Castro foi um ser ímpar. Atuou como médico, professor universitário, escritor, poeta e mú-sico, além de crítico musical. Era um homem erudi-to e extremamente educado. Falava francês e alemão como se de lá fosse.3 Possuía pele clara e suave, era calvo, com grossos bigodes (Figura 1A), gestos cal-mos, nunca exagerados, e fala pausada e sem afeta-ção. Escreveu diversos artigos sobre temas médicos, alguns livros, dezenas de poemas e algumas compo-sições musicais. Ingressou na Faculdade de Medicina em 1898, e até o 4º ano foi aluno de seu pai. Desta-

cou-se em todo o curso como melhor aluno de sua turma. Formou-se em 1903. Sua tese de conclusão de curso, com 232 páginas, denominada “Das desor-dens da marcha e seu valor clínico”,4 representou uma verdadeira inovação, tanto na forma quanto no con-teúdo, dos trabalhos médicos da época (Figura 1B). Nessa ocasião, Aloysio tinha apenas 22 anos de idade.

Por ter concluído o curso médico com distinção, o Conselho da Faculdade de Medicina premiou Aloy-sio de Castro com uma viagem ao exterior, a fim de aprimorar seus conhecimentos. Com carta de reco-mendação do grande mestre Miguel Couto, em maio de 1906 aportou em Paris e apresentou-se a Pierre Marie, na época considerado o melhor neurologista vivo. Seu treinamento na França incluiu tanto a Clí-nica Neurológica quanto a Clínica Médica. Conviveu com os célebres professores Widal e Chauffard, além de ter participado das atividades rotineiras do Hôpi-tal Bicêtre, assim como do Hospice de la Salpêtrière, L’Hospice de La Charité, Lariboisière, Beaujon, Hô-tel-Dieu, entre outros.1,3

De volta ao Brasil em 1907, atuou na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e foi chefe da Clí-nica Médica da Policlínica Geral do Rio de Janeiro (PGRJ), instituição fundada em 1881, coincidente-mente o mesmo ano de nascimento de Aloysio de

Figura 1. (A) Professor Dr. Aloysio de Castro (1881-1959). (B) Página inicial da tese de conclusão do curso de Medicina, publicada em 1904. Segundo Pedro Nava3: “Trata de assunto inédito no nosso meio e novo nos centros científicos internacionais...”.

Aloysio de Castro e neurossemiologia

A B

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Castro, destinada tanto ao atendimento gratuito de doentes sem poder aquisitivo como ao ensino da Medicina e inspirada na famosa Policlínica de Viena. Na PGRJ, Aloysio de Castro criou o primeiro am-bulatório didático do país e inovou no estudo e na divulgação do ensino médico por meio da documen-tação de pacientes filmados. Produziu 130 filmes de doenças neurológicas, com foco principal nos distúr-bios da marcha e do movimento (*).3 Dizia: “O que não atrai atenção no exame direto do doente já não escapa na imagem impressa...”. Cumpre lembrar que todo o ensino objetivo que se faz hoje, com o uso da projeção, foi introduzido por Aloysio de Castro, na PGRJ, entre 1907 e 1946.

Em 1908, então com 28 anos de idade, obtém o primeiro lugar nas provas para professor substituto da sexta seção da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (**).

No ano seguinte é empossado como professor catedrático de patologia médica e, em 1915, é trans-ferido para a cátedra de clínica médica, que exercerá até sua aposentadoria voluntária, em 1940.1

* Dois excelentes pesquisadores, médicos e autores – J. P. Lopes Pontes1 e Pedro Nava3 – registraram a exis-tência de 130 filmes produzidos por Aloysio de Castro na PGRJ. Apesar da intensa procura por meio de deze-nas de contatos telefônicos, troca de e-mails e pesquisa de campo – Museu Nacional (UFRJ), Museu da Academia Nacional de Medicina, acervo Pedro Nava na Casa de Rui Barbosa, PGRJ etc. –, não conseguimos localizar nem um dos filmes citados. A procura por parentes e amigos mais próximos de Aloysio de Castro que pudessem ter a guarda dessa importante documentação cinematográfica se mos-trou infrutífera. Aproveitamos a oportunidade para soli-citar aos leitores da Revista Brasileira de Neurologia que, caso possuam alguma informação ou contato que possa nos aproximar da possibilidade de encontrarmos os filmes de Aloysio de Castro, por favor nos comuniquem.

** A atual Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (assim intitulada desde 1965) passou por diversas denominações: Escola de Anatomia, Medicina e Cirurgia (1808), Academia Médico-Cirúrgica (1813), Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1832), Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro (1920) e Faculdade Nacional de Medicina da Universida-de do Brasil (1937).

Aloysio de Castro era contra a “mecanização” do diagnóstico médico (o exagero na solicitação de exa-mes complementares), que afasta, a ponto de quase poder dispensar, a interferência do médico clínico. Repetidas vezes dizia: “A personalidade clínica deve ficar preservada, sem prejuízo dos resultados dos exames laboratoriais” e “não será bom médico quem não for observador da natureza e discípulo dela: sa-ber reconhecer um sintoma ou sinal; por muito que seja, é pouco; procurai explicá-los, interpretá-los, de-fini-los no íntimo de sua essência”.

Em 1914, publicou o primeiro livro nacional to-talmente voltado para a neurossemiologia; “Tracta-do de semiotica nervosa”5 (Figuras 2A e 2B), que, segundo Pedro Nava3, provocou uma verdadeira revolução nos compêndios didáticos da época, pois inaugurou a iconografia médica nacional, quando, pela primeira vez na história das publicações médicas nacionais, foram utilizadas sistematicamente fotogra-fias – e não desenhos –, além de trechos de filmes como peças de ensino (Figura 2C). Nesse mesmo ano AC (como constava bordado no bolso do seu guarda-pó de linho branco), foi eleito diretor da fa-culdade de Medicina. Em 1915, assumiu a cátedra de Clínica Médica da Faculdade de Medicina, onde permaneceu até 1940. Em 1935, publicou a segun-da edição, “revista e aumentada”, do seu livro sobre neurossemiologia com o título de “Semiotica nervo-sa”,6 dedicando-o ao seu pai e a Miguel Couto (post-mortem).

Aloysio de Castro aposentou-se em 3 de dezem-bro de 1940, aos 59 anos, e passou quase 20 anos compondo, escrevendo textos médicos e participan-do de encontros científicos.1

Maranhão-Filho P

Figura 2. (A) Capa do Tractado de Semiotica Nervosa, de 1914, primeiro livro brasileiro de semiologia neurológica com fotos de pacientes (o livro pode ser encontrado na Biblioteca do Instituto de Neurologia Deolindo Couto – Av. Venceslau Brás, 95, Botafogo, Rio de Janeiro, RJ). (B) Página de rosto do Tractado de Semiotica Nervosa. (C) Andar atáxico. Tabes. “Reproducção cinematographica”. Policl. Ger. do Rio de Jan.). Observação pessoal. Castro A. Pág. 72. Fig. 54.

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Acometido por doença consumptiva que o acom-panhou por alguns anos, faleceu na quietude de sua própria casa no Rio de Janeiro, em 7 de outubro de 1959, cercado por imagens sacras e assistido por seu médico particular e amigo Dr. Lafayete, a quem con-fessou que gostaria de chegar aos 80 anos.

O autor afirma não ter recebido subsídio financei-ro e não haver conflito de interesses.

NOTA: Parte desta Nota Histórica foi apresenta-da como conferência na Primeira Jornada Regional de Neuro-história, do Instituto de Neurologia Prof. Americo Ricaldoni do Hospital de Clinica, Montevi-déu, Uruguai, em 28 de setembro de 2012.

REFERênCiAS1. Pontes JPL. Aloysio de Castro. F Méd (BR). 1981;83(3):271-7.

2. Pereira Jr. JJ. Vida e obra do professor Aloysio de Castro. Monografia. Acta Médica Chirurgica Brasiliense. 1979, p. 40-2.

3. Nava P. Aloysio de Castro, o gentil-homem da medicina brasileira. In: A Medicina de Os Lusíadas. São Paulo: Oficina do Livro; 2004. p. 73-101.

4. Castro A. Das desordens da marcha e seu valor clínico [tese]. Rio de Janeiro: Laemmert & Cia.; 1904. p. 232.

5. Castro A. Tractado de semiotica nervosa. Rio de Janeiro: F. Briquiet & Cia.; 1914.

6. Castro A. Semiotica nervosa. Rio de Janeiro: F. Briquiet & Cia.; 1935.

7. Castro A. Discursos, conferências, escritos vários. 2ª ed. Rio de Janeiro: Vecchi; 1957. 2 v.

Aloysio de Castro e neurossemiologia