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1 CONVULSÕES INTESTINAS O ex-ministro e deputado federal Almino Affonso, um dos últimos protagonistas vivos do Governo João Goulart, analisa as entranhas do processo que levou à deposição do presidente, em 2 de abril de 1964. (Entrevista a Gabriel Priolli, em fevereiro de 2014.) O presidente trabalhista e seu ministro do trabalho

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CONVULSÕES INTESTINAS O ex-ministro e deputado federal Almino Affonso, um dos últimos protagonistas vivos do Governo João Goulart, analisa as entranhas do processo que levou à deposição do presidente, em 2 de abril de 1964. (Entrevista a Gabriel Priolli, em fevereiro de 2014.)

O presidente trabalhista e seu ministro do trabalho

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RAÍZES DO GOLPE Dr. Almino, quando começam os problemas políticos que vão levar à queda do governo João Goulart? Acho que as motivações vêm desde 1950, por incrível que pareça, quando Getulio Vargas chega ao poder, já então numa eleição com uma vitória excepcional. Entre os temas mais significativos do seu governo naquele período, houve a proposta da Petrobrás, a criação de uma empresa diretamente vinculada às questões do petróleo. Ela provocou uma divisão de opiniões, a respeito de como proceder, muito radical. Havia a tese que nós sustentávamos, os nacionalistas, em favor do monopólio estatal do petróleo, e uma tese dos setores mais conservadores e dos interesses americanos, que optavam por uma saída privatista, capaz de permitir a participação do capital privado nacional e, na prática, do capital estrangeiro. Outro ponto é a Eletrobrás, que também nasce como proposta do período Getulio Vargas, lá atrás, em 1950. Esses dois temas, que foram muito polêmicos, atravessam todo aquele período, com uma enorme influência nas questões políticas e, de uma maneira muito direta, nas eleições. Quando Goulart chega ao poder, já traz consigo resistências ponderáveis dos setores conservadores do país, e dos Estados Unidos em particular, por conta desses dois temas. Esta é a origem que realmente precisa ser levada em conta, para que não pareça que tudo foi um acaso em 1964.

O pano de fundo da política, então, nesse período de 1950 a 1964, seria o debate a respeito de uma economia totalmente livre e internacionalizada, aberta ao capital estrangeiro, versus uma política de fortalecimento do poder de estado e de defesa de interesses nacionais? Àquela época, de fato, a visão de como proceder o desenvolvimento econômico do país tinha duas premissas. Uma através da intervenção da iniciativa privada em todos os ramos e uma outra que reclamava uma intervenção direta do estado, como fator propulsor do desenvolvimento econômico. A segunda chamamos de nacionalista e realmente marca, de maneira muito aguda, a elaboração dos nossos projetos políticos e econômicos. Discutíamos se devíamos ter ou não a iniciativa privada em tantas atividades econômicas importantes. Além do petróleo e da energia elétrica, perguntávamos se outros setores também não deveriam se desenvolver com a presença predominante do estado, como a indústria farmacêutica, a Aerobrás e outras tantas.

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Essa questão do nacionalismo e do fortalecimento do papel do estado é que dividia os campos políticos, esquerda, direita? Como era o quadro político, em relação a essa questão? O Partido Trabalhista Brasileiro era aquele que mais de perto encarnava uma visão nacionalista, ao lado do Partido Nacionalista Brasileiro. Mas todos os partidos, menos talvez o de origem integralista, subdividiram-se internamente em facções de caráter nacionalista e não-nacionalista. O PTB, a UDN, o PSB, todos ganharam uma facção nacionalista, que passou a ter peso significativo. Daí nasceu a Frente Parlamentar Nacionalista, precisamente incorporando esses grupos, que eram a rigor embriões de um futuro partido que não nasceu. A Frente nasce em 1958, portanto ainda no período Juscelino Kubitschek. Mas ela prorroga-se em seguida no governo João Goulart, com muita ênfase.

GUERRA FRIA Nesse contexto de que estamos falando, o auge da Guerra Fria, anos 50, embate forte entre Estados Unidos e União Soviética, tudo que soasse como nacionalismo era perseguido ou combatido como comunismo potencial? Isso realmente tinha uma cara paradoxalmente ligada ao choque entre os Estados Unidos e União Soviética, no ciclo que se chamou de “Guerra Fria”. Eram duas potências disputando o poder, inclusive em termos da bomba atômica, e por conta disso havia sempre a questão econômica. Uma visão nacionalista, que implicasse limites à entrada do capital estrangeiro na economia nacional, criava um choque maior. Para os Estados Unidos, o monopólio estatal do petróleo era algo que contrariava os seus interesses e de alguma forma parecia favorecer a União Soviética. A política americana para o Brasil era diferente do restante da América Latina? Ou, no contexto da guerra fria, os Estados Unidos tratavam de assegurar que todo o continente estivesse sob a sua influência? Nada era realmente limitado ao Brasil. Ao contrário, como projeção da guerra fria, os Estados Unidos passaram a ter uma política rigorosamente de estímulo, de apoio intensivo a golpes de estado na América Latina, que pudessem conter políticas limitadamente nacionalistas. Isso se deu de maneira quase absoluta na região. Começa pela Argentina. Nosso golpe foi em 1964, a Argentina tinha sido em 1963. Em seguida, você tem na Bolívia, no Paraguai, no Peru, depois mais tardiamente no Chile. A visão era a mesma. Além de outras razões de ordem política global, havia a questão

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econômica, a de ter países abertos ao capital privado. Vale dizer, ao capital americano. Esse papel dos Estados Unidos na América Latina já era claramente percebido nesse período? Sem dúvida, não era uma visão só minha. Era a visão coletiva dos chamados setores nacionalistas. Mas é importante destacar também que não era algo tão globalizado, a ponto de não haver exceções. Por exemplo, o Governo Juscelino Kubitschek claramente dividiu-se. Ele tinha um compromisso nacionalista absoluto no âmbito do monopólio estatal do petróleo, mas não mexeu uma palha para que se constituísse a Eletrobrás. O projeto de Getúlio Vargas atravessou daquela época até o Governo João Goulart, para se converter em lei. O governo do Juscelino caracteriza-se pelo chamado Plano de Metas, uma abertura claríssima ao capital estrangeiro. No âmbito do automóvel, da indústria naval, nas mais diferentes áreas da economia industrial, Juscelino abriu espaços significativos. Eu diria que ele faz o equilíbrio entre a abertura do capital ao mundo estrangeiro e a preservação do monopólio estatal do petróleo. Ou porque acreditava realmente nisso ou porque tinha ao lado um ministro da guerra, Teixeira Lott, que era absolutamente favorável ao monopólio. Como o senhor avalia a figura de João Goulart nesse período? A demonização que ele enfrentou quando presidente já começa nesses anos 1950, quando defendia bandeiras nacionalistas? João Goulart tem uma carreira política que começa muito jovem, como deputado estadual no Rio Grande do Sul. Depois, como deputado federal e mais ainda como um aliado direto de Getúlio, inclusive cumprindo tarefas na campanha que ele travou contra o General Dutra. Jango foi umas das lideranças talvez mais significativas, na tarefa de levar ao país a mensagem de Getúlio, quando ele era candidato a voltar ao poder. Nesse segundo governo de Getúlio, Jango é ministro do trabalho, diretamente ligado à questão social, ao diálogo com dirigentes sindicais. Tem a audácia de tentar fazer de imediato um aumento substantivo do salário mínimo, na ordem de 100%. Ou seja, ele era percebido, inicialmente, por um conjunto de aspectos na área social, mais do que pela tentativa de implementar um projeto nacionalista. O deputado Leonel Brizola disse que Jango trazia a marca política do nacionalismo da juventude, por conta das grandes empresas que transacionavam na área da carne no Rio Grande do Sul e atingiam interesses pessoais dele. Brizola já previa o confronto de Jango com as empresas internacionais. Eu não sei. Mas, a partir do instante em que João Goulart assume a Presidência, anos depois, a sua face nacionalista fica evidente. Era uma projeção nítida do que ele tinha aprendido ao lado de Getulio Vargas.

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VICE-PRESIDÊNCIAS Estamos nos anos 1950 e, na época, presidente e vice-presidente eram votados separadamente, não formavam uma chapa. Jango torna-se vice-presidente de Juscelino e depois, de Jânio. Como se dá esse processo? O quadro político desses anos tem várias nuances, que nem sempre são fáceis de explicar. Num certo momento, a candidatura que o Juscelino Kubitschek propunha nos bastidores era a de Juraci Magalhães, a grande figura da UDN. Era um paradoxo total, ele indicar como seu sucessor um adversário político! Mas era o rumor que corria naquela época e que depois Jânio Quadros confirma nas suas memórias, com a mais absoluta clareza. Juscelino imaginava que, através da candidatura de uma liderança da UDN, o país passaria por um período de calma maior, porque a UDN deixaria de ter qualquer intenção conspiratória para chegar ao poder. Chegaria pelas urnas, se conseguisse. Ele também achava que uma candidatura udenista não levaria à contestação permanente do governo, por conta do petróleo. Mas essa ideia não prevaleceu. Juscelino apóia por fim a candidatura do Marechal Teixeira Lott, com João Goulart de vice, casados estreitamente pela questão do petróleo. Lott era a grande figura, que dizia “a Petrobrás é intocável!”, e Jango já tinha se convertido numa das grandes vozes do monopólio da Petrobras. Esse foi o centro daquela campanha, em 1956. Numa eleição que permitia uma chapa autônoma, candidato a presidente e candidato a vice, João Goulart teve mais votos que o próprio Lott. Superou o titular. Isso é para dizer que Jango tinha realmente uma capacidade de comunicação popular razoavelmente alta, para lhe dar vitórias desse tipo. Isso tudo tinha ou não aspectos negativos? Eu diria que tinha e continuo a achar. A chapa deve ser unitária, para que um e outro representem o todo de uma preposição política diante do povo. Mas não foi que aconteceu nessa eleição e na seguinte, quando tivemos a vitória de Jânio Quadros para presidente e, de novo, a vitória de Jango como vice. Esse, então, passou a ser o comando político do país, um paradoxo absoluto. Desde a juventude, no tempo de vereador, depois deputado estadual e prefeito de São Paulo, Jânio tinha uma história eminentemente nacionalista, absolutamente a favor do monopólio estatal do petróleo. Mas tinha rompido com isso, a partir de um certo instante, quando foi governador de São Paulo. “O estado é mau patrão!” é a famosa tese dele, nessa mudança de posição. Pois então, a partir de 1960, Jânio estava na presidência com um vice de posição rigorosamente oposta. Era um paradoxo, não fazia bem ao país essa dicotomia.

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De fato, essa dicotomia mostrou-se ruim muito imediatamente, porque, quando Jânio renuncia, poucos meses depois de começar o governo, forma-se a crise da posse de Jango. Objetivamente, não se tratava do vice-presidente assumir o poder que ficou vago, mas significava ele assumir com uma propositura oposta à do Presidente que havia renunciado. De certa forma, então, a crise institucional de 1961 estava embutida no próprio sistema político, nas regras do jogo eleitoral. Havia a percepção de que, em algum momento, essa dicotomia levaria a uma grande crise? Sim e não, mas a crise ficou evidente com a renúncia de Jânio. Aliás, vamos fazer um reparo imediato. “Renúncia” é maneira de dizer. O que houve foi uma tentativa do Jânio provocar um golpe de estado. Há um livro de autoria dele próprio, em parceira com Afonso Arinos de Melo Franco, ministro das relações exteriores do seu governo, em que ele confessa a trama do golpe. Por que houve a renúncia? Foi para tramar um golpe que malogrou. Os militares, de alguma maneira, falharam com o Jânio e até hoje eu não entendi bem o porquê. O que posso dizer é que foi de um absurdo total. Eu estava na Câmara, era deputado federal naquele instante, líder do PTB, quando fomos surpreendidos, às três horas da tarde do dia 24 de agosto de 1961. Passavam por mim dezenas de jornalistas dizendo “Jânio renunciou!”. Eu vou a tribuna, tomo a carta dele ao povo. Não o ofício de renúncia de 3 linhas, mas a carta dirigida ao povo, explicando o porquê da sua decisão. Ele diz que está tudo em ordem, que os militares estão de acordo em manter a ordem constitucional. Ele elogia o empresariado, faz homenagens ao trabalhador, elogia todos e diz que, apesar disso, não se sente em condições de continuar o governo com a dimensão que ele gostaria de ter. Portanto, renuncia. Eu, na hora, faço essa análise: se está tudo em ordem, se os militares estão de acordo, se não há tumulto, por que a renúncia? Diz o Afonso Arinos, nesse livro, que era para criar uma nova institucionalidade. Qual? Não está expresso. Em nenhum lugar. Eu não vejo realmente nenhuma explicação formal do projeto que ele teria, se acaso houvesse criado um novo regime ditatorial. Quando Jânio renuncia, surge a tese de que ele estaria sendo pressionado por certas “forças ocultas”. Uma especulação foi de que essas forças seriam “fogo amigo”, ou, mais precisamente, pressões de um aliado político, Carlos Lacerda. É fato isso? Lacerda foi a principal “força oculta” da renúncia de Jânio? Ele nunca mencionou “forças ocultas”, para ser honesto. O oficio dele não faz nenhuma referência a isso. Como hoje eu tenho absoluta convicção de que houve a tentativa de um golpe articulado – e ele confessa -, não há de ter sido esse ou aquele episódio menor que determinou a renúncia. Entretanto, vale a pena mencionar uma historieta. Na véspera da renúncia, o Governador Lacerda tinha ido a Brasília, pleiteando uma audiência através de Dona Eloá, a mulher de Jânio. Ele estava meio azedo com o presidente por conta de algumas

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manifestações curiosas, como, por exemplo, a condecoração do Che Guevara. Para Lacerda, isso pareceu um absurdo absoluto. E não deixava de ser, de alguma forma. Condecorar um homem de estado às seis da manhã, eu nunca tinha visto. Mas o Jânio fez. O presidente hospeda Lacerda no Palácio do Alvorada, mas pede que que ele vá visitar o ministro da justiça, Pedroso Horta. É quando Pedroso o inicia no golpe que estava sendo tramado. Até então, havia um absoluto desconhecimento do Lacerda sobre esse assunto. E o que consta é que Lacerda recusa, protesta. O governador vai para o Alvorada e, chegando lá, sua mala está na guarita da entrada. Ele tinha sido despejado pelo Jânio. No dia seguinte, já no Rio de Janeiro, Lacerda dá uma entrevista que ficou famosa, denunciando o convite de Pedroso Horta teria feito a ele em nome de Jânio, para o golpe de estado. E, com esse fato, detona a decisão da renúncia. Como a oposição reagiu a essa notícia bombástica? Dentro dos setores mais ou menos à esquerda, começou um rumor de que, quem sabe, era um golpe contra Jânio. Apesar de contraditórias, ele tinha tomado algumas medidas que também contrariavam os setores conservadores. Por exemplo, tinha pedido a Afonso Arinos que começasse as démarches para o reatamento das relações diplomáticas com a União Soviética. Tinha condecorado Che Guevara e dado declarações de respeito à autodeterminação dos povos, favorecendo Cuba. Isso não agradava nem de leve os setores conservadores do país e menos ainda os Estados Unidos. Então, alguns setores da esquerda da Câmara, meus companheiros do PTB, o bloco compacto do qual eu era um dos líderes, aventaram a hipótese: na verdade, não é uma renúncia e sim um golpe contra o Jânio. Essa hipótese estava crescendo, mas eu achava, com uma intuição mediúnica, que não tinha lógica nenhuma. Achava que, ao contrário, sua carta negava qualquer hipótese de golpe contra ele. Vou a tribuna e faço um discurso, talvez o mais radical que eu tenha feito na vida. É quando anuncio que, a olhos vistos, Jânio estava preparando um quadro para voltar, na plenitude do poder ditatorial. Mas a minha expressão foi meramente política e não jurídica, porque renúncia é um ato unilateral de vontade. Do ponto de vista jurídico, ao ser declarada ela se completa. Portanto, não cabia que a declaração de Jânio fosse submetida a debate no parlamento. Já era um fato absolutamente completo e acabado.

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CRISE DA POSSE Com a renúncia de Janio, a crise da posse de Jango imediatamente se instaurou? Sim, de imediato. Tão logo se toma conhecimento de que o vice-presidente João Goulart estava em Cingapura, já retornando de uma viagem à China, a posse transitória do presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, obviamente era algo da norma constitucional, sem nenhuma implicação que nos inquietasse. Mas de imediato passa haver a reação dos três ministros militares, sobretudo do Marechal Odilo Denys, ministro da guerra. Nos bastidores, começaram a dizer que era inaceitável a posse de João Goulart no poder. Como os rumores cresceram, eu me recordo que o deputado gaúcho Rui Ramos foi ao marechal interpelá-lo. Ele disse: “É a minha palavra, que o senhor pode transmitir ao seu governador ou a quem queira. Se o Presidente João Goulart chegar ao país será preso!”. O deputado vai à Câmara e, em discurso, revela isso que estou dizendo. Os militares se sentiram no dever, como eles próprios disseram num texto que foi publicado em todos os jornais da época, de explicar o porquê. Disseram que era para salvaguardar a democracia, porque João Goulart era um homem que tinha compromissos com os comunistas desde o tempo que tinha sido ministro do trabalho, lá no governo Getulio Vargas, e outras acusações graves contra ele. Portanto os militares não aceitavam a sua posse. Isso provocou uma reação bem forte do mundo político. Com certeza. Deflagrou-se um processo político intensivo e, do Rio Grande do Sul, pela palavra incendiária do Governador Leonel Brizola, vem a convocação ao povo para garantir a posse de João Goulart. De imediato, as tropas da Brigada Militar posicionam-se em torno do Palácio Piratini, para dar o significado de que a garantia não seria apenas a palavra. E Brizola começou a denunciar a tentativa de golpe através de um programa de rádio, que foi ouvido no país inteiro. Era a chamada Cadeia da Legalidade. Nesse ínterim, há dois fatos da maior importância. Primeiro, são os sargentos da Base Aérea de Canoas que se rebelam, ao tomar conhecimento de que havia a ameaça de que eles fossem chamados a bombardear o Piratini, por ordem do General Ernesto Geisel, chefe da Casa Militar. Conseguem impedir o fato, furando os pneus dos aviões, tirando as peças chaves, prendendo oficiais. Mas o mais importante: o comandante do III Exército, General Machado Lopes, em defesa da ordem constitucional, assume a posição de que João Goulart tinha direito à posse, conforme as normas da lei. É um momento decisivo, porque ele pede uma audiência e vai ao palácio para conversar com o Brizola, levando o seu estado maior. O receio de todos que lá estavam é um só: vem para prender o governador? Mas não é para isso, ao contrário. Vai levar a adesão do III Exército à resistência democrática.

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Em Brasília, vamos à tribuna da Câmara revelar isso ao povo e há um incêndio de entusiasmo democrático. Nesse mesmo momento há a adesão do governador de Goiás, Mauro Borges, que põe a sua polícia militar em prontidão. E sucessivas manifestações desse tipo vão acontecendo, até se formar um quadro de confronto inevitável. O deputado Adauto Lucio Cardoso, da UDN, jurista, uma grande figura, dá entrada no Supremo Tribunal Federal de um processo de responsabilidade contra os ministros militares, por estarem desrespeitando a ordem constitucional. Isso poderia levá-los a serem presos. Eu diria, portanto, que praticamente todas as forças políticas, até a UDN, naquele momento aceitaram a posse de João Goulart, por respeito à norma constitucional. Esse é o primeiro instante que dá margem para que surja a hipótese do sistema parlamentarista como uma forma de transação. Ou seja, João Goulart não toma posse como Presidente da Republica no sistema presidencialista, mas o faz como chefe de estado no sistema parlamentar do governo. Como surge a proposta do Parlamentarismo? Num certo momento, o Presidente João Goulart me telefona de Paris, vindo de Cingapura, no retorno da China. Queria saber como estava o quadro e revela o seguinte: “Eu recebi um telefonema do Senador Afonso Arinos e do deputado Santiago Dantas, informando que havia uma cogitação de, através do parlamentarismo, superar a crise e permitir que eu assumisse como chefe de estado. Qual a sua opinião?”. Eu disse: “Presidente, eu sou parlamentarista por formação doutrinária, mas nesse momento é golpe de estado. E, como golpe de estado, eu não aceito”. Ele disse: “Bem, eu não estou assumindo nenhuma aceitação, mas gostaria que a bancada analisasse. Estou muito longe dos acontecimentos para ter uma opinião formada, me mantenha informado”. No dia seguinte, no gabinete do presidente interino Ranieri Mazzilli, com a presença dos três ministros militares, somos convocados. Todos os lideres dos partidos, inclusive eu, um jovem líder do PTB. Através do ministro da justiça do Governo Mazzilli, Deputado Rodrigues, há a revelação formal de que os ministros militares, em nome da segurança nacional, consideravam inadequado que João Goulart assumisse o poder. Eu me vi no dever de relatar o diálogo que tinha tido com o Presidente. Ao meu lado estava o líder da UDN na câmara, Coronel Menezes Cortes, que se entusiasmou e transformou a conversa exploratória entre Afonso Arinos, Santiago e Jango numa proposta. A detonação real do parlamentarismo nasce nesse episódio. Menezes Cortes se entusiasma com a narrativa que eu fiz e passa a defender a ideia com entusiasmo. O senhor se sente o autor inadvertido da proposta do parlamentarismo? Eu paguei muito por isso, politicamente. A partir daí, muitas vezes Menezes Cortes referia-se a mim como o deflagrador do movimento. Como fui, na verdade, o líder da resistência contra o parlamentarismo, dá para imaginar quantas vezes eu fui cobrado por uma aparente incoerência, apenas por transmitir o diálogo, como era meu dever.

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O processo em seguida vai num crescendo. Eu mando uma carta ao Presidente me opondo radicalmente à hipótese de ele aceitar a transação e aí temos mais uma anedota, se é que posso chamar de anedota. As forças favoráveis à adoção do parlamentarismo decidem encontrar Goulart no Uruguai, onde ele tinha chegado, vindo da Europa. Queriam ouví-lo sobre a proposição, que já estava em condições majoritárias na Câmara, não ainda formalizada em texto, mas na colocação política. E para cumprir essa tarefa indicaram Tancredo Neves. Eu achei que tinha direito de mandar um emissário do PTB, que levasse a Jango a outra versão, a nossa. Indiquei o Deputado Nilson Fadul, que era amigo do Presidente e coronel da Aeronáutica, uma das razões para ser ele o porta-voz. Mas quando Fadul chega ao aeroporto, o avião já tinha partido. Não foi ético, da parte do ilustríssimo Tancredo Neves. A articulação parlamentarista, então, vai avançando. O quadro narrado realmente espanta. A audácia de três ministros militares, claramente dizendo que não concordam com o que está na Constituição. Mas o fato é que houve uma resistência grande contra a atitude deles. O que me espanta agora, olhando para trás, é que no momento em que esse ministros decidem se opor à prerrogativa de João Goulart assumir a Presidência, não parecia terem apoio político. Eu não me lembro, vivenciando aquilo no centro do acontecimento. Não houve nenhuma manifestação de apoio político, até se dar a posse. Ou seja, eles ficaram politicamente sós, em sua iniciativa. Logo, digo eu na minha análise hoje, eles não tinham sequer um possível governo articulado, se acaso dessem um golpe. A única hipótese que me ocorre é de que era ainda um desdobramento do possível golpe com o Jânio. Ou seja: na hora H da renúncia do Jânio, eles não teriam atuado, mas estavam comprometidos com a manobra, de cabo a rabo. Então, possivelmente, quando Jânio vai embora, já a caminho de Londres como era de seu hábito, eles teriam talvez pensado: “Daremos agora o golpe e o convocaremos a retornar à Presidência. É uma hipótese, porque realmente não teve lógica a atitude isolada dos três ministros militares, naquela ocasião. O que deveria ter havido realmente, como conseqüência, a partir do instante em que triunfou a ordem legal, era os ministros sofrerem as sanções que estão previstas no Código Penal. Mas aí entrou a composição, para evitar a fissura militar. É a única explicação que eu tenho, porque os três não foram atingidos em nada. Perderam um cargo de relevância, é claro, mas não sofreram conseqüências. Afastada a ameaça de golpe, então, o caminho ficou aberto para a proposta parlamentarista. Sim. No momento em que a parte militar foi superada, a proposição foi formalizada, votada e aprovada. Em tese, estava instituído o parlamentarismo.

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Eu me mantive liderando o PTB até o ultimo minuto. A esmagadora maioria do partido votou contra, mas, se a memória não me falha, 15 votaram a favor. Ou porque se consideravam parlamentaristas, ou porque eram mais amigos do Presidente. Se Jango aceitou, votavam com ele. Mas o PTB, em sua maioria, ficou contra o parlamentarismo. Aquilo era um golpe de estado no sentido mais amplo. A Constituição Federal de 1946 não permitia que uma emenda, alterando a ordem constitucional, fosse votada em clima de choque interno, ou de “convulsão intestina”, essa expressão curiosa. Tinha lógica porque mudar uma Constituição, presumivelmente uma norma que deve ser permanente, tem de ser feito em clima de paz e de ordem, para que a vontade coletiva prevaleça suavemente, normalmente. A situação, na verdade, tinha se transformado em estado de sítio de fato, não decretado pelo Congresso, mas de fato. A impressa estava cerceada, dezenas de cidadãos estavam presos, o Marechal Lott estava preso. Portanto, não estávamos absolutamente em clima de ordem constitucional. Não poderia haver, legalmente, uma reforma na Constituição naquele quadro. Mas fizeram. Tanto que eu chamo aquilo de golpe branco.

PARLAMENTARISMO

E como foi o governo de Jango sob o parlamentarismo? A primeira questão foi a montagem do governo. Pela norma constitucional, em vários países e no nosso também, o cargo de primeiro-ministro deve ser dado a alguém do partido majoritário. E esse partido era o PSD, Partido social Democrático. Cabia nascer dele o primeiro-ministro. Jango teve a cautela de pedir que o nome viesse de um trio, ou de uma votação em que pudessem disputar 3 pessoas. Disputaram Tancredo Neves, Gustavo Capanema e Auro de Moura Andrade. E o primeiro venceu. Tancredo tornou-se o chefe do conselho de ministros, que é chefe do governo. O PTB teve um papel nessa composição relativamente pequeno porque, de imediato, o Presidente passou a querer um governo de coesão o mais amplo possível. O PTB teve apenas Santiago Dantas, como ministro das Relações Exteriores e o deputado Souto Maior, como ministro da Saúde. E cada um dos outros partidos teve o seu quinhão. A própria UDN participou, com o ministro de Viação e Obras Públicas, que era um ministério muito importante, em capacidade de empreendimento. Era um ilustre senador do Ceará. Todos os partidos participaram do primeiro governo parlamentarista, exceto dois. Curiosamente, um deles o Partido Libertador, liderado por Raul Pilar, que era um entusiasta da doutrina parlamentarista. Muitas vezes ele tinha apresentado emendas para criar o parlamentarismo, desde a Constituição de 1934. Mas o seu partido não teve representação no governo, porque lhe pareceu que a forma de criar o parlamentarismo negava o que esse regime tem de mais democrático.

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O outro que não participou foi o Partido Socialista, algo que eu nunca entendi. Do ponto de vista nacionalista, ele não tinha choque com Tancredo Neves. Mas não aderiu. Todos os outros partidos, então, organizaram-se sob a chefia de Tancredo Neves, que assumiu duplamente como primeiro-ministro e ministro da Justiça, porque ele quis absorver essa pasta, não sei. E o Presidente aceitou facilmente o Parlamentarismo? Não resistiu ao novo regime? A vitória do parlamentarismo através dessa composição de forças heterogêneas e a própria aceitação de João Goulart, assumindo um cargo que, na verdade, era um esbulho de seus direitos de Presidente da República pelo sistema presidencialista, tem levado – eu diria que de forma leviana, de muitos da imprensa e mesmo do setor de esquerda – a acusações que eu repilo de maneira mais absoluta. Acusações de debilidade pessoal de Jango, de incapacidade de tomar decisões permanentes. Essa composição que se passou a fazer, para realmente tornar João Goulart uma figura demonstradamente inaceitável, eu acho que foi parte de uma história longa, de uma campanha elaborada da maneira mais cruel. Porque ele aceita o parlamentarismo? Primeiro porque receava que pudesse haver um confronto militar, uma guerra civil. Jango era contra qualquer solução armada, que sangrasse o povo em nome de uma tese X. Na história dele, a juventude foi muito marcada pelo sangue, pelas guerras intestinas do Rio Grande do Sul. A fazenda do pai dele, mais de uma vez foi saqueada e incendiada. Ele viu o pai sair para montar um regimento na revolução de 30, deixando a fazenda ao léu, porque era amigo do Getúlio. É uma tentativa de entender psicologicamente a sua atitude. Mas todas as declarações dele nesse período eram, sistematicamente, contra a hipótese de uma luta armada, levando o povo a resolver os seus problemas pelo sangue. Era um traço de personalidade. Que eu talvez tivesse igual, porque nunca peguei um revólver na vida. Mas tem um dado mais importante aqui: a falta de apoio. A posição do Marechal Lott era de absoluto respeito à norma constitucional, mas no instante em que o Congresso Nacional, errando, agrediu a Constituição e criou o parlamentarismo, Lott começou a vacilar. Num livro que escreveu posteriormente, ele disse que em nenhum instante comprometeu-se com Leonel Brizola, de acompanhá-lo em qualquer ação de defesa do mandato pleno de Jango. Ou seja, eu estou convencido que Lott não marcharia contra o novo regime. Uma vez votado o parlamentarismo no Congresso Nacional, por emenda constitucional, eu acho que ele se curvaria à chamada ordem constituída. Mas é uma impressão minha, eu nunca ouvi do Jango isso que estou dizendo. A ideia de um Jango hesitante, então, não corresponde à realidade? O Jango como o hesitante, o incapaz, o cidadão que não toma a iniciativa, como é possível essa imagem? A vida política dele é oposta a isso!

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Com 22, 23 anos, ainda um menino, ele já é deputado estadual. Depois é ele quem sai pelo país, organizando a campanha de Getulio Vargas para presidente. Ele é deputado federal, é ministro do trabalho com 34 anos de idade. É duas vezes vice-presidente da República, eleito e ganhando em número de votos do candidato a Presidente. Como pode ser uma figura que não quer nada? O tempo todo ele lutou. Não ganhou nada de mão beijada, em nenhum instante. Quando ele chegar amanhã à Presidência da República, no presidencialismo, vai criar um ministério da maior categoria na história desse país. Como um incapaz faria isso? É uma visão absolutamente deformada. Mas vamos ver de outra forma. Qual o caminho oposto que alguém pudesse fazer, diante do que acabo de dizer sobre essa crise do parlamentarismo? Era a luta armada. Mas a luta armada, eu já disse, ele não queria assumir. Contra a opinião do Brizola, que queria a reação. Mas eles eram dois temperamentos opostos. Há também um outro aspecto, muito importante: não é real que ele tivesse aceito o parlamentarismo e ficado quieto. No discurso de posse, ao assumir a chefia de Estado, ele já pleiteia claramente que a norma do parlamentarismo, que o Congresso tinha votado, seja submetida à decisão plebiscitária. E salvo no primeiro momento, que é o governo do Tancredo Neves, nove meses mais ou menos, toda a linha do Jango já era de clara antecipação do plebiscito. Ao aceitar a solução do parlamentarismo, Jango havia feito uma única exigência, que eu me lembre: era de que aquilo seria submetido ao plebiscito daí a X tempo. Era o chamado Ato Adicional Nº 4. Mas ele logo passou a pleitear antecipação do plebiscito. Armou uma luta campal por isso. Se ele não gostasse do poder, se fosse um que não quer nada, para que lutaria mais? Ficaria tranqüilo, não teriam feito nenhuma agressão contra ele. Receberia louvores de todos os lados. Mas inventou de voltar na plenitude do poder presidencialista, através do plebiscito, onde ganhou 10 milhões de votos. Porque lutou para ganhar esses votos, se não queria nada com nada? É uma imagem negativa que fazem dele, a meu ver.

PODER Como foi a partilha de poder entre Jango e os primeiros-ministros? O sistema parlamentarista supõe, como todos sabem, uma clara divisão: o chefe de estado não governa. Tem determinadas prerrogativas, como, por exemplo, a de indicar candidato a primeiro-ministro, toda hora em que houver uma reforma ministerial. Tudo que diga respeito a questões internacionais também é exclusivo do chefe de estado e não do primeiro ministro. Ou seja, são prerrogativas bem definidas e, eu diria, limitadas. Tanto que se diz: “É igual rainha, reina mas não governa.

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Mas o que tivemos foi um governo híbrido. Essa é a expressão usada na época, para dizer que era uma mistura, não o parlamentarismo típico. Governava ele ou o Tancredo e os outros primeiros ministros que vieram, Brochado da Rocha e Hermes Lima? É uma pergunta válida. Tancredo certamente não era um “bocó”, me perdoe a expressão grosseira. Tinha a dimensão de um chefe de estado. Era um homem que desde a juventude tinha tido as posição mais relevantes, como a de ministro da Justiça de Getúlio Vargas. Ele estava ao lado do Getúlio na “noite dramática”. Era jurista, também. Uma grande liderança em Minas Gerais. Ou seja, Tancredo não era uma figura qualquer. Não era um pau-mandado. Agora, o quadro político concreto qual era? Era, de um lado, um chefe de estado que não era presidente no sistema presidencialista, portanto não era chefe de governo. Mas tinha, quer quisessem, quer não, uma imagem de liderança política nacional que o Tancredo não tinha. Naquela época, Tancredo era uma figura de Minas, não uma figura nacional. Como nenhum dos ministros que vieram depois tampouco eram. Brochado da Rocha era uma das figuras mais puras que eu conheci na vida pública. O Hermes Limas, uma figura admirável de jurista, escritor, socialista. Mas nenhum deles era uma figura nacional. Naquele quadro concreto de governo, a única liderança nacional era João Goulart, pela história que tinha. Presidente de um partido nacional. Duas vezes Vice-Presidente da República, o que significava que ele era também presidente do Congresso Nacional. É bom lembrar esse detalhe. O Vice-Presidente da República, pela constituição de 1946, era o presidente do Congresso Nacional. Portanto, poder! Pelo menos, uma imagem de poder. Como é que, de repente, isso não influía nas decisões? É claro que influía. Agora, será que Jango influía a ponto de dizer “faça isso, não faça aquilo”? Não! Ele não agia assim. Por conta de tudo isso que estou dizendo, formou-se a imagem do parlamentarismo híbrido. Jango conspirou o tempo todo para derrubar o parlamentarismo e convocar o plebiscito. Mas, num primeiro momento, ele não tinha condições para isso. Assim sendo, ele se compôs. Quem dá uma boa ideia disso é o deputado Herbet Levy, uma das grandes lideranças da UDN em São Paulo, banqueiro, dono de jornal. Uma ocasião, ao sair de uma audiência com o presidente João Goulart, ele me disse: “O Presidente João Goulart, eu chamaria de João Bom Senso. Como é fácil dialogar com ele! O João Bom Senso!” Na primeira etapa, então, ele realmente se compôs. Foi uma tentativa de manter o trânsito com a oposição para, quando acumulasse condições, ele pudesse voltar à tese do plebiscito para derrubar o parlamentarismo. Isto se dá com nitidez quando é eleito para primeiro-ministro Brochado da Rocha, um constitucionalista gaúcho amigo dele, uma das maiores figuras que eu conheci na vida pública. No discurso de posse do Brochado, Jango argumentou que os sistema parlamentarista que havíamos adotado era legal, mas não era legítimo. Sua atitude pró-plebiscito passou a ser realmente visível. Estamos vendo até agora o poder militar, o poder legislativo, o poder executivo. Mas, e o poder judiciário, nesse período tão dramático? Não se pronunciava? Que papel tinha a

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Justiça e como as forças políticas se relacionavam com ela? Havia o recurso frequente à decisão judicial dos impasses políticos? É evidente que a relação entre o presidente do Conselho de Ministros e o Parlamento era muito grande. Era da natureza da doutrina parlamentarista. O primeiro-ministro chefiava o governo, mas o Parlamento tinha um poder enorme sobre ele, porque podia derrubar o Conselho de Ministros. Bastava negar um voto de confiança em algum momento, que caía o Ministério. Mas não me ocorre nada naquela época que tivesse significado um conflito entre qualquer um desses dois poderes e a Justiça. Mas eu não me refiro à arbitragem de conflito. Eu me refiro ao protagonismo político da Justiça mesmo. A Justiça interferindo na cena política. Não havia. Ela se limitava à sua função de julgar. A Justiça hoje tem uma presença que vai além própria Justiça. Não estou julgando os julgamentos que ela faz, estou dizendo que ela passa a interferir no jogo político. Na história dos Estados Unidos houve a fase do “justicialismo”. A Suprema Corte era tão presente, tão atuante na cena pública, que praticamente era o governo da Suprema Corte. Bom, eu não vejo naquela época o Supremo Tribunal Federal fazendo a mesma coisa. Não era relevante, do ponto de vista político. A Justiça realmente não tinha presença política. Não tinha porque o conflito era resolvido politicamente, em termos de maioria. Se o Parlamento tem uma maioria que está expressa no poder executivo, o governo tem o poder pleno. O presidente da República poderia dissolver o Parlamento, mas, sobre isso, a Justiça não tinha que dar palpite. Agora, se passar para o outro período, já no presidencialismo, quem sabe? Mas, mesmo ali, eu não me lembro de nenhum protagonismo político do Judiciário. O senhor disse que a emenda que criou o parlamentarismo foi inconstitucional. Não poderia ser feita nos termos em que foi. Nenhum juiz comentou nada? Ninguém protestou? É verdade que não foi questionada lá. Por não ter sido questionada, não tinha como o tribunal atuar. Ele não atua em abstrato, atua quando batem à sua porta. Num livro que escrevi e quando analiso isso, eu digo: “Vejam só! Essa norma constitucional alterada, de maneira inconstitucional, numa hora em que o parlamento tinha juristas do tamanho de Santiago Dantas, de Pedro Aleixo, de Aliomar Balieiro!”. Mas ali o que houve foi uma solução política e ponto. Não tem como fugir disso. De certa forma, então, o que o senhor está dizendo é que a Justiça falava talvez através desses grandes juristas, que eram também parlamentares e se expressavam na condição de parlamentares. Quem quiser interpretar, interprete como quiser...

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De qualquer forma, não existia a figura do juiz que dá declaração ao jornal todo dia, sobre tudo que é assunto? Não me recordo de nenhuma declaração de juiz opinando sobre os fatos. E não faltava assunto para que opinassem... Só para dar uma idéia, voltemos lá atrás, quando houve o problema 11 de novembro de 1955. Por que tivemos aquela crise? Porque havia uma tentativa de golpe, ostensivamente comprovada depois, para impedir a candidatura de Juscelino à Presidência. Golpe articulado por Carlos Lacerda e Café Filho. Café Filho era presidente interino, depois da morte de Getúlio. Ele ficou doente, deixando a presidência temporariamente com o presidente da Câmara, Carlos Luz, quando houve a articulação militar para impedir o Juscelino. O Marechal Lott, que era o ministro da Guerra, confrontou a articulação e assumiu o poder para evitar o golpe, afastando Carlos Luz. Mas o Café Filho continuava presidente. Se ele reassumisse o governo, teria que punir o Lott e não tinha poder real para isso. O que faz, então, o Congresso Nacional? Cassa o mandato do Café Filho. Cassa! Ele não reassumiu o cargo de Presidente. Saiu do hospital para casa e sua casa ficou cercada. Bem, todos os atos que se fizeram naquele momento foram rigorosamente inconstitucionais. Todos! Todos! E a Justiça não foi acionada. O que prevaleceu foi a política.

PRESIDENCIALISMO Sigamos, então, com a política. No início de 1963, Jango consegue vencer o plebiscito esmagadoramente e sai legitimado, autorizado, fortalecido, para iniciar a segunda fase de seu governo. Como ele compôs o ministério? Quais eram os partidos de sustentação desse governo e qual era a orientação geral que Jango queria imprimir a ele? Na hora em que o plebiscito é convocado, já havia uma opinião muito generalizada a favor, o que é meio paradoxal. Determinados setores da oposição ao Presidente João Goulart tinham tentado impedir que o plebiscito fosse antecipado, mas já que a reforma constitucional permitiu, eles passaram a colocar na ordem do dia os seus interesses particulares. Quais? Você já tinha como candidatos mais do que presumíveis à Presidência da República, nas eleições de 1965, o próprio Juscelino Kubitschek, candidato pelo PSD. Na UDN, que era um dos principais partidos, senão o principal da oposição, já havia uma disputa visível

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entre Carlos Lacerda, governador do Rio, e Magalhães Pinto, governador de Minas. Ambos querendo ser candidatos. Você tinha uma candidatura com menos vôo, mas que nem por isso desejava omitir-se, que era o Ademar de Barros com PSP. Ela já tinha um lastro no país, estava crescendo. Ou seja, já havia uma área bem objetiva de lideranças que queriam a restauração do presidencialismo, porque desejam disputar a Presidência. É importante eu dizer isso para mostrar que, na hora que o Presidente João Goulart tem o seu poder presidencialista restaurado no plebiscito, com dez milhões de votos num eleitorado de mais ou menos 12 milhões, é uma vitória excepcional pra ele, para o PTB sem dúvida, para nós da corrente nacionalista. Mas não dá para ignorar que houve aí mãos que ajudaram, por conta dos seus interesses diretos. Portanto, na hora da realização do plebiscito, 6 de janeiro de 1963, já então não havia divisor de águas muito nítido. Salvo a UDN. Certos setores da UDN, que eu não sei identificar quais, deram ainda o combate contra a restauração do presidencialismo. Mas mesmo ela tinha também lideranças importantes que não se zangariam em derrubar o parlamentarismo. Esta é realmente a dinâmica daquele momento, que leva logo o presidente a assumir, em torno do dia 23 de janeiro, a Presidência da República no sistema presidencialista. Como Jango compõe esse governo? Qual era o arco de alianças, qual era a distribuição dos partidos dentro do governo? A UDN havia participado do primeiro governo parlamentarista, mas já se declara na oposição. Os partidos fundamentais que participam do governo são então, desde logo, o PTB e o PSD, que tinham uma história muito casada, ambos nascidos das mãos do Getúlio. Em seguida você tem o Partido Socialista Brasileiro, que participa com o professor João Mangabeira, um constitucionalista admirável. Já tinha na época 82 anos, era um homem de uma história fantástica na vida pública e na vida jurídica. Você tinha, curiosamente, o Ademar de Barros, com seu Partido Social Progressista. Não devemos esquecer que, quando Getúlio volta em 1950, o Ademar participa do governo, não é verdade? Portanto as coisas iam e vinham. E o nome indicado pelo PSP foi o do professor Teotônio Monteiro de Barros, um grande quadro de intelectual paulista, constitucionalista também. Havia a figura surpreendente para muitos, que foi José Ermírio de Morais. Vinha de uma aliança com Miguel Arraes em Pernambuco, onde se elegeu senador da República com apoio o apoio dele. Já era o grande empresário da Votorantim. E ele vem como ministro da Agricultura, com a marca nacionalista clara. Era um dos maiores industriais do país, já com renome na federação das indústrias. Mas tinha a respeito da defesa da indústria nacional, uma presença muito forte, que nem sempre os industriais daquela época tinham.

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Por exemplo, eu me recordo da chamada Instrução 113 da SUMOC, a Superintendência da Moeda e do Câmbio. Essa era uma instrução que permitia ao empresariado estrangeiro trazer equipamentos novos sem pagamento de impostos. Enquanto que o empresariado brasileiro envelhecia com seu equipamento e não tinha o mesmo direito. Ou seja, era uma incorreção diante de interesses eminentemente nacionais. Quem primeiro se levanta contra isso como industrial, na minha lembrança, é Ermírio de Morais. Os democratas cristãos? O PDC participava do governo?

No gabinete de Tancredo Neves, o PDC teve o cargo de ministro do Trabalho e da Previdência Social, e vem a ter outra vez no segundo ministério de João Goulart, com Paulo de Tarso Santos. Um brilhante ministro da Educação. Uma figura admirável. O PCB estava na ilegalidade, mas comandava o movimento sindical. Qual foi, efetivamente, o poder dos comunistas no Governo João Goulart? Zero. Zero vezes zero. Havia na imprensa, sobretudo a partir de um certo momento, com bastante generalidade, a afirmação de que a presença do Partido Comunista no governo era grande. Que a influência era enorme, e que na verdade havia até algo se formando entre o Presidente João Goulart e Prestes, para implantar uma república sindicalista de corte comunista. Isto faz parte da campanha contra João Goulart, ao longo desse período até o golpe. Mas em termos de participação de governo, estrito senso, ninguém. Ninguém. Salvo se você queira pegar alguém que terá sido partidário na juventude, como Darci Ribeiro, grande antropólogo. É sabido, ele confessa no seu livro de memórias, que foi militante, assim como ele diz, do Partidão. Mas naquele momento ele não tinha mais nada a ver com a organização. Havia a figura do secretário de imprensa, Raul Riff, que também na juventude tinha sido um militante comunista. Mas, tanto quanto eu saiba, já não tinha mais militância alguma. O importante é que, se você tiver todo o quadro do primeiro ministério, entrever aí uma presença comunista é zero. Absolutamente zero. E quem mais está na equipe do Presidente? Está nada menos do que o Santiago Dantas no Ministério da Fazenda, não é? Aquela figura excepcional! Está o Celso Furtado, no Ministério do Planejamento. Eu poderia me alongar, se a memória me ajudasse mais, mas acho que estas são as figuras mais marcantes. Tem outras, eu não estou desmerecendo ninguém.

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PLANO TRIENAL Qual era a meta desse governo? O que o presidente queria? O objetivo era ostensivo. Talvez tenha sido o governo que chegou ao poder com mais clareza do que queria. O que fez, o que não fez, é uma outra história. Jango vem com a bandeira do Plano Trienal de Desenvolvimento. O centro nevrálgico da chegada do Jango ao poder em 1963 é esse plano. Ele se inicia no finalzinho do parlamentarismo, ainda no ministério Hermes Lima, mas já com Celso Furtado, que já vem com o objetivo de implantá-lo. Era uma figura, naquela época, admirável. Ainda moço, mas com uma história brilhante. Curso superior nos Estado Unidos, na França. Uma enorme participação numa instituição, a CEPAL, em Buenos Aires. E tinha até, para a glória dele, participado da Força Expedicionária Brasileira, na Segunda Guerra Mundial. Até isso lhe sobrava para dar charme. Celso já havia tido um papel significativo, quando no governo Juscelino, o presidente o convoca para fazer um plano de desenvolvimento do Nordeste. Ele cria a chamada proposta da SUDENE, uma coisa também excepcional. É ele que modela aquilo. Eu me recordo que ele deu uma batalha pela SUDENE que vai muito além do técnico elaborando. Ele se jogou com corpo e alma. Ele ia para as comissões técnicas, ia para as Assembléias Estaduais, ia para as Federações das Indústrias explicar o que era aquilo. Era mais do que um economista. Era um homem público. Celso é esta figura que já tinha cumprido esse papel notável. Aí Jango o convida para fazer o plano Trienal. Cabe a ele fazer. Na verdade é ele com uma meia dúzia, não sei, dez economistas, seguramente de valor. Esse Plano Trienal tinha como objetivos básicos, primeiro, a contenção inflacionária, que ele expressamente dizia: “gradual, porém seguida”. Segundo,a contenção inflacionária sem impedir o processo de desenvolvimento econômico, cortando no limite do possível, mas não bloqueando a economia. E terceiro, criando algumas reformas estruturais, que condicionassem um desenvolvimento mais profundo. Celso tinha essa visão geral, se eu não sou mau intérprete do que era o Plano Trienal. Foi um projeto elaborado muito a portas fechadas e a galope. Porque ele é convidado a fazer isso quase na iminência da convocação do plebiscito, e Jango tinha todo empenho em que houvesse um plano. Na fase de defender o plebiscito, ele teria algo a dar. Bom, por que eu digo que a preparação foi muito fechada? Porque no Parlamento, no PTB, no grupo mais aguerrido dele, o Grupo Compacto que eu liderava, não tínhamos nenhum contato sobre as linhas gerais do que seria um programa da maior importância. Faltou pactuação, então?

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Não houve a interação necessária. Pois bem, já nas antevésperas do plebiscito, o Celso tem uma reunião conosco para expor o trabalho. Eu me lembro que foi um pouco azeda. Porque nós começamos a reclamar mais coisas, e que falta isso, falta, falta... Ainda me lembro da frase dele, em resposta: “Fui convidado para fazer um plano de reformas, não o plano de uma revolução”. Mas os objetivos eram bem amplos. O Plano Trienal propunha reforma bancária, fiscal, administrativa, urbana, agrária e universitária. Dava o direito de voto aos analfabetos e às patentes subalternas das forças armadas. Era um conjunto de medidas estruturais, que passaram a ser chamadas de “reformas de base”. Problema: o plano não previa com clareza uma política salarial. É tanto, não é tanto – não previa. Os salários eram uma resultante do conjunto, que tinha como hipótese não ultrapassarmos os 40%. Qualquer revisão salarial deveria ter mais ou menos esse patamar, 40%. Ora bem, eu acho que esse foi um dos nossos tendões de Aquiles. Há outros, mas esse, dos que eu vivi quando era ministro do trabalho, terá sido o mais grave. Porque a inflação já estava à galope. O Governo Juscelino termina com 30%. Em seguida vem Jânio Quadros e tem aquela crise de uma dimensão que nos levou à beira de uma guerra civil. A inflação sobe, é inevitável que suba. Ao subir, quando João Goulart chega ao parlamentarismo, isso já dava 45%. Quando ele toma posse no presidencialismo, já tinha passado 55%. Ora, como a inflação em 55%, conter pressão salarial, só com milagre. Dizem que há os demiurgos que conseguem fazer. Eu ainda não conheci nenhum. Eu passei a ter um período muito angustiante. Porque as reivindicações salariais já vinham acima de 40%. Qualquer uma. Todas elas. O ministro do Trabalho tinha uma função, não de decidir, mas de contribuir para uma espécie de mediação entre as duas partes. O empresário e o trabalhador. Mas eu não tinha mais poder nenhum para efetivamente cumprir uma mediação, quando um pede 100% e o outro quer dar 40%. Portanto, ficou incompatível. Logo, a greve! Inevitavelmente, a greve. Dou um exemplo bem objetivo. Estava para ser deflagrada a greve dos funcionários públicos. Começo do governo. Um começo que era determinado pela ida do Santiago Dantas, ministro da Fazenda, aos Estados Unidos, para discutir o reescalonamento da nossa dívida com eles, que era vital para conter o processo inflacionário. Se houvesse uma greve naquele instante, chegaríamos nas negociações para ouvir: “Mas que ordem estão pondo no Brasil?”, etc. Serviria de pretexto para eles negarem o reescalonamento. Então era importante não haver a greve. Temos uma reunião em Brasília, o Presidente, Santiago Dantas, Celso Furtado e este jovem ministro do Trabalho e Previdência Social. O Presidente pede a nossa opinião sobre o pleito dos funcionários públicos, que era da ordem de 80%. Santiago analisa, analisa e diz que é inviável conceder, por isso e aquilo. A obviedade era grande. O Celso também faz uma análise extremamente cuidadosa e diz: “Não será o fim do plano se concedermos o aumento. Mas isso detonará inevitavelmente o ritmo das reivindicações salariais nesse patamar”. Então o Presidente se dirige a mim: “E tu Almino? O que dizes?”. Eu respondo com franqueza: “Presidente, eu vou dizer do meu ângulo. Nesses poucos meses em que eu estou à frente do ministério, não conheço uma

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reivindicação salarial no limite do 40%. Nenhuma. E nenhuma das que nós conseguimos sustar a greve foi abaixo de 50%, 60%. Vai por aí, Presidente. De forma que, se não é possível dar os 80%, será impossível dar 40%. Haverá meio termo?”. Jango ouviu, agradeceu a contribuição de todos. Tenso, muito tenso. Disse que tinha que se retirar para um compromisso no Rio e foi embora. Santiago Dantas nos convidou pra tomar um café no gabinete dele e ali ficamos. Quando, de repente, entra o chefe de gabinete e se dirige ao Santiago: “Ministro, a televisão está dando que o Presidente acabou de autorizar ao conselho de negociadores um aumento de 70%”. Um desastre absoluto para nós. Santiago Dantas, espantado. Eu não muito menos. O Celso tem uma frase muito curiosa: “Quando eu vi o presidente João Goulart sair da reunião, daquela reunião nada agradável, vi que ele estava com as mãos postas atrás. Essa era a postura tradicional de Napoleão Bonaparte. Sem querer, eu lembrei da derrota de Napoleão em Waterloo”. E o Presidente não ficou também temeroso de ter o seu Waterloo nessa decisão? Não, ao contrário. No dia seguinte, ele me chama e pergunta: “Como tu reagistes diante da notícia da televisão?”. Eu disse: “Espantado, Presidente! Espantado! As coisas eram tão opostas a tudo que tínhamos conversado, que eu me espantei”. Ele continua: “Imaginei que tu ficarias assim. Mas vou te contar a verdade das coisas. Eu dei um blefe. Não disse que daria os 70%. Eu autorizei o ministro da Justiça, Abelardo Jurema, a informar que eu estaria disposto a analisar esse percentual. Ao dizer isso, a greve foi sustada de imediato. Não houve a greve. Portanto, permitiu que o Santiago viaje pelo menos sem esse problema.” “Mas Presidente...”, eu retruco. “Quando o Santiago estiver lá, conversando com o Kennedy, não será exatamente a hora do Prestes fazer a greve?”. Jango não se abala. “Ah, não! Eles vão ter que contar até dez. Vão ter que esperar a volta do Santiago. Aí eu estarei com outras cartas nas mãos”. O Santiago viajou e foi um desastre total. Nós ficamos outra vez sem dar nenhum tostão de aumento. A nossa decisão oficial foi de não dar. As reivindicações foram num crescendo, as greves se multiplicaram. O Plano Trienal começou a fazer água, no sentido de expectativas frustradas. Uma coisa dramática. O governo não conseguiu dos americanos o reescalonamento da dívida? Não. Conseguiu um reescalonamento medíocre, insignificante. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos passaram a exigir que nós comprássemos a Amforp, uma sociedade de empresas americanas na área da eletricidade. O que nós queríamos era o oposto. Através de uma empresa pública, a Eletrobrás, queríamos um controle maior sobre a produção de energia elétrica. Naquele momento, como já estava terminando o prazo da concessão da Amforp, os americanos não aplicavam mais recurso nenhum na geração de energia. Então, a indústria estava paralisando. Era dramático. Paralisando! E eles fazendo disso a Espada de Dâmocles sobre a nossa cabeça.

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Os Estados Unidos exigiam que comprássemos a Amforp por um preço exorbitante em relação ao preço verdadeiro. Aí foi uma crise enorme, a esquerda se opôs diretamente a João Goulart. Mas o Presidente não podia fazer milagres. Até porque havia uma norma norte-americana, naquela época, obrigando os compradores de suas empresas a uma cláusula de “imediatidade”. Ou seja: o pagamento teria de sair até o prazo X, sob pena dos Estados Unidos cortarem qualquer possibilidade de financiamento dali para a frente. Era mesmo uma espada na cabeça. Ou cedíamos ou teríamos limitações de negociação com os Estados Unidos, que eram quase o nosso único porto na época. Não haviam muitos outros. O senhor disse que o Plano Trienal começava a fazer água. O que fez o governo? Um quadro de crise foi envolvendo o Plano Trienal. Ele se tornou, a rigor, inviável, naquilo que era o seu cerne, o controle da inflação. Continuava a tese da reforma agrária como tema político, mas ela não resolveria o problema econômico daquele momento. Santiago Dantas ficou muito queimado perante os setores da esquerda, porque teria cedido nas negociações com os Estados Unidos. Isso é falso, ele não cedeu. Quando eu não tenho nem um canivete e você tem metralhadora, não sou eu que estou sendo fraco. É você que está forte demais. Mas, enfim, tornou-se inviável para o Santiago seguir no comando de algo que lhe escapava das mãos, por não ter os meios de levar adiante. Já o Celso era a figura do Plano Trienal, o autor da obra. Como poderia continuar no Ministério do Planejamento, se o plano estava praticando se esboroando? A minha situação era a mesma. Como poderia cumprir o papel de ministro do Trabalho, se tinha zero de elementos para uma negociação válida, séria, com os trabalhadores? Então, os três pleiteamos a nossa saída. O Presidente aceitou e convocou o ex-governador de São Paulo, Carvalho Pinto, para ser o ministro da Fazenda. Isso inaugura o segundo ministério do Governo João Goulart, no presidencialismo.

CONQUISTAS SOCIAIS Antes de entrar nisso, vamos falar do que funcionou. Quais foram as conquistas dessa primeira fase do governo presidencialista de Goulart? O que se conseguiu de positivo? O que eu acho que fica marcado, com muito mérito, são medidas de ordem social que a sociedade foi promovendo e às quais nós demos um apoio irrestrito. Em primeiro lugar, a extensão dos direitos sociais ao campo. Naquela época, os trabalhadores do campo eram párias. Não, é pouco. Eram miseráveis, escravos da terra. Fernando Ferrari, que foi um grande deputado gaúcho e o autor da primeira versão do Estatuto do Trabalhador Rural, tem um livro com esse nome, “Escravos da Terra”. E eles não eram outra coisa. A remuneração era feita por

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modalidades praticamente medievais, chamadas a Terça, a Meia ou Cambão. Salário, estrito senso, não havia. As pessoas trabalhavam e produto do trabalho era do patrão. Ou seja, era um desastre. Então temos a criação do Estatuto do Trabalhador Rural, no começo do Governo João Goulart, março de 63, estendendo os direitos sociais ao campo, inclusive o direito de organização sindical. Foi uma revolução cultural. Projeto de lei de Fernando Ferrari, que vinha já de muito tempo no Congresso. Pouco antes de morrer, Getúlio enviou um primeiro projeto tratando da questão social no Campo. Quase nas vésperas do 24 de agosto. Mas ele morreu e o projeto foi para o beleléu. O Ferrari, que era líder do PTB naquela época, assumiu a ideia e apresentou seu projeto. Durante quatro legislaturas consecutivas, ele foi sumariamente derrotado, o que mostra o poder do latifúndio. Era tão grande que não defendia apenas a propriedade da terra. Defendia o status quo, o estilo de vida em que o lá de baixo é lá de baixo e o dono da terra, um grão senhor. Um problema medieval, realmente. Bom, quatro vezes tentou o Ferrari. Num certo instante, ele rompe com o Jango por razões partidárias e cabe a mim a liderança do PTB. Eu assumo a defesa desse projeto. Vou ao Jango dizer que, embora seja de autoria de um deputado agora adversário, o projeto é admirável e eu vou dar batalha total na sua aprovação. O Presidente concorda, fazemos um esforço admirável e aprovamos o Estatuto do Trabalhador Rural, que foi sancionado no dia 2 de março de 63. Dois ou três meses depois, Fernando Ferrari morreu. Coitado! Esperou dez anos para o seu projeto virar lei e quando vira, ele morre. Mas, pelo menos, teve a oportunidade de defendê-lo e de, finalmente, vê-lo aprovado. Outra medida trabalhista importante, naqueles anos, foi o 13º Salário. O autor do projeto era do PTB, um cidadão do Estado do Rio chamado Arão Steinbruch. Os empresários deram uma imensa batalha contra. Imensa! Imensa! Eu era o líder do PTB e fui eu quem batalhou no Parlamento pela sua aprovação. Claro, com o apoio de muitos, mas o comando foi meu. Houve uma greve nacional de trabalhadores para pressionar pela sua aprovação. E disso acabou resultando o 13º. A batalha da Reforma Agrária também é desse período intensíssimo. Mas, para poder realizá-la, era preciso ter em caixa o dinheiro das indenizações. A Constituição de 1946 estabelecia que, para desapropriações, o pagamento deveria ser prévio e em dinheiro. Portanto, era inviável e nós queríamos mudar isso. Os grandes proprietários de terra e os seus representantes no Congresso, talvez porque fossem também proprietários ou apoiados politicamente por eles, formaram uma massa formidável contra. Curiosamente, o governo de John Kennedy, na chamada “Aliança para o Progresso”, um projeto de ajuda econômica aos países da América Latina, defendia a Reforma Agrária. Mas não mexeu uma palha pelo Presidente João Goulart. Nenhuma. Porque havia os outros contraditórios e este assunto ficou de lado. Anos antes, quando os Estados Unidos invadiram e ocuparam o Japão, no final da Segunda Guerra Mundial, a grande medida foi a Reforma Agrária naquele país. Uma reforma com pagamento da indenização em 20 anos, e com uma taxa baixa de juros ao ano. Era exatamente o que nós queríamos para o Brasil. Mas isso só valia para o Japão dos Estados Unidos. Não valia para nós.

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Chegou a hora, então, em que o nosso partido apresentou a emenda à Constituição, acabando com a exigência de pagamento prévio em dinheiro, como condição para começarmos a discutir a Reforma Agrária. No dia da votação, lá estavam as grandes figuras dos grandes partidos. Ulisses Guimarães, o grande Ulisses Guimarães representando o PSD. O grande deputado Pedro Aleixo, de Minas. O grande deputado Eleomar Balieiro, da Bahia. Grandes figuras, grandes juristas... Votaram contra! Não conseguimos aprovar a emenda. Mas, ainda como conquistas do Governo Goulart, tivemos o programa de alfabetização do professor Paulo Freire. Educador, pedagogo, ele tinha criado já em Pernambuco um método chamado psicossocial, através do qual ele criava condições para a pessoa alfabetizar-se a toque de caixa e de uma maneira admirável. O programa teria um reflexo provável nas eleições próximas, pelo número de cidadãos que se tornariam alfabetizados. O trabalho foi dirigido pelo ministro da Educação Paulo de Tarso Santos e contou com a participação dos estudantes. A União Nacional dos Estudantes deu um apoio enorme a ele.

SEGUNDO MINISTÉRIO Vamos então ao segundo ministério de João Goulart, no presidencialismo. A missão fundamental seguia sendo a do primeiro: estabilizar a economia, reduzir inflação, enfim, melhorar o quadro. Mas ele também não teve sucesso. Por que? O quadro de dificuldades daquele momento não cessa pelo fato de ser o Carvalho Pinto o novo ministro da Fazenda. Ele tinha em seu favor duas coisas, sem dúvida. Havia sido um excelente governador de São Paulo e representava, de certa maneira, o espírito empresarial paulista. Sua nomeação tinha um sentido prático, operacional e administrativo, mas tinha também um sentido simbólico, que poderia criar condições de um diálogo de Jango com o empresariado. Essas foram as duas razões que levaram o Presidente a convidá-lo. Logo nos primeiros passos, Carvalho Pinto faz a análise da dívida externa, que era um dos problemas fundamentais a resolver. Eram milhões de dólares por ano em pagamentos, pesavam muito, a dívida não era brincadeira. Mas não conseguiu reescaloná-la satisfatoriamente, porque enfrentou a má vontade dos americanos. Lembro dele dizer, depois: “Era difícil o quadro, mas seria viável e nós poderíamos ter enfrentado, se o obstáculo de caráter político não levasse os Estados Unidos a impedir as demandas necessárias”. Mas então nós tivemos um quadro mais complicado ainda. Havia se criado a Frente de Mobilização Popular, uma instituição integrada pelos principais governadores que eram ligados ao Presidente João Goulart: Miguel Arraes de Pernambuco; Mauro Borges, de Goiás; Sérgio Seixas Dória, de Sergipe, apesar de ser da UDN; e Leonel Brizola, que não era governador, mas era deputado federal na época.

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Além deles, participavam as lideranças das grandes organizações tidas como a esquerda. O CGT, Comando Geral dos Trabalhadores. A União Nacional do Estudantes. Duas organizações pequenas que estavam nascendo, de caráter político, mas ainda embrionárias: a Ação Popular, que tinha nascido através do movimento da JUC, da Juventude Universitária Católica; e a POLOP, Política Operária, nascida também em Minas, assim como a AP. Havia a Associação dos Sargentos e Cabos. Os oficiais, que não podiam representar o Clube Militar ali, mas individualmente participavam. E passou a haver uma organização chamada CGI, Comando Geral dos Intelectuais. No dia em que se organizou e se constituiu em ata essa entidade, foram 400 assinaturas no Rio. O que se imaginar de grandes intelectuais naquele período estavam lá. Então, o CGI também participava da Frente. Assim como o Partido Comunista, que continuava na ilegalidade, mas tinha os seus quadros ali presentes. Em tese, a Frente existia para criar as condições de que, pela pressão social, nós pudéssemos fazer mudanças necessárias no país. Mas ela acabou se tornando, com muita facilidade e muita rapidez, quase um centro de antagonismo ao próprio Jango. Um contrapeso. Que viria, em grande parte, daquilo que chamamos vaidade, porque boa parte da tensão vinha do confronto de Brizola com Jango. Brizola tinha méritos, pelo papel extraordinário que desempenhou na Crise de 1961, liderando a Campanha da Legalidade contra o movimento reacionário que queria impedir a posse de Jango. Era um quadro de valor. Mas ele tinha um legítimo empenho de ser candidato a Presidente da República e a Constituição não lhe dava esse direito, por ser cunhado do Jango, parente próximo. Isso criava um problema, não é? Nesse contexto, Carvalho Pinto não conseguia resolver o problema com os Estados Unidos. Enfrentava o obstáculo intransponível do governo americano, que atuava contra o nosso. Em certo momento, as esquerdas que estavam constituídas na Frente de Mobilização Popular lançaram o nome de Leonel Brizola para ministro da Fazenda. E com poderes absolutos: era a Fazenda, o BNDES, o Banco do Brasil, a SUMOCS, a CACEX, todas as instituições financeiras diretamente sob o comando do Brizola. Houve uma reunião o dia inteiro na casa de um grande editor, Ênio Silveira. Quando o debate chegou ao grosso do calor, eu levantei a mão e disse: “Ô Brizola! Se você fosse o Presidente da República e lhe fizessem uma solicitação tão abusiva quanto esta, de colocar poderes absolutos na mão de um ministro da Fazenda, você aceitaria? Se João Goulart aceitar algo assim, deixa de ser presidente agora!”. Um deputado do Rio Grande do Sul, Temperani Pereira, figura extraordinária, economista, orador excepcional, tomou a palavra e disse o mesmo que eu, com muito mais peso. Aí ficou estabelecido que o debate seria suspenso. Acharam importante ouvir Miguel Arraes. Como eu tinha sido a voz divergente e como tinha boa relação pessoal com o Arraes, pediram que eu cumprisse a missão de levar a indagação. Naquela mesma noite eu fui Recife levando as razões da Frente. Um mal emissário, certamente, porque eu levava uma consulta, mas a minha opinião era contrária. Arraes responde, depois de um dia inteiro, com uma carta enorme sobre como deveria ser a recriação do governo. Se alguém ler esse texto vai se dar conta de que ele detalha como deve ser tudo, diz que o novo governo nasceria da força coletiva,

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recomenda medidas imediatas, mas não dá uma palavra sobre a candidatura do Brizola à Fazenda. Deixa o Brizola órfão, como candidato. No fim, João Goulart não atende nem um nem outro, e nomeia um cidadão chamado Ney Galvão, que era um banqueiro, bancário, sei lá. A única grosseria que eu fiz ao Presidente, que eu me recordo, foi a de dizer para a imprensa: “Se é verdade que o Presidente João Goulart acaba de nomear o Sr. Ney Galvão ministro da Fazenda, uma de duas: ou é algo provisório, e portanto não tem razão de ser, ou é algo para ficar, e é um desrespeito ao povo”. Fui pesado. Mas era o caso.

ESTADO DE SÍTIO Por que Presidente pediu a decretação do Estado de Sítio ao Congresso? Por que queria poderes especiais para governar, ele que era tão tolerante com o embate político? Não foi o Presidente quem teve a iniciativa de propor o Estado de Sítio. Foi um pedido expresso e cálido, muito cálido, dos ministros militares. Seus ministros. Por que pediram? Porque o governador Carlos Lacerda, numa entrevista a um jornalista do jornal Los Angeles Times, foi muito crítico sobre quadro geral do país e o risco do comunismo. Foi uma declaração que quase pedia que os Estados Unidos entrassem na conspiração para derrubar Jango. E, no meio disso tudo, ele fez críticas duras à omissão dos ministros militares, que por fraqueza ou incompetência, permitiam que o avanço comunista fosse gestado no palácio. Isso foi publicado imediatamente no jornal dele no Rio de Janeiro, a Tribuna da Imprensa. Em São Paulo, no Estado. Com muito destaque. Os ministros militares, de imediato, manifestaram uma repulsa duríssima às declarações. Fizeram um ofício ao Presidente, argumentando como era visível que determinados governadores estavam em processo de franca conspiração e criavam problemas à nação. E mais isso e mais aquilo outro, pleitearam em nome da ordem pública, em nome de não sei mais o que, com base no artigo não sei qual da Constituição, a decretação do Estado de Sítio. “Vossa Excelência salva o país com essa medida”, diziam. Mais ou menos isso. Bem, como pode o Presidente João Goulart dizer não a três ministros militares nesse tema? É muito difícil! Ele chama o Brizola, para ouví-lo como líder da Frente de Mobilização Popular. E o Brizola convoca muitas figuras da frente, para opinar sobre a posição que o presidente deveria tomar. Lá vou eu outra vez. A reunião foi no Rio, no gabinete do Brizola. Representando a Frente Parlamentar Nacionalista, fomos eu próprio e o deputado Fernando Santana, da Bahia. Estavam representantes da UNE, União Nacional dos Estudantes. Deveria ser o José Serra, que era o presidente, mas ele estava viajando, estava em Salvador. Então estava presente o vice-presidente, o jovem Marcelo Cerqueira. Estava ali o representante do CGI, do Comando Geral dos Intelectuais, Osni Duarte Pereira. Estava ali o deputado federal Sargento Garcia, que tinha acabado de se eleger. Estavam ali representantes do CGT. Ou seja, todas as organizações que de alguma forma compunham essa tal frente, estavam ali.

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Brizola nos fez a exposição do porquê do presidente estar praticamente decidido a fazer o pedido: Estado de Sítio por 30 dias. Queria nos ouvir. Eu levantei a mão. “Quero dizer que sou frontalmente contra o Estado de Sítio. Em primeiro lugar porque, por decorrência natural, ele exclui o povo da rua. Exclui. Passa a ser uma ordem militar. Nada de trabalhador na rua. Como podemos ter alguma razão, diante de um quadro complicado, pedindo aos trabalhadores que se afastem? É uma medida contraditória”. “Segundo: um estado de Sítio se sabe como começa, mas não como se desenvolve. Não me espantaria se, no decurso, prendessem o governador Carlos Lacerda. Em seguida, o seu Ademar de Barros. São duas figuras marcadas como sendo anti-governo, etc”. “Bom, e os outros governadores cruzam os braços? Vão ficar esperando que a degola chegue à eles em outro dia próximo? Ou vão se reunir todos, e nós teremos já agora uma convulsão nacional anti-Jango, por conta dessas medidas que poderão quase inevitavelmente ocorrer?” A segunda voz foi a dos jovens, da UNE. Entrou nas minhas águas de corpo e alma. E aí veio um por um: contra! contra! contra! Brizola disse: “Eu devo confessar que a minha posição era até favorável à medida do Presidente. Mas, diante do que acabam de dizer, também me oponho”. Ligou para Arraes: “Sou inteiramente de acordo, contra!”. Ligou para Mauro Borges: contra! Ligou para todos os governadores ligados à Frente de Mobilização Popular. Todos contra. Portanto, a frente se tornou contra. Lá vou eu para Brasília. Reúno o meu bloco dentro do PTB, bloco compacto. Unânime, contra. Reunimos a Frente Parlamentar Nacionalista: contra! Então, as forças de apoio ao Jango, todas, se manifestaram contra. Salvo uma parcela do PTB, porque assim pensava ou porque eram amicíssimos pessoais do Jango. Esses resolveram dar-lhe o apoio. O resto. A UDN, O PST, etc, estavam todos contra. Então, diante da evidência de que o pedido de Sítio não seria aprovado, o Jango retira. O que foi uma derrota política imensa. O que o presidente imaginava fazer no Estado de Sítio de 30 dias? Que é que ele pretendia fazer com esse poder em 30 dias? Se você puder ter uma conversa mediúnica, pergunte dele, e me responda! (risos) Mas não era tão curto 30 dias. Se renovam por mais 30, por mais 30. Não era um problema técnico. O problema é que, a rigor, o Estado de Sítio era o choque aberto com as forças contrárias. O resto, tudo o que você pensar é fantasia.

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NORTE-AMERICANOS Sobre as forças contrárias: no governo, já havia a percepção clara de que os Estados Unidos estavam fomentando o golpe? Havia indícios. Um desafio enorme que nós tivemos foi o chamado IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática. Essa instituição foi se revelando cada vez mais audaciosa, com recursos imensos de empresários brasileiros e americanos. E depois - confessado pelo Lincon Gordon, embaixador americano no Brasil – com milhões do governo americano. Bom, para que? Para salvar o país do comunismo. Para impedir que se elegessem figuras de alguma maneira vinculadas àquilo que eles achavam que era compromissos nossos com a extrema esquerda. E para, portanto, ter uma maioria parlamentar, afeita às teses deles. Meu amigo Paulo de Tarso Santos, ministro da Educação, propôs no Parlamento o projeto para a criação de uma CPI do IBAD. Foi uma coisa muito importante, e o que se conseguiu demonstrar nesse trabalho é excepcional. Até onde eles tinham chegado, na tarefa de escavar as bases da nossa sustentação, não é? Mas o governo, de modo geral, e o presidente em particular, tinhaM informações a respeito disso? Não suspeitas, mas informações? Não. A informação do quanto podia haver, comprovadamente, a participação dos Estados Unidos na articulação disso tudo, vem num crescendo. Além daquela batalha campal de dizer que o presidente era comunista, e que influiu enormemente na coesão dos militares, foi a nossa política internacional que realmente passou a chocar os interesses americanos. Não por decisão de querer chocar, mas porque era a nossa maneira de pensar. Dou exemplos. Há um momento em que os Estado Unidos descem para uma conferência em Punta Del Leste. Congresso da Organização dos Estados Americanos. O secretário de Estado americano propõe, formalmente, a expulsão de Cuba da OEA. Por que? Ela tinha passado a ser um órgão comunista. Em nome disso, não podia continuar na OEA. Quem faz a sustentação excepcional contra isso chama-se Santiago Dantas. Nosso ministro das Relações Exteriores. Argumenta! Demonstra juridicamente! Tudo o que você pode imaginar. E ganha! Os Estados Unidos perderam a batalha em Punta Del Leste. Você pode imaginar, para o orgulho americano, o quanto isso foi? Há um segundo momento, na crise dos mísseis soviéticos incrustrados ali na costa Cubana, apontados em direção à Flórida. Os Estados Unidos mandam uma carta. O Kennedy manda uma carta que não era um convite, era uma convocação para que o presidente do Brasil apoiasse a posição dos Estados Unidos - e invadíssemos Cuba com eles.

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Bom, o Presidente reúne no seu gabinete. Ele chega com a carta do Kennedy, que tinha recebido do embaixador. Já trazia à mão, anotações com a opinião dele. E houve uma tarde admirável de encontro político. Ao término, ficou deliberada a recusa. Coube ao Santiago elaborar a carta, na qual se dizia que o Brasil, baseado no princípio da autodeterminação dos povos, não tinha como intervir. Que um país, fosse qual fosse, se organizasse como bem lhe parecesse. Na visão pacífica nacional brasileira, as divergências políticas internacionais não se resolveriam através da arma, senão através do diálogo. Fez uma série de considerandos e recusou a participação. Mais um exemplo? Durante esse período em que Santiago Dantas é o ministro das Relações Exteriores, ele vai a uma conferência internacional na Suécia, sobre a criação de blocos militares. Com o apoio do México, da Índia e não sei mais qual país, o Brasil se opõe ao que Estados Unidos queriam realizar. E teve a Aliança para o Progresso. Eu fui representar o Brasil numa conferência interamericana em Bogotá e o meu discurso foi um libelo contra a Aliança para o Progresso, da forma como era proposta. Então, nós tínhamos uma posição realmente de divergência frontal com os Estados Unidos. Muitas das coisas da nossa maneira de pensar não eram antiamericanas. Mas eles viam como algo que não apenas nos afastava deles, como presumivelmente, suponho, acreditavam que significava uma aproximação nossa com a União Soviética. Nesse quadro todo, eu olho pra trás e digo: era quase inevitável o choque. Porque havia um contraditório muito profundo de todos os ângulos. De razões econômicas. Os Estados Unidos querem participar da Petrobrás, nós não queremos. Os Estados Unidos são contra a Eletrobrás? Querem ter, eles próprios, as suas usinas de energia elétrica, nos dando a energia quando queria dar ou quando não queria? Nós não queríamos. Queríamos ter a nossa energia elétrica. Esses aspectos e mais a Guerra Fria, que aí transcende o Brasil, levam os Estados Unidos, na minha convicção, a montar realmente um esquema de estímulos a países da América Latina, para terem ditaduras militares. Rigorosamente militares. Onde o anti-comunismo seria uma peça-chave e o americanismo, uma decorrência. Em certo instante, o presidente da Argentina, Arturo Frondisi, declara ao embaixador Afonso Arinos, em Washington: “Não sei se os senhores já se aperceberam do sistema militarista que o governo americano está implantando. Vai fechar a América Latina. O primeiro país será o meu, o segundo será o Brasil.” Isso foi transmitido pelo Afonso Arinos ao Santiago Dantas, que disse a Jango. Aconteceu tal qual. O presidente argentino, então, foi o primeiro que notou a montagem desse “sistema militarista” na América Latina. Como foi possível montá-lo, se as Forças Armadas pareciam tão divididas politicamente quanto qualquer outra instituição, naqueles anos? Pois é. Uma coisa que muito me espantou na hora do golpe foi a coesão militar. Uma coesão impressionante. Por que considero impressionante?

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Desde 1950, a rachadura no meio das Forças Armadas era uma constante. Pelos mais diferentes temas. No período Getúlio, uns queriam defender o Getúlio e outros queriam matá-lo, não é verdade? No período Juscelino, uns queriam impedir que ele fosse candidato e outros queriam que pudesse ser. Na chegada do Jango, uns não queriam que ele tomasse posse, outros queriam. Ou seja, uma constante. De repente, o milagre. Uma unidade absoluta! Então, eu me pergunto: mudaram os fatos e permitiram a unidade absoluta? E se mudaram, o que foi tão forte, capaz de uní-los? Hoje eu estou convencido de que foi a venda que os Estados Unidos conseguiram dar às nossas lideranças militares de um risco comunista, que era importante conter. E que o único que poderia conter era realmente o sistema militar. Não tem outra explicação para mim hoje. Claro que tem a ação dos setores sociais contrariados pelas medidas do governo. Com as nossas tentativas de reformas, Estatuto do Trabalhador Rural, isso e aquilo. Não estou dizendo que isso não pesou. Pesou. Mas acho que não nos levaria a um golpe de 21 anos.

GOLPE EM MARCHA Dr. Almino, com as informações que surgiram nos últimos 50 anos está absolutamente claro o papel dos Estados Unidos na preparação desse golpe, no financiamento, na articulação política. A questão é se, na época, dentro do governo, dava para perceber o alcance dessa ação. Como operava o sistema de informações, o serviço secreto? Uma das coisas mais deploráveis daquele momento era exatamente o serviço de informação, que hoje eu percebo, era de uma precariedade absoluta. Na manhã do dia 31 de março, quando as tropas de João Mourão já vinham vindo em direção ao Rio de Janeiro, desde lá de Juiz de Fora, num certo instante eu fui à Câmara Federal. A casa fervilhava. Gente para todo lado, discussão pra todo lado. “O que está havendo?”, eu me perguntei. A Câmara reunia-se habitualmente pela tarde e, com alguma frequência, à noite. Pela manhã, nunca. Portanto, havia algo estranho. Entrei numa das rodas. “Começou o golpe!”, diziam uns. Outros, favoráveis, comemoravam: “Começou a Revolução!”. Enfim, revelavam a marcha do general Mourão. Eu tinha estado em casa até ali. Os jornais ainda não tinham dado nada. Eu não sabia de nada. Voltei para casa e telefonei para o senador Artur Virgílio Filho, que era líder do governo no Senado. “Artur, você já ouviu isso que está acontecendo? Parece que as coisas estão se precipitando!”. Ele se espantou: “Mas eu não estou a par disso! Venha para cá, vamos ligar para o presidente!”. Ele morava ao lado, fui até lá. O presidente estava no Rio, no Palácio das Laranjeiras. Artur Virgílio ligou. Eu fiquei ouvindo na extensão telefônica. “Presidente, está aqui o Almino, me contando o quadro que acaba de ouvir no Parlamento, na Câmara, a respeito da marcha do General Mourão. Como vou ter de falar necessariamente sobre esse assunto no Senado, estou lhe telefonando para pedir as suas instruções.”

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Responde o ilustre Presidente João Goulart, ao meio dia de 31 de março de 64. “Artur, isso tudo é fantasia da oposição. Ficam criando um quadro de alarme para ver se nos tiram do controle da situação. É um absurdo isso!”. Passava por ele o General Assis Brasil, que era o chefe da Casa Militar. O presidente o interpelou. “General, o senador Artur Virgílio acaba me dizer alguma coisa sobre uma marcha de revoltosos. O há disso?”. Pergunta ao chefe de sua Casa Militar! Responde o general: “Presidente, não há nada! É um movimento de tropas rotineiro que se dá no Exército. Não há absolutamente nada”. Jango insiste: “General, não há nada?”. Ele garante: “Nada, presidente, estou lhe dizendo!”. Jango retoma o telefonema conosco. “Tu vistes, Artur? Não há nada”. O senador então pergunta a ele: “Presidente, eu devo transmitir hoje no Senado o que acabo de ouvir do senhor?”. Jango é taxativo. “Podes, não. Deves!”. Desligamos, almoçamos e voltamos depois para o Congresso. A Câmara não era mais um fervedouro. Era um comício. Um barulho, uma agitação! Eu entro numa roda e digo o que acabo de ouvir do Presidente. Aí o deputado Carlos Murilo, sobrinho do presidente Juscelino Kubistcheck, me tira da roda. “Almino, se o Presidente João Goulart está dizendo isso como uma forma de suavizar o clima de tensão, eu não sei se isso terá efeito. Agora, se ele está acreditando na verdade do que disse a vocês, está perdido! Porque desde a madrugada de hoje, Belo Horizonte está em pé de guerra. O Governador Magalhães Pinto já assumiu o comando da Revolução. Isso é público desde a madrugada”. Bom, eu não posso dizer, seria injusto, leviano, dizer que o general Assis Brasil tenha de alguma maneira contribuído para um desfecho negativo do nosso governo. Seria uma acusação irresponsável. Mas que ele era de uma incompetência absoluta, isso eu posso dizer. Porque não saber ao meio dia de um fato que já vinha desde a madrugada é inacreditável. E o pior: o Presidente João Goulart só foi formalmente comunicado da marcha do General Mourão às seis da tarde do dia 31. Por um bilhete do ministro da Justiça, Abelardo Jurema. Leite derramado, revolução ou golpe em marcha, como reage o governo? O golpe se dá no dia 1º de abril, não em dia 31 de março. A imprensa, mais os militares, mais os intelectuais vendidos, passaram a considerar que foi em 31 de março porque temeram que ficasse o povo rindo de uma chamada “revolução” que começa no dia da mentira. Por que da minha afirmação? Primeiro porque eu estava lá. Ao lado. Ao verificar que não tinha condições de ficar no Rio de Janeiro, o Presidente vem a Brasília. Ali tínhamos nada além de um pequeno pelotão, que havia como lhe dar apoio. É quando ele recebe um telefonema do General Ladário, que tinha acabado de nomear para o Comando do III Exército. O general já havia traído e passado a apoiar o golpe, mas, enfim, telefona. “Presidente, eu tomo a liberdade de convidá-lo, venha para Porto Alegre. Aqui nós podemos fazer o centro da resistência. Quem sabe, com isso não se renova a situação no país?”. E deu lá as razões que achou que podiam convencer o presidente.

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Jango saiu do telefonema e veio ao encontro. Nós quem? Tancredo Neves, eu próprio, o senador Artur Virgílio Filho, o deputado Doutel de Andrade, o deputado Temperani Pereira, o deputado Bocaiúva Cunha. Éramos estes. A chamado dele, Jango. Na Granja do Torto, que era onde ele morava. Ele vem a nós e revela o que General Ladário tinha acabado de propor. Fomos unânimes em dizer: “Presidente, é o que sobra como esperança. A expectativa é de que o Rio Grande possa repetir o que fez na Crise da Legalidade”. Ele viaja para Porto Alegre. Viaja com problemas, porque já no aeroporto foi um drama. Ele havia conseguido um avião da Varig, um Coronado. Era o avião mais moderno do país. Recém chegado, moderno, uma beleza. Jango se despede de todo mundo, embarca e o avião não decola! Ele deve ter entrado no avião às nove horas da manhã do dia 1º. Eram onze horas e o avião não decolava! Aquele animal enorme, uma ave bonita, parada na pista. Naquele dia eu aprendi que os símbolos do poder caem rápido. São como folha seca, caem rápido. Todos foram embora, não tinha mais ninguém esperando que o avião decolasse. Sobravam naquele aeroporto enorme apenas Tancredo Neves, Bocaiúva Cunha e eu, que passei a ter dor no estômago. Vão prender esse homem aqui a qualquer hora!”, eu disse. “Estou pensando o mesmo”, responde Tancredo. “Vamos lá falar com ele, exigir que mude e vá num avião qualquer, contanto que voe!”. Quando nós chegamos à escada do avião, Jango já vinha descendo. Havia tomado a decisão ir para Porto Alegre num Avro, um avião turbo hélice, com um número de horas de vôo infinitamente maior do que o Coronado. Chegando à Porto Alegre, já estava lá o Brizola. Eles se reúnem com o General Ladário e seu Estado Maior. Ladário então declara que, na opinião dele, deveria haver a resistência armada. Porque e”nquanto sobra uma bala, se luta, uma expressão mais ou menos assim. Jango dá a palavra aos outros oficiais. Todos são unânimes em dizer, categoricamente: “Presidente, nós não temos a menor condição de resistência. A menor! Nem aqui no Rio Grande do Sul. A base aérea de tal lugar já aderiu, o quartel tal já aderiu. Seria uma aventura absoluta”. Retoma a palavra o General Ladário. “Presidente, nós temos sargentos e munição. E podemos convocar pessoas, transformamos os cidadãos em soldados e os sargentos em tenentes, para comandar a tropa. E marcharemos, Presidente. Se chegarmos a Brasília, como creio que chegaremos, o senhor retoma o poder. Como eu acredito que acontecerá”. Brizola concorda e pede que o presidente nomeie Ladário ministro da Guerra e nomeie a ele, Brizola, ministro da Justiça. Ambos comandariam a retomada. Um daqueles generais que falaram divergindo do próprio chefe mostra a realidade. “No plano nacional não tem mais um comando. Todos já aderiram. O comando todo! O que nós temos aqui é um grupo de poucas pessoas”. Esse foi um ponto que pesou muito na avaliação que Jango estava fazendo. A incapacidade real de luta. Outro ponto é que Afonso Arinos transmitiu a Santiago Dantas que não apenas os Estados Unidos aprovavam o levante de Minas, como lhe dariam sustentação absoluta. Primeiro, através do estado de beligerância. Na hora em que começasse a luta, de

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acordo com as normas de diplomacia internacional, os Estados Unidos passariam a reconhecer Belo Horizonte como capital do país, e não mais Brasília ou o Rio. Além disso, os americanos estariam mandando uma frota, parte dela para ocupar Pernambuco. Que razão teria o Jango de convocar a luta? Ele ouve tudo e encerra o assunto com o General Ladário. “Estou profundamente agradecido ao senhor pela sua disposição de luta, mas eu me recuso à luta fratricida em defesa do meu mandato. Não estou renunciando, mas me recuso a assumir o comando de uma luta armada”. De qualquer forma, nesse momento Jango ainda é o presidente do Brasil. Sim, mas logo virá o golpe formal. Quando Jango viaja para Porto Alegre e nos deixa no aeroporto de Brasília, Tancredo diz uma frase fantástica, dirigindo-se o deputado Bocaiúva Cunha e a mim. “Eu que há dez anos participei da última reunião presidencial de Getúlio Vargas, me pergunto se hoje dei a mão a João Goulart como presidente pela última vez”. Chegamos na casa do Bocaiúva, toca o telefone. Era uma das secretárias do Auro de Moura Andrade, convocando para uma reunião extraordinária do Congresso, reunião conjunta da Câmara e do Senado. A uma e meia da manhã do dia 2 de abril. Bom, o que seria? Não seria para loas, certamente. Na hora da sessão, o Congresso estava lotado. Moura Andrade toma a palavra, mas antes de começar a falar, o Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil, pede para ler um ofício. Diz que o presidente João Goulart, às tantas horas, no avião tal, tinha viajado para Porto Alegre e coisa e tal. Ele não precisava fazer isso. O Presidente só tem o dever de informar o Congresso se a viagem for internacional. Em território internacional, o presidente tem direito de ir e vir a qualquer lugar. Mas Jango resolveu fazer a comunicação, como diriam os bacharéis, “ex-abundância”. Para não haver dúvidas da normalidade do que ele fazia. Depois da carta, Moura Andrade começa um discursinho horroroso, de poucas linhas, que foi depois publicado em toda parte. “Todo mundo sabe que o senhor Presidente da República, já a esta altura, tendo deixado Brasília, na verdade deixou o governo acéfalo. Nós, membros do Congresso Nacional, representantes do povo, não podemos tolerar que isto ocorra sem atuarmos. Portanto, eu me sinto no dever de, neste instante, declarar vago o cargo de Presidente da República! E que o senhor Ranieri Mazzilli, na qualidade de presidente da Câmara, assuma em caráter interino, a presidência da República. Está encerrada a sessão!”. Foi só isso. Não houve debate nenhum. Alguns jornalistas atrasados disseram que “aí houve um debate”, mas não houve debate nenhum. Foi exatamente como estou dizendo. Eu estava na primeira fila. Eu e este jovem chamado Tancredo. Aí vou contar duas coisas admiráveis. Tancredo, baixinho, normalmente suave, levantou e disse: “Canalha! Canalha!”. Com essa voz! E o deputado Rogê Ferreira, um líder socialista, hercúleo, atlético, vai até a escadinha da mesa. Moura Andrade vinha descendo, cercado de guardas, uma segurança maior que a habitual. O Rogê mete os cotovelos, consegue abrir espaço naquela aquela guarda e dá duas cusparadas no Moura Andrade! Que eu chamo de público, já disse muitas vezes, “duas cusparadas cívicas”.

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IMAGEM O presidente tinha apoio popular quando o golpe foi desfechado? Tinha, de fato, sustentação? Naquele final, quando nós já marchávamos como se fosse uma espécie de tragédia grega, vê-se que as coisas estão quase inevitáveis, mas não temos como fugir delas. Eu suponho que, na maioria de nós, já não havia confiança que tivéssemos de fato um apoio significativo da população. Tinha havido no começo de março, creio que dia 19, a grande marcha em São Paulo. Na época se falou em mais de 500 mil pessoas, não sei. Mas eu estava no alto do hotel Othon Palace, olhando para a região do viaduto do Chá, quando vi a marcha vindo lá da Barão de Itapetininga. Vinha, vinha, vinha, atravessou aquilo tudo. Eu disse de mim para mim: “Estamos realmente perdendo apoio popular”. Não era “povão”, mas era uma classe média expressiva, onde havia algumas pessoas da elite. Curiosamente, tempos depois, através de um estudioso, eu pude ter acesso a uma pesquisa do IBOPE. Pesquisa feita 15 dias antes do golpe, abrangendo 15 capitais do país, as maiores. Nessa pesquisa, as perguntas eram as mais variadas. Eu me recordo agora de momento, de algumas, como por exemplo: “Você é a favor da Reforma Agrária?”. 75% dos entrevistados eram a favor, naquele momento. Quando o que predominava, se eu me reportar à imprensa dominante na época, é de Reforma Agrária era uma coisa de comunistas e, portanto, não correspondia a uma necessidade real do país. 75% dos entrevistados achavam que era importante. Mas o mais significativo, eu diria, foi quando perguntaram: “Se avizinha a eleição presidencial de 1965. Você acha que seria importante o apoio do Presidente João Goulart a algum dos candidatos?”. Uma quantidade enorme de entrevistados, mas de 40%, uns 50%, respondeu. “Claro! É importante que o Presidente apóie”. Porém, a definitiva, para mim, é quando o IBOPE pergunta: “Se fosse legalmente possível ao Presidente João Goulart ser candidato à reeleição, você votaria nele?”. 47% dos entrevistados respondem que sim. Se você tomar em conta que, naquela época, já eram candidatos presumíveis Juscelino, Lacerda, Magalhães Pinto e até Ademar de Barros, sem falar em outros avulsos, enxerga bem o significado disso. Ter naquele momento 47% de apoio presumido, por essas manifestações dos entrevistados, parece-me que prova, de uma maneira significativa, que, quando se deu o golpe, o presidente não caiu ao desamparo da opinião pública. Mas não é esta a imagem que perdurou ao longo de 50 anos. De qualquer forma, mesmo que ainda tivesse apoio de setores populares, o Presidente já não podia contar com a classe média. A classe média teve um papel, como eu diria, dividido. Porque a pesquisa do IBOPE, revela que uma parte importante da população - e portanto, também da classe média -

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terá mantido uma opinião favorável ao Presidente. Mas é claro também que a marcha que houve aqui em São Paulo foi de classe média. Não era o “povão” que estava ali. A marcha que houve no Rio de Janeiro era de classe média. O quebra-quebra no Rio de Janeiro, o incêndio da UNE, o apedrejamento da UNE. Ali era a classe média. Não era o povão contra. Eu não imagino o povão realmente envolvido nesses episódios mais agressivos contra o Presidente João Goulart. E também não imagino a classe alta jogando pedras, porque as mãos são finas demais para jogarem pedras. Não fariam. Não saberiam fazê-lo. Foi a classe média, sem dúvida. Acho que houve, portanto, uma divisão clara. Inclusive na parte religiosa. Uma parte importante da religiosidade no nosso país, em quase todas as religiões, é da classe média. Pois mandaram buscar nos Estados Unidos um tal de Padre Peyton, para rezar o terço na casa das famílias e salvar o Brasil do comunismo. Em Belo Horizonte, eu vi senhoras de classe média colocando um terço sobre mim, como em Paulo de Tarso e em Leonel Brizola. Batiam com o terço assim no nosso rosto, como se estivessem nos exorcizando. E como se formou essa imagem demoníaca do governo e de Jango? Aí a grande imprensa que me perdoe. Com a exceção honrosa da Última Hora, todos os jornais tiveram uma atitude de bloqueio a respeito do Presidente João Goulart. Até para justificar a atitude deles próprios, que tramaram e ajudaram o golpe. Trataram de obscurecer inteiramente tudo quanto pudesse de algum modo significar algo favorável ao Presidente João Goulart. Passados 50 anos, isso está sendo superado. Vejo com muito agrado que, de repente, a imprensa, a televisão, estudos acadêmicos, livros que tão sendo publicados, comecem a recuperar, a partir da verdade histórica, o que Jango teve de positivo. O que não impede que se conheça o que ele tenha tido de negativo. Os meios de comunicação, então, não tiveram um papel democrático? Eu diria que foi antidemocrático. Profundamente. Porque quando você deforma a verdade, você desserve à História e ao país. Isso hoje eu digo da maneira mais clara. E dou um exemplo. Há um certo instante em que o deputado Bilac Pinto, um jurista ilustre, passou a fazer sistematicamente discursos na Câmara, com a acusação de que o Presidente João Goulart estava armando a chamada “Campanha Revolucionária. O nome era algo assim. Algo como uma guerrilha, uma ação revolucionária. Para quem conhecesse o presidente, imaginar ele próprio assumindo uma ação desse tipo era tão fora de propósito! Mas Bilac Pinto insistia nos discursos. Sucessivos, vários, um atrás do outro. Estou convencido de que técnicos de ação revolucionária o ensinaram a fazer esses discursos. Não acredito que ele, o jurista que era, sequer soubesse dos dados com que argumentou. Mas o importante é que os principais jornais de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte, do Recife, estampavam o assunto nas manchetes. “Deputado Bilac Pinto denuncia o golpe de João Goulart”, “Bilac Pinto mostra onde o

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presidente está armando a Revolução”. Todos os jornais, fora a Última Hora. Manchete! Manchete! Até O Globo, que agora nos dá a alegria de saber que faz também o seu “mea culpa”. Concluindo, o senhor diria, como Darcy Ribeiro, que Jango caiu mais por suas virtudes do que por seus defeitos? Se eu pego o conjunto dos fatos todos, o que eu acho é que ninguém teria condições de fazer diferente. Jango foi cercado de uma maneira absoluta por adversidades enormes, na verdade. Eu costumo ouvir essa pergunta: “Como conseguiram demonizar Jango de tal forma como um comuna?”. Eu diria que foi para derrubá-lo. Para absolutamente ter condições de dizer: derrubamos um governo democraticamente eleito, porque o Presidente é um comuna. Só para isso. Porque não havia nenhum argumento para dizer que era. Nenhum!