almeida_terras de quilombo, terras indígenas, babuçuais livres

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Comunidade Itaquera, rio Jauaperi rr/am, (foto Ana Paulina).

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Page 1: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

Comunidade Itaquera, rio Jauaperi – rr /am, (foto Ana Paulina).

Page 2: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres
Page 3: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

Audiência Pública em defesa do Dec. 4887, Câmara dos Deputados,

Brasília, 2007 (foto: A. Wagner).

Page 4: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

Comunidade Itaquera, rio Jauaperi – rr/am, 2007 (foto: Acervo).

Page 5: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres
Page 6: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

Comunidade Sateré-Mawé Y’apyrehyt. Redenção,Manaus, 2008 (foto: Glademir S. dos Santos).

Page 7: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

Terras de quilombos, terras indígenas,“babaçuais livres”, “castanhais do povo”,faxinais e fundos de pastos: t e r r as t r a d i c i o n a l m e n t e o c u pa das

2.ª ed ição

– Alfredo Wagner Berno de Almeida

Coleção “Tradição e ordenamento jurídico”, vol. 2projeto nova cartografia social da amazônia

Page 8: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

© alfredo wagner berno de almeida, 2008

projeto gráfico e diagramação Rômulo do Nascimento Pereira

revisãoWillas Dias da Costa

foto da capaA. Wagner – Tambor de crioula do Quilombo Só Assim, Alcântara (ma)

projeto nova cartografia social da amazônia

(ppgsca-ufam / Fundação Ford / ppgda-uea)

projeto processos de territorialização, conflitos e movimentos sociais na amazônia

(fapeam / cnpq)

Rua José Paranaguá, 200Centro. Manaus – Am cep 69005 130

[email protected]

Almeida, Alfredo Wagner Berno de

Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”,

“castanhais do povo”, faixinais e fundos de pasto: terras

tradicionalmente ocupadas. Alfredo Wagner Berno de

Almeida. – 2.ª ed, Manaus: pgsca–ufam, 2008.

192 p.

isbn 978-85-7401-402-9

i. Questão agrária – Movimentos sociais 2. Terras indígenas

3. Terras de negros. i. Título

cdd: 303.6cdu 301.175:333.013-6

Page 9: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

S U M Á R I O

apresentação 17

terras tradicionalmente ocupadas:processos de territorialização,

movimentos sociais e uso comum

Introdução 25

A instituição das “Terras tradicionalmente ocupadas” 33

A Abrangência do significado de “Terras 48tradicionalmente ocupadas”

Os limites das categorias censitárias e cadastrais 69

Os movimentos sociais 80

Os processos de territorialização 118

Referências bibliográficas 127

terras de preto, terras de santo,

terras de índio – uso comum e conflito

Sistemas de uso comum na estrutura agrária 133

Uso comum nas regiões de colonização agrária 142

Uso comum nas regiões de ocupação recente 159

Diferenciação interna e antagonismos 162

anexos

Projeto de Lei do Legistlativo Municipal n.04/2005 179que cria a Lei do licuri livre ou lei do ouricuri

sua preservação, extrativismo e comercialização Câmara Municipal de Antonio Gonçalves

Decreto n.° 889. Prefeitura Municipal de Curitiba 183Outorga de permissão de uso para implantação

do memorial de cultura cigana

Page 10: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

Oficina dos Faxinais, Irati – pr, 2008 (foto: A. Wagner).

Page 11: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

TABELAS E QUADROS DEMONSTRATIVOS

Quadro 1 – 57

Terras tradicionalmente ocupadas

(categorias de autodefinição, movimentos, atos,

agencias oficiais competentes, política governamental,

estimativa de área e população de referencia)

Quadro 2 – 73

Formas de reconhecimento jurídico das diferentes

modalidades de apropriação das denominadas “terras

tradicionalmente ocupadas” (1988-2005)

Quadro 3 – 108

Movimentos Sociais (período ou ano de fundação,

sede, rede de organizações vinculadas, representação)

Tabela 1 – 83

Relação dos municípios com as maiores proporções

de autodeclarados indígenas, com indicação das

Unidades da Federação de referencia, população

total dos municípios e de indígenas. Brasil – 2000

Tabela 2 – 84

Relação dos Municípios com as maiores populações

de autodeclarados indígenas e proporção em relação

à população total dos municípios, com indicação

das Unidades da Federação de referencia

– Brasil – 2000

Page 12: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

Croquis elaborados em oficinade mapas de Fundos de Pasto,Casa Nova – ba, 2007(foto: A. Wagner).

Page 13: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

AARJ: Associação dos Artesãosdo Rio Jauaperi

ACBANTU: Associação CulturalACIBRIN: Associação das

Comunidades Indígenas do Rio Negro

ACIMRN: Associação dasComunidades Indígenas doMédio Rio Negro

ACINCTP: Associação Comu-nitária Indígena AgrícolaNhengatu

ACIRI: Associação dasComunidades Indígenas do Rio Içana

ACIRU: Associação dasComunidades Indígenas do Rio Umari

ACIRX: Associação dasComunidades Indígenas do Rio Xié

ACITRUT: Associação dasComunidades Indígenas deTaracuá, Rio Uapés e Tiquié

ACNUR: Alto Comissariadodas Nações Unidas paraRefugiados

ACONERUQ: Associação dasComunidades Negras RuraisQuilombolas do Maranhão

ADCT: Ato das DisposiçõesConstitucionais Provisórias

AGM : Associação Galibi-Marworno

AINBAL: Associação Indígenado Balaio

AIPAT: Associação dosProfessores Indígenas doPovo Assurini do Trocara

AISMA: Associação IndígenaSateré Mawé do Rio Andirá

AIX: Associação IndígenaXerente

AM: AmazonasAMAI: Associação das Mulheres

de Assunção do Rio IçanaAMARN: Associação das Mulhe-

res Indígenas do Rio NegroAMIK: Associação das Mulheres

Indígenas KambebaAMISM: Associação das

Mulheres Indígenas SateréMawé

AMITRUT: Associação dasMulheres Indígenas de Taracuá, Rio Uapés e Tiquié

AMTAPAMA: Associação dosPovos Tupi do Pará

AMTR: Associação de MulheresTrabalhadoras Rurais

APINA: Associação dos PovosWaiãpi

APIO : Associação dos PovosIndígenas do Oiapoque

APIR : Associação dos Profes-sores Indígenas de Roraima

APITU: Associação dos PovosIndígenas do Tumucumaque

APK: Associação dos PovosKarintiana

APOINME: Articulação dosPovos Indígenas do Nordeste,

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SIGLAS E ABREVIATURAS

Page 14: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

Minas Gerais e EspíritoSanto

APRECI: Associação de Preser-vação da Cultura Cigana

ARCINE: Associação Rural dasComunidades Indígenas doRio Negro

Art.: ArtigoASPA: Associação Pariwawi

(Povo Xavante)ASSEMA : Associação de Áreas

de Assentamento do Estadodo Maranhão

ATRIART: Associação das TribosIndígenas do Alto Rio Tiquié

CACIR: Conselho de Articula-ção das ComunidadesIndígenas e Ribeirinhas

CCC: Centro de Cultura CiganaCE: Constituição EstadualCF: Constituição FederalCEFET: Centro Federal de

Educação TecnológicaCGTSM: Conselho Geral da

Tribo Sateré MawéCGTT: Conselho Geral da

Tribo TicunaCIM: Conselho Indígena MuraCIMAT: Conselho Indígena

Munduruku do Alto TapajósCIPK: Conselho Indígena

Pep’Cahyc KrikatiCIR: Conselho Indígena

de RoraimaCITA: Conselho Indígena

dos Rios Tapajós e ArapiunsCIVAJA: Conselho Indígena

do Vale do Javari

CNPT: Centro Nacional deDesenvolvimento Sustentadodas Populações Tradicionais

CNS: Conselho Nacional dosSeringueiros

COAPIMA: Coordenação dasOrganizações e Articulaçõesdos Povos Indígenas doMaranhão

COIAB: Coordenação Indígenada Amazônia Brasileira

COIS: Coordenação das Orga-nizações Indígenas Suruí

CONAQ: Coordenação Nacionalde Articulação das Comuni-dades Negras RuraisQuilombolas

CONIB: Confederação Israelitado Brasil

COPIAM: Conselho dos Profes-sores Indígenas da Amazônia

CPI-AC: Comissão Pró-Indiodo Acre

CUNPIR: Coordenação da Uniãodas Nações Indígenas deRondônia, Norte do MatoGrosso e Sul do Amazonas

FCP: Fundação Cultural Palmares

FEPOIMT: Federação dos Povose Organizações Indígenas doMato Grosso

FOCCITT: Federação das Orga-nizações e dos Caciques eComunidades Indígenas daTribo Ticuna

FOIRN: Federação das Organiza-ções Indígenas do Rio Negro

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Page 15: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

FSPA: Fórum Social Pan-Ama-zônico

FUNAI: Fundação Nacional do Índio

GTA: Grupo de TrabalhoAmazônico

INCRA: Instituto Nacional de Colonização e ReformaAgrária

MA: MaranhãoMAB: Movimento dos

Atingidos por BarragensMABE: Movimento dos

Atingidos pela Base Espacialde Alcântara

MALUNGU: CoordenaçãoEstadual das Associações deRemanescentes de Quilombosdo Estado do Pará

MDA: Ministério do Desen-volvimento Agrário

MEIAM: Movimento dos Estudantes Indígenas doAmazonas

MIQCB: Movimento Interesta-dual das Quebradeiras deCôco Babaçu

MMA: Ministério do MeioAmbiente

MMC: Movimento deMulheres Camponesas

MMTR-AM: Movimento de Mu-lheres Trabalhadoras Ribeiri-nhas do Estado do Amazonas

MONAPE: MovimentoNacional dos Pescadores

MOPEMA: Movimento dosPescadores do Maranhão

MOPEPA: Movimento dosPescadores do Pará

MORA: Movimento dos Ribeirinhos do Amazonas

MRRA: Movimento dos Ribeirinhos e Ribeirinhas do Amazonas

MPIVJ: Movimento dos PovosIndígenas do Vale do Juruá

NAEA: Núcleo de Altosestudos Amazônicos

OASISM: Organização dosAgentes Indígenas de Saúdedo Povo Sateré Mawé

OGPTB: Organização Geral dosProfessores Ticuna Bilingüe

OIBI: Organização Indígena daBacia do Rio Içana

OPAMP: Organização do PovoApurinã da Bacia do RioPurus

OPIAC: Organização dos Pro-fessores Indígenas do Acre

OPIAM: Organização dos PovosIndígenas do Alto Madeira

OPIM: Organização dosProfessores Indígenas Mura

OPIMP: Organização dos PovosIndígenas do Médio Purus

OPIPAM: Organização dosPovos Indígenas Parintintindo Amazonas

OPIR: Organização dos PovosIndígenas de Roraima

OPIRE: Organização dos PovosIndígenas do Rio Envira

OPISM: Organização dos Profes-sores Indígenas Sateré Mawé

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Page 16: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

OPITARJ: Organização dosPovos Indígenas de Tarauacáe Jordão

OPITTAMP: Organização dosPovos Indígenas Torá,Tenharim, Apurinã, Mura,Parintintin e Pirahã

OSPTAS: Organização de Saúdedo Povo Ticuna do AltoSolimões

PA: ParáPE: PernambucoPNCSA: Projeto Nova Carto-

grafia Social da AmazôniaPNPCT: Política Nacional de

Desenvolvimento Sustentáveldos Povos e ComunidadesTradicionais

PPGSCA: Programa de Pós-Graduação Sociedade eCultura na Amazonia

PR: ParanáPRODEX: Projeto de Desenvol-

vimento ExtrativistaPVN: Projeto Vida de Negro

(MA)RESEX: Reserva ExtrativistaSEPRO: Secretaria de Produção

do Estado do AcreTO: TocantinsUCIRN: União das Comuni-

dades do Rio Negro/Ilha das Flores

UEA: Universidade Estadual do Amazonas

UEMA: Universidade Estadualdo Maranhão

UFAM: Universidade Federal doAmazonas

UFMA: Universidade Federal doMaranhão

UFPA: Universidade Federal doPará

UNAMAZ: Associação deUniversidades Amazônicas

UNEMAT: UniversidadeEstadual do Mato Grosso

UNCIDI: União das Comuni-dades Indígenas do Distritode Yauareté

UNI: União das Nações Indí-genas

UNI/ACRE: União das NaçõesIndígenas do Acre/ Sul doAmazonas

UNI/TEFÉ: União das NaçõesIndígenas do Médio Solimões

UNIRT: União das Comu-nidades Indígenas do RioTiquié

UPIMS: União dos Povos Indí-genas Munduruku e Sateré

USAGAL : União de Sindicatos eAssociações de Garimpeirosda Amazônia Legal

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Page 17: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

APRESENTAÇÃO

A cogitação de paralelismo e cotejo, somada ao propó-sito de buscar aproximar simultaneamente diferentes

instrumentos teóricos, distintas realidades localizadas ediferentes momentos históricos, me levou a reunir doistextos para compor este livro: um elaborado em fins de1985 e o outro em meados de 2004 e começo de 2005.Vinte anos separam estes dois trabalhos, que ora apresen-to numa ordem de exposição invertida, começando do maisrecente para o mais recuado. Vistos em perspectiva, peloolhar da leitura crítica, estão diretamente ligados à minhaexperiência profissional enquanto antropólogo voltadopara o estudo de antagonismos sociais em torno das moda-lidades de uso comum dos recursos naturais por diferentesgrupos e povos tradicionais. O que ressaltam, em princí-pio, é que tais modalidades de apropriação não encontramnecessariamente correspondência formal no ordenamentojurídico e na ação do Estado.

São textos aproximáveis ademais, porquanto acham-se referidos também a “momentos de transição” ou a situa-ções históricas peculiares em que grupos sociais e povospercebem que há “condições de possibilidade” para enca-minhar suas reivindicações básicas, para reconhecer suasidentidades coletivas e mobilizar forças em torno delas eainda para tornar seus saberes práticos um vigoroso instru-mento jurídico-formal.

17terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”,faxinais e fundos de pastos: terras t radic ionalmente ocupadas Alfredo Wagner

Berno de Almeida

Page 18: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

O primeiro texto foi escrito nos últimos meses do anode 1985 e no começo de 1986. Refere-se a argumentos acio-nados na redefinição dos instrumentos da ação fundiáriaoficial, sobretudo aqueles de natureza cadastral, queposteriormente foram retomados nos debates da Assem-bléia Nacional Constituinte. Participei de tal redefinição apartir de meu trabalho no extinto mirad1, contribuindona montagem de uma Coordenadoria de Conflitos Agrá-rios e também chamando a atenção, a partir de verificaçõesin loco, para modalidades de uso comum da terra, manti-das à margem da ação oficial, tais como as chamadas:“terras de preto”, “terras de santo”, “terras da santa”,“terras de índio”, “terras de caboclo”, “terras soltas ouabertas”, “terras de herdeiros” sem formal de partilha háinúmeras gerações e suas variantes, “terras de parentes” e“terras de ausente”, dentre outras.

O fulcro da polêmica, na qual se colocava este traba-lho de mapeamento da diversidade de apropriações, erarepensar a lógica de reestruturação formal do mercado deterras, que considera o fator étnico, os laços de parentesco,as redes de vizinhança e as identidades coletivas comoformas de imobilização dos recursos básicos, que impedemque as terras sejam transacionadas livremente como merca-dorias. Nos fundamentos desta análise uma luta contra os“economistas formalistas”, que imaginam as mesmas cate-gorias econômicas para todo e qualquer povo ou socieda-de e um “modelo de propriedade” homogêneo, coadunadocom as vicissitudes do mercado de terras.

Este primeiro artigo foi coetâneo da emergência de“novas” identidades coletivas e dos denominados “novosmovimentos sociais”, definidos por Hobsbawm, comopossuindo raízes locais profundas, consciência ambiental,critérios de gênero, e se agrupando em torno das mesmas

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Page 19: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

reivindicações, através de um critério político-organizativo.Os sujeitos em pauta passavam de uma existência atomi-zada para uma existência coletiva, objetivada em movimen-tos sociais, tais como os movimentos indígenas, agrupadosem torno da uni, o Movimento dos Sem Terra e o Conse-lho Nacional dos Seringueiros, simbolizando os denomina-dos “povos da floresta”.

O segundo artigo se coloca para além do surgimentodestes movimentos e focaliza seus desdobramentos. Decerta maneira atualiza o anterior. Assim, no início da déca-da de 90 foram as chamadas “quebradeiras de coco baba-çu” e os “quilombolas” que se colocaram na cena políticaconstituída, consolidaram seus movimentos e articularamestratégias de defesa de seus territórios, juntamente comoutros povos e comunidades tradicionais, tais como os“castanheiros” e os “ribeirinhos”. Além destes começarama se consolidar no último lustro, as denominadas “comu-nidades de fundos de pasto” e dos “faxinais”. Estes movi-mentos, tomados em seu conjunto, reivindicam oreconhecimento jurídico-formal de suas formas tradicionaisde ocupação e uso dos recursos naturais. E é exatamentedisto que trata o segundo texto aqui apresentado, re-atua-lizando o primeiro, distinguindo-se dele ao enfatizar asautodefinições dos agentes sociais e não apenas as designa-ções que utilizam para nomear as extensões que ocupam,e focalizando os fenômenos recentes, onde o “tradicional”é considerado como atrelado a fatos do presente e às atuaisreivindicações dos movimentos sociais. Nesta análisesurpreendem , aqui e ali, tanto as diferenças e disparidades,quanto as semelhanças e identificações nos vários sentidosque assume o “saber tradicional” convertido em reivindi-cação ou mesmo num dispositivo jurídico, como seria ocaso das Leis Municipais do Babaçu Livre, no Maranhão,

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Page 20: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

Pará, Tocantins e Piauí ou das Leis Municipais dos Faxi-nais, no Paraná, ou ainda daquela do Ouricuri Livre, emmunicípio do sertão da Bahia. O reconhecimento jurídico-formal das práticas de uso comum, mediante a ação dosmovimentos sociais, permite registrar conquistas efetivas,contrariando simultaneamente tanto as interpretaçõesdeterministas de que se estaria diante de uma “crise dotradicional” mediante o crescimento demográfico, quantoas interpretações evolucionistas que reiteram uma “crisedos comuns” indicativa de seu trágico declínio ou de uma“tendência inexorável ao desaparecimento”.

Nos fundamentos desta análise tem-se uma luta teóri-ca contra a fôrça dos esquemas interpretativos dos “posi-tivistas no direito”, que sempre querem confundir etnias,minorias e/ou povos tradicionais dentro de uma noçãogenérica de “povo”, elidindo a diversidade cultural, e contraa ação sem sujeito de esquemas inspirados nos “estruturalis-mos”, que privilegiam e se circunscrevem às oposições simé-tricas entre “comum” e “individual”, entre “coletivo” e“privado”, entre “propriedade” e “uso”, entre recursos“abertos” e “fechados”, entre “tradicional” e “moderno”,menosprezando a dinâmica das situações concretas produ-zidas pelos povos e grupos tradicionais nas suas relaçõessociais com seus antagonistas históricos. O “modelo depropriedade comum”, concebido pelos legisladores paraharmonizar a homogeneização jurídica dos registros cadas-trais de terras, e as interpretações absolutas do “usocomum”, que aparecem nos documentos oficiais com fina-lidade de recenseamento agropecuário, são aqui relativiza-dos e considerados como noções pré-concebidas, quecontraditam as ações mobilizatórias dos chamados “povostradicionais” e suas categorias intrínsecas de apropriaçãodos recursos naturais.

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Construí este ponto de vista a partir do trabalho decampo e de técnicas várias de observação direta. Para tantoparticipei de inúmeros “encontros2” durante os dois últi-mos anos: de quilombolas (no Maranhão e Pará), dos“povos dos faxinais” (no Paraná), das quebradeiras de côcobabaçu (no Tocantins, no Piauí e no Maranhão), das“comunidades de fundos de pasto” (na Bahia), do regionaldo gta no Acre, das “comunidades tradicionais” (emGoiás e Brasília). Organizei, juntamente com Rosa Aceve-do Marin, seminários sobre “Populações Tradicionais equestões de terra” no Fórum Panamazônico (Pará eAmazonas) e no Fórum Social Mundial (Caracas). Entre-vistei lideranças, acompanhei mobilizações, como aquelasdos quilombolas atingidos pela Base de Lançamentos deFoguetes de Alcântara e me expus no debate amplo, aomesmo tempo em que realizei meu trabalho de pesquisasobre critérios de representação diferenciada dos movimen-tos sociais na construção de suas respectivas “territoriali-dades específicas”. Com os resultados produzi o segundotexto e o reescrevi depois de publicado. À força de ouvirme dizerem repetidas vezes que valeria a pena acrescentarinterpretações complementares e também republicar ostextos, trabalhei com afinco para prepará-los com vistas auma única publicação. Comecei a preparar este materialpara publicação a partir de uma discussão detida comJoaquim Shiraishi Neto sobre a relevância de recuperarmosestas práticas jurídicas localizadas e estas formas organiza-tivas, que impelem os movimentos sociais para o plano jurí-dico-formal e para a cena política, notadamente no planolegislativo.

Esta discussão ganhou corpo, quando da execução emequipe das tarefas de pesquisa no Projeto Nova Cartogra-fia Social da Amazônia. Envolvidos no trabalho de campo

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Page 22: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

e nas atividades de elaboração de mapas, fascículos, livrose folhetins, fomos levados a discussões mais detidas e conta-tos mais demorados em cada uma das “oficinas de mapas3”que realizamos, as quais me impeliram a rever discussões epressupostos4 e a compreender com mais discernimento alógica de atuação de diferentes movimentos sociais5, comono caso dos atingidos pela Base de Lançamento de Fogue-tes de Alcântara, da Coordenação Nacional de Articu-lação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas e doMovimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Baba-çu. Este processo de discussão não apenas contribuiu paraa elaboração do texto que abre este livro, como tambémcontribuiu decisivamente, num sentido mais amplo, paraprópria idéia da coleção “Tradição & Ordenamento Jurí-dico”, da qual ele faz parte como segundo volume.

alfredo wagner berno de almeida

Antropólogo. Professor-visitante do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia – Universidade Federal

do Amazonas e pesquisador Fapeam-cnpq.

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Page 23: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

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notas – Apresentação

1. O mirad (Ministério da Reforma e do DesenvolvimentoAgrário) foi criado em março de 1985, quando findou a ditadu-ra instaurada com o golpe militar de 1964. Foi um Ministériode transição política, criado para elaborar e aplicar um planonacional de reforma agrária ampla e massiva. Com a força dosinteresses da contra-reforma foi, entretanto, extinto três anosdepois sem atingir seus objetivos.

2. O significado de “encontro”, no léxico dos movimentossociais, corresponde a um mecanismo de decisão, equivalente auma assembléia, a uma reunião deliberativa ou a uma consultarealizada pela coordenação junto àqueles que são por ela repre-sentados. Este termo ganhou força a partir de 1985, quando semanifestam os primeiros indícios de uma crise na mediação exer-cida pelo movimento sindical, cujas decisões principais eramtomadas em assembléias das quais participavam exclusivamen-te os sócios quites obrigatoriamente referidos a uma mesmabase territorial. A participação nos denominados “encontros”mostra-se mais flexível, adotando critérios de participaçãocoadunados com a situação de conflito diretamente referida.

3. Entre julho de 2005 e fevereiro de 2006 foram realizadas noâmbito do pncsa treze oficinas, que consistem em reuniões comno máximo 30 participantes, selecionados pelos próprios movi-mentos sociais de referencia, para definir em cima de basescartográficas já conhecidas previamente pelos participantes,quais os elementos relevantes para compor o mapeamento socialde seu próprio povo ou grupo.

4. Nesta dinâmica de discussões queria agradecer em especial aoscolaboradores e pesquisadores referidos ao pncsa, a saber:

Page 24: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

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Joaquim Shiraishi Neto, Rosa Acevedo Marin, Cynthia deCarvalho Martins, Ana Paulina Aguiar Soares, Solange Gayoso,Franklin Plessman, Erika Nakazono, Jurandir Novaes, AnicetoCantanhede, Arydimar Gaioso, Noemi M. Porro, LucieneFigueiredo, Rodrigo Lopes e Fabiano Saraiva, que de diferen-tes maneiras contribuiram com seus resultados efetivos depesquisa e suas participações nas “oficinas de mapas” parareforçar nossas convicções.

5. Aqui gostaria de agradecer principalmente à coordenação doMovimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu,na pessoa de Maria Adelina, mais conhecida como Dada; àcoordenação do Grupo de Trabalho Amazônico (gta), napessoa de Maria de Aquino,mais conhecida como Leide; à coor-denação do Movimentos dos Atingidos pela Base Espacial deAlcântara, nas pessoas de Dorinete Serejo, mais conhecidacomo Neta, de Sérvulo Borges, mais conhecido como Borjão, ede Inaldo Diniz, e às coordenações de Malungu – CoordenaçãoEstadual Quilombola do Pará, da Aconeruq-Associação dasComunidades Negras Quilombolas do Maranhão, da Conaq –Coordenação de Articulação das Comunidades Negras RuraisQuilombolas, do Movimento dos Ribeirinhos e Ribeirinhas doAmazonas, do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Ribei-rinhas do Estado do Amazonas e da Central de Fundos de Pastode Senhor do Bonfim e também aos conselheiros do Congressoda Cidade de Belém, que participaram das “oficinas de mapas”,representando os indígenas, os quilombolas urbanos e os deno-minados “afroreligiosos”.

Page 25: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

TERRAS TRADICIONALMENTE

OCUPADAS : PROCESSOS DE TERRITO-

RIALIZAÇÃO, MOVIMENTOS SOCIAIS

E USO COMUM

N as duas últimas décadas estamos assistindo em todoo País, e notadamente na Amazônia, ao advento de

novos padrões de relação política no campo e na cidade.Os movimentos sociais no campo, que desde 1970 vem seconsolidando fora dos marcos tradicionais do controleclientelístico e tendo nos Sindicatos de Trabalhadores eTrabalhadoras Rurais uma de suas expressões maioresconhecem, desde 1988-89, certos desdobramentos, cujasformas de associação e luta escapam ao sentido estrito deuma entidade sindical, incorporando fatores étnicos,elementos de consciência ecológica e critérios de gênero ede autodefinição coletiva, que concorrem para relativizaras divisões político-administrativas e a maneira convencio-nal de pautar e de encaminhar demandas aos poderes públi-cos2. Para efeitos deste texto pretendo analisar a relaçãoentre o surgimento destes movimentos sociais e os proces-sos de territorialização que lhes são correspondentes. Atri-buo ênfase nestes mencionados processos às denominadas“terras tradicionalmente ocupadas”, que expressam umadiversidade de formas de existência coletiva de diferentespovos e grupos sociais em suas relações com os recursos danatureza. Não obstante suas diferentes formações históri-cas e suas variações regionais, elas foram instituídas no

1

25terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”,faxinais e fundos de pastos: terras t radic ionalmente ocupadas Alfredo Wagner

Berno de Almeida

Page 26: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

texto constitucional de 1988 e reafirmadas nos dispositi-vos infraconstitucionais, quais sejam, constituições esta-duais, legislações municipais e convênios internacionais.

As dificuldades de efetivação destes dispositivos legaisindicam, entretanto, que há tensões relativas ao seu reco-nhecimento jurídico-formal, sobretudo porque rompem coma invisibilidade social, que historicamente caracterizouestas formas de apropriação dos recursos baseadas princi-palmente no uso comum e em fatores culturais intrínsecos,e impelem a transformações na estrutura agrária. Emdecorrência tem-se efeitos diretos sobre a reestruturaçãoformal do mercado de terras, bem como pressões para quesejam revistas as categorias que compõem os cadastrosrurais dos órgãos fundiários oficiais e os recenseamentosagropecuários.

O fato dos legisladores terem incorporado a expres-são “populações tradicionais” na legislação competente3 edo governo tê-la adotado na definição das funções dosaparatos burocrático-administrativos, tendo inclusive cria-do, em 1992, o Conselho Nacional de Populações Tradicio-nais, no âmbito do ibama4, não significa exatamente umacatamento absoluto das reivindicações encaminhadaspelos movimentos sociais, não significando, portanto,uma resolução dos conflitos e tensões em torno daquelasformas intrínsecas de apropriação e de uso comum dosrecursos naturais, que abrangem extensas áreas principal-mente na região amazônica, no semi-árido nordestino e noplanalto meridional do País. Em dezembro de 2004, porpressão dos movimentos sociais, o governo federal decretoua criação da Comissão de Desenvolvimento Sustentável dasComunidades Tradicionais 5 com vistas a implementaruma política nacional especialmente dirigida para taiscomunidades. A expressão “comunidades”, em sintonia

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com a idéia de “povos tradicionais” deslocou o termo“populações”, reproduzindo uma discussão que ocorreu noâmbito da Organização Internacional do Trabalho (oit)em 1988-89 e que encontrou eco na Amazônia através damobilização dos chamados “povos da floresta” no mesmoperíodo. O “tradicional” como operativo foi aparentemen-te deslocado no discurso oficial, afastando-se do passadoe tornando-se cada vez mais próximo de demandas dopresente. Em verdade o termo “populações”, denotandocerto agastamento, foi substituído por “comunidades”,que aparece revestido de uma conotação política inspiradanas ações partidárias e de entidades confessionais, referi-das à noção de “base”, e de uma dinâmica de mobilização,aproximando-se por este viés da categoria “povos”. Seusrepresentantes passam a ter instituídas suas relações comos aparatos de poder e integrarão a mencionada Comis-são, consoante o Art. 2 § 2°, do referido decreto, cuja fina-lidade precípua consiste em estabelecer uma PolíticaNacional de Desenvolvimento Sustentável. Por mais queestes termos e expressões estejam se tornando lugares-comuns do discurso oficial pode-se asseverar que o senti-do de “terras tradicionalmente ocupadas” e suasimplicações encontra-se, entretanto, implícito.

Em 7 de fevereiro de 2007, menos de 3 anos depois deinstituída a referida Comissão, através do Decreto n. 6040foi instituída a Política Nacional de DesenvolvimentoSustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais(pnpct). No Art. 3 procedeu-se à definição das principaisnoções em pauta, quais sejam: “povos e comunidades tradi-cionais”, “territórios tradicionais” e “desenvolvimentosustentável”. Para efeitos da argumentação aqui produzi-da vale sublinhar que o decreto presidencial considera oseguinte:

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Povos e Comunidades Tradicionais: grupos cultural-mente diferenciados e que se reconhecem como tais, quepossuem formas próprias de organização social, queocupam e usam territórios e recursos naturais comocondição para sua reprodução cultural, social, religiosa,ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inova-ções e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

As formas próprias mencionadas, quando traduzidas paraplanos, programas e suas ações respectivas remetem inva-riavelmente, consoante os termos da pnpct, para “práti-cas comunitárias” e situações de uso comum dos recursosnaturais.

Em termos analíticos, pode-se adiantar, que taisformas de uso comum designam situações nas quais ocontrole dos recursos básicos não é exercido livre e indi-vidualmente por um determinado grupo doméstico depequenos produtores diretos ou por um de seus membros.Tal controle se dá através de normas específicas, combi-nando uso comum de recursos e apropriação privada debens, que são acatadas, de maneira consensual, nos mean-dros das relações sociais estabelecidas entre vários gruposfamiliares, que compõem uma unidade social. Tantopodem expressar um acesso estável à terra, como ocorreem áreas de colonização antiga, quando evidenciamformas relativamente transitórias características dasregiões de ocupação recente. Tanto podem se voltar prio-ritariamente para a agricultura, quanto para o extrativis-mo, a pesca ou para o pastoreio realizados de maneiraautônoma, sob forma de cooperação simples e com baseno trabalho familiar. As práticas de ajuda mútua, incidin-do sobre recursos naturais renováveis, revelam um conhe-cimento aprofundado e peculiar dos ecosssistemas de

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referencia. A atualização destas normas ocorre, assim, emterritórios próprios, cujas delimitações são socialmentereconhecidas, inclusive pelos circundantes. A territoriali-dade funciona como fator de identificação, defesa e fôrça,mesmo em se tratando de apropriações temporárias dosrecursos naturais, por grupos sociais classificados muitasvezes como “nômades” e “itinerantes”. Laços solidários ede ajuda mútua informam um conjunto de regras firma-das sobre uma base física considerada comum, essencial einalienável, não obstante disposições sucessórias porven-tura existentes. Em virtude do caráter dinâmico destasformas de apropriação dos recursos é que preferi utilizara expressão processo de territorialização (Oliveira Filho:1999) em vez de insistir na distinção usual entre terra eterritório, que vem sendo adotada notadamente nasformulações inspiradas nos trabalhos de P. Bohannansobre a representação da terra entre os Tiv. Embora Oli-veira Filho faça distinção entre processo de territorializa-ção e territorialidade, que considera um termo maispróximo do discurso geográfico, recuperei o termo comoutro significado, aquele de uma noção prática designadacomo “territorialidade específica” para nomear as delimi-tações físicas de determinadas unidades sociais quecompõem os meandros de territórios etnicamente configu-rados. As “territorialidades específicas” de que tratareiadiante podem ser consideradas, portanto, como resul-tantes de diferentes processos sociais de territorialização ecomo delimitando dinamicamente terras de pertencimen-to coletivo que convergem para um território.

Por seus desígnios peculiares, o acesso aos recursosnaturais para o exercício de atividades produtivas, se dánão apenas através das tradicionais estruturas intermediá-rias do grupo étnico, dos grupos de parentes, da família, do

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povoado ou da aldeia, mas também por um certo grau decoesão e solidariedade obtido face a antagonistas e emsituações de extrema adversidade e de conflito6, que refor-çam politicamente as redes de solidariedade. Neste sentidoa noção de “tradicional” não se reduz à história, nem tãopouco a laços primordiais que amparam unidades afetivas,e incorpora as identidades coletivas redefinidas situacional-mente numa mobilização continuada, assinalando que asunidades sociais em jogo podem ser interpretadas comounidades de mobilização7. O critério político-organizativosobressai combinado com uma “política de identidades”,da qual lançam mão os agentes sociais objetivados emmovimento para fazer frente aos seus antagonistas e aosaparatos de estado.

Aliás, foi exatamente este fator identitário e todos osoutros fatores a ele subjacentes, que levam as pessoas a seagruparem sob uma mesma expressão coletiva, a declara-rem seu pertencimento a um povo ou a um grupo, a afirma-rem uma territorialidade específica e a encaminharemorganizadamente demandas face ao Estado, exigindo oreconhecimento de suas formas intrínsecas de acesso àterra, que me motivaram a refletir novamente sobre aprofundidade de tais transformações no padrão “tradicio-nal” de relações políticas.

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notas – Terras Tradicionalmente ocupadas:processos de territorialização, movimentossociais e uso comum

1. Meus agradecimentos à Fundação Ford, que propiciou recur-sos para a execução deste trabalho, e ao antropólogo AurélioVianna com quem debati a montagem dos quadros demonstra-tivos.Agradeço ainda ao advogado Joaquim Shiraishi Neto, pelasinformações a respeito dos “faxinais”, e ao mestrando em antro-pologia da ufba, Franklin Plessman pelo levantamento de dadossobre os chamados “fundos de pasto”. Uma primeira versãodeste artigo, mais reduzida e com o mesmo título, foi publicadapela Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. Vol. 6,n.° 1. anpur, maio de 2004. pp. 9-32.

2. Este texto retoma questões analisadas em “Universalização eLocalismo-Movimentos Sociais e crise dos padrões tradicionaisde relação política na Amazônia”. Reforma Agrária. Ano 19 No.1 abril junho de 1989. abra (Associação Brasileira de ReformaAgrária) pp. 4-7.

3. A Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000, que regulamenta oArt. 225 da Constituição Federal e institui o Sistema Nacionalde Unidades de Conservação da Natureza, menciona explicita-mente as denominadas “populações tradicionais” (Art. 17) ou“populações extrativistas tradicionais” (Art. 18) e focaliza a rela-ção entre elas e as unidades de conservação (área de proteçãoambiental, floresta nacional, reserva extrativista, reserva dedesenvolvimento sustentável).

4. CF. Portaria/Ibama, n. 22-n, de 10 de fevereiro de 1992 quecria o Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das

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Populações Tradicionais-cnpt, bem como aprova seu Regi-mento Interno.

5. CF. Decreto de 27 de dezembro de 2004, in Diário Oficial daUnião – Seção i – Atos do Poder Executivo, Ed. n. 249, 28 dedezembro de 2004 p. 4. Em abril de 2005 este Decreto foi reedi-tado com o n. 10.408 (não conseguimos localizar a referenciaprecisa de sua publicação). Em 13 de julho de 2006 um decretopresidencial, publicado no Diário Oficial da União, de 14 dejulho de 2006 Seção 1 – pág. 19, alterou denominação, compe-tência e composição da Comissão Nacional de Desenvolvimen-to Sustentável das Comunidades Tradicionais.

6. Barragens, campos de treinamento militar, base de lança-mento de foguetes, áreas reservadas à mineração, áreas deconservação como as chamadas unidades de proteção integral,rodovias, ferrovias, gasodutos, oleodutos, linhões de transmis-são de energia, portos e aeroportos em sua implementação temgerado inúmeros conflitos sociais com grupos camponeses,povos indígenas e outros grupos étnicos.

7. Este conceito de unidades de mobilização refere-se à aglutina-ção de interesses específicos de grupos sociais não necessaria-mente homogêneos, que são aproximados circunstancialmentepelo poder nivelador da intervenção do Estado – através depolíticas desenvolvimentistas, ambientais e agrárias – ou dasações por ele incentivadas ou empreendidas, tais como as chama-das obras de infraestrutura que requerem deslocamentoscompulsórios. São estas referidas unidades que, nos desdobra-mentos de suas ações reivindicativas, possibilitaram a consolida-ção de movimentos sociais como o Movimento dos Atingidospor Barragens (mab) e o Movimento dos Atingidos pela Base deFoguetes de Alcântara (mabe), dentre outros.

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A INSTITUIÇÃO DAS “TERRAS

TRADICIONALMENTE OCUPADAS”

A s teorias do pluralismo jurídico, para as quais o direi-to produzido pelo Estado não é o único, ganharam

força com a Constituição de 1988. Juntamente com elas ecom as críticas ao positivismo, que historicamente confun-diu as chamadas “minorias” dentro da noção de “povo”,também foi contemplado o direito à diferença, enuncian-do o reconhecimento de direitos étnicos. Os preceitosevolucionistas de assimilação dos “povos indígenas etribais” na sociedade dominante foram deslocados peloestabelecimento de uma nova relação jurídica entre o Esta-do e estes povos com base no reconhecimento da diversida-de cultural e étnica. No ato das disposições constitucionaistransitórias foi instituída, inclusive, consoante o Art. 68,nova modalidade de apropriação formal de terras parapovos como os quilombolas baseada no direito à proprie-dade definitiva e não mais disciplinada pela tutela, comosoa acontecer com os povos indígenas. Estes processos derupturas e de conquistas, que levaram alguns juristas a falarem um “Estado Pluriétnico” ou que confere proteção a dife-rentes expressões étnicas, não resultaram, entretanto, naadoção pelo Estado de uma política étnica e nem tampou-co em ações governamentais sistemáticas capazes de reco-nhecer prontamente os fatores situacionais que influenciamuma consciência étnica. Mesmo levando em conta que opoder é efetivamente expresso sob uma forma jurídica ouque a linguagem do poder é o direito, há enormes dificul-dades de implementação de disposições legais desta ordem,

33terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”,faxinais e fundos de pastos: terras t radic ionalmente ocupadas Alfredo Wagner

Berno de Almeida

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sobretudo em sociedades autoritárias e de fundamentoscoloniais e escravistas, como no caso brasileiro. Nestestrês lustros que nos separam da promulgação da Consti-tuição Federal tem prevalecido ações pontuais e relativa-mente dispersas, focalizando fatores étnicos, mas sob aégide de outras políticas governamentais, tais como a polí-tica agrária e as políticas de educação, saúde, habitação esegurança alimentar1. Inexistindo uma reforma do Estado,coadunada com as novas disposições constitucionais, asolução burocrática foi pensada sempre com o propósitode articulá-las com as estruturas administrativas preexis-tentes, acrescentando à sua capacidade operacional atribu-tos étnicos. Se porventura, foram instituídos novos órgãospúblicos pertinentes à questão, sublinhe-se que a competên-cia de operacionalização ficou invariavelmente a cargo deaparatos já existentes.

Os problemas de implementação daquelas disposiçõesconstitucionais revelam, em decorrência, obstáculosconcretos de difícil superação principalmente na homolo-gação de terras indígenas e na titulação das terras dascomunidades remanescentes de quilombos. Conforme já foisublinhado as terras indígenas são definidas como bens daUnião e destinam-se à posse permanente dos índios, eviden-ciando uma situação de tutela e distinguindo-se, portanto,das terras das comunidades remanescentes de quilombos,que são reconhecidas na Constituição de 1988 como depropriedade definitiva2 dos quilombolas. Não obstante estadistinção relativa à dominialidade, pode-se afirmar queambas são consideradas juridicamente como “terras tradi-cionalmente ocupadas” seja no texto constitucional ounos dispositivos infraconstitucionais e enfrentam na suaefetivação e reconhecimento obstáculos similares. De igualmodo são consideradas como “terras tradicionalmente

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ocupadas”, e enfrentam obstáculos à sua efetivação, aque-las áreas de uso comum voltadas para o extrativismo, apesca, a pequena agricultura e o pastoreio, focalizadas pordiferentes instrumentos jurídicos, que buscam reconhecersuas especificidades, quais sejam:

– os dispositivos da Constituição Estadual no Mara-nhão falam em assegurar “a exploração dos baba-çuais em regime de economia familiar e comunitária”(Art. 196 Constituição do Maranhão de 1990),

– na Bahia falam em conceder o direito real de conces-são de uso nas áreas de “fundo de pasto” (Art. 178 daConstituição da Bahia de 1989);

– no Amazonas o capítulo xiii da Constituição Esta-dual é denominado “Da população ribeirinha e dopovo da floresta”3. Contempla os direitos dos núcleosfamiliares que ocupam as áreas das barreiras de terrasfirme e as “terras de várzeas” e garante seus meios desobrevivência (Arts. 250 e 251 da Constituição doAmazonas, de 1989).

As ambigüidades que cercam a denominação de“população ribeirinha” tendem a ser dirimidas. Assim,as distinções internas ao significado da categoria “ribei-rinhos” – que muitas vezes é utilizada consoante umcritério geográfico, em sinonímia com “habitantes dasvárzeas”, abrangendo indistintamente todos os que selocalizam nas margens dos cursos d’água, sejam povosindígenas, grandes ou pequenos criadores de gado oupescadores e agricultores – vão ser, todavia, delimita-das pelo Movimento dos Ribeirinhos do Amazonas,pelo Movimento de Preservação de Lagos e pelo Movi-

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mento de Mulheres Trabalhadoras Ribeirinhas. Estesmovimentos tem os grandes pecuaristas, os criadoresde búfalos e os que praticam a pesca predatória emescala comercial como antagonistas, bem como os inte-resses envolvidos na construção de barragens, de gaso-dutos e de hidrelétricas4. A mobilização política,própria destes conflitos, tem construído uma identida-de riberinha, que é atributo dos que estão referidos aunidades de trabalho familiar na agricultura, no extra-tivismo, na pesca e na pecuária, a formas de coopera-ção simples no uso comum dos recursos naturais e auma consciência ecológica acentuada5.

– A Lei Estadual do Paraná de 14 de agosto de 1997que reconhece formalmente os “faxinais” como “siste-ma de produção camponês tradicional, característicoda região Centro-Sul do Paraná, que tem como traçomarcante o uso coletivo da terra para produção animale conservação ambiental.” (Art. 1); as Leis municipaisaprovadas no Paraná que reconhecem os criatórioscomuns. Estas Leis Municipais deste fevereiro de 1948,como aquelas reconhecidas pela Câmara de São Joãodo Triunfo (Lei n. 09 de 06/02/48) e pela CâmaraMunicipal de Palmeira (Lei n. 149 de 06/05/77),buscam delimitar responsabilidades inerentes ao usodas terras de agricultura e de pastagens, com as respec-tivas modalidades de cercamento.

– As Leis municipais aprovadas no Maranhão, no Paráe no Tocantins desde 1997, mais conhecidas como “Leisdo Babaçu Livre”, que disciplinam o livre acesso aosbabaçuais, mantendo-os como recursos abertos inde-pendentemente da forma de dominialidade, seja posse

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ou propriedade.Desde 1997 estão tramitando projetosde lei ou foram aprovadas mais de dez Leis Municipaisno Estado do Maranhão (Municípios de Lago do Junco,Lago dos Rodrigues, Esperantinópolis, São Luis Gonza-ga, Imperatriz, Capinzal do Norte, Lima Campos), noEstado do Tocantins (Municípios de Praia Norte, Buri-ti) e no Estado do Pará (Município de São Domingosdo Araguaia) defendendo o uso livre dos babaçuais.

– Na região onde prevalecem as comunidades de“fundos de pastos”, no Estado da Bahia, começam aser reivindicadas também as chamadas “Leis do LicuriLivre”. Constituem um dispositivo análogo àquelereivindicado pelas “quebradeiras de coco babaçu” e aprimeira lei foi aprovada pela Câmara de Vereadoresdo Município de Antonio Gonçalves (ba) em 12 deagosto de 2005. Trata-se da Lei n.° 4 que protege osouricuzeiros e garante o livre acesso e o uso comum pormeio de cancelas, porteiras e passadores aos catadoresdo licuri e suas famílias, “que os exploram em regimede economia familiar e comunitária” (Art 2o. Parágra-fo Primeiro). O ouricuri, também chamado licuri eainda aricuri ou nicuri, possui uma amêndoa rica emnutrientes e serve de complemento alimentar para ospequenos agricultores de base familiar6 (Vide Anexo i).

Nesta diversidade de formas de reconhecimento jurídicodas diferentes modalidades de apropriação dos recursosnaturais que caracterizam as denominadas “terras tradicio-nalmente ocupadas”, o uso comum de florestas, recursoshídricos, campos e pastagens aparece combinado, tanto coma propriedade, quanto com a posse, de maneira perene outemporária, e envolve diferentes atividades produtivas exer-

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cidas por unidades de trabalho familiar, tais como: extra-tivismo, agricultura, pesca, caça, artesanato e pecuária.

Considerando que a emergência e o acatamento formalde novos dispositivos jurídicos refletem disputas entrediferentes forças sociais, pode-se adiantar que o significa-do da expressão “terras tradicionalmente ocupadas” temrevelado uma tendência de se tornar mais abrangente ecomplexo em razão das mobilizações étnicas dos movimen-tos indígenas (coiab, uni, apoinme), dos movimentosquilombolas, que estão se agrupando deste 1995 na hojedenominada Coordenação Nacional das ComunidadesNegras Rurais Quilombolas (conaq) e dos demais movi-mentos sociais que abrangem os extrativismos do babaçu,da castanha e da “seringa”7, bem como o pastoreio e asáreas de criatórios comuns. A própria categoria “popula-ções tradicionais” tem conhecido aqui deslocamentos noseu significado desde 1988, sendo afastada mais e mais doquadro natural e do domínio dos “sujeitos biologizados”e acionada para designar agentes sociais, que assim se auto-definem, isto é, que manifestam consciência de sua própriacondição. Ela designa, neste sentido, sujeitos sociais comexistência coletiva, incorporando pelo critério político-organizativo uma diversidade de situações correspondentesaos denominados seringueiros, quebradeiras de coco baba-çu, quilombolas, ribeirinhos, castanheiros e pescadores quetem se estruturado igualmente em movimentos sociais8. Adespeito destas mobilizações e de suas repercussões navida social, não tem diminuído, contudo, os entraves polí-ticos e os impasses burocrático-administrativos queprocrastinam a efetivação do reconhecimento jurídico-formal das “terras tradicionalmente ocupadas”.

Aliás, nunca houve unanimidade em torno destaexpressão. Nas discussões da Assembléia Nacional Cons-

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tituinte a expressão “terras tradicionalmente ocupadas”só preponderou pela derrota dos partidários da noção de“terras imemoriais”, cujo sentido historicista, remontandoao período pré-colombiano, permitiria identificar oschamados “povos autóctones” com direitos apoiados tãosomente numa naturalidade ou numa “origem” que nãopoderia ser datada com exatidão. Um dos resultados maisvisíveis deste embate consiste no parágrafo 1.o do Art. 231da Constituição Federal de 1988:

São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios aspor eles habitadas em caráter permanente, as utilizadaspara suas atividades produtivas, as imprescindíveis àpreservação dos recursos ambientais necessários a seubem estar-estar e as necessárias a sua reprodução físicae cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

A ocupação permanente de terras e suas formas intrínsecasde uso caracterizam o sentido peculiar de “tradicional”.Além de deslocar a “imemorialidade” este preceito constitu-cional contrasta criticamente com as legislações agráriascoloniais, as quais instituíram as sesmarias até a Resoluçãode 17 de julho de 1822 e depois estruturaram formalmen-te o mercado de terras com a Lei n. 601 de 18 de setembrode 1850, criando obstáculos de todas as ordens para que nãotivessem acesso legal às terras os povos indígenas, os escra-vos alforriados e os trabalhadores imigrantes que começa-vam a ser recrutados9. Coibindo a posse e instituindo aaquisição como forma de acesso à terra, tal legislação insti-tuiu a alienação de terras devolutas por meio de venda,vedando, entretanto, a venda em hasta pública, e favoreceua fixação de preços suficientemente elevados das terras10,buscando impedir a emergência de um campesinato livre. A

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Lei de Terras de 1850, nesta ordem, fechou os recursos emenosprezou as práticas de manter os recursos abertos sejaatravés de concessões de terras, seja através de códigos deposturas, como os que preconizavam o uso comum de agua-das nos sertões nordestinos, de campos naturais na Amazô-nia ou de campos para pastagem no sul do País11.

A efetivação dos novos dispositivos da ConstituiçãoFederal de 1988, contraditando os velhos instrumentos legaisde inspiração colonial, tem se deparado com imensos obstá-culos, que tanto são urdidos mecanicamente nos aparatosburocrático-administrativos do Estado, quanto são resultan-tes de estratégias engendradas seja por interesses que histo-ricamente monopolizaram a terra, seja por interesses de“novos grupos empresariais” interessados na terra e demaisrecursos naturais12. Mesmo considerando a precariedade dosdados quantitativos disponíveis é possível asseverar que osresultados de sua aplicação pelos órgãos oficiais tem se mos-trado inexpressivos, sobretudo no que tange às terras indíge-nas, às comunidades remanescentes de quilombos e às áreasextrativistas. No caso destas últimas não há uma reservaextrativista13 sequer regularizada fundiáriamente e o percen-tual de áreas assim declaradas não alcança 5% das áreas deocorrência de babaçuais, castanhais e seringais. Com respeitoàs terras indígenas tem-se pelo menos 145 processos admi-nistrativos tramitando, acrescidos de 44 terras por demar-car e 23 outras para homologar, isto é, mais de 1/3 semqualquer regularização e intrusadas de maneira efetiva.

No caso das comunidades remanescentes de quilom-bos, em 15 anos de aplicação do Art. 68, os resultados sãoda mesma ordem, igualmente inexpressivos, a saber:

Oficialmente, o Brasil tem mapeado 743 comunidadesremanescentes de quilombos. Essas comunidades

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ocupam cerca de 30 milhões de hectares, com umapopulação estimada em 2 milhões de pessoas. Em 15anos, apenas 71 áreas foram tituladas.” (EmQuestão, 20/11/003)14

A separação aumenta quando estes dados são confronta-dos com aqueles produzidos por associações e entidadesvoluntárias da sociedade civil. Eles se mostram segundouma subestimação mediante as 1.098 comunidades rema-nescentes de quilombos apontadas por mapeamento preli-minar realizado com base em dados de levantamentos queestão sendo realizados pela conaq, pela aconeruq, pelopvn-smdh e por projetos acadêmicos na Universidade deBrasília e na Universidade Federal do Pará.

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notas – A Instituição das “terras tracidionalmente ocupadas”

1. Para uma análise desta lógica de intervenção governamental,consulte-se: Almeida, A W.B. de – “Nas bordas da política étni-ca: os quilombos e as políticas sociais” in Boletim Informativodo NUER vol. 2 n. 2. Florianópolis. ufsc. 2005 pp. 15-44.

2. No Brasil a condição de ex-escravos como “proprietários”,através de uma forma comunitária, só aparece legalmente como Art. 68 do adct de 1988. Nem após a “Lei de Liberdade dosÍndios” , do período pombalino, de 1755, e nem após a Aboliçãoda Escravatura de 1888 foram definidos preceitos legais que asse-gurassem o acesso à terra aos libertos. Para efeito de contrasterecorde-se que nos Estados Unidos com a abolição da escrava-tura foi constituída formalmente uma camada de “blackfarmers” e o processo de elevar os ex-escravos à condição de cida-dãos implicou em investi-los da identidade de “proprietários”.No Brasil apenas “alforriados”, ou beneficiários de doações pordisposição testamentária e “filhos naturais” de senhores de escra-vos tiveram a possibilidade de se converterem em “proprietários”,ou seja, foi um processo individualizado e não referido a umacamada social propriamente dita. Com o Art. 68 a titulação defi-nitiva das terras aparece condicionada à expressão comunitária.

3. CF. edição da Constituição do Estado do Amazonas, organi-zada por Celso Cavalcanti e Ronnie Stone. Manaus.Valer Edito-ra, 2a. edição, 2001 pp. 197, 198.

4. Nos conflitos que envolvem as barragens detectamos tambéma expressão “beiradeiros” em sinonímia com ribeirinhos. Paramaiores esclarecimentos consulte-se A. oswaldo sevá filho

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(org.) Tenotã-mõ-Alertas sobre as conseqüências dos proje-tos hidrelétricos no Rio Xingu.São Paulo. irn, 2005 pp. 29-54 .

5. Neste sentido é que se pode asseverar que os limites de suaabrangência transcendem o Estado do Amazonas e se estende-riam das barrancas do Rio Acre aos campos e “tesos” da Ilha deMarajó, onde os pescadores enfrentam uma grande exploraçãopecuária, extensiva e monopolizadora dos recursos hídricospelo cercamento arbitrário de rios, igarapés e bordas dos lagos.

6. A amêndoa do ouricuri e o óleo vegetal são comercializadosnas feiras nordestinas.Na Bahia o cefet (Centro Federal deEducação Tecnológica) está iniciando um programa de valoriza-ção de plantas do semi-árido, focalizando o potencial nutritivodo licuri, com projeto de preparo de alimentos para uso princi-palmente em merendas escolares.O licuri faz parte das oleagino-sas e estão sendo feitos estudos, tal como no caso do babaçu,para incluí-lo na produção de biodiesel. O Município de Anto-nio Gonçalves é o terceiro maior produtor do licuri, envolven-do os povoados de São João, Caldeirão, Atravessado, Conceição,Macacos, Santana, Jibóia, Barra, Bananeira e Alto da Cajazeira.Em 2004 a produção comercializada de licuri no Municípioalcançou 240 mil quilos.

7. A Constituição do Estado do Acre, de 3 de outubro de 1989não registra qualquer artigo referente aos “seringueiros”, mesmoque tenha sido promulgada num período histórico em que afigura política do “seringueiro” sintetizava a vida política daque-la unidade da federação. Os seringueiros, enquanto contribuindocomo “soldados da borracha”, durante a ii Guerra Mundial,aparecem contemplados, entretanto, pelo Art. 54 do adct de1988. Os povos indígenas, que não foram objeto de qualquermenção nas Constituições do Acre de 01 março de 1963 e de 26

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de abril de 1971, ganharam força e expressão política a partirda Constituição acreana de 1989 e de suas respectivas emendastal como a n. 23 de 2001. A mobilização dos seringueiros eraautoevidente e, mesmo com a intensidade dos conflitos de terras,talvez tenha prescindido de disposições jurídicas ao contrário dospovos indígenas.O documento final do Zoneamento ecológico-econômico do Acre, publicado em 2000, ressalta “seringueiros,ribeirinhos e colonos”, enfatizando que 11% do Estado do Acresão ocupados por resex e Projetos de Assentamentos Agroex-trativistas.

8. Entendo que o processo social de afirmação étnica, referido aoschamados quilombolas, não se desencadeia necessariamente apartir da Constituição de 1988 uma vez que ela própria é resul-tante de intensas mobilizações, acirrados conflitos e lutas sociaisque impuseram as denominadas “terras de preto”, “mocambos”,“lugar de preto” e outras designações que consolidaram decerto modo as diferentes modalidades de territorialização dascomunidades remanescentes de quilombos. Neste sentido a Cons-tituição consiste mais no resultado de um processo de conquistasde direitos e é sob este prisma que se pode asseverar que a Cons-tituição de 1988 estabelece uma clivagem na história dos movi-mentos sociais, sobretudo daqueles baseados em fatores étnicos.

9. Para se observar a atualidade destes problemas criados a partirda Lei de Terras de 1850 destaque-se que uma das representa-ções ao i Encontro Nacional das Comunidades Tradicionais refe-riu-se aos chamados “pomeranos” ou “pomerânios”, queforam recrutados mediante o risco de germanização como traba-lhadores das plantações cafeeiras e chegaram ao Brasil em1858. Foram mantidos como força de trabalho imobilizadadurante décadas. Seus descendentes estão estimados em 150 milpessoas, sendo 50 mil no interior do Espírito Santo e mais parti-

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cularmente no Município de Pancas onde se encontram ameaça-dos de despejo dos 17 mil hectares que ocupam e que sãopretendidos para criação de uma unidade de proteçãointegral.Foram apresentados como “pomeranos remanescentes”,de confissão luterana, cuja região de origem foi extinta. Estão seorganizando nos últimos anos, a partir da ameaça de expulsãodas terras que tradicionalmente ocupam.Para maiores dadosconsulte-se o periódico Pommerblad-Informativo das comuni-dades Germânicas no Brasil, que foi fundado em 17 de marçode 1998, em Vila Pavão (es). E ainda: port, Ido – Paróquia Evan-gélica de São Bento. Gráfica Ita Ltda.Vitória. 1980. Esta últimareferencia bibliográfica busca estabelecer uma história de resis-tência a partir das famílias “pioneiras” agrupadas historicamen-te segundo uma expressão religiosa.

10. A doutrina do sufficiently high price é tomada do sistema decolonização sistemática de Wakefield, cuja influência na elabora-ção da Lei de Terras de 1850 é assinalada por diferentes juristas.Para um aprofundamento consulte-se: Cirne Lima, R. Pequenahistória territorial do Brasil : sesmarias e terras devolutas. Goiâ-nia. Ed. ufg, 2002 pp. 82-100, e também o Parecer “Sesmariase Terras Devolutas”, apresentado ao General Ptolomeu de AssisBrasil, Interventor Federal no Estado de Santa Catarina, em 1944.

11. Relativizando esta interpretação pode-se afirmar que a Lei deTerras de 1850, quando porventura manteve recursos abertos,favoreceu os grandes pecuaristas reconhecendo o uso comum doscampos naturais. O Art. 5, § 4 dispõe o seguinte, neste sentido:“Os campos de uso comum dos moradores de uma ou mais fregue-sias, municípios ou comarcas, serão conservados em toda a exten-são de suas divisas e continuarão a prestar o mesmo uso, conformea prática atual, enquanto por lei não se dispuser o contrário.”Gevaerd Filho considera que este artigo introduziu no direito brasi-

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leiro a figura do “compáscuo” e se refere às terras públicas emrazão das disposições que distinguem o “uso” da “ocupação”.Para tanto menciona o Aviso de 5 de julho de 1855, que rezava oseguinte: “os campos de uso comum a que se refere o Art. 5, § 4,acima transcrito, poderiam apenas ser usados e não ocupados porpessoas que nele quiserem se estabelecer.” Para um aprofunda-mento consulte-se j.l. gevaerd filho – “Perfil histórico-jurí-dico dos faxinais ou compáscuos- análise de uma forma comunalde exploração da terra”. Revista de Direito Agrário e MeioAmbiente. Curitiba. Instituto de terras, Cartografia e Florestas-itcf. Agosto de 1986 pp. 44-69. Consulte-se também campos,nazareno j. de – Terras de uso comum no Brasil – Um estudode suas diferentes formas. Tese de doutorado apresentada aoCurso de pg em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas da usp em fevereiro de 2000. 258 pp.12. Está-se diante de conflitos que contrapõem os agentes sociaisdestes domínios de uso comum às “novas estratégias empresa-riais” de uma poderosa coalizão de interesses, que articulaempreendimentos diversos: usinas de ferro-gusa, carvoarias,siderúrgicas, indústrias de papel e celulose, refinadoras de soja,frigoríficos e curtumes, mineradoras, madeireiras, empresas deenergia elétrica e laboratórios farmacêuticos e de biotecnologia.

13. Consoante o Art. 18 da Lei N. 9.985, de 18 de julho de 2000:“A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populaçõesextrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrati-vismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência ena criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivosbásicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações,e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade.”De acordo com o Art. 23: “A posse e o uso destas áreas ocupa-das pelas populações tradicionais nas Reserva Extrativistas e

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Reservas de Desenvolvimento Sustentável serão regulados porcontrato (...)”.

14. Esta breve retrospectiva crítica da aplicação do Art. 68 doadct foi divulgada pela Secretaria de Comunicação de Gover-no e Gestão Estratégica da Presidência da República, através doEm Questão de 20 de novembro de 2003, Dia Nacional da Cons-ciência Negra. O reconhecimento público do número inexpres-sivo de titulações realizadas funcionou como justificativa parauma ação governamental específica, posto que nesta mesma datao Presidente Lula assinou o Decreto n. 4887, regulamentando oprocedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentesdas comunidades de quilombos. Este ato do poder executivo teriacorrespondido, portanto, à necessidade de uma intervençãogovernamental mais acelerada e ágil, condizente com a gravida-de dos conflitos envolvendo as comunidades remanescentes dequilombos.

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A ABRANGÊNCIA DO SIGNIFICADO

DE “TERRAS TRADICIONALMENTE

OCUPADAS” E AS DIFICULDADES

DE EFETIVAÇÃO

D e 1988 para cá o conceito de “terras tradicionalmenteocupadas”, vitorioso nos embates da Constituinte, tem

ampliado seu significado, coadunando-o com os aspectossituacionais, que caracterizam hoje o advento de identida-des coletivas, e tornou-se um preceito jurídico marcantepara a legitimação de territorialidades específicas e etnica-mente construídas.

Em junho de 2002, evidenciando a ampliação do signifi-cado de “terras tradicionalmente ocupadas” e reafirmando,o que os movimentos sociais desde 1988 tem perpetrado,o Brasil ratificou, através do Decreto Legislativo n. 143,assinado pelo Presidente do Senado Federal, a Convenção169 da oit, de junho de 1989. Esta Convenção reconhececomo critério fundamental os elementos de autoidentifica-ção, reforçando, em certa medida, a lógica dos movimentossociais. Nos termos do Art. 2º tem-se o seguinte:

A consciência de sua identidade indígena ou tribal deve-rá tida como critério fundamental para determinar osgrupos aos quais se aplicam as disposições destaConvenção.

Para além disto, o Art. 14 assevera o seguinte em termos dedominialidade:

48terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”,faxinais e fundos de pastos: terras t radic ionalmente ocupadasAlfredo Wagner

Berno de Almeida

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Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direi-tos de propriedade e de posse sobre as terras que tradi-cionalmente ocupam.

Além disto o Art. 16 aduz que:

sempre que for possível, esses povos deverão ter odireito de voltar a suas terras tradicionais assim quedeixarem de existir as causas que motivaram seu trans-lado e reassentamento.

Este direito de retorno se estende sobre um sem número desituações distribuídas por todo país, que resultaram emdeslocamentos compulsórios de populações inteiras de suasterras por projetos agropecuários, projetos de plantio deflorestas homogêneas (pinus, eucalipto)1, projetos de mine-ração, projetos de construção de hidrelétricas, com grandesbarragens, e bases militares.

O texto da Convenção, além de basear-se na autodefi-nição dos agentes sociais, reconhece explicitamente a usur-pação de terras desde o domínio colonial, bem comoreconhece casos de expulsão e deslocamento compulsório eamplia o espectro dos agentes sociais envolvidos, falandoexplicitamente na categoria “povos” não exatamente emsinonímia com “populações tradicionais”. Para um resumodas ácidas polemicas entre os favoráveis à adoção do termo“povos” e aqueles que defendiam o uso de “populações” valereproduzir a versão da própria oit em sua publicação oficial2:

Durante três anos, a oit trabalhou para a adoção daConvenção, discutindo se na nova Convenção mudariapor “povos” o termo “população” utilizado na Conven-ção 107. A decisão de usar o termo “povos” resultou

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de longas discussões e consultas dentro e fora dasreuniões. Acordou-se finalmente que o termo corretoseria o de “povos” já que este reconhece a existência desociedades organizadas com identidade própria, em vezde simples agrupamentos de indivíduos que compartemalgumas características raciais ou culturais. Depois demuita discussão, ficou também decidido que: “O usodo termo “povos” nesta Convenção não deverá serinterpretado como tendo qualquer implicação com oque se refira a direitos que possam ser atribuídos ao ditotermo no direito internacional” (Parágrafo 3 do Artigo1). A introdução desse parágrafo atendia, em parte, àexpressa preocupação de vários governos de que o usocomum do termo “povos” implicasse, nesse contexto,o reconhecimento, no âmbito do direito internacional,de que povos indígenas e tribais possam separar-se dospaises em que habitam.Concluiu-se que não competiaà oit decidir sobre como esse termo devia ser interpre-tado no direito internacional.” (tomei et alli: 1999:29).

No caso da formação histórica brasileira pode-se dizer quetal dispositivo abre possibilidades para reconhecimento demúltiplas situações sociais que abarcam uma diversidade deagrupamentos tornados invisíveis pelas pretensões oficiais dehomogeneização jurídica da categoria “povo” desde o perío-do colonial. A pluralidade implícita na noção de “povos”publiciza diferenças. Ao mesmo tempo chama a atenção paraterritorialidades específicas, que tem existência efetiva dentrodo significado de território nacional, apontando para agru-pamentos constituídos no momento atual ou que histori-camente se contrapuseram ao modelo agrário exportador,apoiado no monopólio da terra, no trabalho escravo e emoutras formas de imobilização da força de trabalho.

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Este texto da Convenção abre, assim, lugar para umareinterpretação jurídico-formal. Os desdobramentos sociaisdos quilombos, dos movimentos messiânicos e das formasde banditismo social, que caracterizaram a resistência aoimpério das plantations na sociedade colonial, ganhamforça neste contexto, do mesmo modo que as formas asso-ciativas e de ocupação que emergiram no seio das grandespropriedades monocultoras a partir da sua desagregaçãocom as crises das economias algodoeira, açucareira, cafeeirae ervateira. Na Amazônia ganharam vulto com o declínioda empresa seringalista e dos “donos” de castanhais e baba-çuais que monopolizavam a economia extrativista e utili-zavam mecanismos de imobilização da força de trabalho.

Estas novas formas de ocupação e uso comum dosrecursos naturais emergiram pelo conflito, delimitando ter-ritorialidades específicas, e não tiveram até 1988 qualquerreconhecimento legal. As territorialidades específicas podemser entendidas aqui como resultantes dos processos de terri-torialização, apresentando delimitações mais definitivas oucontingenciais, dependendo da correlação de força em cadasituação social de antagonismo. Distinguem-se neste sentidotanto da noção de “terra”, estrito senso, quanto daquela de“território”, conforme já foi sublinhado, e sua emergênciaatém-se a expressões que manifestam elementos identitáriosou correspondentes à sua forma específica de territorializa-ção. Para efeito de ilustração pode-se mencionar resumida-mente as chamadas “terras de preto”, “terras de índio” (quenão se enquadram na classificação de terras indígenas,porquanto não há tutela sobre aqueles que as ocupam perma-nentemente), “terras de santo” (que emergiram com a expul-são dos jesuítas e com a desagregação das fazendas de outrasordens religiosas) e congêneres, que variam segundo circuns-tancias específicas, a saber: “terras de caboclos”, “terras da

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santa”, “terras de santíssima” (que surgiram a partir dadesestruturação de irmandades religiosas), “terras de herdei-ros” (terras sem formal de partilha que são mantidas sob usocomum) e “terras de ausentes” (almeida, 1989: 183-184).

A Constituição Federal de 1988 e a Convenção 169da oit logram contemplar estas distintas situações sociaisreferidas às regiões de colonização antiga, assim comoaquelas que caracterizam regiões de ocupação recente, aorecolocar no tempo presente o sentido de “terras tradicio-nalmente ocupadas”, libertando-o da “imemorialidade”,da preocupação com “origem”, do passado e de categoriascorrelatas.

Numa tentativa de síntese montei um quadro demons-trativo amplo, contendo sete colunas e suas respectivassubdivisões. Nele, registro primeiramente as categorias deautodefinição, que enquanto identidades coletivas se obje-tivaram em movimentos sociais. Sob este prisma as“comunidades tradicionais” passam a ter uma expressãopolítico-organizativa com critérios de representatividadepróprios. A seguir, evidenciando o grau de reconhecimen-to formal que lograram alcançar, enumero os instrumentosjurídico-formais que lhes são correspondentes, bem comoas agencias governamentais a quem compete efetivar asmedidas decorrentes. Finalmente registro, em duas colunas,os dados mais lacunosos, isto é, as estimativas que concer-nem à extensão em hectares das territorialidades em pautae às suas respectivas informações demográficas. Os dadosquantitativos referentes às áreas totais e à população dereferência ainda são fragmentários e incompletos, conten-do imprecisões várias. A construção de uma série estatísti-ca mais definitiva certamente depende de umrecenseamento criterioso. Mesmo que mencionadosformalmente em documentos oficiais não possuem a fide-

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dignidade necessária. No caso das terras indígenas consis-tem no somatório das áreas mencionadas nos processosadministrativos de delimitação e/ou demarcação, dado apúblico amplo. No caso das comunidades remanescentesde quilombos tampouco existe um levantamento criterio-so e tudo se derrama em estimativas, sempre crescentes,quer de órgãos oficiais, quer dos movimentos quilombo-las. Em se tratando das áreas extrativistas existem os levan-tamentos geográficos e os mapas florestais com registro deincidência de manchas que agrupam espécies determinadas,respondendo às indagações de onde se localizam os casta-nhais, os seringais, os babaçuais, os arumanzais, os ouri-cuzeiros, os açaizais etc. Existem também documentosoficiais, como os decretos, que registram as áreas de reser-vas extrativistas e seus memoriais descritivos com os corres-pondentes em hectares. Arrolei-os todos.

Quanto aos denominados “fundos de pasto” e “faxi-nais” não há sequer estimativas referentes ao seu númeroou às extensões em jogo. Coloquei-os, além disto, na colu-na das categorias de autodefinição, embora não se refiramexplicitamente aos agentes sociais, mas às formas de uso daterra. Os agentes sociais, que começam a ser chamados de“faxinalenses” e de “moradores de comunidades de fundode pasto”, se agrupam em torno destas formas e são elasque emprestam a denominação de suas organizações. Nestaordem foi que considerei que elas poderiam ser aproxima-das das categorias definitórias. As informações a elas refe-ridas provem de participantes de movimentos sociais, deentidades confessionais ou de estudiosos. As chamadas“terras soltas” ou “terras abertas”, embora verificadas emtrabalhos de pesquisa no sertão central do Ceará e no sertãopernambucano, não foram incluídas porquanto não conse-gui verificar com maior discernimento quem são os agen-

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tes sociais a elas referidos e quais as formas organizativasque lhes seriam correspondentes.

Com os chamados “ribeirinhos” e pescadores3 tem-seque os lagos, rios e quaisquer cursos d’água de seu uso edomínio, seriam bens da União, correspondendo aoschamados “terrenos de Marinha” e seus acrescidos 4. Asdistinções entre eles aparecem através das diferentes orga-nizações voluntárias, que os representam, não impor-tando que tenham ocupações econômicas aproximáveis.O caráter voluntário destas organizações de base econô-mica heterogenea distingue-as das denominadas “colôniasde pescadores” registradas no ibama e dos sindicatos depescadores artesanais, mesmo quando incidem sobre ummesmo município ou bacia hidrográfica.

Por dificuldades teóricas, de relacionar povos quemantém sua identidade sem estarem ligados permanente-mente a um determinado território, como naquelas situa-ções sociais aqui focalizadas, não incluí no quadro os“ciganos”, que são representados notadamente pela Asso-ciação de Preservação da Cultura Cigana (apreci), quehá poucos anos começou a se organizar no Paraná e já temsede em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Por seremconsiderados “nômades” e desterritorializados5, além demarcados por estigmas desde o período colonial, os “ciga-nos” são usualmente apresentados como desvinculados deuma área fisicamente delimitada6. Na i Conferencia Nacio-nal de Promoção da Igualdade Racial, realizada em Brasíliana primeira semana de julho de 2005, os delegados “ciga-nos”7 apresentaram proposta de criação de centros para arecepção de “ciganos” em cidades com mais de 200 milhabitantes. Afirmaram também, durante o i EncontroNacional de Comunidades Tradicionais, realizado emLuziania (go), de 17 a 19 de agosto de 2005, estar discu-

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tindo a formalização do “aproveitamento provisório deterras”, principalmente para os grupos de criadores, quesão nômades e permanecem acampados em cada área porcerca de 90 a 120 dias. Trata-se de um processo peculiar deterritorialização, que não envolve posse ou propriedade deterras. Os acampamentos “ciganos” são voluntária epermanentemente mudados de lugar, consistindo nummodo de viver e de ser. Distinguem-se, neste sentido, daque-les dos chamados “sem terra” ou daqueles outros queabrigam os denominados “refugiados”, que é um termodefinido pelo acnur (Alto Comissariado das NaçõesUnidas para os refugiados)8, e populações compulsoriamen-te deslocadas. O uso de terras e pastos comuns que os“ciganos”, tal como outros povos tradicionais, não ocupamde modo permanente, mas aos quais tem acesso eventualpara suas atividades básicas foi reconhecido pelo Art. 14 daConvenção 169 como um “direito adicional e não comouma alternativa do direito de propriedade” (tomei eswepston, 1999:46). Para efeito de exemplo pode-se citaruma situação localizada de institucionalização de taisterras: em fins de 2004 a Prefeitura de Curitiba cedeu emregime de comodato uma área de 30.600 metros quadra-dos, próxima à Cidade Industrial no local denominado“Fazendinha”, para a organização de um acampamentotemporário para os “ciganos” que passam pela cidade. Emtermos jurídicos a área é cedida por empréstimo gratuito epor tempo indeterminado ou não (Vide anexo).

No caso daqueles que se autodefinem como “atingi-dos” destaquei povos e grupos que, a partir da implanta-ção de grandes projetos oficiais, seja de construção dehidrelétricas, seja de montagem de bases militares, perde-ram ou se encontram em conflito, ameaçados de perdersuas territorialidades de referencia. Os memoriais descriti-

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vos dos decretos de desapropriação por utilidade públicafuncionaram como fonte, bem como aqueles arrolados emperícias antropológicas e os dados divulgados pelos repre-sentantes dos movimentos sociais respectivos.

O caráter fragmentário das informações quantitativase os riscos de dupla contagem não autorizam uma opera-ção de soma capaz de propiciar com inteireza e exatidãouma expressão demográfica ou um determinado total emhectares. Embora ao final deste texto tenha ousado propor,para efeito de contraste, uma reflexão mais geral face àestrutura agrária, cabe sublinhar que os trabalhos depesquisas localizados, correspondentes a cada uma dassituações sociais focalizadas, devem ser mais aprofundadosantes de permitir generalizações. Os trabalhos etnográfi-cos e as técnicas de observação direta poderão permitir umconhecimento concreto destas mencionadas situações eautorizar posteriores sínteses.

Para apoiar as informações levantadas montei notas derodapé, buscando complementá-las e proceder, quandopossível, a esclarecimentos com base notadamente em“cartilhas”, “cadernos de formação”, panfletos, fascículosinformativos e “boletins” divulgados periodicamente pelospróprios movimentos sociais. Os levantamentos bibliográ-ficos assinalados buscam superar, em certa medida, a preca-riedade dos dados disponíveis. As lacunas censitáriasevidenciam, cada uma a seu modo, o quanto a preocupa-ção com estas chamadas “comunidades tradicionais” aindaestá ausente das formulações estratégicas governamentaise quão complexas são as questões a elas relativas.

A leitura do quadro demonstrativo, mediante este arra-zoado de adendos e ressalvas, torna-se em certa medidaautoevidente, mas de todo modo limitada, porquantodistante de abranger o problema de maneira completa.

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PovosIndígenas

Quilombolas

coiab(CoordenaçãoIndígena daAmazôniaBrasileira)

apoinme(Articulaçãodos Povos

Indígenas doNordeste,

M.Gerais eE.Santo)

uni(União das

NaçõesIndígenas)

conaq(CoordenaçãoNacional deArticulação

dasComunidadesNegras RuraisQuilombolas)

Constituição da RepúblicaFederativa doBrasil (cf)

cf

Ato dasDisposições

ConstitucionaisTransitórias

(adct)

Decretos

05/10/88

05/10/8820/11/0324/05/04

funai

fcpmda

incra

“Políticaindigenista”

“PolíticaNacional dosQuilombos”

110 milhões

30 milhões

734.127indígenas

(1)

2 milhões depessoas

(2)

“Art. 231 - São reconhecidos aos índiossua organização social, costumes, lín-guas, crenças e tradições, e os direitosoriginários sobre as terras que tradicio-nalmente ocupam, competindo à Uniãodemarcá-las, proteger e fazer respeitartodos os seus bens.”

§ 1º São terras tradicionalmente ocupa-das pelos índios as por eles habitadas emcaráter permanente, as utilizadas parasuas atividades produtivas, as impres-cindíveis à preservação dos recursosambientais necessários a seu bem-estare as necessárias a sua reprodução físicae cultural, segundo seus usos, costumese tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupa-das pelos índios destinam-se a sua possepermanente, cabendo-lhes o usufrutoexclusivo das riquezas do solo, dos riose dos lagos nelas existentes.

Arts. 215 e 216 - reconhecem as áreasocupadas por comunidades remanes-centes de quilombos como parte do pa-trimônio cultural do País.

Art. 68 – “Aos remanescentes das co-munidades de quilombos que estejamocupando suas terras é reconhecida apropriedade definitiva, devendo o Esta-do emitir-lhes os títulos respectivos.”

Decreto 4.887 – Regulamenta procedi-mentos titulação Instrução Normativa n.° 16-Incra

Ato Data Texto

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Seringueiros

Seringueirose

Castanheiros

cns(Conselho

Nacional deSeringueiros)

cns

Decreto

Lei

“Lei ChicoMendes”

(Acre)

Decretos

30/01/90

8/07/00

13/01/99

05/07/99

1990

1997

1998

2004

mma (3)ibamacnpt

sepro-ac

mmaibamacnpt

Ambiental eExtrativista

prodex

Ambiental eAgrária

17 milhões(4)

resex5.058.884

163.000extrativistas

sendo que emresex33.300

Dec. n.° 98.897 regulamenta resex uti-lizada por “populações extrativistas”.

Lei n.° 9.985 – Regulamenta o art.225,& 1°., incisos i, ii, iii e vii da cf,institui o Sistema Nacional de Unidadesde Conservação da Natureza.

Lei Est. n.º 1277

Dec. Est. n.º 868

Reservas Extrativistas de Seringa e Cas-tanha – Decreto n.º 98.863, de 23 de janeirode 1990 (Cria a resex do Alto Juruá).Área aproximada 506.186 ha. Popula-ção estimada 3.600– Decreto n.º 99.144, de 12 de março de1990 (Cria a resex Chico Mendes).Área aproximada 970.570 ha. Popula-ção estimada 7.500– Decreto n.º 99.145, de 12 de marçode 1990 (Cria a resex do Rio Cajari).Área aproximada 481.650 ha. Popula-ção estimada 3.800–Decreto n.º 99.166, de 13 de março de1990 (Cria a resex do Rio OuroPreto). Área aproximada 204.583 ha.População estimada 700– Decreto s/n, de 04 de março de 1997(Cria resex do Médio Juruá). Área de253.226 ha. População estimada 700– Decreto s/n, de 06 de novembro de1998 (Cria a resex Tapajós-Arapiuns).Área de 647.610 ha. População estima-da 16.000– Decreto de 08 de novembro de 2004.(Cria a resex Verde para a Sempre.Área de 1.258.717,2009 ha– Decreto de 08 de novembro de 2004.(Cria a resex Riozinho do Anfrísio.Área de 736.340, 9920 ha

Ato Data Texto

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Categoria Movimento Legis lação Agência Oficial Política Estimativa de População de Social Competente Governamental Área (Hectares) Referência

Quebradeiras-de-côcobabaçu

miqcb(MovimentoInterestadual

dasQuebradeiras

de CôcoBabaçu)

ConstituiçãoEstadual doMaranhão

LeisMunicipais

Decretos

16/05/90

1997-2003

1992

mmaibamacnpt mda

Ambiental eAgrária

18,5 milhões(5)

resex36.322

400.000extrativistas,

sendo queem resex

3.350

Art. 196 – “Os babaçuais serão utiliza-dos na forma da lei, dentro de condi-ções, que assegurem a sua preservaçãonatural e do meio ambiente, e comofonte de renda do trabalhador rural.“Parágrafo único – Nas terras públicas edevolutas do Estado assegurar-se-á a ex-ploração dos babaçuais em regime deeconomia familiar e comunitária.”

Leis Municipais:– n.º 05/97 de Lago do Junco (ma).– n.º 32/99 de Lago dos Rodrigues (ma).– n.º 255/ dez. 99 de Esperantinópolis(ma).– n.º 319 /2001 de São Luís Gonzaga(ma).– n.º 49/ out. 2003 de Praia Norte (to).– n.º 1.084/2003 de Imperatriz (ma).– n.º 306/ out. 2003 de Axixá (to).– pl n.º 466/2003 de Lima Campos (ma).– pl n.º ..... de Capinzal do Norte ( ma).– pl n.º 58 de 11/08/2003 de Buriti (to).– pl s/n São Domingos do Araguaia (pa).

Reservas Extrativistas do Babaçu– Decreto n.º 532, de 20 de maio de1992 (Cria a resex Mata Grande). Área aproximada 10.450 ha– Decreto n.º 534, de 20 de maio de1992 (Cria a resex do Ciriaco). Área aproximada 7.050 ha.– Decreto n.º 535, de 20 de maio de1992 (Cria a resex do Extremo Norte).Área aprox. 9.280 ha.– Decreto n.º 536, de 20 de maio de1992 (Cria a resex Quilombo do Fre-chal). Área aproximada 9.542 ha.

Ato Data Texto

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Categoria Movimento Legis lação Agência Oficial Política Estimativa de População de Social Competente Governamental Área (Hectares) Referência

Pescadores

Ribeirinhos

Atingidospor

barragens

monape

Movimentodos

Ribeirinhos doAmazonas(mora)

(6)

Movimento dePreservação de

Lagos

mab

Decretos

ConstituiçãoEstadual

doAmazonas

Decretos

1992

1997

1989

1977-92

mma

mmaibma

mmemda

Ambiental

AmbientalProVárzea(ppg-7)

Energética

resex1.444

em resex600

“mais de 1 milhão de

pessoas preju-dicadas e

expulsas denossas terras

pela construção de usinas

hidrelétricas” (7)

– Decreto n.° 523, de 20 de março de1992. Cria resex de Pirajubaé). Áreade 1.444 ha. População estimada 600pessoas.

– Decreto s/n, de 3 de janeiro de 1997.Cria a resex de Arraial do Cabo). s/i

“Art. 250 – O Estado, ..., acompanharáos processos de delimitação de territó-rios indígenas, colaborando para a suaefetivação e agilização, atuando preven-tivamente à ocorrência de contendas econflitos com o propósito de resguardar,também, os direitos e meios de sobrevi-vência das populações interioranas,atingidas em tais situações, que sejamcomprovadamente desassistidas.”

“Art. 251 – v – § 2º – (...) viabilizar ousufruto dos direitos de assistência,saúde e previdência, em especial o pre-visto no Art. 203, v, da Constituição daRepública, pelos integrantes de outrascategorias extrativistas, pela populaçãoribeirinha e interiorana em geral.”

– Decretos de desapropriação por utili-dade pública para implantação de hidre-létricas desde final dos anos 70:– uhe de Sobradinho e uhe de Itapa-rica no Rio São Francisco, – uhe de Itaipu na Bacia do Rio Paraná, – uhe de Machadinho e Ita na Bacia doRio Urugua,– uhe de Tucuruí no Rio Tocantins,etc.

Ato Data Texto

60

Page 61: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

Categoria Movimento Legis lação Agência Oficial Política Estimativa de População de Social Competente Governamental Área (Hectares) Referência

Atingidos p/Base de

Alcântara

Fundos depasto

Faxinal

mabe

ArticulaçãoEstadual deFundos eFechos de

Pasto Baianos

Central deFundos eFechos dePasto de

Senhor doBonfim (ba)

Central deFundos dePasto de

Oliveira dosBrejinhos (ba)

–(8)

Decretos

ConstituiçãoEstadual da

Bahia

DecretoEstadual(Paraná)

Lei Estadualn.° 15673

Setembro1980

Agosto1991

1989

14/08/97

13/11/07

mdmdaaebmct

mda

mda

itcf

Aero-espacial

Agrária

Agrária

85 mil

3.000famílias

20.000famílias

mais de 10.000famílias

– Dec. n.º 7.820 declara de utilidade pú-blica para fins de desapropriação área 52mil ha. para instalação do Centro deLançamento de Alcântara.

– Dec. presidencial aumentando áreapara 62 mil ha.

Art. 178 – “Sempre que o Estado consi-derar conveniente poderá utilizar-se dodireito real de concessão de uso, dispon-do sobre a distribuição da gleba, o prazode concessão e outras condições.

§ único – No caso de uso e cultivo daterra sob forma comunitária o Estado, seconsiderar conveniente, poderá concedero direito real de concessão de uso a asso-ciação legitimamente constituída, inte-grada por seus reais ocupantes, agravadade cláusula de inalienabilidade, especial-mente nas áreas denominadas de fundode pasto e nas ilhas de propriedade doEstado, sendo vedada a esta a transfe-rência de domínio.”

– Regulamento da Lei de Terras do Esta-do da Bahia, Interba. Art. 20No § 1, do art. 1º diz: “entende-se por sis-tema Faxinal: o sistema de produção cam-ponês tradicional, característico da regiãoCentro-sul do Paraná, que tem como traçomarcante o uso coletivo da terra para pro-dução animal e a conservação ambiental.Fundamenta-se na integração de 3 com-ponentes: a) produção animal coletiva, àsolta, através dos criadouros comunitá-rios; b) produção agrícola – policulturaalimenta de subsistência para consumo ecomercialização; c) extrativismo florestalde baixo impacto – manejo de erva-mate,araucária e outras espécies nativas.”O Estado do Paraná reconhece os Faxi-nais e sua territorialidade.

Ato Data Texto

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Page 62: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

notas ao quadro

(1) No Brasil há cerca de 220 etnias e 180 línguas. As terras indígenas

correspondem a 12,38 % das terras do país. Os indígenas totalizam

734.127 pessoas, cuja distribuição por região é a seguinte: 29% na

Região Norte, 23% no Nordeste, 22% na Região Sudeste, 14% no

Centro-Oeste e 12% na Região Sul. cf. ibge, Censo Demográfico de

2000.

(2) “Oficialmente, o Brasil tem mapeado 743 comunidades remanescen-

tes de quilombos. Essas comunidades ocupam cerca de 30 milhões de

hectares, com uma população estimada em 2 milhões de pessoas. Em

15 anos apenas 71 áreas foram tituladas.” (Em Questão, 20/11/2003).

Em 2004, pela primeira vez, o Censo Escolar do Ministério da

Educação (mec) pesquisou a situação educacional dos remanescentes

de quilombos. Os primeiros resultados assinalam que atualmente, são

49.722 alunos matriculados em 364 escolas, sendo que 62% das ma-

trículas estão concentradas na Região Nordeste. O Estado do Mara-

nhão é o que possui maior número de alunos quilombolas, mais de 10

mil que frequentam 99 estabelecimentos.(cf. Irene Lobo – Agencia

Brasil, 06/10/2004).

(3) Não foram catalogadas as Leis Ambientais Municipais concernentes

às “Políticas Municipais do Meio Ambiente” que disciplinam as ações

dos Conselhos Municipais do Meio Ambiente e dispõem sobre as de-

mandas de uso os recursos naturais dos diferentes grupos sociais.

Um exemplo seriam as leis n.º 16.885 e 16.886 de 22 de abril

referidas ao Município de Marabá (pa). Consulte-se também as refe-

rências aos Municípios de Altamira, Santarém, Paragominas, Uruará,

Porto de Moz e Moju (pa) e Mâncio Lima e Xapuri (ac) in:

Toni, F. e Kaimowitz, D. (orgs.) Municípios e Gestão Florestal na

Amazônia. Natal: A.S. Editores, 2003.

(4) Os castanhais na América do Sul abrangem uma extensão de 20

milhões de hectares. A Zona Castanheira no Peru, na parte oriental do

departamento de Madre de Dios, é estimada em 1,8 milhões de hec-

tares. A região castanheira da Bolívia localiza-se em Pando e é estima-

da em 1,2 milhões de hectares. No Brasil os maiores castanhais estão

entre os rios Tocantins e Xingu, assim como em Santarém, as margens

do rio Tapajós, seguindo-se as zonas dos rios Trombetas e Curuá. No

estado do Amazonas a maior incidência é no Solimões, vindo a seguir

a região do rio Madeira. No estado do Acre as maiores concentrações

de castanheiras estão na Zona dos rios Xapuri e Acre. No Amapá a

maior incidência é no rio Jarí. Estas áreas perfazem uma extensão es-

timada em 17 milhões de hectares, superpondo-se muitas vezes às

áreas de incidência de seringais. cf. Bases para uma Política Nacio-

nal da Castanha. Belém, 1967.

cf. Borges, Pedro. Do Valor Alimentar da Castanha-do-Pará.

Rio de Janeiro, sai-Ministério da Agricultura 1967, págs. 12 e 13; e

cf. Clay, J.W. Brasil nuts. The use of a keystone species for con-

servation and development. En: Harvesting wild species. C. Freese,

Ed. The John Hopkins University Press; 1997. pp. 246-282.

Para um aprofundamento das articulações entre extrativistas de

diferentes paises amazônicos consulte-se: Porro, Noemi et alli (orgs.)-

Povos & Pueblos-Lidando com a globalização-As lutas do povo ex-

trativista pela vida nas florestas da Bolívia, Brasil e Peru. São Luis,

miqcb/Herencia/Candela/str de Brasiléia, 2004, pp. 34.

(5) Os babaçuais associam-se a outros tipos de vegetação, sendo pró-

prios de baixadas quentes e úmidas localizadas nos Estados do Mara-

nhão, Piauí, Tocantins, Pará, Goiás e Mato Grosso. Nas referidas uni-

dades da federação ocupam em conjunto uma área correspondente a

cerca de 18,5 milhões de hectares, conforme Ministério da Indústria e

Comércio-sit, Mapeamento e levantamento de potencial das ocorrên-

cias de babaçuais. Brasília: mic/sit, 1982. As principais formações en-

contram-se na região de abrangência do Programa Grande Carajás,

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Page 63: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

notadamente, no Maranhão cuja área delimitada totaliza 10,3

milhões de hectares. No Tocantins e no Pará registram-se respectiva-

mente 1.442.800 hectares e cerca de 400.000 hectares. No Estado do

Piauí às áreas de ocorrência de babaçu correspondem 1.977.600 ha.

Considerando-se apenas a denominada região do Programa Grande

Carajás, tem-se aproximadamente 11,9 milhões de hectares de ocor-

rência de babaçuais, ou seja, 63,4% do total nacional das áreas de

ocorrência. Correspondem a 13,2% da região de abrangência do

Programa Grande Carajás. Sobressai o Estado do Maranhão, com

mais de 71% da área global dos babaçuais. CF. Almeida, A. W. B. de.

As Quebradeiras de Côco Babaçu: Identidade e Mobilização. São

Luís: miqcb – Caderno de Formação n.º 1, 1995, págs. 17,18.

Para fins de atualização registre-se que em maio de 2005 o

Ministério do Meio Ambiente através do gabinete da Ministra editou

duas Portarias, a de n.° 126 e a de n.° 129, criando gts para elabo-

rar proposta de ocupação territorial das resex Mata Grande (ma)

e Extremo Norte (to). cf. Diário Oficial da União, Seção 1 n.º 92,

16 de maio de 2005 p. 92.

(6) cf. Cartilha do Movimento Ribeirinho do Amazonas. I Seminá-

rio sobre Identidade Ribeirinha. Manaus, cpt, 2003.

(7) cf. Movimento dos Atingidos por Barragens-mab. Caderno de

Formação n.º 5, pág. 3, s/d.

Cabe complementar que 3,4 milhões de hectares de terras produ-

tivas e florestas já foram inundados com a construção de barragens.

Além disto acrescente-se que mais de 1 milhão de pessoas foram

compulsoriamente deslocadas.Até o ano de 2.015 estão planejadas

mais 490 barragens.

(8) Na literatura relativa aos faxinais verifica-se uma abordagem

evolucionista que sempre os apresenta como “em extinção”, “perden-

do suas características comunais” e se constituindo em “faxinais

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Page 64: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

remanescentes”, como sublinha chang man yu em Sistema Faxi-

nal: uma forma de organização camponesa em desagregação no

centro-sul do Paraná. Londrina: iapar, 1988, p. 14.

Para outros esclarecimentos consulte-se: francisco a.gubert filho “O Faxinal:estudo preliminar”. Revista de direito

agrário e meio ambiente. N. °2. Curitiba: itcf, 1987, pp. 32-40.

horário martins de carvalho. “Da Aventura a Espe-

rança. A experiência autogestionária no uso comum da terra”. Curi-

tiba, 1984.

No caso dos chamados “faxinais” não se registra umaforma organizativa, aglutinadora das diversas associaçõese cooperativas, com uma pauta de reivindicações comunsque possa ser classificada como movimento social. Há asso-ciações dos chamados “faxinalenses”, como aquela doFaxinal dos Seixas e da Saudade Santa Rita que se organi-zam em rede juntamente com organizações não-governa-mentais – como o Instituto Equipe de EducadoresPopulares (ieep), o Instituto Guardiães da Natureza (ing)e a entidade Terra de Direitos – , com entidades confessio-nais _ como a Comissão Pastoral da Terra – , com institui-ções de ensino – como a uepg e a unicentro – e comórgãos oficiais. Com apoio desta “Rede Faxinal” foi reali-zado nos dias 5 e 6 de agosto de 2005, em Irati, Paraná, oi Encontro dos Povos dos Faxinais, contando com mais de150 participantes. Em setembro de 2005 foi formada a apf(Articulação Puxirão dos Faxinalenses) com representaçãode 20 faxinais. Em maio de 2008 os trabalhos de levanta-mento já apontavam mais de 244 faxinais no Paraná, crian-do condições de possibilidades paraa criação em futuropróximo de uma forma organizativa aglutinadora.

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Page 65: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

notas – A abrangência do significado de “terras tradicionalmente ocupadas” e as dificuldades de efetivação

1. Um dos casos mais recentes de mobilização pela recuperaçãode territórios concerne à luta dos povos Tupinikim e Guarani,no Estado do Espírito Santo. A Assembléia Geral destes povosna aldeia Comboios, em 19 de fevereiro de 2005 discutiu a “reto-mada das terras em poder da Aracruz Celulose”. Consoante“Nota Pública” aprovada na referida Assembléia, que contoucom a participação de 350 indígenas das aldeias Pau Brasil,Caieiras, Velhas, Irajá, Três Palmeira, Boa-Esperança, Piraquê-Açu e Comboios, tem-se o seguinte: “Em 1979, começamos atravar uma luta para retomar nossas terras, sempre com acerteza do nosso direito. Em 1997, a funai identificou 18.071hectares como “terras tradicionalmente ocupadas por nós”,Tupinikim e Guarani.Até o momento conseguimos recuperarapenas uma pequena parte do nosso território. Cerca de 11.000hectares continuam nas mãos da Aracruz Celulose, por força deum Acordo ilegal...” (cf. Nota Pública assinada pela Comissãode Caciques Tupinikim e Guarani. Aldeia de Irajá, 28 de feverei-ro de 2005).

2. cf. tomei, Manuela; sewpston, lee. Povos indígenas etribais.Guia para a aplicação da Convenção n. 169 da OIT.Brasília, oit, 1999 (editado em Genebra em 1996), pp. 28,29.

3. Os chamados “pescadores comerciais” vinculados a empre-sas de pesca e os que pescam por esporte e lazer não estãoincluídos nesta acepção de “pescadores”. Esta distinção é neces-sária para que se possa entender a oficialização de acordoscomo aquele promovido pelo Ipaam (Instituto de proteçãoAmbiental do Amazonas) no Rio Unini, afluente da margem direi-

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Page 66: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

ta do Rio Negro, através da Portaria 139/2004. Tal acordo buscouharmonizar interesses de pescadores esportivos, turistas e empre-sas de pesca, de um lado, e os mais de mil ribeirinhos que moramao longo dos 390 quilômetros de extensão do rio, limite naturaldo Parque Nacional do Jaú e da Reserva de DesenvolvimentoSustentável do Amaná. (cf. dantas, g.s.-” Acordo põe fim aconflito de ribeirinhos e pescadores”. A Crítica, Manaus, 29 desetembro de 2004, p. c-7).

4. Vide Art. 20, vii da Constituição da República Federativado Brasil. Considerar também que há rios administrados muni-cipalmente.

5. Estas indicações não podem ser lidas como uma tendência desedentarização.Na França há dispositivos jurídico-formais queasseguram em cada grande cidade uma área destinada a acampa-mentos temporários de “ciganos”. Esta questão tornou-se umapreocupação mundial a partir do fim da ii Grande Guerra, queteve impactos trágicos sobre “ciganos” e povos nômades da Áfri-ca do Norte, do Oriente Médio e da Ásia. Nos anos 1950-60 aunesco apoiou projetos de investigação antropológica parapesquisar processos de sedentarização de comunidades nômades.Um dos estudos mais destacados deste período trata-se de Nomadsof South Pérsia-The Basseri tribe of the Khamseh Confederacy,de autoria de Fredrik barth, publicado em 1961 pela WavelandPress, Inc. usa. Um outro trabalho mais recente, que também sedestacou, focalizando um copioso repertório de situações de pasto-rialismo e uso comum dos recursos trata-se de field, ThomasJ. The Nomadic Alternative. Prentice Hall. New Jersey. 1993

6. De acordo com Cláudio Domingos Iovanovitchi, da apre-ci,: “Aqui, o “cigano” misturou-se com o índio e o negro. Sãoas três etnias que tem mais dificuldades de inclusão social no

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País. Não fizeram quilombos porque não eram escravos, masparticiparam fazendo escambo de quilombo em quilombo.”(c.d. Iovanovitchi in sanches, 2005:10).

7. Não existe um censo relativo aos “ciganos”. As estimativasutilizadas pela apreci assinalam que seriam de 600 mil a 1milhão os “ciganos” distribuídos por diferentes regiões do Brasile subdivididos em dois subgrupos: os “ciganos” de origem ibéri-ca ditos calons, que em 1574 foram desterrados de Portugal eEspanha, e os que migraram de diferentes países do Leste Euro-peu, principalmente entre as duas guerras mundiais, chamadosde rom. As estimativas de outra entidade, o Centro de CulturaCigana, de utilidade pública n. 10.340/02, com sede em Juiz deFora (mg), assinalam que naquela cidade há 9.560 “ciganos”,na Zona da Mata mineira 23.230 e em Belo Horizonte mais de120.000 “ciganos”. Minas Gerais teria a terceira maior popula-ção cigana brasileira. Para o referido Centro haveria no Brasilcerca de 1.800.000 “ciganos” (cf. folheto do ccc de junho de2005). Em suma, os “ciganos” não são recenseados, todavia exis-tem efetivamente e, embora estejam se agrupando em associa-ções, não formaram um movimento social.

Segundo informações que obtive em conversa com doisrepresentantes da apreci, em Brasília, no dia 01/07/2005, noâmbito das atividades da I Conferencia Nacional de Promoçãoda Igualdade Racial, o espaço destinado aos “ciganos”, em Curi-tiba, é também destinado à eventual instalação de circos e deparques de diversões. A área não possui saneamento básico eem junho de 2005 lá haviam cerca de 40 barracas com famíliasacampadas. Segundo os representantes os vizinhos já teriam feitoabaixo-assinado para retirar os “ciganos” de lá alegando queseriam “fedorentos”.

No decorrer do i Encontro Nacional de Comunidades Tradi-cionais a representação cigana se fez através de um “rom”, Farde

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Page 68: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

Vichil, e uma “calon”, Márcia Yáskara. Ela foi escolhida paraintegrar o conjunto de representantes das comunidades tradicio-nais na Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável insti-tuída pelo Decreto Presidencial de 27 de dezembro de 2004.

Para maiores esclarecimentos consultar: Destaque SEPPIR

n. 32. “Povo cigano começa mobilização...”. Brasília, 9 a 15 deabril de 2005.

– sanches, p.a. “Vida Cigana”. Carta Capital. Ano ix.n. 350, 13 de julho de 2005 pp. 10-16.

– ferraz, Claúdia. “Cultura cigana em vias de resgate”.O Estado de São Paulo. São Paulo, 31 de julho de 2005 p. a23

– aizenstein, Berel (Presidente da Confederação Israe-lita do Brasil – Conib). “Negros, índios e ciganos: por que não?”Tribuna Judaica. Ano vi n. 143. Edição nacional, 26 de junhoa 10 de julho de 2005.

O Dia Nacional do Cigano, 24 de maio, foi instituido em2006 por meio de decreto do Presidente da República.

8. Para um aprofundamento das implicações deste conceito leia-se almeida, a.w.b. de. “Refugiados do Desenvolvimento – osdeslocamentos compulsórios de índios e camponeses e a ideolo-gia da modernização”. Travessia – revista do migrante. Ano ix.n. 25. cem. S. Paulo, maio/agosto de 1996, pp. 30-35.

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OS LIMITES DAS CATEGORIAS

CADASTRAIS E CENSITÁRIAS

N o plano jurídico1, tanto quanto no plano operacio-nal há, como já foi dito, obstáculos de difícil supera-

ção para o reconhecimento das “terras tradicionalmenteocupadas”. O Brasil dispõe de duas categorias para cadas-tramento e censo de terras, quais sejam: estabelecimento2

ou unidade de exploração, que é adotada pelos censos agro-pecuários do ibge, e imóvel rural3 ou unidade de domínio,que é adotada pelo cadastro do incra, para fins tributários.Todas as estatísticas, que configuram a estrutura agrária,atém-se a estas e somente a estas categorias4. As terrasindígenas, em decorrência da figura da tutela, e as áreasreservadas são registradas no Serviço do Patrimônio daUnião. As terras das comunidades remanescentes dequilombo, também recuperadas pela Constituição Federalde 1988, através do Art. 68 do adct, devem ser converti-das, pela titulação definitiva, em imóveis rurais. Claúsulasde inalienabilidade, domínio coletivo e costumes e usocomum dos recursos juntamente com fatores étnicos, temlevantado questões para uma visão tributarista que só vê aterra como mercadoria passível de taxação, menosprezan-do dimensões simbólicas. Ante esta classificação restritauma nova concepção de cadastramento se impõe, rompen-do com a insuficiência das categorias censitárias instituídase levando em consideração as realidades localizadas e a espe-cificidade dos diferentes processos de territorialização.

Sem haver ruptura explícita com tais categorias assis-te-se a tentativas várias de cadastramento parcial como

69terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”,faxinais e fundos de pastos: terras t radic ionalmente ocupadas Alfredo Wagner

Berno de Almeida

Page 70: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

apregoa a Portaria n. 06 de 1.° de março de 2004 da Funda-ção Cultural Palmares, que institui o Cadastro Geral deRemanescentes das Comunidades de Quilombo, nomean-do-as sob as denominações seguintes: “terras de preto,mocambos, comunidades negras, quilombos” dentre outrasdenominações5.

Ora, a própria necessidade de um cadastro à parterevela uma insuficiência das duas categorias classificatóriasao mesmo tempo que confirma e chama a atenção parauma diversidade de categorias de uso na vida social quedemandam reconhecimento formal. Aliás, desde 1985, háuma tensão dentro dos órgãos fundiários oficiais para oreconhecimento de situações de ocupação e uso comum daterra, ditadas por “tradição e costumes”, por práticas deautonomia produtiva – erigidas a partir da desagregaçãodas plantations e das empresas mineradoras – e por mobi-lizações sociais para afirmação étnica e de direitos elemen-tares. Um eufemismo criado no incra em 1985-86 diziarespeito a “ocupações especiais”, no Cadastro de Glebas,onde se incluíam nos documentos de justificativa, aschamadas “terras de preto”, “terras de santo”, “terras deíndio”, os “fundos de pasto” e os “faxinais” dentre outros.

O advento destas práticas e a pressão pelo seu reco-nhecimento tem aumentado desde 1988, sobretudo naregião amazônica, no semi-árido nordestino e nas denomi-nadas “regiões de cerrado”6, com o surgimento de múltiplasformas associativas agrupadas por diferentes critérios ousegundo uma combinação entre eles, tais como: raízes locaisprofundas, laços de solidariedade reafirmados mediante aimplantação de “grandes projetos de exploração econômi-ca”, fatores político-organizativos, autodefinições coletivas,consciência ambiental e elementos distintivos de uma iden-tidade coletiva. A formação de um corpo de lideranças com

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saberes práticos em consolidação e as reivindicações de reco-nhecimento de “territorialidades específicas” complemen-tam este quadro geral, sem no entanto esgotá-lo.

As denominadas “quebradeiras de coco babaçu” incor-poram também um critério de gênero combinado com umarepresentação diferenciada por regionais e respectivospovoados. Os chamados “ribeirinhos”7 incorporam aindaum critério geográfico combinado com uma representaçãopolítica distribuída por lagos, rios e igarapés. Os agentessociais referidos a fundos de pasto e a faxinais, parecem nãoter uma denominação própria capaz de aparentementeuniformizá-los. Eles se distinguem, entretanto, por fatoresorganizativos peculiares, ou seja, cada faxinal ou cada fundode pasto teria uma associação de referencia ou uma formaassociativa própria. Os pescadores, por sua vez, buscamtransformar de maneira radical a organização por Colônias,até então implementada pelos órgãos oficiais8, evitandoserem vistos apenas como grupo ocupacional ou como meraatividade econômica. Para tanto tem reforçado elementosde seu modo de existência em povoados e aldeias, manten-do produção em pequena escala, congregando familiares evizinhos no uso comum dos recursos, utilizando equipa-mentos simples, organizando-se em cooperativas e consoli-dando presença em circuitos de mercado segmentado.Mesmo que o termo permaneça o mesmo, ou seja “pesca-dor”, o seu novo significado, passa a incorporar umaexpressão autônoma no processo produtivo e elementosidentitários capazes de objetivá-los de maneira politicamen-te contrastante e organizada em movimento social.

A estas formas associativas, expressas pelos “novosmovimentos sociais” (Hobsbawm, 1995:406), que agrupame estabelecem uma solidariedade ativa entre os sujeitos,delineando uma “política de identidades” e consolidando

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Page 72: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

uma modalidade de existência coletiva (Conselho Nacio-nal dos Seringueiros, Movimento Interestadual dasQuebradeiras de Coco Babaçu, Coordenação Nacional deArticulação das Comunidades Negras Rurais Quilombo-las, Movimento Nacional dos Pescadores, Movimento dosFundos de Pasto...), correspondem territorialidades especí-ficas onde realizam sua maneira de ser e asseguram suareprodução física e social. Em outras palavras pode-se dizerque cada grupo constrói socialmente seu território de umamaneira própria, a partir de conflitos específicos em facede antagonistas diferenciados, e tal construção implicatambém numa relação diferenciada com os recursos hídri-cos e florestais. Tal relação, de certa maneira, está refleti-da na diversidade de figuras jurídicas verificadas nos textosconstitucionais, nas leis e nos decretos.

As formas de reconhecimento das diferentes modali-dades de apropriação das denominadas “terras tradicional-mente ocupadas” podem ser resumidas num quadroexplicativo que passo a apresentar adiante. A diversidadede figuras jurídico-formais, contemplando a propriedade(quilombolas), a posse permanente (indígenas), o usocomum temporário, mas repetido a cada safra (quebradei-ras de coco babaçu); o “uso coletivo” (faxinal), o usocomum e aberto dos recursos hídricos e outras concessõesde uso, bem assinala a complexidade dos elementos emquestão que, embora sejam passíveis de agrupamento numaúnica categoria classificatória, não parecem comportaruma homogeneização jurídica. A figura de “comodatário”ou daquele que explora a terra pertencente a outra pessoaou instituição por empréstimo gratuito e por tempo inde-terminado, que aparece referida ao pleito dos “ciganos”,não foi incluída, em concordância com procedimento demontagem do quadro anterior, ainda que citada na análise

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Page 73: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

que o antecede. Caso fosse incluída a figura jurídica corres-pondente seria o “comodato”. Pelas mesmas razões nãoinclui também qualquer referência aos chamados pomera-nos, cujas terras que ocupam na região de Pancas (es) esta-riam, consoante versão oficial, em sobreposição comunidade de preservação ambiental.

73

formas de reconhecimento jurídico das diferentesmodalidades de apropriação das denominadas“terras tradicionalmente ocupadas” (1988-2004)

Povos indígenas

Comunidadesremanescentes de quilombos

Quebradeirasde coco babaçu

Seringueiros, castanheiros,quebradeiras decoco babaçu

Pescadores

“Posse permanente”, usufruto exclu-sivo dos recursos naturais. Terrascomo “bens da união”

Propriedade. “titulação definitiva”

Uso comum dos babaçuais. “sem posse e sem propriedade”

“Regime de economia familiar ecomunitária”

resex – “de domínio público, comuso concedido às populações extra-tivistas tradicionais.”

Posse permanente. Terras como “bens da união”.

resex – “Terrenos de Marinha”Recursos hídricos como “bens daunião”

cf – 1988Art. 231

cf – adctArt. 68

Leis Municipais(ma, to)1997-2004

cf-m, 1990Art. 196

cf – 1988Art. 20 § 3º

Decretos1990, 1992, 1998

Lei 9.985-18/07/00

cf – 1988 Art. 20 § 3º

Decretos1992 e 1997

Page 74: ALMEIDA_Terras de Quilombo, Terras Indígenas, Babuçuais Livres

74

Fundo de pasto

Faxinal

“Direito real de concessão de uso”

“uso coletivo da terra para produçãoanimal e conservação ambiental”

ce-ba, 1989Art. 178

Decreto Estadual Paraná

14/08/97

Lei Estadual/prn.° 15673

de 13/11/2007

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notas – Os limites das categoriascadastrais e censitárias

1. No domínio jurídico formal são muitas as disputas.Para finsde ilustração cito a Ação Direta de Inconstitucionalidade doDecreto 4.887 de 20/11/03 perpetrada pelo Partido da FrenteLiberal (pfl), cuja data de entrada no Supremo Tribunal Fede-ral corresponde a 25 de junho de 2004 e aguarda julgamento. Opfl tenta impugnar o uso da desapropriação na efetivação doArt. 68, bem como se opõe ao critério de identificação dosremanescentes de quilombos pela autodefinição.

2. A noção de “estabelecimento” vem sendo utilizada desdeque, em 1950, o Recenseamento Geral envolveu dentre outros,os censos demográfico e agrícola. Em conformidade com estescensos, “considerou-se como estabelecimento agropecuário todoterreno de área contínua, independente do tamanho ou situação(urbana ou rural), formado de uma ou mais parcelas, subordi-nado a um único produto, onde se processasse uma exploraçãoagropecuária, ou seja, o cultivo do solo com culturas permanen-tes ou temporárias, inclusive hortaliças e flores; a criação, recria-ção ou engorda de animais de grande e médio porte; a criaçãode pequenos animais: a silvicultura ou o reflorestamento; a extra-ção de produtos vegetais. Excluíram-se da investigação quintaisde residências e hortas domésticas.” E ainda: “as áreas cofinan-tes sob a mesma administração, ocupadas segundo diferentescondições legais (próprias, arrendadas, ocupadas gratuitamen-te), foram consideradas um único estabelecimento.”

3. A categoria “imóvel rural” consistia num mero termo e nãopossuía força operacional maior, enquanto instrumento de açãofundiária até 1964. Foi com o Estatuto da Terra (Lei 4.504, de30 de novembro de 1964) que se tornou uma categoria definida

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para fins operacionais (Art. 4) e com propósitos também cadas-trais e tributários (Art. 46). A sua conceituação tornou-se entãoum pressuposto básico para fins de imposto (Decreto n. 56.792,de 26 de agosto de 1965, Art. 19) e de ação agrária (Decreto n.55.891 de 31 de março de 1965). Aparece,pois , com desdobra-mentos constantes: “imóveis rurais em área de fronteira”,“imóveis rurais pertencentes à União”, “imóveis rurais situadosnas áreas declaradas prioritárias para fins de reforma agrária” etambém em contratos de arrendamento, espólios e heranças,colonização, fração mínima de parcelamento, módulos rurais etc.Através da categoria podia-se classificar diferentes tipos de“propriedade”. Tornou-se uma categoria chave, com ramifica-ções várias, através da qual se passou a construir formalmente anoção de estrutura fundiária. Encontra-se subjacente em todosos instrumentos de ação fundiária, posto que se trata de umaunidade elementar à sua operacionalização.

O arcabouço jurídico sempre se vale de categorias funda-mentais para conceber operacionalidades ou para instituir proce-dimentos operacionais. Os códigos do período colonial, porexemplo, funcionavam com as chamadas “sesmarias” ou noçõescorrelatas, tais como: “datas” e seus variantes locais, “quinhões,sorte de terras, pontas e abas, fundo e frente” etc. Após a Lei deTerras de 1850 e com os dispositivos do governo republicano de1891 passaram a vigir outros as noções de “posse” e “proprie-dade”, embora não se possa ignorar que desde 1823 as “sesma-rias” não confirmadas passaram a ser tratadas como “posses”.Em 1946 estes institutos foram confirmados. O anteprojeto delei agrária de Afrânio de Carvalho, em 1948, fala em “proprie-dade rural”, mas quando fala no Cadastro Agrícola Nacionalmenciona “imóvel rural” (cf. Revista Brasileira de Estatísticav.2 pp. 303-304). O Art. 1 de sua Lei Agrária define “imóvelrural”. O Projeto de Lei Agrária do deputado federal NestorDuarte, de 1947, fala apenas em “imóvel”.O Projeto de Código

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Rural do Deputado Federal Silvio Echenique apresentado naCâmara em junho de 1951, fala em “estabelecimento rural”.Entre 1946 e 1964 parece não haver monopólio de uma catego-ria operacional exclusiva. Os projetos de lei e as discussõesconstantes asseguravam a possibilidade de uma pluralidade decategorias. O reinado da categoria “imóvel rural, a partir de1964 afunila o foco de ação do estado e abre lugar para autori-tarismos e arbitrariedades, que menosprezam as especificidadeslocais, os fatores étnicos e as diferenças nas formas de apropria-ção dos recursos naturais. A ilusão democrática esconde o etno-centrismo, daí as dificuldades formais com a heterogeneidade ecom as diferenças estabelecidas pelas terras indígenas, pelosquilombos e pelas terras de uso comum.

O Cadastro de Imóveis Rurais do incra adota, desde 1966,a seguinte definição operacional: “Imóvel rural, para os fins doCadastro, é o prédio rústico, de área contínua, formado de umaou mais parcelas de terra, pertencentes a um mesmo dono, queseja ou possa ser utilizado em exploração agrícola, pecuária,extrativa vegetal ou agroindustrial, independente de sua locali-zação na zona rural ou urbana do Município”. As restrições sãoas seguintes: os imóveis localizados na zona rural e cuja área totalseja inferior a 5.000 m² não são abrangidos pela classificação de“imóvel rural”, e aqueles localizados na zona urbana somenteserão cadastrados quando tiverem área total igual ou superior a2 hectares, bem como produção comercializada.

4. Os Censos Agropecuários admitem, entretanto, sem explica-ções mais detalhadas, a existência de “pastos comuns ou abertos”,tal como pode ser constatado no tópico intitulado “Conceituaçãode Características Divulgadas”, que antecede a cada novo re-censeamento. Aí, no sub-tópico “Efetivos da Pecuária” verifica-seque foram pesquisados bovinos, bubalinos, eqüinos, asininos,suínos e caprinos, de propriedade do produtor que estivessem no

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estabelecimento ou em “pastos comuns ou abertos”, localizadosfora dos estabelecimentos.

5. cf. Almeida, Alfredo Wagner B. de.“Terras de preto, terrasde santo, terras de índio-uso comum e conflito”. In castro, e.e hebette, j. (orgs.) Cadernos do NAEA, no. 10. Belém, 1989pp. 163-196.

6. A propósito consulte-se a “Carta do Maranhão” tambémconhecida como Carta dos Povos do Cerrado, lançada em 22 denovembro de 2002 em João Lisboa (ma), que fala em “quebra-deiras de coco babaçu, vazanteiros, índios (...), ribeirinhos, gerai-zeiros, assentados...” além de ong’s ambientalistas mobilizadasem torno da Articulação do Agroextrativismo da Rede Cerra-dos de ong’s.

7. No caso dos chamados “ribeirinhos” a designação de mora(Movimento dos Ribeirinhos do Amazonas) é provisória e háuma literatura especializada e de entidades confessionais, quecomeça a registrar diferentes aspectos deste movimento emformação, senão vejamos:

regis, Dom Gutemberg F. Pistas Ribeirinhas. Prelazia deCoari, 2003.

scherer, Elenise F.; Coelho, R.F.; Pereira, H. “Políticassociais para os Povos das Águas”. Cadernos do CEAS, n. 207set/out. de 2003 pp. 91-108.

neves, Delma P. (org.). A Irmã Adonai e a luta social dosribeirinhos – Contribuição para a memória social. Niterói, s/ed.2003.

jesus, Cláudio Portilho de. Utopia cabocla amazonense –Agricultura familiar em busca da economia solidária. Canoas(rs). Editora da ulbra, 2000.

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ranciaro, Maria m.m. de A. Andirá – memórias do coti-diano e representações sociais. Manaus, edua, 2004.

maybury-lewis, Biorn. “Terra e água: identidade campo-nesa como referencia de organização política entre os ribeirinhosdo Rio Solimões” in Furtado, Lourdes (org.). Amazônia, desen-volvimento, sociodiversidade e qualidade de vida. Belém, m.p.e.Goeldi / s.d. pp. 31-69.

8. Neste caso dos pescadores não estão inclusos os denomina-dos “caiçaras”, que se localizam no litoral do Rio de Janeiro ede São Paulo, nem os chamados “maratimbas”, que se localizamno litoral Sul do Espírito Santo e cujas formas de associação aindaestariam se consolidando sem terem passado, todavia, à expres-são acabada de movimento social. Para informações sobredenúncias de arbitrariedades contra os chamados “caiçaras” dolitoral norte de São Paulo, consulte-se: siqueira, p. Genocídiodos Caiçaras. Prefácio de Dalmo Dallari. São Paulo. M. Ohno –I. Guarnelli Eds. 1984.

brandão, t. “A meteórica agonia dos caiçaras de Paraty”.O Globo, 29 de fevereiro de 2004, p. 28.

Para um aprofundamento consulte-se: Diégues, A. Carlos.“Repensando e recriando as formas de apropriação comum dosespaços e recursos naturais”. In Gestão de recursos dos EspaçosRenováveis e Desenvolvimento (vieira, p.f. e weber, j.–orgs) São Paulo: Ed. Cortez, 1997.

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O S M OV I M E N TO S S O C I A I S

A nova estratégia do discurso dos movimentos sociaisno campo, ao designar os sujeitos da ação, não apare-

ce atrelada à conotação política que em décadas passadasestava associada principalmente ao termo “camponês”.Politiza-se aqueles termos e denominações de uso local. Seuuso cotidiano e difuso coaduna com a politização dasrealidades localizadas, isto é, os agentes sociais se erigemem sujeitos da ação ao adotarem como designação coleti-va as denominações pelas quais se autodefinem e são repre-sentados na vida cotidiana.

Assim, tem-se a formação do Conselho Nacional dosSeringueiros (csn ), do Movimento Interestadual dasQuebradeiras de Coco Babaçu (miqcb), do MovimentoNacional dos Pescadores (monape), da Coordenação Nacio-nal de Articulação das Comunidades Negras RuraisQuilombolas (conaq), do Movimento dos Ribeirinhos daAmazônia e de inúmeras outras associações, a saber: doscastanheiros, dos piaçabeiros, dos extrativistas do arumã,dos peconheiros e dos chamados “caiçaras”1. Acrescente-se que o Movimento dos atingidos de Barragem (mab), oMovimento pela Sobrevivência da Transamazônica, hojeintitulado Movimento pelo Desenvolvimento da Transama-zônica e do Xingu, o Movimento dos atingidos pela Basede foguetes de Alcântara (mabe) e outros se articularamcomo resistência a medidas governamentais e contra osimpactos provocados por “grandes obras”, quais sejam:rodovias, barragens, gasodutos, oleodutos, minerodutos,bases militares e campos de provas das forças armadas2.

80 terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”,faxinais e fundos de pastos: terras t radic ionalmente ocupadasAlfredo Wagner

Berno de Almeida

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Acrescente-se ainda a União das Nações Indígenas (uni),a Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira (coiab) eo Conselho Indigena de Roraima. Todas estas associaçõese entidades foram criadas entre 1988 e 1998 à exceção docns e do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra(mst), que datam de 19853 e da uni que data de 1978. Elesfuncionam através de redes de organizações. A coiab, porexemplo, foi criada em 19 de abril de 1989, em 2000 jáarticulava 64 entidades e em 2004 articulava 75, inclusivea Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro(foirn). Observe-se que a foirn, em 1999 tinha 29 asso-ciações indígenas organizadas em rede através da acibrn– Associação das Comunidades Indígenas Ribeirinhas e aacimrn – Associação das Comunidades Indigenas doMédio Rio Negro. A coapima (Coordenação das Or-ganizações e articulações dos povos indígenas do Mara-nhão) foi criada em setembro de 2003 e abrange liderançasde seis diferentes povos indígenas.Verifica-se também quehá associações que estão simultaneamente em duas ou maisredes de movimentos o que desautoriza um simples soma-tório dos componentes das redes sem os cuidados deneutralizar os casos de dupla contagem.

A apf (Articulação Puxirão dos Faxinalenses) foicriada em setembro de 2005, agrupando representaçõesde 20 faxinais. Os levantamentos de campo realizadospela apf no decorrer de 2007 até maio de 2008, assina-lou 244 faxinais no Paraná. O ii Encontro do Povo Faxi-nalense em agosto de 2007 reforçou a Rede Puxirão econtribuiu para ampliar a capacidade de registro daprópria organização.

aconeruq – Associação das Comunidades NegrasRurais do Maranhão, formada em novembro de 1997, emsubstituição à Coordenação Estadual Provisória dos

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Quilombos, criada em 1995, congrega atualmente 246(duzentas e quarenta e seis) comunidades negras rurais, ese vincula à Coordenação Nacional de Articulação dasComunidades Negras Rurais Quilombolas (conaq). Aapoinme – Articulação dos povos indígenas do Nordeste,Minas Gerais e Espírito Santo, fundada em 1995, congre-ga 30 etnias oficialmente reconhecidas e outra dezena quereivindica o reconhecimento formal.

O Conselho dos Índios da cidade de Belém, que está emconsolidação, congrega pelo menos 4 etnias, e se articula commovimentos em formação nas aldeias como o ConselhoIndígena Munduruku do Alto Tapajós (cimat). Em inúme-ros municípios o percentual da população indígena encon-tra-se em crescimento, superando ou mantendo-se nomesmo plano que os demais segmentos da população.Estaautodeclaração propicia condições de possibilidade paraexpansão das formas organizativas e de reivindicação.Emconformidade com o Censo Demográfico de 2000 tem-seque em São Gabriel da Cachoeira (am) vivem 22.853 índiosou 76,35 da população do município.Trata-se do municí-pio que possui maior proporção de população indígena.Em Jacareacanga (pa) vivem 8.488 índios, ou seja, 38,4%da população municipal. Em Santa Isabel do Rio Negro (am)são 3.670 índios ou 34,8% dos habitantes do município. EmSão Paulo de Olivença (am) são 6.634 índios correspon-dendo a 28,7% da população municipal. Em Miranda (ms)vivem 5.938 índios ou 25,8% da população do município.Em Barcelos (am) vivem 6.187 índios ou 25,6% da popu-lação municipal. Em Santo Antonio do Iça (am) vivem6.673 índios ou 23,7% da população do município,enquanto que em Tabatinga (am) vivem 7.255 índios ou19,1% da população municipal.

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As tabelas a seguir apresentadas permitem um enten-dimento de conjunto das tendências demográficas empauta:

tabela 1 – relação dos municípios com as maiores proporçõesde autodeclarados indígenas, com indicação das unidades dafederação de referência, população total dos municípios e deindígenas – brasil/2000

fonte: ibge – Censo Demográfico, 2000.

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Municípios e Unidades da Federação de referência

São Gabriel da Cachoeira

/AM

Uiramutã/RR

Normandia/RR

Santa Rosa do Purus/AC

Ipuaçu/SC

Baía da Traição/PB

Pacaraima/RR

Benjamin Constant do

Sul/RS

São João das Missões/MG

Japorá/PA

Jacareacanga/PA

Amajari/RR

Bonfim/RR

Charrua/RS

Santa Isabel do Rio

Negro/AM

Proporção de indígenas no total da população do município (%)

76,3

74,4

57,2

48,3

47,9

47,7

47,4

40,7

40,2

39,2

38,4

37,3

37,0

35,4

34,8

População residenteTotal Autodeclarada

indígena

29.947

5.802

6.138

2.246

6.122

6.483

6.990

2.727

10.230

6.140

24.024

5.294

9.326

3.783

10.561

22.853

4.317

3.511

1.085

2.930

3.093

3.310

1.111

4.211

2.409

8.488

1.975

3.455

1.339

3.670

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tabela 2 - relação dos municípios com as maiores populações deautodeclarados indígenas e proporção em relação à populaçãototal dos municípios, com indicação das unidades da federeçãode referência – brasil/2000

fonte: ibge – Censo Demográfico, 2000.

Nas capitais onde se localizam as sedes das principais orga-nizações do movimento indígena tem-se também um núme-ro expressivo de índios. Em Salvador (ba) viveriam 18.712índios, em São Paulo (sp) 18.692 índios, na cidade do Rio

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Municípios e Unidades da Federação de referência

São Gabriel da Cachoeira

/AM

Salvador/BA

São Paulo/SP

Rio de Janeiro/RJ

Jacareacanga/RJ

Manaus/AM

Belo Horizonte/MG

Tabatinga/DF

Brasília/DF

Santo Antônio do Içá/AM

São Paulo de Olivença/AM

Porto Alegre/RS

Barcelos/AM

Boa Vista/RR

Aquidauana/MS

Miranda/MS

Amambaí/MS

Dourados/MS

Curitiba/PR

Recife/PE

Proporção de indígenas no total da população do município (%)

76,3

0,8

0,2

0,3

38,4

0,6

0,3

19,1

0,3

23,7

28,7

0,5

25,6

3,1

13,8

25,8

18,3

3,1

0,3

0,4

População residenteTotal Autodeclarada

indígena

29.947

2.443.107

10.434.252

5.857.904

24.024

1.405.835

2.238.526

37.919

2.051.146

28.213

23.113

1.360.590

24.197

200.568

43.440

23.007

29.484

164.949

1.587.315

1.422.905

22.853

18.712

18.692

15.622

8.488

7.894

7.588

7.255

7.154

6.673

6.634

6.356

6.187

6.150

6.011

5.938

5.396

5.189

5.107

5.094

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de Janeiro (rj) são 15.622 índios, em Manaus (am) vive-riam 7.894 índios, em Belo Horizonte (mg) 7.588 índios,em Brasília (df) 7.154 índios, em Porto Alegre (rs) 6.356índios, em Boa Vista (rr) 6.150 índios, em Curitiba (pr)5.107 índios e em Recife (pe) 5.094 índios. Em Manaus osdados censitários relativos à “população residente por corou raça” registram para o ano de 1991, 952 indígenas,enquanto que para 2000 registram 7.894 indígenas. Algu-mas fontes assinalam que este total estaria subestimado.Uma pesquisa amostral realizada pela Pastoral Indigenistade Manaus, em conjunto com o Cimi Regional Norte I,denominada “Entre a Aldeia e a Cidade”, concluída em1996, entrevistou 163 famílias, em 143 unidades residen-ciais, totalizando 835 indivíduos. Com base nestes dadosfoi elaborada a estimativa de 8.500 indígenas em Manauspara 1996. As projeções atuais falam em mais de 25 milíndios residindo na referida capital.

O aumento significativo da população indígena,consoante estes dados do Censo Demográfico de 2000 e depesquisas amostrais, mostra-se bem acima do crescimentovegetativo permitindo a afirmação de que índios residentesnas áreas urbanas teriam assumido a identidade indígena4.O número expressivo de indígenas nos centros urbanos5

tem levado à formação de uma modalidade organizativapeculiar que agrupa concomitantemente diferentes etnias.A particularidade do critério político-organizativo, sublinha-do neste texto, propicia o entendimento do ato de agrupardiferenças culturais em torno de objetivos comuns median-te formas de mobilização continuadas, que se renovam acada situação de antagonismo.

Com os denominados “quilombolas” não sucede dife-rente e sua presença nos centros urbanos torna-se cada vezmais expressiva. Embora a denominação não se constitua

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em categoria censitária e nem existam séries estatísticaspara efeitos de demonstração, pode-se recorrer, sem qual-quer preocupação amostral, às informações divulgadaspelo movimento quilombola e às observações empíricasresultantes do trabalho de campo. Há informações disponí-veis, neste sentido, sobre incidência de comunidades rema-nescentes de quilombolas em pelo menos cinco capitais,quais sejam: Salvador (ba), São Luis (ma), Rio de Janeiro(rj), Porto Alegre (rs) e Macapá (ap). Nas demais cidadesos registros ainda são incidentais.Em Penalva, Maranhão,verifica-se na periferia da sede municipal um bairro chama-do “Bairro Novo”, que congrega uma organização inci-piente de mulheres que se autodenominam “quebradeirasquilombolas”. Vivem neste bairro centenas de famílias quetiveram suas terras usurpadas por pecuaristas e que lutampara recuperar seus domínios. Elas se deslocam diariamen-te para os babaçuais próximos à sede municipal. O mesmosucede em Imperatriz (ma ) onde, conforme observouJoaquim Shiraishi, as mulheres extrativistas que moram naperiferia urbana estão quebrando o coco babaçu nosjardins de condomínios de luxo6. Em Conceição da Barra(es) tem-se o bairro Santana. Entre Macapá e Santana(ap) tem-se o quilombo de Lagoa dos Índios. Na cidade doRio de Janeiro tem-se o quilombo do Sacopã. Em PortoAlegre (rs) constata-se na Rua João Caetano, no BairroTrês Figueiras, a Associação Kilombo Família Silva corres-pondente ao denominado Quilombo dos Silva com áreacorrespondente a 6.510,7808 metros quadrados, que foireconhecido formalmente pela Portaria/incra n.° 19 de 17de junho de 2005 7 em conformidade com o Decreto4.887/2003. A expressão destes quilombos levou a Prefei-tura de Porto Alegre a promulgar Lei Complementar n.532, de 27 de dezembro de 2005, “acrescentando, ao

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conjunto de bens imóveis de valor significativo que inte-gram o Patrimônio Cultural, as áreas remanescentes dequilombos” (cf. Diário Oficial de Porto Alegre, ed. 2687,de 30 de dezembro de 2005).

Através deste processo peculiar de territorialização veri-fica-se que expressões organizativas e formas de ocupaçãoque são pensadas como intrínsecas à área rural despontamdentro do perímetro urbano, levando os estudiosos a rela-tivizarem as dicotomias rural/urbano e nômade/sedentáriona caracterização das chamadas “comunidades tradicio-nais” e no reconhecimento de suas expressões identitárias.

Registra-se, por conseguinte, uma tendência de se cons-tituírem novas redes de organizações e movimentos contra-pondo-se, em certa medida, à dispersão e fragmentação derepresentações que caracterizaram os anos imediatamenteposteriores a 1988. De todas estas redes articuladoras demovimentos a mais abrangente, entretanto, e consideradacom maior representação junto aos organismos multilate-rais (bird, bid, g-7, ) e a órgãos públicos é o Grupo deTrabalho Amazônico (gta), fundado em 1991/92, e quecongrega 600 entidades8 representativas de extrativistas,povos indígenas, artesãos, pescadores e pequenos agricul-tores familiares na Amazônia. O gta desempenha ideal-mente o papel de representação da sociedade civil junto aoppg-7 (Programa Piloto de Preservação das FlorestasTropicais) e a diversos Ministérios.

Observa-se, num emaranhado de articulações, queuma entidade pode simultaneamente pertencer a mais deuma rede e que parte considerável das redes se faz repre-sentar no gta , que tem 9 regionais nos 9 estados daAmazônia. O miqcb, por sua vez, possui coordenações em4 unidades da federação, sendo 3 da Amazônia (Pará,Maranhão e Tocantins) e 1 da Região Nordeste (Piaui). O

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monape tem duas coordenações sendo uma no Pará eoutra no Maranhão, congregando pescadores de rios emarítimos.

A base territorial destes movimentos não se conforma,portanto, à divisão político-administrativa, a uma rígidaseparação de etnias, a uma base econômica homogênea e àsmesmas ocupações ou atividades econômicas e transcendeà usual separação entre o rural e o urbano, redesenhandode diversas maneiras e com diferentes formas organizativasas expressões políticas da sociedade civil.

Tal multiplicidade de categorias cinde, portanto, como monopólio político do significado dos termos “campo-nês” e “trabalhador rural”, que até então eram utilizadoscom prevalência por partidos políticos e pelo movimentosindical centralizado na contag (Confederação Nacionaldos Trabalhadores na Agricultura), e do termo “posseiro”utilizado pelas entidades confessionais (cpt, acr). Talruptura ocorre sem destituir o atributo político daquelascategorias de mobilização, haja vista que quilombolas,quebradeiras, seringueiros, pescadores, garimpeiros e“atingidos” também se associam a Sindicatos de Trabalha-dores Rurais através dos quais passam a ter direitos aosbenefícios da Previdência Social9. Quando confrontamosesta dupla filiação é possível perceber uma distinção entrepapel social e identidade: uma filiação é vivida comopertencimento a um grupo ocupacional, consoante a legis-lação e os direitos decorrentes (trabalhistas, previdênciasocial), enquanto a outra tem características identitárias eé voluntária, pressupondo no mais das vezes situações deantagonismo manifesto. As novas denominações que desig-nam os movimentos e que espelham um conjunto de práti-cas organizativas traduzem transformações políticas maisprofundas na capacidade de mobilização destes grupos face

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ao poder do Estado e em defesa dos territórios que estãosocialmente construindo.

Em virtude disto é que se pode dizer que mais do queuma estratégia de discurso tem-se o advento de categoriasque se afirmam através de uma existência coletiva, politi-zando não apenas as nomeações da vida cotidiana, mastambém um certo modo de viver e suas práticas rotineirasno uso dos recursos naturais. A complexidade de elemen-tos identitários, próprios de autodenominações afirmativasde culturas e símbolos, que fazem da etnia um tipo organi-zacional (barth :1969)10, foi trazida para o campo dasrelações políticas, verificando-se uma ruptura profundacom a atitude colonialista homogeneizante, que historica-mente apagou diferenças étnicas e a diversidade cultural,diluindo-as em classificações que enfatizavam a subordina-ção dos “nativos”, “selvagens” e ágrafos ao conhecimen-to erudito do colonizador.

Não obstante diferentes planos de ação e de organiza-ção e de relações distintas com os aparelhos de poder, taisunidades de mobilização podem ser interpretadas comopotencialmente tendendo a se constituir em forças sociais.Nesta ordem elas não representam apenas simples respos-tas a problemas localizados. Suas práticas alteram padrõestradicionais de relação política com os centros de poder ecom as instancias de legitimação, possibilitando a emergên-cia de lideranças que prescindem dos que detém o poderlocal. As principais decisões são tomadas nos “encontros”e “assembléias gerais” que congregam os delegados eleitossegundo cada unidade básica de mobilização, que pode serum povoado, uma “colocação” ou conjunto de estradas deseringas, um “castanhal” e/ou uma “comunidade”. Desta-que-se, neste particular, que, mesmo distantes da pretensãode serem movimentos para a tomada do poder político,

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logram generalizar o localismo das reivindicações e median-te estas práticas de mobilização aumentam seu poder debarganha face ao governo e ao estado, deslocando os“mediadores tradicionais” (grandes proprietários de terras,comerciantes de produtos agrícolas e extrativos, seringa-listas, donos de castanhais e babaçuais). Deriva daí aampliação das pautas reivindicatórias e a multiplicação dasinstâncias de interlocução dos movimentos sociais com osaparatos político-administrativos, sobretudo com os respon-sáveis pelas políticas agrárias e ambientais (já que não sepode dizer que exista uma política étnica bem delineada).

Está-se diante do reconhecimento de direitos até entãocontestados, e de uma certa reverencia dos poderes políti-cos às práticas extrativas do que chamam de “populaçõestradicionais”. Os conhecimentos “nativos” sobre a natu-reza adquirem legitimidade política e sua racionalidadeeconômica não é mais contestada, no momento atual, como mesmo vigor de antes. Bem ilustra isto a aprovação pelaAssembléia Legislativa do Acre, sancionada pelo Governa-dor, em janeiro de 1999, de lei, mais conhecida como “LeiChico Mendes” que dispõe sobre a concessão de subven-ção econômica aos seringueiros produtores de borrachanatural bruta.Esta Lei n. 1277, de 13 de janeiro de 1999,foi regulamentada pelo Decreto estadual n. 868, de 5 dejulho de 1999, que reconhece no item v do Art. 1.° anecessidade do vínculo de produtores de borracha com suasrespectivas entidades de representação. De igual modo,tem-se leis municipais que garantem a preservação e o livreacesso aos babaçuais, inclusive de propriedade de terceiros,a todos que praticam o extrativismo em regime de econo-mia familiar, que foram aprovadas pelas Câmaras de Verea-dores em sete Municípios do Estado do Maranhão e doisMunicípios do Estado do Tocantins, entre 1997 e 2003. Do

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Maranhão tem-se: Lei Municipal n.° 05/97 de Lago doJunco, Lei n. 32/99 de Lago dos Rodrigues, Lei n.° 255/99de Esperantinópolis, Lei n.° 319 de São Luis Gonzaga, Lein.° 1084/03 de Imperatriz, Lei n.° 466/03 de Lima Campose Lei em votação na Câmara de Capinzal do Norte. NoTocantins foram aprovadas em Praia Norte, Lei n. 49/03e Axixá, Lei n.° 306/03. Trata-se de reivindicações pauta-das pelo Movimento Interestadual das Quebradeiras deCôco Babaçu, que estão sendo implementadas em diferen-tes municípios.Estas leis municipais, que asseguram osbabaçuais como recursos abertos, relativizando a proprie-dade privada do solo e separando-a do uso da coberturavegetal, são conhecidas localmente como Leis do “BabaçuLivre”. Mesmo que estes dispositivos contrastem com asleis federais, eles passam a usufruir de uma legitimidadelocal em virtude do peso das mobilizações em favor de suaaprovação pelas Câmaras Municipais.

Os trabalhos das Assembléias Legislativas e das Câma-ras Municipais passam, em certa medida, a refletir as mobi-lizações étnicas e aquelas realizadas pelos chamados“povos tradicionais”. iglésias (2000)11 numa acuradareflexão, a partir de levantamento do cimi, sublinha que350 índios se candidataram a cargo de vereador, dez avice-prefeito e um a prefeito nas eleições municipais de2000. Foram eleitos 80 vereadores, sete vice-prefeitos eum prefeito12. Nas eleições municipais de 2004 o númerode prefeituras quadruplicou: 4 indios foram eleitos prefei-tos, cinco foram eleitos vice-prefeito e 70 foram eleitosvereadores13. Destaque-se que, nas eleições de 2000, 40mulheres, que se autoapresentavam como quebradeiras decoco babaçu, disputaram o posto de vereador em diferen-tes Municípios do Pará, do Tocantins e do Maranhão.Dentre as candidatas quebradeiras apenas duas foram elei-

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tas e uma terceira foi eleita vice-prefeita em São Pedro daÁgua Branca (ma). Na eleição de 2004 mais de 50 quebra-deiras se apresentaram como candidatas a vereador e 3delas foram eleitas, sendo duas do Maranhão, Maria Alaí-des no Município de Lago do Junco e Nice Aires Macha-do no Município de Penalva, e uma do Tocantins, Mariada Consolação, mais conhecida por Consola, no Municí-pio de São Miguel.As duas eleitas no Maranhão o forampelo Partido dos Trabalhadores (pt), enquanto a do Tocan-tins foi pelo pmdb. Todas três participam militantementedo miqcb, sendo que duas delas integraram a Coordena-ção do movimento14. Ainda em 2004 os pescadores conse-guiram eleger um vice-prefeito em Marajó (pa) , noMunicípio de Cachoeira do Arari, que foi da coordenaçãodo monape. No caso dos quilombolas tem-se conhecimen-to de pelo menos cinco vereadores e uma vereadora eleitos,em Pernambuco, São Paulo, Maranhão e Pará15. Algumasinterpretações, superestimando fatos desta ordem, asseve-ram que tais mobilizações eleitorais acrescidas da criaçãoobrigatória dos conselhos municipais, consoante a Consti-tuição Federal de outubro de 1988, estão consolidandoregionalmente um quarto poder. Há quem classifique ofenômeno de “conselhismo” (lessa, 2001), sobrestiman-do tais inovações institucionais na gestão de políticas gover-namentais e afirmando tratar-se de um poder pararelo16.

Diferentemente da ação sindical estes movimentos seestruturam segundo critérios organizativos diversos,apoiados em princípios ecológicos, de gênero e de baseeconômica heterogênea, com raízes locais profundas(hobsbawm, 1994)17, menosprezando, como já foi dito, adivisão político-administrativa. Os pescadores se organi-zam em Colônias e associações transpassando limites esta-duais, do mesmo modo que os regionais instituídos pelo

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miqcb18. Os seringueiros se organizam por seringais e “colo-cações”, as quebradeiras por povoados próximos a baba-çuais, enquanto os pescadores privilegiam também oscritérios de mobilização por bacias, como no caso da Centralde Pescadores da Bacia Hidrográfica do Araguaia-Tocan-tins com vinte entidades que somam 7.633 familias, dasquais 6.672 apenas no lago da Barragem de Tucuruí. Ospovos indígenas se agrupam por aldeias e por “comunida-des”19. Tais movimentos não se estruturam institucional-mente a partir de sedes e associados e nem das basesterritoriais que confinam geograficamente as ações sindi-cais, insinuando-se como formas livres de mobilização atre-ladas a situações de conflitos potenciais ou manifestos,não importando em que Municípios ocorram.

A organização da produção para um circuito de merca-do segmentado, agregando valor através de tecnologiasimples constitui outro fator de agrupamento que deve serconsiderado. Esta modalidade organizativa rompe tambémcom a dicotomia rural-urbano. Observe-se neste sentido,que as quebradeiras de côco babaçu, por exemplo, funda-ram em 2002, em São Luis, capital do Maranhão, atravésda assema, um entreposto comercial e de representaçãopolítica intitulado “Embaixada do Babaçu”. Funciona noCentro Histórico e dispõe à comercialização uma linha deprodutos peculiar: farinha de mesocarpo, papel recicladocom fibra de babaçu, carvão de casca do coco babaçu efrutas desidratadas, além de livros e demais publicaçõespertinentes ao extrativismo. Um outro exemplo é que dife-rentes etnias se agruparam e constituíram no centro deManaus uma feira permanente com produção artesanal dediversos povos indígenas.Num caso e no outro tem-se onascente de um “museu vivo” em que “comunidades tra-

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dicionais” expõem sua face pública em interações sociais,que transcendem aos circuitos de mercado segmentado.

Perfazem ainda estas características elementares deagrupamento, que indicam um novo padrão de relaçãopolítica, os fatores étnicos que tanto concernem a identida-des como quilombolas, quanto à emergência de novos povosindígenas, como no Alto Rio Negro ou na Região Nordes-te, e de novas formas associativas, perpassando etnias, comoocorre em Manaus, em Belém e em São Paulo , onde famí-lias de diferentes etnias se agrupam numa mesma organiza-ção de reivindicação de direitos indígenas. No caso de Belém,como já foi sublinhado, tal organização coordenada porum índio Munduruku21, agrega também famílias Tembé,Apali, Juruna, Galibi e Urubu-Kaapor e se faz representarinclusive no Congresso da Cidade (novaes et alli 2002)22 queé uma experiência recente de gestão democrática municipal,abrangendo uma diversidade cultural e uma pluralidade derepresentações setoriais, de gênero e por local de residência.

Esta diversidade de agrupamentos se consolidatambém através de diferentes processos de territorializa-ção seja no campo ou nas áreas urbanas, seja referido àterra, estrito senso, ou aos recursos hídricos, configurandoum mosaico de situações sociais referidas a noções práticase operacionais que tanto falam em “territórios étnicos”23,como no caso das comunidades quilombolas de Alcântara(ma), quanto em “territórios aquáticos”, como no caso depescadores da Vila do Jenipapo na Ilha do Marajó24.Enquanto uma construção social o território atém-se aoscritérios intrínsecos de mobilização e enfatiza o fator queenuncia a disputa e o conflito. De certo modo, está-sediante da fabricação de novas unidades discursivas quesubstantivam e diversificam o significado das “terras tradi-cionalmente ocupadas”, além de refletirem as mobilizações

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políticas mais recentes, chamando a atenção para os sujei-tos da ação e suas formas organizativas.

Um dos fatores simbólicos acionados nestas mobiliza-ções diz respeito aos signos de reconhecimento e aos seusvalores evocativos, que passam a identificar as diferentesidentidades coletivas e seus movimentos respectivos: apalmeira de côco babaçu torna-se o ícone da ação das deno-minadas “quebradeiras”, do mesmo modo que a “cabaça”simboliza os “quilombolas” da Bahia e do Vale do Jequiti-nhonha (mg), o mandacaru representa as comunidades de“fundo de pasto”, o porco – ou “leitão” como dizem osfaxinalenses – simboliza os “faxinais”, a “poronga” os“seringueiros”, um índio lançando uma flecha acima domapa da Amazônia representa a coiab , um homem debraços abertos numa torre de transmissão de energia comuma enxada e uma foice a seus pés simboliza os “atingidospor barragens” e uma roda de carroça sobre verde e azuldescreve o movimento constante dos “ciganos”. Faixas,cartazes, panfletos e folhetos impressos em folhas avulsascom informações sucintas sobre determinados movimentose organizações estampam estes símbolos, do mesmo modoque as embalagens dos bens (farinha, sabonete, farinha demesocarpo, óleos vegetais, frutas desidratadas, papéis reci-clados) produzidos de forma cooperativa pelos integrantesdestas organizações referidas.

Os símbolos também politizam a propriedade intelec-tual dos saberes ditos “tradicionais”, que não podem serreduzidos a uma simples oposição ao “moderno”, alar-gando os tipos de reconhecimento para além das identida-des regionais, que vinculam as identidades coletivas aunidades da federação, a bacias hidrográficas, a ecossiste-mas determinados e a acidentes naturais. Em suma trata-se de uma politização da natureza25 vinculada de maneira

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múltipla à emergência de identidades coletivas, que noslevam a redefinir a abrangência do significado dos movi-mentos sociais e das territorialidades específicas que lhescorrespondem. A humanização dos recursos naturais pelasclassificações coletivas e de parentesco, evidencia a profun-didade de tal politização. Assim, alguns povos privilegiamem sua denominação um determinado elemento destacadodo quadro natural, tal como: “floresta” em “povos dafloresta” ou “cerrado” em “povos do cerrado” ou ainda“povos da água”. Há denominações em que esta relaçãoestá implícita como: “geraizeiros” e “ribeirinhos”. Aschamadas “quebradeiras de coco babaçu” consideram apalmeira como “mãe” ao contrário de outros povos queevocam a “mãe-terra”26. Derrubar palmeiras indiscrimina-damente constitui uma violação das regras que discipli-nam sua maneira de existir.

Levando em conta esta vasta abrangência, está-se dian-te também de uma politização de fatores religiosos refleti-da em algumas das identidades coletivas aqui focalizadas.No i Encontro Nacional das Comunidades Tradicionais osrepresentantes das chamadas “comunidades de terreiros”,também denominadas por eles de “religiões de matriz afri-cana”, afirmaram o local de seus rituais e de suas “casas”como uma territorialidade específica, culturalmente delimi-tada. Posicionaram-se para além da figura jurídica do“tombamento”, evidenciando que os terreiros não consti-tuem meros monumentos registrados em livros de cartóriosou definidos por seu valor histórico e etnográfico, quedevem ser protegidos pelo Estado. Afirmaram uma condi-ção de sujeitos, que querem manter eles próprios a admi-nistração de seu espaço social e para tanto evocaram assituações em que o “santo é plantado” definindo um solosagrado não necessariamente contíguo, com uso específico

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da terra, inclusive para manter herbários com indicaçõessobre suas propriedades medicinais, e dos recursos hídri-cos, como no caso das cachoeiras e demais quedas d’àguaeventualmente acionadas em seqüências cerimoniais.

Numa direção análoga, os “quilombolas” do BaixoAmazonas e do Maranhão afirmaram a proteção de SãoBenedito às suas “comunidades”, enquanto os representan-tes dos “faxinais” evocaram o beato João Maria e a Guer-ra do Contestado e os representantes das comunidades de“fundos de pastos” exaltaram Antonio Conselheiro e aGuerra de Canudos. No Faxinal Marmeleiros, próximo aIrati (pr), os locais onde acamparam os que fugiram dasperseguições militares no Contestado, foram apontados, nodecorrer do I Encontro dos Povos dos Faxinais, comomarco histórico dos “faxinalenses”, que encerram umaexpectativa de direito. Os representantes “ciganos”, por suavez, afirmaram a devoção a Nossa Senhora de Aparecida é“a única Santa cigana do Mundo”, Santa Sara Kali, consi-derada pelos “Kallons” como a Padroeira dos ciganos. Asguerras, as perseguições e os estigmas aparecem combina-dos com fatores religiosos, compondo identidades que tantoafirmam territorialidades específicas, quanto estabelecemvínculos históricos que de certa maneira legitimariam ospleitos a elas referentes. Os santos e os profetas favorecemuma determinada racionalização das “necessidades religio-sas”, criando condições favoráveis para que se articulemcom uma mobilização política, que traduz a consciência danecessidade antes que uma mera necessidade econômicaidentificada de maneira supostamente objetiva. Os profetassão portadores de revelações, que reforçam novas práticase discursos anunciadores de um mundo renovado sem negaros seus fundamentos “de origem”. A existência econômicadas chamadas “comunidades tradicionais”, enquanto parte

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de uma maneira de representação, consiste num instrumen-to da tradição que se orienta para a política através tambémda magia. O discurso memorialista reforça isto ao unircomponentes identitários que só a afirmação política podecomportar, garantindo a coexistência do que seria aparen-temente contraditório.

Consoante a narrativa dos agentes teria sido a partirdos conflitos com as grandes plantações e a partir de suadesagregação econômica, desde o século xviii, que foramse fortalecendo as instituições relativas ao uso comum dosrecursos naturais. Os quilombos e os movimentos messiâ-nicos teriam concorrido diretamente para isto, conjugadoscom a emergência de um campesinato livre que se consti-tuiu fora do alcance dos mecanismos repressores da forçade trabalho. A derrocada da empresa seringalista, nasprimeiras décadas do século xx, e das formas de imobili-zação que caracterizaram castanhais e fazendas com baba-çuais, no final do segundo quartel do mesmo século xx,podem ser articulados neste mesmo esquema explicativo,que tem no conflito social sua viga mestra. A emergênciadas formas organizativas e das identidades coletivas não écoetânea ou não coincide exatamente com esta periodiza-ção econômica. Tal dimensão política, sugerindo um longoprocesso político-organizativo, é resultante de seguidosconflitos, que se estenderam por décadas e que, antes deremeterem as análises para formações pré-capitalistas,apontam para crises do próprio intrínsecas ao desenvolvi-mento do capitalismo.

Estes conflitos são portanto, de várias ordens consoan-te as variações regionais e os diferentes empreendimentoseconômicos (usinas de açúcar, fazendas algodoeiras, erva-mateiras e cafeeiras, empresas extrativistas etc.), concor-rendo para evidenciar a diversidade de movimentos sociais

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em jogo e a multiplicidade de formas organizativas eexpressões identitárias sob as quais se estruturam. A partirdaí as distinções entre os vários processos de territorializa-ção podem ser mais facilmente estabelecidas.

Para efeitos de exposição e síntese apresentarei umquadro (Ver “Movimentos Sociais”, pág. 108) resumidodos principais movimentos sociais referidos à questão das“terras tradicionalmente ocupadas”, suas característicasorganizativas (data de fundação, local da sede, vinculaçõesa redes) e as representações diferenciadas que lhes assegu-ram a delegação ou o poder de falar em nome de um deter-minado conjunto de agentes sociais27.

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notas – Movimentos sociais

1. Não obstante organizados em associações, defendendo inte-resses localizados, os peconheiros, as mulheres extrativistas doarumã, os caiçaras e os piaçabeiros ainda não se agruparam emdiferentes mobilizações e não se constituíram em movimentosocial, a exemplo das demais identidades coletivas mencionadas.Há inúmeras reivindicações de consolidação de territorialidadesespecíficas de comunidades caiçaras do litoral de São Paulo queforam encaminhadas ao Ministério Público Federal no decorrerdos últimos seis anos.Tais associações referem-se a uma existên-cia atomizada, que, pelas mobilizações continuadas, estariadescrevendo uma passagem para uma forma de existência cole-tiva capaz de configurar o que Hobsbawm nomeia como “novosmovimentos sociais” (Hobsbawm, 1995:406).

2. Os agrupamentos de entidades de representação e associaçõesvoluntárias da sociedade civil tem levado a diferentes formas dearticulação política. Uma das mais conhecidas refere-se aoschamados “foruns” que propiciam melhores condições de mobi-lização a diferentes organizações, funcionando como dispositivode consulta face à intervenção governamental. Além do FórumCarajás e do Fórum da Amazônia Oriental, encontra-se agoraem consolidação, no Sudoeste do Pará e no Norte de Mato Gros-so, o Fórum de entidades por uma “br-163 Sustentável”. Emnovembro de 2003 foi realizado um Encontro de entidades emSinop, Mato Grosso, delineando as diretrizes de atuação face àsmedidas governamentais que tratam de problemas ligados àconcessão e ao asfaltamento da rodovia br-163. Para maioresdados consulte-se: “Relatório Encontro br-163 Sustentável –Desafios e sustentabilidade socioambiental ao longo do eixoCuiabá-Santarém”. Sinop (mt). Campus unemat, 18 a 20 denovembro de 2003. 108 pp. A partir daí este referido Fórum

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passou a atuar principalmente nas chamadas “etapas de consul-tas à sociedade” para elaboração do Plano de DesenvolvimentoRegional Sustentável para a Área de Influência da Rodovia br-163. A primeira etapa de consultas ocorreu em julho de 2004.Atualmente ocorre a segunda etapa de consultas e as audiênciaspúblicas estão agendadas para acontecer em abril de 2005,debatendo a versão preliminar do Plano elaborada pelo Grupode Trabalho Interministerial, criado por Decreto de 15 de marçode 2004. Estou me detendo mais neste caso, porquanto estainiciativa trata-se de uma experiência piloto de implementaçãodas diretrizes do Plano Amazônia Sustentável (pas), principalinstrumento do governo federal para articular políticas públicasque tem como prioridade a viabilização de um novo modelo dedesenvolvimento na região Amazônica.

3. Registro aqui os movimentos que desde pelo menos 1985mantém-se ativos.Não incluí, por exemplo, a União dos Sindi-catos e Associações de Garimpeiros da Amazônia Legal(usagal), organizada em torno de interesses imediatos doschamados “donos de garimpo” e que autoproclamava represen-tar mais de 60 mil garimpeiros. Seus propósitos eram por demaiscircunstanciais, atinentes, sobretudo, à livre exploração dosaluviões, seja em áreas reservadas, em terras indígenas ou emáreas de fronteiras internacionais.Esta organização após lograrintensas pressões políticas no fim dos anos 1980-90, tentandoinfluenciar a política ambiental e batendo de frente com o movi-mento indígena, com entidades ambientalistas e com órgãosgovernamentais que atuam nas fronteiras com outros paisesamazônicos, colecionou inúmeras derrotas políticas e sofreu umprocesso de esvaziamento aparentemente irreversível.

Além disto vale registrar que as entidades dos garimpeirossempre são efêmeras e atreladas a interesses circunstanciais.Assim, em fevereiro de 2004 foi criado em Itaituba o Sindicato

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dos Garimpeiros do Oeste do Pará (singop), agrupando os quehaviam participado da extração de ouro em Serra Pelada. Parti-lho do ponto de vista do sociólogo alberto Eduardo C. daPaixão em Trabalhadores Rurais e Garimpeiros no Vale do Tapa-jós, Belém, seicom, 1994–– de que os garimpeiros se filiam demaneira permanente aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais,embora se vinculem a cooperativas e outras associações quereunam os que trabalham na extração mineral.

4. Para outras informações leia-se: gomes, Eduardo – “Crescea população indígena”. Correio Amazonense. Manaus, 14 dedezembro de 2005 pág. 20. A fonte principal das informaçõesaqui arroladas é a seguinte: ibge – Tendências Demográficas-Uma análise dos indígenas com base nos resultados da amostrados Censos Demográficos 1991 e 2000. Rio de Janeiro. Estu-dos & Pesquisas-Informação Demográfica e Sócio Econômican. 16. 2005 142 pp.

5. A população indígena encontra-se assim distribuída, confor-me dados do Censo Demográfico de 2000: 350 mil índios vivemna área rural, enquanto que 384 mil estão localizados em centrosurbanos.

6. cf. shiraishi, j. Reconceituação do Extrativismo naAmazônia: práticas de uso comum dos recursos naturais enormas de direito construídas pelas quebradeiras de coco. Disser-tação de Mestrado apresentada ao Núcleo de Altos EstudosAmazônicos (naea). ufpa, Belém. 1997. 215 pp. e Anexos.

7. No dia 2 de junho de 2005 um oficial de justiça com policiaismilitares foi cumprir mandato judicial com ação de despejo dasfamílias deste quilombo. Uma intensa mobilização de movimen-tos sociais diversos levantou barricadas para impedir o ingresso

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da Brigada Militar na área. No dia 3 de junho o advogado dosquilombolas ogrou manter a posse e o incra emitiu o termo dePosse. Em 8 de junho o juiz titular Luiz Gustavo Lacerda, da13a. Vara Cível, reverte a decisão e sentencia que as famíliassejam despejadas. No dia 20 de junho numa ação contrária foiconcedida a manutenção de posse. (cf. “Carta à Sociedade”-Comitê de Defesa da Família Silva, Porto Alegre, junho de 2005).No dia 21 de junho de 2005 foi oficialmente publicado o Rela-tório Técnico de identificação, Delimitação e LevantamentoOcupacional e Cartorial do “Quilombo Família Silva”, viabili-zando sua titulação definitiva em 90 dias como o “primeiroquilombo urbano do Brasil” .Para leitura do Relatório consul-te-se o Diário Oficial da União de 21 de junho de 2005.

8. Este total foi divulgado através do “folder” da programaçãoda vi Assembléia Geral da Rede gta, intitulada “Encontro dosPovos da Floresta-Diversidade Cultural e SustentabilidadeAmazônica”, realizada em Brasília de 17 a 20 de março de 2005.

9. Para o inss os trabalhadores rurais podem ser inseridos emquatro categorias de beneficiários, a saber: 1) “empregado” ouquem trabalha para empresa ou proprietário rural, inclusive oschamados safristas e volantes, eventuais ou temporários, comcarteira assinada; 2) “contribuinte individual” ou trabalhador quepresta serviço a uma ou mais pessoas sem vínculo empregatício,exercendo atividades eventuais como os chamados safristas,volantes e bóias-frias. Também se inserem nesta categoria oschamados parceiros, meeiros, comodatários, arrendatários epescadores artesanais, que exploram atividades agropecuárias,pesqueiras ou de extração de minerais com empregados. 3)“Trabalhador avulso” ou aquele que presta serviço de naturezarural sem vínculo empregatício, sindicalizado ou não, a diversasempresas ou pessoas físicas. 4) “Segurado especial” que abrange:

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parceiro, meeiro, comodatário e arrendatário rurais, pescadorartesanal e seus assemelhados, que trabalham exclusivamente emregime de economia familiar, sem empregados, podendo terajuda eventual de terceiros.Em suma, quem é agricultor em regi-me de economia familiar é considerado pela Previdência Socialcomo “segurado especial”.

10. cf. barth, f. “Os grupos étnicos e suas fronteiras” inlask, t. (org.) O guru, o iniciador e outras variações antropo-lógicas. Rio de Janeiro, Contracapa, 2000 pp. 25-67.

11. cf. iglésias, m. “Os índios e as eleições municipais no Acre”.Rio de Janeiro, outubro de 2000 mimeo. E ainda “Um breveolhar sobre a participação indígena nas eleições municipais de2004 no Acre” in Yuimaki-um jornal indígena do Acre. Ano xiv.26a. edição. Março de 2005 (publicação semestral)p. 10.

12. “O Brasil tem 734 mil indios, cerca de 200 mil deles comtítulo de eleitor.(...)” No início de novembro de 2003 a coiabrealizou reunião em Manaus para traçar estratégias eleitoraispara 2004. cf. “Biancareli. “Indios no Brasil Traçam plano elei-toral”. Folha de São Paulo, 2 de novembro de 2003 pág. a-27.

13. Para outros dados consulte-se navarro, Cristiano. “O Brasiltem mais aldeia na política”. Porantim. Ano xxvi. n. 269. Brasí-lia, outubro de 2004, pp. 8,9. “O Estado do Amazonas elegeu seuprimeiro prefeito índio (em Barreirinhas); em Minas gerais, nacidade de São João das Missões, onde a maioria da populaçãopertence ao povo Xakriabá, os indígenas organizaram-se e elege-ram o primeiro prefeito índio de Minas Gerais.” (navarro, c.2004). Mecias Batista, do povo Sateré Mawé, eleito prefeito deBarrerinhas (am), fez parte da primeira coordenação da coiabe dirigiu o cgtsm (Conselho Geral da Tribo Sateré Mawé).

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14. Para um aprofundamento da participação das quebradeirasno pleito municipal de 2004 leia-se a arguta e bem-humoradaanálise do economista benjamin mesquita intitulada “Elei-ções municipais no Maranhão” in Assema em revista. Ediçãoespecial dos 15 anos da Assema. Org. por Helciane Araújo. SãoLuis,dezembro de 2004 pp. 15,16.

Quanto a Maria Alaíde vale sublinhar que foi reeleita comvotação ascendente.Em 2000 teve 260 votos e, em 2004, 358.Já Nice Aires foi a vereadora no Maranhão que obteve maisvotos proporcionalmente a seu colégio eleitoral. Ela obteve 3,8%do total de votos válidos, ou seja, 549 votos.

15. Está-se difundindo uma estatística eleitoral relativa acada identidade coletiva. Algumas ligadas à noção de etnia,enquanto identidade nacional, apresentam resultados decli-nantes, quando se confronta os dois últimos pleitos munici-pais.Nas eleições municipais de 2004, por ex., foram eleitos195 “nikkeis”: 31 prefeitos, 31 vices e 133 vereadores.A maiorconcentração está nos estados de São Paulo, Paraná e MinasGerais. Este total indica uma redução em relação à legislatu-ra de 1996-2000, quando foram eleitos 243 “nikkeis”. Em2004 foi eleita, entretanto, uma prefeita “nikkei” no Tocan-tins. cf. Jornal Nippo-Brasil, 13 a 19 de outubro de 2004 pp.4a e 5a.

16. O fascínio pela quantidade nutriu uma ilusão democratistana formulação de Lessa.Este autor afirma que o ibge produziuum censo mostrando que 99% dos Municípios brasileiros temconselhos, com representação popular, funcionando nas áreas desaúde, educação, meio ambiente e transporte.Segundo interpre-tação do autor: “O perfil dos municípios traçado pela pesquisado ibge mostra que o Brasil está se transformando numa repú-blica soviética. Afinal, a tradução da palavra russa “soviete” é

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conselho e os conselhos passaram a fazer parte definitivamenteda gestão dos municípios brasileiros: em 1999, a média consta-tada pela pesquisa municipal foi de 4,9 conselhos por município,um total de 26,9 mil “sovietes” espalhados por 99% dos muni-cípios do País” cf. Lessa, R. “Conselhismo invade cidades” e“Perfil revela que o Brasil foi tomado pelos Conselhos”. GazetaMercantil, 18 de maio de 2001. Consulte-se também C.Otávio.“Os conselhos municipais se multiplicam no país”. O Globo.Rio de Janeiro, 13 de novembro de 2003 pág. 16.

17. cf. hobsbawm, e. Era dos Extremos – O breve século XX,1914-1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

18. O critério de gênero, sob o qual se estrutura o miqcb, podeaparecer também em mobilizações contingentes face a conflitosdeterminados.Para uma ilustração disto consulte-se: castro,Edna e rodriguez, Graciela. As mulheres de Altamira nadefesa da água como direito humano fundamental. Rio deJaneiro. a.s.c. 2004.

19. Na 34a. Assembléia Geral dos Povos Indígenas, organizadapelo Conselho Indígena de Roraima (cir), realizado entre 12 e15 de fevereiro de 2005, na aldeia Maturuca, ti Raposa Serra doSol, com participação de 186 tuxauas foi eleito o novo coordena-dor do cir para o mandato de dois anos. Participaram do pleito177 comunidades, totalizando 7.539 votantes. O tuxaua Mari-naldo Justino Trajano, enfrentando dois opositores, foi eleitocoordenador com 2.711 votos.

20. Do total da população indígena constata-se, consoante oCenso de 2000 do ibge, que 384 mil estão localizados emcentros urbanos, enquanto que 350 mil indígenas vivem naárea rural.

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21. Trata-se de Emílio Kabá, filho de Martinho Kabá Mundu-ruku e Maria Alice Puchu, nascido em 1941 na maloca Itacha-raiba, às margens do Rio Cururu, no Município de Jacareacanga.Saiu da aldeia menino, tendo sido adotado por uma família deSantarém. Aposentou-se como policial-militar e mantém relaçõesregulares com a aldeia através de seu irmão. (cf. informaçõesprestadas pelo próprio, em maio de 2005).

22. cf. novaes, j. araújo, l. e rodrigues, e. Congressoda cidade-construir o poder popular, reinventando o futuro.Belém: Labor. ed. 2002.

23. Consulte-se a propósito o “Laudo Antropológico- identifi-cação das comunidades remanescentes de quilombo em Alcân-tara” .São Luis, setembro de 2002. 385 pp, que foi elaboradopelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, por solici-tação da Sexta Câmara do Ministério Público Federal.

24. A revista Cadernos do IPPUR. Vol. xvi, n. 2. Rio de Janeiro,ufrj, agosto/dezembro de 2002, menciona na chamada decapa os denominados “territórios aquáticos”.

25. cf. almeida, Alfredo Wagner B. de. “Amazonia: a dimen-são política dos “conhecimentos tradicionais”. In: acselrad,Henri. Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Funda-ção Heinrich Boll/Relume&Dumará, 2004, pp. 37-56.

26. Um dos exemplos mais conhecidos neste domínio concerneaos quíchua, que se distribuem pela Bolívia, Peru e Equador eque veneram a “pacha mama” (mãe-terra).

27. São 15 os representantes de movimentos e associações queintegram a Comissão Nacional das Comunidades Tradicionais.

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Representação

165 povos indígenas da

Amazônia, ondevivem 495 mil

índios que representam 68%

da população indígena do País.

30 povos indígenas;

70 mil índios.

6 (seis) povosindígenas

163 mil extrativistas

(seringueiros ecastanheiros)

400 mil “quebradeiras”distribuídas pelo

Maranhão,Tocantins, Piauí e

Pará.

“2 milhões de pessoas”.

Representa asociedade civilorganizada da

Amazônia juntoao ppg-7

108

Movimento /

organização

(1)

coiab (2)

apoinme

uni (3)

coapima

cns

miqcb

conaq (5)

gta

Período ou

Ano de

fundação

1989

1995

1978

2003

1985

1991

1996

1991-92

Sede

Manaus (am)

Recife (pe)

São Paulo (sp)Rio Branco (ac)

Tefé (am)

São Luís (ma)

Rio Branco (ac)

São Luís (ma)

São Luís (ma)

Brasília (df)

Rede de

organizações

vinculadas

75

Dezenas deassociações

(4)

7 regionais com dezenas

de associações

“1.098Comunidadesremanescentesde quilombos”

(6)

Regionais nos 9 Estados da Amazônia,mais de 500

entidades

movimentos sociais

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notas ao quadro

(1) Certamente que este quadro é provisório e acha-se incom-pleto, mas seu propósito cinge-se àquelas associações voluntá-rias da sociedade civil mais diretamente referidas a categoriascompreendidas no significado de “terras tradicionalmenteocupadas”. Neste sentido não inclui entidades sindicais e orga-nizações militantes. Conforme levantamento do Ministério do

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monape

mora (atual mrra)

Movimento dePreservação de

Lagos

ArticulaçãoEstadual de

Fundos e Fechosde Pasto

mab (10)

mabe (11)

Movimento pelaSobrevivência daTransamazônica

apf(ArticulaçãoPuxirão dos

Faxinalenses)

1990

1996

1990

1974-1990(9)

1989

2001

1989

2005

São Luís (ma)

Manaus (am)

Manaus (am)

Salvador(ba)

pr, rgs

Alcântara(ma)

Altamira (pa)

Irati (pr)

2 regionais (7)

Dezenas de associações

Dezenas deassociações

“quase 400associações

agropastoris”

“regionais”

Dezenas deassociações

organizadas p/povoados

Dezenas de associações

20 faxinais(mais 224 foramlevantados em

2007/2008

Pescadores do ma e pa

Ribeirinhos doAmazonas

Ribeirinhos daAmazônia (8)

20 mil famílias,na região

do semi-árido da Bahia

“Mais de 1milhão de

pessoas”em todo o Brasil

Cerca de 15.000pessoas

Mais de 10.000 famílias

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Desenvolvimento Agrário, realizado em julho de 2003, chega-ria a 71 o número de organizações envolvidas em conflitos deterra e em ocupações. Além das 22 federações e seus respectivossindicatos ligados à Confederação Nacional dos Trabalhadoresna Agricultura (contag), fundada em 1963, tem-se o mst eoutras vinte e cinco entidades que começam com o nome de movi-mento, dentre outros: Movimento dos Sem Terra Independente,Movimento de Libertação dos Sem Terra, Movimento dosCarentes sem Terra...

CF. éboli, e.“Campo tem 71 grupos envolvidos emconflitos”. O Globo. Rio de Janeiro, 3 de agosto de 2003.

Não foram, portanto, incluídos neste quadro o Movimentodos Trabalhadores sem Terra (mst), fundado em 1984, em Curi-tiba (pr) e que hoje se estende por todo o País, e o Movimentodos Pequenos Agricultores, que foi fundado no Rio Grande doSul a partir dos chamados “Acampamentos da Seca” que seorganizaram nos meses de janeiro e fevereiro de 1996.

As associações de artesãos e extrativistas do arumã, doBaixo Rio Negro, dos piaçabeiros, do Alto Rio Negro, e dospeconheiros do Baixo Amazonas também não foram incluídas,porquanto estes movimentos se acham em forma embrionáriatendo se organizado principalmente em torno da produção. Emverdade mais se aproximam da noção de cooperativas como aAssociação de Artesãs de Novo Airão (am). Em termos poten-ciais elas apontam para áreas que tem sido tradicionalmenteexploradas de forma comunitária, quais sejam: açaizais, aruman-zais e áreas de incidência de piaçaba; e que deveriam ser objetode políticas específicas de preservação ambiental, através de áreasreservadas.

Segundo este mesmo critério não foram incluídas associaçõesdiretamente referidas aos “faxinais”.De acordo com dados levan-tados no i Encontro dos Povos dos Faxinais, realizado nos dias 5e 6 de agosto de 2005 em Irati, Paraná, haveria no momento atual

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44 faxinais com associações. O representante dos “faxinalenses”na Comissão Nacional de Comunidades Tradicionais é do Faxi-nal dos Seixas, do Município de São João do Triunfo (pr).

Não foram incluídas as duas associações relativas aos ciga-nos, quais sejam aprecci e ccc. Os ciganos tem um repre-sentante na Comissão Nacional de Comunidades Tradicionais.

Não foram incluídas as associações referidas a “terras desanto” e a “irmandades” e tão pouco aquelas referidas a casta-nhais, que foram instituídos nos anos 50 como “castanhais dopovo”.Neste último caso partiu-se do pressuposto de que a repre-sentação estaria contemplada no âmbito do Conselho Nacionaldos Seringueiros, que também se encontra representado na Comis-são Nacional de Comunidades Tradicionais.

(2) A coiab foi fundada em 19 de abril de 1989 e se estruturaem rede e tem suas organizações – membro nos seguintes Esta-dos: Amazonas, 46 (foirn, Associação das Comunidades Indí-genas do Distrito de Yauareté, uncidi, unirt, Associação dasComunidades Indígenas do Rio Tiquié, acirx, acimrn, arci-ne, acibrin, ainbal, aciri, acitrut, aciru, ucirn,atriart, cacir, oibi, ogptb, osptas, opim, meiam,civaja, uni/tefé, cgtt, foccitt, cgtsm, cim, ComissãoIndígena Kanamari, oasism, opism, amarn, amism, amik,amai, amitrut, opimp, opamp, upims, opipam, copiam,aipat, aisma, opittamp, opiam, acinctp e ComunidadeTerra Preta); no Acre, 4 (uni/acre, mpivj, opitarj e opire);no Amapá, 4 (apina, apio, apitu e agm); no Maranhão, 4(Associação Indígena Angico – Tot/Guajajara, Associação dosPovos Guajajara, Krikati e Awá, cipk e Associação Wyty’Catydo Povo Gavião); no Mato Grosso, 3 (aspa, fepoimt e Asso-ciação dos Povos Tapirapé); no Pará, 4 (cita, cimat, amtapa-ma e Associação Indígena Pussuru/Munduruku); em Rondônia,5 (cunpir, Associação Pamaré do Povo Cinta Larga, Organi-

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zação Metarelá do Povo Suruí, apk e cois); em Roraima, 3(cir, opir e apir); e no Tocantins 2 (aix e Conselho das Orga-nizações Indígenas da Bacia Araguaia e Tocantins). cf. Coiab.Unir para organizar, fortalecer para conquistar. Manaus, 2003.

Os povos indígenas tem um representante na ComissãoNacional de Comunidades Tradicionais.

(3) A uni foi fundada em 1978, mas a organização só ganhouprojeção a partir da Assembléia Nacional Constituinte e com aformação da união dos “Povos da Floresta” em 1988. Em setem-bro de 1989 a uni constituiu o Centro de Pesquisas Indígenas,em Goiânia (go).

Para outras informações consulte-se – ricardo, CarlosAlberto – “Quem fala em nome dos índios”. In: Povos indíge-nas no Brasil: 1987/88/89/90. cedi. Aconteceu Especial 18.São Paulo, 1991, p. 69.

(4) As associações das Resex, dentre outras, a Associação dosMoradores da Resex Chico Mendes-Brasiléia (amoreb), Asso-ciação dos Moradores da Resex Chico Mendes-Assis Brasilamoreb (amoreab), Associação dos Seringueiros e Agricul-tores da Resex Alto Juruá (asareaj), Associação dos Morado-res da Resex do Rio Ouro Preto (asrop), Associação dosTrabalhadores Extrativistas da Resex Rio Cajari (astex-ca),estariam inclusas no cns, bem como as associações de áreas deposse, que ladeiam as reservas, como a do Pinda em Brasiléia(ac), e as associações de áreas tituladas também voltadas parao extrativismo.

Estariam inclusas aqui também as associações que envol-vem seringueiros brasileiros que trabalham em seringais daregião de Pando, na Bolívia, cognominados de brasivianos eque participam com direito a voto nos Encontros Nacionais dosSeringueiros.

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No que tange a estes trabalhadores que tem migrado pelasfronteiras internacionais da Amazônia, com ocupação recente deáreas, poderiam ser mencionados ainda: garimpeiros brasileirosno Suriname, agrupados na Cooperativa de Garimpeiros, quetem sede em Paramaribo, mas que exploram ouro aluvional emdiferentes pontos do País, e trabalhadores brasileiros na GuianaFrancesa tanto os organizados em torno de documentação reque-rida para exercício de ocupação profissional, quanto os que selocalizam clandestinamente em áreas próximas ao Rio Maroni.Para outras informações consulte-se:

carvalho martins, Cynthia. Os deslocamentos comocategoria de análise-agricultura e garimpo na lógica camponesa.Dissertação apresentada ao Mestrado em Políticas Públicas daufma, São Luis, 2000.

esteves, Benedita m.g. Do “manso” ao Guardião daFloresta-estudo do processo de transformação social do sistemaseringal a partir do caso da Reserva Extrativista Chico Mendes.Tese de Doutorado. cpda–ufrr. Rio de Janeiro, 1999.

soares, Ana Paulina a. Travessia: análise de uma situaçãode passagem entre Oiapoque e Guiana Francesa. Dissertação demestrado apresentada ao Departamento de Geografia da fflchda usp, São Paulo, 1995.

Não foram incluídos ainda os chamados “brasiguaios”, quese distribuem pelas áreas fronteiriças com o Paraguai, nem tãopouco os chamados “brasivianos”, seringueiros brasileiros queadentraram na Bolívia.

(5) A Coordenação Nacional de Articulação das ComunidadesNegras Rurais Quilombolas (conaq) é uma organização nacio-nal e foi criada em 1996, em Bom Jesus da Lapa (ba), na reuniãode avaliação do i Encontro Nacional de Quilombos (1995).Dela participaram representantes de comunidades de dezoitoUnidades de Federação, além de entidades do Movimento Negro

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e ligadas à questão agrária que apóiam a luta dos quilombolas.Os quilombolas tem um representante na Comissão Nacionalde Comunidades Tradicionais.

(6) “Segundo estudos do Projeto Vida de Negro (SociedadeMaranhense de Direitos Humanos e Centro de Cultura Negrado Maranhão) e levantamentos da Fundação Cultural Palmaresdo Ministério da Cultura, Universidade de Brasília (UnB) e Asso-ciação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (acone-ruq ) constituiu-se um mapeamento preliminar de 1.098comunidades quilombolas.Estas comunidades estão presentes emquase todos os Estados brasileiros, com exceção de Roraima,Amazonas, Acre, Rondônia e Distrito Federal.” cf. conaq/aconeruq/cohre – Campanha Nacional pela Regularizaçãodos Territórios de Quilombos. Direito à Moradia – Regulariza-ção dos Territórios de Quilombos. São Paulo, agosto de 2003.

(7) Estas regionais são designadas respectivamente de Movimen-to dos Pescadores do Pará (mopepa) e Movimento dos Pesca-dores do Maranhão (mopema). O monape tem representaçãona Comissão Nacional de Comunidades Tradicionais.

(8) De 19 a 23 de julho de 1999, ocorreram simultaneamente naMaromba, em Manaus-am, o xv Encontro de Ribeirinhos doAmazonas e i Encontro de Ribeirinhos da Amazônia com oapoio da Comissão Pastoral da Terra e da cese (CoordenadoraEcumênica de Serviços). Participaram mais de 100 (cem) delega-dos, representando Comunidades de Ribeirinhos de toda a regiãoAmazônica.

Em 2002 no iv Encontro de Mulheres TrabalhadorasRurais e Ribeirinhas, realizado em Manaus, foi criado o Movi-mento de Mulheres Trabalhadoras Ribeirinhas do Estado doAmazonas com os objetivos seguintes: “documentar 50 mil

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mulheres até o final de 2005. Capacitar no período de três anos35 novas lideranças para assumir equipe regional e Nacional.Conquistar vagas nos Conselhos Municipais , estaduais e Fede-ral.” (cf. folder do mmtr-am).

(9) A Central de Fundos de Pasto de Senhor do Bonfim foi funda-da em 2 de setembro de 1974.

Para maiores esclarecimentos sobre esta questão consulte-sedocumento intitulado “O Fundo de Pasto que queremos – Políti-ca Fundiária e Agrícola para os Fundos de Pasto Baianos” .Salva-dor (ba), abril de 2003, s/autoria.

Não foram levantadas informações sobre organizaçõesestruturadas em torno do uso de áreas comuns de pastoreio emPernambuco e Ceará, embora sejam registradas nestas unidadesda federação sob outras designações como: “terras soltas” e“terras abertas”.

O Projeto Geografar – cnpq/igeo/ufba, coordenadopela geógrafa Guiomar Germani, levantou no decorrer de 2003,em 23 Municípios Baianos (Andorinhas, Antonio Gonçalves,Brotas de Macaúbas, Buritirama, Campo Alegre de Lourdes,Campo Formoso, Canudos, Casa Nova, Curaçá, Itiúba, Jagua-rari, Juazeiro, Mirangaba, Monte Santo, Oliveira dos Brejinhos,Pilão Arcado, Pindobaçu, Remanso, Santo Sé, Seabra, Sobradi-nho, Uauá, Umburanas), um total de 255 associações de peque-nos produtores rurais. Estas associações muitas vezes trazem nasua denominação o nome do fundo de pasto a que sereferem.Este nome pode estar ligado ao uso comum de recursoshídricos, à figura daquele que foi pioneiro no uso dos recursosou a sentimentos religiosos ou ainda a fartura e beleza da terra.Assim tem-se referencias a aguadas, poços e nascentes, tais como:Fundo de Pasto Lagoa das Baraúnas, Fundo de Pasto Olhod’Água e Fundo de Pasto Lagoa do Anselmo. Tem-se tambémreferencias que denotam um sentido bíblico e que evocam a

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proteção de divindades tais como: Fundo de Pasto Nossa Senho-ra da Conceição, Fundo de Pasto de Bom Jesus dos Campos eFundo de Pasto de Terra Prometida.Tem-se Também referenciasque afirmam uma beleza perene da natureza, tais como: Fundode Pasto Primavera e Fundo de Pasto Bom Jardim. Tem-se aindareferências a quem localizou ou abriu os recursos, assegurandoseu uso comum, tal como no caso do Fundo de Pasto de Anto-nio Velho.

As comunidades de “fundos de pasto” tem um represen-tante no Conselho Nacional das Comunidades Tradicionais.

(10) Três situações sociais de resistência a deslocamentoscompulsórios de populações por parte do Estado, que principia-ram no final dos anos 70, caracterizam a formação do Movimen-to dos Atingidos por Barragens, segundo o Caderno n. 7 do MAB

intitulado “mab: uma história de lutas, desafios e conquistas”:“Primeiro na região Nordeste, no final dos anos 70, a constru-ção da uhe de Sobradinho no Rio São Francisco, onde mais de70.000 pessoas foram deslocadas, e mais tarde com a uhe deItaparica foi palco de muita luta e de mobilização popular,Segun-do no Sul, quase que simultaneamente em 1978, ocorre o inícioda construção da uhe de Itaipu, na bacia do rio Paraná, e éanunciada a construção das Usinas de Machadinho e Ita na baciado Rio Uruguai, que criou um grande processo de mobilizaçãoe organização na região. Terceiro na região Norte, no mesmoperíodo, o povo se organizou para garantir seus direitos frentea construção da uhe de Tucuruí.” ( mab; s/d: pág. 6).

Para outras informações sobre o mab e suas experiênciasorganizativas consulte-se o Manual do Atingido (vainer, c. evieira, f.; 2005).

(11) O Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcân-tara foi fundado em julho de 2001 e congrega representações

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de pelo menos 139 (cento e trinta e nove) povoados, localiza-dos nos 62 mil hectares da área desapropriada para instalaçãodo Centro de Lançamento, e cerca de 30 povoados localizadosem áreas circundantes. Defende o reconhecimento do territórioétnico, que congrega diferentes territorialidades específicas(“terras de preto”, “terras de santíssima”, “terras de santo”,“terras da santa”, “terras da pobreza”, “terras de caboclo”,entre outras), que estão construindo sua expressão política eidentitária a partir de uma relação sistêmica entre as famíliasdos diversos povoados, que congregam cerca de 12.500pessoas. Os laços de coesão social se consolidaram a partir daresistência contra a implantação da base militar, que em 1986/87conseguiu deslocar compulsoriamente 312 famílias. Um dosmarcos assinalados pelos próprios agentes sociais, para explicara retomada da mobilização a partir de fatores étnicos, trata-sedo seminário “Alcântara: A Base espacial e os Impasses Sociais”,realizado entre 11 e 14 de maio de 1999.

(12) O Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica,sediado em Altamira (pa), desde 1989, se estruturava segundo umcritério regional, abrangendo a população dos Municípiosparaenses que ladeiam ou são cortados pela rodovia Transama-zônica, construída no início dos anos 70. No momento atual estaforma organizativa foi substituida e ampliada com seus integran-tes se agrupando em torno do Movimento pelo Desenvolvimen-to da Transamazônica e do Xingu.

Este Movimento denunciou através do Of. Circular n. 24,de 12 de janeiro de 2005, a “Ocupação armada na ReservaExtrativista Riozinho do Anfrísio”.

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O S P RO C E S S O S D E

T E R R I TO R I A L I Z A Ç Ã O

H á, portanto, diferentes processos de territorializaçãoem curso que devem ser objeto de reflexão detida.

Babaçuais, castanhais e seringais, sob este prisma, nãosignificam apenas incidência de uma espécie vegetal numaárea ou uma “mancha”, como se diz cartograficamente,mas tem uma expressão identitária traduzida por extensõesterritoriais de pertencimento. De igual modo os chamados“faxinais” e os denominados “fundos de pastos” nãopodem ser reduzidos a simples áreas de criatório comum.Esta expressão, processo de territorialização, tenta propi-ciar instrumentos para 4 compreender como os territóriosde pertencimento foram sendo construídos politicamenteatravés das mobilizações por livre acesso aos recursosbásicos em diferentes regiões e em diferentes tempos histó-ricos. O processo de territorialização é resultante de umaconjunção de fatores, que envolvem a capacidade mobili-zatória, em torno de uma política de identidade, e umcerto jogo de forças em que os agentes sociais, através desuas expressões organizadas, travam lutas e reivindicamdireitos face ao Estado. As relações comunitárias nesteprocesso também se encontram em transformação, descre-vendo a passagem de uma unidade afetiva para uma unida-de política de mobilização ou de uma existência atomizadapara uma existência coletiva. A chamada “comunidadetradicional” se constitui nesta passagem. O significado de“tradicional” mostra-se, deste modo, dinâmico e como umfato do presente, rompendo com a visão essencialista e de

118 terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”,faxinais e fundos de pastos: terras t radic ionalmente ocupadasAlfredo Wagner

Berno de Almeida

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fixidez de um território, explicado principalmente por fato-res históricos ou pelo quadro natural, como se a cadabioma correspondesse necessariamente uma certa identida-de. A construção política de uma identidade coletiva,coadunada com a percepção dos agentes sociais de que épossível assegurar de maneira estável o acesso a recursosbásicos, resulta, deste modo, numa territorialidade especí-fica que é produto de reivindicações e de lutas. Tal territo-rialidade consiste numa forma de interlocução comantagonistas e com o poder do estado.

Para se ter uma ordem de grandeza destas territoriali-dades especificas, que não podem ser lidas como “isoladas”ou “incidentais”, pode-se afirmar o seguinte: dos 850milhões de hectares no Brasil cerca de ¼ não se coadunamcom as categorias “estabelecimento” e “imóvel rural” e assimse distribuem: cerca de 12% da superfície brasileira ouaproximadamente 110 milhões de hectares, correspondema cerca de 600 terras indígenas. As terras de quilombo, esti-ma-se oficialmente que correspondam a mais de 30 milhõesde hectares. Em contraste as terras de quilombos tituladascorrespondem a cerca de 900 mil hectares. Os babaçuaissobre os quais as quebradeiras começam a estender as Leido Babaçu Livre, correspondem a pouco mais de 18milhões de hectares, localizados notadamente no chama-do Meio-Norte. Em contrapartida as reservas extrativistasde babaçu não ultrapassam a 37 mil hectares. Os seringaisse distribuem por mais de 10 milhões de hectares e são obje-to de diferentes formas de uso. Embora o Polígono dosCastanhais, no Pará, tenha hum milhão e duzentos milhectares, sabe-se que há castanhais em Rondônia, noAmazonas e no Acre numa extensão não inferior a 15milhões de hectares, não obstante a extensão dos desmata-mentos. Em contrapartida as reservas extrativistas de casta-

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nha, de “seringa” e de pesca perfazem menos de 10% dototal das áreas com incidência de extrativismos, ou seja, umtotal de 3.101.591 hectares, com população de 36.850habitantes. Certamente que há riscos de dupla contagem aserem considerados, posto que há terras indígenas e dequilombos nas regiões ecológicas do babaçu, da castanhae da seringueira. Acrescentando-se a estas extensões aquelasdos extrativistas do açaí, do arumã e/ou dos chamados“ribeirinhos” e das associações de “fundo de pasto” (naregião do semi-árido), dos “faxinais” e demais povos egrupos sociais que utilizam os recursos naturais sob a formade uso comum – numa rede de relações sociais complexas,que pressupõem cooperação simples no processo produti-vo e nos fazeres da vida cotidiana – tem-se um processo deterritorialização que redesenha a superfície brasileira,produzindo uma cartografia social singular e lhe emprestaoutros conteúdos sociais condizentes com as novas ma-neiras segundo as quais se organizam e autodefinem ossujeitos sociais1. Em verdade tem-se a construção de iden-tidades específicas junto com a construção de territóriosespecíficos. O advento de categorias como os chamados“sem terra” e os “índios misturados”2, também podempermitir um entendimento mais acurado deste processo.Anote-se que novos povos indígenas estão surgindo, tantona Amazônia, quanto no Nordeste ou no Sudeste doPaís.Veja-se o exemplo do Ceará que vinte anos atrás oficial-mente não registrava índios e hoje possui mais de dez povosindígenas. Concomitante ao “surgimento” tem-se critériospolítico-organizativos que se estruturam em cima dademanda por terras. As terras vão sendo incorporadas paraalém de seus “aspectos físicos”, segundo uma idéia de redede relações sociais cada vez mais fortalecida pelas autode-finições sucessivas ou pela afirmação étnica.

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Para bem ilustrar isto retome-se a leitura dos dadoscensitários: o Censo Demográfico de 2000 constata que ospovos reunidos sob a classificação de “indígenas” foram osque tiveram a maior taxa de crescimento populacionalentre 1991 e 2000. Cresceram a uma taxa anual de 10,8%,duplicando sua participação no total da população brasi-leira de 0,32% para 0,4%. Sublinhe-se que neste mesmoperíodo a população total do Brasil cresceu a uma taxa de1,6% ao ano. Os que se autodeclararam “pretos”3 aumen-taram 4,2%. O crescimento de “indígenas” e de “pretos”não se deveu à multiplicação da população de aldeias ecomunidades negras, mas a uma mudança na maneira deautoidentificação do recenseado. Sim, as pessoas estão seautodenominando de encontro a identidades de afirmaçãoétnica, que pressupõem territorialidades específicas.Elegendo a região Norte, Amazônia, constatamos queapenas 29,3% se autodenominam “brancos”, todos osdemais, ou seja, mais de 2/3 da população se apresentamcomo “indígenas”, “pretos” e “pardos”. Em outras palavrasa Região Norte teria uma “composição étnica” que aparen-temente, pelo percentual dos autodeclarados “brancos”,mais poderia ser aproximada de paises como a Bolívia, Perue Equador.

Assim, juntamente com os processos diferenciados deterritorialização, tem-se a construção de uma nova “fisio-nomia étnica”, através da autodeclaração do recenseado, ede um redesenho da sociedade civil, pelo advento de cente-nas de movimentos sociais, através da autodefinição cole-tiva e de formas organizativas intrínsecas. Todos estesfatores concorrem para compor o campo de significados doque se define como “terras tradicionalmente ocupadas”, emque o tradicional não se reduz ao histórico e incorpora prin-cipalmente reivindicações do presente com identidades

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coletivas redefinidas situacionalmente numa mobilizaçãocontinuada.

As políticas ambientais e agrárias ressentem, nestesentido, da incorporação dos fatores étnicos e identitáriosnos seus instrumentos de intervenção direta e daquelesoutros recursos técnicos que lhes possam permitir umacompreensão mais precisa das modalidades de uso comumvigentes. Definir oficialmente unidades de conservaçãoapenas pela incidência de espécies4 e operar com as cate-gorias cadastrais e censitárias convencionais significa incor-rer no equívoco de reduzir a questão ambiental a umaação sem sujeito.

Os movimentos sociais apresentam-se como um fatorde existência coletiva que contestam esta insistência nosprocedimentos operativos de ação sem sujeito e que buscamderrubar os demais obstáculos que impedem o reconheci-mento legal das “terras tradicionalmente ocupadas”. Aforça desta contestação parece estar se tornando umproblema da ordem do dia do poder. A mais recente medi-da nesta direção, conforme já foi assinalado, data de 27 dedezembro de 2004, quando o governo federal decretoua criação da Comissão de Desenvolvimento Sustentável dasComunidades Tradicionais5 com vistas a implementar umapolítica nacional especialmente dirigida para tais comuni-dades. Como corolário bem o evidenciam os preparativospara o i Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais,realizado entre 17 e 19 de agosto de 2005 em Brasília. Aforma de convocação para participar já traduziu umacerta modalidade de reconhecimento dos movimentossociais em jogo e de suas pautas básicas.Da mesma manei-ra a escolha dos membros da Comissão Nacional dasComunidades Tradicionais, para além de qualquer critériopretensamente “objetivo” (demográfico, regional, por

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bioma, por maior ou menor visibilidade social, por exten-são da rede de associações vinculadas, por número defiliados etc), assinalou o reconhecimento oficial de umacerta maneira de se expressar politicamente que nãopassa por uma modalidade homogênea de representação.

De maneira sumária, pode-se concluir que a diversida-de político-organizativa está prevalecendo como ponto departida para a construção de uma forma de representaçãodiferenciada. Tal representação torna os movimentos sociaisum lugar político potencialmente relevante, posto que asmobilizações dos agentes a eles referidos tem conduzido àcoexistência de diferenças étnicas e de distintas ocupaçõese atividades econômicas. Isto rompe com as visões dicotô-micas usuais. Ao contrário do que se poderia supor, nãoestaria ocorrendo uma convergência de interesses, resultan-do numa homogeneização jurídica, que freqüentemente éassinalada como uma característica positiva da “globaliza-ção”. Não estaria ocorrendo também uma fragmentaçãoindefinida de identidades coletivas, debilitando os laços desolidariedade política e enfraquecendo as formas associati-vas, tal como teria ocorrido com os sindicatos de trabalha-dores, consoante os efeitos das medidas de inspiraçãoneo-liberal. Neste sentido, não se está diante do “tradicio-nal” que resiste às políticas governamentais “modernas”,mas sim do “tradicional” que é construído a partir dofracasso destas políticas em assegurar, para além do discur-so, o que dizem ser um “desenvolvimento sustentável”.Aqueles agentes sociais que quinze anos atrás eram consi-derados como “residuais” ou “remanescentes” hoje serevestem de uma forma vívida e ativa, capaz de se contra-por a antagonistas que tentam usurpar seus territórios.

Transcendendo à expressão organizativa pode-sedizer que é do prisma da intensidade das reivindicações de

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reconhecimento legal das territorialidades específicas, pelasquais se batem os movimentos sociais, que está colocadaem xeque a reestruturação formal do mercado de terraspreconizada pelas agencias multilaterais. É deste ponto devista que pretendo chamar a atenção para a relevância dese estudar a relação entre as “terras tradicionalmenteocupadas” e os processos diferenciados de territorializaçãoque lhes são correspondentes no momento atual.

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notas – Os processos de territorialização

1. Pode-se cotejar este percentual com o fato de que há 200milhões de hectares sobre os quais o cadastro do incra nãopossui qualquer informação. As terras cadastradas referem-se asomente 650 milhões de hectares. Em virtude disto delineia-semais uma ação governamental inócua pois sem modificar asatuais categorias censitárias e cadastrais, o incra pretendeimplantar a partir de março de 2004 o Sistema Nacional deCadastro de Imóveis Rurais.

2. Registrei a categoria “mistura” como forma autoidentitáriaem pelo menos duas situações: na fala dos quilombolas deConceição das Crioulas (pe) e no Faxinal dos Marmeleiros(pr). A maneira dos agentes sociais, quilombolas e “faxinalen-ses”, se autorepresentarem passa pelo que eles nomeiam de“mistura” ou seja situações resultantes de casamentos entreíndios e negros ou entre índios e imigrantes italianos. Consul-te-se a propósito: Pacheco de Oliveira, J. “Uma etnologia dos“indios misturados”: Situação colonial, territorialização efluxos culturais.” P. de Oliveira (org.) A viagem de volta-Etni-cidade, política e reelaboração cultural no Nordeste Indígena.Rio de Janeiro, Contra Capa, 1999, pp. 11-40.

3. ibge utiliza o termo “preto” e não o termo “negro” comoclassificatório. A categoria censitária “preto” entre 1872, datado primeiro Censo, e 1991 apresenta um declínio percentual, ouseja, em 1872 representava 19,68% da população total; em 1890

representava 14,63%; em 1950 representava 10,96% e em 1960,8,71%, em 1980, 5,92%, em 1991, 5,01%. São 119 anos dedeclínio constante, como a sinalizar que estaria ocorrendo um“embranquecimento” da população. No ano de 2000, entretan-to, houve um crescimento percentual superior ao dos chamados

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“brancos”, quebrando a série de mais de um século de declínio.As pessoas que se autodeclararam “pretos” aumentaram em quase40% entre os dois censos , de 1991 e 2000.

4. Consoante as determinações do Art. 57 da Lei n. 9.985foram registrados, segundo o ibama, 28 casos de superposi-ção entre terras indígenas e unidades de conservação. Oscasos mais conflitantes seriam os parques nacionais deMonte Pascoal, Araguaia, Neblina e Estação Ecológica deIquê.Consoante parecer do assessor jurídico do cimi, PauloGuimarães: “Regularizar a superposição de Unidade de Prote-ção Integral (...) implica em inconstitucionais restrições à possepermanente e ao usufruto exclusivo dos povos indígenas às rique-zas naturais existentes nas terras que tradicionalmente ocupam,pelo fato de neste tipo de unidade de conservação ser “admiti-do apenas o uso indireto dos seus recursos naturais”. cf .Porantim ano xxii-n. 230. Brasília, novembro de 2000 pág. 9.

5. cf. Decreto de 27 de dezembro de 2004. In Diário Oficial daUnião-Seção i, Ed. n. 249 ( Seção – Atos do Poder Executivo),28 de dezembro de 2004 p.4. Em abril de 2005 este Decreto foireeditado com o n. 10.408.

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TERRAS DE PRETO, TERRAS

DE SANTO, TERRAS DE ÍNDIO

USO COMUM E CONFLITO

sistemas de uso comum na estrutura agrária

U m aspecto freqüentemente ignorado da estruturaagrária brasileira refere-se às modalidades de uso

comum da terra. Analiticamente, elas designam situaçõesna quais o controle dos recursos básicos não é exercido livree individualmente por um determinado grupo doméstico depequenos produtores diretos ou por um de seus membros.Tal controle se dá através de normas específicas instituídaspara além do código legal vigente e acatadas, de maneiraconsensual, nos meandros das relações sociais estabeleci-das entre vários grupos familiares, que compõem umaunidade social. Tanto podem expressar um acesso estávelà terra, como ocorre em áreas de colonização antiga,quando evidenciam formas relativamente transitóriasintrínsecas às regiões de ocupação recente.

A atualização destas normas ocorre em territóriospróprios, cujas delimitações são socialmente reconhecidas,inclusive pelos circundantes. A territorialidade funcionacomo fator de identificação, defesa e força. Laços solidá-rios e de ajuda mútua informam um conjunto de regrasfirmadas sobre uma base física considerada comum, essen-cial e inalienável, não obstante disposições sucessórias,

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porventura existentes. De maneira genérica estas exten-sões são representadas por seus ocupantes e por aqueles deáreas lindeiras sob a acepção corrente de “terra comum”.

Por seus desígnios peculiares, o acesso à terra para oexercício das atividades produtivas, se dá não apenas atra-vés das tradicionais estruturas intermediárias da família,dos grupos de parentes, do povoado ou da aldeia, mastambém por um certo grau de coesão e solidariedade obti-do face a antagonistas e em situações de extrema adversi-dade, que reforçam politicamente as redes de relações sociais.A não ser que existam relações de consangüinidade, estrei-tos laços de vizinhança e afinidade ou rituais de admissão,que assegurem a subordinação de novos membros àsregras que disciplinam as formas de posse e uso da terra,tem-se interditado o acesso aos recursos básicos.

A limitação da força imperativa destas normas a dife-rentes territórios descontínuos e dispersos geografica-mente, com fundamentos históricos e etnológicos os maisdiversos, chama a atenção para possíveis invariantes coex-tensivos ao constante significado de” terra comum”. Maisnão dados a conhecer ao se privilegiar a territorialidadecomo unidade de recorte, desdobrando-se uma multiplici-dade de categorias co-irmãs, tais como “terras de parente”,“terras de preto”, “terras de índio”, “terras de santo”, como objetivo de proceder a uma investigação científica deprocessos sociais inseparavelmente vinculados a estasnormas e aos grupos que as promulgam e acatam.

noções pré-concebidas: desconhecimento e irrelevância

Os sistemas de usufruto comum da terra por colidiremflagrantemente com as disposições jurídicas vigentes e com

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o senso comum de interpretações econômicas oficiosas e jácristalizadas, a despeito de factualmente percebidos, jamaisforam objeto de qualquer inventariamento. As extensõesque lhes correspondem nunca foram catalogadas, quanti-ficadas ou sujeitas às técnicas dos métodos estatísticos e decadastramento de imóveis adotadas pelos órgãos de plane-jamento da intervenção governamental na área rural.Prevalece a inexistência de qualquer “interesse prático”para examinar e compreender estes sistemas tidos como“obsoletos”. Representariam, sob este prisma, anacronis-mos mais próprios de crônicas históricas, de documentosembolorados de arquivos, de verbetes dos dicionários defolclore e de cerimônias religiosas e festas tradicionais. Sãovistos como uma recriação intelectual de etnógrafos, queincorrem na reedição de antigos mitos ou, quem sabe,numa idealização dos políticos de ação localizada suposta-mente empenhados no reavivamento de utopias caras aoideário populista.

As manifestações daqueles sistemas são, entretanto,empiricamente detectáveis por um conjunto finito de espe-cialistas. Tem sido registradas por pesquisadores e cientis-tas sociais, que desenvolvem trabalhos de campo e deobservação direta, por técnicos de órgãos governamentaisque realizam vistorias de imóveis rurais e verificações inloco de ocorrência de conflitos agrários, assim como porintegrantes de entidades confessionais e voluntárias deapoio aos movimentos dos trabalhadores rurais, que execu-tam atividades análogas.

O censo agropecuário da fibge (1980) acusa tãosomente os denominados “pastos comuns ou abertos”,assim mesmo em menção contida na Introdução e noscomentários à conceituação adotada no recenseamento,sem qualquer referência à sua dimensão, às áreas geográfi-

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cas em que se verificam, à relevância de sua produção e acasos semelhantes em atividades agrícolas. Por força deuma redução metodológica não apenas a propriedade e aposse, mas também suas formas derivadas, parecem sediluir na complexidade da categoria censitária “estabeleci-mento”, indiferentes às particularidades que regem oprocesso produtivo das unidades de produção familiardispostas naqueles mencionados sistemas.

As análises econômicas, ao se omitirem na interpreta-ção das modalidades de uso comum da terra, fundam-se,no mais das vezes, em noções deterministas para expor oque classificam como sua absoluta irrelevância. Consideramque se trata de formas atrasadas, inexoravelmente conde-nadas ao desaparecimento, ou meros vestígios do passado,puramente medievais, que continuam a recair sobre oscamponeses, subjugando-os. Neste enfoque, referem-se àsterras de uso comum e a este estrato da camada campo-nesa que lhes corresponde, como formas residuais ou“sobrevivências” de um modo de produção desaparecido,configuradas em instituições anacrônicas que imobilizamaquelas terras, impedindo que sejam colocadas no mercadoe transacionadas livremente. Fatores étnicos, a lógica daendogamia e do casamento preferencial, as regras de suces-são e demais preceitos, que porventura reforcem a indivi-sibilidade do patrimônio daquelas unidades sociais, sãointerpretados como um obstáculo à apropriação individuale por conseguinte, a que a terra seja livremente disposta nomercado. Não autorizando formal de partilha ou mecanis-mos de fracionamento que permitam a indivíduos dispô-lasàs ações de compra e venda, aqueles sistemas de uso comumda terra são entendidos como imobilizando a terra, enquan-to mercadoria no seu sentido pleno, e impedindo que seconstitua num fator de produção livremente utilizado.

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Mediante tais argumentos, as interpretações ortodo-xas2 delineiam um quadro de desintegração potencialdaqueles sistemas, porquanto fadados ao aniquilamentopelo progresso social e pelo desenvolvimento das forçasprodutivas. Em suma, consideram que a expansão capita-lista no campo necessariamente libera aquelas terras aomercado e à apropriação individual provocando uma trans-formação radical das estruturas que condicionam o seu uso.Às análises econômicas assim elaboradas, soam, portanto,indiferentes quaisquer das particularidades que caracteri-zam as formas de posse e uso comum da terra, visto quejamais constituem um obstáculo insuperável ao desenvol-vimento capitalista3.

questão imposta pelas mobilizações camponesas

Numa conjuntura política favorável ao reconhecimento dosdireitos dos trabalhadores rurais de acesso à terra, a questãodo conhecimento aprofundado das suas modalidadesconcretas de apropriação dos recursos básicos colocou-secomo objeto necessário de reflexão. Com a intensificaçãodas mobilizações camponesas por uma reforma agráriaampla e imediata, que teve um de seus pontos mais altosno iv Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, reali-zado em Brasília entre 15 e 30 de maio de 1985, ocasiãoem que foi lançada pelo Mirad-Incra a Proposta ao i Planode Reforma Agrária da Nova República, as suas reivindi-cações foram desdobradas e detalhadas pormenorizada-mente, revelando a própria força política adquirida pelomovimento social. Inúmeras situações menosprezadas noperíodo ditatorial, passaram a representar questões priori-tárias e, assim, colocadas aos órgãos fundiários oficiais.

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Os sistemas de apossamento pré-existentes em áreas passí-veis de desapropriação e regularização, já ocupadas porcamponeses, consistiam dentre muitos outros, num destespontos4. A partir daí estavam estabelecidas as pré-condiçõespara se colocar o problema da pertinência dos sistemas deuso comum da terra e sua importância econômica, tantoem regiões de colonização antiga, quanto em áreas deocupação recente. De maneira concomitante, impunha-seademais uma reflexão detida e ágil, assim como medidasurgentes, de caráter emergencial, que assegurassem a perma-nência dos trabalhadores nestas terras. Isto porquanto asituação dominial geralmente indefinida e as dificuldadesde reconstituição das cadeias dominiais tornavam estasáreas preferenciais à ação dos grileiros e de novos gruposinteressados em adquirir vastas extensões. Mais de umacentena e meia de zonas críticas de tensão e conflito social,registradas oficialmente no decorrer de 1985 e 1986, noNorte de Goiás, no Maranhão, no Pará, no Ceará, na Bahiae no Sertão de Pernambuco, referiam-se àquelas situações5.

Derivam, assim, das pressões encetadas pelos trabalha-dores rurais a instrução preliminar de processos com vistasà desapropriação de inúmeros imóveis rurais e procedimen-tos técnicos de reconhecimento das denominadas “terrascomum”, como algumas medidas que objetivavam aprimo-rar os dados do cadastro técnico do Incra. Começavam aser criadas pois, as condições estatísticas elementares à suacompreensão. Neste âmbito, um primeiro esforço no senti-do de um registro sistemático destas extensões de usocomum é muito recente e data de julho de 1986. Trata-sedo denominado Laudo Fundiário (lf), elaborado peloIncra, que se destina a levantar informações sobre osimóveis rurais e seus detentores a qualquer título, parcei-ros e arrendatários. Nas áreas em que for aplicado o lf

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substituirá integralmente a Declaração de Imóveis Rural –dp. Neste documento, as terras de uso comum receberama denominação genérica de “ocupações especiais”, abran-gendo dentre outras, as chamadas “terras de santo”, “terrasdos indios” (que não devem ser confundidas com as terrasindígenas), “terras de negro”, “fundos de pasto” e “pastoscomuns”, também cognominados “terras abertas”,“terras soltas” e “campos”6.

Pode-se asseverar que as demandas sociais provocaramconhecimentos de realidades localizadas, mesmo que nãose possa confiar no rigor da aplicação dos questionáriosdo lf, nos procedimentos burocráticos de coligir os dadose nos resultados finais, que deverão se apurados em apro-ximadamente cinco anos. As apreensões neste sentido,justificadamente, aumentam com a derrocada geral da“reforma agrária da Nova República”, cuja pá de calconsistiu no decreto que estabelece limites de áreas para osimóveis rurais a serem objeto de desapropriação por inte-resse social e que extingue o Incra, datado de 22 de outu-bro de 1987.

Não é possível confundir, todavia, o tempo e o produ-to das ações fundiárias com as características peculiaresàqueles sistemas de uso comum aqui referidos. Tais siste-mas representam resultados de uma multiplicidade de solu-ções engendradas historicamente por diferentes segmentoscamponeses para assegurar o acesso à terra, notadamenteem situações de conflito aberto. Para tanto foram sendoerigidas normas de caráter consensual e consoantes cren-ças mágicas e religiosas, mecanismos rituais e reciprocida-des econômicas positivas. A sua aceitação como legítimasnão pressupõe qualquer tipo de imposição. Não consti-tuem, portanto, resultado de injunções pelo uso da força,da persuasão política, religiosa ou do saber. Tampouco

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consistem em projetos elaborados para camponeses, forade seus marcos políticos e sociais intrínsecos, ou comcamponeses, a partir de experiências de mobilização apoia-das por organizações formais.

Procedendo-se a esta clivagem pode-se entender, emcerta medida, porque não foram referidas ações implemen-tadas pela Igreja Católica e entidades confessionais que esti-mulam as chamadas “roças comunitárias” e as experiênciasde “coletivação no campo”7. Também não foram referidosos denominados projetos de assentamento “em forma de ex-ploração de tipo coletivo” levados a cabo por órgãos fundiá-rios oficiais, tais como o Incra, no caso do Saco de Belém8,no Ceará, e o iaf, no caso de Pirituba, em São Paulo9.

Outros esclarecimentos se colocam. As reflexões oradesenvolvidas apóiam-se na literatura produzida poraquele, já mencionado, conjunto finito de especialistas. É,no entanto, vária em gênero. Compreende artigos, ensaios,dissertações de mestrado e exercícios acadêmicos, bemcomo trabalhos de investigação histórica. Abrange aindarelatórios, dossiês e informações técnicas produzidas noâmbito da burocracia estatal. Em suma, trata-se de diferen-tes modalidades de conhecimento baseadas em eventosempiricamente observáveis. O que caracteriza esta produ-ção intelectual e permite aproximá-la é a constatação deque aí os referidos sistemas são factualmente percebidos eparcialmente descritos mesmo que de maneira tangencialaos objetivos precípuos de cada um dos textos arrolados.Prepondera, nesta ordem, a produção antropológica, resul-tado de trabalhos de campo realizados nos últimos quinzeanos, secundada pela produção dos técnicos dos órgãosoficiais de ação fundiária, fruto da observação direta e deverificações locais de conflitos, empreendidas entre junhode 1985 e dezembro de 1986. Cabe esclarecer que nesta

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produção as terras de uso comum não se constituíram emobjetos de reflexão destacados, sendo tão somente consi-derados no decorrer das análises. Este destaque relativoadquire importância, porque não se pode entender a econo-mia dos pequenos produtores, dos casos em pauta, semlevá-los em conta. Nas circunstâncias de aplicação diretade conhecimento como em se tratando dos relatórios alusi-vos às populações atingidas pela construção de barragens(Itaparica, Brumado – ba ) ou de complexos militares(Centro de Lançamento de Alcântara), impõem-se, contu-do, como dados fundamentais, face às medidas preconiza-das de remoção e reassentamento. Aliás os relatórioscitados, sem exceção, dizem respeito a trabalhos de açãolocalizada face a conflitos e tensões sociais, cujo grau deantagonismo pressupõe medidas emergenciais.

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uso comum nas regiões de colonização agrária

fundamentos históricos e descrição

O s sistemas de uso comum nas regiões de colonizaçãoantiga podem ser observados sob formas as mais

variadas e com certos aspectos fundamentais comuns, tantode natureza histórica, quanto relativos ao tipo de agricul-tura desenvolvida. Tais aspectos bem os distinguem, emtermos qualitativos, daquelas referencias históricas geral-mente acionadas e concernentes às “sobrevivências” e“vestígios feudais”. Contrariando as interpretações decunho evolucionista, observa-se que antes mesmo daque-les sistemas mencionados terem suas bases assentadas emoutros modos de produção, como o escravismo ou o feuda-lismo, representam, em verdade, produtos de antagonismose tensões peculiares ao próprio desenvolvimento do capi-talismo. Constituem-se, por outro lado, paradoxal e conco-mitantemente, em modalidades de apropriação da terra,que se desdobraram marginalmente ao sistema econômicodominante. Emergiram, enquanto artifício de autodefesa ebusca de alternativa de diferentes segmentos camponeses,para assegurarem suas condições materiais de existência,em conjunturas de crise econômica também cognomina-das pelos historiadores de “decadência da grande lavoura”.Foram se constituindo em formas aproximadas de corpo-rações territoriais, que se consolidaram, notadamente emregiões periféricas, meio a múltiplos conflitos, nummomento de transição em que fica enfraquecido e debilita-

142 terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”,faxinais e fundos de pastos: terras t radic ionalmente ocupadasAlfredo Wagner

Berno de Almeida

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do o poderio do latifúndio sobre populações historicamen-te submissas (indígenas, escravos e agregados).

Tornaram-se formas estáveis de acesso e manutençãoda terra, que foram assimilados, sobretudo, nas relações decirculação. Distribuíram-se desigual e descontinuamentepor inúmeras regiões geográficas sem guardar necessaria-mente entre si maiores vínculos, mas quase sempre cumprin-do função de abastecimento de gêneros alimentícios(farinha, arroz, feijão) aos aglomerados urbanos regionais.

Vale esclarecer, todavia, que se há um sem número desituações em que a disfuncionalidade explica a tolerânciapara com as formas de uso comum, existem, por outrolado, tentativas outras que conheceram medidas fortemen-te repressivas e completo aniquilamento, notadamente,quando imbricadas em manifestações messiânicas e debanditismo social. No bojo desses movimentos religiosos ede rebeldia, notadamente em fins do século xix10 e primeirasdécadas do século xx11, ocorreram tentativas de estabele-cer novas formas de relações sociais com a terra. Promul-garam que a terra deveria ser tomada como um bemcomum, indivisível e livre, cuja produção dela resultanteseria apropriada comunalmente. Tanto no sertão nordesti-no, quanto no Sul do país tais movimentos ao conheceremuma expansão e desenvolverem o que apregoavam, foramconsiderados como ameaçando o sistema de poder. Aosestimularem o livre acesso à terra, fora de áreas tidas comoperiféricas, contrastavam vivamente com os mecanismoscoercitivos adotados nas grandes propriedades, encerrando“grave ameaça” que findou coibida pela força das armas.

Do mesmo modo foram duramente reprimidas, mas nãonecessariamente aniquiladas em toda sua extensão, aquelastentativas de se estabelecerem territórios libertos, que absor-viam, escravos evadidos das grandes fazendas de algodão e

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cana-de-açúcar12. Estas últimas formas conheceram suaexpressão maior com a multiplicação de quilombos nos sécu-los xviii e xix , encravados em locais de difícil acesso,inclusive nas regiões de mineração aurífera. Lograram êxito,em inúmeras situações, na manutenção de seus domínios.

Os sistemas de uso comum podem ser lidos, neste senti-do, como fenômenos fundados historicamente no proces-so de desagregação e decadência de plantations algodoeirase de cana-de-açúcar. Representam formas que emergiramda fragmentação das grandes explorações agrícolas, basea-das na grande propriedade fundiária, na monocultura e nosmecanismos de imobilização da força de trabalho (escravi-dão e peonagem da dívida). Compreendem situações em queos próprios proprietários entregaram, doaram formalmen-te ou abandonaram seus domínios face à derrocada. Enten-da-se que se tratavam de terras tituladas, já incorporadasformalmente ao mercado desde, pelo menos, a Lei n.º 601,de 18 de setembro de 1850, a qual dispunha sobre a media-ção, demarcação e venda das chamadas “terras devolutasdo Império”. Em certa medida ocorre uma reversão numatendência tido como ascensional de estabelecimento dedomínios privados com valores monetários fixados.

As flutuações de preço dos produtos primários nomercado internacional provocaram sucessivas desorganiza-ções no sistema produtivo das grandes explorações mono-cultoras. Antes mesmo da abolição da escravatura, queparece não servir como marco institucional que tenha favo-recido estes sistemas de uso comum da terra, registram-semúltiplos casos de desmembramento e desagregação degrandes propriedades fundiárias. Em termos econômicos,o resultado mais imediato deste processo de dissolução, quese intensificou no final do século xix em regiões, cujas gran-des explorações não lograram introduzir inovações tecno-

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lógicas ou adotar agriculturas comerciais assentadas emnovas relações de trabalho; consistiu no afrouxamento dosmecanismos repressores da força de trabalho e na forma-ção de um campesinato, congregando segmentos de traba-lhadores rurais que viviam escravizados ou imobilizadosnaquelas unidades produtivas. Em diferentes situaçõesexaminadas, conforme se verificará adiante, registra-se queeste campesinato pós-plantation não procedeu necessaria-mente a uma divisão da terra em parcelas individuais. Agarantia da condição de produtores autônomos, uma vezausente o grande proprietário ou por demais debilitado oseu poder, pode conduzir a formas organizativas, segundoos ditames de uma cooperação ampliada e de formas de usocomum da terra e dos recursos hídricos e florestais. Taisformas se impuseram não somente enquanto necessidadeprodutiva, já que para abrir roçados e dominar áreas demata e antigas capoeiras uma só unidade familiar era insu-ficiente, mas, sobretudo, por razões políticas e de autopre-servação. Os sistemas de uso comum tornaram-se essenciaispara estreitar vínculos e forjar uma coesão capaz, de certomodo, de garantir o livre acesso à terra frente a outrosgrupos sociais mais poderosos e circunstancialmente afas-tados. Uma certa estabilidade territorial foi alcançada pelodesenvolvimento de instituições permanentes, com suasregras de aliança e sucessão, gravitando em torno do usocomum dos recursos básicos. Este passado de solidarieda-de e união intima é narrado como “heróico” pelos seusatuais ocupantes, mais de um século depois e tambémvisto como confirmação de uma regra a ser observadapara continuarem a manter seus domínios. Para além darepresentação idealizada, destaca-se que estabeleceramuma gestão econômica peculiar, ou seja, não necessaria-mente com base em princípios de igualdade, mas consoan-

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te diferenciações internas e interesses, nem sempre coinci-dentes, de seus distintos segmentos.

Ao contrário do que poderiam supor as análises deter-ministas verifica-se que há formas de uso comum da terra,que consistem em processos sociais resultantes de contra-dições do próprio desenvolvimento do capitalismo. A partirdestas é que foram harmonizados de maneira consolidadainteresses de diferentes segmentos camponeses. Assim, osmecanismos que nas formulações ortodoxas deveriamfatalmente destruí-los ou absorvê-los constituem, justamen-te, suas fontes e determinações principais. Não teria ocor-rido nestes casos uma transformação em proletário doex-escravo e do camponês subjugados ao latifúndio. Veri-fica-se o acamponesamento do primeiro e uma redefiniçãoda condição do segundo, transformado, segundo expressãoda literatura econômica, em campesinato livre.

Estes segmentos de camponeses e seus descendentespassaram a se auto-representar e a designar suas extensõessegundo denominações específicas atreladas ao sistema deuso comum. A noção corrente de terra comum é acionadacomo elemento de identidade indissociável do territórioocupado e das regras de apropriação, que bem eviden-ciam, através de denominações específicas, a heterogenei-dade das situações a que se acham referidas, a saber: “terrasde preto”, “terras de santo”, “terras de Irmandade”, “terrasde parentes”, “terras de ausente”, “terras de herança”(e/ou “terras de herdeiros”) e “patrimônio”.

–– as terras de preto

Tal denominação compreende aqueles domínios doados,entregues ou adquiridos, com ou sem formalização jurídi-

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ca, por famílias de ex-escravos. Abarca também concessõesfeitas pelo Estado a tais famílias, mediante à prestação deserviços guerreiros. Os descendentes destas famílias perma-necem nessas terras há várias gerações sem proceder aoformal de partilha, sem desmembrá-las e sem delas seapoderarem individualmente. Além de detectáveis na Baixa-da Ocidental13, nos Vales dos Rios Mearim14, Itapecuru eParnaíba15, no Estado do Maranhão, e na zona limítrofedeste com o Piauí, são também observáveis no Amapá, naBahia16, no Pará, bem como, em antigas regiões de explo-ração mineral de São Paulo e Minas Gerais, onde as agri-culturas comerciais não chegaram a se desenvolver demaneira plena.

Abrangida também pela denominação encontram-sealgumas situações peculiares em que se detecta a presençade descendentes diretos de grandes proprietários, sem gran-de poder de coerção, adotando o aforamento, ou seja,mantendo famílias de ex-escravos e seus descendentesnuma condição designada como de foreiros, sem quais-quer obrigações maiores, possibilitando, inclusive, umacoexistência de formas de uso comum com a cobrançasimbólica de foro incidindo sobre parcelas por família,visando não deixar duvidas sobre seu caráter privado. Osvalores estipulados para pagamento são geralmente tidoscomo irrisórios e os próprios camponeses terminam pordefini-los como “simples agrado” 17. Observa-se ainda quenestas regiões as agriculturas comerciais (cacau, café, algo-dão, cana-de-açúcar) não foram desenvolvidas.

A expressão “terra de preto” alcança também aquelesdomínios ou extensões correspondentes a antigos quilom-bos e áreas de alforriados nas cercanias de antigos núcleosde mineração, que permaneceram em isolamento relativo,mantendo regras de uma concepção de direito, que orien-

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tavam uma apropriação comum dos recursos. Registradosem regiões do Tocantins Goiano18 e da Serra Geral19 noNorte de Goiás, no Vale do Maracassumé, no Maranhão;e nas antigas áreas mineradoras de Goiás e São Paulo20.

Sublinhe-se que há ainda as denominadas “terras depreto” que foram conquistadas por prestação de serviçosguerreiros ao Estado, notadamente na guerra da Balaiada(1838-41). A incorporação militar de escravos evadidos,que atuavam como “bandos armados”, foi negociada e opagamento consistiu em alforria e entrega de terras ao“chefe dos bandos”. A evocação deste mesmo ancestralcomum, tem reforçado, durante século e meio, os laços soli-dários do grupo e certas regras de uso comum, mesmo apóso assentamento promovido pelo Incra-ma, nos anos 1976-77, em Saco das Almas21.

Estas vias de acesso à terra22 ocorrem, pois, com a desa-gregação da plantation ou fora de seus limites estritos,quando estão relativamente desativados os mecanismos derepressão da força de trabalho. Não correspondem preci-samente às situações abrangidas pela noção de “proto-campesinato escravo”, isto é, “as atividades agrícolasautônomas dos escravos nas parcelas e no tempo para culti-vá-las, que lhes eram concedidos dentro de plantation”(cardoso, 1987: 224) (g.n.)23.

–– as terras de santo

Para efeito de ilustração e com vistas a uma primeiratentativa de apreender o significado da expressão “terra desanto”, pode-se dizer que ela se refere à desagregação deextensos domínios territoriais pertencentes à Igreja. Adesorganização das fazendas de algodão, a partir da

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segunda década do século xix , levou, por exemplo, noMaranhão, a que imensas extensões exploradas por ordensreligiosas (jesuítas e depois carmelitas, mercedários) fossemabandonadas ou entregues a moradores, agregados e índiosdestribalizados e submetidos a uma condição de acampo-nesamento, que ali já cultivavam. Nesses domínios, à moldede outros com fundamentos históricos aproximados, passa-ram a prevalecer formas de uso comum, mesmo após asautoridades eclesiásticas terem interferido e entregueformalmente estas terras à administração do Estado, emfinais do século xix. Consoante o santo padroeiro destasfazendas, foram sendo adotadas denominações próprias,que recobriam seus limites e lhe conferiam unidade territo-rial. Assim, tem-se as terras de Santa Tereza, de Santana ede São Raimundo24. Aliás, neste particular, não diferem daschamadas “terras de preto”, que tem como designaçãosecundária a apoiá-las denominações de entidades religio-sas, tais como: São Roque, Santo Antonio dos Pretos, SãoCristóvão, São Domingos, Bom Jesus, São Miguel etc. Naschamadas “terras de santo”, entretanto, as formas de usocomum coexistem, ao nível da imaginação dos moradores,com uma legitimação jurídica de fato destes domínios, ondeo santo aparece representado como proprietário legítimo,a despeito das formalidades legais requeridas pelo códigoda sociedade nacional25.

Sobressaem nestas unidades sociais os denominados“encarregados” ou lideranças do grupo que teriam basica-mente funções vinculadas ao ciclo de festas e ao cerimonialreligioso. Além de administrarem os bens do santo, arreca-dando um pagamento simbólico entre as famílias de mora-dores, geralmente denominado jóia (prado, 1975 ibid),mantém a coesão do grupo acionando rituais de devoção.

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As denominadas “terras de santo” têm sido detectadastambém nas regiões de grandes explorações de cana-de-açúcar da Zona da Mata pernambucana, cujas unidadesprodutivas se modernizaram em fins do século xix com oadvento dos engenhos centrais e das usinas. Nestas situa-ções encontram-se atreladas a uma noção que abrangeextensões de terras disponíveis e abertas à pequena produ-ção em contraposição às grandes propriedades fundiáriascircundantes. Nem sempre abrigam formas de uso comumda terra e respondem também pela denominação de “pa-trimônio”, abrangendo, no mais das vezes, povoadoscamponeses encravados dentro de grandes propriedades,que permanentemente ameaçam intrusar seus domínios 26.

A noção de “patrimônio do santo” remete ainda àsregiões de expansão da frente pecuária no sertão nordesti-no, onde os campos e aguada são mantidos sob regras deuso comum27.

Remete também a ambigüidades que envolvem aschamadas “terras da Igreja”, como no caso de “patrimônio”de Nossa Senhora da Conceição do Município de Benevi-des, Pará. Inicialmente as autoridades diocesanas recebiamdos camponeses, que cultivavam as terras do patrimônio,contribuições anuais definidas como “renda”. Em meadosde 1983, entretanto, os camponeses recusaram a aceitaruma elevação do preço da “renda”, consoante a legislação.Alegaram que a “terra era da santa” e não das autoridadeseclesiásticas. A chamada “renda” era vivida como simbó-lica, correspondendo a doações voluntárias e não necessa-riamente pré-fixadas.

As denominadas “terras de irmandade” constituemuma variante dessas formas de apossamento em antigosdomínios de ordens religiosas. Foram observadas tambémno Estado do Rio de Janeiro, com referência aos confron-

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tos e tensões verificadas na área conhecida como São Joséda Boa Morte 28.

–– as terras dos índios

Compreendem domínios titulados, que foram entreguesformalmente a grupos indígenas ou seus remanescentes, nasegunda metade do século passado e princípios deste, soba forma de doação ou concessão por serviços prestados aoEstado. Abertura de estradas pioneiras, colaboração comexpedições militares de desbravamento e outros serviçosrealizados em obras públicas explicam tais atos de consen-timento. As titulações, entretanto, referem-se, muitas vezes,a tratos individuais, tendo sido concedidas a apenas deter-minado grupo de famílias. Destaque-se que práticas admi-nistrativas semelhantes, ao longo do tempo, têm nutridotensões internas de difícil conciliação mesmo em áreasoficialmente classificadas como “terras indígenas”29, comosucede como os Potiguara da região denominada “extintasesmaria dos índios de Monte-Mor” (lobato de azeve-do, 1986: 241), na Paraíba, a quem foram concedidos títu-los de posses particulares pelo governo imperial entre1867-6930.

Tanto no Nordeste, quanto em regiões do Sul, aquelesgrupos alcançados pelas concessões governamentais, aexemplo de outros das áreas de colonização antiga, conhe-ceram uma acelerado processo de destribalização e de perdagradativa de identidade étnica e passam, no momento atual,por um processo de acamponesamento. A despeito desteprocesso que implicou, inclusive, em perda da língua e deoutros itens de cultura, nota-se que seus descendentes dire-tos permanecem nestes domínios, contrapõem-se às tenta-

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tivas de intrusamento e continuam a denominá-los pelaexpressão com que foram originalmente tratados pela legis-lação e tal como são designados localmente, ou seja, “terrados índios” 31. Mantém-se cultivando e habitando nestasáreas, há várias gerações, sem qualquer ato de partilha legalque autorize apropriações individuais e desmembramentos.Correspondem a diversas extensões, localizadas no Vale doPindaré (ma), no sertão nordestino, com inúmeros povoa-dos e centenas de famílias, que adotam o uso comum dosrecursos básicos e que também os denominam de “terracomum” (paula andrade, 1985 ibid).

Os domínios aqui referidos não se encontram entre asáreas indígenas reconhecidas pela funai e nem seus ocu-pantes postulam tal, diferentemente de outros grupos, comoos chamados Tapeba, no Ceará. É que nas situações enfo-cadas não se registra uma tentativa de recriação da identi-dade étnica como meio de acesso à terra. A manutenção dosdomínios nestes casos encontra-se assegurada de maneiraplena, gerações após gerações. Isto, não obstante, possíveistensões existentes entre a apropriação de tratos individuaise aquela das áreas de uso comum. Há momentos em que oacirramento das tensões internas ou de conflitos com osantagonistas tradicionais e externos levam os descendentesdiretos a exibirem documentos que crêem comprobatóriodos direitos outorgados a seus ancestrais. A eficácia destacrença é julgada maior quando se defrontam com ameaçasque julgam provenientes daqueles que adotam as normaslegais vigentes. Nestes contextos, que tanto podem ser deestabelecer estratagemas para enfrentar grileiros, quanto dedecidir quem deve pagar para cultivar; tem-se reforçadasas regras que disciplinam a unidade social. Mecanismos deharmonização e equilíbrio entre os interesses individualiza-dores e aqueles favoráveis ao uso comum mantém uma

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certa coesão, mobilizando-os constantemente. Ao contrá-rio, percebe-se que domínios classificados oficialmentecomo áreas indígenas32 especialmente no Nordeste, nãodispõem de mecanismos para conciliar interesses e mesmode adotar uma atitude consensual face aos instrumentos,que já usurparam parte considerável das respectivas áreas.

Desse modo, os casos referidos diferem daquelas exten-sões identificadas, delimitadas ou demarcadas legalmenteque constituem as “terras indígenas”. Com propósito deuma primeira abordagem podem ser aproximados daque-las situações de espólios indivisos, posto que os títulos nãoforam revalidados com a morte do titular de direito e, aindaque tenha ocorrido o parcelamento, jamais foram assimapropriadas passado pelo menos um século. Novamenteestá-se diante de uma reversão das medidas organizadorasdo mercado de terras a partir da legislação de outubro de1850. As titulações de posses particulares a partir dademarcação de parcelas individuais, não obstante realiza-das, não conseguiram com que a ocupação da terra fossepautada pelos cânones do direito civil. Procedeu-se aos atosformais, entretanto os ocupantes, sem contestações signifi-cativas, engendraram suas próprias regras de posse e usoda terra. Guardaram zelosamente os títulos sem nuncarevalidá-los (lobato de azevedo , ibid) contudo, e aspróprias famílias conhecidas como “dos herdeiros”(paula andrade , ibid) trataram de diluir o planejadoparcelamento na rotina das formas de uso comum.

–– as terras de herança

Abrangem domínios titulados, tornados espólios quepermanecem indivisos, há várias gerações, sem que se

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proceda ao formal de partilha ou que seus títulos tenhamsido revalidados através de inventários que, consoantesdisposições legais, teriam de ser realizados quando damorte do titular de direito, a fim de transmiti-los a seusherdeiros legítimos. As chamadas “terras de preto” e “terrasdos índios”, igualmente tituladas, podem também respon-der por esta designação em contextos que envolvem dispu-tas pela legitimação jurídica dos domínios. Junto a elasconstata-se ainda situações em que a desagregação de gran-des explorações levou a uma condição de acamponesamen-to os descendentes diretos de famílias dos outrora grandesproprietários. Diferem marcadamente numa primeira gera-ção, posto que para os camponeses o título só se colocacomo uma defesa de seus direitos de cultivo, contra direi-tos alegados por outros grupos sociais, que mantém com aterra uma relação mercantil.

Durante várias gerações, que adensam a ocupaçãodestes domínios, além de serem estabelecidas formas pecu-liares de utilização da terra, que permitem classificá-lasjunto àquelas de uso comum, percebe-se que a apropriaçãoindividual, em termos absolutos, perde gradativamente suaforça num contexto em que os recursos são por demaisescassos, e que o grupo familiar não pode prescindir de reci-procidades econômicas. De maneira concomitante sãoadotadas medidas para contornar possíveis pressões de na-tureza demográfica, dado que o estoque de terras se mantémpermanente, e para estimular o exercício de atividades aces-sórias. Não se constata a contratação de terceiros e a forçade trabalho é composta exclusivamente por membros dogrupo familiar. Tais situações manifestam-se em regiõestradicionais de frente pecuária no sertão nordestino33. Ainexistência de formal de partilha, entretanto, é observadaem quase todas as regiões de colonização antiga do país.

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A custódia dos documentos e das escrituras compete agrupos familiares, que detém uma autoridade consideradamaior, que tanto pode ser por atributos econômicos, reli-giosos ou do grau de parentesco com os ancestrais comuns.Designadas como os “herdeiros” (paula andrade, ibid),tais famílias funcionam também como árbitros de quais-quer disputas, tais como “onde colocar o novo roçado”, “aquem se concede a licença de capoeira”, “quem deve pagara renda” ou “quais os isentos de determinadas obriga-ções” etc. A eles competiria, pois, discernir na aplicaçãodas normas, arbitrando contendas e atualizando regras.

Percebe-se também a ocorrência de expressões co-irmãs, no caso destes espólios. Trata-se das expressões“terra de parente” e “terra de ausente”. Esta última refe-re-se a casos em que foram realizados autos de partilha semque herdeiros, porém, tenham se apropriado efetivamentedas parcelas que lhes foram legalmente destinadas. Estasextensões acabam sendo consideradas liberadas ao cultivopelos demais componentes do grupo familiar34.

–– as terras soltas ou abertas

A utilização de formas de uso comum nos domínios em quese exercem atividades pastoris parece ser uma prática pordemais difundida em todo o sertão nordestino, desde osprimeiros séculos da frente pecuária, e em algumas regiõesda Amazônia, na Ilha de Marajó, e no Sul do país, no Para-ná e em Santa Catarina. No sertão nordestino as grandespropriedades jamais foram cercadas e mesmo seus limites,quase sempre imprecisos, sempre se confundiram gerandodisputas entre seus proprietários. Consoante os códigos deposturas municipais as aguadas eram de uso comum e o gado

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permanecia sendo criado solto. Somente os roçados deve-riam ser mantidos com cercas para evitar fossem destruídospelos rebanhos. A inexistência de cercas para o criatóriolevava a que reses de diferentes proprietários se mantives-sem juntas e aparentemente indiferenciadas pelos campos35.

Os denominados “faxinais” da Região Sul36 podem seraproximados destas formas, ressalvando-se que constituemextensões delimitadas para o pastoreio a partir de acordoestabelecido pelos detentores dos títulos, em sua maiorparte pequenos proprietários. Os chamados “pastoscomuns” ou “campos” da Ilha de Marajó37, assim como oscampos naturais da Baixada Maranhense38 guardam maiorproximidade com as regras da pecuária extensiva dosertão nordestino. Aí também o ato de apartar ou separaro gado criado solto para ser entregue aos seus respectivosdonos acontece antes da invernada e recebe igualmente adenominação de apartação39. Prevalecem nestas regiõesexpressões como “fundo de pasto”, áreas comuns maisafastadas dos locais onde se erguem as sedes das fazendas,ou “ terras soltas”, isto é que não conhecem cercamentos,ou “campos” ou “pastos comuns” ou “abertos”, de acordocom o Censo Agropecuário da fibge (1980).

Constata-se neste contexto uma outra noção já verifi-cada, quando se tratou das chamadas “terras de santo”,ou seja, “patrimônio”. Desdobra-se em significados. Anoção de “patrimônio da comunidade rural”, empregadapor souza (ibid, 29), não se confunde, por exemplo, comaquela concernente ao “patrimônio dos santos padroeiros”(souza, ibid, 22). Esta última se restringe às terras e aogado doados por grandes proprietários para a construçãode templos religiosos ou para arrecadar fundos a cadacomemorativa do respectivo santo. A outra, por sua vez,diz respeito a um conjunto de recursos essenciais – agua-

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das, fontes e pastagens – que, a despeito de estarem sobdomínio privado e serem áreas tituladas, encontram-sedispostas a uma apropriação comum. A noção de “patri-mônio da comunidade rural” se sobrepõe, pois, a umaestrutura fundiária com base nos limites dos imóveis rurais,traçados a partir dos memoriais descritivos das escriturase da área firmada em título. Sob esta concepção mesmo ospequenos proprietários podem manter suas reses soltas jáque as regras asseguram a manutenção e a reprodução dosrebanhos de vastíssimas redes de vizinhança nos terrenossecos das caatingas. Quaisquer que sejam seus detentorestêm direitos assegurados, inclusive, a nível formal peloscódigos de postura municipais. À exceção das serras frescasonde a lavoura é que continua sendo praticada no aberto.

O acesso à terra não estaria condicionado ao título depropriedade e há casos em que mesmo os que aforam“terras” para cultivo mantém reses nestes chamados“pastos comuns”40. A inexistência de formal de partilhasomada às freqüentes imprecisões de limites e a algunsbolsões de terras públicas, também alcançadas pelo usocomum, contribuíram para consolidar uma relação com osmeios de produção, regulada baixo a coexistência de duasmodalidades de apropriação: posse e uso comum e proprie-dade privada, atendendo basicamente às expectativas dereprodução de uma pecuária extensiva. Os cercamentosrecentes destes “pastos comuns” e os repetidos casos degado invadindo roçados, numa clara tentativa de afastar ospequenos produtores destes domínios, tem tornado estasáreas zonas críticas de conflito e tensão social41. Os peque-nos produtores rurais que, tradicionalmente, não têm sidoos principais beneficiados deste sistema de uso, atualmen-te têm sido compelidos a se afastarem dada à concentraçãode domínios por grandes proprietários e novos grupos inte-

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ressados na terra, cujos projetos de pecuária intensivausufruem de incentivos fiscais e outros benefícios governa-mentais.

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uso comum nas regiões de ocupação recente

as terras libertas e os centros

N as frentes de expansão42, que avançam desigualmen-te na região amazônica, segmentos camponeses

consideram a terra como um bem não sujeito à apropria-ção individual em caráter permanente. O movimento deocupação adquire sua expressão mais concreta nos peque-nos aglomerados que se vão formando próximo aos novoslocais de plantio que os camponeses, com o encapoeiramen-to dos antigos roçados, estabelecem, sucessivamente, nointerior das extensões de mata43. Designados regionalmen-te como “centros” tais locais de moradia e trabalho, ondesão abertos os novos roçados, constituem a ponta de lançadas frentes de expansão ou os seus segmentos mais desta-cados de penetração (santos, 1983: 23). Além da apro-priação dos recursos básicos não ser permanente não sãocontíguos às terras que cada grupo familiar explora.

As famílias camponesas que acatam tais regras nãocompõem um grupo de trabalho autolimitado. Seus inte-grantes, em distintas etapas do ciclo agrícola, firmammúltiplas relações de reciprocidade com outros gruposdomésticos. Algumas tarefas como o desmatamento e acolheita do arroz, requerem níveis específicos de coopera-ção. A coincidência no tempo, das etapas do calendárioagrícola, aproxima diferentes grupos familiares fixandopadrões de ajuda mútua. Interdita-se o chamado “centro”à criação de animais, mantendo-se os roçados sem cercar.

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Não se autoriza seja semeado capim e prevêem reservas demata, igarapés e cocais, que não podem ser apropriadosindividualmente. De maneira concomitante são estabeleci-das área de apropriação comum e definidos os critérios deadmissão de novos grupos domésticos. A anuência ocorrepela concessão das chamadas “licenças de capoeira”, quepossibilitam aos recém-admitidos se estabelecerem dispon-do de condições elementares. Somente as benfeitorias,produto do trabalho familiar, tornam-se objeto de virtuaistransações. Semelhante representação difere daquela preva-lecente em áreas de colonização antiga, onde se percebemfamílias camponesas dispostas de maneira durável numaextensão de terra transmitida de geração em geração.Assim, nas regiões de fronteira não se registra um patri-mônio constante em terras e benfeitorias sujeito a fracio-namento e tradicionalmente repassado de uma geração aoutra. Observa-se uma característica de ocupação efetiva-da por gerações de um campesinato expropriado, que jáprocederam a contínuos e intermitentes deslocamentos doNordeste até essas regiões de terras disponíveis, designa-das, por eles como “terra liberta” ou “terra sem dono”. Aabundância do recurso básico, as próprias condições quedeterminam o acesso e os freqüentes conflitos44 face à inde-finição dominial e à grilagem impossibilitam uma repro-dução do regime de posse e uso vigente nas regiões deorigem, ou seja, áreas de colonização antiga.

Haveria ainda nestes denominados “centros” instru-mentos escassos e de propriedade de um determinadogrupo familiar, que se acham sob uma reciprocidade gene-ralizada. Pilão, forno, casa de farinha e animal de traçãopodem ser compartilhados voluntariamente. Nestes gestosrecíprocos os aspectos sociais da relação entre as famíliascamponesas transcendem os aspectos materiais, não sendo

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incorporados aos cálculos propriamente econômicos. Parti-lha-se também voluntariamente a disposição de moradiasnos centros, o produto da caça, da pesca e da coleta decertos frutos. Aliás, a área para construção das casas é esco-lhida em comum acordo com o denominado “assituante”,ou seja, o primeiro a colocar roçados e habitação abrindoo “centro” e convidando outros grupos familiares a ali seinstalarem. A limpeza de caminhos, a construção de casase a manutenção das áreas de trânsito, nas partes centraisdos povoados, também são realizados em cooperação45.Os produtos dos roçados, por sua vez, não encontram-sesujeitos a partilhas, são indivisíveis, mesmo que formas decooperação com outros grupos tenham sido acionadas emdiferentes etapas do ciclo agrícola. Trata-se de atividadeprincipal e autônoma à realização econômica da unidadede trabalho familiar.

Os camponeses percebem suas atividades naquelesdomínios mencionados como parte de interesses sociaiscomuns. A reciprocidade generalizada representa umcomponente destacado da vida social, não obstante, asdisputas internas, o faccionalismo e a diferenciação econô-mica que quebram com as visões idílicas de unidade campo-nesa. Além disto, o processo de descampesinização, nasregiões de fronteira, espelha uma mobilidade social queagrava aqueles antagonismos truculentos por parte degrileiros que buscam usurpar estes domínios de posse46.

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diferenciação interna e antagonismos

i

A representação da terra nas regiões em que se verificamformas de uso comum, excetuando-se os campos e pasta-gens comuns, remete às regras de um direito camponês queprescrevem métodos de cultivo em extensões que podem serutilizadas consoante a vontade de cada grupo familiar, semexigência de áreas contíguas e permanentes ou de ter o con-junto de suas atividades produtivas confinadas numa parce-la determinada. Não há contigüidade entre as áreas decultivo de um mesmo grupo familiar. Os seus roçados distri-buem-se, segundo uma certa dispersão, pelas várias áreasdestinadas, consensualmente, aos cultivos. Não se registratambém contigüidade entre estas áreas e aquelas onde selocalizam os demais recursos apropriados. Delineiam-seainda, intercaladas entre as áreas de cultivo apropriadasindividualmente pelos grupos familiares, domínios de usocomum, que não pertencem a nenhuma família em parti-cular e que são considerados vitais para a sobrevivência doconjunto das unidades familiares. Nestes sistemas são arti-culados domínios de posse e usufruto comunal com regrasde apropriação privada. A casa e o quintal com seus jirausde plantas medicinais, com seus pomares e pequenas cria-ções avícolas são apropriados individualmente pelosrespectivos grupos familiares, do mesmo modo que oproduto das colheitas e os demais frutos dos roçados. Oresultado desta ação de trabalho pertence individualmente

162 terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”,faxinais e fundos de pastos: terras t radic ionalmente ocupadasAlfredo Wagner

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ao grupo doméstico que a realizou ou a um de seus mem-bros em particular, como no caso das denominadas “roci-nhas”, que são cultivadas para atender a uma determinadanecessidade de consumo.

Semelhante articulação de domínios confronta-se comas normas legais vigentes. Seu significado não coincide,antes colide com as formas de apropriação legalmenteassinaladas. Todavia não é necessariamente infratora dasleis. Há níveis de assimilação assegurados de fato no planodas relações de circulação e permitindo seja absorvida,sem senões, a produção agrícola correspondente.

Os fundamentos deste confronto não são redutíveis àsoposições usualmente estabelecidas entre o privado e ocomunal, entre o individual e o coletivo ou entre o legal eo fundado nos costumes. A própria noção de posse comu-nal soa inadequada para nomear estes domínios, já queseu significado encontra-se fortemente marcado pelas refe-rências às “comunas primitivas”. Carecem igualmente derigor as interpretações de inspiração evolucionista quefazem com que um dos pólos, por aproximações sucessi-vas, se dilua no outro. No desenvolvimento deste tipo deanálise, as normas de privatização gradativamente iriam seimpondo com a concomitante derrocada do império dasentidades familiares ou tribais e suas respectivas formas decooperação e reciprocidade consideradas inibidoras dosdireitos individuais. Em sentido contrário, mas com pres-supostos similares, tem-se aquelas outras interpretaçõesque consideram as formas de uso comum como formas inci-pientes de socialismo, tomando o comunal como coletivoe reproduzindo análises aproximáveis àquelas dos populis-tas de fins do século xix47.

Aparecem imbricadas nas normas camponesas, que asarticulam e combinam, as noções de propriedade privada e

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de apossamento através do uso comum. Tais noções serealizam indissociadas em diferentes domínios da organi-zação social. Não representam elementos destacáveis oupropensos à separação. Conjugam-se e se completamdentro de uma lógica econômica específica. A noção depropriedade privada existe neste sistema de relações sociaissempre marcada por laços de reciprocidade e por umadiversidade de obrigações para com os demais grupos deparentes e vizinhos.

Assim pensados, tais sistemas de uso comum diferemqualitativamente daquelas situações concernentes às“comunas primitivas”, em que as atividades produtivas sãorealizadas em comum e o produto é igualmente apropria-do de forma comunal, salvo a parte proporcional reserva-da para a reprodução. As necessidades do consumo é queorientariam, nessas comunas, os critérios de repartição doproduto das colheitas.

Estes sistemas referidos nada têm a ver também comas recriações savants ou religiosas de formas comunais ecom as recentes redescobertas das “origens do comunalis-mo”, baseadas em utopias e em experiências como as deR. Owen, Fourier e J. Warren48.

ii

As unidades sociais aqui referidas não representam totali-dades homogêneas e de caráter igualitário, como se pode-ria imaginar. Pelo contrário estão atravessadas por um graude diferenciação interna bastante forte, mas não o bastan-te para fazê-las eclodir em antagonismos insolúveis. A desi-gualdade no acesso aos recursos básicos existe no interiordestas unidades, não se podendo revelar apenas os aspec-

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tos comunais da cooperação. Estes servem como elementocontrastante para fora e frente aos antagonistas que visamusurpar seus domínios com pretensões de concentração dapropriedade fundiária através de grilagens.

A gestão que os camponeses, livres dos mecanismosrepressores da força de trabalho, realizam nestes domíniosnão se apóia em princípios gerais de igualdade. Há hierar-quias e diferenciações econômicas que não permitemconfundi-la com modalidades de apropriação coletiva oucom formas associativas implementadas pelos órgãosoficiais. As terras de uso comum tanto em áreas de ocupa-ção recente, quanto nas regiões de colonização antiga, apre-sentam-se sujeitas a um controle efetivo pelos gruposfamiliares mais abastados do campesinato, não obstante,os domínios de uso comum constituírem-se numa fontepotencial de recursos essenciais, sobretudo, para os campo-neses mais pobres. Àqueles grupos corresponde o mono-pólio da administração das cerimônias religiosas naschamadas “terras de santo”, assim como a cobrança dasdenominadas “jóias”, ou contribuições voluntárias quecada família anualmente oferece ao santo. A apropriaçãoprivada do fundo de manutenção pelas famílias dos “encar-regados”, nas denominadas “terras de santo”, e dos“herdeiros”, nos domínios titulados sem formal de parti-lha, consolidam diferenciações entre os vários segmentos.Do mesmo modo as famílias de “assituantes” nos denomi-nados “centros” detém maiores possibilidades de comer-cialização da produção agrícola e de localização de seusroçados nas faixas de maior fertilidade. Tais segmentossão responsáveis, nas áreas tituladas, pela guarda da docu-mentação e funcionam em todas elas como os principaisguardiães da vigência das regras de uso comum.

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A consolidação da diferenciação leva a tensões agudasentre os membros destes grupos familiares mais avançados.Há aqueles que esposando um nítido projeto de descampe-sinização empenham-se em dispor aquelas terras ao merca-do. Assim, nas chamadas “terras de índios”, um dosmembros da família designada como dos “herdeiros”(paula andre, ibid) é que pretende vender toda a área auma empresa agropecuária, entrando em conflito com todoo grupo familiar e por extensão com o conjunto de famí-lias daquela unidade social. Nos denominados “centros”,percebe-se membros da família do “assituante” (santos,1983, ibid) querendo impor uma cobrança de “renda” àrevelia do próprio líder. Então pode-se dizer que as famí-lias abastadas são as principais beneficiárias do sistema deuso comum, pode-se dizer também que as tensões internasaí verificadas, transcendem os limites de uma disputafamiliar e afetam a unidade social como um todo. Umamaior tecnificação, as possibilidades de comercialização eas relações de intermediação com os poderes regionais,tornam estas famílias ou pelo menos alguns de seusmembros com mais probabilidade de adotar um projeto dedescampesinização. Este tipo de disputa nos casos mencio-nados não indica que o tal projeto tenha logrado êxitosobre os domínios mantidos pelo grupo.

iii

As situações referidas, passado mais de um século, em setratando das regiões de colonização antiga, e muitas déca-das, quando se menciona as áreas de ocupação recente,continuam a manter um sistema de uso comum e tem rele-vância nas respectivas economias regionais49. As denomi-

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nações examinadas prosseguem funcionando como cate-gorias de confronto, através das quais uma unidade socialse distingue e se contrapõe a outras, afirmando seusdireitos inalienáveis. O fato de manterem uma atualidadeé bem indicativo de que mantém sua eficácia face aos anta-gonistas. Por outro lado, indica também que são constan-tes as situações de conflito e tensão que as ameaçam. Nesteaspecto, acentuam-se, quando se verifica que os índicesalarmantes de violência no campo e a concentração dapropriedade fundiária manifestam-se consoante uma açãogeral, cujos objetivos são dirigidos notadamente contra osfatores considerados imobilizantes. Tais sistemas de usocomum são representados como formas ideológicas deimobilização, que favorecem a família camponesa, a comu-nidade, a tribo ou a etnias não permitindo conferir à terraum sentido pleno de mercadoria50. São vistos como impe-dindo que imensos domínios sejam transacionados nosmercados imobiliários capitalistas. Devido a isto, sob estaótica, precisariam ser desativados para que os referidosmercados possam absorver livremente nossas extensões, comvalores monetários fixados. A expansão capitalista logra-ria deste modo destruir tais formas convertendo as terrasde uso comum à possibilidade de apropriação individual,resgatando-as ao mercado pela desmobilização daquelesfatores, que são vistos como subvertendo, em certa medi-da, o caráter privado da apropriação. Tais transaçõesimobiliárias e o respectivo registro legal e individual destasterras constituem mecanismos fundamentais ao desenvol-vimento capitalista em detrimento das práticas de merca-do de sistemas econômicos específicos e subordinados. Osmercados informais que abarcam as transações de terras eas permissões de plantio entre camponeses, que não sãoescrituradas e apoiam-se em contratos verbais, como as

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chamadas licenças de capoeira ou as transações que envol-vem as denominadas “posses itinerantes”51; que compre-endem regras de sucessão e transferência que desconhecemos cânones legais. Estas práticas contrapõem-se a uma idéiade modernização agrícola apoiada em operações creditíciasjunto a empresas bancárias e às agências do mercado finan-ceiro em geral.

O tipo de contradição resultante faz com que os siste-mas de uso comum estejam sujeitos à pressão constante deprogramas de titulação, financiados pelo bird (mesmolevando-se em conta as tentativas frustradas de inovaçõescontidas na Proposta ao Plano de Reforma Agrária de maiode 1985), que objetivam o parcelamento e a individualiza-ção de lotes. As tentativas de apossamento ilegítimo e degrilagem cartorial parecem também ser aumentado consi-deravelmente mantendo um clima de conflito e tensão.

Em termos gerais, entretanto, parece que o grau desolidariedade e coesão apresentado pelos camponesesnestas terras de uso comum tem sido forte o bastante paragarantir a manutenção de seus domínios. Os vínculos sóli-dos que mantém e a estabilidade territorial alcançada cons-tituem a expressão de toda uma rede de relações sociaisconstruída numa situação de confronto e que parece serreativada a cada novo conflito exercendo uma influênciadestacada na resistência àquelas múltiplas pressões. Estadisposição seria uma das razões pelas quais, com o acirra-mento dos confrontos, tais domínios podem ser classifica-dos hoje como uma dentre as zonas mais críticas de conflitoe tensão social na estrutura agrária brasileira.

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notas – Terras de preto, terras de santo,terras de índio, uso comum e conflito

1. O presente trabalho foi redigido numa primeira versão em finsde 1985. Foi modificado em 1986 e consiste numa versãoampliada e com modificações de ordem conceitual, sobretudopela crítica exercida à noção anteriormente utilizada de possecomunal, do artigo intitulado “Terras de Preto, Terras de Santo,Terras de Índio: posse comunal e conflito”, publicado na Revis-ta Humanidades. Ano iv, n.º 15. Brasília, UnB, 1987/88, pp. 42-49. Foi publicado, sob o mesmo título agora apresentado, noCadernos NAEA n.º 10 organizado por Edna de Castro e JeanHébette. Belém, 1989 pp. 163-196.

2. Destaque-se que a irrelevância ditada pelos determinismos éde tal ordem que, além de não ter sido contemplada oficial eformalmente, tem sido igualmente relegada mesmo na intensapolêmica acerca das relações de produção no campo, que congre-ga copiosas interpretações que insistem em classificá-las como“feudais” ou como “capitalistas”. Para um aprofundamento dalógica da produção intelectual referida a esta polêmica leia-se:palmeira, Moacir g.s. Latifundium et Capitalisme au Brésil– Lecture “critique d’um debat. Paris, 1971.

3. Com toda certeza tais interpretações inspiram-se na polê-mica de v.i. Lênin com os populistas, tal como o debate secolocava em fins do século xix (cf. lenin – O desenvolvi-mento do capitalismo na Rússia. São Paulo, Ed. Abril, 1982,pp. 209-213) e pouco ou nada tem a ver com os deslocamen-tos conhecidos pela formulação original a partir da Revolu-ção de 1917 e mais precisamente com o Esboço Inicial dasTeses sobre a Questão Agrária para o ii Congresso da Inter-nacional Comunista, elaborado por Lenin, em junho de 1920

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(Vide: Programa Agrário II. Belo Horizonte: A. Global Ed.1979, pp. 97-100).

4. Nas diretrizes operacionais de regularização fundiária daProposta ao i pnra, tem-se o seguinte a este respeito: “A regu-larização fundiária levará em consideração, além da proprieda-de familiar, as formas de apropriação Condominial ouComunitária da terra, dos recursos hídricos e florestais, demaneira que os trabalhadores rurais não tenham o seu acessocortado a bens fundamentais efetivamente incorporados à suaeconomia. – Serão estabelecidas formas de reconhecimento deposse e titulação capazes de articular domínios de usufrutocomum com regras de apropriação privada, também adotadaspor estes grupos familiares, desde que neste sentido tenham ascomunidades rurais se manifestado favoravelmente. A orientaçãoa ser adotada refere-se à demarcação dos perímetros desses domí-nios de usufruto comum, que não pertencem individualmente anenhum grupo familiar, e que lhes são essenciais, como: coquei-ros, castanhais, fontes d’água, babaçuais, pastagens naturais,igarapés e reservas de mata, de onde as famílias de trabalhadoresrurais retiram palha, talos, lenha, madeira para construções eespécies vegetais utilizadas em cerimônias religiosas ou depropriedades medicinais reconhecidas. – Parte-se do pressupos-to de que a necessidade de titulação não destrua ou desarticulea organização e o sistema de apossamento pré-existente. Issoexigirá a compatibilização dos cadastros declaratórios e fundiá-rios para que seja possível conciliar o sistema cadastral e a titu-lação derivada com estas formas de uso comum da terra queabrangem, inclusive, a combinação da agricultura com extrati-vismo em áreas descontínuas e outras associações de sistemasprodutivos adequados à realidade regional”. (g.n.). cf. Propos-ta para a elaboração do I Plano Nacional de Reforma Agrária.Brasília, Mirad, maio de 1985, pp. 32 e 33.

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5. cf. dados elaborados pela Coordenadoria de Conflitos Agrá-rios do Mirad-Incra em dezembro de 1986.

6. Para maiores esclarecimentos consulte-se o Manual de Preen-chimento do Laudo Fundiário – declaração para cadastro deimóvel rural e documento para habilitação de detentor. Brasília:Incra, julho de 1986, pp. 19 e 20.

7. Para uma leitura em profundidade destas diferentes expe-riências, ou seja: “mutirão”, “compra coletiva de alimentos”,“barcos da comunidade”, “trator comunitário”, consulte-se:“Roças Comunitárias & outras experiências de coletivizaçãono campo”. Cadernos do CEDI, n.º 10. Rio de Janeiro, abrilde 1982.

8. Vide Projeto de Assentamento “Saco de Belém” em SantaQuitéria-CE. Trabalho realizado pelos professores e participan-tes do ii Curso de Planejamento Físico para Colonização deTerras. Convênio bnb / sudene / incra / israei. Fortaleza,1982, 76 pp.

9. Leia-se “Exposição sobre a Fazenda Pirituba” proferida peloengenheiro agrônomo Zeke Beze, na puc-Proter. São Paulo, 22de maio de 1987, 69 pp.

10. Para um aprofundamento leia-se: cunha, Euclides da. OsSertões. São Paulo, Cultrix, Brasília, inl, 1973 e facó, Rui.Cangaceiros e Fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira –ufc, 1980.

11. Leia-se queiroz, Mauricio Vinhas de. Messianismo eConflito Social. São Paulo: Ática, 1977 e holanda, Firmino.

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“Fortaleza nos tempos do Caldeirão”, Nação Cariri n.º 9,nov/dez, 1983, pp. 15-21.

12. cf. almeida, Alfredo w.b. “Quilombolas, Selvagens eFascinorosos: pânico na capital e no sertão”. In: A Ideologiada Decadência – leitura antropológica a uma história da agri-cultura no Maranhão. São Luis: fipes, 1983, pp. 156-187.

13. Leia-se mourão sá, Laís. O pão da terra: propriedadecomunal e campesinato livre na Baixa Ocidental Maranhense.Dissertação de Mestrado apresentada ao ppgas – MuseuNacional – ufrj, 1975, pp. 60-93.

14. Leia-se soares, Luiz Eduardo. Campesinato, ideologia epolítica. Rio de Janeiro: Zahar, Eds., 1981, p. 223.

15. Vide correia lima, Olavo. Isolados Negros do Mara-nhão. São Luis, Ed. São José, 1980, p. 9 e azevedo, Ramiroc. – “Uma experiência em comunidades negras rurais”. São Luis:Gráfica São Luis, 1982, p. 17.

16. Leia-se correia, Célia m. – “Populações atingidas pelaBarragem do Brumado, Bahia”. Brasília, cca/mirad, 1986.

17. Leia-se almeida, Alfredo w.b. de; correia, Célia m. Etali. – “A Economia dos Pequenos Produtores Agrícolas e aImplantação do Centro de Lançamento de Alcântara”. Brasília:cca/mirad, 1985, p. 10.

18. cf. linhares, Luis Fernando do Rosário – “Conflitos deterra na Agropig”. Brasília, agosto de 1985 (mímeo).

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19. Vide carvalho, Joãomar – “Serra goiana tem quilombode 150 anos”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 23 de agosto de1987, p. 20. Referência ao trabalho de pesquisa da antropólogaMaria de Nazaré Baiochi da Universidade Federal de Goiás.

20. Vide dossiê elaborado por técnicos da sudelpa sobre “Ascomunidades negras do Vale do Ribeira”. São Paulo, julho de1986 (não há qq. menção explícita aos autores).

21. c.salles, Celecina – “Os descendentes de Timóteo – lutasdos camponeses numa área de conflito do Baixo Paranaíba”. SãoLuis, 1984, mimeo.

22. Não se registrou casos de aquisição de terras por escravosou por ex-escravos, ainda que tenham sido detectadas recomen-dações de venda logo após a abolição. Para efeito de um possí-vel cotejo, uma vez localizadas, foi detectada uma situaçãotranscorrida na Província de Esmeraldas, no Equador, no anode 1885, quando 62 famílias adquiriram um área de 61.830 ha.Para maiores esclarecimentos consulte-se: rivera, Fredy – “Lacomuna de negros del Rio Santiago em cien años de história”.In: Campesinato y organización en Esmeraldas. Quito:caap/ocame, 1986, pp. 19-60.

23. Uma utilização rigorosa desta noção no presente exercí-cio, pressuporia o estabelecimento de comparações diversasentre o funcionamento das grandes explorações e o adventodas formas de uso comum nas regiões enfocadas. A impossi-bilidade de executar esta operação analítica é que nos levou aestabelecer uma distinção “dentro/fora”, capaz tão só de aler-tar superficialmente para uma possível diferença. Para umaprofundamento do que “Sidney Mintz chama de protocam-pesinato escravo” (cardoso, ibid) consulte-se: cardoso,

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Ciro Flamarion S. Escravo ou Camponês? – O protocampe-sinato negro nas Américas. São Paulo: ed. Brasiliense, 1987,pp. 91-125.

24. Para maiores esclarecimentos consulte-se: mourão sá, l.Ibid e prado, Regina. Todo Ano Tem. Dissertação de Mestra-do apresentada ao ppgas – Museu Nacional, ufrj, 1975.

25. mourão sá, l. ibid, pp. 60-77.

26. Leia-se a propósito rinaldi, Doris. A terra do santo e omundo dos engenhos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

27. Leia-se a propósito: almeida, Alfredo w.b. de & ester-ci, Neide. “Terras soltas e o avanço das cercas”. Rio de Janei-ro, Projeto Emprego e Mudança Sócio-Econômica no Nordeste.mn/ufrj/ipea, 1977, v. ii.

28. Vide o’dwyer, Eliane – “Reconstituição do conflito deSão José da Boa Morte”. Rio de Janeiro, 1979 (mimeo).

29. cf. Art. 4º, § 4º e Art. 198 da Constituição de 1946. Paraum aprofundamento das implicações desta conceituação jurídi-ca, consulte-se pacheco de oliveira, f.°, João – “TerrasIndígenas no Brasil: uma tentativa de abordagem sociológica”.Boletim do Museu Nacional n.º 44, outubro de 1983, p. 4.

30. cf. lobato de azevedo Ana l. A Terra Somo Nossa –uma análise de processos políticos na construção da terra Poti-guara. Dissertação de Mestrado apresentada ao ppgas/mn/ufrj,1986, pp. 230-50.

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31. São bastante escassas as referências bibliográficas quetratam deste tema específico, disposto entre os estudos etno-lógicos e as pesquisas relativas às sociedades camponesas. Paramaiores esclarecimentos, leia-se o artigo intitulado “Terrados Índios”, de autoria de Maristela de Paula Andrade, elabo-rado a partir de trabalho de campo em Viana (ma), com finsde tese de doutorado em Sociologia na usp, e datado de agos-to de 1985.

32. Para um aprofundamento da situação atual das áreas indí-genas, leia-se: pacheco de oliveira f°, João – “Terrasindígenas: mito e verdade” in: Terras Indígenas no Brasil.cedi/Museu Nacional, 1987, pp. iii-xxix.

33. cf. almeida, a.w. e esterci, n., ibid.

34. cf. observações de campo registradas, no decorrer de 1986,por Jair Borin, a serviço do incra, no Município de Unaí, MinasGerais.

35. Leia-se souza, José Bonifácio de. Quixadá de Fazenda acidade (1755-1955). Rio de Janeiro: ibge – Conselho Nacio-nal de Estatística, 1960, pp. 30-32. De acordo com o autor, apartir de documentos e dos Códigos de postura podia-se afirmar:“As pastagens e aguadas eram como se fossem bens de usocomum, e em torno delas se realizaram os primeiros contatosentre vaqueiros (ibid, p. 31).

36. A propósito dos faxinais consulte-se: carvalho, HorárioMartins de. “Da aventura à esperança: a experiência autogestio-nária no uso comum da terra”. Curitiba, 1984, pp.12-32 (mimeo).

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37. Vide tocantins, Leandro – “Campos e Currais”. In: Orio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. Rio deJaneiro: Biblioteca do Exército, 1973, pp. 115-125.

38. Vide almeira, Alfredo Wagner b. e mourão sá, Laís –“Questões Agrárias no Maranhão”. Pesquisa Antropológica n.º9/10, Brasília, 1976.

39. cf. azevedo, Guilherme. Vocabulário do criatório norte-riograndense. Rio de Janeiro, ma – Serviço de Informação Agrí-cola, 1966, p. 17. barroso, Vieira. Marajó: estudo etnográfico,geológico e geográfico da grande Ilha. Belém: Imprensa Oficials/d. pp. 162 e 163. cascudo, Luís da Câmara. Dicionário dofolclore brasileiro. Rio de Janeiro: inl, 1954, p. 53.

40. Nos campos naturais da Baixada Maranhense, que se esten-dem contornando o golfão observamos povoados com dezenasde famílias de foreiros, localizados na beira-campo, no seio deantigos engenhos de açúcar, em áreas denominadas “terras depreto” (nos municípios de Pinheiro, São Bento, Pericumã) e“terras da santa” (Bequimão, Alcântara), que tem uma certa divi-são de trabalho em que apenas um indivíduo do povoado tomaconta das reses dos demais. Ele cuida do gado solto nos camposnaturais não cercados e recebe uma remuneração através doconhecido sistema de sorte ou sob a forma de serviços prestadospelos demais em seu roçado.

41. cf. almeida, a.w.b. & esterci, n. Ibid. – As polêmicasem torno dos pastos comuns remetem ao inicio do século xix.Consulte-se: “Memória sobre o plano que permite que se façamtapadas no terreno de Crato e sobre a inconveniência dos pastoscomuns...” Por Jerônimo Francisco Lobo. Corregedor da

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Comarca do Crato (1803-?), fls. 230-40 do Doc. 16, vol. 22/Anac(Arquivo Nacional).

42. Leia-se para maiores aprofundamentos: velho, Octavio g.Frentes de expansão e estrutura agrária. Rio de Janeiro: Zahar,Eds., 1972.

43. cf. santos, Murilo – “Fronteiras: a expansão camponesano Vale do Rio Caru”. In: Estrutura agrária e colonização nafronteira amazônica. Belém: Museu p.e. Goeldi–cnpq., 1983(mimeo).

44. Com pequenas alterações este parágrafo foi reproduzido doseguinte artigo: almeida, Alfredo Wagner b. de. – “Estruturafundiária e expansão camponesa”. In: Carajás – desafio político,ecologia e desenvolvimento. Brasília, cnpq., Ed. Brasiliense,1986, pp. 265-198.

45. cf. santos, m., ibid, 17.

46. A dimensão política que estes antagonismos adquirem nasregiões de fronteira pode ser aprofundada a partir da consultaa: martins, José de Souza – “Lutando pela terra: índios eposseiros na Amazônia Legal”. In: Os camponeses e a políticano Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980, pp. 103-124.

47. Para aprofundamento das polêmicas mantidas com ospopulistas consulte-se: Dilemas do Socialismo – A controvérsiaentre Marx, Engels e os populistas russos. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1982. Organização, introdução e notas de Rubem CésarFernandes.

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48. Leia-se Kenneth Rexroth. Communalism: From its originsto the twentieth century. London: Peter Owen, 1975.

49. Esta afirmação tem que ser relativizada e sujeita aos resulta-dos da aplicação de métodos estatísticos de quantificação dosdomínios e de sua produção efetiva.

50. Estas formulações foram desenvolvidas no seguinte trabalhode pesquisa: almeida, Alfredo Wagner b. de – “As áreas indí-genas e o mercado de terras”. Aconteceu – 1984. São Paulo,cedi, 1985, pp. 53-59.

51. A própria figura da “posse itinerante”, urdida pelos órgãosde ação fundiária nos anos 70, numa tentativa de estabeleceruma aproximação formal à modalidade de ocupação campone-sa nas regiões amazônicas, teria que ser revista, posto que nãopressupõe a utilização simultânea de várias extensões de terrascultivadas não contíguas.

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179terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”,faxinais e fundos de pastos: terras t radic ionalmente ocupadas

ANEXOS

câmara municipal de antonio gonçalves

Praça Eduardo Pinto Guirra, 50Tel.: (**74)3547-2807Cep: 44.780-000. Antônio Gonçalves – bag.g.c.: 13.233.150/0001-97

projeto de lei do legislativo n.° 04/2005

“Que cria a lei do licuri livre ou lei do ouricuri, suapreservação, extrativismo e comercialização.”

O Prefeito Municipal de Antônio Gonçalves Estado daBahia, no uso de suas atribuições legais, especialmenteamparado nos incisos iv e vi do art. 201 da lei orgânicado Município.

Faço saber que a Câmara Municipal aprovou e eusanciono a seguinte lei:

Alfredo Wagner

Berno de Almeida

projeto de lei do legistlativo municipal n.° 04/2005 que cria a lei do licuri livre ou lei do ouricuri sua preservação,extrativismo e comercialização.

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capítulo i Da constituição

Art. 1º – Fica criada e aprovada a lei do licuri livre,vinculada a Secretaria de Agricultura e Meio Ambiente doMunicípio, e conselho das associações que representam ostrabalhadores rurais do município de Antonio Gonçalves.

capítulo iiDos objetivos

Art. 2º – São objetivos desta lei; proteger os ouricuri-zeiros como planta de preservação permanente, seu culti-vo e geração de renda para as comunidades e famílias debaixa renda, bem como alimento para os animais.

i – Prover as comunidades e os catadores do licuri noâmbito do município, assegurar a continuidade da explo-ração dessa cultura extrativista.

i i – Que os catadores do ouricuri ou ouricultoresrespeitem as propriedades, bem como: não cortar aramesou danificar cercas, proteger a fauna e a flora.

parágrafo primeiro

São de livre acesso por meio de cancelas, porteiras epassadores, o uso comum dos catadores do licuri e suasfamílias, que as exploram em regime de economia familiare comunitária.

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parágrafo segundo

Para proporcionar melhor produção aos ouricurizei-ros e desenvolvimento de outras plantas, os proprietáriosdevem seguir uma metragem de aproximadamente 3 a 5metros de uma planta a outra.

Art. 3º - Os trabalhos de raleamento dos oricurizeirosdeverão ser comunicado com prazo mínimo de 15 dias, aosórgãos ambientais do município de Antonio Gonçalves.

parágrafo terceiro

Aos catadores fica proibido; cortar as palhas finais ouàs do olho do ouricurizeiro, bem como acender fogo inde-vidamente nas propriedades particular, cortar caichos verdeque não sirva para o aproveitamento.

parágrafo único

Do que trata o parágrafo terceiro, exceto os trabalha-dores em artesanato que produzem vassouras, chapéus,esteiras..., deixando sempre às duas palhas finais.

Art. 4º - Entidades ou órgãos parceiros: SecretariasMunicipais de Agricultura e meio ambiente, Sindicato dosTrabalhadores rurais de Antonio Gonçalves, Escola Famí-lia Agrícola de Antonio Gonçalves, e conselho das associa-ções do município que representem os trabalhadores rurais.

Art. 5º - O descumprimento desta lei em agressão aomeio ambiente, implicará em multa.

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i – A multa será arbitrada pela secretaria do meioambiente e agricultura de Antonio Gonçalves e conselhodas associações que representam os trabalhadores rurais domunicípio.

ii – Para garantir melhor produção, comercializaçãodos produtos derivados do ouricurizeiro.

i i i – Que o Município proporcione aos catadoresorganizarem-se em associações e cooperativas.

disposições finais

O município viabilizará os recursos humanos e finan-ceiros capacitação de pessoal, melhor aproveitamento ecomercialização dos produtos vindo do ouricurizeiro, oPoder Executivo e Legislativo, respaldados por esta lei, faráa efetivação necessária na busca de programas para amelhoria da qualidade de vida das famílias do municípiode Antônio Gonçalves.

Art. 6º - Esta lei entra em vigor na data da sua publi-cação, revogando-se as disposições em contrário.

Sala das sessões da Câmara Municipal, 5 de Agostode 2005.

Jurandy de Jesus MenezesVereador

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183terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”,faxinais e fundos de pastos: terras t radic ionalmente ocupadas

decreto n.° 889. prefeitura municipal de curitiba. outorga de permissão de uso para implantação do memorial de cultura cigana

Alfredo Wagner

Berno de Almeida

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Sr. Hely da Costa Souza, dono do barco “Comandante Hueliton”

e morador de São Pedro, rio Jauaperi – am (foto Ana Paulina).

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Fundos de Pasto, oficina de mapas em Casanova – ba (foto A. Wagner).

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Oficina de elaboração da metodologiapara regularização do território das comunidades quilombolas de Alcântara– ma, 2007 (foto: A. Wagner).

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Comunidade Sateré-MawéY’apyreayt, Redenção, Manaus,2008 (foto: Luís A. P. Lima).

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Oficina de mapas, Silves – am,2007 (foto: Emmanuel F. Jr.).