almeida - brincadeira e arte - patrimônio, formação cultural

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Educação Magdalena Maria de Almeida Brincadeira e Arte patrimônio, formação cultural e samba de coco em Pernambuco Rio de Janeiro 2011

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Almeida - Brincadeira e Arte - Patrimônio, Formação Cultural

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  • Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Centro de Educao e Humanidades

    Faculdade de Educao

    Magdalena Maria de Almeida

    Brincadeira e Arte

    patrimnio, formao cultural e samba de coco em Pernambuco

    Rio de Janeiro

    2011

  • Magdalena Maria de Almeida

    Brincadeira e Arte

    patrimnio, formao cultural e samba de coco em Pernambuco

    Tese apresentada, como requisito parcial

    para obteno do ttulo de Doutor, ao

    Programa de Ps-Graduao em

    Educao, da Universidade do Estado do

    Rio de Janeiro. rea de concentrao:

    Instituies, Prticas Educativas e

    Histria.

    Orientador: Prof. Dr. Roberto Lus Torres Conduru

    Rio de Janeiro

    2011

  • CATALOGAO NA FONTE

    UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

    Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta

    tese.

    ___________________________________________ _______________

    Assinatura Data

    A447 Almeida, Magdalena.

    Brincadeira e arte : patrimnio, formao cultural e samba de coco em

    Pernambuco / Magdalena Almeida. 2011. 212 f.

    Orientador: Roberto Lus Torres Conduru.

    Tese (Doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educao.

    1. Folclore dos negros Pernambuco Teses. 2. Negros Pernambuco Canes e msica Teses. 3. Patrimnio cultural Proteo Caets (PE) Teses. 4. Patrimnio cultural Proteo Garanhuns (PE) Teses. 5. Poltica e cultura Pernambuco Teses. 6. Cultura afro-brasileira Teses. I. Conduru, Roberto Lus Torres. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de

    Educao. III. Ttulo.

    nt CDU 39(813.4)(=96)

  • Magdalena Maria de Almeida

    Brincadeira e Arte

    patrimnio, formao cultural e samba de coco em Pernambuco

    Tese apresentada, como requisito parcial para obteno

    do ttulo de Doutor, ao Programa de Ps-Graduao em

    Educao, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    rea de concentrao: Instituies, Prticas Educativas e

    Histria.

    Aprovada em 15 de dezembro de 2011.

    Banca Examinadora:

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Roberto Lus Torres Conduru (Orientador)

    Instituto de Artes da UERJ

    ___________________________________________________

    Profa.Dr

    a. Maria Aparecida Lopes Nogueira

    Universidade Federal de Pernambuco

    ___________________________________________________

    Prof. Dr. Carlos Roberto de Carvalho

    Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

    ____________________________________________________

    Profa..Dr

    a. Nilda Guimares Alves

    Faculdade de Educao da UERJ

    ___________________________________________________

    Profa..Dr

    a. Ana Chrystina Venancio Mignot

    Faculdade de Educao da UERJ

    Rio de Janeiro

    2011

  • DEDICATRIA

    Para Mauro Santoro.

    Em vida, pela vida em comum, agradeo e

    dedico o que h de bom neste resultado, cujo cotidiano compartilhamos.

  • AGRADECIMENTOS

    Sozinha, no tenho luz. As pessoas que encontro so, cada uma a seu modo, um ponto

    iluminado que acende os meus caminhos, me ilumina as ideias e me ajuda a caminhar.

    Agradecer isso: reconhecer que, mesmo estando a ss, produzimos um resultado daquilo que

    o conjunto de pessoas com quem convivemos nos ajudou a perceber.

    Sou neta de uma analfabeta: Maria, ex-prostituta, lavadeira de roupas, que me ensinou

    que, apesar das dificuldades, a vida, por derradeiro, vale ser vivida.

    Sou filha de um homem criativo: Joo Paulo escolarizou-se at a quarta srie, por

    opo; usava supersties para explicar e limitar; mostrou-me a importncia de uma vida com

    alegria.

    Sou filha de uma autodidata que aprendeu a ler, escrever e contar, por interesse e

    curiosidade. Conceio no era escolarizada, mas valorizava a escolarizao. Foi quem me

    ensinou a estudar. Ela se foi, neste ano.

    Sou nora de uma dona de casa: Dirce, que valorizou sua tarefa, sem deixar de ser uma

    grande leitora e analista de livros, de cinema e de mundo.

    Sou irm de Guida, Mayne, Jefferson: semelhantes e diversos que me desafiam e a

    quem respeito.

    Sou me de dois filhos: Caio e Natlia. Mesmo com distncias espaciais, ter meus

    filhos estar viva, alimentar-me, encontrar energias para enfrentar os desafios de cada dia

    e noite vividos. ser, simplesmente.

    Assim

    A Natlia, pelas trocas existenciais, pelo interesse pela leitura da minha produo, do

    que eu leio, pelas informaes sobre patrimnio e gastronomia e, por ltimo, neste trabalho,

    pelo emprstimo de seu computador pessoal, quando fui trada pelo meu.

    A Caio, pela presena, sempre. Por trazer Alissa para minha vida. Pelo testemunho,

    sobre Atoleiros. Pelos apoios sobre informtica e idiomas.

    A Alissa, pelo companheirismo, pela alegria de viver, por me trazer Pandora, uma

    felina surpresa, por me mostrar a pgina da Misso de Pesquisas Folclricas e por me lembrar

    do caso do bolo de rolo, entre outras coisas que contriburam para esta produo.

    Famlia Gomes, especialmente pela acolhida no Rio de Janeiro. A famlia me deu

    abrigo, me alimentou e me deu carinho, compartilhando comigo o seu cotidiano. Com Evelyn,

    revivi uma amizade de infncia, desde os tempos de colgio, depois do reencontro, com

  • Mauro na minha vida, sua mudana para o Rio e agora: dividimos risadas, compartilhamos

    dificuldades, como amigas, mulheres, mes, esposas, filhas, irms. Com a filha, Luza Gomes,

    o sorriso sempre aberto e a generosidade ao dividir o quarto. Como vivi situao semelhante,

    na minha adolescncia, sei o que significa ter seu espao subtrado, para abrigar algum que

    no foi sua escolha no seu ciclo de amizades. Com Luiz Cludio, a delicadeza e a orientao

    sobre a cidade, nos caminhos do metr. Com Luza Malaquias, recifense, assistente da casa,

    os deliciosos legumes cozidos, segundo ela temperados apenas com sal (talvez no Rio

    maravilha sejam mais gostosos) e as conversas sobre como andar de nibus na cidade e sobre

    a vida, nas divertidas pequenas diferenas entre o Rio de Janeiro e o Recife. Com Henrique,

    num momento muito reservado da sua vida, s vsperas do vestibular, que procurei respeitar.

    Com Amlia, muito Amlia, s Amlia. Mulher simples, de pouco estudo e muitos saberes

    sobre a vida. Talvez o maior deles seja viver... Nas minhas lembranas, no era da infncia

    que Evelyn emergia, mas do final da faculdade, graas sua amizade com Mauro, meu

    companheiro de vida, com quem a relao apenas comeava, ento. Estar na casa de Evelyn

    foi ter uma famlia no Rio de Janeiro, com seus inconvenientes e alegrias. Foi caminhar pela

    Gvea e encontrar um famoso ou uma celebridade, com quem ningum fala, para no invadir

    sua privacidade, fazendo de conta que so pessoas comuns. Foi, ainda, pelo caminhar na

    Gvea que vivenciei a clssica cena de O pecado mora ao lado, em que Marilyn Monroe teve

    a saia levantada por um ventilador de subsolo. Lembrar desta cena foi a forma de rir quando,

    defronte ao Shopping, uma lufada de ar quente subiu do subsolo para levantar meu vestido at

    a altura da cabea, num susto inesquecvel. Foi Evelyn quem disse a Luza, sua filha, que eu

    era a sua amiga de infncia que, aos onze anos, no Ginsio Pernambucano, sofreu e chorou,

    por ser enorme e no aparentar a idade infantil. Foi em Evelyn que me amparei (e, acho, o

    amparo foi mtuo) nos caminhares da temporada no Rio de Janeiro, como mulheres que

    trazem consigo todos os papis que a vida lhes pde reservar. Dividir espao com Luiz

    Cludio, com Luza, ver Henrique na bancada do seu quarto, estudando para o acesso

    universidade, tomar o bom caf de Luza Malaquias, saborear os legumes cozidos com

    aafro ou, simplesmente manter uma conversa matinal, enquanto eu lavava a roupa e ela

    preparava o almoo. Cenas de um cotidiano inesperado e de descobertas felizes.

    A Vitria Amaral, minha eterna companheira do Multicultural, por me apresentar o

    imaginrio como possibilidade para reflexo acadmica.

    A Cida Nogueira, que est presente, neste trabalho, em vrios momentos, pela mulher

    que , por ser uma professora criteriosa, segura, sem temor de suas prprias dvidas, capaz de

  • ouvir, em meio ao seu muito a dizer, de se surpreender e de reconhecer aprendizado com as

    diversas convivncias do dia a dia.

    s comunidades Castainho e Atoleiros.

    No Castainho, a Jos Carlos Silva, sua Maria e suas filhas: pelas conversas e refeies

    que saboreei feijo com farinha de mandioca, galinha matriz e suco de caj, beiju com caf.

    Galinha de capoeira com xerm apreciei no Timb, onde conheci a liderana de Expedito,

    levada que fui por Jos Carlos Silva, que tambm me apresentou ao Imb.

    Em Atoleiros, a Ftima, Joel, seu Luiz Gonzaga, dona Margarida e famlia, por

    compartilhar de sua mesa, em vrios momentos, destacando as deliciosas pamonhas que

    apreciamos juntos, as conversas e, claro, o sambar do coco, juntos, na porta de suas casas.

    Aos componentes da Banda Folclore Verde do Castainho e do Samba de Coco Santa

    Luzia, em especial a Z Romo, Joo Faustino e Manuel Dura, pelos aprendizados que colhi e

    pela importante contribuio para este resultado.

    A Dinara Helena Pessoa, pelos esclarecimentos na rea de msica.

    A Clarice Hoffman, pelo depoimento sobre o documentrio Irco.

    Na FUNDARPE, a Teca Carlos, por me abrir os arquivos da instituio, considerando

    a importncia de qualquer processo de pesquisa e a Eduardo Sarmento, pelo convite

    participao no Registro do Patrimnio Vivo de Pernambuco.

    A Teresa Amaral, pela articulao com o FIG, por me apresentar ao Castainho, pelo

    depoimento, materiais cedidos e pela reviso do segundo captulo.

    Universidade de Pernambuco UPE, por apoios diversos, especificamente pela

    disponibilizao de espao e equipamentos do NEAD, no Recife, e do Laboratrio de

    Histria, em Garanhuns. Na UPE, a Aidy Guedes, Giseuda Barros, Graa Grana, Maria do

    Carmo Brando, Nara Lacerda, Pedro Falco, Rozngela Ferreira, Ricardo Bezerra, Rosrio

    Antunes e Vera Chalegre. A Walmir Soares, Edson Sabino e Renato Moraes, pelo apoio

    tcnico para realizao de entrevista.

    A Adelina Bizarro, em especial, pelo interesse na pesquisa e pelo apoio em momentos

    difceis, no processo de doutoramento.

    Aos amigos que conquistei como professora da UPE, em Garanhuns: Adelmrio

    Loureno da Silva Jnior, Andr Audejan, Danielle Lins, Erinaldo Cavalcanti, Fbio

    Henrique Machado de Vasconcelos, Fernanda Alves Lima, Juvenal Barbosa e Michele

    Noronha, Valria Pereira e Wandergleice Marilak do Nascimento de Lima, inclusive pela

    articulao com brincantes das diversas comunidades rurais da regio, notadamente Castainho

    e Atoleiros, pelo desprendimento e disponibilidade na coleta de informaes e depoimentos,

  • especialmente quando no pude estar presente. A estes, tambm, como representao de

    tantos outros que o espao no permite registrar.

    Na Prefeitura do Recife, Secretaria de Cultura, nas pessoas de Carmem Llis,

    Claudilene Silva, Lindivaldo Junior, Mrio Ribeiro e Zlia Sales, pelas experincias comuns

    que vivenciamos, num trabalho que vincula patrimnio e formao cultural.

    Ao Conselho Municipal de Poltica Cultural do Recife, nas pessoas de Renato Lins

    (Renato L) e Jos Cleto Machado, pela confiana que sempre me foi depositada nos debates e

    encaminhamentos como membro do Conselho.

    A Hebe Mattos, Martha Abreu e ao Laboratrio de Histria Oral e Imagem da

    Universidade Federal Fluminense LABHOI/ UFF, nas pessoas de Denise Demtrio, pela

    converso dos mini-DV do FIG 2009 para DVD, Matheus Serva e Eric Brasil Nepomuceno,

    pelo apoio nesse processo.

    Ao Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular CNFCP, do Rio de Janeiro, nas

    pessoas de Ricardo Lima e Doralice Vidal.

    A Luiz Antonio Gomes Senna e Nilda Alves que, desde a banca de seleo, me

    instigaram muitas reflexes.

    A Roberto Lus Torres Conduru, pela serenidade e presena durante a orientao a este

    trabalho, que se constituiu num acompanhamento mais que responsvel e comprometido: uma

    atuao que me ensinou sobre respeito, cordialidade e amizade, sem temer discordncias.

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Ensino Superior CAPES, pelo

    financiamento ao projeto deste Doutorado Interinstitucional DINTER em Educao,

    elaborado pela coordenao do Programa de Ps-graduao em Educao PROPED, da

    UERJ, frente Alice Casimiro Lopes e Leila Regina dOliveira de Paiva Nunes.

    Universidade Estadual da Paraba UEPB, atravs da Pr-reitoria de Ps-

    Graduao e Pesquisa, na pessoa de Marcionila Fernandes, pela viabilizao deste DINTER

    Educao, sem a qual minha filiao UERJ no aconteceria.

    E a todos aqueles que contriburam direta ou indiretamente para este trabalho.

    ofereo minha gratido.

  • RESUMO

    ALMEIDA, Magdalena. Brincadeira e arte: patrimnio, formao cultural e samba de coco

    em Pernambuco. 212f. Tese (Doutorado em Educao) Faculdade de Educao, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

    Esta proposta de estudo aborda questes relativas a polticas pblicas de cultura. Tem

    por referente o samba de coco nas comunidades afrodescendentes de Castainho e Atoleiros,

    situadas nos municpios de Garanhuns e Caets, do agreste de Pernambuco, regio que se

    constitui parcela de territrio do antigo quilombo dos Palmares, um dos principais focos de

    resistncia dos escravos negros do Brasil colonial, que se manteve inclume durante quase um

    sculo. Na regio atribuda existncia do antigo quilombo esto vrios grupos

    autointitulados remanescentes, que fazem dos ideais de fora e resistncia quilombola sua

    prpria vida. O ttulo do estudo Brincadeira e arte: patrimnio, formao cultural e samba de

    coco em Pernambuco. O objetivo geral relacionar o processo de criao em manifestaes

    artsticas populares com as polticas institucionais empreendidas, numa perspectiva

    intercultural e transdisciplinar, tomando como referencial emprico a brincadeira de samba de

    coco nos municpios de Garanhuns e Caets, em Pernambuco, respectivamente nas

    comunidades Stio Castainho e Stio Atoleiros, atravs da Banda Folclore Verde do Castainho

    e do Samba de Coco Santa Luzia. A ideia viabilizar um estudo que se reporta ao conceito de

    patrimnio cultural tnico brasileiro, percebendo cultura como uma construo histrica da

    humanidade e compreendendo a manifestao artstica como patrimnio imaterial. Trata-se de

    uma anlise sobre grupos brincantes do chamado samba de coco como manifestao plural, de

    caractersticas diversificadas, que ambiciona influenciar polticas pblicas destinadas a

    artistas populares ligados msica, ao canto, dana e literatura popular, encarnada em

    letras de canes, cujo contedo repassado s novas geraes atravs da oralidade ou por

    aes de formao cultural, como iniciativas do poder pblico. Polticas pblicas de cultura,

    patrimnio e formao cultural para preservao so as palavras-chave para identificao das

    condies atuais da relao entre artistas e gesto pblica, considerando a perspectiva de

    educao no formal, no sentido atribudo pela UNESCO, referenciando-se em depoimentos

    como principal fonte. Conhecer algumas dimenses do imaginrio mtico-simblico que

    envolve produtores e gestores, fundamento para o estudo, que se constitui a partir do

    levantamento, caracterizao e anlise da relao entre artistas e instituies de cultura, em

    diversas instncias, considerando ideais de modernidade, permanncias e transformaes

    observadas no exerccio, difuso e gesto da brincadeira. Os produtores do Povoado Atoleiros

    so criadores do samba de coco, brincadeira de adultos que se traduz em espao de

    confraternizao e comunho e recebe interferncia do poder pblico municipal, em Caets,

    um dos municpios do entorno de Garanhuns, na periferia do qual est tambm o Stio

    Castainho. Este, a partir de formas diversas de articulao, contemplado por aes das

    gestes pblicas municipal, estadual e federal, especificamente dentro do Festival de Inverno

    de Garanhuns FIG. A abordagem contempla a situao das duas comunidades, mas no elimina o reconhecimento de outros locais para a brincadeira do samba de coco e aes de

    preservao a ela direcionadas, como partes de um processo cultural que tambm e necessariamente educativo e, em suas possibilidades de rupturas e continuidades, forma geraes.

    Palavras-chave: Patrimnio. Formao cultural. Samba de coco. Afro-brasilidade.

  • ABSTRACT

    This study approaches matters concerning public cultural policies. Its subject is the

    samba de coco in the communities of Castainho e Atoleiros, both of African descent, located

    in the municipalities of Garanhuns and Caets in the State of Pernambuco, North-eastern

    Brazil, a region whose territory was part of the former quilombo dos Palmares, one of the

    main black slave resistances in colonial Brazil, which remained untouched for nearly a

    century. In the territory which once belonged to the former quilombo are several self-styled

    remaining groups, who still follow strongly the quilombola principles of strength and

    resistance. The title of the study is Recreation and art: cultural heritage, non-formal education

    and samba de coco in Pernambuco. The overall objective is to relate the process of popular

    artistic creation with institutional policies through an interdisciplinary and intercultural

    perspective, using as empirical referential the samba de coco from the cities of Garanhuns e

    Caets, Pernambuco, respectively in the communities of Stio Castainho and Stio Atoleiros,

    through the musical groups Banda Folclore Verde do Castainho and Samba de Coco Santa

    Luzia. The idea is to create a study that refers to the concept of Brazilian ethnic heritage,

    which looks at culture as a historical construction of mankind and understands artistic

    expression as intangible heritage. It is an analysis of the groups who practise the samba de

    coco, a plural manifestation with various characteristics, and attempts to influence public

    policies towards artists of music, dance and popular literature, found in the lyrics of the songs

    passed on to new generations through orality or governmental cultural initiatives. Public

    policies on culture, heritage and also informal learning experiences are the key-words to

    identify the current relationship between artists and public management, considering the

    prospect of non-formal education, in the sense given by UNESCO, using statements as the

    main source. Getting to know some dimensions of the mythic-symbolic imaginary involving

    producers and managers is the foundation for the study, which is built from the collection,

    characterization and analysis of the relationship between artists and cultural institutions, in

    several instances, considering ideals of modernity, states and changes observed in the

    exercise, dissemination and management of recreational activity. The producers of Povoado

    Atoleiros are the creators of the samba de coco, an adult recreational activity which serves as

    a space for communion and get-togethers and receives interference from the municipal

    government of Caets, a municipality of the surroundings of Garanhuns, whose periphery also

    contains Stio Castainho. The latter, through diverse forms of articulation, receives public

    administration actions on local, state and federal levels, specifically within the Winter Festival

    of Garanhuns FIG (from the Portuguese Festival de Inverno de Garanhuns). This studys approach contemplates the situation of both communities, but does seize to recognize other

    locations where the samba de coco and the preservation acts towards it happen, as the

    recreation is an activity which is part of a cultural and also educational as well as necessary process that along with its possibilities of continuity and ruptures, contributes to the formation of generations.

    Keywords: Cultural heritage and training. Samba de coco. Afro-brazilianess

  • SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................ 11

    1 REFLEXES TERICAS E METODOLGICAS ..................................... 27

    1.1 Um marco importante ...................................................................................... 27

    1.2 Situando o estudo .............................................................................................. 30

    1.3 Histria oral e formalidades metodolgicas ................................................... 44

    1.3.1 Mais responsabilidades para quem pesquisa ....................................................... 48

    1.3.2 Um encontro referencial ...................................................................................... 54

    1.3.3 Diversificao de fontes: entre a escrita e a oralidade ........................................ 56

    2

    ARTE, PATRIMNIO E PRTICAS EDUCATIVAS COMO POLTICAS PBLICAS DE CULTURA ...................................................... 62

    2.1 Patrimnio como prtica educativa ................................................................. 62

    2.1.1 Educao Patrimonial como poltica de cultura para educao .......................... 65

    2.1.2 Por um currculo que aproveite a cultura para a educao ................................. 68

    2.2 Ao educativa em espaos de formao cultural .......................................... 73

    2.2.1 Quadrilha junina .................................................................................................. 74

    2.2.2 Programa Multicultural do Recife ................................................... .................... 77

    2.2.3 Irco a rvore sagrada: um filme ...................................................................... 83

    2.3 Pressupostos para a proposta de formao do Festival de Inverno de Garanhuns FIG .............................................................................................. 87

    3 FORMAO CULTURAL PARA CASTAINHO E ATOLEIROS ........... 94

    3.1 Olhares sobre o coco ......................................................................................... 95

    3.2 Educadora, folcloristas e cultura ..................................................................... 107

    3.3 Formao cultural, interculturalidade e patrimnio ..................................... 113

    3.4 FIG: entre desejos, arte e realizaes .............................................................. 130

    4

    VIDA COMO CULTURA, ARTE E PATRIMNIO, EM ATOLEIROS

    E CASTAINHO ................................................................................................. 141

    4.1 Usos do passado outros sentidos ................................................................... 143

    4.2 Atoleiros, um esprito sedentrio ..................................................................... 157

  • 4.3 Castainho: letras de canes como manifestao literria ........................... 166

    4.3.1 Uma escrita funcional ......................................................................................... 169

    4.3.2 Um fazer literrio ................................................................................................ 175

    4.4 Diz o brincante: A que a paia avoa! ......................................................... 181

    5 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................... 193

    REFERNCIAS ................................................................................................ 201

  • 11

    INTRODUO

    A apresentao artstica, qualquer que seja a forma de expresso, provoca emoes em

    quem participa de alguma forma, assistindo ou produzindo. Algumas manifestaes chamadas

    populares envolvem o observador de tal maneira que ele se sente compelido a interagir,

    mesmo sem conhecimento anterior da manifestao. No caso das manifestaes que

    envolvem canes, msica e dana colaboram para envolver o espectador. Desconhecer os

    passos convencionados pode ser tambm um ignorar dos significados implcitos

    manifestao, do qual s sabero aqueles que dela participam ao longo de sua elaborao

    histrica. A apresentao de um grupo que canta e dana embute repeties e transformaes

    que valem como fundao e renovao de referenciais para a construo de sentidos

    histricos, na comunidade qual o grupo pertence ou alm dela.

    Tratar historicamente uma brincadeira ou expresso artstica e tentar formaliz-la a

    partir do seu carter de legitimidade como objeto para a produo historiogrfica considerar

    o jogo das transmisses, das retomadas, dos esquecimentos e das repeties (FOUCAULT,

    1987, p.6) reconhecer, numa prtica cultural, um processo de origem que inclui uma

    sucesso de relaes que precisa considerar as diferenas como elemento de anlise, j que

    as descries histricas se ordenam necessariamente pela atualidade do saber, se multiplicam

    com suas transformaes e no deixam, por sua vez, de romper com elas prprias

    (FOUCAULT, 1987, p.7). Qualquer tipo de expresso, como objeto de anlise histrica, pode

    ser considerada como uma forma de permanncia que traduz memria e reverbera

    politicamente na vida de determinados grupos sociais, influenciando, interferindo, alterando

    ou preservando. O que se poderia chamar descrio global na discusso das brincadeiras de

    adultos remete discusso sobre as necessidades e princpios dos indivduos e grupos

    praticantes, a significao para a comunidade onde praticada e as possibilidades de oferecer

    uma abordagem contextualizada e contempornea dos novos problemas enfrentados para

    produo de conhecimento.

    Um primeiro passo para legitimao da brincadeira como objeto de pesquisa a

    definio do tipo de brincadeira que se pretende analisar. A princpio, pensar a brincadeira

    significa pensar numa manifestao de adultos, onde se utiliza elementos artsticos, como

    msica, canes, letras, canto e dana, para seu prprio existir, o que a converte em arte.

    Entretanto, no apenas esses elementos caracterizam a expresso artstica: a criao, a

    repetio e o uso contribuem para um processo interativo que a torna ao coletiva. Como

  • 12

    forma, a msica oferece sons que estimulam o movimento do corpo e, em muitos casos,

    conciliada com uma letra, que remete possibilidade de uma anlise literria. A letra de

    canes, muitas vezes sem registro escrito e raramente com gravao fonogrfica, pode ser

    tratada como fonte documental, usada para identificar aspectos de historicidade, o que auxilia

    na compreenso da comunidade em que a brincadeira est inserida, mesmo quando

    reproduzida apenas pela oralidade.

    A escolha do samba de coco como objeto de pesquisa quase circunstancial. Eu

    poderia ter escolhido qualquer brincadeira para desenvolver este meu estudo. Muitos so os

    motivos para esta escolha: minha localizao geogrfica, em funo de atividades

    profissionais, me provocou interesse especial sobre o diferente modo como o samba de coco

    se apresenta em Atoleiros e a forma como me chegou, a partir de estudantes com os quais

    trabalhei; em relao ao Castainho, certa unanimidade em considerar Z Romo como um

    mestre da brincadeira do samba de coco numa comunidade reconhecida como remanescente

    de quilombo, na periferia de Garanhuns outro elemento que justifica esse interesse.

    Justificativas no faltam. No h uma s, so todas, a um s tempo. De modo geral, prticas

    da chamada cultura popular apresentam elementos semelhantes, quando ligadas msica e

    dana: so praticadas por grupo pertencente a uma comunidade e promovem interao entre

    seus integrantes. Os que fazem a brincadeira, chamados brincantes, conciliam o trabalho

    cotidiano voltado para a sobrevivncia com o processo de criao da sua arte. Na periferia

    urbana do Recife, por exemplo, sabe-se do maracatu nao, manifestao que se quer de

    negros, amparada no sagrado, que carrega uma relao direta entre rituais e produo artstica.

    No o caso do samba de coco, que aqui se prope analisar. Embora seja uma manifestao

    que caracterize prticas culturais do povo negro brasileiro, no se remete ao sagrado, quando

    se trata de Atoleiros ou Castainho, mas a uma ancestralidade de parentesco familiar, como se

    as prticas acontecessem obedecendo a uma ordem inevitvel de sucesses, onde os que

    vieram antes definem um caminho a ser seguido. Tanto no caso do maracatu nao, urbano,

    como no samba de coco originrio da zona rural do agreste de Pernambuco, so possveis

    reflexes direcionadas a questes da afro-brasilidade, especialmente porque nas comunidades

    objeto deste estudo, Castainho e Atoleiros, existe uma discusso sobre o carter de

    remanescente de quilombo. Assim, a reflexo sobre os motivos que levam o brincante a fazer

    a manifestao, relacionados ao ser negro ou a uma necessidade ancestral de praticar a

    brincadeira; a realizao da brincadeira e o que define sua condio de resistncia s

    adversidades da prpria vida e os modos possveis de interpretar essa resistncia, remetem

    possibilidade de constituio do brinquedo como uma forma de resistncia. Entendamos

  • 13

    resistncia como a luta diria pela sobrevivncia, aliada criao de estratgias para

    sobreviver. A luta cotidiana e a criao de estratgias de sobrevivncia extrapola a necessria

    garantia de sustento financeiro. Esta forma pode ser adotada pelos brincantes, na medida em

    que conquistam visibilidade para suas expresses artsticas e, principalmente, sentido para o

    viver nas comunidades.

    Em setembro de 2006 visitamos a comunidade do Stio Atoleiros. A praa apresentava

    um aspecto rstico: o espao era vago, ocupado na sua margem pela Capela Santa Luzia e

    pela Escola Municipal Manoel Izidorio, compondo um vrtice, um conjunto de casas de porta

    e janela e um pequeno curral, compondo o vrtice oposto. O Jornal Caets em foco, de

    setembro de 2007, traz duas imagens da praa: a primeira, que encontramos na visita

    mencionada e a segunda, transformada, em menos de seis meses depois (ver Figura 8, no item

    4.2). Hoje a praa calada, tem bancos e um aspecto quase urbano. Poucas pessoas

    frequentavam a nova praa: talvez se possa considerar que ela no o ponto de encontro que

    agrega a coletividade. Ao voltarmos comunidade, em 12 de outubro de 2007, fizemos

    algumas observaes baseadas na fala de alguns moradores da comunidade, numa enquete

    improvisada, pela necessidade sentida na visita que realizamos ento. Correndo o risco de

    reproduzir preconceitos, interessante colocar em debate a viso da comunidade sobre sua

    condio racial. A enquete constituiu-se de duas perguntas principais: voc se sente negro? e

    o que acha de a comunidade assumir que descendente de quilombo? Ento, foram nove

    entrevistados, entre duas crianas, uma adolescente e seis adultos. Como o improviso

    caracterizou a enquete, a fala a seguir serve apenas de ilustrao, para demonstrar que as

    cargas de preconceito residem na prpria comunidade: as crianas se disseram negras, assim

    como a adolescente. Dos adultos, dois homens se disseram negros, duas mulheres adultas se

    disseram morenas e uma se diz negra. Um adulto, que no identificamos, diz: negro pra mim

    o co, ns somos morenos. Negro escravo, ns somos morenos. Uma adolescente se diz

    negra e dois meninos de 11 anos se dizem negros. A enquete no , nem pretendeu, ser

    conclusiva ou exaurir o tema, mas aparenta um temor de se dizer negro que pode estar

    entranhado no pensar de muitas pessoas da comunidade.

    A reflexo sobre essas respostas para o entendimento do que significa ser negro uma

    discusso necessria: negro o indivduo que tem um biotipo especfico pele marrom, entre

    tantos outros traos, ditos caractersticos de negritude, mas tambm pode ser aquele que

    abriga em si uma perspectiva de pertencimento que o faz denominar-se negro. Se o

    pertencimento define o povo negro, parece que a cor da pele define um ideal de raa

    estabelecido pelas relaes sociais. O Brasil no difere de outras naes do planeta neste

  • 14

    aspecto: a mesclagem caracteriza a histria da humanidade, advinda dos inmeros processos

    migratrios que tiveram vez ao longo das trajetrias humanas. Os negros ainda so a camada

    da populao que tem menos acesso escolaridade, ao trabalho, ao emprego, remunerao

    digna, entre outros benefcios que so direitos de todo cidado. Nas zonas rurais, essa

    realidade ainda mais evidente. Como, ento, justificar o fazer artstico destas populaes

    que muitas vezes no tem recursos para aquisio mnima de alimentos? No plano esttico,

    ainda temos a beleza clssica ocidental como referencial convencionado que aponta para um

    conservadorismo acerca da aparncia mais aceita. Na viso de muitos, negro ainda tem cabelo

    ruim e branco, cabelo bom. Nas situaes em que concorrem negros e brancos, os primeiros

    ainda so desfavorecidos.

    Os produtores do Stio Atoleiros so criadores do samba de coco, brincadeira de

    adultos que se traduz em espao de confraternizao e comunho e recebe interferncia do

    poder pblico municipal. O Stio Castainho, a partir de formas diversas de articulao,

    contemplado por aes das gestes pblicas municipal, estadual e federal. Neste, novas

    formas de expresso artstica tm surgido, a partir de oficinas de formao cultural,

    realizadas pelo Festival de Inverno de Garanhuns FIG, como poltica pblica de cultura,

    mas no deixam transparecer maior investimento em formao relativa ao samba de coco,

    utilizando os mestres locais como potenciais formadores.

    Nas comunidades Atoleiros e Castainho, localizadas no agreste de Pernambuco, nos

    municpios de Caets e Garanhuns, falar em samba de coco remete a comunidades afro-

    brasileiras e remanescncia do antigo quilombo dos Palmares. A localizao geogrfica

    permite s comunidades relacionar a regio de Garanhuns com o antigo quilombo, um dos

    mais resistentes dominao escravocrata no perodo colonial e os grupos de samba de coco

    como uma evidncia dessa historicidade. Palmares est presente no imaginrio dos

    remanescentes das comunidades contemporneas pelo ideal de fora e resistncia que

    representa. O fato de existirem na atualidade polticas voltadas para os segmentos que se

    auto reconhecem afrodescendentes, chega a essas populaes como uma forma de obter

    recursos aos quais nem sempre tm acesso e no com uma expectativa de identificao

    ou promoo de cidadania.

    A Banda Folclore Verde do Castainho, liderada pelo Mestre Z Romo e seu irmo

    Joo Faustino, promove a brincadeira do samba de coco. Z Romo e Joo Faustino so

    parceiros na elaborao de canes que apresentam em eventos pblicos, onde conseguem

    quase sempre uma nfima remunerao. Em depoimento do dia 09 de maro de 2008, na

    residncia de Z Romo, no Castainho, os dois confirmam uma data de criao do grupo:

  • 15

    1816. Dizem que o grupo foi criado quando o pai deles ainda era cativo. A relao de

    parentesco com o ancestral escravo no parece muito clara, mas reflete uma expectativa de

    historicidade relacionada escravido, abolio e prpria identificao com o ser negro.

    Z Romo vivia sozinho, numa casa de stio, at 2010, quando desapareceu

    inexplicavelmente, e Joo Faustino trabalha em Garanhuns, como eletricista. Este manteve

    uma relao muito prxima com o irmo, talvez mais em funo da brincadeira. Hoje conduz

    a Banda Folclore Verde do Castainho. Dos filhos de Z, trs integram o grupo que se

    apresenta pela regio, frente dos instrumentos. Mestre Z Romo se diz negro, assim como

    Joo Faustino.

    O Samba de Coco Santa Luzia, produzido no municpio de Caets, oriundo do Stio

    Atoleiros, promove a brincadeira na comunidade para qualquer tipo de celebrao e, desde

    2006, faz apresentaes em eventos fora da comunidade, inclusive no Festival de Inverno de

    Garanhuns, no Palco da Cultura Popular. Na comunidade, as celebraes incluem, numa

    mesma noite, reisado, samba, ciranda e dana do leno. Manoel Dura, agricultor, msico do

    grupo de samba de coco Santa Luzia, se diz negro: Eu tenho que ser. Eu no sou branco,

    no ? Eu sou negro. Eu tenho certeza que sou negro. Seu Manoel se afirma negro, apesar

    de ter a pele clara, caracterstica de um branco. Defende a existncia do coco, do reisado, do

    pfano e de outras formas de expresso artstica com as quais se relaciona desde a infncia.

    Trabalhar com a produo artstica deste segmento da populao conceb-la como

    patrimnio, nos moldes estabelecidos nos artigos 215 e 216 da Constituio Brasileira. Tal

    afirmao no diz respeito apenas ao intuito preservacionista, que pressupe conservao das

    diversas formas de expresso, num momento especfico, ou partindo-se do pressuposto,

    convencionado socialmente, de tradio como um modelo imutvel de prticas culturais: visa,

    principalmente, reconhecer a produo intelectual de pessoas que promovem a circulao de

    conhecimento, a partir de saberes gerados no interior das comunidades que interagem com

    outros saberes e prticas.

    O patrimnio possui valor simblico reconhecido pelo Estado. Como patrimnio, um

    bem valorado pode passar a ser objeto de aes de preservao. A noo de patrimnio

    imaterial est atenta s prticas culturais, considerando seu carter tradicional, como

    referncia, no por ser imutvel, mas tambm pela possibilidade de ao poltica no coletivo.

    Considerando o coletivo, um bem cultural como o samba de coco, torna-se estratgia de

    reunio, atravs dos encontros festivos para fazer a brincadeira acontecer. A tradio,

    considerada como eixo referencial para produo cultural, elemento aglutinador e orientador

    para o fazer da brincadeira na comunidade. Assim, as polticas pblicas de formao atuam:

  • 16

    formam para o aprendizado artstico, fazendo deste um elo para construo de cidadania.

    Como patrimnio representativo da tradio, um bem tornado pblico para alm da

    comunidade onde produzido. Sua divulgao permite as mais diversas formas de uso: pelo

    Estado, pela disseminao de ideias de fortalecimento identitrio atravs do bem patrimonial;

    pelos polticos, em benefcio dos interesses especficos de cada plataforma; pelo turismo,

    como atrao em determinados espaos e como espetculo da tradio, cuja expectativa

    circunda o autntico e o imutvel: o que deve ser preservado. As comunidades produtoras

    ainda no tm clareza das dimenses que seu fazer artstico pode alcanar. Por outro lado, o

    Estado, ao empreender aes de formao cultural alm das escolas ou universidades, pouco

    dimensiona ou avalia o alcance das iniciativas representadas por estas polticas culturais.

    Este trabalho parte do objetivo geral de relacionar o processo de criao em

    manifestaes artsticas populares com as polticas institucionais empreendidas, numa

    perspectiva intercultural e transdisciplinar, tomando como referencial emprico a brincadeira

    de samba de coco nos municpios de Garanhuns e Caets, em Pernambuco, respectivamente

    nas comunidades Stio Castainho e Stio Atoleiros. Para chegar a este resultado, analisar o

    processo de formao para produo de manifestaes artsticas como poltica pblica e como

    atividade de formao cultural, relacionada concepo de patrimnio a ser preservado como

    estratgia para a gesto pblica de cultura uma necessidade que identifico. Caracterizar o

    Samba de coco como patrimnio cultural imaterial, pela repetio ou negao de prticas

    culturais e discursos, observando o pertencimento qualidade de afro-brasileiro nas

    comunidades estudadas o segundo aspecto sobre o qual me debrucei ao longo da pesquisa.

    Considerando a brincadeira do samba de coco como produo artstica que, na relao com o

    formato de apresentao deste estudo, escrito, seria de mais simples visualizao, procurei

    identificar o Samba de coco como produo literria. Tratar a expresso literria como

    narrativa de memria foi uma das alternativas que encontrei para relacionar as comunidades

    observadas com a histria. Analisar polticas pblicas e aes institucionais como produto de

    relaes sociais que mesclam a produo artstica com o uso dos discursos polticos da

    preservao patrimonial e da incluso social pela cultura foi uma de minhas expectativas.

    Promovo uma discusso que versa implicitamente sobre a contemporaneidade da

    produo acadmica, em algumas reas de conhecimento situada entre arte e cincia,

    fragmentao e transdisciplinaridade. As diversas dimenses da abordagem refletem esta

    tenso, mesclando reas distintas, mas interligadas, nas humanidades e nesta pesquisa: arte,

    poltica, histria, antropologia, educao. Meu estudo, inscrito como histria da educao, ao

    congregar estas cinco reas, permite que a historicidade e a perspectiva etnogrfica atuem

  • 17

    como elementos que fundamentam todo o seu desenvolvimento. Inclui aspectos etnogrficos

    caractersticos de todo trabalho de pesquisa, com os necessrios recortes: de tempo, de tema,

    de problema, de objeto.

    A abordagem tem foco nas polticas culturais, sem direcionar para uma gesto

    especfica: tento tratar de arte, pelo que se v, de histria, pelo que se faz e necessariamente

    no visto, mas reflexo de processos produtivos individuais e coletivos. Tento estabelecer

    suas relaes com as noes de patrimnio, produo artstica, reconhecimento pela sociedade

    e pelos organismos representativos do Estado, referenciados nas trs dimenses registradas

    pelas proposies do Plano Nacional de Cultura: simblica, cidad e geradora de trabalho e

    renda.

    Em se tratando de histria, vamos consider-la como o lugar das relaes sociais,

    observando o tempo em que se deram, sem preocupao com um distanciamento temporal

    necessrio para caracterizar neutralidade axiolgica. Para quem pesquisa, negar-se como

    sujeito que interage com seu objeto, evidencia as limitaes deste desejo. Penso que, por mais

    que busquemos uma iseno na busca e anlise de fontes, teremos sempre uma mera tentativa

    de no mesclar valores pessoais anlise. Nas relaes humanas, a ateno ao modo como se

    verificam em sociedade, sua intensidade e as atitudes delas decorrentes, podem evidenciar

    situaes de poder, que alteram o devir social, ao mesmo tempo em que representa

    expectativas de transformao social, cobertas de uma intencionalidade que, por parte dos

    gestores de governo, pode constituir-se proposta paternalista ou protecionista, baseada em

    preconceitos e valores extrnsecos manifestao. Os brincantes sabem o que querem, talvez

    no conheam os caminhos para alcanar suas expectativas, nas demandas que podem

    apresentar aos governos representantes do Estado.

    As relaes entre Cultura e Educao existem, a partir de concepes tericas e de

    iniciativas do poder pblico, mas talvez para simplificar o modo de atuao ou mesmo pelo

    modo como a escola e a universidade conquistaram seu nvel de organizao formal, mais

    simples visualizar, na Cincia da Educao, o fazer escolar ou universitrio como objeto de

    anlise, cuja visualizao das questes melhor documentada, nos trmites das instncias

    administrativas e no prprio planejamento pedaggico, nas instituies de ensino. Na ao

    cultural, as experincias tm base emprica, muitas vezes intuitiva, a preocupao com a

    memria inexiste. O imediatismo de aes, a amplido das demandas, a falta de um programa

    poltico que oriente as iniciativas do poder pblico, geram dificuldade de anlise e decises

    apressadas. Isso talvez aproxime as polticas culturais da oralidade, no sentido da

    compreenso de fazeres, nem sempre passveis de registro ou de documentao. Embora

  • 18

    ligada oficialidade, e de modo genrico, a gesto da cultura est mais vinculada a indicaes

    polticas, muitas vezes sacrificando os pareceres tcnicos e as experincias sistematizadas

    com o intuito de conciliar os desejos da coletividade e das gestes polticas. Estas se

    caracterizam pelas alteraes nos organogramas das instituies de cultura, a cada governo,

    sem que representaes sociais, por meio de conselhos de cultura, por exemplo, se

    posicionem de modo efetivo, intervindo nos caminhos das polticas culturais.

    Uma tentativa de promover uma viso sistmica produo do conhecimento aplica-se

    s duas comunidades, apesar de suas diferenas. Corro o risco de homogeneizar minha

    anlise, mas trata-se de uma perspectiva. Minha opo de sistematizao se quer desprendida

    do desejo de estabelecer verdades ou reconhecer fronteiras. Do ponto de vista da formao

    cultural, importante uma relao destas reflexes com o que se pode chamar redes de

    conhecimento e de significados, como proposio para a ao cultural de instituies que

    pretendam articular cultura e educao. Ao mesmo tempo em que a ideia de rede pressupe

    dimensionar o estudo na perspectiva dos fios tecidos em redes sociais, a partir das diversas

    formas de conhecimento a ser criadas (no restritas ao aparato tecnolgico informacional), a

    articulao de interesses das comunidades com as prioridades definidas por instncias oficiais

    de gesto poltica, pressupe tambm intercmbio e troca permanente de saberes colhidos

    individual e coletivamente: preciso compreender o saber que surge do uso, com sua forma

    e inventividade prprias (ALVES; GARCIA, 2002, p.120).

    O dilogo entre as culturas, proposto pela noo de interculturalidade, torna possvel

    um aprendizado mtuo, numa relao dialgica complementar e cooperativa, sobre as prticas

    dos sujeitos.

    A opo pela intercultura exige uma reflexo sobre a formao da[s] nossa[s]

    identidade[s], que se constri a partir do contato com o outro. [] o reconhecimento da multiplicidade cultural tem de refletir-se, na dimenso poltica, em acesso pleno

    cidadania para todos os sujeitos. (FLEURI, 2002, p.121)

    Inevitvel explicitar a relao deste estudo com a noo de patrimnio e

    patrimonializao. O primeiro, legado reconhecido socialmente. A segunda, o reconhecimento

    oferecido pelo Estado para a importncia de tal. A tenso que envolve os dois movimentos

    est no sentimento que as pessoas nutrem pelo bem considerado patrimnio. Ao falar em

    pessoas, a relao com as lembranas individuais e a memria coletiva recorrncia. Para as

    polticas de Estado, no parece haver como atuar sem o sacrifcio de muitas memrias. Ao

    mesmo tempo, no h como evitar iniciativas de preservao. A perda de memrias, que

    poderiam ser responsveis pela preservao de muitos valores, outro fator inevitvel.

  • 19

    Mesmo os valores, se renovam. Os comportamentos se recriam, na medida em que se renova

    o pensar humano. As identidades, ou seus referenciais, se transformam, sempre.

    A despeito das tentativas, as polticas pblicas no atingem todas as formas de

    expresso: primeiro, porque elas no so capturveis, quando h intuito de preservao, seno

    parcialmente, a partir de um nmero limitado de formatos. As formas de expresso podem ter

    um nico nome, mas assim mesmo so diversas, entre si e na relao com o Estado. Segundo,

    nem todas as populaes, indivduos ou grupos que se expressam so visualizados pelo

    Estado. Quando muito, so atingidos pelo Estado, de uma forma residual; a instituio estatal

    no d conta de proceder a verificaes, seja por falta de priorizar a avaliao do alcance das

    suas iniciativas, seja porque outras aes so priorizadas. O fato de no haver atendimento

    estatal no impede uma viso patrimonialista, no sentido de preservao de valores e prticas

    pelos grupos sociais. A noo de patrimnio pode no ser verbalizada ou institucionalizada,

    mas est presente quando as prticas so vivenciadas, repetidas ou transformadas. Todas as

    pessoas atuam socialmente com noes de patrimnio, o que torna este um conceito

    aproximado da noo de cultura, com a diferena que a cultura vivncia historicamente

    constituda e patrimnio concepo que remete ideia de memria e preservao.

    A obra, por definio, destinada ao uso, diz Gadamer (GADAMER, 1985, p.24).

    Mas o que a obra? Apenas um produto material? Mais que isso, a obra pode ser representada

    por fazeres e crenas, produtos da convivncia e das escolhas humanas. Gadamer

    (GADAMER, 1985, p.25) defende que a arte s possvel porque a natureza deixa ainda algo

    de sobra, algo a configurar que, em seu fazer plstico, deixa um espao vazio de configurao

    ao esprito humano, porque

    fato que vemos a imagem ao mesmo tempo a partir das coisas e que imaginamos a

    imagem nas coisas. Assim, na fora imaginativa, na fora do homem de imaginar-

    se uma imagem, que a reflexo esttica orienta-se principalmente (GADAMER,

    1985, p.31).

    Os sentidos sobre o que chamo brincadeira de adultos se apoiam em Gadamer, quando

    ele afirma que tradio no quer dizer certamente mera conservao, mas transmisso. A

    transmisso, porm, inclui que no se deixe nada imutvel e meramente conservado, mas que

    se aprenda a dizer e captar o velho de modo novo (GADAMER, 1985, p.74). Como o samba

    de coco no ocorre, seno em espaos de festa, falemos dela como arte, como sugere

    Gadamer, tomando o samba de coco como o lugar em que todos se encontram pela msica,

    pela letra das canes, pelo canto e pela dana.

  • 20

    Para considerar o samba de coco como expresso artstica especfica de um segmento

    da populao, interessante uma observao a partir do que se arte chama afro-brasileira.

    Conduru prope uma reflexo sobre essa ideia, considerando que

    a expresso arte afro-brasileira indica no um estilo ou um movimento artstico

    produzido apenas por afrodescendentes brasileiros, ou deles representativo, mas um

    campo plural, composto por objetos e prticas bastante diversificados, vinculados de

    maneiras diversas cultura afro-brasileira, a partir do qual tenses artsticas,

    culturais e sociais podem ser problematizadas esttica e artisticamente (CONDURU,

    2007, p.11).

    Mais do que sugere Conduru, as especificidades de uma manifestao qual se atribui

    carter de afro-brasilidade repercutem na comunidade em que tal produo est inserida,

    alm de proporcionar o intercmbio das tenses apontadas pelo autor com as prticas culturais

    do espao onde est inserida, interagindo com outros setores da sociedade, como o poder

    pblico. O samba de coco expresso artstica. Entretanto, a viso da arte, simplesmente,

    como parcela da cultura ou mesmo da cultura como arte tambm problemtica, porque

    reducionista. O que caracteriza o samba de coco como arte inclui a multiplicidade de formas

    como se apresenta. Este um elemento importante, mas no significa dizer que nos locais

    onde a manifestao parece se apresentar de modo similar, no haja produo artstica. O que

    se espera do artista para que ele tenha reconhecimento, inclui originalidade, carisma, talento,

    capacidade criativa para renovar sua produo e interao com seu pblico, de modo que este

    deseje repetir em tempo indefinido a experincia vivenciada no contato com a obra, o que

    significa mais do que apenas apreciar.

    As dvidas sobre o carter artstico da brincadeira do samba de coco encontrada em

    Castainho e em Atoleiros existem em funo de que as letras das canes parecem ser o nico

    canal onde a criao se verifica, sem improviso na sua produo. O improviso existe no modo

    de cantar. Regra geral, no h grandes variaes entre o ritmo, os instrumentos e a dana

    encontrada nas duas comunidades. A performance, como livre, se apresenta dos modos mais

    diversificados, porque praticada por indivduos diferentes, pouco submissos a regras pr-

    definidas e sem qualquer registro de formas padronizadas nos gestos e passos da brincadeira.

    Os grupos de Castainho e Atoleiros, com dana e canes diferentes, apresentam-se tambm

    de modo diferente, movidos por um eixo condutor que mais parece regulado pela palavra

    samba, como cerne de um movimento que agrega os moradores das comunidades, em

    situaes festivas. O trup um elemento central no samba de coco das comunidades,

    especialmente no Castainho, onde se v a umbigada, diferente da dana aos pares, no

    Atoleiros. Perguntados sobre por que fazem o samba de coco, os brincantes de Atoleiros e

    Castainho, Manoel Dura e Joo Faustino, parecem no entender o sentido da questo

  • 21

    colocada. No parece ser o caso de pensar sobre as razes que os mobilizam para a

    brincadeira: ela os envolve numa espcie de movimento inevitvel, oferecendo um sentido

    para o viver. Festejar, gostar, preservar, reunir pessoas parecem motivos banais, mas explicam

    o brincar o coco nas duas comunidades, sem maior preocupao com porqus ou senes.

    Simplesmente se brinca.

    Os dois grupos artsticos de cada comunidade no poderiam ser tratados da mesma

    maneira, no apenas por sua diversidade intrnseca, mas pela forma distinta como se

    relacionam com a brincadeira. Essa pluralidade, nas comunidades brincantes, na forma

    diversa como se relacionam com o seu fazer a brincadeira, na comunidade ou nas

    apresentaes feitas fora dela, que definiu essa escolha, na tentativa de evidenciar

    concretamente as diferentes formas de fazer a brincadeira, de utiliz-la como parte das vidas

    nas comunidades que, paradoxalmente, chegaram aos brincantes pela ancestralidade, pela

    famlia, pelos pais, principalmente, e permitiram disseminao entre os amigos e preservao

    na contemporaneidade, independentes das polticas culturais. A festa o que rene a todos.

    Parece-me um trao caracterstico do festejar que ele no algo seno para aquele que

    participa dele (GADAMER, 1985, p.75). A Banda Folclore Verde do Castainho tem um

    samba de coco mais autoral, cuja produo concentrada em Z Romo e Joo Faustino,

    enquanto fazer o Samba de Coco Santa Luzia envolve vinte e sete pessoas da comunidade; as

    canes so elaboradas quase no anonimato, sem concentrar a autoria em nenhum dos

    integrantes do grupo de modo enftico. Ainda que os grupos apresentem caractersticas

    semelhantes, como o fato de integrarem comunidades rurais, cuja remanescncia

    afrodescendente um dos discursos mais aparentes, a pluralidade precisa ser um indicativo da

    complexidade e da incompletude de qualquer forma de anlise tentada.

    O que chamo idealizao histrica um processo de ressemantizao do passado,

    contido no discurso de moradores das comunidades observadas. Temo que falar em

    ressemantizao nas relaes com a negritude pode auferir prejuzos e no conquistas para as

    comunidades de que trato, em se tratando, por exemplo, do reconhecimento de Atoleiros

    como remanescente de quilombo. Quanto a esse risco, aposto na regulamentao do artigo 68

    da Constituio Federal, pelo decreto 4887, de 20 de novembro de 2003, que defende que a

    caracterizao dos remanescentes das comunidades dos quilombos deve ser atestada

    mediante autodefinio da prpria comunidade (ABREU; MATTOS, 2007, p.100). Aposto

    tambm na capacidade de mobilizao das comunidades em seu prprio benefcio. Este um

    problema que envolve as dimenses terica e poltica. Terico, para este trabalho, porque

    relacionado histria do tempo presente. Pessoas vivas compem esta narrativa. Como tal,

  • 22

    tm necessidades e interesses. Poltico, porque algumas anlises podem levar um leitor

    desavisado a interpretaes equivocadas, em busca de uma veracidade no discurso,

    especialmente em se tratando do que se pretende seja fato indiscutvel. Atualmente, o Estado

    brasileiro oferece um avano, em termos polticos, quanto aos problemas relativos grande

    maioria afrodescendente: a possibilidade de se autoatribuir a qualidade de remanescente de

    quilombo. Rejeitar esta autoatribuio, da mesma maneira que aceit-la, sem maior reflexo,

    pode significar apenas desconhecimento de uma histria que as memrias individuais, que

    tomam por referncia a memria coletiva, podem aferir. Mas pode gerar desdobramentos que

    resultem, por um lado, na absteno, pelo Estado, do seu compromisso com cidads e

    cidados e, pelas comunidades, em permanecerem excludas dos processos de incluso social

    pela cultura.

    A construo de um Plano Nacional de Cultura ajuda neste conceber das aes e

    polticas pblicas de cultura, porque reflete interesses da populao, na rea de cultura,

    atravs das conferncias de cultura municipais, estaduais e nacionais que, ano a ano, vm

    empreendendo esforos na construo de um projeto nacional para a cultura que a

    compreenda em consonncia direta com a atividade educativa, ampliando o universo da

    cultura, tradicionalmente restrito a expresses da arte erudita, para uma base patrimonial, e

    abrangendo tambm o universo da educao, que pode mais do que os restritivos modelos de

    currculos, que muitas vezes ignoram as diferenas, sua pluralidade e potencialidades, como

    importantes referentes para construo de conhecimento e incluso social. Quando se fala em

    incluso social pela cultura, diz-se tambm da incluso social pela educao, que no pode

    restringir seu olhar a necessidades ou carncias fsicas, mas falta de ateno ao livre pensar,

    ao criar e fazer autnomos.

    O tempo objeto desta anlise se inicia a partir do ano 2000, especialmente

    considerando a regulamentao de um discurso e uma estratgia nacional para o patrimnio: a

    chamada Lei do Patrimnio Imaterial (Decreto 3551, de 04 de agosto de 2000), que orienta

    polticas pblicas que promovem iniciativas inventariais, quando sugere a criao de livros de

    registro de bens considerados patrimoniais tratados como bens a serem protegidos, mantendo

    uma poltica nacional para ao patrimonial que vem desde os anos de 1930, quando as

    iniciativas nacionais em preservao de patrimnio se tornaram mais intensas, inclusive

    depois da criao de instituies pblicas, como o Instituto do Patrimnio Histrico e

    Artstico Nacional IPHAN, para tratar especificamente da questo. Mas este decreto tenta

    extrapolar esta dimenso, ao prever, no 2 do artigo 1, a necessria ateno memria e

    identidade das populaes: a inscrio num dos livros de registro ter sempre como

  • 23

    referncia a continuidade histrica do bem e sua relevncia nacional para a memria, a

    identidade e a formao da sociedade brasileira. Mas o que vem a ser relevante no contexto

    das manifestaes chamadas populares, quem define este destaque, porque sua identificao

    deve ser centralizada e seu reconhecimento renovado pelo Estado nacional, o modo como ele

    efetivamente interpretado e tratado pelas polticas e aes pblicas municipais e estaduais

    so discusses que merecem espao. O tempo se relaciona com a contemporaneidade, mas

    no elimina a busca de referenciais histrico-documentais que fortaleam as aspiraes de

    historicidade dos depoentes. Neste sentido, penso que a relao entre histria e antropologia

    se fortalece.

    O perodo analisado prioriza os anos 2000-2007. Quanto mais inserido no tempo do

    seu objeto de pesquisa, mais o pesquisador se faz presente, tornando-se elemento que

    interfere, inevitavelmente, na sua anlise. Trabalhar polticas pblicas de cultura nos anos

    2000 pode representar, ao mesmo tempo, essa proximidade, alm de oferecer o falso

    entendimento de uma tentativa de homogeneizar questes que no so nicas, ao mesmo

    tempo em que no permitem explicaes totalizantes ou completas.

    Embora se relacione com educao patrimonial, este estudo no um trabalho de

    educao patrimonial, pretende ser um trabalho que reconhece noes de patrimnio e de

    preservao como recurso e prtica educativa. Aqui, interessante esclarecer sobre o

    raciocnio que motivou cada captulo, procurando criar pelo menos intersees entre eles, se

    no uma reciprocidade entre cada um, j que so complementares, embora tratem de temticas

    aparentemente diferentes. Assim, falar de histria oral e entrevistas fundamento para

    entender a metodologia e suas potencialidades interpretativas. Falar de patrimnio uma

    forma de distinguir as polticas pblicas de cultura, em geral divididas entre aes de balco e

    aes transformadoras, estruturadoras de novas prticas sociais. Nestas, incluem-se as

    polticas pblicas caracterizadas por aes de formao, que tem por objetivo fortalecer as

    manifestaes populares. Identificar anlises dos folcloristas quanto ao coco ajuda na

    percepo das dimenses historiogrficas do samba de coco e nos subsdios que podem

    oferecer s polticas culturais.

    Garanhuns polariza um entorno de vinte e seis municpios. Caets um deles.

    Juridicamente, municpio autnomo, mas no tem autonomia na elaborao de polticas

    culturais, que so, via de regra, articuladas por pessoas que tiveram sua formao ligada a

    Garanhuns. Este, por sua vez, em matria de polticas culturais, tem entre suas referncias

    Recife, capital do Estado. O Stio Castainho est em Garanhuns. O Stio Atoleiros, em Caets.

    Comunidades diferentes, aproximadas geograficamente, pelos municpios que integram, que

  • 24

    tem caractersticas diferentes na organizao socioeconmica, espacial e poltica. Atoleiros

    busca uma identidade prpria, assim como Castainho. Mas, em Atoleiros, essa busca fica

    evidenciada pelo desejo de ser reconhecida como remanescente de quilombo. Como

    Castainho j tem esse reconhecimento, avana mais nas relaes com o poder pblico e na

    conquista de benefcios para a comunidade.

    Na linha das expectativas depositadas sobre uma tese, seria de se esperar o tratamento

    a uma comunidade e no a duas, como o caso. No tendo em vista uma viso totalizante do

    tema ou um estudo de caso, escolhi trabalhar com duas comunidades que tm vivncias

    diferentes com o samba de coco e que foram alcanadas pela formao cultural promovida

    pelo Festival de Inverno de Garanhuns de formas distintas, o que no significa que outras

    comunidades, com perfil semelhante, no o foram. Tampouco quer dizer que o samba de coco

    inexiste nas demais ou que as polticas culturais conduzidas pelo Festival de Inverno para as

    diversas comunidades da regio estivessem atentas arte produzida nas comunidades.

    Estavam atentas aos sentidos que a arte pode oferecer ao esprito humano, mas ignoraram o

    que as comunidades faziam, em muitas situaes.

    No pretendi tratar as comunidades da mesma maneira, buscando em ambas

    caractersticas semelhantes e informaes homogneas, dentro das mesmas temticas, sobre

    cada uma delas. Primeiro, porque penso que o contedo se tornaria enfadonho e por demais

    formalizado, dentro dos parmetros de um racionalismo que apenas d suporte reflexo que

    proponho. Depois, porque, de fato, no analisei as duas comunidades: busquei analisar os

    brincantes do samba de coco e a forma como o samba de coco se apresenta nos dois stios,

    geograficamente prximos, mas substancialmente diferentes, oferecendo brincadeira a

    mesma denominao. Aplicar as mesmas perguntas foi uma prtica nas entrevistas, mas a

    trajetria dos depoimentos as conduziu para as diferenas. Mesmo sabendo da incapacidade

    deste trabalho em dar conta da complexidade das relaes sociais, da brincadeira e seus

    impactos sobre o local onde produzida, a ideia foi, a partir de diferentes olhares, estabelecer

    uma complementariedade entre os dois espaos de brincadeira, onde a afro-brasilidade um

    elemento declarado e existe como uma espcie de escudo protetor em defesa da existncia dos

    prprios grupos de brincantes e, por extenso, das comunidades. Tentativa de analisar, no s

    descrever. Da a incluso de exemplos como auxiliares nas conceituaes. Aqui, o exemplo

    estratgia que ajuda a viabilizar a construo dos conceitos. O recurso a alguns mitos parte

    das representaes da afro-brasilidade, que ajuda nesse processo de compreenso dos

    contextos tratados: no utilizado como mera ilustrao.

  • 25

    Estabelecendo relaes no lineares entre o tema e o dizer dos depoentes: o processo

    criativo, no apenas o produto, est na pauta da discusso. Do processo criativo, tento extrair

    as concepes que norteiam as prticas. Tais concepes refletem aprendizados e vivncias

    interpretadas pelas geraes contemporneas de produtores de samba de coco. No Captulo 1,

    tentei elencar os tericos e os aspectos de sua produo que me influenciaram nesta discusso,

    ao mesmo tempo em que discuto sobre o depoimento como fonte de pesquisa. No caso do

    Captulo 2, observo a noo de polticas pblicas de cultura descrevo, demonstro, a partir de

    situaes conhecidas, concretizadas a partir de polticas de formao cultural empreendidas

    pela Prefeitura do Recife.

    No Captulo 3, discuto a formao cultural para o samba de coco, a partir da viso de

    tericos que trataram da manifestao e de como se apresentam as relaes entre as polticas

    culturais e a regio de Garanhuns e seu entorno. Ainda que sem inteno de utilizar como

    elementos para este projeto, durante a vivncia, a contribuio que dei no FIG, em 2004,

    articulando integrao do FIG com a universidade, atravs da atuao de estudantes de

    graduao como auxiliares das oficinas e a participao como coordenadora de um segmento

    das oficinas do FIG, em 2005, constituiu-se fonte de observaes que ajudaram a compor o

    captulo.

    O Captulo 4, entre outras temticas, trabalha noes de ancestralidade e idealizaes

    (processo de elaborao e reelaborao de memrias) de historicidade, utilizando-se de

    memrias como fundamento para as histrias contadas por brincantes, as menes ao

    Quilombo dos Palmares e ao ano de 1816 como elementos fundantes de um passado

    memorvel, para integrantes da Banda Folclore Verde do Castainho e do escravismo como

    discurso de referncia para o Samba de Coco Santa Luzia, de Atoleiros. Estratgias utilizadas

    como polticas nacionais de reparao s comunidades remanescentes de quilombo e a noo

    de dever de memria so trazidas como inspiradoras de memrias de negritude a serem

    propaladas. Histrias do samba de coco, a relao do samba de coco com os festejos juninos,

    utilizando autodenominaes de moradores das comunidades como negros ou morenos,

    recorrendo enquete elaborada para o projeto deste estudo e aos depoimentos coletados com

    brincantes do samba de coco em Castainho e Atoleiros so fundamentos para a discusso.

    No Captulo 4, as aproximaes feitas pelos depoentes sobre a relao entre o conceito

    de cultura e o samba de coco coloca a brincadeira como prtica cultural, o que me pareceu

    suficiente para sinalizar minha viso sobre conceitos que classificariam a manifestao aqui

    tratada. No promovo uma reflexo sobre folclore e cultura popular. As questes sobre os

    conceitos de folclore ou cultura popular tm promovido um debate intransponvel, que pouco

  • 26

    extrapola a dimenso terica. Ao pesquisador cabem justificativas para a opo entre uma,

    outra ou nenhuma, considerando ambas. Em primeiro lugar, tento identificar a relao dos

    discursos da comunidade com as polticas pblicas para o segmento e algumas de suas

    vinculaes tericas. Em seguida, trabalho a relao do samba de coco com a msica popular

    brasileira e como reflexo de registros historiogrficos sobre a msica popular brasileira,

    herdeira de relaes entre a arte africana e a modernidade, passando por impresses sobre o

    Stio Atoleiros e destacando, no Stio Castainho, a produo literria de Joo Faustino. Minha

    fala transita entre as falas dos brincantes, no o contrrio. uma forma de lhes reconhecer o

    saber adquirido independente da escola, que os habilita a ensinar, a partir de suas prticas,

    embora no disponham de instrumentos para ter um projeto de oficina aceito pelas polticas

    culturais.

    A multiplicidade de estratgias, fontes e reas de conhecimento envolvida nesta tese

    converge para um mesmo desejo: valorizao e fortalecimento de prticas existentes nas

    comunidades mais diversas, inclusive na relao com a afro-brasilidade, frutos da

    inventividade humana e sua capacidade de compartilhamento de sentimentos, originrios de

    prticas coletivas geradas a partir da msica e seus componentes, que envolvem a socializao

    de experincias e se traduzem em encantamento coletivo.

  • 27

    1 REFLEXES TERICAS E METODOLGICAS

    1.1 Um marco importante

    Deveria ser uma banalidade por todos reconhecida, o fato de que no caso do trabalho

    de reflexo, retirar os andaimes e limpar os arredores do edifcio, no somente em

    nada contribui para o leitor, mas tambm lhe tira algo de essencial. Ao contrrio da

    obra de arte, aqui no h edifcio terminado e por terminar; tanto e mais que os

    resultados, importa o trabalho da reflexo e talvez seja sobretudo isso que o autor

    pode oferecer. [] Construir sinfonias ou compor sinfonias no pensar. A sinfonia, se existe sinfonia, deve o leitor cri-la com seus prprios ouvidos.

    (CASTORIADIS, 1982, p.12)

    Com este texto de Castoriadis, inicio minhas reflexes. Mais do que elencar ou

    categorizar os incontveis modos de pensar, carrego a ideia de, em me fazendo compreender,

    estimul-los, com a pretenso, simplesmente, de voltar olhares para modos de educar que no

    esto apenas na escola ou na universidade, no foram regulamentados por saberes oficiais e

    que no esto ameaados de desaparecimento: as relaes interpessoais e a capacidade

    humana de criao, por intermdio da historicidade e da arte. Implcito a esta pretenso, est o

    desejo de ver alguns desses modos de educar, que representam modos de pensar, utilizados

    como referenciais para gerao de processos educativos mais amplos, desprovidos de vises

    preconceituosas. Estes modos de educar podem ser reconhecidos e utilizados como estratgias

    educacionais, com aparato institucional, respeitando procedimentos que ainda no foram

    sistematizados de acordo com normalizaes tradicionalmente utilizadas, podendo ser

    produzidos para utilizao como referenciais na busca pelo conhecimento. Garantidos pela

    ampla liberdade de conhecer, imaginar e criar, tais processos educativos, porque criativos,

    estimulam os fazeres individual e coletivo autnomos, possibilitando autoconfiana e incluso

    daqueles que, por alguma razo, no se integraram para finalizao de processos educativos

    formais.

    Cornelius Castoriadis, filsofo grego de formao francesa, acredita na necessidade

    humana de constante transformao, que tem lugar no imaginrio social. Para ele, o

    conhecimento um esforo de compreenso que, uma vez fechado, se torna uma ideologia.

    Quando se estabelece uma forma de pensar que todos adotam, ela se mostra insuficiente, por

    ser hegemnica, gerando novos modos de pensar, tratados pelo autor como criao histrica.

    O saber objetivo e subjetivo, tomado pelo ser humano como sujeito que se coloca como

    objeto, na busca de auto compreenso, pois o saber existe apenas pelo homem e para o

  • 28

    homem. O abstrato e o particular, ou o concreto, so exemplos; a singularidade a essncia

    do ser.

    Castoriadis trata do confronto, referenciando-se em Marx. Diz ser o confronto

    elemento fundante do conhecimento. A luta do conhecimento desalojar uma viso para

    construir outra, utilizando a linguagem como meio para modelar o imaginrio. Este se

    estabelece dentro das relaes, inclusive pela linguagem, pelas significaes, representaes e

    instituies. Para Castoriadis, a idia vem da conscincia e no da realidade que, por sua vez,

    jamais poder ser apreendida ou explicada em sua totalidade. Tudo o que existe o que entra

    no nosso universo de representaes. E tudo o que existe na sociedade, as criaes,

    interpretaes, observaes, pode ser incorporado historicamente. Resta saber como isso se

    d.

    Castoriadis discute com os estruturalistas, para quem as diferentes sociedades

    humanas resultam apenas de combinaes diferentes de um nmero reduzido de elementos

    variveis, e os hegelianos, quando defendem que a sucesso histrica acontece de forma

    sistemtica nos diferentes tipos de sociedade, dizendo, em confronto com Hegel, que

    acreditava ser possvel o fim da histria, pois a conquista do saber absoluto era a meta da

    histria como cincia. Uma vez alcanada tal meta, nada mais haveria a tratar. Como Hegel

    admite no haver um tempo que pare, reconhece, talvez sem perceber, que a histria tambm

    no finda.

    As possibilidades com relao histria humana existem, mas no podem ser

    relacionadas. De certa forma, elas esto, acredita Castoriadis, pairando de acordo com um

    momento, com uma circunstncia que possibilita a criao, elemento que permitir a infinita

    capacidade humana de se adaptar e gerar o novo. Com os existencialistas, Castoriadis discute

    sobre a essncia do ser. Para estes, ela no existe. Para Castoriadis, contudo, a essncia existe

    e mutvel, na medida em que definida pela criao como especificidade central.

    O indivduo sujeito sempre ligado ao institudo, caracterizado por normas, valores,

    pela linguagem. Ao tratar da criao histrica, Castoriadis defende que existe uma lei

    histrica para instituio do social. Entretanto, a criao a essncia da histria, que s se

    realiza nas relaes, no conjunto social onde se constitui o prprio imaginrio. A essncia,

    diferentemente da viso tradicional, que sugere uma origem nuclear fixa, possui um ncleo

    mutvel que propicia a criao. Esta ocorre nos nveis do psquico e do social-imaginrio.

    Para Castoriadis, criao no indeterminao; estar aberto a novas possibilidades.

    , portanto, posio de novas determinaes. Assim, criao a capacidade de fazer surgir o

    que no estava dado e pode no ser derivado daquilo que j era dado. A criao reside na

  • 29

    imaginao, utiliza os elementos que j existiam, sob uma nova forma, de onde emerge o

    novo.

    Os mitos no so resultados de leis da fsica, em Castoriadis, mas aritmtica e mito

    ilustram as dimenses em que se desdobra a sociedade humana: a conjuntista-identitria, que

    classifica e tende a hierarquizar. Alm desta, Castoriadis identifica a dimenso por ele

    chamada propriamente imaginria, onde predomina a significao. Ambas podem ser

    localizadas, mas no determinadas plenamente, porque dependem dos diferentes modos de

    interpretao. A diferenciao identificada pelo autor entre o mundo biolgico e o mundo

    scio histrico reside na autonomia do ltimo. Desse modo a qualidade atribuda autonomia

    a de possibilitar a criao, pois ela no existe proporcionando o fechamento da histria, ao

    contrrio, porque aberta, propicia a mudana histrica que passa pelo institudo e pelas

    instituies. Mas questionar a instituio no significa alter-la, pois Castoriadis entende que

    a tendncia do social que, assim que algo novo aparece, tenta-se reduzi-lo s categorias

    conhecidas. A autonomia permite observar o institudo e alter-lo na medida ilimitada da ao

    humana advinda da sua capacidade criadora.

    O imaginrio de que trata Castoriadis no imagem de. criao incessante e

    essencialmente indeterminada (social-histrica e psquica) de figuras, formas e imagens, a

    partir das quais somente possvel falar-se de alguma coisa. Aquilo que denominamos

    realidade e racionalidade so seus produtos. [] Todo pensamento da sociedade e da histria

    pertence em si mesmo sociedade e histria (CASTORIADIS, 1982, p.13). Ao mencionar

    Herclito, Castoriadis trata do que considera uma ousadia do filsofo: escutando no a mim,

    mas ao logos, acreditem que no nunca o logos que escutam; sempre algum, tal como ,

    de l onde est, que fala com seus riscos e perigos, mas tambm com os de vocs

    (CASTORIADIS, 1982, p.14).

    Castoriadis um marco importante para este trabalho especialmente pela viso

    filosfica que traz para a histria, que pode ser direcionada para a produo historiogrfica.

    Esta viso tem na criao elemento que, mais do que a dinmica social tradicionalmente

    reconhecida pelas humanidades, demonstra que as aes humanas decidem os caminhos da

    sociedade, deixando claro que os processos de escolha dos grupos sociais, mesmo com

    predominncia de uns sobre outros, propiciam a percepo de inveno das instituies, o

    respeito ou conflito, quanto ao seu ordenamento, valores e mitos.

  • 30

    1.2 Situando o estudo

    Um estudo requer leitura e decises. Muitas vezes um pesquisador, na sua busca por

    respostas, relaciona cada uma de suas diversas leituras, a aspectos que podem ser aproveitados

    para desenvolver seu estudo. Isto visibiliza uma pluralidade de opinies e uma multiplicidade

    de conceitos que colaboram para que a pesquisa assuma uma nova abordagem, mas distancia

    o pesquisador de uma nica teoria que norteie as dimenses de seu trabalho. Meu estudo

    talvez peque neste sentido.

    Entender minha sequncia de raciocnio sobre este trabalho demonstra as relaes que

    pretendo. Pretendo analisar duas comunidades em estgios diferentes de produo cultural,

    principalmente porque, a partir de uma origem tnica, so tratadas pelas representaes do

    Estado nacional como patrimnio cultural. Atoleiros tem no samba de coco uma brincadeira

    originada na comunidade que celebra qualquer acontecimento feliz e que, por interveno do

    poder pblico municipal, comea a se apresentar em palcos fora da comunidade. Castainho

    recebe anualmente oficinas do Festival de Inverno de Garanhuns, patrocinadas pelo governo

    do Estado de Pernambuco, que at 2007 no estimulavam a produo do samba de coco,

    embora ele exista historicamente na comunidade: recebe oficinas que trazem, pelas relaes

    tnico-raciais, atividades de formao artstica, extensivas a outros remanescentes

    quilombolas da regio. Ao mesmo tempo, no se investiga a produo artstica na

    comunidade, estimulando preservao, por meio de formao cultural. Parece que o j

    existente pouco considerado, como se j tivesse reconhecimento, estimulando-se uma

    produo artstica exgena, sugerida pelos gestores culturais e aceita pela comunidade. E o

    prprio reconhecimento transforma a brincadeira em atrao turstica. A residem instncias

    de poder que se complementam: na representao do Estado, atravs dos gestores pblicos; na

    liderana que consulta a comunidade e define encaminhamentos em termos de educao no

    formal ou nos brincantes, que trabalham por reconhecimento artstico fora da comunidade.

    Burke, ao analisar o conceito de cultura, diz que

    estendeu-se o sentido do termo primeiro para abranger uma variedade muito mais

    ampla de atividades do que antes no apenas a arte, mas a cultura material, no apenas o escrito, mas o oral, no apenas o drama, mas o ritual, no apenas a

    filosofia, mas as mentalidades das pessoas comuns (BURKE, 2000, p246).

    Esta concepo de cultura conduz a uma reflexo, que Jos Luiz dos Santos aponta

    como um alerta:

    cultura com frequncia tratada como um resduo, um conjunto de sobras, resultado

    da separao de aspectos tratados como mais importantes na vida social. [] como se fossem eliminados da preocupao com cultura todos os aspectos do

  • 31

    conhecimento organizado tidos como mais relevantes para a lgica do sistema

    produtivo (SANTOS, 2004, p.49).

    O conceito de cultura disseminado socialmente costuma ser relacionado diretamente

    com as manifestaes artsticas. Henri Lefebvre, em seu ensaio O que a modernidade

    (LEFEBVRE, 1969, p.221), trata a arte, a poesia e a linguagem como um sintoma cultural. Os

    chamados sintomas culturais so tratados por Durval Muniz, como

    obras de arte [que] so tomadas [] como discursos, como produtoras de realidade []. As obras de arte tm ressonncia em todo o social. Elas so mquinas de produo de sentido e de significados. []. So mquinas histricas de saber (ALBUQUERQUE, 1999, p.22).

    Ao discutir sobre a condio humana, Hannah Arendt lembra

    a atividade de pensar [como] a mais alta e mais pura atividade de que os homens so

    capazes []. A ao, nica atividade que se exerce entre os homens sem a mediao da matria, corresponde condio humana da pluralidade, ao fato de que homens e

    no o Homem, vivem na terra e habitam o mundo []. Todos os aspectos da condio humana tm alguma relao com a poltica. o discurso que faz do

    homem um ser poltico []. Os homens so seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condio de sua existncia

    []. O que quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relao com ela, assume imediatamente o carter de condio da existncia humana (ARENDT,

    2005, p.13-17).

    Considero que estas reflexes se aplicam s prticas culturais, inclusive as artsticas,

    especialmente nas comunidades objeto de estudo, em funo de que, como representao

    histrica de cada grupo social, tais prticas so reflexos da prpria histria e oferecem

    condio de existncia para muitos.

    Esta premissa para o conceito de patrimnio indcio para a concepo de cultura que

    pretendo considerar. Compreende-se cultura como

    um padro, historicamente transmitido, de significados incorporados em smbolos,

    um sistema de concepes herdadas, expressas em formas simblicas, por meio das

    quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento acerca

    da vida (GEERTZ apud BURKE, 2005, p.51).

    No texto Etnicidade e o conceito de cultura, Fredrik Barth (BARTH, 2005, p.15-30)

    diz:

    Todos concordamos que cultura se refere a algo (tudo?) que aprendido. Mais

    precisamente isso significa que cultura induzida nas pessoas por meio da

    experincia logo, para identific-la, temos de ser capazes de apontar para essas experincias. Convido-os a olhar para a cultura em termos globais e ver que ela

    apresenta no apenas uma enorme variao, mas tambm uma variao contnua.

    Em segundo lugar, devemos pensar a cultura como algo distribudo por intermdio

    das pessoas, entre as pessoas, como resultado das suas experincias. Em terceiro

    lugar, a cultura est em um estado de fluxo constante. () A cultura est sempre em fluxo e em mudana, mas tambm sempre sujeita a formas de controle.

    Cultura mais do que produo artstica, mas , tambm, produo artstica. Neste

    sentido, as dimenses atuais atribudas ao conceito de patrimnio se confundem com a prpria

  • 32

    ideia de cultura, inclusive nas comunidades que analiso. Prope-se a concepo de patrimnio

    em sentido amplo, considerando-o como bens materiais (incluindo a escrita e as artes visuais)

    construdos, o meio ambiente e as diversas formas de conhecimento transmitidas pela

    oralidade.

    A contestao da cultura, nascida da prpria crise da cultura, e que, por sua vez,

    coloca-a em crise, amplia-se, chegando logicamente viso de uma cultura

    antropolgica mais superficialmente limitada arte, porm concernente s

    profundezas da existncia e da relao homem-homem e homem-mundo, e que

    dever-se-ia tornar a cultura de todos. (MORIN, 1992, p.198)

    A histria demanda conscincia individual e coletiva nas relaes sociais e cultura

    um elemento independente de conscincia, existe antes, com ou sem a inteno humana de

    preservao de memrias. No texto A beleza do morto, Michel de Certeau (CERTEAU, 1995,

    p.55) discorre sobre o conceito de cultura popular, analisando o modo como tratada pelos

    estudos acadmicos desde o sculo XVIII. A necessidade de lanar um olhar sobre o outro

    acaba por folclorizar as prticas culturais de grupos distanciados da produo do

    conhecimento ou dos centros urbanos, na viso acadmica sobre o modo de viver dos menos

    abastados. Folclorizar significa olhar o outro, o seu fazer ou suas prticas, reduzindo-os a

    objeto do olhar de quem observa, desconsiderando que este olhar pode ser monocromtico,

    carregado de preconceitos que s identificam sentidos para o que se olha, por quem olha,

    desconsiderando processos integrantes da vida de outrem, cuja importncia no pode ser

    aferida, se olhada apenas por este prisma.

    Certeau atenta para as prticas acadmicas. Considero que a viso de Certeau permite

    uma analogia com as aes das instituies sociais, especialmente as de servio pblico. Para

    ele, o cuidado folclorista deseja localizar, prender, proteger. Seu interesse como que o

    inverso de uma censura: uma integrao racionalizada. A cultura popular define-se, desse

    modo, como um patrimnio (CERTEAU, 1995, p.63). Este estudo planeja um sentido

    oposto, certamente preservacionista tambm, mas que pretende respeitar as ideias dos

    brincantes manifestas atravs da musicalidade, das letras das canes, do canto e da dana, ao

    mesmo tempo em que investiga os movimentos do Estado para formar artistas ou

    profissionais que apoiem sua produo. a observao e a preservao das prticas coletivas

    nas comunidades observadas que move esta idia. O que no impede o reconhecimento de que

    os movimentos transformadores das prticas nas comunidades acontecem, so decises da

    prpria comunidade, mas recebem interferncias externas, muitas vezes sem solicitao ou

    escolha do grupo. Pretendo aproveitar as prticas coletivas como estratgia para demonstrar a

    importncia da historicidade e do pertencimento aos espaos construdos coletivamente. No

  • 33

    se perceba o popular como o que est associado ao natural, ao verdadeiro, ao ingnuo, ao

    espontneo, infncia (CERTEAU, 1995, p.63), mas como diferente modo de viver que

    dispensa hierarquizaes. Estas so dispensveis em se tratando de uma classificao social

    ou de uma categorizao das expresses artsticas. No me interessa discriminar a arte,

    classificando-a como nacional, re