almeida - brincadeira e arte - patrimônio, formação cultural
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Almeida - Brincadeira e Arte - Patrimônio, Formação CulturalTRANSCRIPT
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educao e Humanidades
Faculdade de Educao
Magdalena Maria de Almeida
Brincadeira e Arte
patrimnio, formao cultural e samba de coco em Pernambuco
Rio de Janeiro
2011
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Magdalena Maria de Almeida
Brincadeira e Arte
patrimnio, formao cultural e samba de coco em Pernambuco
Tese apresentada, como requisito parcial
para obteno do ttulo de Doutor, ao
Programa de Ps-Graduao em
Educao, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. rea de concentrao:
Instituies, Prticas Educativas e
Histria.
Orientador: Prof. Dr. Roberto Lus Torres Conduru
Rio de Janeiro
2011
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CATALOGAO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta
tese.
___________________________________________ _______________
Assinatura Data
A447 Almeida, Magdalena.
Brincadeira e arte : patrimnio, formao cultural e samba de coco em
Pernambuco / Magdalena Almeida. 2011. 212 f.
Orientador: Roberto Lus Torres Conduru.
Tese (Doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educao.
1. Folclore dos negros Pernambuco Teses. 2. Negros Pernambuco Canes e msica Teses. 3. Patrimnio cultural Proteo Caets (PE) Teses. 4. Patrimnio cultural Proteo Garanhuns (PE) Teses. 5. Poltica e cultura Pernambuco Teses. 6. Cultura afro-brasileira Teses. I. Conduru, Roberto Lus Torres. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de
Educao. III. Ttulo.
nt CDU 39(813.4)(=96)
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Magdalena Maria de Almeida
Brincadeira e Arte
patrimnio, formao cultural e samba de coco em Pernambuco
Tese apresentada, como requisito parcial para obteno
do ttulo de Doutor, ao Programa de Ps-Graduao em
Educao, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
rea de concentrao: Instituies, Prticas Educativas e
Histria.
Aprovada em 15 de dezembro de 2011.
Banca Examinadora:
_________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Lus Torres Conduru (Orientador)
Instituto de Artes da UERJ
___________________________________________________
Profa.Dr
a. Maria Aparecida Lopes Nogueira
Universidade Federal de Pernambuco
___________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Roberto de Carvalho
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
____________________________________________________
Profa..Dr
a. Nilda Guimares Alves
Faculdade de Educao da UERJ
___________________________________________________
Profa..Dr
a. Ana Chrystina Venancio Mignot
Faculdade de Educao da UERJ
Rio de Janeiro
2011
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DEDICATRIA
Para Mauro Santoro.
Em vida, pela vida em comum, agradeo e
dedico o que h de bom neste resultado, cujo cotidiano compartilhamos.
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AGRADECIMENTOS
Sozinha, no tenho luz. As pessoas que encontro so, cada uma a seu modo, um ponto
iluminado que acende os meus caminhos, me ilumina as ideias e me ajuda a caminhar.
Agradecer isso: reconhecer que, mesmo estando a ss, produzimos um resultado daquilo que
o conjunto de pessoas com quem convivemos nos ajudou a perceber.
Sou neta de uma analfabeta: Maria, ex-prostituta, lavadeira de roupas, que me ensinou
que, apesar das dificuldades, a vida, por derradeiro, vale ser vivida.
Sou filha de um homem criativo: Joo Paulo escolarizou-se at a quarta srie, por
opo; usava supersties para explicar e limitar; mostrou-me a importncia de uma vida com
alegria.
Sou filha de uma autodidata que aprendeu a ler, escrever e contar, por interesse e
curiosidade. Conceio no era escolarizada, mas valorizava a escolarizao. Foi quem me
ensinou a estudar. Ela se foi, neste ano.
Sou nora de uma dona de casa: Dirce, que valorizou sua tarefa, sem deixar de ser uma
grande leitora e analista de livros, de cinema e de mundo.
Sou irm de Guida, Mayne, Jefferson: semelhantes e diversos que me desafiam e a
quem respeito.
Sou me de dois filhos: Caio e Natlia. Mesmo com distncias espaciais, ter meus
filhos estar viva, alimentar-me, encontrar energias para enfrentar os desafios de cada dia
e noite vividos. ser, simplesmente.
Assim
A Natlia, pelas trocas existenciais, pelo interesse pela leitura da minha produo, do
que eu leio, pelas informaes sobre patrimnio e gastronomia e, por ltimo, neste trabalho,
pelo emprstimo de seu computador pessoal, quando fui trada pelo meu.
A Caio, pela presena, sempre. Por trazer Alissa para minha vida. Pelo testemunho,
sobre Atoleiros. Pelos apoios sobre informtica e idiomas.
A Alissa, pelo companheirismo, pela alegria de viver, por me trazer Pandora, uma
felina surpresa, por me mostrar a pgina da Misso de Pesquisas Folclricas e por me lembrar
do caso do bolo de rolo, entre outras coisas que contriburam para esta produo.
Famlia Gomes, especialmente pela acolhida no Rio de Janeiro. A famlia me deu
abrigo, me alimentou e me deu carinho, compartilhando comigo o seu cotidiano. Com Evelyn,
revivi uma amizade de infncia, desde os tempos de colgio, depois do reencontro, com
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Mauro na minha vida, sua mudana para o Rio e agora: dividimos risadas, compartilhamos
dificuldades, como amigas, mulheres, mes, esposas, filhas, irms. Com a filha, Luza Gomes,
o sorriso sempre aberto e a generosidade ao dividir o quarto. Como vivi situao semelhante,
na minha adolescncia, sei o que significa ter seu espao subtrado, para abrigar algum que
no foi sua escolha no seu ciclo de amizades. Com Luiz Cludio, a delicadeza e a orientao
sobre a cidade, nos caminhos do metr. Com Luza Malaquias, recifense, assistente da casa,
os deliciosos legumes cozidos, segundo ela temperados apenas com sal (talvez no Rio
maravilha sejam mais gostosos) e as conversas sobre como andar de nibus na cidade e sobre
a vida, nas divertidas pequenas diferenas entre o Rio de Janeiro e o Recife. Com Henrique,
num momento muito reservado da sua vida, s vsperas do vestibular, que procurei respeitar.
Com Amlia, muito Amlia, s Amlia. Mulher simples, de pouco estudo e muitos saberes
sobre a vida. Talvez o maior deles seja viver... Nas minhas lembranas, no era da infncia
que Evelyn emergia, mas do final da faculdade, graas sua amizade com Mauro, meu
companheiro de vida, com quem a relao apenas comeava, ento. Estar na casa de Evelyn
foi ter uma famlia no Rio de Janeiro, com seus inconvenientes e alegrias. Foi caminhar pela
Gvea e encontrar um famoso ou uma celebridade, com quem ningum fala, para no invadir
sua privacidade, fazendo de conta que so pessoas comuns. Foi, ainda, pelo caminhar na
Gvea que vivenciei a clssica cena de O pecado mora ao lado, em que Marilyn Monroe teve
a saia levantada por um ventilador de subsolo. Lembrar desta cena foi a forma de rir quando,
defronte ao Shopping, uma lufada de ar quente subiu do subsolo para levantar meu vestido at
a altura da cabea, num susto inesquecvel. Foi Evelyn quem disse a Luza, sua filha, que eu
era a sua amiga de infncia que, aos onze anos, no Ginsio Pernambucano, sofreu e chorou,
por ser enorme e no aparentar a idade infantil. Foi em Evelyn que me amparei (e, acho, o
amparo foi mtuo) nos caminhares da temporada no Rio de Janeiro, como mulheres que
trazem consigo todos os papis que a vida lhes pde reservar. Dividir espao com Luiz
Cludio, com Luza, ver Henrique na bancada do seu quarto, estudando para o acesso
universidade, tomar o bom caf de Luza Malaquias, saborear os legumes cozidos com
aafro ou, simplesmente manter uma conversa matinal, enquanto eu lavava a roupa e ela
preparava o almoo. Cenas de um cotidiano inesperado e de descobertas felizes.
A Vitria Amaral, minha eterna companheira do Multicultural, por me apresentar o
imaginrio como possibilidade para reflexo acadmica.
A Cida Nogueira, que est presente, neste trabalho, em vrios momentos, pela mulher
que , por ser uma professora criteriosa, segura, sem temor de suas prprias dvidas, capaz de
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ouvir, em meio ao seu muito a dizer, de se surpreender e de reconhecer aprendizado com as
diversas convivncias do dia a dia.
s comunidades Castainho e Atoleiros.
No Castainho, a Jos Carlos Silva, sua Maria e suas filhas: pelas conversas e refeies
que saboreei feijo com farinha de mandioca, galinha matriz e suco de caj, beiju com caf.
Galinha de capoeira com xerm apreciei no Timb, onde conheci a liderana de Expedito,
levada que fui por Jos Carlos Silva, que tambm me apresentou ao Imb.
Em Atoleiros, a Ftima, Joel, seu Luiz Gonzaga, dona Margarida e famlia, por
compartilhar de sua mesa, em vrios momentos, destacando as deliciosas pamonhas que
apreciamos juntos, as conversas e, claro, o sambar do coco, juntos, na porta de suas casas.
Aos componentes da Banda Folclore Verde do Castainho e do Samba de Coco Santa
Luzia, em especial a Z Romo, Joo Faustino e Manuel Dura, pelos aprendizados que colhi e
pela importante contribuio para este resultado.
A Dinara Helena Pessoa, pelos esclarecimentos na rea de msica.
A Clarice Hoffman, pelo depoimento sobre o documentrio Irco.
Na FUNDARPE, a Teca Carlos, por me abrir os arquivos da instituio, considerando
a importncia de qualquer processo de pesquisa e a Eduardo Sarmento, pelo convite
participao no Registro do Patrimnio Vivo de Pernambuco.
A Teresa Amaral, pela articulao com o FIG, por me apresentar ao Castainho, pelo
depoimento, materiais cedidos e pela reviso do segundo captulo.
Universidade de Pernambuco UPE, por apoios diversos, especificamente pela
disponibilizao de espao e equipamentos do NEAD, no Recife, e do Laboratrio de
Histria, em Garanhuns. Na UPE, a Aidy Guedes, Giseuda Barros, Graa Grana, Maria do
Carmo Brando, Nara Lacerda, Pedro Falco, Rozngela Ferreira, Ricardo Bezerra, Rosrio
Antunes e Vera Chalegre. A Walmir Soares, Edson Sabino e Renato Moraes, pelo apoio
tcnico para realizao de entrevista.
A Adelina Bizarro, em especial, pelo interesse na pesquisa e pelo apoio em momentos
difceis, no processo de doutoramento.
Aos amigos que conquistei como professora da UPE, em Garanhuns: Adelmrio
Loureno da Silva Jnior, Andr Audejan, Danielle Lins, Erinaldo Cavalcanti, Fbio
Henrique Machado de Vasconcelos, Fernanda Alves Lima, Juvenal Barbosa e Michele
Noronha, Valria Pereira e Wandergleice Marilak do Nascimento de Lima, inclusive pela
articulao com brincantes das diversas comunidades rurais da regio, notadamente Castainho
e Atoleiros, pelo desprendimento e disponibilidade na coleta de informaes e depoimentos,
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especialmente quando no pude estar presente. A estes, tambm, como representao de
tantos outros que o espao no permite registrar.
Na Prefeitura do Recife, Secretaria de Cultura, nas pessoas de Carmem Llis,
Claudilene Silva, Lindivaldo Junior, Mrio Ribeiro e Zlia Sales, pelas experincias comuns
que vivenciamos, num trabalho que vincula patrimnio e formao cultural.
Ao Conselho Municipal de Poltica Cultural do Recife, nas pessoas de Renato Lins
(Renato L) e Jos Cleto Machado, pela confiana que sempre me foi depositada nos debates e
encaminhamentos como membro do Conselho.
A Hebe Mattos, Martha Abreu e ao Laboratrio de Histria Oral e Imagem da
Universidade Federal Fluminense LABHOI/ UFF, nas pessoas de Denise Demtrio, pela
converso dos mini-DV do FIG 2009 para DVD, Matheus Serva e Eric Brasil Nepomuceno,
pelo apoio nesse processo.
Ao Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular CNFCP, do Rio de Janeiro, nas
pessoas de Ricardo Lima e Doralice Vidal.
A Luiz Antonio Gomes Senna e Nilda Alves que, desde a banca de seleo, me
instigaram muitas reflexes.
A Roberto Lus Torres Conduru, pela serenidade e presena durante a orientao a este
trabalho, que se constituiu num acompanhamento mais que responsvel e comprometido: uma
atuao que me ensinou sobre respeito, cordialidade e amizade, sem temer discordncias.
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Ensino Superior CAPES, pelo
financiamento ao projeto deste Doutorado Interinstitucional DINTER em Educao,
elaborado pela coordenao do Programa de Ps-graduao em Educao PROPED, da
UERJ, frente Alice Casimiro Lopes e Leila Regina dOliveira de Paiva Nunes.
Universidade Estadual da Paraba UEPB, atravs da Pr-reitoria de Ps-
Graduao e Pesquisa, na pessoa de Marcionila Fernandes, pela viabilizao deste DINTER
Educao, sem a qual minha filiao UERJ no aconteceria.
E a todos aqueles que contriburam direta ou indiretamente para este trabalho.
ofereo minha gratido.
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RESUMO
ALMEIDA, Magdalena. Brincadeira e arte: patrimnio, formao cultural e samba de coco
em Pernambuco. 212f. Tese (Doutorado em Educao) Faculdade de Educao, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
Esta proposta de estudo aborda questes relativas a polticas pblicas de cultura. Tem
por referente o samba de coco nas comunidades afrodescendentes de Castainho e Atoleiros,
situadas nos municpios de Garanhuns e Caets, do agreste de Pernambuco, regio que se
constitui parcela de territrio do antigo quilombo dos Palmares, um dos principais focos de
resistncia dos escravos negros do Brasil colonial, que se manteve inclume durante quase um
sculo. Na regio atribuda existncia do antigo quilombo esto vrios grupos
autointitulados remanescentes, que fazem dos ideais de fora e resistncia quilombola sua
prpria vida. O ttulo do estudo Brincadeira e arte: patrimnio, formao cultural e samba de
coco em Pernambuco. O objetivo geral relacionar o processo de criao em manifestaes
artsticas populares com as polticas institucionais empreendidas, numa perspectiva
intercultural e transdisciplinar, tomando como referencial emprico a brincadeira de samba de
coco nos municpios de Garanhuns e Caets, em Pernambuco, respectivamente nas
comunidades Stio Castainho e Stio Atoleiros, atravs da Banda Folclore Verde do Castainho
e do Samba de Coco Santa Luzia. A ideia viabilizar um estudo que se reporta ao conceito de
patrimnio cultural tnico brasileiro, percebendo cultura como uma construo histrica da
humanidade e compreendendo a manifestao artstica como patrimnio imaterial. Trata-se de
uma anlise sobre grupos brincantes do chamado samba de coco como manifestao plural, de
caractersticas diversificadas, que ambiciona influenciar polticas pblicas destinadas a
artistas populares ligados msica, ao canto, dana e literatura popular, encarnada em
letras de canes, cujo contedo repassado s novas geraes atravs da oralidade ou por
aes de formao cultural, como iniciativas do poder pblico. Polticas pblicas de cultura,
patrimnio e formao cultural para preservao so as palavras-chave para identificao das
condies atuais da relao entre artistas e gesto pblica, considerando a perspectiva de
educao no formal, no sentido atribudo pela UNESCO, referenciando-se em depoimentos
como principal fonte. Conhecer algumas dimenses do imaginrio mtico-simblico que
envolve produtores e gestores, fundamento para o estudo, que se constitui a partir do
levantamento, caracterizao e anlise da relao entre artistas e instituies de cultura, em
diversas instncias, considerando ideais de modernidade, permanncias e transformaes
observadas no exerccio, difuso e gesto da brincadeira. Os produtores do Povoado Atoleiros
so criadores do samba de coco, brincadeira de adultos que se traduz em espao de
confraternizao e comunho e recebe interferncia do poder pblico municipal, em Caets,
um dos municpios do entorno de Garanhuns, na periferia do qual est tambm o Stio
Castainho. Este, a partir de formas diversas de articulao, contemplado por aes das
gestes pblicas municipal, estadual e federal, especificamente dentro do Festival de Inverno
de Garanhuns FIG. A abordagem contempla a situao das duas comunidades, mas no elimina o reconhecimento de outros locais para a brincadeira do samba de coco e aes de
preservao a ela direcionadas, como partes de um processo cultural que tambm e necessariamente educativo e, em suas possibilidades de rupturas e continuidades, forma geraes.
Palavras-chave: Patrimnio. Formao cultural. Samba de coco. Afro-brasilidade.
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ABSTRACT
This study approaches matters concerning public cultural policies. Its subject is the
samba de coco in the communities of Castainho e Atoleiros, both of African descent, located
in the municipalities of Garanhuns and Caets in the State of Pernambuco, North-eastern
Brazil, a region whose territory was part of the former quilombo dos Palmares, one of the
main black slave resistances in colonial Brazil, which remained untouched for nearly a
century. In the territory which once belonged to the former quilombo are several self-styled
remaining groups, who still follow strongly the quilombola principles of strength and
resistance. The title of the study is Recreation and art: cultural heritage, non-formal education
and samba de coco in Pernambuco. The overall objective is to relate the process of popular
artistic creation with institutional policies through an interdisciplinary and intercultural
perspective, using as empirical referential the samba de coco from the cities of Garanhuns e
Caets, Pernambuco, respectively in the communities of Stio Castainho and Stio Atoleiros,
through the musical groups Banda Folclore Verde do Castainho and Samba de Coco Santa
Luzia. The idea is to create a study that refers to the concept of Brazilian ethnic heritage,
which looks at culture as a historical construction of mankind and understands artistic
expression as intangible heritage. It is an analysis of the groups who practise the samba de
coco, a plural manifestation with various characteristics, and attempts to influence public
policies towards artists of music, dance and popular literature, found in the lyrics of the songs
passed on to new generations through orality or governmental cultural initiatives. Public
policies on culture, heritage and also informal learning experiences are the key-words to
identify the current relationship between artists and public management, considering the
prospect of non-formal education, in the sense given by UNESCO, using statements as the
main source. Getting to know some dimensions of the mythic-symbolic imaginary involving
producers and managers is the foundation for the study, which is built from the collection,
characterization and analysis of the relationship between artists and cultural institutions, in
several instances, considering ideals of modernity, states and changes observed in the
exercise, dissemination and management of recreational activity. The producers of Povoado
Atoleiros are the creators of the samba de coco, an adult recreational activity which serves as
a space for communion and get-togethers and receives interference from the municipal
government of Caets, a municipality of the surroundings of Garanhuns, whose periphery also
contains Stio Castainho. The latter, through diverse forms of articulation, receives public
administration actions on local, state and federal levels, specifically within the Winter Festival
of Garanhuns FIG (from the Portuguese Festival de Inverno de Garanhuns). This studys approach contemplates the situation of both communities, but does seize to recognize other
locations where the samba de coco and the preservation acts towards it happen, as the
recreation is an activity which is part of a cultural and also educational as well as necessary process that along with its possibilities of continuity and ruptures, contributes to the formation of generations.
Keywords: Cultural heritage and training. Samba de coco. Afro-brazilianess
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SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................ 11
1 REFLEXES TERICAS E METODOLGICAS ..................................... 27
1.1 Um marco importante ...................................................................................... 27
1.2 Situando o estudo .............................................................................................. 30
1.3 Histria oral e formalidades metodolgicas ................................................... 44
1.3.1 Mais responsabilidades para quem pesquisa ....................................................... 48
1.3.2 Um encontro referencial ...................................................................................... 54
1.3.3 Diversificao de fontes: entre a escrita e a oralidade ........................................ 56
2
ARTE, PATRIMNIO E PRTICAS EDUCATIVAS COMO POLTICAS PBLICAS DE CULTURA ...................................................... 62
2.1 Patrimnio como prtica educativa ................................................................. 62
2.1.1 Educao Patrimonial como poltica de cultura para educao .......................... 65
2.1.2 Por um currculo que aproveite a cultura para a educao ................................. 68
2.2 Ao educativa em espaos de formao cultural .......................................... 73
2.2.1 Quadrilha junina .................................................................................................. 74
2.2.2 Programa Multicultural do Recife ................................................... .................... 77
2.2.3 Irco a rvore sagrada: um filme ...................................................................... 83
2.3 Pressupostos para a proposta de formao do Festival de Inverno de Garanhuns FIG .............................................................................................. 87
3 FORMAO CULTURAL PARA CASTAINHO E ATOLEIROS ........... 94
3.1 Olhares sobre o coco ......................................................................................... 95
3.2 Educadora, folcloristas e cultura ..................................................................... 107
3.3 Formao cultural, interculturalidade e patrimnio ..................................... 113
3.4 FIG: entre desejos, arte e realizaes .............................................................. 130
4
VIDA COMO CULTURA, ARTE E PATRIMNIO, EM ATOLEIROS
E CASTAINHO ................................................................................................. 141
4.1 Usos do passado outros sentidos ................................................................... 143
4.2 Atoleiros, um esprito sedentrio ..................................................................... 157
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4.3 Castainho: letras de canes como manifestao literria ........................... 166
4.3.1 Uma escrita funcional ......................................................................................... 169
4.3.2 Um fazer literrio ................................................................................................ 175
4.4 Diz o brincante: A que a paia avoa! ......................................................... 181
5 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................... 193
REFERNCIAS ................................................................................................ 201
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INTRODUO
A apresentao artstica, qualquer que seja a forma de expresso, provoca emoes em
quem participa de alguma forma, assistindo ou produzindo. Algumas manifestaes chamadas
populares envolvem o observador de tal maneira que ele se sente compelido a interagir,
mesmo sem conhecimento anterior da manifestao. No caso das manifestaes que
envolvem canes, msica e dana colaboram para envolver o espectador. Desconhecer os
passos convencionados pode ser tambm um ignorar dos significados implcitos
manifestao, do qual s sabero aqueles que dela participam ao longo de sua elaborao
histrica. A apresentao de um grupo que canta e dana embute repeties e transformaes
que valem como fundao e renovao de referenciais para a construo de sentidos
histricos, na comunidade qual o grupo pertence ou alm dela.
Tratar historicamente uma brincadeira ou expresso artstica e tentar formaliz-la a
partir do seu carter de legitimidade como objeto para a produo historiogrfica considerar
o jogo das transmisses, das retomadas, dos esquecimentos e das repeties (FOUCAULT,
1987, p.6) reconhecer, numa prtica cultural, um processo de origem que inclui uma
sucesso de relaes que precisa considerar as diferenas como elemento de anlise, j que
as descries histricas se ordenam necessariamente pela atualidade do saber, se multiplicam
com suas transformaes e no deixam, por sua vez, de romper com elas prprias
(FOUCAULT, 1987, p.7). Qualquer tipo de expresso, como objeto de anlise histrica, pode
ser considerada como uma forma de permanncia que traduz memria e reverbera
politicamente na vida de determinados grupos sociais, influenciando, interferindo, alterando
ou preservando. O que se poderia chamar descrio global na discusso das brincadeiras de
adultos remete discusso sobre as necessidades e princpios dos indivduos e grupos
praticantes, a significao para a comunidade onde praticada e as possibilidades de oferecer
uma abordagem contextualizada e contempornea dos novos problemas enfrentados para
produo de conhecimento.
Um primeiro passo para legitimao da brincadeira como objeto de pesquisa a
definio do tipo de brincadeira que se pretende analisar. A princpio, pensar a brincadeira
significa pensar numa manifestao de adultos, onde se utiliza elementos artsticos, como
msica, canes, letras, canto e dana, para seu prprio existir, o que a converte em arte.
Entretanto, no apenas esses elementos caracterizam a expresso artstica: a criao, a
repetio e o uso contribuem para um processo interativo que a torna ao coletiva. Como
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forma, a msica oferece sons que estimulam o movimento do corpo e, em muitos casos,
conciliada com uma letra, que remete possibilidade de uma anlise literria. A letra de
canes, muitas vezes sem registro escrito e raramente com gravao fonogrfica, pode ser
tratada como fonte documental, usada para identificar aspectos de historicidade, o que auxilia
na compreenso da comunidade em que a brincadeira est inserida, mesmo quando
reproduzida apenas pela oralidade.
A escolha do samba de coco como objeto de pesquisa quase circunstancial. Eu
poderia ter escolhido qualquer brincadeira para desenvolver este meu estudo. Muitos so os
motivos para esta escolha: minha localizao geogrfica, em funo de atividades
profissionais, me provocou interesse especial sobre o diferente modo como o samba de coco
se apresenta em Atoleiros e a forma como me chegou, a partir de estudantes com os quais
trabalhei; em relao ao Castainho, certa unanimidade em considerar Z Romo como um
mestre da brincadeira do samba de coco numa comunidade reconhecida como remanescente
de quilombo, na periferia de Garanhuns outro elemento que justifica esse interesse.
Justificativas no faltam. No h uma s, so todas, a um s tempo. De modo geral, prticas
da chamada cultura popular apresentam elementos semelhantes, quando ligadas msica e
dana: so praticadas por grupo pertencente a uma comunidade e promovem interao entre
seus integrantes. Os que fazem a brincadeira, chamados brincantes, conciliam o trabalho
cotidiano voltado para a sobrevivncia com o processo de criao da sua arte. Na periferia
urbana do Recife, por exemplo, sabe-se do maracatu nao, manifestao que se quer de
negros, amparada no sagrado, que carrega uma relao direta entre rituais e produo artstica.
No o caso do samba de coco, que aqui se prope analisar. Embora seja uma manifestao
que caracterize prticas culturais do povo negro brasileiro, no se remete ao sagrado, quando
se trata de Atoleiros ou Castainho, mas a uma ancestralidade de parentesco familiar, como se
as prticas acontecessem obedecendo a uma ordem inevitvel de sucesses, onde os que
vieram antes definem um caminho a ser seguido. Tanto no caso do maracatu nao, urbano,
como no samba de coco originrio da zona rural do agreste de Pernambuco, so possveis
reflexes direcionadas a questes da afro-brasilidade, especialmente porque nas comunidades
objeto deste estudo, Castainho e Atoleiros, existe uma discusso sobre o carter de
remanescente de quilombo. Assim, a reflexo sobre os motivos que levam o brincante a fazer
a manifestao, relacionados ao ser negro ou a uma necessidade ancestral de praticar a
brincadeira; a realizao da brincadeira e o que define sua condio de resistncia s
adversidades da prpria vida e os modos possveis de interpretar essa resistncia, remetem
possibilidade de constituio do brinquedo como uma forma de resistncia. Entendamos
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resistncia como a luta diria pela sobrevivncia, aliada criao de estratgias para
sobreviver. A luta cotidiana e a criao de estratgias de sobrevivncia extrapola a necessria
garantia de sustento financeiro. Esta forma pode ser adotada pelos brincantes, na medida em
que conquistam visibilidade para suas expresses artsticas e, principalmente, sentido para o
viver nas comunidades.
Em setembro de 2006 visitamos a comunidade do Stio Atoleiros. A praa apresentava
um aspecto rstico: o espao era vago, ocupado na sua margem pela Capela Santa Luzia e
pela Escola Municipal Manoel Izidorio, compondo um vrtice, um conjunto de casas de porta
e janela e um pequeno curral, compondo o vrtice oposto. O Jornal Caets em foco, de
setembro de 2007, traz duas imagens da praa: a primeira, que encontramos na visita
mencionada e a segunda, transformada, em menos de seis meses depois (ver Figura 8, no item
4.2). Hoje a praa calada, tem bancos e um aspecto quase urbano. Poucas pessoas
frequentavam a nova praa: talvez se possa considerar que ela no o ponto de encontro que
agrega a coletividade. Ao voltarmos comunidade, em 12 de outubro de 2007, fizemos
algumas observaes baseadas na fala de alguns moradores da comunidade, numa enquete
improvisada, pela necessidade sentida na visita que realizamos ento. Correndo o risco de
reproduzir preconceitos, interessante colocar em debate a viso da comunidade sobre sua
condio racial. A enquete constituiu-se de duas perguntas principais: voc se sente negro? e
o que acha de a comunidade assumir que descendente de quilombo? Ento, foram nove
entrevistados, entre duas crianas, uma adolescente e seis adultos. Como o improviso
caracterizou a enquete, a fala a seguir serve apenas de ilustrao, para demonstrar que as
cargas de preconceito residem na prpria comunidade: as crianas se disseram negras, assim
como a adolescente. Dos adultos, dois homens se disseram negros, duas mulheres adultas se
disseram morenas e uma se diz negra. Um adulto, que no identificamos, diz: negro pra mim
o co, ns somos morenos. Negro escravo, ns somos morenos. Uma adolescente se diz
negra e dois meninos de 11 anos se dizem negros. A enquete no , nem pretendeu, ser
conclusiva ou exaurir o tema, mas aparenta um temor de se dizer negro que pode estar
entranhado no pensar de muitas pessoas da comunidade.
A reflexo sobre essas respostas para o entendimento do que significa ser negro uma
discusso necessria: negro o indivduo que tem um biotipo especfico pele marrom, entre
tantos outros traos, ditos caractersticos de negritude, mas tambm pode ser aquele que
abriga em si uma perspectiva de pertencimento que o faz denominar-se negro. Se o
pertencimento define o povo negro, parece que a cor da pele define um ideal de raa
estabelecido pelas relaes sociais. O Brasil no difere de outras naes do planeta neste
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aspecto: a mesclagem caracteriza a histria da humanidade, advinda dos inmeros processos
migratrios que tiveram vez ao longo das trajetrias humanas. Os negros ainda so a camada
da populao que tem menos acesso escolaridade, ao trabalho, ao emprego, remunerao
digna, entre outros benefcios que so direitos de todo cidado. Nas zonas rurais, essa
realidade ainda mais evidente. Como, ento, justificar o fazer artstico destas populaes
que muitas vezes no tem recursos para aquisio mnima de alimentos? No plano esttico,
ainda temos a beleza clssica ocidental como referencial convencionado que aponta para um
conservadorismo acerca da aparncia mais aceita. Na viso de muitos, negro ainda tem cabelo
ruim e branco, cabelo bom. Nas situaes em que concorrem negros e brancos, os primeiros
ainda so desfavorecidos.
Os produtores do Stio Atoleiros so criadores do samba de coco, brincadeira de
adultos que se traduz em espao de confraternizao e comunho e recebe interferncia do
poder pblico municipal. O Stio Castainho, a partir de formas diversas de articulao,
contemplado por aes das gestes pblicas municipal, estadual e federal. Neste, novas
formas de expresso artstica tm surgido, a partir de oficinas de formao cultural,
realizadas pelo Festival de Inverno de Garanhuns FIG, como poltica pblica de cultura,
mas no deixam transparecer maior investimento em formao relativa ao samba de coco,
utilizando os mestres locais como potenciais formadores.
Nas comunidades Atoleiros e Castainho, localizadas no agreste de Pernambuco, nos
municpios de Caets e Garanhuns, falar em samba de coco remete a comunidades afro-
brasileiras e remanescncia do antigo quilombo dos Palmares. A localizao geogrfica
permite s comunidades relacionar a regio de Garanhuns com o antigo quilombo, um dos
mais resistentes dominao escravocrata no perodo colonial e os grupos de samba de coco
como uma evidncia dessa historicidade. Palmares est presente no imaginrio dos
remanescentes das comunidades contemporneas pelo ideal de fora e resistncia que
representa. O fato de existirem na atualidade polticas voltadas para os segmentos que se
auto reconhecem afrodescendentes, chega a essas populaes como uma forma de obter
recursos aos quais nem sempre tm acesso e no com uma expectativa de identificao
ou promoo de cidadania.
A Banda Folclore Verde do Castainho, liderada pelo Mestre Z Romo e seu irmo
Joo Faustino, promove a brincadeira do samba de coco. Z Romo e Joo Faustino so
parceiros na elaborao de canes que apresentam em eventos pblicos, onde conseguem
quase sempre uma nfima remunerao. Em depoimento do dia 09 de maro de 2008, na
residncia de Z Romo, no Castainho, os dois confirmam uma data de criao do grupo:
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1816. Dizem que o grupo foi criado quando o pai deles ainda era cativo. A relao de
parentesco com o ancestral escravo no parece muito clara, mas reflete uma expectativa de
historicidade relacionada escravido, abolio e prpria identificao com o ser negro.
Z Romo vivia sozinho, numa casa de stio, at 2010, quando desapareceu
inexplicavelmente, e Joo Faustino trabalha em Garanhuns, como eletricista. Este manteve
uma relao muito prxima com o irmo, talvez mais em funo da brincadeira. Hoje conduz
a Banda Folclore Verde do Castainho. Dos filhos de Z, trs integram o grupo que se
apresenta pela regio, frente dos instrumentos. Mestre Z Romo se diz negro, assim como
Joo Faustino.
O Samba de Coco Santa Luzia, produzido no municpio de Caets, oriundo do Stio
Atoleiros, promove a brincadeira na comunidade para qualquer tipo de celebrao e, desde
2006, faz apresentaes em eventos fora da comunidade, inclusive no Festival de Inverno de
Garanhuns, no Palco da Cultura Popular. Na comunidade, as celebraes incluem, numa
mesma noite, reisado, samba, ciranda e dana do leno. Manoel Dura, agricultor, msico do
grupo de samba de coco Santa Luzia, se diz negro: Eu tenho que ser. Eu no sou branco,
no ? Eu sou negro. Eu tenho certeza que sou negro. Seu Manoel se afirma negro, apesar
de ter a pele clara, caracterstica de um branco. Defende a existncia do coco, do reisado, do
pfano e de outras formas de expresso artstica com as quais se relaciona desde a infncia.
Trabalhar com a produo artstica deste segmento da populao conceb-la como
patrimnio, nos moldes estabelecidos nos artigos 215 e 216 da Constituio Brasileira. Tal
afirmao no diz respeito apenas ao intuito preservacionista, que pressupe conservao das
diversas formas de expresso, num momento especfico, ou partindo-se do pressuposto,
convencionado socialmente, de tradio como um modelo imutvel de prticas culturais: visa,
principalmente, reconhecer a produo intelectual de pessoas que promovem a circulao de
conhecimento, a partir de saberes gerados no interior das comunidades que interagem com
outros saberes e prticas.
O patrimnio possui valor simblico reconhecido pelo Estado. Como patrimnio, um
bem valorado pode passar a ser objeto de aes de preservao. A noo de patrimnio
imaterial est atenta s prticas culturais, considerando seu carter tradicional, como
referncia, no por ser imutvel, mas tambm pela possibilidade de ao poltica no coletivo.
Considerando o coletivo, um bem cultural como o samba de coco, torna-se estratgia de
reunio, atravs dos encontros festivos para fazer a brincadeira acontecer. A tradio,
considerada como eixo referencial para produo cultural, elemento aglutinador e orientador
para o fazer da brincadeira na comunidade. Assim, as polticas pblicas de formao atuam:
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formam para o aprendizado artstico, fazendo deste um elo para construo de cidadania.
Como patrimnio representativo da tradio, um bem tornado pblico para alm da
comunidade onde produzido. Sua divulgao permite as mais diversas formas de uso: pelo
Estado, pela disseminao de ideias de fortalecimento identitrio atravs do bem patrimonial;
pelos polticos, em benefcio dos interesses especficos de cada plataforma; pelo turismo,
como atrao em determinados espaos e como espetculo da tradio, cuja expectativa
circunda o autntico e o imutvel: o que deve ser preservado. As comunidades produtoras
ainda no tm clareza das dimenses que seu fazer artstico pode alcanar. Por outro lado, o
Estado, ao empreender aes de formao cultural alm das escolas ou universidades, pouco
dimensiona ou avalia o alcance das iniciativas representadas por estas polticas culturais.
Este trabalho parte do objetivo geral de relacionar o processo de criao em
manifestaes artsticas populares com as polticas institucionais empreendidas, numa
perspectiva intercultural e transdisciplinar, tomando como referencial emprico a brincadeira
de samba de coco nos municpios de Garanhuns e Caets, em Pernambuco, respectivamente
nas comunidades Stio Castainho e Stio Atoleiros. Para chegar a este resultado, analisar o
processo de formao para produo de manifestaes artsticas como poltica pblica e como
atividade de formao cultural, relacionada concepo de patrimnio a ser preservado como
estratgia para a gesto pblica de cultura uma necessidade que identifico. Caracterizar o
Samba de coco como patrimnio cultural imaterial, pela repetio ou negao de prticas
culturais e discursos, observando o pertencimento qualidade de afro-brasileiro nas
comunidades estudadas o segundo aspecto sobre o qual me debrucei ao longo da pesquisa.
Considerando a brincadeira do samba de coco como produo artstica que, na relao com o
formato de apresentao deste estudo, escrito, seria de mais simples visualizao, procurei
identificar o Samba de coco como produo literria. Tratar a expresso literria como
narrativa de memria foi uma das alternativas que encontrei para relacionar as comunidades
observadas com a histria. Analisar polticas pblicas e aes institucionais como produto de
relaes sociais que mesclam a produo artstica com o uso dos discursos polticos da
preservao patrimonial e da incluso social pela cultura foi uma de minhas expectativas.
Promovo uma discusso que versa implicitamente sobre a contemporaneidade da
produo acadmica, em algumas reas de conhecimento situada entre arte e cincia,
fragmentao e transdisciplinaridade. As diversas dimenses da abordagem refletem esta
tenso, mesclando reas distintas, mas interligadas, nas humanidades e nesta pesquisa: arte,
poltica, histria, antropologia, educao. Meu estudo, inscrito como histria da educao, ao
congregar estas cinco reas, permite que a historicidade e a perspectiva etnogrfica atuem
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como elementos que fundamentam todo o seu desenvolvimento. Inclui aspectos etnogrficos
caractersticos de todo trabalho de pesquisa, com os necessrios recortes: de tempo, de tema,
de problema, de objeto.
A abordagem tem foco nas polticas culturais, sem direcionar para uma gesto
especfica: tento tratar de arte, pelo que se v, de histria, pelo que se faz e necessariamente
no visto, mas reflexo de processos produtivos individuais e coletivos. Tento estabelecer
suas relaes com as noes de patrimnio, produo artstica, reconhecimento pela sociedade
e pelos organismos representativos do Estado, referenciados nas trs dimenses registradas
pelas proposies do Plano Nacional de Cultura: simblica, cidad e geradora de trabalho e
renda.
Em se tratando de histria, vamos consider-la como o lugar das relaes sociais,
observando o tempo em que se deram, sem preocupao com um distanciamento temporal
necessrio para caracterizar neutralidade axiolgica. Para quem pesquisa, negar-se como
sujeito que interage com seu objeto, evidencia as limitaes deste desejo. Penso que, por mais
que busquemos uma iseno na busca e anlise de fontes, teremos sempre uma mera tentativa
de no mesclar valores pessoais anlise. Nas relaes humanas, a ateno ao modo como se
verificam em sociedade, sua intensidade e as atitudes delas decorrentes, podem evidenciar
situaes de poder, que alteram o devir social, ao mesmo tempo em que representa
expectativas de transformao social, cobertas de uma intencionalidade que, por parte dos
gestores de governo, pode constituir-se proposta paternalista ou protecionista, baseada em
preconceitos e valores extrnsecos manifestao. Os brincantes sabem o que querem, talvez
no conheam os caminhos para alcanar suas expectativas, nas demandas que podem
apresentar aos governos representantes do Estado.
As relaes entre Cultura e Educao existem, a partir de concepes tericas e de
iniciativas do poder pblico, mas talvez para simplificar o modo de atuao ou mesmo pelo
modo como a escola e a universidade conquistaram seu nvel de organizao formal, mais
simples visualizar, na Cincia da Educao, o fazer escolar ou universitrio como objeto de
anlise, cuja visualizao das questes melhor documentada, nos trmites das instncias
administrativas e no prprio planejamento pedaggico, nas instituies de ensino. Na ao
cultural, as experincias tm base emprica, muitas vezes intuitiva, a preocupao com a
memria inexiste. O imediatismo de aes, a amplido das demandas, a falta de um programa
poltico que oriente as iniciativas do poder pblico, geram dificuldade de anlise e decises
apressadas. Isso talvez aproxime as polticas culturais da oralidade, no sentido da
compreenso de fazeres, nem sempre passveis de registro ou de documentao. Embora
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ligada oficialidade, e de modo genrico, a gesto da cultura est mais vinculada a indicaes
polticas, muitas vezes sacrificando os pareceres tcnicos e as experincias sistematizadas
com o intuito de conciliar os desejos da coletividade e das gestes polticas. Estas se
caracterizam pelas alteraes nos organogramas das instituies de cultura, a cada governo,
sem que representaes sociais, por meio de conselhos de cultura, por exemplo, se
posicionem de modo efetivo, intervindo nos caminhos das polticas culturais.
Uma tentativa de promover uma viso sistmica produo do conhecimento aplica-se
s duas comunidades, apesar de suas diferenas. Corro o risco de homogeneizar minha
anlise, mas trata-se de uma perspectiva. Minha opo de sistematizao se quer desprendida
do desejo de estabelecer verdades ou reconhecer fronteiras. Do ponto de vista da formao
cultural, importante uma relao destas reflexes com o que se pode chamar redes de
conhecimento e de significados, como proposio para a ao cultural de instituies que
pretendam articular cultura e educao. Ao mesmo tempo em que a ideia de rede pressupe
dimensionar o estudo na perspectiva dos fios tecidos em redes sociais, a partir das diversas
formas de conhecimento a ser criadas (no restritas ao aparato tecnolgico informacional), a
articulao de interesses das comunidades com as prioridades definidas por instncias oficiais
de gesto poltica, pressupe tambm intercmbio e troca permanente de saberes colhidos
individual e coletivamente: preciso compreender o saber que surge do uso, com sua forma
e inventividade prprias (ALVES; GARCIA, 2002, p.120).
O dilogo entre as culturas, proposto pela noo de interculturalidade, torna possvel
um aprendizado mtuo, numa relao dialgica complementar e cooperativa, sobre as prticas
dos sujeitos.
A opo pela intercultura exige uma reflexo sobre a formao da[s] nossa[s]
identidade[s], que se constri a partir do contato com o outro. [] o reconhecimento da multiplicidade cultural tem de refletir-se, na dimenso poltica, em acesso pleno
cidadania para todos os sujeitos. (FLEURI, 2002, p.121)
Inevitvel explicitar a relao deste estudo com a noo de patrimnio e
patrimonializao. O primeiro, legado reconhecido socialmente. A segunda, o reconhecimento
oferecido pelo Estado para a importncia de tal. A tenso que envolve os dois movimentos
est no sentimento que as pessoas nutrem pelo bem considerado patrimnio. Ao falar em
pessoas, a relao com as lembranas individuais e a memria coletiva recorrncia. Para as
polticas de Estado, no parece haver como atuar sem o sacrifcio de muitas memrias. Ao
mesmo tempo, no h como evitar iniciativas de preservao. A perda de memrias, que
poderiam ser responsveis pela preservao de muitos valores, outro fator inevitvel.
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Mesmo os valores, se renovam. Os comportamentos se recriam, na medida em que se renova
o pensar humano. As identidades, ou seus referenciais, se transformam, sempre.
A despeito das tentativas, as polticas pblicas no atingem todas as formas de
expresso: primeiro, porque elas no so capturveis, quando h intuito de preservao, seno
parcialmente, a partir de um nmero limitado de formatos. As formas de expresso podem ter
um nico nome, mas assim mesmo so diversas, entre si e na relao com o Estado. Segundo,
nem todas as populaes, indivduos ou grupos que se expressam so visualizados pelo
Estado. Quando muito, so atingidos pelo Estado, de uma forma residual; a instituio estatal
no d conta de proceder a verificaes, seja por falta de priorizar a avaliao do alcance das
suas iniciativas, seja porque outras aes so priorizadas. O fato de no haver atendimento
estatal no impede uma viso patrimonialista, no sentido de preservao de valores e prticas
pelos grupos sociais. A noo de patrimnio pode no ser verbalizada ou institucionalizada,
mas est presente quando as prticas so vivenciadas, repetidas ou transformadas. Todas as
pessoas atuam socialmente com noes de patrimnio, o que torna este um conceito
aproximado da noo de cultura, com a diferena que a cultura vivncia historicamente
constituda e patrimnio concepo que remete ideia de memria e preservao.
A obra, por definio, destinada ao uso, diz Gadamer (GADAMER, 1985, p.24).
Mas o que a obra? Apenas um produto material? Mais que isso, a obra pode ser representada
por fazeres e crenas, produtos da convivncia e das escolhas humanas. Gadamer
(GADAMER, 1985, p.25) defende que a arte s possvel porque a natureza deixa ainda algo
de sobra, algo a configurar que, em seu fazer plstico, deixa um espao vazio de configurao
ao esprito humano, porque
fato que vemos a imagem ao mesmo tempo a partir das coisas e que imaginamos a
imagem nas coisas. Assim, na fora imaginativa, na fora do homem de imaginar-
se uma imagem, que a reflexo esttica orienta-se principalmente (GADAMER,
1985, p.31).
Os sentidos sobre o que chamo brincadeira de adultos se apoiam em Gadamer, quando
ele afirma que tradio no quer dizer certamente mera conservao, mas transmisso. A
transmisso, porm, inclui que no se deixe nada imutvel e meramente conservado, mas que
se aprenda a dizer e captar o velho de modo novo (GADAMER, 1985, p.74). Como o samba
de coco no ocorre, seno em espaos de festa, falemos dela como arte, como sugere
Gadamer, tomando o samba de coco como o lugar em que todos se encontram pela msica,
pela letra das canes, pelo canto e pela dana.
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Para considerar o samba de coco como expresso artstica especfica de um segmento
da populao, interessante uma observao a partir do que se arte chama afro-brasileira.
Conduru prope uma reflexo sobre essa ideia, considerando que
a expresso arte afro-brasileira indica no um estilo ou um movimento artstico
produzido apenas por afrodescendentes brasileiros, ou deles representativo, mas um
campo plural, composto por objetos e prticas bastante diversificados, vinculados de
maneiras diversas cultura afro-brasileira, a partir do qual tenses artsticas,
culturais e sociais podem ser problematizadas esttica e artisticamente (CONDURU,
2007, p.11).
Mais do que sugere Conduru, as especificidades de uma manifestao qual se atribui
carter de afro-brasilidade repercutem na comunidade em que tal produo est inserida,
alm de proporcionar o intercmbio das tenses apontadas pelo autor com as prticas culturais
do espao onde est inserida, interagindo com outros setores da sociedade, como o poder
pblico. O samba de coco expresso artstica. Entretanto, a viso da arte, simplesmente,
como parcela da cultura ou mesmo da cultura como arte tambm problemtica, porque
reducionista. O que caracteriza o samba de coco como arte inclui a multiplicidade de formas
como se apresenta. Este um elemento importante, mas no significa dizer que nos locais
onde a manifestao parece se apresentar de modo similar, no haja produo artstica. O que
se espera do artista para que ele tenha reconhecimento, inclui originalidade, carisma, talento,
capacidade criativa para renovar sua produo e interao com seu pblico, de modo que este
deseje repetir em tempo indefinido a experincia vivenciada no contato com a obra, o que
significa mais do que apenas apreciar.
As dvidas sobre o carter artstico da brincadeira do samba de coco encontrada em
Castainho e em Atoleiros existem em funo de que as letras das canes parecem ser o nico
canal onde a criao se verifica, sem improviso na sua produo. O improviso existe no modo
de cantar. Regra geral, no h grandes variaes entre o ritmo, os instrumentos e a dana
encontrada nas duas comunidades. A performance, como livre, se apresenta dos modos mais
diversificados, porque praticada por indivduos diferentes, pouco submissos a regras pr-
definidas e sem qualquer registro de formas padronizadas nos gestos e passos da brincadeira.
Os grupos de Castainho e Atoleiros, com dana e canes diferentes, apresentam-se tambm
de modo diferente, movidos por um eixo condutor que mais parece regulado pela palavra
samba, como cerne de um movimento que agrega os moradores das comunidades, em
situaes festivas. O trup um elemento central no samba de coco das comunidades,
especialmente no Castainho, onde se v a umbigada, diferente da dana aos pares, no
Atoleiros. Perguntados sobre por que fazem o samba de coco, os brincantes de Atoleiros e
Castainho, Manoel Dura e Joo Faustino, parecem no entender o sentido da questo
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colocada. No parece ser o caso de pensar sobre as razes que os mobilizam para a
brincadeira: ela os envolve numa espcie de movimento inevitvel, oferecendo um sentido
para o viver. Festejar, gostar, preservar, reunir pessoas parecem motivos banais, mas explicam
o brincar o coco nas duas comunidades, sem maior preocupao com porqus ou senes.
Simplesmente se brinca.
Os dois grupos artsticos de cada comunidade no poderiam ser tratados da mesma
maneira, no apenas por sua diversidade intrnseca, mas pela forma distinta como se
relacionam com a brincadeira. Essa pluralidade, nas comunidades brincantes, na forma
diversa como se relacionam com o seu fazer a brincadeira, na comunidade ou nas
apresentaes feitas fora dela, que definiu essa escolha, na tentativa de evidenciar
concretamente as diferentes formas de fazer a brincadeira, de utiliz-la como parte das vidas
nas comunidades que, paradoxalmente, chegaram aos brincantes pela ancestralidade, pela
famlia, pelos pais, principalmente, e permitiram disseminao entre os amigos e preservao
na contemporaneidade, independentes das polticas culturais. A festa o que rene a todos.
Parece-me um trao caracterstico do festejar que ele no algo seno para aquele que
participa dele (GADAMER, 1985, p.75). A Banda Folclore Verde do Castainho tem um
samba de coco mais autoral, cuja produo concentrada em Z Romo e Joo Faustino,
enquanto fazer o Samba de Coco Santa Luzia envolve vinte e sete pessoas da comunidade; as
canes so elaboradas quase no anonimato, sem concentrar a autoria em nenhum dos
integrantes do grupo de modo enftico. Ainda que os grupos apresentem caractersticas
semelhantes, como o fato de integrarem comunidades rurais, cuja remanescncia
afrodescendente um dos discursos mais aparentes, a pluralidade precisa ser um indicativo da
complexidade e da incompletude de qualquer forma de anlise tentada.
O que chamo idealizao histrica um processo de ressemantizao do passado,
contido no discurso de moradores das comunidades observadas. Temo que falar em
ressemantizao nas relaes com a negritude pode auferir prejuzos e no conquistas para as
comunidades de que trato, em se tratando, por exemplo, do reconhecimento de Atoleiros
como remanescente de quilombo. Quanto a esse risco, aposto na regulamentao do artigo 68
da Constituio Federal, pelo decreto 4887, de 20 de novembro de 2003, que defende que a
caracterizao dos remanescentes das comunidades dos quilombos deve ser atestada
mediante autodefinio da prpria comunidade (ABREU; MATTOS, 2007, p.100). Aposto
tambm na capacidade de mobilizao das comunidades em seu prprio benefcio. Este um
problema que envolve as dimenses terica e poltica. Terico, para este trabalho, porque
relacionado histria do tempo presente. Pessoas vivas compem esta narrativa. Como tal,
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tm necessidades e interesses. Poltico, porque algumas anlises podem levar um leitor
desavisado a interpretaes equivocadas, em busca de uma veracidade no discurso,
especialmente em se tratando do que se pretende seja fato indiscutvel. Atualmente, o Estado
brasileiro oferece um avano, em termos polticos, quanto aos problemas relativos grande
maioria afrodescendente: a possibilidade de se autoatribuir a qualidade de remanescente de
quilombo. Rejeitar esta autoatribuio, da mesma maneira que aceit-la, sem maior reflexo,
pode significar apenas desconhecimento de uma histria que as memrias individuais, que
tomam por referncia a memria coletiva, podem aferir. Mas pode gerar desdobramentos que
resultem, por um lado, na absteno, pelo Estado, do seu compromisso com cidads e
cidados e, pelas comunidades, em permanecerem excludas dos processos de incluso social
pela cultura.
A construo de um Plano Nacional de Cultura ajuda neste conceber das aes e
polticas pblicas de cultura, porque reflete interesses da populao, na rea de cultura,
atravs das conferncias de cultura municipais, estaduais e nacionais que, ano a ano, vm
empreendendo esforos na construo de um projeto nacional para a cultura que a
compreenda em consonncia direta com a atividade educativa, ampliando o universo da
cultura, tradicionalmente restrito a expresses da arte erudita, para uma base patrimonial, e
abrangendo tambm o universo da educao, que pode mais do que os restritivos modelos de
currculos, que muitas vezes ignoram as diferenas, sua pluralidade e potencialidades, como
importantes referentes para construo de conhecimento e incluso social. Quando se fala em
incluso social pela cultura, diz-se tambm da incluso social pela educao, que no pode
restringir seu olhar a necessidades ou carncias fsicas, mas falta de ateno ao livre pensar,
ao criar e fazer autnomos.
O tempo objeto desta anlise se inicia a partir do ano 2000, especialmente
considerando a regulamentao de um discurso e uma estratgia nacional para o patrimnio: a
chamada Lei do Patrimnio Imaterial (Decreto 3551, de 04 de agosto de 2000), que orienta
polticas pblicas que promovem iniciativas inventariais, quando sugere a criao de livros de
registro de bens considerados patrimoniais tratados como bens a serem protegidos, mantendo
uma poltica nacional para ao patrimonial que vem desde os anos de 1930, quando as
iniciativas nacionais em preservao de patrimnio se tornaram mais intensas, inclusive
depois da criao de instituies pblicas, como o Instituto do Patrimnio Histrico e
Artstico Nacional IPHAN, para tratar especificamente da questo. Mas este decreto tenta
extrapolar esta dimenso, ao prever, no 2 do artigo 1, a necessria ateno memria e
identidade das populaes: a inscrio num dos livros de registro ter sempre como
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referncia a continuidade histrica do bem e sua relevncia nacional para a memria, a
identidade e a formao da sociedade brasileira. Mas o que vem a ser relevante no contexto
das manifestaes chamadas populares, quem define este destaque, porque sua identificao
deve ser centralizada e seu reconhecimento renovado pelo Estado nacional, o modo como ele
efetivamente interpretado e tratado pelas polticas e aes pblicas municipais e estaduais
so discusses que merecem espao. O tempo se relaciona com a contemporaneidade, mas
no elimina a busca de referenciais histrico-documentais que fortaleam as aspiraes de
historicidade dos depoentes. Neste sentido, penso que a relao entre histria e antropologia
se fortalece.
O perodo analisado prioriza os anos 2000-2007. Quanto mais inserido no tempo do
seu objeto de pesquisa, mais o pesquisador se faz presente, tornando-se elemento que
interfere, inevitavelmente, na sua anlise. Trabalhar polticas pblicas de cultura nos anos
2000 pode representar, ao mesmo tempo, essa proximidade, alm de oferecer o falso
entendimento de uma tentativa de homogeneizar questes que no so nicas, ao mesmo
tempo em que no permitem explicaes totalizantes ou completas.
Embora se relacione com educao patrimonial, este estudo no um trabalho de
educao patrimonial, pretende ser um trabalho que reconhece noes de patrimnio e de
preservao como recurso e prtica educativa. Aqui, interessante esclarecer sobre o
raciocnio que motivou cada captulo, procurando criar pelo menos intersees entre eles, se
no uma reciprocidade entre cada um, j que so complementares, embora tratem de temticas
aparentemente diferentes. Assim, falar de histria oral e entrevistas fundamento para
entender a metodologia e suas potencialidades interpretativas. Falar de patrimnio uma
forma de distinguir as polticas pblicas de cultura, em geral divididas entre aes de balco e
aes transformadoras, estruturadoras de novas prticas sociais. Nestas, incluem-se as
polticas pblicas caracterizadas por aes de formao, que tem por objetivo fortalecer as
manifestaes populares. Identificar anlises dos folcloristas quanto ao coco ajuda na
percepo das dimenses historiogrficas do samba de coco e nos subsdios que podem
oferecer s polticas culturais.
Garanhuns polariza um entorno de vinte e seis municpios. Caets um deles.
Juridicamente, municpio autnomo, mas no tem autonomia na elaborao de polticas
culturais, que so, via de regra, articuladas por pessoas que tiveram sua formao ligada a
Garanhuns. Este, por sua vez, em matria de polticas culturais, tem entre suas referncias
Recife, capital do Estado. O Stio Castainho est em Garanhuns. O Stio Atoleiros, em Caets.
Comunidades diferentes, aproximadas geograficamente, pelos municpios que integram, que
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tem caractersticas diferentes na organizao socioeconmica, espacial e poltica. Atoleiros
busca uma identidade prpria, assim como Castainho. Mas, em Atoleiros, essa busca fica
evidenciada pelo desejo de ser reconhecida como remanescente de quilombo. Como
Castainho j tem esse reconhecimento, avana mais nas relaes com o poder pblico e na
conquista de benefcios para a comunidade.
Na linha das expectativas depositadas sobre uma tese, seria de se esperar o tratamento
a uma comunidade e no a duas, como o caso. No tendo em vista uma viso totalizante do
tema ou um estudo de caso, escolhi trabalhar com duas comunidades que tm vivncias
diferentes com o samba de coco e que foram alcanadas pela formao cultural promovida
pelo Festival de Inverno de Garanhuns de formas distintas, o que no significa que outras
comunidades, com perfil semelhante, no o foram. Tampouco quer dizer que o samba de coco
inexiste nas demais ou que as polticas culturais conduzidas pelo Festival de Inverno para as
diversas comunidades da regio estivessem atentas arte produzida nas comunidades.
Estavam atentas aos sentidos que a arte pode oferecer ao esprito humano, mas ignoraram o
que as comunidades faziam, em muitas situaes.
No pretendi tratar as comunidades da mesma maneira, buscando em ambas
caractersticas semelhantes e informaes homogneas, dentro das mesmas temticas, sobre
cada uma delas. Primeiro, porque penso que o contedo se tornaria enfadonho e por demais
formalizado, dentro dos parmetros de um racionalismo que apenas d suporte reflexo que
proponho. Depois, porque, de fato, no analisei as duas comunidades: busquei analisar os
brincantes do samba de coco e a forma como o samba de coco se apresenta nos dois stios,
geograficamente prximos, mas substancialmente diferentes, oferecendo brincadeira a
mesma denominao. Aplicar as mesmas perguntas foi uma prtica nas entrevistas, mas a
trajetria dos depoimentos as conduziu para as diferenas. Mesmo sabendo da incapacidade
deste trabalho em dar conta da complexidade das relaes sociais, da brincadeira e seus
impactos sobre o local onde produzida, a ideia foi, a partir de diferentes olhares, estabelecer
uma complementariedade entre os dois espaos de brincadeira, onde a afro-brasilidade um
elemento declarado e existe como uma espcie de escudo protetor em defesa da existncia dos
prprios grupos de brincantes e, por extenso, das comunidades. Tentativa de analisar, no s
descrever. Da a incluso de exemplos como auxiliares nas conceituaes. Aqui, o exemplo
estratgia que ajuda a viabilizar a construo dos conceitos. O recurso a alguns mitos parte
das representaes da afro-brasilidade, que ajuda nesse processo de compreenso dos
contextos tratados: no utilizado como mera ilustrao.
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Estabelecendo relaes no lineares entre o tema e o dizer dos depoentes: o processo
criativo, no apenas o produto, est na pauta da discusso. Do processo criativo, tento extrair
as concepes que norteiam as prticas. Tais concepes refletem aprendizados e vivncias
interpretadas pelas geraes contemporneas de produtores de samba de coco. No Captulo 1,
tentei elencar os tericos e os aspectos de sua produo que me influenciaram nesta discusso,
ao mesmo tempo em que discuto sobre o depoimento como fonte de pesquisa. No caso do
Captulo 2, observo a noo de polticas pblicas de cultura descrevo, demonstro, a partir de
situaes conhecidas, concretizadas a partir de polticas de formao cultural empreendidas
pela Prefeitura do Recife.
No Captulo 3, discuto a formao cultural para o samba de coco, a partir da viso de
tericos que trataram da manifestao e de como se apresentam as relaes entre as polticas
culturais e a regio de Garanhuns e seu entorno. Ainda que sem inteno de utilizar como
elementos para este projeto, durante a vivncia, a contribuio que dei no FIG, em 2004,
articulando integrao do FIG com a universidade, atravs da atuao de estudantes de
graduao como auxiliares das oficinas e a participao como coordenadora de um segmento
das oficinas do FIG, em 2005, constituiu-se fonte de observaes que ajudaram a compor o
captulo.
O Captulo 4, entre outras temticas, trabalha noes de ancestralidade e idealizaes
(processo de elaborao e reelaborao de memrias) de historicidade, utilizando-se de
memrias como fundamento para as histrias contadas por brincantes, as menes ao
Quilombo dos Palmares e ao ano de 1816 como elementos fundantes de um passado
memorvel, para integrantes da Banda Folclore Verde do Castainho e do escravismo como
discurso de referncia para o Samba de Coco Santa Luzia, de Atoleiros. Estratgias utilizadas
como polticas nacionais de reparao s comunidades remanescentes de quilombo e a noo
de dever de memria so trazidas como inspiradoras de memrias de negritude a serem
propaladas. Histrias do samba de coco, a relao do samba de coco com os festejos juninos,
utilizando autodenominaes de moradores das comunidades como negros ou morenos,
recorrendo enquete elaborada para o projeto deste estudo e aos depoimentos coletados com
brincantes do samba de coco em Castainho e Atoleiros so fundamentos para a discusso.
No Captulo 4, as aproximaes feitas pelos depoentes sobre a relao entre o conceito
de cultura e o samba de coco coloca a brincadeira como prtica cultural, o que me pareceu
suficiente para sinalizar minha viso sobre conceitos que classificariam a manifestao aqui
tratada. No promovo uma reflexo sobre folclore e cultura popular. As questes sobre os
conceitos de folclore ou cultura popular tm promovido um debate intransponvel, que pouco
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extrapola a dimenso terica. Ao pesquisador cabem justificativas para a opo entre uma,
outra ou nenhuma, considerando ambas. Em primeiro lugar, tento identificar a relao dos
discursos da comunidade com as polticas pblicas para o segmento e algumas de suas
vinculaes tericas. Em seguida, trabalho a relao do samba de coco com a msica popular
brasileira e como reflexo de registros historiogrficos sobre a msica popular brasileira,
herdeira de relaes entre a arte africana e a modernidade, passando por impresses sobre o
Stio Atoleiros e destacando, no Stio Castainho, a produo literria de Joo Faustino. Minha
fala transita entre as falas dos brincantes, no o contrrio. uma forma de lhes reconhecer o
saber adquirido independente da escola, que os habilita a ensinar, a partir de suas prticas,
embora no disponham de instrumentos para ter um projeto de oficina aceito pelas polticas
culturais.
A multiplicidade de estratgias, fontes e reas de conhecimento envolvida nesta tese
converge para um mesmo desejo: valorizao e fortalecimento de prticas existentes nas
comunidades mais diversas, inclusive na relao com a afro-brasilidade, frutos da
inventividade humana e sua capacidade de compartilhamento de sentimentos, originrios de
prticas coletivas geradas a partir da msica e seus componentes, que envolvem a socializao
de experincias e se traduzem em encantamento coletivo.
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1 REFLEXES TERICAS E METODOLGICAS
1.1 Um marco importante
Deveria ser uma banalidade por todos reconhecida, o fato de que no caso do trabalho
de reflexo, retirar os andaimes e limpar os arredores do edifcio, no somente em
nada contribui para o leitor, mas tambm lhe tira algo de essencial. Ao contrrio da
obra de arte, aqui no h edifcio terminado e por terminar; tanto e mais que os
resultados, importa o trabalho da reflexo e talvez seja sobretudo isso que o autor
pode oferecer. [] Construir sinfonias ou compor sinfonias no pensar. A sinfonia, se existe sinfonia, deve o leitor cri-la com seus prprios ouvidos.
(CASTORIADIS, 1982, p.12)
Com este texto de Castoriadis, inicio minhas reflexes. Mais do que elencar ou
categorizar os incontveis modos de pensar, carrego a ideia de, em me fazendo compreender,
estimul-los, com a pretenso, simplesmente, de voltar olhares para modos de educar que no
esto apenas na escola ou na universidade, no foram regulamentados por saberes oficiais e
que no esto ameaados de desaparecimento: as relaes interpessoais e a capacidade
humana de criao, por intermdio da historicidade e da arte. Implcito a esta pretenso, est o
desejo de ver alguns desses modos de educar, que representam modos de pensar, utilizados
como referenciais para gerao de processos educativos mais amplos, desprovidos de vises
preconceituosas. Estes modos de educar podem ser reconhecidos e utilizados como estratgias
educacionais, com aparato institucional, respeitando procedimentos que ainda no foram
sistematizados de acordo com normalizaes tradicionalmente utilizadas, podendo ser
produzidos para utilizao como referenciais na busca pelo conhecimento. Garantidos pela
ampla liberdade de conhecer, imaginar e criar, tais processos educativos, porque criativos,
estimulam os fazeres individual e coletivo autnomos, possibilitando autoconfiana e incluso
daqueles que, por alguma razo, no se integraram para finalizao de processos educativos
formais.
Cornelius Castoriadis, filsofo grego de formao francesa, acredita na necessidade
humana de constante transformao, que tem lugar no imaginrio social. Para ele, o
conhecimento um esforo de compreenso que, uma vez fechado, se torna uma ideologia.
Quando se estabelece uma forma de pensar que todos adotam, ela se mostra insuficiente, por
ser hegemnica, gerando novos modos de pensar, tratados pelo autor como criao histrica.
O saber objetivo e subjetivo, tomado pelo ser humano como sujeito que se coloca como
objeto, na busca de auto compreenso, pois o saber existe apenas pelo homem e para o
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homem. O abstrato e o particular, ou o concreto, so exemplos; a singularidade a essncia
do ser.
Castoriadis trata do confronto, referenciando-se em Marx. Diz ser o confronto
elemento fundante do conhecimento. A luta do conhecimento desalojar uma viso para
construir outra, utilizando a linguagem como meio para modelar o imaginrio. Este se
estabelece dentro das relaes, inclusive pela linguagem, pelas significaes, representaes e
instituies. Para Castoriadis, a idia vem da conscincia e no da realidade que, por sua vez,
jamais poder ser apreendida ou explicada em sua totalidade. Tudo o que existe o que entra
no nosso universo de representaes. E tudo o que existe na sociedade, as criaes,
interpretaes, observaes, pode ser incorporado historicamente. Resta saber como isso se
d.
Castoriadis discute com os estruturalistas, para quem as diferentes sociedades
humanas resultam apenas de combinaes diferentes de um nmero reduzido de elementos
variveis, e os hegelianos, quando defendem que a sucesso histrica acontece de forma
sistemtica nos diferentes tipos de sociedade, dizendo, em confronto com Hegel, que
acreditava ser possvel o fim da histria, pois a conquista do saber absoluto era a meta da
histria como cincia. Uma vez alcanada tal meta, nada mais haveria a tratar. Como Hegel
admite no haver um tempo que pare, reconhece, talvez sem perceber, que a histria tambm
no finda.
As possibilidades com relao histria humana existem, mas no podem ser
relacionadas. De certa forma, elas esto, acredita Castoriadis, pairando de acordo com um
momento, com uma circunstncia que possibilita a criao, elemento que permitir a infinita
capacidade humana de se adaptar e gerar o novo. Com os existencialistas, Castoriadis discute
sobre a essncia do ser. Para estes, ela no existe. Para Castoriadis, contudo, a essncia existe
e mutvel, na medida em que definida pela criao como especificidade central.
O indivduo sujeito sempre ligado ao institudo, caracterizado por normas, valores,
pela linguagem. Ao tratar da criao histrica, Castoriadis defende que existe uma lei
histrica para instituio do social. Entretanto, a criao a essncia da histria, que s se
realiza nas relaes, no conjunto social onde se constitui o prprio imaginrio. A essncia,
diferentemente da viso tradicional, que sugere uma origem nuclear fixa, possui um ncleo
mutvel que propicia a criao. Esta ocorre nos nveis do psquico e do social-imaginrio.
Para Castoriadis, criao no indeterminao; estar aberto a novas possibilidades.
, portanto, posio de novas determinaes. Assim, criao a capacidade de fazer surgir o
que no estava dado e pode no ser derivado daquilo que j era dado. A criao reside na
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imaginao, utiliza os elementos que j existiam, sob uma nova forma, de onde emerge o
novo.
Os mitos no so resultados de leis da fsica, em Castoriadis, mas aritmtica e mito
ilustram as dimenses em que se desdobra a sociedade humana: a conjuntista-identitria, que
classifica e tende a hierarquizar. Alm desta, Castoriadis identifica a dimenso por ele
chamada propriamente imaginria, onde predomina a significao. Ambas podem ser
localizadas, mas no determinadas plenamente, porque dependem dos diferentes modos de
interpretao. A diferenciao identificada pelo autor entre o mundo biolgico e o mundo
scio histrico reside na autonomia do ltimo. Desse modo a qualidade atribuda autonomia
a de possibilitar a criao, pois ela no existe proporcionando o fechamento da histria, ao
contrrio, porque aberta, propicia a mudana histrica que passa pelo institudo e pelas
instituies. Mas questionar a instituio no significa alter-la, pois Castoriadis entende que
a tendncia do social que, assim que algo novo aparece, tenta-se reduzi-lo s categorias
conhecidas. A autonomia permite observar o institudo e alter-lo na medida ilimitada da ao
humana advinda da sua capacidade criadora.
O imaginrio de que trata Castoriadis no imagem de. criao incessante e
essencialmente indeterminada (social-histrica e psquica) de figuras, formas e imagens, a
partir das quais somente possvel falar-se de alguma coisa. Aquilo que denominamos
realidade e racionalidade so seus produtos. [] Todo pensamento da sociedade e da histria
pertence em si mesmo sociedade e histria (CASTORIADIS, 1982, p.13). Ao mencionar
Herclito, Castoriadis trata do que considera uma ousadia do filsofo: escutando no a mim,
mas ao logos, acreditem que no nunca o logos que escutam; sempre algum, tal como ,
de l onde est, que fala com seus riscos e perigos, mas tambm com os de vocs
(CASTORIADIS, 1982, p.14).
Castoriadis um marco importante para este trabalho especialmente pela viso
filosfica que traz para a histria, que pode ser direcionada para a produo historiogrfica.
Esta viso tem na criao elemento que, mais do que a dinmica social tradicionalmente
reconhecida pelas humanidades, demonstra que as aes humanas decidem os caminhos da
sociedade, deixando claro que os processos de escolha dos grupos sociais, mesmo com
predominncia de uns sobre outros, propiciam a percepo de inveno das instituies, o
respeito ou conflito, quanto ao seu ordenamento, valores e mitos.
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1.2 Situando o estudo
Um estudo requer leitura e decises. Muitas vezes um pesquisador, na sua busca por
respostas, relaciona cada uma de suas diversas leituras, a aspectos que podem ser aproveitados
para desenvolver seu estudo. Isto visibiliza uma pluralidade de opinies e uma multiplicidade
de conceitos que colaboram para que a pesquisa assuma uma nova abordagem, mas distancia
o pesquisador de uma nica teoria que norteie as dimenses de seu trabalho. Meu estudo
talvez peque neste sentido.
Entender minha sequncia de raciocnio sobre este trabalho demonstra as relaes que
pretendo. Pretendo analisar duas comunidades em estgios diferentes de produo cultural,
principalmente porque, a partir de uma origem tnica, so tratadas pelas representaes do
Estado nacional como patrimnio cultural. Atoleiros tem no samba de coco uma brincadeira
originada na comunidade que celebra qualquer acontecimento feliz e que, por interveno do
poder pblico municipal, comea a se apresentar em palcos fora da comunidade. Castainho
recebe anualmente oficinas do Festival de Inverno de Garanhuns, patrocinadas pelo governo
do Estado de Pernambuco, que at 2007 no estimulavam a produo do samba de coco,
embora ele exista historicamente na comunidade: recebe oficinas que trazem, pelas relaes
tnico-raciais, atividades de formao artstica, extensivas a outros remanescentes
quilombolas da regio. Ao mesmo tempo, no se investiga a produo artstica na
comunidade, estimulando preservao, por meio de formao cultural. Parece que o j
existente pouco considerado, como se j tivesse reconhecimento, estimulando-se uma
produo artstica exgena, sugerida pelos gestores culturais e aceita pela comunidade. E o
prprio reconhecimento transforma a brincadeira em atrao turstica. A residem instncias
de poder que se complementam: na representao do Estado, atravs dos gestores pblicos; na
liderana que consulta a comunidade e define encaminhamentos em termos de educao no
formal ou nos brincantes, que trabalham por reconhecimento artstico fora da comunidade.
Burke, ao analisar o conceito de cultura, diz que
estendeu-se o sentido do termo primeiro para abranger uma variedade muito mais
ampla de atividades do que antes no apenas a arte, mas a cultura material, no apenas o escrito, mas o oral, no apenas o drama, mas o ritual, no apenas a
filosofia, mas as mentalidades das pessoas comuns (BURKE, 2000, p246).
Esta concepo de cultura conduz a uma reflexo, que Jos Luiz dos Santos aponta
como um alerta:
cultura com frequncia tratada como um resduo, um conjunto de sobras, resultado
da separao de aspectos tratados como mais importantes na vida social. [] como se fossem eliminados da preocupao com cultura todos os aspectos do
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conhecimento organizado tidos como mais relevantes para a lgica do sistema
produtivo (SANTOS, 2004, p.49).
O conceito de cultura disseminado socialmente costuma ser relacionado diretamente
com as manifestaes artsticas. Henri Lefebvre, em seu ensaio O que a modernidade
(LEFEBVRE, 1969, p.221), trata a arte, a poesia e a linguagem como um sintoma cultural. Os
chamados sintomas culturais so tratados por Durval Muniz, como
obras de arte [que] so tomadas [] como discursos, como produtoras de realidade []. As obras de arte tm ressonncia em todo o social. Elas so mquinas de produo de sentido e de significados. []. So mquinas histricas de saber (ALBUQUERQUE, 1999, p.22).
Ao discutir sobre a condio humana, Hannah Arendt lembra
a atividade de pensar [como] a mais alta e mais pura atividade de que os homens so
capazes []. A ao, nica atividade que se exerce entre os homens sem a mediao da matria, corresponde condio humana da pluralidade, ao fato de que homens e
no o Homem, vivem na terra e habitam o mundo []. Todos os aspectos da condio humana tm alguma relao com a poltica. o discurso que faz do
homem um ser poltico []. Os homens so seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condio de sua existncia
[]. O que quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relao com ela, assume imediatamente o carter de condio da existncia humana (ARENDT,
2005, p.13-17).
Considero que estas reflexes se aplicam s prticas culturais, inclusive as artsticas,
especialmente nas comunidades objeto de estudo, em funo de que, como representao
histrica de cada grupo social, tais prticas so reflexos da prpria histria e oferecem
condio de existncia para muitos.
Esta premissa para o conceito de patrimnio indcio para a concepo de cultura que
pretendo considerar. Compreende-se cultura como
um padro, historicamente transmitido, de significados incorporados em smbolos,
um sistema de concepes herdadas, expressas em formas simblicas, por meio das
quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento acerca
da vida (GEERTZ apud BURKE, 2005, p.51).
No texto Etnicidade e o conceito de cultura, Fredrik Barth (BARTH, 2005, p.15-30)
diz:
Todos concordamos que cultura se refere a algo (tudo?) que aprendido. Mais
precisamente isso significa que cultura induzida nas pessoas por meio da
experincia logo, para identific-la, temos de ser capazes de apontar para essas experincias. Convido-os a olhar para a cultura em termos globais e ver que ela
apresenta no apenas uma enorme variao, mas tambm uma variao contnua.
Em segundo lugar, devemos pensar a cultura como algo distribudo por intermdio
das pessoas, entre as pessoas, como resultado das suas experincias. Em terceiro
lugar, a cultura est em um estado de fluxo constante. () A cultura est sempre em fluxo e em mudana, mas tambm sempre sujeita a formas de controle.
Cultura mais do que produo artstica, mas , tambm, produo artstica. Neste
sentido, as dimenses atuais atribudas ao conceito de patrimnio se confundem com a prpria
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ideia de cultura, inclusive nas comunidades que analiso. Prope-se a concepo de patrimnio
em sentido amplo, considerando-o como bens materiais (incluindo a escrita e as artes visuais)
construdos, o meio ambiente e as diversas formas de conhecimento transmitidas pela
oralidade.
A contestao da cultura, nascida da prpria crise da cultura, e que, por sua vez,
coloca-a em crise, amplia-se, chegando logicamente viso de uma cultura
antropolgica mais superficialmente limitada arte, porm concernente s
profundezas da existncia e da relao homem-homem e homem-mundo, e que
dever-se-ia tornar a cultura de todos. (MORIN, 1992, p.198)
A histria demanda conscincia individual e coletiva nas relaes sociais e cultura
um elemento independente de conscincia, existe antes, com ou sem a inteno humana de
preservao de memrias. No texto A beleza do morto, Michel de Certeau (CERTEAU, 1995,
p.55) discorre sobre o conceito de cultura popular, analisando o modo como tratada pelos
estudos acadmicos desde o sculo XVIII. A necessidade de lanar um olhar sobre o outro
acaba por folclorizar as prticas culturais de grupos distanciados da produo do
conhecimento ou dos centros urbanos, na viso acadmica sobre o modo de viver dos menos
abastados. Folclorizar significa olhar o outro, o seu fazer ou suas prticas, reduzindo-os a
objeto do olhar de quem observa, desconsiderando que este olhar pode ser monocromtico,
carregado de preconceitos que s identificam sentidos para o que se olha, por quem olha,
desconsiderando processos integrantes da vida de outrem, cuja importncia no pode ser
aferida, se olhada apenas por este prisma.
Certeau atenta para as prticas acadmicas. Considero que a viso de Certeau permite
uma analogia com as aes das instituies sociais, especialmente as de servio pblico. Para
ele, o cuidado folclorista deseja localizar, prender, proteger. Seu interesse como que o
inverso de uma censura: uma integrao racionalizada. A cultura popular define-se, desse
modo, como um patrimnio (CERTEAU, 1995, p.63). Este estudo planeja um sentido
oposto, certamente preservacionista tambm, mas que pretende respeitar as ideias dos
brincantes manifestas atravs da musicalidade, das letras das canes, do canto e da dana, ao
mesmo tempo em que investiga os movimentos do Estado para formar artistas ou
profissionais que apoiem sua produo. a observao e a preservao das prticas coletivas
nas comunidades observadas que move esta idia. O que no impede o reconhecimento de que
os movimentos transformadores das prticas nas comunidades acontecem, so decises da
prpria comunidade, mas recebem interferncias externas, muitas vezes sem solicitao ou
escolha do grupo. Pretendo aproveitar as prticas coletivas como estratgia para demonstrar a
importncia da historicidade e do pertencimento aos espaos construdos coletivamente. No
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se perceba o popular como o que est associado ao natural, ao verdadeiro, ao ingnuo, ao
espontneo, infncia (CERTEAU, 1995, p.63), mas como diferente modo de viver que
dispensa hierarquizaes. Estas so dispensveis em se tratando de uma classificao social
ou de uma categorizao das expresses artsticas. No me interessa discriminar a arte,
classificando-a como nacional, re