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Page 1: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
Page 2: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Almas

em

sonho

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“Eu não tenho uma alma.

Eu sou uma alma.

Eu tenho um corpo”.

C. S. LEWIS

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Para Tayô

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Prefácio do autor

“Almas em Sonho” é uma flor colhida no jardim da minha alma. É a luz de

amor que propago para o Universo.

Assim como a maioria dos romancistas estreantes, não resisti à tentação

de incluir um pouco de mim na história. É uma espécie de “Memórias Inventadas”

de Manoel de Barros, ou aquilo que chamo de “autobiografia não-autorizada”.

Apesar de ter nascido a partir da minha experiência com o Daime, este

livro não é sobre o Daime. Muito menos uma tentativa de doutrinação. “Almas

em Sonho” é o primeiro passo de uma nova etapa na minha caminhada espiritual.

A espiritualidade tem sido muito generosa comigo nos últimos três anos.

Amados irmãos de luz me orientaram e inspiraram na conclusão desta obra.

Destaque especial para Seu Zé Pelintra, querido companheiro de luta, e minha

mentora espiritual Eleanor.

Ciente da resistência por parte da crítica literária especializada em

relação àquilo que convencionou-se chamar de literatura esotérica, gnóstica,

espiritualista ou de autoajuda, meu esforço foi de escrever um romance com

toda a sua estrutura de forma a torná-lo interessante a qualquer tipo de

leitor.

Acima de tudo, “Almas em Sonho” é uma linda história de amor

interrompida e retomada no curso de várias encarnações. É a incansável busca

do ser humano pelo autoconhecimento, pela Verdade e, consequentemente, por

Deus.

Limitações de ordem financeira, tão comuns a escritores iniciantes,

impediram – por ora - a publicação do livro físico. A disponibilização deste

arquivo digital encerra uma agonia de quase um ano, desde que “Almas em

Sonho” foi concluído e gentilmente revisado por Marta Cocco e Luiz Renato

Souza Pinto.

Grande parte foi escrita enquanto eu morava no “Condado da Rainha”,

nome informal da paradisíaca chácara onde está instalada a igreja daimista

“Mestre Irineu”. A energia do lugar e todos os seres divinos que ali habitam

permitiram que eu pudesse trabalhar em harmonia e paz; e para que “Almas em

Sonho” exalasse o doce perfume do amor do Cristo Cósmico. Boa leitura. Namastê!

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- Luz! Luz! Luz! – por várias vezes repetiu mentalmente João Guilherme,

depois de dar-se conta do estado em que se encontrava. A princípio, só percebeu

fracos lampejos a sua volta. Em seguida, conseguiu distinguir sombras em

movimento ainda na penumbra do ambiente. E, de repente, como quando todas as

luzes de um lugar são acesas instantaneamente, viu-se coberto pelo brilho da

lua cheia que pairava no céu. Em estado de êxtase, olhou para a paisagem com

os olhos de uma criança na primeira visita a um bosque. Tudo tinha uma nitidez

cristalina e um encanto único. Cintilantes lumes vagavam lentamente e a leve

brisa que soprava na noite embalava as flores verde-fosforescentes da

vegetação nativa. Os sons naturais da noite se misturavam à uma dulcíssima

voz que entoava um cântico quase inaudível. Pequenas esferas brancas de luz

flutuavam a certa distância. Às vezes, elas desapareciam para logo depois

ressurgirem dilatando-se e assumindo formas que lembravam uma figura

humana. Só depois de algum tempo João reconheceu que estava em uma área da

chácara onde morava.

Temendo uma recaída crônica dos surtos de sonambulismo dos tempos de

infância, passou a mão por trás da nuca e sentiu o cordão de prata. Um

sentimento de gratidão lhe envolveu a alma por aquilo que considerava uma

bênção e fez uma prece pedindo a proteção de seu mentor espiritual. Em seguida,

caminhou lentamente pela mata. Ele parecia flutuar tamanha a leveza e a

sensação de liberdade. Ao mover-se nesse mundo de densidades mais sutis, como

se fosse um fantasma, passava – literalmente - através das plantas e árvores.

O contato de seu fluido universal com os da mata causava leves choques de

energia. Ele caminhou mais um pouco até chegar a um cantinho que considerava

especial. Um pequeno descampado onde havia quatro tocos de madeira que

serviam de banquinhos e uma pequena mesa rústica feita a partir de um tronco,

onde gostava de ficar em estado de recolhimento, meditando. Era ali que

dirigia as preces aos Elementais da Natureza, os espíritos da Terra, Água,

Fogo e Ar. Por alguma razão desconhecida, sempre que fazia as orações naquele

lugar, embora se esforçasse para em falar em português, era recorrente que as

palavras saíssem em inglês – idioma que lecionava há mais de vinte anos.

O professor ficou imóvel e em silêncio por vários minutos. Quando ia

abrindo a boca para começar a prece, riu ao lembrar que a palavra falada só

é necessária no mundo físico. Nas dimensões superiores, a comunicação é feita

Page 7: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

pela frequência do pensamento. João Guilherme elevou a mente e procurou na

memória momentos felizes da vida. Também jornalista e poeta, sempre pedia aos

Elementais por inspiração para escrever seus textos e poemas.

De plena posse dos olhos da alma, viu formas de luz saírem por detrás,

de cima e de dentro das árvores e, pelo que conseguiu entender, rodearam-lhe

a dançar uma espécie de ciranda astral. Feixes de energia de todas as cores,

especialmente azul e dourada, tomavam conta do cenário. Diante de si passavam

imagens de lugares onde lembrava ter estado e rostos de pessoas com quem havia

convivido. Sua capacidade cognitiva estava ampliada centenas de vezes.

Inúmeros poemas, melodias e textos surgiam simultaneamente. O primeiro

instinto foi o de reter o máximo possível daquele turbilhão para escrever a

respeito quando voltasse ao estado de vigília, pois sabia que, de volta à

matéria, a memória não seria completa. Afligido por esse temor, sentiu um frio

repentino. A garganta ficou totalmente seca; teve tonturas, a visão ficou

turva e tudo era escuridão novamente. Ele estava de volta ao corpo físico.

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2

Como de costume, João Guilherme acordou de olhos fechados. Por

experiência, sabia que se os abrisse estaria definitivamente desperto e não

pegaria mais no sono. O estado de catalepsia, contudo, permanecia. Por isso

procurou relaxar, mas o máximo que conseguiu foi cair em um sono profundo e

sem sonhos. Se bem que não ignorava o fato de que sonhamos todas as noites.

Mas desta vez, não sonhou mesmo. O corpo ficou imerso em profundo estado de

repouso por dez horas até que abrisse os olhos. Agora, de novo no plano astral,

não foi preciso repetir mentalmente o comando luz. Ele estava em pé no meio

da estrada de chão que dava acesso à sua residência. O sol brilhava

intensamente e tinha uma luz cuja beleza excedia qualquer tentativa de

descrição. João girou o olhar prestando atenção em tudo e resolveu voltar

para casa para fazer uma verificação. É que a maioria dos espíritos

desencarnados, diferente do que pregam os supersticiosos, não está nas ruas,

encruzilhadas ou cemitérios, e sim dentro dos lares. O professor queria saber

que espíritos lhe faziam companhia. Era só preciso tomar o cuidado de não

entrar no quarto onde o corpo físico dormia, pois isso o levaria

automaticamente de volta a ele.

O jornalista flutuou a curta distância que o levou à varanda da modesta

moradia. Como acontecia todo dia no meio da tarde, um cristal lapidado em

forma de diamante, preso a uma espiral metálica e pendurado na viga de

madeira por uma linha de pescar espalhava múltiplos raios coloridos,

proporcionando um lindo efeito visual. Vistos com os olhos anímicos, os pontos

luminosos ficavam ainda mais fascinantes. Era na pequena área externa que

João estacionava a moto estilo custom. Ao dar por sua falta, lembrou-se de ter

mandado fazer uma revisão geral para colocá-la à venda, pois planejava

comprar uma importada do mesmo modelo. Ele só ficou mesmo cismado com a

ausência da rede na qual sempre deitava para ler livros espiritualistas.

Quando estava prestes a entrar, ouviu um som inconfundível. Virou-se e viu

os dois gatos pretos com quem dividia a casa miando em sua direção. O poeta

não gostava de chamá-los de seus. Achava inconcebível um ser vivo pertencer

a outro. “Orfeu, irmãozinho! Wicca, bruxinha! O que vocês estão fazendo aqui

fora sozinhos?” Os bichanos não correram até o amigo, como sempre faziam.

Apenas ficaram miando, fixando o olhar no rumo em que João estava. Wicca

tinha sido batizada assim em referência ao termo original para bruxa, em

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inglês. O nome de Orfeu fora dado por causa do menestrel mitológico, filho de

Calíope e Apolo. E também em homenagem ao protagonista da peça “Orfeu da

Conceição”, de Vinícius de Moraes.

- Fiquei honrado com a lembrança, caro João Guilherme. Muito obrigado!

Ouvir aquela voz forte, embora calma, e vinda sabe-se lá de onde, foi um

grande susto para o professor. Ele virou-se para todos os lados e não viu

ninguém. Pensou nos famosos espíritos zombeteiros. Olhou mais uma vez e nada.

Até que, depois de instantes que pareceram uma eternidade, escutou bem atrás

de si:

- A bênção, João!

Ao virar-se, não podia acreditar no que tinha diante de si. Mas era ele.

Só podia. Não tinha como errar. O jornalista estava frente a frente com o

espírito do poeta Vinícius de Moraes, que então lhe disse:

- Meu amigo, meu irmão, não tenha medo. Estou aqui em missão de paz em

nome do Nosso Divino Pai Eterno, Deus Todo Poderoso. Saravá!

João sabia que espíritos inferiores jamais saudavam em nome de Deus e

por isso replicou respeitosamente a saudação inicial imortalizada no samba do

próprio Vinícius e Baden Powell. “A bênção! Saravá!” Os olhos azuis do

menestrel estavam mais azuis do que nunca. Ele usava uma camisa verde de

mangas compridas e uma calça levemente marron. Ambos eram de linho. Os óculos

de grau eram idênticos aos que sempre usara em vida. O professor não ousava

fazer nenhuma pergunta, uma vez que o poeta tinha dito que viera em missão

de paz.

“Meu amado irmão, espíritos superiores me enviaram para vir ter contigo.

De hoje em diante, passaremos muitos momentos juntos, e tudo será esclarecido

paulatinamente”, disse Vinícius após uma pausa. Em seguida, tocando o ombro

de João Guilherme com a mão direita, pediu: “Feche os olhos e eleve o

pensamento. Nós vamos viajar”.

Tomado de súbita coragem e com a cautela para não ser grosseiro ou

desrespeitoso, o jornalista indagou: “Perdoe-me pelo ceticismo mas, antes de

ir a qualquer lugar, preciso saber se o senhor realmente é quem diz ser”.

Vinícius pareceu qualquer coisa ofendido, mas depois sorriu com bondade e

respondeu com ternura: “Meu irmão, a tua dúvida é pertinente. Melhor ainda,

é saudável. Realmente posso ser qualquer um. Assim sendo, devo esclarecer que

faço parte da falange espiritual dos poetas. Você deveria ser capaz de

reconhecer um semelhante, já que também faz parte dela. Muito embora palavras

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bonitas possam ocultar seres de pouca luz, a sinceridade delas não é algo de

se imitar. Não foi o supremo mestre Cristo Jesus que ensinou que a boca fala

do que o coração está cheio?”

João Guilherme envergonhou-se da incredulidade. Percebendo a situação,

Vinícius de Moraes chegou bem perto e completou olhando-lhe no fundo dos

olhos: “Amado, certa vez lestes um livro sobre mediunidade, lembra-te?” O

professor respondeu positivamente com um pequeno aceno de cabeça.

- E o que o espírito que ditou o livro disse quando questionado sobre

qual era o mais alto grau de mediunidade?

- Ele disse que era a intuição. Que é quando entramos em comunicação com

o nosso Ser Divino.

- Perfeito. Consulte então a intuição e me diga se estou a mentir sobre

minha identidade.

João Guilherme olhou mais profundamente para os dois pingos de céu que

o espírito tinha nos olhos. Em seguida fechou os seus e viu que ele falava a

verdade. “Sinto-me honrado pela companhia e aceite minhas sinceras desculpas

pela falta de fé”, disse com humildade. O mentor espiritual apenas sorriu

novamente e, tocando o ombro de João, arrematou: “Podemos viajar agora?”

Instintivamente o jornalista fechou os olhos e um grande clarão, seguido de

uma espécie de estrondo, quase o fizeram perder os sentidos. Em seguida, sentiu

o corpo suspenso no ar e ser conduzido por um vórtice de luz azulada.

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3

“Chegamos!”, exclamou o mentor Vinícius de Moraes. João Guilherme abriu

os olhos e reconheceu de imediato a paisagem. Era o lugar mais lindo onde já

tinha estado. Os dois espíritos estavam aos pés do Cristo Redentor, no Rio de

Janeiro, cidade pela qual o professor nutria uma paixão imensa, apesar de só

ter estado lá uma vez e por pouco tempo. Sua alma irradiava alegria diante

de tão belo cenário. Ao longe, o sol começava a fazer o trajeto derradeiro de

todos os dias, emprestando ao céu e ao mar uma luz rósea.

“Rio de sol, de céu, de praia e mar...” cantarolou Vinícius bem baixinho.

E virando-se para João, disse com certa pompa irônica na voz: “Eis que o filho

pródigo à casa torna”. Diante do espanto do jornalista, prosseguiu: “Sim,

irmãozinho. A tua intuição sempre esteve correta. Você já morou mesmo na

cidade maravilhosa. E olha que foi em uma época gloriosa”. João Guilherme não

sabia o que dizer. Virou-se e viu o Cristo de abraços abertos como a dizer

“bem-vindo, meu filho”. Não resistindo, chorou de emoção diante das primeiras

estrelinhas que prometiam que aquela seria uma noite divinamente iluminada.

- A última vez em que esteve aqui na cidade, você voou de asa delta, não

é mesmo?

- Sim. E foi uma experiência única. Pena que só durou cinco minutos.

O jornalista jamais se esquecera daqueles cinco minutos. Da paz de

espírito ao sentir o vento frio no cume da Pedra da Gávea; da adrenalina ao

correr, amparado pelo instrutor, rampa abaixo e saltar em direção ao infinito,

de entregar a alma à floresta e ao mar que o saudavam lá de baixo e soltar

um grito de liberdade reprimido por tanto tempo no peito.

“Volare, ô, ô...!”, entoou Vinícius precipitando o corpo ribanceira abaixo.

“Você não vem, Joãosinho?”, gritou sem olhar para trás.

Despertado pelo chamado e feliz com o tratamento carinhoso, João

lembrou-se das oficinas de projeção e daquilo que se denominava volitar, não

pensou duas vezes e lá foi realizar seu sonho de Ícaro. Ele alternava o olhar

entre o azul do céu e o azul do mar. Flutuando por sobre as águas, imagens

aleatórias e não muito nítidas de sua encarnação no Rio de Janeiro lhe vinham

à mente. Eles então pousaram na praia de Ipanema. “Onde mais?”, pensou João

Guilherme em meio a um sorriso. “Eu ouvi isso”, reprimiu Vinícius

simpaticamente. Era óbvio que sendo o pensamento a forma de comunicação no

astral, não havia espaço para segredos - concluiu o professor.

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O poeta parou em frente ao mar no que parecia ser uma atitude de oração

e permaneceu assim por vários minutos. Em seguida, entrou na água com roupa

e tudo e desapareceu. O professor só conseguiu vê-lo novamente quando já

estava a pelo menos cinquenta metros da praia, por cima da imensidão azul.

- E Vinícius de Moraes caminhou sobre as águas – pensou João Guilherme.

- Eu ouvi isso também! - respondeu o mentor em meio à uma gargalhada.

O jornalista foi até onde Vinícius estava e ficou ao seu lado.

“Já perdi a conta das vezes que recitei ‘Minha Namorada’”, confessou

constrangido. “E eu não sei? Meu irmão, se não me engano, você recitou esse

poema para todas as suas namoradas”, comentou Vinícius dando destaque para o

“todas” e aumentando o constrangimento de João.

- Mas os poemas de amor não foram escritos para serem recitados às

mulheres?

- Poema é coisa séria, querido. Se você fizesse ideia do que ele causa na

cabeça e no coração de uma mulher...! A propósito, por que você não recitava os

teus próprios?

- Nunca me senti muito à vontade para declamar minha poesia. Sempre a

achei meio chinfrim. Mas uma vez escrevi um poema de uma só estrofe que me

deixou muito feliz.

- E como era?

- “Vivo ao lado da poesia,/ nela me completo./ De costas pro mundo./ De

frente pro verso”. Bonito, né?

- Obrigado!

-Hã?! Como assim, “obrigado”?

- Fui eu quem lhe soprou isso. Fim de noite no bar do Chicão. Como sempre,

sozinho na mesa do canto. Terceira cerveja. Usou o guardanapo para escrever.

Correto?

João Guilherme ficou impressionado. Tinha sido isso mesmo. Vinicius

então lhe explicou que muito da produção musical e poética de grandes artistas

era, em parte, o tipo de psicografia classificada como inspirada - que ocorre

quando o espírito sugere o texto à pessoa através do pensamento.

- Mas eu só sugeri os dois últimos versos. Os dois primeiros são da tua

lavra mesmo.

- E o que achou?

- Chinfrins!

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Percebendo o abatimento de João com a crítica negativa, Vinícius

abraçou-o de lado e falou ternamente: “Ninguém nunca se tornou poeta, mas

poeta de verdade, vivendo “ao lado” da poesia. O mais correto seria dizer “na”

poesia. Estar ao lado não significa necessariamente estar com. A poesia é uma

mulher possessiva, ciumenta. Ela não admite ser dividida com ninguém. Ou você

se entrega de corpo e alma ou nada feito. Fazer poesia ou samba não é contar

piada. Você precisa ressuscitar a veia poética, meu filho”.

Os homens ficaram em silêncio e o céu agora estava coberto de estrelas e

o reflexo prateado da lua cobria os espíritos que flutuavam sobre o mar calmo.

De repente, ouviu-se ao longe um som que parecia o início de um tremor. Como

não se lembrava de ter presenciado um maremoto, o jornalista afirmou: “Ouço

um tropel nas ondas do mar”. “É Ogum com seus cavaleiros”, esclareceu Vinícius

de Moraes.

O barulho foi ficando cada vez mais intenso. O coração de João Guilherme

batia na mesma intensidade daquelas centenas de cascos que se aproximavam. E

eis que ao longe, sob a luz da lua cheia e do manto estelar que iluminavam a

noite da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, surge ele, o Orixá

guerreiro, rodeado por seu exército. O Rei Ogum apeia de seu cavalo branco e

caminha até Vinícius de Moraes. O poeta ajoelha-se com a perna esquerda,

deixando a direita de apoio. Com a mão esquerda fechada ao lado do corpo, bate

com o punho cerrado da mão direita no peito e exclama em alta voz: “Ogu yê!”

O rei de ébano retribui a saudação sem, contudo, curvar-se. A princípio João

fica sem saber como agir, até que instintivamente repete os mesmos gestos de

Vinícius. A entidade o saúda de volta, também sem curvar-se e o encara. O

professor vê centenas de estrelas, luas, planetas e sóis nos olhos do Orixá.

Ogum oferece ajuda para que João Guilherme se levante. Agora o Rei guerreiro

coloca as mãos sobre cada ombro do jornalista e diz com voz de trovão: “O amor

e o perdão são as forças mais poderosas do universo, meu filho. Que o Divino

Pai Eterno, Jesus Cristo Redentor e a Virgem Mãe Maria Santíssima lhe

abençoem com a coragem e a humildade para fazer o que deve ser feito”. Ogum

ainda olhou para João mais uma vez antes de virar-se, montar em seu cavalo e

depois de dar ordens aos seus generais, sumir na imensidão do mar, com a mesma

pompa e circunstância com que tinha chegado. João Guilherme levantou os olhos

como que a procurar alguma explicação para o que tinha acabado de acontecer,

mas só viu clarões de luz que lembravam remotamente uma aurora boreal.

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De volta à areia, manteve-se em silêncio por um longo tempo. Por mais

que tentasse, não conseguia acessar os arquivos de memória de sua encarnação

no Rio de Janeiro. Obviamente, a chave para a sentença misteriosa de Ogum.

“Não se esqueça de que você ainda está encarnado”, disse o guia espiritual

Vinícius de Moraes, surgindo ao seu lado, para em seguida completar: “A matéria

é forte impeditivo para muitas ações aqui nas esferas mais sutis. Eu sei que

o que você mais quer agora são respostas e elas virão quando tiverem de vir”.

- E qual o próximo passo?

- Divertir-se!

Ante o olhar surpreso do amigo, o anjo poeta acrescentou: “E para onde

vamos, você tem de estar vestido apropriadamente”. Como que em um passe de

mágica, o professor agora trajava um paletó e calça de linho na cor creme. A

camisa, também de linho, era marrom escura e ele não usava gravata. Como

último acessório, tinha um chapéu marron de pêlo na cabeça.

- Para onde vamos, Vinícius?

- Para o único lugar onde ele pode estar.

- “Ele”? Ele quem? E que lugar é esse?

- Na Lapa, Joãosinho, na Lapa!

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4

Era cedo quando João Guilherme e Vinícius de Moraes chegaram. A Lapa

ainda estava relativamente vazia. Somente alguns bares tinham clientes

sentados às mesas postas na calçada. João gastou um bom tempo olhando para os

arcos por onde, há muitos anos, passavam os trens.

- Jão das Letras! E não é que quem é morto sempre aparece?

Surpreso com a saudação gritada, o jornalista olhou para trás e

facilmente identificou o rei da boêmia carioca. Terno branco completo, sapatos

de cromo, gravata vermelha e chapéu panamá branco. Era Zé Pelintra, o Exu

malandro. O guia aproximou-se de João Guilherme e lhe deu um forte abraço.

“Salve, mestre!”, disse em meio ao enorme sorriso. “Mestre?”, indagou João. “E

como não? Vinícius, meu irmão, o que aconteceu com a memória do menestrel?”,

inquiriu seu Zé com sarcasmo.

“Cavalheiros, vamos nos sentar”, sugeriu o poeta. Zé Pelintra e Vinicius

sentaram-se normalmente, mas quando João tentou fazer o mesmo, passou direto

da cadeira e afundou-se no chão. A situação inusitada provocou gargalhadas

nos espíritos desencarnados. “Joãosinho, use o poder anímico para manipular

o fluido universal da cadeira para que então você consiga se sentar”, orientou

Vinícius de Moraes. Meio sem jeito, João pediu orientações mais claras. Seu Zé

riu novamente e explicou: “Apenas deseje sentar-se, mestre”. O professor

obedeceu e desta vez teve sucesso. Constrangido pelos olhares fixos dos colegas

em sua direção, João Guilherme virou-se de lado e viu, no plano físico, uma

bonita loira que passava. “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...”

gracejou Vinícius. “Isso é de fazer virar a cabeça de qualquer homem, não é

mesmo mestre?”, provocou Zé Pelintra. João, por sua vez, não disse nada.

O silêncio da mesa só foi quebrado por Vinícius de Moraes alguns minutos

depois. “Amado irmão Zé, João ainda está encarnado e não se lembra totalmente

de sua encarnação aqui no Rio. Fui instruído por espíritos superiores a

procurá-lo e depois vir até você. Temos de ajudá-lo em uma missão”. Dito isso,

pediu que os três dessem as mãos, fechassem os olhos e pensassem em Jesus

Cristo. “Divino Pai Eterno, vós que sois todo poder e bondade, abençoai-nos

com a Vossa luz no caminho que devemos trilhar. Que o amor de Cristo Jesus e

da Virgem Maria Santíssima esteja em nossos corações para que o perdão, a

justiça e a verdade prevaleçam”, orou. João Guilherme sentiu o corpo todo

estremecer e a cabeça girar – o que fez com que seu Zé Pelintra e Vinícius lhe

Page 16: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

segurassem mais forte as mãos. A mente foi bombardeada por fortíssimos raios

de luz e ele começou a suar frio. A situação incômoda fez com que o jornalista

vomitasse várias vezes. Quando os batimentos cardíacos se estabilizaram,

começou a ouvir centenas de vozes. Ao abrir os olhos, viu uma pequena multidão

de pessoas conversando animadamente pelos bares da Lapa. Somente três homens,

em uma mesa à parte, estavam calados. “Até que a gente era bonito, não é

mesmo?”, brincou Vinícius de Moraes. “Eu continuo bonito até hoje”, protestou

Zé Pelintra. Mais uma vez, o professor manteve-se em silêncio.

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5

Entre os três, João – o mais velho – é quem tinha o semblante mais pesado.

Naquela época, ele não se chamava João Guilherme Ribeiro, mas sim João Maria

de Albuquerque – um dos escritores mais conceituados do Brasil. Além de

escrever poesias, também fazia sucesso com romances. Cultuado pelos aspirantes

a poeta da época, foi assim que conheceu o ainda rapaz Vinícius de Moraes, que

havia terminado a faculdade de Direito recentemente. João Maria, ou “Jão” das

Letras – alcunha que recebeu do inseparável parceiro da boêmia José Gomes da

Silva. Apesar da fama, do dinheiro e de ser casado com uma das mulheres mais

lindas do Rio de Janeiro, Marina Vital – João não era um homem feliz. Sua

obra por vezes deixava transparecer um homem atormentado pela dor. E para

aplacá-la o poeta se embriagava, noite após noite, junto com Zé Gomes. No chiste

entre amigos, enquanto Zé o chamava de Jão das Letras, este o chamava de “Zé

Pelintra” – de certa forma, um jeito de carinhoso de dizer “pilantra”, como

alternativa ao termo “malandro” – ainda não em voga. Zé Pelintra era um negro

forte e alto, oriundo de Pernambuco. Falastrão e conquistador inveterado, era

o contraponto de João Maria, sempre recatado e discreto. A primeira mesa no

bar do Pereirinha era cativa dos dois. Ali “ficavam ébrios como cavalheiros”,

como explicava Zé Gomes. Muitos dos mais belos sonetos do escritor foram

compostos nessas noites. O jovem Vinícius havia conquistado a simpatia dos

boêmios veteranos com suas poesias e ia ter com eles pelo menos duas vezes por

semana. Como João era “o” poeta, Vinícius passou a ser chamado por Zé de

“poetinha”.

Mas naquela noite o clima estava pesado entre os três amigos. Zé Pelintra,

mulherengo incorrigível, havia se engraçado para o lado de uma loira

lindíssima - e casada. A mulher não havia gostado dos gracejos e, farta com a

insistência, contou tudo ao marido. Este, por sua vez, fez saber na Lapa que,

naquela noite, queria encontrar-se com Zé Gomes para tomar satisfações. Zé

Pelintra, inconsequente como sempre, comemorou o fato. “Pronto! O corno vem

aqui me desafiar e eu acabo com ele”, disse passando a mão pelo cabo de osso do

punhal“. E como prêmio, ganho uma deusa loura”, contou olhando para João,

como que a esperar por aprovação. Mas o poeta não pronunciou uma única

palavra e sorveu lentamente mais um gole de uísque e fechou os olhos como que

a reviver algum sonho distante. João Maria pensava no próprio casamento,

marcado por brigas e ciúme, que só se mantinha na aparência. E para piorar, a

Page 18: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

esposa não podia ter filhos – verdadeira obsessão do escritor. A situação tinha

ficado insuportável quando Marina achou no bolso do paletó dele uma carta

com letra e perfume de mulher. Na pequena correspondência, que não tinha

assinatura, lia-se:

“João, meu poeta adorado, minha vida nunca mais pode ser a mesma depois que

lhe conheci. Nossas noites de amor reacenderam o fogo da paixão em meu coração.

Quando estou em teus braços sinto-me uma mulher em toda a plenitude. Cada

instante longe de ti é como um açoite à minha alma. Por favor, liberte-me

dessa prisão que tem sido a minha vida neste casamento mentiroso. Eu não o

amo. Amo somente a ti, bem o sabes. Vamos embora para longe. Podemos ser felizes

em qualquer lugar. O que ainda te prende aqui? Estou disposta a tudo pra

ficar ao teu lado. Em breve nascerá o fruto do nosso amor. Em pouco tempo não

será mais possível esconder minha situação. Por favor, João, não vire as costas

pra mim. P.S.: Muito obrigada pelo poema publicado no jornal. Chorei de emoção”.

O conteúdo da carta foi como uma bofetada para Marina. Agora estava

claro o porquê de João quase não procurá-la, da frieza e irritação constantes.

Naquela madrugada, quando o esposo chegou, a mulher decidiu confrontá-lo pela

última vez. “Então quer dizer que o senhor tem um caso com uma mulher casada

e ainda por cima vai ter um filho com ela? Que linda atitude para o respeitado

escritor João Maria de Albuquerque, não é mesmo?”, gritou com a carta na mão,

em um tom ao mesmo tempo sarcástico e ameaçador. Como de costume, João não

esboçou nenhuma reação. Depois de alguns instantes e com um semblante austero,

encaminhou-se em direção à esposa, tomou-lhe a carta das mãos e trancou-se

no escritório até o amanhecer.

“Fidelidade... afinal, o que significa fidelidade?”, com estas palavras de

Vinícius de Moraes, João Maria foi trazido de volta à realidade. “O que o

senhor acha?”, quis saber do mestre o jovem poeta. “Por que a pergunta, filho?”,

retrucou. “É que o nosso amigo Zé está tentando me convencer que a fidelidade

é um conceito relativo e que, dependendo das circunstâncias, não precisa ser

levada em conta. Eu já penso que a fidelidade é fruto do amor genuíno,

imortal”, explicou Vinícius. João – que nunca dizia nada de pronto – pensou

por um momento e respondeu com voz pausada. “A fidelidade é uma convenção

social. Uma forma mesmo de controle, quase sempre calcada no outro. Eu quero

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dizer, via de regra, o exercício da fidelidade é praticado em favor de algo ou

alguém em detrimento de nós mesmos. Nesse ponto, concordo com o amigo Zé que

ela não deva ser absoluta”, ponderou. “Então a fidelidade no amor não é

pressuposto inquestionável?”, quis saber mais Vinícius. “O amor não é imortal,

meu poetinha”, respondeu João Maria secamente. “O amor é uma chama cuja força

varia de acordo com o sopro do vento. Ou seja, de acordo com a intensidade de

cada momento”, completou. “Pois então que seja infinito enquanto durar”,

intrometeu-se Zé Pelintra em voz alta. “E o amor da minha deusa loura pelo

marido já durou o que tinha de durar. O amor dela agora é meu e juntos vamos

vivê-lo em cada vão momento”, comemorou.

João tomou mais um gole de uísque e olhando para o amigo de longa data,

quis saber: “Zé Pelintra, meu irmão da noite, o que o faz pensar que essa

mulher também lhe tem afeto?” Como era de seu feitio, Zé Gomes esboçou um

sorriso e replicou ao companheiro: “Lembra quando o amigo passou uma semana

em São Paulo, no mês passado? Pois bem, eu, claro, não deixei de frequentar o

nosso ponto – até teu copo ficou colocado aí. Acontece que por três noites

seguidas essa mulher, essa deusa loura, ficou andando aqui pela Lapa como que

a procurar alguém. Ela não tinha jeito de dama da noite, eu as conheço bem,

como bem sabeis. Mais de uma vez ela me olhou e quase veio falar comigo. Mas

quando eu fazia menção de me levantar, ela virava as costas”, explicou. “E o

senhor acha que ela estava à vossa procura, Seu Zé?”, interrompeu Vinícius.

“E não? A minha fama de bom amante já se espalhou por toda a cidade

maravilhosa e mulheres de todos os cantos vêm me procurar. Mas depois ela

sumiu e aí eu é que fui procurá-la. Acredita que a danada deu uma de difícil?”,

respondeu Zé Gomes sem nenhuma modéstia.

O que era somente uma desconfiança tornou-se uma certeza para João

Maria. A deusa loura de Zé Pelintra era a sua amante Amparo, esposa do

sargento Savério. Após elegantemente pedir licença aos colegas, o escritor

levantou-se e foi ao banheiro. Enquanto lavava o rosto, olhou-se no espelho

e pela primeira vez na vida, sentiu vergonha de si mesmo. A teoria da

imortalidade do amor defendida por Vinícius havia mexido consigo. “Essa

mulher sabe que você é casado?”, lembrou-se dos gritos furiosos de Marina.

“Parece que não, para ela ter a petulância de perguntar, como é mesmo? ‘O que

ainda te prende aqui?’”, a voz da jovem esposa ecoava em sua cabeça. Mas sim,

Amparo sabia que João era casado. Entretanto, Zé Pelintra, seu melhor amigo,

ignorava que os dois tinham um caso e o marido não tinha conhecimento que

Page 20: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

ela esperava um filho de outro homem. Essa situação poderia ser um golpe

terrível na reputação do escritor e acabar de vez com as pretensões de ser

admitido na Academia Brasileira de Letras. A vergonha que sentia era por

importar-se muito mais com o status social que com “a outra”, a quem realmente

amava. Em um inédito acesso de fúria, João Maria cerrou o punho direito e

esmurrou o vidro do espelho até quebrá-lo.

A lua estava alta no céu quando João voltou à mesa. Zé Gomes e Vinícius

estranharam a mão ensanguentada, mas não ousaram perguntar nada, dado o

estado visivelmente alterado do escritor. Em seu íntimo, ele sabia que aquilo

não acabaria bem. Algo de trágico se anunciava para aquela noite. Mas como

demover Zé Gomes da ideia fixa de conquistar a mulher matando-lhe o marido?

A Lapa estava lotada e o som de música e de pessoas conversando começou a

provocar tonturas em João Maria. A vontade era de sair dali imediatamente,

porém não podia abandonar o amigo. A situação permaneceu inalterada ainda

por mais uma hora. Nesse ínterim, o trio trocou pouquíssimas palavras e o

estado de embriaguez começava a se manifestar. “Talvez, afinal de contas, o

sargento não venha tomar satisfações”, supôs João, um pouco mais aliviado. Se

assim fosse, considerou fortemente a possibilidade de fugir com Amparo para

a Inglaterra, onde tinha estudado na juventude e possuía muitos amigos.

“Covarde! Covarde! Covarde! Mil vezes covarde!”, esbravejou Zé Pelintra

em pé e com a faca em punho. “Eu sou José Gomes da Silva, batizado por meu

querido poeta, Jão das Letras, de Seu Zé Pelintra. Sou o rei da noite e comigo

ninguém pode. Que todos saibam que existe um homem na cidade de São Sebastião

do Rio de Janeiro, cujo nome não sei e nem quero saber, que não honra as calças

que veste e tem medo de defender a honra da mulher”. Enquanto Vinícius apenas

ria da performance teatral de Zé Gomes, julgando não passar de mais um de

seus rompantes, João Maria tentou acalmá-lo. Ato inútil, Zé Pelintra ficou

ainda mais irritado e desta vez subiu na mesa para dizer novamente tudo o

que havia dito antes. Por uma fração de segundos a música parou e nenhuma

voz se ouviu. Zé Gomes ainda lançou mais uma vez seu brado aos céus. Quando

finalmente se calou, ficou olhando para a lua e as estrelas, que naquela noite

tinham um brilho diferente. “Safado!” A ofensa, dita em voz alta, rompeu a

quietude do ambiente. Zé virou-se para ver de onde partira tamanho

desrespeito. Mal tinha olhado para trás, ouviu o estampido seco do revólver

do sargento Sáverio. O tiro acertou em cheio o rosto de José Gomes da Silva, o

lendário Zé Pelintra. Movido por uma força desconhecida, João Maria lançou-

Page 21: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

se contra o militar em uma luta de vida ou morte. Vinícius de Moraes e os

outros habitués não ousaram intrometer-se. No calor da briga, a arma de fogo

foi lançada para longe e foi nervosamente apanhada pela mulher loura que

acabara de chegar ao local. Seu grito agudo fez com que os dois interrompessem

a contenda. “Parem com isso. Se não, eu acabo com a minha vida agora mesmo”,

disse apontando o revólver contra o ouvido.

Diante da iminência de uma tragédia, Savério e João concordaram com uma

trégua e se desvencilharam. Contudo, a mulher mantinha a mesma atitude de

ameaça. Uma mistura de ódio e incompreensão dominava o olhar do militar e

ele não pronunciou uma única palavra. Como a amada mostrava-se resoluta,

João Maria ignorou as consequências e pôs-se a falar. “Amparo, minha vida,

minha estrela matutina, eu te imploro, não faça isso. Abaixe essa arma. Pense

no nosso amor, pense no nosso filho que está para nascer”, balbuciou com a voz

sôfrega. A inusitada declaração pública de amor provocou na mulher um pranto

convulsivo. Lentamente João se encaminhou a ela e, tirando o paletó, envolveu-

a num terno abraço e cuidadosamente tomou-lhe a pistola da mão. Ao fazer isso,

nem se apercebeu do terrível erro que acabava de cometer. O rival, agora mais

louco de ódio do que nunca por descobrir que a esposa tinha um caso secreto e

ainda por cima esperava um filho de outro homem, em um misto de desespero e

desejo insano de vingança, sacou de outra arma que trazia escondida no coturno

e precipitou-se em direção ao casal. “Desgraçada! Eu te mato, sua prostituta!”

Novamente impelido por uma força desconhecida, João Maria entrou na frente

da amante protegendo-a com o próprio corpo. O tiro, à queima roupa, atingiu-

lhe o peito, próximo ao coração e o fez tombar. Antes que pudesse disparar

outro tiro, Savério foi contido por Vinícius de Moraes e os garçons do bar.

Em pânico, Amparo apertou o corpo de João Maria contra si e, vendo que o amado

ainda respirava, clamou por socorro. Com dificuldade, os olhos do poeta

encontraram os da musa. Sua voz era apenas um sussurro.

- Amparo... amor da minha vida... me perdoe... eu te imploro... cuide de

nosso filho... diga que lhe amo... faça com que ele... tenha orgulho de mim...

- Não, não, não, meu amor! João, você não vai morrer. Eu te proíbo! Nós

vamos criar nosso filho longe daqui, na Inglaterra, como sempre sonhamos. Meu

amor, em nome de Deus, por tudo o que é mais sagrado, não me deixe.

“Não me deixe” – ironia das ironias, o primeiro e o último encontro entre

João Maria e Amparo terminavam com a mesma súplica.

Page 22: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Naquela manhã de domingo, há exato um ano, o sol iluminava a cidade com

um brilho carinhoso. Não se via nenhuma nuvem e o azul do céu e o azul do mar

eram como o reflexo um do outro. João Maria de Albuquerque participava de um

café da manhã especial junto com outros escritores na aristocrática

Confeitaria Colombo. Os homens das letras se alternavam na leitura dos

próprios poemas e de autores estrangeiros. Porém, mais do que a paixão pela

poesia em si, havia uma enorme competição de egos como pano de fundo no sarau.

E para tanto valia toda sorte de exibições, como recitar em outros idiomas.

Nisso João era mestre. Poliglota e dono de uma voz grave, ele declamava William

Shakespeare, Pablo Neruda, Charles Baudelaire e Catulo no original.

Especialmente inspirado, recitou – de memória – o famoso monólogo “To be or

not to be” do príncipe Hamlet, da peça homônima. O escritor sabia que o

desempenho seria primordial na batalha que travava com o romancista

Sebastião de Mello pela cadeira vaga na Academia Brasileira de Letras. Depois

de declamar, obteve muitas palmas e passou a vez para o concorrente. Enquanto

Mello recitava, João sentiu estar sendo observado. Ainda demorou um momento

até que olhasse de lado. A princípio não notou nada de anormal nas pessoas ao

redor, atentas à performance do adversário. Mas então, como quando o céu se

abre depois de uma tempestade por detrás das nuvens, João Maria deparou-se

com o mais lindo par de olhos azuis que já tinha visto na vida. Ela tinha

traços finos, estatura mediana e corpo esguio. Só com algum esforço, o poeta

conseguiu notar o dourado dos cabelos por baixo da touca. Foi quando prestou

atenção no resto do uniforme e ficou claro que se tratava de uma das várias

atendentes da confeitaria.

João Maria agora era escravo daquele olhar azul celeste. Inútil a

tentativa de não encará-la. Ainda que timidamente, a moça sorriu e João quase

derrubou o café. Ela sorriu novamente e ele tentou disfarçar cofiando o

bigode. Nesse momento o sorriso encantador da jovem desapareceu e o

constrangimento ficou nítido. Sem perceber, João tinha feito o movimento com

a mão esquerda e a aliança de ouro no dedo anelar refletiu a luz da manhã

ensolarada. Quando a sessão de leitura terminou, o poeta procurou inutilmente

pela linda mulher que havia lhe provocado um turbilhão de emoções no coração.

Mas não se deu por vencido. Oferecendo uma pequena gorjeta ao rapaz do caixa,

inquiriu com certo ar de desinteresse o nome da moça. “Amparo”, foi a resposta.

O escritor saiu da confeitaria junto com os colegas escritores, mas só foi até

a esquina. Andou mais um pouco e viu algo que podia dar-lhe novo alento, uma

Page 23: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

chance de desfazer a má impressão deixada. E o que seria melhor do que um

buquê de rosas? Agora só faltava um cartão com a mensagem certa. Metódico e

perfeccionista na composição de seus versos, nunca passara pela aflição de

escrever algo às pressas. Após alguns torturantes instantes, caprichou na

caligrafia:

“Amparo,

Em teus olhos estão todos os azuis da natureza. O azul dos mistérios do

mar; o azul da liberdade do céu e o azul delicado da borboleta que deixa um

beijo de amor em cada rosa que visita”.

Em seguida, pagou nova gorjeta para que um menino entregasse as flores

sem demora. Enquanto esperava o guri voltar, ficou lendo o jornal. E qual não

foi a surpresa quando viu o garoto, na porta do estabelecimento, lhe

apontando? A primeira reação foi virar as costas e sair andando. Todavia algo

muito mais forte o impediu. Ele quedou-se mais surpreso ainda quando Amparo,

com as flores em mãos, veio em sua direção. Habituado a falar para multidões,

João Maria ficou desconcertado quando a mulher parou diante de si. “Eu só

vim agradecer pelas flores e pelo cartão. Gostei muito, mas não posso aceitar”,

disse com voz firme. “Por favor, eu insisto”, retrucou o escritor. “Mas o senhor

é casado. Isso não está certo”, rebateu. “Sim, não nego que sou casado. Eu não

costumo ficar de paqueras, mas é que a senhorita é muito linda e mexeu deveras

comigo”, tentou explicar.

Por um momento, nenhuma palavra foi pronunciada enquanto o homem e a

mulher se olhavam ali no meio da calçada. Finalmente ela tomou a iniciativa.

“O senhor é um homem muito galante e deve se divertir às custas de moças

inexperientes como eu. Peço que aceite as minhas desculpas pelo

constrangimento que lhe causei lá dentro da confeitaria”. Agora não era mais

somente a beleza de Amparo que chamava a atenção do escritor. A sua voz doce

era um complemento perfeito à sua eloquência. Outra vez ela fez menção de

devolver o buquê, mas João antecipou-se: “Queira me perdoar pela grosseria.

De forma alguma eu quis lhe desrespeitar. Só peço que fique com as flores. Que

elas possam embelezar o teu dia, assim como você embelezou o meu”. Ela sorriu.

Depois de agradecer novamente, virou-se e sumiu no meio da multidão. O poeta

ainda ficou parado, como que em estado de transe. “E então, voltas no mesmo

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bonde que nós?”, foi essa pergunta, feita pelo escritor Sebastião Mello, que

fez com que João Maria retornasse ao momento presente. “Agradecido pela

gentileza da oferta, caros amigos, mas acho que ainda vou ficar mais um tempo

por aqui, haja vista que a minha senhora foi visitar os pais em Petrópolis e

estou sozinho em casa”.

Livre de olhares curiosos, João agora usaria de uma de suas maiores

virtudes: a paciência. Como não sabia a que horas Amparo sairia do trabalho,

sentou-se estrategicamente na direção da porta da frente do comércio e pôs-

se a esperar. Somente duas horas depois é que a mulher que havia lhe encantado

os olhos apareceu na rua, já sem o uniforme. Seus cabelos loiros e ondulados

iam até um pouco abaixo do ombro. Ela usava um vestido branco com detalhes

floreados e a silhueta das pernas se insinuava sob o reflexo do sol. Quando

notou que João Maria caminhava em sua direção, a primeira reação foi sorrir

de forma a explicitar o contentamento. Depois se conteve, ao lembrar-se do

estado civil do poeta que tanto admirava. “Com licença, senhorita Amparo. Se

me permite, gostaria de falhar-se por alguns instantes”, interpelou. “Não sei

se seria prudente, senhor João Maria”, respondeu enfatizando a palavra

senhor. “Por favor, não me tome por inconveniente, mas eu insisto”. Após

hesitar um pouco, Amparo resolveu dar-lhe a atenção solicitada. “Muito

obrigado pela gentileza, senhorita. Posso convidá-la para um sorvete?” Convite

aceito, os dois caminharam por algumas quadras até encontrarem um local

discreto. Embora não soubessem explicar, João e Amparo sentiam como se aquele

fosse um reencontro depois de longa separação. A jovem contou que era natural

do Rio mesmo e que aquele trabalho era apenas temporário. Com o salário,

compraria um piano usado e voltaria a dar aulas, ofício que exercia antes de

ter de vender o instrumento para ajudar no tratamento da doença da mãe. Por

sua vez, o escritor falava da tristeza de viver um casamento de aparências

com uma mulher que não podia lhe dar filhos. A conversa durou por quase três

horas até que ambos não conseguiam mais disfarçar o fogo da paixão que se

acendia. “Você confia em mim?”, disse João olhando profundamente nos olhos

azuis da moça. “Sim, confio”, respondeu ela sem pensar. Mandando a discrição

às favas, João Maria tomou-a pela mão e chamando um cocheiro, dirigiram-se

para um hotel no centro da cidade.

Já era tarde da noite quando o casal parou de fazer amor. Amparo não

morava muito distante de João iria lhe garantir o transporte. Ainda na cama,

beijaram-se longa e ternamente. Insegura por ter acabado de perder a

Page 25: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

inocência, ela repousou a cabeça no ombro do poeta e pediu: “Por favor, não me

deixe...”

Nunca havia se ouvido silêncio tão profundo na Lapa. Dois de seus mais

ilustres frequentadores haviam se encontrado com a morte. Foi o jovem

Vinícius de Moraes que fechou os olhos do poeta e, após ajudar Amparo a se

levantar, cobriu o corpo do mestre estendido no chão frio. O poetinha fez o

mesmo com José Gomes. Seguindo uma inspiração sobrenatural, propôs um brinde

aos reis da noite. Uma dose de uísque foi colocada ao lado de cada corpo e,

erguendo os copos, todos os boêmios fizeram um brinde de despedida a Jão das

Letras e Zé Pelintra. Em seguida, Vinícius recitou um dos mais conhecidos

sonetos de João Maria de Albuquerque. Somente Amparo não prestou atenção. O

único ânimo que tinha para viver estava em seu ventre, filho do homem que

amava e que agora jazia morto.

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6

Ao despertar, mais uma vez de olhos fechados, tudo que João

Guilherme percebia eram cores. Infinitas cores. Sentia como se o corpo

estivesse flutuando muito acima do chão, embora o coração estivesse pesado.

Reviver cenas de uma encarnação anterior tinha mexido muito consigo.

Repentinamente, foi acometido de uma crise de choro. A separação trágica da

amada dilacerava-lhe a alma. Tentou abrir os olhos ou pelo menos mover alguma

parte do corpo. Inútil. Instantes depois, adormecia de novo.

“Meu amigo, hora de abrir os olhos!”, a voz era de Zé Pelintra. Com muito

esforço João conseguiu atender ao pedido do compadre. A alguns metros,

Vinícius de Moraes fez uma saudação com um sorriso. “Onde estamos?”, indagou

o professor. “Nós estamos onde você quiser. Imagine um lugar e pronto -

estaremos lá”, explicou o exu. O jornalista imaginou o Corcovado. Durante

alguns minutos os três amigos nada disseram. Até que Vinícius, levantando-se

do degrau onde sentava, olhou para João e falou: “Bem, uma parte da história

você já conhece”. “Meu Deus... tudo isso é demais pra minha cabeça”, desabafou

João. ”Joãosinho...” antes que o poetinha completasse a sentença, o professor

perguntou com ênfase: “E o que aconteceu a Amparo? E ao meu filho?”. Novo

silêncio. “Filha, Jão, filha...” esclareceu por fim Zé Pelintra.

“Muito bem cavalheiros, vamos direto ao ponto”, estabeleceu Vinícius de

Moraes. “Antes que a história toda seja revelada, é preciso que você se encontre

com alguém”, completou. O jornalista respirou aliviado ao inferir que o

encontro seria com Amparo. Só podia ser. A convicção era tanta que ele nem se

deu ao trabalho de pedir qualquer esclarecimento aos amigos. “E o que estamos

esperando? Vamos logo”, alvoreceu-se. “Onde você vai, compadre, Vinícius e eu

não podemos ir. Só desejamos que tenha a coragem e a humildade de fazer o que

deve ser feito”, exortou Zé Pelintra. Coragem e humildade – essas tinham sido

exatamente as palavras de Ogum quando do encontro na praia de Ipanema. João

Guilherme respirou fundo e, fechando os olhos, fez uma prece silenciosa ao

rei guerreiro. Quando terminou, Vinícius de Moraes e Zé Pelintra tinham

desaparecido.

O poeta olhou ao redor de si e nada viu. O silêncio era sepulcral. Uma

leve brisa começou a soprar. A brisa ficou então mais forte e um calafrio

atravessou-lhe o corpo. Ele não resistiu ao choque e caiu de joelhos no chão.

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João não precisou olhar para trás para sentir a forte presença que havia se

manifestado. “Amparo?”, perguntou timidamente. “A cara está diferente, mas

você continua o atrevido de sempre, não é mesmo?”, foi a resposta que teve.

Virando-se, João Guilherme defrontou-se com o homem pelo qual tinha sido

morto: Sargento Savério.

- Desgraçado, você acabou com a minha vida, poeta de merda.

- E você com a minha.

- Você tirou de mim a única pessoa que amei.

- Um homem não espanca a mulher que diz amar.

- Não quando a mulher é fiel.

Depois da primeira vez com Amparo, muitas outras se sucederam. A ponto

de João Maria alugar uma casa somente para esses encontros. A intenção era

que a amante morasse definitivamente na residência, até que ele se separasse

da mulher. Entretanto, a jovem preferiu continuar morando com os pais. Depois

de quase um ano de espera e como a separação prometida nunca acontecia,

seguindo os conselhos da mãe, ela resolveu encerrar o romance e finalmente

dar uma chance ao recém-promovido sargento do exército, Savério Anunciação.

O ambiente foi sendo tomado por uma forte luz vermelha. Os dois homens

se olhavam com profundo rancor. Foi quando João Guilherme teve a nítida

impressão de já ter visto o militar na atual encarnação e em alguma anterior

a do Rio de Janeiro. “A sua sorte é que não tenho a permissão de acabar de vez

com você”, bradou Savério. O jornalista não replicou a provocação. Apenas

fechou os olhos. “Coragem e humildade”, as palavras do Rei Ogum vieram-lhe

forte no coração. “Meu irmão”, começou a dizer com serenidade na voz,

“realmente o que fiz foi errado. Eu desonrei a tua esposa e a minha também.

Tudo em nome do orgulho. Amparo foi a melhor coisa que me aconteceu na vida.

Eu a amava do fundo do coração, mas isso não me dava o direito de fazer o que

fiz”. Um profundo sentimento de vergonha inundava a alma de João Guilherme.

No caminho espiritual que havia escolhido, a evolução moral era algo levado

extremamente a sério. E era isso que buscava de todo o coração. Ele sabia que

devia controlar as paixões e os pensamentos para não ser dominado pelo ego. E

foi pensando no Cristo que conseguiu harmonizar-se e de seu coração começou

a fluir uma pequena esfera de luz alaranjada. O brilho foi se expandindo e a

sinceridade das palavras do poeta de alguma forma tinha mexido com o

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sargento. O tom rubro de seu rosto começou a desvanecer. “Por que você não se

casou com ela quando pôde? Era só você ter se separado da sua mulher”. “Eu

tive medo. Parece que minha vida toda foi sempre marcada pelo medo. Mas

perante o Divino Pai Eterno, que nos colocou frente a frente novamente, eu

peço humildemente o teu perdão. Eu ainda estou encarnado e agora fica óbvio

que os espíritos superiores me trouxeram aqui para isso”, disse João, de cabeça

baixa.

Confuso com o que acabara de ouvir, Savério hesitou por um breve

instante. Mas logo as lembranças da humilhação sofrida e do desprezo de Amparo

desencadearam uma forte onda de energia negativa em seu íntimo e, envolto

novamente por uma luz rubra, respondeu: “Depois de morto todo mundo fica

bonzinho. Pois guarde o arrependimento pra si mesmo, filho da puta. Eu não te

perdoarei nunca e não vou descansar enquanto você não pagar por tudo que me

fez. Em breve, muito breve, nos veremos novamente”. Tomado de espanto pela

ameaça, o poeta pensou em pedir esclarecimentos, mas foi surpreendido pela

aparição de Zé Pelintra e Vinícius de Moraes. Savério e Zé trocaram um olhar

que deixou claro para o professor que eles tinham passado pela mesma situação

em algum momento de suas vidas. Sem notar, os quatro espíritos formavam a

figura de uma cruz. Antes que qualquer palavra pudesse ser dita, uma luz

branca surgiu no meio deles. O brilho foi se intensificando até resplandecer

em todo o ambiente. Mais uma vez, João viu-se sozinho e, ofuscado pela

claridade, fechou os olhos e foi tomado por imenso frio. Seu corpo começou a

tremer e ele entrou em uma crise de pânico. “Jesus, Jesus, Jesus, o maravilhoso

nome de Jesus...”, repetiu incontáveis vezes. Vagarosamente os batimentos

cardíacos foram voltando ao normal. Nesse momento despertou, mas de olhos

fechados. Enquanto pensava em tudo que acontecera, sentiu que sua mão era

envolvida por outra. A sensação foi de profunda paz e o professor ouviu uma

voz familiar a lhe sussurrar no ouvido: “Não tenha medo, meu amor. Eu estou

contigo”.

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7

Embora convicto de que estava acordado, João Guilherme não conseguia

abrir os olhos ou mover qualquer parte do corpo. “Eu sou o fogo violeta com a

chama do sétimo raio; eu sou a elevação na libertação da minha alma”, repetiu

mentalmente durante alguns minutos na tentativa de consolar seu espírito.

Também lembrou-se dos hinos do Santo Daime que mais gostava, inclusive alguns

que ele próprio havia recebido. Em seguida vieram-lhe à mente a lembrança da

amada Mãe Oxum e do protetor Rei Ogum. São Miguel Arcanjo, Nossa Senhora da

Conceição e por fim, da Virgem Mãe Maria Santíssima. Sob as bênçãos de todos

esses seres divinos, o poeta adormeceu novamente. O sono que o havia dominado

era pesado e sem sonhos. Somente depois de algumas horas é que o primeiro

deles veio. Nele, via a si mesmo ainda criança ao lado do avô Floriano. Na

primeira infância, fora ele o seu verdadeiro pai, até João ser adotado pelos

tios e mudasse de casa. Ao ver o amado avô e pai, começou a chorar. Inútil a

tentativa de tentar se comunicar com o velho de cintilantes olhos azuis. O

poeta não estava desdobrado. Era um sonho tradicional. Nele, revia uma cena

ocorrida há muito tempo quando jogava damas com o patriarca da família na

calçada da humilde casa em que moravam com o resto da numerosa parentalha.

Ao olhar para si quando menino, João Guilherme lembrou-se de uma frase

atribuída ao escritor português José Saramago de que “fiz tudo na vida para

me tornar um homem que não envergonhasse a criança que fui”. O professor

ainda gastou um tempo olhando para as mãos de seu pai. Garimpeiro de

profissão, o homem robusto que tinha vindo sozinho do longínquo estado do

Pará, tinha as mãos nodosas e calejadas, exatamente como as descritas pelo

poeta Mário Quintana no poema “Meu velho pai”. João Guilherme sentia a alma

repleta do mais puro amor e paz. Erguendo a cabeça, olhou para o céu nublado

e quando retornou o olhar a cena havia se desfeito. Ele estava sozinho na rua

deserta. Tontura, tremores pelo corpo, visão turva, sequidão na garganta e por

fim João despertava. Desta vez, ainda que de olhos fechados, conseguiu notar

alguns vultos diante de si. Estranhou que a luz estivesse acesa e, ato contínuo,

não conseguia falar.

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8

Em sua busca espiritual, o professor João Guilherme Ribeiro era um voraz

consumidor de livros e filmes. Em um dos filmes que tinha assistido, o

protagonista vivia em constante estado de sonho e, como não conseguia nunca

despertar, julgou estar morto. Este era o pensamento que lhe ocupava a mente

agora. Além dos vultos, ele conseguia notar o som de vozes, embora não fosse

possível discernir o que diziam. Impotente diante da situação, o jornalista

resolveu tentar dormir e fazer a projeção astral. Durante quase uma hora,

usou as técnicas que aprendera nas várias oficinas que tinha participado. O

sono chegou lenta e suavemente. Quando a sensação de balonamento

intensificou-se, soube que já podia deixar o corpo. Para vencer a escuridão,

repetiu o comando mental de luz. Ele ficou surpreso e não menos frustrado ao

notar que não estava no Rio de Janeiro, como tinha sido até o momento, e sim

na própria cidade natal – Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. O professor

estava no centro histórico, no chamado Calçadão. Pela total ausência de pessoas

na rua, julgou que deveria ser de madrugada e pôs-se a caminhar lentamente.

“O sinhô é um anjo?”, a pergunta inusitada foi feita por um menino maltrapilho

que estava deitado entre papelões embaixo de um toldo. “Por que você acha que

sou um anjo”, respondeu João de forma simpática. “É que o sinhô tá tudo de

branco. Tirano o chapéu e a camisa”, replicou o garoto.

Quando o menino levantou-se é que o jornalista percebeu nele a ausência

do cordão de prata. Tratava-se de um espírito desencarnado. “Não, eu não sou

um anjo. Mas me fala, o que você está fazendo sozinho aqui, meu filho?”,

questionou. “Eu num tô sozinho, dotô. Eu tô com meus amigo. Qué vê eles?”,

rebateu a criança.

Levantando as outras partes da barraca improvisada de papelão, a

irrequieta figura cutucou outros dois garotos que dormiam. “Ô, nóis tem

visita”. Esquálidos e sujos, os três pareciam irmãos. “E então, desde quando

vocês estão aqui?”, quis saber João Guilherme. “Nóis num sabe, dotô”, respondeu

o que aparentava ser o mais velho. “E como vocês vieram parar aqui?”,

perguntou tomando o cuidado para não deixar transparecer que os garotos já

tinham morrido, pois havia a possibilidade de eles não saberem disso. “Nóis

num se alembra”, replicou o mesmo guri.

– E quantos anos vocês têm?

- Nóis num sabe.

Page 31: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Aquela situação começou a causar uma profunda angústia no coração de

João. Não ter ciência da morte e não se recordar da própria identidade era

deveras cruel com qualquer um – muito mais com uma criança. Sem ter mais o

que perguntar, decidiu ficar calado. Havia um misto de encanto e devoção no

olhar que os meninos lhe dirigiam. O professor pensou em convidá-los para

fazer uma prece, mas antes que o fizesse, ouviu uma forte freada de carro,

vindo da avenida paralela. Os moleques também ouviram e seus olhos foram

tomados de um terrível pânico. “Corre, corre, corre. Eles tá vino! Eles tá

vino!”, gritava o mais velho enquanto sumiam na escuridão. O poeta ainda

esperou para ver de quem se tratava, porém, ninguém apareceu. Novamente

sozinho, volitou até o terraço de um alto prédio comercial a menos de 200

metros. Lá de cima, podia ver toda a cidade. Embora sabendo que já tinha sido

carioca, era pela amada Cuiabá que seu coração batia mais forte.

“Saudosista, hein seu Jão das Letras?”. Só existia uma pessoa no mundo

que o chamava assim. Claro, Zé Pelintra tinha voltado. “Por onde andou, amigo?

Senti a tua falta”, disse João abrindo um sorriso. “Eu venho daqui, dali, de

todo lugar”, respondeu o orixá simulando um passo de samba.

- Por acaso você sabe quem eram aqueles meninos que encontrei agora há

pouco?

- Claro que sei. E você também sabe – e muito bem. Mas não se preocupe

que no momento certo você vai se lembrar.

O poeta não disse mais nada. Apenas ficou olhando para as luzes que

brilhavam pequeninas lá embaixo na rua. Depois, respirou fundo, e disse: “Meu

amigo, meu irmão, José Gomes, vulgo Zé Pelintra, humildemente peço o vosso

perdão”.

- Mas do que você está falando, homem?

- Eu tive uma grande parcela de culpa com o que lhe aconteceu. Na maneira

como você desencarnou. Eu deveria ter lhe avisado desde o início sobre Amparo.

Na verdade, naquela noite, o marido dela foi à Lapa procurando por mim e não

por ti.

- Não, meu irmão. Ele estava atrás de mim mesmo. Tudo bem que ele

desconfiava da mulher, mas ele não sabia de você. Além do mais, Jão, e você

sabe muito bem disso, tudo o que acontece na Terra só acontece porque assim

permite nosso Divino Pai Eterno. Você não tem culpa de nada.

- E você não encarnou mais depois?

Page 32: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

- Não. Mas enquanto não recebo essa dádiva, vou me dedicando à missão

que me foi confiada pelo nosso bom Deus.

- E que missão é essa?

- Cuidar de você, meu irmão. De você e de outros poetas boêmios.

João Guilherme riu da última frase de Zé Pelintra e com a mão no ombro

do amigo confessou: “Eu não sou mais boêmio, seu Zé. Há seis anos que não boto

uma gota de álcool na boca. Até na roda de samba parei de ir”. “E eu não sei?

O ex-rei da noite carioca agora só quer saber de tomar Daime e expandir a

consciência”, disse seu Zé soltando uma gargalhada que ecoou no coração da

noite. Diante da resposta hilária, João não resistiu e caiu na risada também.

Os dois espíritos ficaram juntos no alto do prédio durante o resto da

madrugada relembrando os velhos tempos. “Hora de cantar pra subir”, disse Zé

Pelintra quando o sol começou a insinuar-se no horizonte. “Você precisa

descansar, poeta. Ainda vem muita demanda por aí. Feche os olhos, por favor”,

completou. Os amigos se abraçaram e, quando João Guilherme abriu os olhos,

Seu Zé tinha sumido no meio dos primeiros raios do astro rei. Havia muita

coisa a ser esclarecida e a mais importante era: o que teria acontecido a

Amparo? E à sua filha? Mas se tinha algo que ele tinha aprendido nos últimos

dias era que tudo tem seu tempo. Consolado por esta certeza, o jornalista

fechou os olhos novamente e voltou ao corpo físico.

Page 33: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

9

Ao contrário do que vinha acontecendo nas últimas vezes em que

despertava do estado de projeção, desta vez, ao invés de estar de olhos fechados

e envolto de escuridão, João Guilherme estava de olhos semicerrados e tinha

diante de si uma suave luz que mesclava as cores azul, branca, violeta e

laranja. Ainda sem conseguir levantar-se, ergueu as mãos na tentativa de vê-

las. Porém, tudo que viu foram figuras disformes. Para João Guilherme não

havia mais dúvida: ele havia desencarnado. A princípio a sensação foi de

tristeza, depois de profunda gratidão por tudo que tinha conseguido aprender

em sua busca espiritual na Terra. Talvez agora pudesse juntar-se, até a

próxima encarnação, aos dois irmãos espirituais - Vinícius de Moraes e Zé

Pelintra - e auxiliar outras almas encarnadas ou desencarnadas. Sem saber

exatamente o que fazer naquela hora em particular, apenas esperava. A

expectativa era de que cedo ou tarde algum espírito viesse resgatá-lo.

Enquanto isso, rezou mentalmente por muitos de seus familiares e amigos.

Todavia, à medida que o tempo passava e nada acontecia, sua aflição

começava a aumentar. Ele tinha aprendido que o desprendimento da alma do

corpo, após a morte, estava diretamente relacionado ao grau de apego à matéria.

Havia relatos de que, em alguns casos, esse processo durava até anos. Outra

coisa que o incomodava em demasia é que, por mais que se esforçasse, não

conseguia lembrar-se rigorosamente de nenhum acontecimento dos últimos dias

– muito menos como tinha sido a sua passagem. A hipótese mais palpável era de

ter sido um acidente de moto, pois, apesar de estar prestes a completar 45 anos,

a saúde estava em excelentes condições. Por causa desse pensamento, João chorou

mais uma vez e ficou a imaginar o quanto os pais adotivos, familiares e amigos

teriam sofrido. Enquanto divagava a respeito de seu infortúnio, o poeta

adormeceu. Pouco, ou muito tempo depois, ele não tinha essa noção, despertou.

Ele estava sentado em um banco de madeira, em um grande salão, no que parecia

ser uma espécie de igreja. Não foi difícil reconhecer o lugar. O salão ficava

na mesma rua onde tinha encontrado os três meninos. Aquele era o prédio do

centro espírita mais antigo de Cuiabá. Mesmo não sendo daquela linha

espiritualista específica, tinha estado ali por muitas vezes para assistir as

palestras.

Embora o local estivesse vazio, João Guilherme conseguia ouvir vozes de

crianças. Elas falavam rápido e ao mesmo tempo e o jornalista ficou feliz ao

Page 34: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

reconhecer a voz do garoto mais velho. Depois de atravessar várias paredes,

chegou à uma sala onde se encontrava o trio. Eles estavam em pé, atrás de um

homem sentado à mesa, junto com outros quatro. O senhor tinha lápis e papel à

mão e apenas ouvia a tagarelice dos guris. O professor compreendeu que tinha

ido parar em uma seção mediúnica e, receoso a princípio, decidiu tentar ajudar,

obedecendo a intuição. “Meus queridos, vocês têm que falar um de cada vez e

devagar, se não eles não poderão ajudar”, disse chamando a atenção dos

pequeninos. “Nóis num sabe falá cum eles. Eles é dotô e nóis é burro”, disse o

mais velho, demonstrando alegria ao ver de quem se tratava. “Não, meu querido.

Não é assim. Estes homens têm uma missão muito bonita e importante. Basta você

falar com calma que eles vão te compreender e levar a mensagem até quem você

quiser. Para quem você gostaria de mandar um recado? Sua mãe?”

Ao ouvirem a palavra mãe, os três meninos abraçaram-se e puseram-se a

chorar. Novamente seguindo a intuição, João teve uma ideia que talvez

resolvesse o problema. Aproximando-se do médium escrevente, disse: “Com a

devida licença, amado irmão, peço permissão para falar”. Autorização

concedida, o poeta continuou: “Antes de mais nada, eu saúdo a todos em nome do

soberano Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo. Estão aqui os espíritos de três

meninos que perambulam por estas ruas. Eu os encontrei por acaso outro dia.

Pelo que pude compreender, eles desencarnaram e ainda não sabem. Estão muito

assustados, demonstrando medo de alguém que supostamente os estaria

perseguindo. Digo isso porque quando estive com eles, ouvimos uma forte freada

de carro e isso despertou pânico nos pobrezinhos, a ponto de saírem correndo.

Entrei nesta abençoada reunião também por acaso e humildemente ofereço-me

para falar com eles, caso tenham alguma pergunta”. “Revela-nos primeiro a

tua identidade”, disse o médium em tom austero. A réplica pegou o professor de

surpresa. Não era sua intenção identificar-se. Contudo, ele sabia que essa era

uma medida de praxe, pois muitos espíritos inferiores intrometiam-se nas

reuniões com o único propósito de semear a confusão e a discórdia. “Meu nome

é João Guilherme Ribeiro, nascido e criado em Cuiabá. Na Terra fui professor,

jornalista e escritor. Minha passagem aconteceu recentemente. Quando em vida,

tive a honra de, por muitas vezes, vir a esta Casa para aprender sobre a

Doutrina”, respondeu calma e firmemente. “O senhor poderia, por gentileza,

perguntar aos meninos os seus nomes?”, solicitou o espírita. João repetiu a

pergunta mas, outra vez, as crianças não conseguiram lembrar-se. Quando

Page 35: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

preparava-se para explicar a situação, elas saíram correndo. Rapidamente o

poeta colocou os médiuns a par da situação e pôs-se a seguir os três garotos.

Quando chegou ao calçadão, conhecido como Rua de Baixo, reparou que eles

corriam em direção ao chamado Beco do Candeeiro – a primeira rua da cidade –

fundada pelos bandeirantes. Quando os alcançou, foi com um aperto no coração

que viu os meninos encostarem-se, retraídos e abraçados, contra a parede. “Num

mata nóis, num mata nóis, num mata nóis”, imploravam aos berros. Diante da

cena, João Guilherme compreendeu plenamente do que se tratava. Dez anos antes,

as crianças - que eram meninos de rua - tinham sido assassinadas naquela

viela histórica. Ele mesmo já tinha escrito uma matéria sobre a chacina. Com

muito esforço, o jornalista conseguiu conter o choro. “Meninos, eu sou do bem.

Eu sou amigo. Eu não vou machucar vocês. Juro por Deus”, disse lentamente.

Depois de certa hesitação, foi o garoto mais velho que tomou a dianteira: “Se

o sinhô é amigo, intão leva nóis pá nossa casa. Nóis num qué mais ficá na rua”.

Ciente da inutilidade de perguntar onde ficava a casa, o poeta fez

mentalmente uma prece e pediu ajuda aos espíritos de luz. Ele aguardou a

resposta de olhos fechados e ela veio. Sentando-se entre os guris, abraçou-os

e pediu para que pensassem em Deus. Os quatro ficaram quietos por um longo

tempo até que uma forte luz começou a brilhar e João Guilherme os viu

dormindo, de madrugada, na pracinha, a poucos metros dali. Os três estavam

amontoados, embrulhados em papelões e sob um cobertor velho. Eles não

despertaram com a freada estridente que se fez ouvir. Do interior do automóvel

desceram três homens, todos três revólveres à mão. Quando chegaram bem perto,

cada qual escolheu um dos meninos como alvo e disparou duas vezes. Sem pressa,

certificaram-se de que as vítimas tinham morrido e depois de entrar no carro,

saíram cantando os pneus. Por mais esforço que tenha feito, João não conseguiu

ver nem os rostos dos homens e nem a placa do carro. Profundamente chocado,

sentiu os corpos franzinos tremerem de frio contra o seu e rogou a Deus pela

alma dos novos amigos. Quando saíram do transe, João Guilherme perguntou se

tinham visto o mesmo que ele. Resposta afirmativa, estava na hora de os

meninos continuarem a jornada espiritual. Colocando-os em pé, o professor

pediu que fechassem os olhos e pensassem em suas mães, posto que não eram

irmãos. Em seguida, o quarteto sobrevoou a cidade por uma longa distância. A

casa do primeiro, o mais velho, era muito humilde. No quarto, dormindo junto

com a mãe, estavam três adolescentes. O garoto beijou o rosto de cada um deles.

Demorou-se com a mãe e depois de também beijá-la, sussurrou-lhe no ouvido

Page 36: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

coisas que João não conseguiu escutar. Quando estavam saindo, o jornalista

ouviu os gritos de desespero da mulher, desperta após a visita do filho: “Eu

sabia. Eu sabia. Eu sabia que foi ele que matou meu guri. Aquele desgraçado

matou meu guri!” Nas duas casas seguintes cumpriu-se basicamente o mesmo

ritual. A diferença estava no número de parentes. O cochicho às mães era igual

e o poeta compreendeu que qualquer que tivesse sido a revelação, não lhe dizia

respeito.

Cumprido o itinerário, os quatro espíritos ainda andaram por quase cem

metros na rua deserta e esburacada. A luz da lua os guiava. “Deus lhe pague

por sua ajuda, irmão João Guilherme. Está na hora de esses meninos descansarem

em paz”, disse a senhora negra que os aguardava na esquina. Ela aparentava

ter 60 anos, tinha um manto azul sobre a cabeça e usava um vestido cor de

cana. Atrás de si, uma esfera de luz branca começou a surgir e aumentar de

tamanho, até atingir aproximadamente três metros. Com um sorriso de enorme

ternura, a anciã convidou os garotos a entrar no portal. O professor tentou

fazer o mesmo, mas foi impedido. “Não filho, a tua hora ainda não chegou. Você

é um moço tão inteligente... mas pensando que já desencarnou, esqueceu de tirar

a prova da forma mais simples. Lembra como é, meu querido?”, questionou com

voz cheia de bondade. “Claro, o cordão de prata! Como pude me esquecer?”, pensou

João. E passando a mão pela nuca sentiu a vibração de pura energia do feixe.

Um pouco acanhado, olhou para a anciã como que a desculpar-se pelo vacilo.

Novamente, ela apenas sorriu e, abençoando-o, também entrou no portal. O

jornalista estava novamente sozinho, mas um sentimento de gratidão vibrava

em cada minúscula parte de seu ser. O coração exultava de amor a Deus e a

todos os seres viventes. Ele olhou para a lua, que brilhava radiante no céu,

agradeceu ao Cristo pelo dom da vida e rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria

pelas almas dos garotos.

O que vivia agora, na prática, excedia a tudo o que tinha lido em termos

de espiritualidade. Totalmente conectado ao momento presente, já não

necessitava compreender o mistério das coisas, uma vez que ele mesmo

encontrava-se em unicidade com o Universo, portanto também era parte desse

mistério. A mente, enfim, tinha sido superada pela Consciência. Vencido o

pensamento, nada mais do que um dos sentidos, João Guilherme finalmente havia

encontrado o Eu Sou – a centelha divina que pulsa no interior de todas as

coisas.

Page 37: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

10

O murmúrio fez com que João Guilherme acordasse. Sem poder abrir os

olhos, ainda não conseguia discernir o que duas ou três pessoas à sua volta

diziam. Aquela situação o incomodava sobremaneira. Quem seriam aqueles

espíritos? O poeta decidiu não se preocupar mais e começou a reconstruir

mentalmente todas as experiências vividas no astral na noite anterior.

Lembrou-se da triste história dos três meninos. Eles supostamente tinham sido

assassinados a mando dos comerciantes da região cansados dos inúmeros assaltos

e da inércia da polícia. A chacina teve grande repercussão midiática e pressão

popular por justiça. Mesmo assim a polícia jamais encontrou os autores do

crime. Em homenagem à memória das crianças, grupos de direitos humanos

fizeram um monumento em tamanho natural que foi colocado na rua em que

foram covardemente mortos. Na estátua, dois dos meninos estão agachados,

encolhidos e se protegendo com os braços e o terceiro estirado sem vida no

chão, exatamente como visto pelo jornalista. Nesse instante, teve a ideia de,

assim que possível, procurar a mãe do menino mais velho, pois tinha reparado

bem em sua fisionomia e não teria muita dificuldade em reconhecê-la.

Se sua vida tinha mudado totalmente nos últimos dois anos, agora então

é que jamais seria a mesma novamente. Sabia que tinha de ler, estudar e

principalmente amar mais. No grupo de estudos esotéricos que frequentava, o

professor tinha ouvido de uma amiga muito sábia, que o Daime ensinava as

pessoas a sonhar. Aí estava a chave de tudo: era preciso despertar dentro do

sonho e o poeta estava vivendo tudo isso em uma intensidade que jamais

cogitara. Aquilo tudo não podia ser simplesmente fruto de sua mente. Mais do

que nunca se mantinha atento ao estado de presença, de viver o único momento

que realmente existe: o agora. As agruras do passado e as expectativas do

futuro não tinham mais influência em seu estado de espírito. Enquanto

meditava sobre essas coisas, adormeceu e repentinamente sentiu um enorme

incômodo na altura do peito. Novamente desdobrado, viu-se deitado em uma cama

e com o olhar fixo em si mesmo, entrou no próprio corpo, percorrendo cada

parte dele. Logo em seguida, o psicossoma do professor estava de novo ajustado

ao corpo físico, ou pelo menos quase. Havia um desnível, como quando a imagem

da televisão está desfocada e apresenta uma espécie de sombra. João Guilherme

sentiu como se seu coração estivesse sendo aberto por uma espécie de bisturi.

Page 38: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Mas o que teria acontecido ao seu coração? Sem encontrar uma resposta

plausível, apenas aguardou pelo fim do procedimento.

Nas mirações provocadas pelo Daime, não era raro João ver-se em lindos

jardins cercado de muitos tipos de flores. Quando abriu os olhos, percebeu que

estava desdobrado e em um desses jardins, muito provavelmente no fim da tarde.

Lembrou-se do soneto de Shakespeare que dizia “quando a hora dobra em triste

e tardo toque...” O jornalista examinava minuciosamente tudo o que estava a

sua frente. As orquídeas roxas que brotavam dos troncos das árvores, as rosas

vermelhas e brancas que bailavam ao sabor da doce brisa. O canto dos

passarinhos. A relva verde. A água cristalina do riacho que corria

preguiçosamente. O céu era um espetáculo à parte. A luz dourada do sol dava

ao firmamento um tom laranja inexistente em todos os pores-do-sol que já

tinha visto. O cenário diante do qual estava era uma linda declaração de amor

da natureza ao Pai criador. À medida que caminhava, ia percebendo novos e

lindos detalhes. Borboletas, abelhas, beija-flores, formigas, cigarras,

lagartixas – cada coisa tinha o devido encanto e mistério. O poeta entrou no

pequeno rio de águas rasas e foi seguindo o curso. Quando parava e olhava pra

baixo, podia perceber uma infinidade de peixinhos a seguir seu passeio.

Depois de caminhar por algumas dezenas de metros, saiu da água e chegou

a uma espécie de clareira. Ali a mata era mais fechada, mas mesmo durante o

lusco-fusco, a luz do sol ainda era intensa. Sentou-se em uma grande pedra,

ficou imóvel e em silêncio, tornando-se, também, parte do cenário. Ele tinha

se fundido à natureza e sentia toda a energia que emanava do lugar. Por causa

desse estado de transmutação, não percebeu que era observado atenta e

ternamente. Só depois de algum tempo é que teve a sensação de que não estava

sozinho. Embora sem poder vê-la, a presença que se manifestava lhe fez com

que o espírito exultasse de felicidade. Uma onda de alegria agitou seu coração

e não foi possível conter as lágrimas. Era ela que estava ali! Ele tinha

certeza! João Guilherme não se conteve e levantou-se. Girando o corpo em todas

as direções, procurou ansioso pelo rosto da alma gêmea. “Amparo, meu amor,

finalmente”, disse em voz alta.

Porém, o êxtase inicial deu lugar à frustração, pois, por mais que a

chamasse, ela não aparecia. De súbito, recuperou a lucidez e compreendeu que

teria de conter os sentimentos e os pensamentos se quisesse se comunicar com

a amada. De volta à pedra, fechou os olhos e calou a mente e o coração.

Novamente em harmonia, apenas aguardou. A luz do sol não era mais do que uma

Page 39: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

centelha dourada no horizonte, quando uma doce e suave voz se fez ouvir em

seu coração: “Meu amado, há tanto tempo que te espero. Já nos encontramos e

nos separamos tantas vezes no curso reencarnatório. Mas tende bom ânimo, a

eternidade nos aguarda de braços abertos. Sê forte. Recorda-te de mim.

Recorda-te da nossa filha. Recorda-te de ti. Não passará muito tempo até que

estejamos juntos novamente. Tu tens uma grande missão diante de si, confiada

pelo Pai Celestial e pela Mãe Terrena. Complete-a com amor e devoção. Estarei

sempre contigo. Nos momentos de angústia e sofrimento, pense em mim que eu

virei para acalentar-lhe o coração. Minha alma e tua alma são uma só. Eu amo

você”.

Quando percebeu-se sozinho novamente, o poeta viu que o manto negro da

noite havia sido esparramado sobre o céu trazendo a lua e suas milhares de

estrelas. Havia paz em seu coração. Com novo ânimo e transbordando de

felicidade, levantou-se e dançou sob a luz do luar. Em seguida, tomado por um

grande torpor, recostou-se na grande pedra e dormiu.

Page 40: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

11

Quando João Guilherme abriu os olhos dentro do sonho e olhou para si

mesmo, não se viu. O corpo astral havia se diluído num feixe de luz dourada.

À sua volta, centenas de milhares de pontos luminosos vagavam

harmoniosamente. Não havia nenhuma pergunta em seu coração, pois ele estava

além da mente e dos pensamentos. Ele apenas pertencia; estava entre as

estrelas. Ao longe, viu o sol. Impossível resistir ao brilho incandescente.

Incontáveis esferas de energia de diferentes matizes vinham dele e voltavam

para a estrela de primeira grandeza. O jornalista sentiu como que todas as

moléculas do corpo se expandirem quase que ao ponto de explodir, para depois

diminuírem novamente. João tinha muitas músicas prediletas. Composições que

lhe tocavam no mais íntimo da alma. Contudo, nem mesmo os maestros Heitor

Villa-Lobos, Wolfgang Amadeus Mozart e Ludwig Von Beethoven – seus

compositores favoritos – jamais poderiam conceber melodia tão sublime como a

que ouvia agora. Ele ouvia na fonte a mais pura expressão do amor divino. A

sílaba que contém em si o mundo inteiro – o presente, o passado e o futuro.

Era como se todos os astros entoassem o “om”, o primeiro e o último acorde da

perfeita sinfonia cósmica que se chama Universo. Finalmente entendia o

pedido de Pablo Neruda ao carteiro que sonhava em ser poeta: “E se ouvir o

som das estrelas, grave”. Depois de vagar disforme pelo espaço sideral, seu

corpo astral começou a se recompor e ser puxado de volta à órbita da Terra. O

destino, enfim, era o Rio de Janeiro.

Quando chegou ao Corcovado, estava sozinho. Após um tempo de meditação,

seguiu a intuição e volitou até Ipanema. Embora fosse início de noite, a praia

estava lotada. Demasiadamente lotada por sinal. Uma multidão sem fim, como

em um imenso formigueiro, indo e vindo em todas as direções. Não foi difícil

notar que, separados pela morte, o que via a frente era uma interação

inconsciente de espíritos encarnados e desencarnados. João não sabia qual

grupo lhe causava mais compaixão. Os vivos exalavam uma nauseante energia

negativa e pensamentos egóicos que contaminavam toda a atmosfera. Os mortos

choravam, gritavam, implorando misericórdia. Muitos estavam desfigurados. Um

moço negro com o peito todo ensanguentado bradava: “É certo isso, meu Deus?

Um trabalhador, um pai de família como eu morrer feito um cachorro?” Um

grupo de espíritos desencarnados mantinha, ali mesmo no calçadão, relações

sexuais da forma mais depravada possível. Diante da cena deprimente, o

Page 41: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

jornalista decidiu virar as costas, mas algo lhe chamou a atenção. Entre as

dezenas de pessoas que participavam da orgia, havia algumas encarnadas, pois

era possível ver seus cordões de prata. Isso fez com que o professor se

lembrasse que havia lido que a frequência dos nossos pensamentos quando

despertos nos atrai, no sono, para perto de outros que estejam nessa mesma

frequência. A bem da verdade, havia muitos outros vivos em estado de sono

profundo perambulando pela orla. Eles lembravam sonâmbulos caminhando às

cegas. Para seu consolo, João Guilherme notou que cada um deles era escoltado

por uma aura de luz.

O professor também notou um senhor desencarnado de aparentemente 70

anos que chorava convulsivamente. Apiedado da pobre alma, João aproximou-se.

”O senhor me dê licença”, disse em tom respeitoso. Diante do olhar surpreso do

homem, o poeta prosseguiu: “Graça e paz por parte do Nosso Senhor Jesus Cristo.

Perdoe-me pela indiscrição, mas como o vi chorando, julguei que talvez eu

pudesse ser de alguma serventia”. “Você por acaso é um anjo que veio me dizer

que obtive autorização para reencarnar? Se sim, é bem-vindo. Se não, me deixe

em paz”, respondeu com voz carregada de rancor. “Não, meu senhor. Eu não sou

um anjo. Perdoe-me pelo aborrecimento”, replicou João. O velhinho olhou na

direção do mar. As águas estavam escuras naquela noite e não havia estrelas

no céu. “Meu dinheiro! Tudo que eles querem é meu dinheiro. Mas isso eles nunca

vão ter. O dinheiro é meu! Meu!”, resmungou. Ele repetiu o desabafo por várias

vezes. Seus braços estavam postos em forma de xis contra o peito, como se

abraçasse fortemente alguma coisa, mas não havia nada. “O que você está

olhando? Eu sei muito bem que você está dando uma de bonzinho pra ficar com

o meu dinheiro. Mas o dinheiro é meu! Entendeu? Meu!”, esbravejou o ancião. E

continuou a gritar “ladrões, ladrões, só tem ladrão nesse mundo”, correndo sem

rumo pela praia.

Enquanto observava o homem ainda tão preso à matéria, ou aquilo que na

espiritualidade chamava-se de ilusão, o jornalista fez uma prece em favor da

pobre alma sofredora. Em meio àquele cenário de tamanha tristeza que via em

um dos principais pontos turísticos da amada Rio de Janeiro, João colocou em

xeque o título de “cidade maravilhosa”. Ele locomoveu-se por três ou quatro

quilômetros até ter a nítida impressão de que estava sendo seguido. Depois de

parar, lentamente virou-se e notou um adolescente com um semblante que

misturava encanto e medo. Nessa hora, o rapaz fez menção de voltar e, fazendo

isso, o poeta percebeu – pelo cordão de prata - que se tratava de um encarnado

Page 42: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

em estado de projeção astral, exatamente assim como ele. “Ei, espere!”, disse

João Guilherme com firmeza. O moço parou. “Pelo amor de Deus, o senhor pode

me ajudar? Eu não sei como vim parar aqui. Acho que eu morri”, falou o rapaz

evitando encarar o poeta.

- Calma, meu filho! Em primeiro lugar, você não está morto. Você está

acordado dentro do sonho. Alguns chamam isso de viagem astral. É a primeira

vez que lhe acontece?

- Não! Mas nunca tinha sido tão forte assim. Eu quero voltar pro meu

corpo. Eu tenho medo de não conseguir mais. Me ajuda, por favor.

João pediu para o jovem se acalmar e, aproximando-se, ministrou-lhe um

passe energético. Depois disse: “Encare o que está acontecendo como uma dádiva.

Veja só quantas pessoas estão aqui, andando de olhos fechados, feito cegos.

Qual é a tua graça?”

- Meu nome é Saulo.

- Prazer Saulo. Eu sou o João Guilherme. Você é daqui do Rio mesmo?

- Sim, sou.

Agora que o adolescente estava mais tranquilo, o professor prosseguiu:

“Então Saulo, pouquíssimas pessoas conseguem acordar dentro do sonho. Isso

ainda é raro, mas daqui um tempo será muito comum. A humanidade está passando

por um despertar espiritual muito forte. Sinta-se honrado por esta

experiência”.

- Mas eu nunca pedi por isso. Minha família acha que estou ficando louco.

Já estão falando até em me internar.

- Não se preocupe que isso não vai acontecer. Há muitos livros que podem

lhe ajudar. Faz assim: na próxima vez que você for dormir, reze para o teu

anjo da guarda para que ele te guie no mundo astral. Você pode não ver, mas

ele está aqui neste exato momento.

- E você consegue vê-lo?

- Não, não consigo. Mas posso sentir a sua presença.

- E como eu faço pra acordar? Pra voltar ao corpo?

Desta vez a resposta do jornalista não foi imediata. Como poderia dizer

algo que nem mesmo ele sabia, uma vez que não se lembrava da última vez em

que estivera desperto? João pensou, pensou e por fim disse: “Meu amigo, o teu

anjo da guarda te conduzirá de volta quando isso for necessário. Mas você pode

voltar, por exemplo, estalando os dedos e visualizando o teu corpo físico”.

- Como? Assim?

Page 43: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Ao estalar o dedo o moço sumiu da vista do professor. Com um sorriso no

rosto, João Guilherme percebia a ironia da cena. Ora, se tinha dado certo com

o menino, por que não daria consigo? Todavia, mesmo depois de estalar o dedo

uma, duas, três, quatro, cinco vezes, ele continuava no mesmo lugar. João não

resistiu e soltou uma imensa gargalhada. “Agora deu pra rir sozinho, Seu Jão

das Letras?”, gracejou Zé Pelintra. “Deixa o homem, compadre Zé. É melhor ser

alegre que ser triste”, intrometeu-se Vinícius de Moraes. O trio estava

novamente reunido. O poeta ficou a encarar os amigos como que a esperar a

instrução de qual seria o próximo passo. Em função da insistência do silêncio

dos boêmios, João Guilherme cobrou: “E então, o que faremos agora? Para onde

iremos? Quando me encontrarei com Amparo?”

“Êita homem, aquieta este espírito”, repreendeu seu Zé. “Tudo a seu tempo”,

finalizou. “Joãosinho”, começou Vinícius, “a cidade inteira ficou sabendo do

ocorrido daquela noite. Saiu em todos os jornais. Marina ficou louca de ódio.

Como vingança, ela quis tomar a filha de Amparo”, acrescentou. “Mas me fala

logo de uma vez, o que aconteceu com elas?”, disse o professor rispidamente

para logo em seguida desculpar-se: “Perdoe-me, meu amigo, você tem sido um

verdadeiro irmão. Eu não tenho o direito de falar assim contigo”. “Calma, Jão”,

disse seu Zé abraçando o compadre. “Com o escândalo, Amparo foi despedida e os

pais não a aceitaram de volta, mesmo com uma filhinha pra criar. Ela batizou

a menina com o nome de Julieta, por causa da peça que vocês costumavam ler

em voz alta. Para não passar fome, foi trabalhar como doméstica em casas de

família, mas por causa do bebê, sempre acabava despedida. Ela nunca conseguiu

dar as aulas de piano que queria”, explicou o mentor espiritual. Com muito

esforço para não chorar, João ouvia a tudo em silêncio. “Sem ter pra onde ir,

ela veio me procurar. Falou que vocês planejavam mudar-se para a Inglaterra

depois que você se separasse de Marina. Ela tinha umas economias e pediu minha

ajuda para ver se conseguia alguma família para recebê-la em Londres até que

arrumasse trabalho e pudesse pagar um aluguel. Pela graça do nosso bom Deus,

consegui entrar em contato com os Stewart, o mesmo casal que te recebeu no

tempo em que viveu lá, lembra?”, disse Vinícius de Moraes. “Sim, sim! Os Stewart!

O casal de ativistas escritores”, recordou-se João. “Eles adotaram Amparo e

Julieta como filhas”, acrescentou Vinícius olhando para Zé Pelintra como que

a pedir para continuar com o relato. “Jão, depois de três anos, Amparo caiu

gravemente doente e veio a falecer logo em seguida. Os Stewart continuaram a

cuidar de criança, claro”.

Page 44: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

João Guilherme não podia mais conter as lágrimas. Sentando-se na areia,

diante do mar silencioso e debaixo da noite escura, entregou-se a um pranto

que lhe doía em cada recanto do ser. Vinícius e Zé Pelintra não ousaram dizer

nada. Depois de um longo tempo é que ele quis saber como tinha sido a vida da

filha que nunca conheceu. “Ela tornou-se escritora, casou-se com um músico e

veio morar aqui no Rio outra vez”, contou Vinícius. “E quando poderei

encontrar-me com Amparo?”, questionou João quase que a implorar aos amigos.

“Em breve, irmão. Mas antes você deve encontrar-se com outra pessoa”, afirmou

Zé Pelintra. “Que o nosso divino Pai Eterno lhe conceda a coragem e a

humildade de fazer o que é necessário”, disse o exu abraçando o amigo. Ao ouvir

pela terceira vez a mesma orientação, o professor não teve dúvida de quem o

esperava.

Não havia mais nada a ser falado. O grande reencontro havia chegado ao

fim e os três homens sabiam disso. João Maria de Albuquerque, Marcus Vinícius

de Moraes e José Gomes da Silva elevaram os olhos para o céu e foram saudados

pelo brilho da lua que finalmente havia surgido. João e Zé tiraram os chapéus

e juntaram-se a Vinícius em uma prece de louvor e agradecimento à Virgem Mãe

Maria Santíssima. Não houve palavras de adeus. Eles somente se olharam e

estava tudo dito. João Guilherme fechou os olhos e quando os abriu viu, à meia

distância, uma figura feminina com vestes azuis a pairar por sobre as águas.

Respeitosamente, o poeta curvou-se e sussurou: “Alodê, Iemanjá, odoiá”.

Graciosamente a deusa das águas acenou a lhe abençoar e elevou-se em direção

à lua.

Page 45: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

12

João Guilherme foi acordado por um choro abafado. Ele estava de volta

ao corpo físico quase que da mesma forma de sempre: de olhos fechados e em

estado de catalepsia. Embora não pudesse mover um só músculo, desta vez

conseguia ouvir pequenos soluços bem ao seu lado. Eles balbuciavam algumas

palavras que, com muito esforço, o poeta conseguiu interpretar. “Me perdoa, me

perdoa, me perdoa”, clamava o pranto feminino. Esforço inútil tentar

reconhecer a voz. Ela lhe chegava toda distorcida. João procurou projetar-se

novamente para fora do corpo e pôr fim àquele mistério. Mais um esforço

inútil. Quem quer que fosse, recebeu sinceras vibrações de amor fraterno.

Feito isso, o choro cessou. Silêncio. Aquela visita deixou o jornalista deveras

intrigado. Como morava sozinho e não estava morto, então ele só podia ter sido

visitado por um espírito. A intuição lhe dizia que não era a presença nem de

Amparo e nem de Marina. Ainda que recém-desperto, o professor sentia o corpo

exausto e, vencido pelo cansaço, adormeceu novamente.

Mesmo que visivelmente precisando de uma pintura, externamente o velho

casarão continuava imponente. De estilo clássico, tinha sido construído quando

da chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro. João demorou a entrar. A

vibração que saía do interior do antigo lar estava carregada de uma intensa

energia negativa. E ele sabia quem lhe esperava lá dentro. Ao olhar para si,

foi com espanto que notou que tinha novamente a aparência do tempo de João

Maria. O bigode cuidadosamente aparado, os cabelos penteados para trás e

impecáveis com a ajuda de gomalina. Porém, se ele estava igual ao passado, o

mesmo não se podia dizer da cidade. Os carros que trafegavam pela avenida

Atlântida revelavam que o ano era mesmo o de 2014. “O que está em cima é como

o que está embaixo”, pensou em voz alta, relembrando um dos princípios do

hermetismo. Ao entrar na ampla sala de visitas viu um casal de idosos

prestando atenção ao que dizia um homem de aproximadamente 30 anos. João

procurou pelos cordões de prata e os viu. “Alguns espíritos ficam tão apegados

a um lugar que mesmo depois de desencarnados continuam morando nele. Eles se

recusam a acreditar que morreram e passam a viver em uma espécie de realidade

alternativa”, explicou o homem. Sua fala deixou o poeta com o coração apertado.

“Pobre Marina”, pensou. “E o que nós podemos fazer? Eu não aguento mais ouvir

barulhos macabros durante a noite, principalmente o ranger de madeira como

Page 46: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

de uma cadeira de balanço”, reclamou um dos velhinhos. “Rogar aos espíritos

de luz que os convençam a aceitar que desencarnaram e seguir seu caminho”,

respondeu o orientador espiritual.

Dando as mãos, os três leram a Consagração do Aposento e a Prece de

Cáritas. O poeta tinha uma profunda reverência por essas orações. Elas faziam

parte de um cd que ele havia gravado na sua voz e distribuído aos amigos mais

próximos. “Gratidão, meus irmãos”, disse João ao término do momento devocional.

“Vocês ouviram isso?”, perguntou sobressaltada a idosa. “Isso o quê?”, quis

saber o marido. “Alguém disse ‘gratidão, meus irmãos’”, respondeu. Eles deram

as mãos novamente e se concentraram. “Estou sentindo uma presença aqui. Não

é o mesmo espírito que habita esta casa. É outro. Sua energia é boa. Ele está

em paz”, revelou o amigo que visitava o casal. O professor ponderou por alguns

instantes continuar com a comunicação, mas preferiu subir para resolver a

situação pendente de uma voz por todas.

A porta de madeira maciça do quarto estava fechada e João Guilherme

passou através dela e considerou surreal a sobreposição de imagens. Ele via

ao mesmo tempo o quarto com a antiga e a nova decoração. Marina estava sentada

na cadeira de balanço na qual costumava bordar, à beira da porta. A cama do

novo casal de inquilinos estava bem do lado. A princípio, a esposa não percebeu

que não estava só. Depois, sentiu um arrepio e inferindo ser por causa do

vento, fechou a enorme janela que possuía uma sacada que dava de frente para

o mar. João apenas a observava. O incômodo do arrepio repetiu-se e ela

levantou-se subitamente da cadeira. “O que é que você quer, alma penada? Eu

já disse que não vou sair da minha casa. Vai embora daqui. Você não tem o

direito de perturbar a paz dos vivos”, bradou a mulher a esmo. Antes de

qualquer coisa, o poeta fez uma prece ao seu mentor espiritual na esperança

de que Vinícius de Moraes aparecesse – o que não aconteceu. Porém, sua

sensitividade lhe dizia que estava sendo assistido por espíritos superiores.

“Marina, sou eu, o João Maria”, disse da forma mais carinhosa que conseguiu.

A ex-esposa parou de costurar e fitou o enorme quadro na parede. Nele

estava pintado o retrato do casal em trajes de gala. “Por que você me

abandonou? Por que não fui merecedora do teu amor? Só porque não podia lhe

dar um filho? Agora estou aqui, viúva, sozinha e humilhada. Sua morte foi tão

trágica, meu bem...”, lamentou-se entre lágrimas. João Guilherme elevou o

pensamento em prece e pediu a Deus que permitisse tornar-se visível para a

ex-mulher. Nesse instante, ela levou um choque e como que adormeceu por alguns

Page 47: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

segundos. Quando abriu os olhos, soltou um grito de pavor. “João Maria! Então

era você o fantasma que ficou me assombrando todos esses anos? Que fazia todos

aqueles barulhos estranhos? Mesmo depois de morto você ainda não me deixa em

paz, pelo amor de Deus?”, desabafou. O descontrole emocional fez com que ela

derrubasse a caixa de costuras e a cadeira de balanço. Na tentativa de

defender-se, abriu as janelas julgando que a luz do sol afugentaria o espírito

intruso. No andar de baixo, o casal e o visitante ouviam todos esses sons, com

exceção da voz da mulher prestes a entrar em estado de histeria.

Sem dirigir-lhe uma só palavra, João se concentrava para que o espírito

de luz que o assistia usasse seu fluido universal para acalmar a mulher. Por

muitos minutos, Marina ficou encolhida sob o dossel da cama com o travesseiro

sobre a cabeça até finalmente resolver encarar o que considerava ser o

fantasma do ex-marido. “Por que você está fazendo isso comigo, João? Você já

me fez sofrer demais. Deixa pelo menos eu viver a minha vida em paz”, disse

com os olhos banhados de lágrimas. “Marina, por favor, me escute. O que tenho

a lhe dizer é muito importante”, começou o professor. “Eu não sou mais o homem

com quem você se casou. Depois da minha morte, eu reencarnei em outra vida,

em outra cidade. É de lá que eu vim para lhe dizer que é você que não está

mais no mundo dos vivos. Ao não aceitar a morte, você criou uma espécie de

universo particular, que só você vê. Você nunca estranhou que ninguém – nem

mesmo os teus pais – vem lhe visitar?”

- Todo mundo me odeia, até mamãe e papai. Por isso que eles não vêm aqui.

E eu não preciso deles também. Estou muito bem sozinha. O que não suporto são

esses barulhos que você fica fazendo pela casa para me assustar.

- Não, Marina. É justamente o contrário. É você que está assustando as

pessoas que agora estão morando aqui no casarão. Elas estão lá embaixo rezando

pela tua alma.

- Você está querendo me deixar louca! Não basta a humilhação de ser

trocada por uma empregadinha de padaria? Não basta? Que culpa tenho eu de

não poder gerar filhos? Como fui cega em acreditar que um dia você me amou.

Você estava era de olho no dinheiro da minha família. Você estava de olho

neste casarão. Agora me diga, onde você teria chegado sem mim? Você acha que

as tuas poesias chinfrins te levariam a algum lugar? Você nunca passou de um

bêbado metido a intelectual que passava as noites enchendo a cara na companhia

de um negro sujo. Até os teus estudos na Inglaterra foram pagos pelo meu pai.

Eu te amei, João. Eu te amei do fundo do meu coração. Mas você nunca gostou

Page 48: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

de coisa boa, não é mesmo? Nunca deixou de ser o suburbano que conheci

declamando poesia na rua.

Depois do desabafo, Marina sentou-se à beira da cama e com a cabeça entre

os joelhos, começou a chorar. João Guilherme continuava calado. Achando que o

espírito do poeta havia partido, a mulher abriu os olhos e o descobriu chorando

de joelhos à sua frente.

- Sim, Marina. Eu fui um canalha contigo. Maltratei o coração de uma

mulher que me amava e só queria ser amada. Essa parece ser a minha sina até

hoje. Meus relacionamentos nunca deram certo e parece que nunca vão dar. A

eterna solidão é o meu destino. Mas eu te amei sim. Do meu jeito esquisito,

confesso, mas amei. Quando estávamos juntos parecia haver um rombo na minha

alma que só foi preenchido quando conheci Amparo. Era ela quem eu procurava

em todos os relacionamentos e não achava. Eu jamais deveria ter me casado

contigo sabendo que você não era a mulher da minha vida. Eu fiz você sofrer

e, acredite, fui severamente castigado por isso. A solidão é como um veneno

que vai corroendo o espírito lentamente, até não existir mais nada. Mas agora

estou aqui para implorar pelo teu perdão. O ódio e o rancor dilaceram a alma

e nos impedem de evoluir. Olhe em volta e veja o que aconteceu contigo.

Incomodada com a última frase do poeta, Marina virou-se e viu, pela

primeira vez desde sua passagem, as imagens sobrepostas do quarto. Apavorada,

saiu do cômodo e descendo a escadaria deparou-se com o pequeno grupo que

rezava. Confrontada com a inevitável verdade, gritou tão forte a ponto de

quebrar um cálice de cristal que estava sobre a prateleira. De volta ao andar

superior, ofendeu o ex-esposo com todos os palavrões que conhecia. João

Guilherme era só pranto. Ela ainda encontrou forças para, com uma tesoura,

rasgar totalmente o retrato daquele que um dia tinha sido um casal feliz. O

jornalista recompôs-se e ensaiou nova interpelação. “Não se atreva a falar

comigo, seu patife! Suma da minha frente de uma vez por todas. Espero que você

queime no fogo do inferno quando morrer de novo”, antecipou-se. Ao dizer isso,

atirou-se na cama e voltou a chorar convulsivamente. O poeta decidiu no fundo

do coração que não sairia dali sem resolver definitivamente aquela situação.

Dominado por esse sentimento, colocou a cadeira de balanço à beira da janela,

sentou-se e ficou a olhar o céu. Fechando os olhos, concentrou-se e imaginou

uma luz dourada que descia do alto, envolvia a Terra e preenchia todo o

ambiente. E ficou assim por horas.

Page 49: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

O casal de velhinhos e o amigo passaram o dia em vigília. Quando a noite

chegou, João despertou do transe e procurou por Marina. Ela estava sentada

na cama e o observava. Não havia ódio ou rancor em seus olhos e os dois se

olharam ternamente. Por fim, foi ela quem tomou a iniciativa de levantar-se

e caminhar em sua direção. Ele também levantou-se e, de mãos dadas, assistiram

ao restinho do pôr do sol. “João, eu sonhei com a minha mãe. No sonho, ela

rogava que eu lhe perdoasse, pois só assim eu teria paz, porque o perdão é

divino. E eu também deveria pedir perdão. Somos todos irmãos, filhos do mesmo

Pai Divino. Que o perdão mútuo nos recoloque na estrada do amor de Deus. Siga

o teu caminho em paz. Eu vou seguir o meu”.

Ao concluir a fala, ela abraçou ternamente o antigo companheiro. À porta,

estavam seu pai e sua mãe vestidos de branco. “Estou pronta, amados”, falou

juntando-se a eles. Entre lágrimas, João sorriu de contentamento diante da

beleza do momento. Os três espíritos lhe acenaram adeus. Mais uma vez, o poeta

tinha tido a coragem e a humildade de fazer o que era necessário e agradeceu

ao Cristo por isso.

Page 50: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

13

O relógio marcava meia-noite quando João acordou. Embora não

conseguisse vê-lo, ele sabia que era este o horário quando voltou ao corpo

depois do encontro com Marina. A princípio, com a mente vazia de pensamentos,

o professor decidiu conversar com seu mentor espiritual, ou como o chamava às

vezes, anjo da guarda. Ainda que desconhecesse a existência da palavra “anja”,

tratava o espírito guardião como mentora. Na força do Daime, ele sempre sentia

uma presença feminina a lhe instruir sobre as coisas espirituais. Por vezes,

essa presença era tão palpável que ele quase ouvia a sua voz, como se fosse

uma pessoa a lhe falar ao pé do ouvido. Era uma voz serena, ritmada, contudo

jovem. O professor considerava que a mentora parecia ter pouco mais do que

vinte anos de idade. Sua identificação com ela era tanta que decidiu chamá-

la de Eleanor, em referência à uma canção dos Beatles em que a personagem

padecia com a dor da solidão, pois era assim que o poeta se sentia. Aos 44 anos,

nunca tinha sido casado e nem tinha filhos. Durante a vida colecionara

incontáveis casos fugazes de amor. A fama de conquistador lhe fazia jus, mas

desde que abraçara a doutrina daimista tinha mudado radicalmente o estilo de

vida. Sumiu da boêmia e passou a se dedicar com admirável afinco ao que

chamava de “processo de evolução espiritual, moral e intelectual”. De um

espírito agitado e hiperativo, agora o professor irradiava tranquilidade,

doçura e amor. Sem perder com isso o bom humor que lhe era peculiar. Ainda

gostava de alegrar os amigos com histórias engraçadas, de cantar músicas

populares, de dançar e de declamar poemas.

João Guilherme pensava em tudo isso quando começou a falar com Eleanor.

Ele pediu serenidade para que não se perdesse na torrente de extraordinárias

experiências que estava vivendo. Insistiu para que ela explicasse porque não

conseguia se lembrar do que lhe acontecia no plano físico enquanto estava

desperto e agradeceu por sua companhia nos momentos mais difíceis desse novo

momento da vida. Com pureza de coração, finalmente confessou-se com medo. Ele

evitava usar aquela palavra, pois sabia da fortíssima energia negativa que

emanava dela. Mas era assim mesmo que se sentia, em meio ao silêncio e à

escuridão. Tomado de súbito pavor, começou a chorar. Gritou que precisava de

alguma orientação que lhe abrandasse a angústia da alma por não compreender

a profundidade do que vivia. Nada aconteceu. E agora a sensação que lhe

sobrevinha era de vergonha por ter se comportado como uma criança que,

Page 51: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

deixada na escola para estudar, choraminga pelos braços da mãe. O jornalista

entendia que era preciso uma postura nova. A postura de um homem adulto que

aceita que a vida espiritual é cheia de fatos complexos, muitos dos quais ainda

ficariam envoltos sob o manto do mistério por muito tempo. Como um buscador

que havia deixado o leite espiritual e agora se nutria de alimentos

consistentes, era preciso entender definitivamente que este é um mundo de

expiação e evolução.

“Levante-se João”, ouviu nitidamente. Comando obedecido, olhou à sua

volta e viu-se na igreja daimista que frequentava. Estava tudo perfeitamente

arrumado para mais uma sessão. As cadeiras estavam colocadas de forma

impecável, formando a figura de um retângulo em volta da mesa - adornada

com as velas, as pedras de energia, a imagem de Nossa Senhora Aparecida e a

foto de Mestre Irineu. As flores no altar, postas ao lado da jarra com o Daime,

exalavam um finíssimo aroma que perfumava todo o salão. João Guilherme

sentiu-se imensamente reconfortado ao olhar para o lugar que sempre ocupava

na primeira fileira do batalhão masculino.

Saindo pela porta lateral, o poeta foi dar no jardim carinhosamente

iluminado pela lua e pelas estrelas. Caminhou mais um pouco e chegou ao lugar

onde costumava harmonizar-se após os trabalhos. Ali, debaixo da vegetação da

mata nativa, fazia suas últimas preces antes de juntar-se aos outros irmãos

na confraternização na cozinha ao lado. Sentou-se em um dos vários tocos da

madeira e ficou em silêncio. Ao olhar para cima, percebeu a lua entre as

frestas das copas das árvores. Ao redor dela havia uma espécie de anel cujas

bordas variavam entre as cores roxa e vermelha. Na parte interna do círculo,

havia um amarelo fosco. “Você sempre gostou deste cantinho, não é mesmo?”,

disse a voz que lhe tinha pedido para levantar-se. O poeta olhou para trás e

viu uma pequena esfera de luz branca pairando cerca de dois metros do solo.

“Eleanor?”, quis saber João. “Sim, amado irmão, sou eu”. Aquelas palavras foram

de uma alegria indescritível para quem imaginava às vezes que, julgando falar

com um espírito, falava somente consigo mesmo. Diante da hesitação do daimista,

ela acrescentou: “Há muito tempo que lhe acompanho. Mas só há pouco você passou

a notar minha presença. A energia negativa de seus pensamentos lhe impedia”.

O professor sentiu um certo constrangimento com a declaração da mentora,

mas concentrou-se na felicidade de estar falando com ela. “O que acha do meu

cantinho?”, perguntou meio sem jeito. “Eu também gosto. Já cantamos muitos

mantras juntos aqui, lembra?” João Guilherme sorriu de contentamento. A

Page 52: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

esfera parecia agora assumir uma silhueta humana e o jornalista ficou ansioso

por julgar que ela se materializaria – o que não ocorreu. Pedindo perdão pela

impertinência, perguntou se Eleanor poderia se mostrar. “Ah, irmãozinho, temos

tantas coisas bonitas pra conversar e você está interessado em me ver? Não

basta nos falarmos?”, respondeu ternamente. A resposta não deixou de

incomodá-lo, pois deixava claro que ele ainda estava preso à aparências, mesmo

tendo vivido tantas experiências transcendentais nos últimos dias. “Perdoe-

me pela indiscrição, amada irmã”, resignou-se o professor. “Há muito abandonei

a forma física, João. Ela foi somente uma vestimenta durante minhas passagens

pelo mundo. Apegar-se à matéria retarda nossa evolução espiritual”,

esclareceu. O jornalista esboçou mudar o rumo da conversa e foi interrompido.

“Façamos o seguinte: feche os olhos e pense em alguma mulher que tenha sido

importante na tua atual encarnação, que você tenha amado e pela qual possua

um profundo sentimento de amizade e respeito”. João Guilherme fechou os olhos

e imediatamente lembrou-se de uma namorada de oito anos antes. Ela tinha

saído do país para fazer mestrado e, após a conclusão, decidiu não voltar. Eles

ainda se falavam esporadicamente pela internet. O namoro havia acabado de

forma conturbada, mas depois de alguns anos se reencontraram e reataram a

amizade. Agora longe, ela havia encontrado o amor nos braços de outra pessoa

e isso deixou João feliz. Cumprida a sugestão, o poeta abriu os olhos e tinha

diante de si, para seu espanto, a antiga namorada. Sua beleza, agora vista no

astral, era ainda mais suave. A pele branca como porcelana; os olhos castanhos;

o nariz pequeno e afilado; as sobrancelhas finas; os lábios rosados e carnudos;

os cabelos longos castanho-claros – estava tudo lá. Até a voz era idêntica

quando ela falou com certo tom irônico: “Pois então, senhor João Guilherme

Ribeiro, eis-me aqui”.

O professor achou graça e depois de um curto tempo interpelou: “Minha

amantíssima irmã, antes de mais nada, quero expressar toda a minha gratidão

pelas instruções, por tua amizade, pelo carinho e paciência. Não deve ter sido

fácil pra lidar com um sujeito teimoso como eu”. “Hum, reconhecendo a teimosia?

Estou vendo que tivemos algum progresso”, respondeu Eleanor em meio a uma

gargalhada. Aquela demonstração de descontração alegrou o coração de João e

confirmava, como havia lido, que é preciso bom humor no plano astral e ele

também riu.

- Pois bem, eu busquei durante meses a fio, sem sucesso, realizar uma

projeção astral cem por cento consciente. Até consegui alguma coisa, mas sempre

Page 53: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

muito rápido. O que me abriu muito nos últimos tempos foi a clarividência.

Tive visões muito bonitas e outras nem tanto. Mas ultimamente passei a viver

desdobramentos de proporções fantásticas. Claro que estou muito feliz, mas

devo me confessar muito preocupado com o fato de não lembrar nada do que

tenha feito recentemente no plano físico. Você pode me ajudar a esclarecer

isso, Eleanor?

- Certo, mas antes deixe-me agradecer pelo nome que você escolheu para

mim. Eu realmente me chamei assim em uma das minhas encarnações e também

gosto muito dos Beatles. Por falar nisso, o John pediu-me para lhe agradecer

por ensinar “Imagine” aos teus alunos nesses anos todos. Mas vamos lá: essas

experiências de desdobramento sempre ocorreram contigo. Você é que não se

lembrava delas depois que acordava. Quando saía do corpo durante o sono, você

tanto recebia instruções quanto nos auxiliava em trabalhos de cura espiritual

para outros irmãos encarnados ou desencarnados. Eu sou a tua tutora

espiritual há muitos anos e, junto com outros espíritos da nossa falange,

guiava os teus passos aqui no astral. Foi somente com muita insistência minha

e de meus irmãos, que você passou a praticar na Terra o que aprendia aqui.

Você está indo bem, mas pode e deve melhorar muito ainda. Estamos vivendo um

momento de excepcional abertura cósmica, João. Os seres humanos estão dando

um grande passo na evolução espiritual. Nosso Cristo Planetário está ansioso

por nos receber. Mas, em função de alguns problemas inesperados, foi preciso

fazer reajustes na jornada evolutiva de milhares de pessoas para otimizar a

ascensão espiritual da humanidade. Você é uma dessas pessoas. Lembra-se de que

nos momentos de maior força no Daime, o que você mais pedia à Virgem Mãe era

amor pelos teus irmãos? As tuas preces foram ouvidas e a Divina Senhora lhe

abençoou com a maior dádiva que um homem pode receber: o amor desinteressado

– fazer o bem sem esperar nada em troca. Mas tome cuidado para não cair na

armadilha do orgulho com o que estou lhe dizendo. A responsabilidade é muito

grande e você terá de pagar um preço altíssimo por essa bênção. Quanto ao fato

de ter perdido a memória curta, este é um assunto do qual não tenho permissão

para falar agora. No momento certo você ficará a par de tudo. Não se preocupe,

meu irmão. Você não está só nesta jornada. Como já te disse, além de mim, há

outros espíritos lhe assistindo, inclusive Vinícius de Moraes e Seu Zé

Pelintra.

Maravilhado com o que acabara de ouvir, o poeta aquietou o coração.

Sentada ao seu lado, Eleanor estendeu-lhe a mão esquerda e pousou-lhe a

Page 54: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

direita sobre a cabeça e fez uma prece em uma língua que, embora João não

falasse, reconheceu de imediato. Era o Gayatri mantra, em sânscrito - a prece

citada por Krishna no épico Bhagavad Gita:

“Om bhür bhuva svah

tat savitur varenyam

bhargo devasya dhïmahi

dhiyo yo nah prachodayät”

Em todos os três mundos – terrestre, astral e celestial, que possamos meditar

sobre o esplendor daquele sol divino que nos ilumina. Que toda a luz dourada

acalente nosso entendimento e nos guie na jornada para a morada sagrada.

Após a terceira entoação falada, a mentora convidou o poeta para que

cantassem juntos, como já haviam feito antes, naquele mesmo lugar, sem que ele

soubesse. Ao término do mantra, Eleanor havia retornado à forma de luz. João

Guilherme compreendeu então que o encontro tinha acabado. Embora

reconfortado, ele ainda não sabia qual deveria ser o próximo passo. Ao ter

esse pensamento, ouviu Eleanor dizer em tom divertido: “Está na hora de

reencontrar teu grande amor. Não era isso o que você queria o tempo todo?”.

“E onde irei encontrá-la?”, replicou João. “Onde quiser. Apenas imagine um

lugar e você estará lá”, acrescentou o espírito. Da euforia inicial, João

Guilherme ficou apreensivo com o iminente reencontro com a alma gêmea.

Respirando fundo, recordou-se da última vez que estivera com Amparo na

clareira da grande pedra, ainda que não tenha conseguido lhe ver. Sim, aquele

lugar deveria ter algum significado especial. O poeta fechou os olhos,

visualizou-o e no mesmo instante teletransportou-se.

Pela posição do sol, o dia devia estar nascendo e muitas estrelas ainda

piscavam no céu. A natureza entoava seu canto em esplendor. Grilos, cigarras,

sapos, corujas, macacos, toda espécie de pássaros. Naquela orquestra matinal, o

rio era o solista que, com a voz doce e suave, anunciava o raiar de um novo

dia. Com devoção, João Guilherme ajoelhou-se, molhou o rosto e bebeu da água

cristalina. Depois, caminhou para dentro da mata em direção à clareira onde

estivera antes. Não havia ninguém a lhe esperar. Mas isso não o perturbou e

Page 55: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

lentamente sentou-se na grande pedra e aguardou. De olhos fechados e com um

sorriso na face, entoou mais uma vez o Gayatri mantra. A cada repetição, sua

alma exultava de amor por todas as coisas vivas. Os bichos e o rio pareciam

lhe seguir na adoração ao Pai Celeste e à Mãe Terrena. Somente quando já

tinha perdido a noção do tempo é que sentiu que era observado. Era ela. O

perfume delicado a denunciara. Sem levantar-se, João virou-se e contemplou a

metade de si afastada há tanto tempo. Ela usava um chapéu bege enfeitado com

florzinhas. Os cabelos loiros estavam divididos em duas tranças sobre os

ombros. O vestido branco tinha um laço azul turquesa na altura da cintura e

ela segurava uma sombrinha cor-de-rosa. O reflexo das águas fazia com que

seus olhos azuis parecessem dois pequenos diamantes recém-descobertos. O poeta

era o eufórico garimpeiro que acabava de encontrar um tesouro na mina escura

e funda de sua alma.

“Não é engraçado você estar cantando o Gayatri mantra aqui neste mesmo

lugar, meu amor?”, disse Amparo quebrando o silêncio. Discreta e delicadamente

ela riu-se do fato de ele demonstrar não ter compreendido o que acabara de

ouvir. João levantou-se. Ela aproximou-se e tomando-lhe as mãos, beijou-as

suavemente. Depois beijou-lhe a testa, os olhos e por último a boca. Em seguida,

convidou-o a sentar novamente sobre a grande pedra. Agora lado a lado após -

na concepção do professor – uma eternidade de separação, ele quis falar. Ela

não permitiu. “Você não se lembra deste lugar, meu príncipe?” João Guilherme

tentou, mas não conseguiu. Pousando a cabeça do amado em seu regaço,

gentilmente pediu: “Feche os olhos e busque no recôntido do teu coração”.

Page 56: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

14

Naquela manhã o sol não deu o ar da graça. Nuvens cor de chumbo brotavam

do chão e pairavam austeras sob o céu vermelho. No ar, o inconfundível cheiro

da morte. Da terra, o pranto de pais pelos filhos mortos e o pranto de filhos

pelos pais mortos eram ignorados por Krishna – a encarnação de Vishnu - nas

alturas. O mundo havia conhecido Sua pesada mão de justiça por causa da

iniquidade dos homens. O fim anunciado durante séculos havia chegado. Esse

foi o pensamento de Jahnu Mahajan, filho do vaixá Sudhir Mahajan, grande

fazendeiro e comerciante. Com 25 anos de idade, Jahnu era filho único. De

exuberante aparência, voz grave, tinha sido educado pelos melhores

preceptores, que lhe ensinaram os textos védicos, o Bhagavad Gita, astronomia,

filosofia e poesia – área na qual havia se destacado.

O coração de Jahnu estava pesado. Desde que despertara, ainda de

madrugada, não pronunciara uma única palavra. No íntimo, não desejava nunca

mais falar com ninguém, tamanha era a agonia que lhe atormentava a alma. Nos

últimos quatro anos tinha estudado na renomada universidade de Oxford, em

Londres, na Inglaterra. E agora que retornava aos braços da adorada Índia,

encontrava-a ardendo em chamas, humilhada ante a maldade dos invasores

ingleses. E pensar que um dia chegou a amar aquele país estrangeiro. Sua

língua, seus poetas, sua gente. Com o confisco das terras da família pela coroa

britânica, de nobre e rico, tinha passado à condição de pária. O pai morrera

defendendo a propriedade e a mãe pela fome que vitimou outras centenas de

milhares de pessoas no país ante a política econômica recessiva imposta pelo

governo ditatorial. Sentindo a boca seca e a cabeça pesada, o vaixá olhou para

si mesmo e teve vergonha. As roupas estavam rotas e imundas. Havia sujeira

nas mãos e debaixo das unhas. Como tinha vindo parar ali naquela choupana?

Tocou a cabeça e descobriu que ela estava envolvida por uma faixa. Ao sair

pela pequena porta e deparar-se com a lua, baixando a mão, viu sangue.

Lembrou-se então do que tinha ocorrido. Quando chegou à casa de seu pai,

uma luxuosa mansão de muitos aposentos e servos, foi informado da

expropriação. Ela agora pertencia a um militar inglês. Assim como o genitor,

Jahnu protestou e ofereceu resistência. Gravemente ferido por soldados de

farda vermelha, foi jogado inconsciente na estrada, de onde foi resgatado em

seguida por seu servo e melhor amigo Jay – o sudra adotado ainda bebê por sua

mãe Induma.

Page 57: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

O acampamento onde agora se encontrava abrigava centenas de homens,

mulheres e crianças miseráveis – os cordeiros - que segundo a crença, tinham

vindo da poeira debaixo dos pés de Brahma, e por isso malditos. O antes vaidoso

vaixá era assim, ele mesmo, um “intocável” – seres desprezíveis a quem cabiam

os trabalhos mais deploráveis.

As pessoas em volta olhavam o vaixá com um misto de desprezo e compaixão.

Ainda que encardida, a indumentária denunciava-lhe a casta. Temendo por sua

integridade física, Jay o recolheu para dentro do casebre. “Jahnu Ji não deve

se expor. É perigoso”, alertou o servo oferecendo-lhe um pedaço de pão. “Eu

preciso retomar a casa de meu pai. Preciso vingar a honra da família”, bradou

o poeta. Diante do olhar de incompreensão do amigo de uma vida toda, ele

conteve a fúria por instantes. “Meu amigo, não nascemos do mesmo ventre, mas

para mim sempre sereis como um irmão. Tens a minha eterna gratidão por ter-

me salvo a vida. Estou em débito contigo”, falou em tom protocolar. “De forma

alguma, Jahnu Ji. Eu é que devo a vós e a vossa família pela benevolência

desses anos todos. Não fiz mais do que a obrigação. Agora procure repousar, o

senhor ainda está muito fraco”.

Jahnu seguiu a orientação e recostou-se no pedaço de pano estendido

sobre o chão. Foi quando lembrou-se que, pela primeira vez na vida, não tinha

feito as orações matinais. A reação natural foi levantar-se para cumprir a

obrigação, mas tomado de um torpor repentino, fechou os olhos e adormeceu. Em

seu sonho, vestia uma armadura de guerra dourada. Ele usava um elmo de prata,

seu escudo trazia a insígnia de um leão e a espada reluzia com o brilho do sol

escaldante. Montado em um corcel negro, assim como outros comandantes,

aguardava as ordens do general, que se mantinha em silêncio em uma biga na

encosta de um monte próximo. Jahnu olhou em volta e viu que estava

acompanhado de milhares de guerreiros. Entre eles, seu pai, avô, tios, primos

e outros amigos empunhando arcos e lanças. Apesar de ser de dia, uma imensa

lua cheia brilhava no céu azul. Promovido à casta dos xátrias – os guerreiros

nascidos dos braços de Brahma – Jahnu Mahajan brandiu a espada no ar

entoando um grito de guerra. Então ouviram-se grandes estrondos, como sons

de trovão, vindos do alto do monte e o céu verteu-se em sangue.

A primeira coisa que o poeta viu, quando acordou, foram os grandes olhos

castanhos e amendoados de Jay, que lhe passava um pano úmido na testa. “O

senhor teve um pesadelo, mas já acabou”, explicou o sudra. Jahnu ainda

permaneceu um tempo deitado a meditar sobre o estranho sonho. Quando

Page 58: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

levantou-se, tirou a parte superior da roupa, os sapatos e pediu que o amigo

os queimasse. Em seguida, saiu do casebre e foi juntar-se à multidão de

miseráveis que se espalhava pelas ruas. Tal qual um anjo destituído de luz e

forçado a viver na Terra, Jahnu aceitava a nova condição de desgraçado,

cônscio de que tinha alguma lição a aprender e uma missão a cumprir.

Page 59: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

15

Sempre seguido de perto por Jay, Jahnu percorreu as vielas malcheirosas

do vilarejo. Por onde passava, atiçava olhares curiosos. Seu coração condoeu-

se ao ver crianças de todas as idades revirarem o lixo em busca de comida. Na

caminhada de reconhecimento do lugar, ele só se deteve uma vez, incomodado

com o olhar de um ancião sentado à porta de sua choupana. Ainda que cercado

pela miséria, o homem tinha um aspecto sereno. Ninguém nunca tinha o encarado

com tamanha firmeza como fazia aquele estranho. Depois de caminhar alguns

quilômetros, o vaixá chegou ao limite do assentamento. Vendo a despedida

melancólica do sol e a chegada sombria da lua, em uma deprimente combinação

de beleza, o jovem lembrou-se dos primeiros versos de um dos sonetos de seu

poeta inglês favorito, “quando a hora dobra em tardo e triste toque e em noite

horrenda vejo escoar-se o dia...”

O filho de Sudhir Mahajan caminhou ainda mais uma distância até

alcançar o pico de um pequeno monte. Chegando lá, sentou-se, fechou os olhos

e pôs-se a meditar no sonho que tivera naquela manhã. Contaminado pela

revolta que sentia no coração, interpretou que os príncipes da Índia se

uniriam em um grande exército para expulsar o invasor, sob a liderança do

próprio Lorde Krishna. Era imperativo agora começar a arregimentar

guerreiros para a grande batalha. Diante dessa perspectiva, sentiu um alento

de esperança na alma fatigada e continuou em atitude meditativa por mais

algum tempo. Quando levantou-se, era noite alta e o céu resplandecia com a

luz de milhares de estrelas. Ao olhar para baixo, contemplou sua nova cidade.

As centenas de lamparinas acesas pareciam velas a iluminar o velório daquela

que outrora tinha sido uma grande civilização, berço de uma cultura

extraordinária e abençoada por excelsas divindades. Com os olhos cheios de

lágrimas, rogou a Krishna: “Ó Pai da Luz, glorificai-nos em vosso próprio ser

e mostrai-nos toda a glória da qual no começo participamos Convosco, antes

que o mundo fosse feito”. Jay, o súdito fiel, mantinha-se a uma distância

respeitosa, mas não pôde deixar de ouvir e emocionar-se com a prece proferida

pelo seu senhor – que com apenas um olhar o fez compreender que estava na

hora de descer. Era preciso começar a agir.

“Quem era aquele homem de aparência nobre que me olhou longamente

quando vínhamos para cá?”, perguntou Jahnu quando entraram na aldeia. “Penso

que o senhor refere-se a Vivek”, o sudra apressou-se em responder. “Por

Page 60: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

gentileza, solicite permissão para que eu lhe visite a fim de uma conferência

de suma importância”, completou Jahnu Mahajan dirigindo-se para a choupana

que agora lhe servia de lar. Na mesma noite Jay tratou de obedecer a ordem.

O espectro da morte rondava o acampamento, a ponto de não se ouvirem vozes

nas ruas. Os poucos sons que saíam das casas eram de choro pelos mortos ou

orações rogando a misericórdia dos deuses. “Namastê!”, disse o servo ao deparar-

se com Vivek à porta de sua casa. Com as duas mãos postas à altura do peito e

com um sutil movimento de cabeça o ancião retribuiu a saudação. O velho tinha

longos cabelos brancos e barba hirsuta. A pele estava duramente castigada

pelo forte calor – o que lhe dava uma certa coloração de verniz. A figura

mirrada denunciava a precariedade de suas condições de vida. Com um movimento

de mãos, Vivek fez entender que convidava o visitante para entrar. Sob a opaca

luz da lamparina, Jay viu um amontoado de olhos em um canto do cômodo. Como

gatinhos acuados, os olhares mesclavam assombro e curiosidade. “O mestre a

quem sirvo, Jahnu Mahajan, filho de Sudhir Mahajan, respeitosamente requer

uma audiência”, esclareceu o sudra com orgulho. O velho não esboçou nenhuma

reação. Após uma longa pausa, sentenciou: “Aqui onde estamos, entregues à

própria sorte, não existem mestres ou servos. O infortúnio abateu-se sobre

todas as famílias. Agora não há nem grande nem pequeno. Se vosso amigo deseja

ser ouvido, ele mesmo que venha apresentar-se”. Espantado com a tranquilidade

com que Vivek expressara o que considerou ter sido um atrevimento, o sudra

agradeceu pela atenção e despediu-se.

Quando retornou ao casebre, encontrou Jahnu escrevendo com os dedos na

terra. Seu olhar demonstrava uma curiosidade inédita. Temendo aborrecer o

mestre, o servo comunicou-lhe - sem repetir as palavras - que o ancião o

receberia na manhã seguinte. “O que Jahnu Ji viu em seu sonho esta manhã?”,

atreveu-se em perguntar depois de breve silêncio. Sem olhar para o amigo, o

vaixá respondeu: “Eu vi um poderoso exército se formando para a grande

batalha. Os invasores pagarão caro por tamanha insolência”. Ao ouvir isso,

Jay respirou fundo e não disse mais nada. Estava na hora de dormir. O poeta

demorou a pegar no sono. Quando ele veio, chegou truculento e cheio de sonhos

com imagens desconexas. Passado um tempo, Jahnu Mahajan mais uma vez via-se

no front. Como que ignorando o furor dos soldados, o misterioso general

mantinha-se impassivo em sua biga no alto do monte. Como no outro sonho, a

lua disputava com o sol a primazia pelo céu azul.

Page 61: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Desta feita, o poeta não acordou sobressaltado. Pelo contrário, dormiu

profundamente e só despertou pouco antes do nascer do sol. Debaixo da leve

garoa que caía naquele fim de madrugada, Jahnu ajoelhou-se e, virando-se para

o sudoeste, começou a prática devocional entoando o Gayatri mantra. Quando

terminou as orações, o jovem entrou, sorveu o pouco de chá que tinha à

disposição, comeu um pedaço de pão e conclamou Jay a acompanhá-lo na missão

diplomática. A garoa tinha se transformado em chuva e os amigos chegaram

ensopados à casa de Vivek. Saudações iniciais proferidas, os dois foram

convidados a entrar. Ainda que com a luz do sol ofuscada pelas densas nuvens,

Jahnu pôde constatar que o velho e família viviam em situação mais precária

que a sua. Após secar-se e tomar um gole do chá oferecido pela esposa do

anfitrião, tomou a iniciativa da conversa: “Vivek Ji, por algum motivo que

não me é conhecido, os Pais Celestiais permitiram que nossa amada nação fosse

tomada de assalto pelos usurpadores ingleses. Como filhos de Brahma, não

podemos tolerar tamanha afronta. Urge formarmos um exército para retomarmos

o poder do país. Não podemos aceitar sermos humilhados em nossa própria terra”.

O velho não respondeu de imediato. A voz grave do visitante causara um

total silêncio no casebre. “Jahnu Ji demonstra habilidade com as palavras”,

finalmente começou Vivek, referindo-se à eloquência do jovem. No fundo, a

insinuação tinha como alvo o inglês perfeito falado pelo poeta. Nos primeiros

meses na Inglaterra, Jahnu havia se aborrecido com as insistentes chacotas

dos colegas europeus por causa de seu jeito de falar. Com uma disciplina de

monge, o vaixá empenhou-se, a partir de então, em eliminar totalmente o

sotaque indiano. Para o sucesso dessa empreitada, aulas de teatro e canto

foram de suma importância. Porém, jamais lhe passara pela cabeça que um dia

seria molestado em situação oposta. O jovem engoliu a provocação e continuou

prestando atenção. “O senhor parece ter passado muito tempo em terras

estrangeiras e fala como se os invasores tivessem chegado aqui no mês passado,

quando chegaram há muitos anos, antes mesmo do vosso nascimento. O que os

ingleses fazem com o país não é nada diferente do que homens como vosso pai

fizeram com meu povo, com minha casta. A mesma exploração, a mesma arrogância,

o mesmo desprezo”, completou olhando firme nos olhos de Jahnu Mahajan.

O vaixá não se conteve diante de tamanha afronta. “Como um pária como

o senhor atreve-se a insultar a memória de um homem honrado como o meu pai?

Não fosse por sua idade avançada...”, replicou em alta voz. “Vosso pai? Sim...

eu o conheci. Sudhir Mahajan, o agiota implacável. O homem que nunca

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demonstrou clemência por ninguém. Nem quando o devedor implorava por

misericórdia por não ter pago a dívida por causa da má colheita. Você nunca

se perguntou como ele conseguiu tantas terras em tão pouco tempo? Isso mesmo,

meu jovem! Tomando as propriedades de homens indefesos como eu. Mas Shiva é

justo e agora, assim como nós, o adorável filho de Sudhir, que foi mandado ao

estrangeiro para não ter de conviver com a ralé, é também um intocável”,

bradou Vivek colocando-se em pé. A cólera subiu à cabeça de Jahnu e não fosse

pela firme intervenção de Jay, teria cometido um assassinato. Os gritos

exaltados chamaram a atenção dos transeuntes que, atiçados pela curiosidade,

aproximaram-se na tentativa de se colocar a par do que se passava. Temendo

pela integridade física de seu senhor, Jay o arrastou para longe. O poeta, por

sua vez, nem fazia ideia que era observado por olhos ardentes de paixão.

“Insolentes! Ingratos!”, esbravejou o vaixá assim que chegaram de volta

à choupana onde moravam. “Quantas vezes Sudhir Mahajan deu esmolas a esses

preguiçosos? Não fosse pela benevolência de homens como meu pai, eles já teriam

se matado ou ainda estariam disputando comida com os animais”, prosseguiu.

Embora cada palavra proferida fosse como um açoite, Jay apenas ouvia.

Quando finalmente o mestre demonstrou estar mais calmo, aconselhou: “Aqui

não é mais seguro para Jahnu Ji. Precisamos procurar outro lugar”. Meio que

a contragosto, o poeta concordou com o sudra e determinou que partissem

imediatamente. Sem destino certo, fizeram uma pequena trouxa, pegaram a

estrada e só se detiveram depois muitas horas de caminhada e já noite, quando

se depararam com um rio. Tenda improvisada, Jahnu deitou-se na esperança de

adormecer e ter novamente o sonho que representava a redenção. O galo cantou

pela primeira vez quando o poeta conseguiu dormir. O sonho veio rápido – mas

não o que esperava. Agora ele estava amarrado em cima de uma mesa de mármore.

Somente uma pequena luz brilhava na penumbra do local. Repiques de tambores

eram o único som audível. Com muita dificuldade, conseguiu ver, à média

distância, uma passagem na parede. Quando os tambores cessaram o concerto

macabro, a figura que se revelou instalou-lhe pavor na alma. De língua de

fora e olhos esbugalhados, com seus quatro braços e o rosto azul, cabelos negros

como carvão até a cintura, surgia Kali, a deusa da morte, armada de um punhal

e andando em sua direção. Jahnu tentou uma, duas, três, inúmeras vezes gritar,

mas o grito ficou entalado na garganta. Diante da iminência da morte, pensou

em Krishna.

Page 63: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

O breu ainda insistia quando o vaixá despertou do terrível pesadelo.

Apesar de não ter comido quase nada durante o dia todo, vomitou repetidas

vezes. Mesmo com o calor da madrugada, seu corpo tremia em calafrios.

Desesperado, Jay amparava o homem ao qual havia jurado lealdade. O galo

cantou a segunda vez quando Jahnu deu sinais de que estava se restabelecendo.

Agora desperto, olhou para as estrelas e clamou com o coração compungido: “Ó

Vós, Infinita e Sagrada Presença Divina, não permitas que a morte me tome sem

que antes eu faça aquilo que é preciso ser feito”. Comovido com a fragilidade

do amigo, o sudra chorou.

“Inevitável é a morte para os que nascem; todo nascer é um morrer“,

profetizou a voz vinda do meio da escuridão e Jahnu pensou ter ouvido o

próprio Krishna a anunciar do alto céu sua sentença final. Mais pragmático,

Jay vasculhou o local com os olhos em busca da companhia inesperada. “Aquietai

o vosso coração, nobre irmão, ainda não será desta vez que receberás o beijo

mortal de Kali”, falou novamente a voz, cujo dono tinha estado o tempo todo

bem em frente à dupla.

Com muito esforço, Jahnu Mahajan conseguiu colocar-se em pé. Só então

viu nitidamente o ancião de cabeça raspada sentado em cima de uma grande

pedra. “Quem sois vós?”, quis saber o jovem. “Eu já tive muitos nomes, mas podeis

me chamar de Jyotish”, respondeu o velho. “E o que fazes sozinho aqui no meio

da floresta a esta hora?”, intrometeu-se Jay.

- Eu estava a lhes esperar – disse olhando para Jahnu.

- Com que intenção? – perguntou o vaixá.

- Não se turbe o vosso coração, meu irmão. Jyotish vem em paz.

Recomposto, o poeta aproximou-se mais da exótica figura. “Como sabes que

sonhei com Kali?”, inquiriu. “Eu também estava em teu sonho”, rebateu o ancião,

deixando-o perplexo. “Tenho uma grande missão a executar. Não posso morrer

agora”, confidenciou o filho de Sudhir. “Quanto a isso, não deveis temer. Muito

embora vossa missão seja bem diferente daquela que imaginas”, disse Jyotish

em tom evasivo para em seguida completar: “Um novo mundo está prestes a se

revelar a vós”. “E quando será isso?”, perguntou Jahnu sem disfarçar a

ansiedade. “Tudo começará amanhã, com a lua cheia”, replicou o misterioso

velho. A sentença fez o poeta olhar automaticamente para o céu em busca da

lua. Ao fazer isso, o mundo girou aos seus pés e ele desmaiou. O galo cantou

pela terceira vez.

Page 64: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Como quando despertamos abruptamente de um sonho após sofrermos uma

enorme queda, João Guilherme voltou ao corpo físico. Pensando em toda a beleza

e horror que vivenciara nessa última projeção astral, o professor, mais uma

vez, tinha uma intuição confirmada. Os mantras ouvidos e entoados

diariamente; as batas que tanto gostava de vestir; as tatuagens com motivos

hindus; a insólita devoção por Krishna; a opção pelo vegetarianismo; os

incensos, a prática do yoga e da meditação... então era isso! Ele já tinha vivido

uma encarnação na Índia. O jornalista respirou fundo e concentrando-se,

relaxou totalmente o corpo e a mente e voltou a dormir.

Page 65: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

16

Os dedos de Amparo tocavam suave e carinhosamente o rosto e os cabelos

de João Guilherme. Solfejando uma antiga canção de ninar que havia aprendido

na infância, ela velava pelo sono do amado. O homem da voz forte e gestos

viris, agora não passava de um menino, encolhido e indefeso no colo da mulher

em cujos olhos descobrira o amor. Tudo era tranquilidade. Até mesmo a floresta

parecia ter diminuído seus ruídos para garantir-lhe a paz do repouso.

Ainda demoraria até que a lua cheia chegasse. Nesse ínterim, Jahnu e Jay

foram instruídos por Jyotish a se dedicarem ao jejum e às preces. As primeiras

horas da manhã transcorreram tranquilas. Somente quando o sol estava no

ponto mais alto é que o poeta deu o primeiro sinal de fadiga. A sensação era

que as formigas e os mosquitos iam devorar-lhe o corpo, que suava em bicas. O

vento parecia ter se escondido em algum canto remoto do planeta, tamanha a

aridez que reinava. A cãibra que sentia nas pernas lhe dava um nó nos

músculos. A dor era insuportável. Mesmo assim, Jahnu Mahajan manteve-se

firme. Foi só depois de ter clamado em pensamento por forças ao seu adorado

Lorde Krishna, que ele começou a experimentar, vagarosamente, um bem-estar

que partiu da ponta dos pés e subiu pelo corpo até atingir o cume da cabeça.

Olhos fechados; sentado com as pernas cruzadas uma sobre a outra; espinha

ereta; respiração imperceptível, porém ritmada; língua ligada ao céu da boca;

mão direita pousada sobre a esquerda e os dedões se tocando levemente, o vaixá

começava uma imersão para dentro de si mesmo.

O estado de presença era tamanho que a mente parecia ter parado por

completo, ante a ausência do mínimo pensamento que fosse. Separado por uma

distância regulamentar ditada pela relação servo/senhor, Jay experimentava

semelhante sensação. Inadvertidamente, o sudra abriu os olhos e viu o poeta

impassível ao seu lado. “Perdão pela falta de firmeza”, já ia dizendo em

pensamento quando avistou algo surpreendente. Viu a si mesmo ainda em

concentração. Ele não entendia como tinha saído do corpo, mas a sensação de

liberdade dispensava explicações. Seu peso parecia ter sido reduzido ao de uma

pluma e tal qual uma, foi sendo conduzido por um sopro invisível. Flutuando

sobre o rio, foi deixado à entrada daquela que tinha sido a sua casa durante

anos, enquanto serviçal de Jahnu. Jay examinou o lugar e diante da casa

grande, viu um casal de sudras a discutir com o dono da propriedade. Esposo e

Page 66: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

esposa estavam de joelhos e choravam copiosamente ante a indiferença do vaixá

de trajes finos. A mulher segurava um bebê e em um gesto de total desespero,

estendeu-o implorando por misericórdia – pelo menos para a criança. Mais uma

vez o homem não fez nada. O drama só terminou quando uma senhora elegante

saiu de dentro da casa e tomou o rebento para si. Humilhado, o casal levantou-

se e saiu da propriedade sem olhar para trás.

Jay, que nunca conhecera os pais, tinha acabado de assistir a história

de sua vida e soube disso. Apesar de bem mais jovens, o moço sudra não teve

dúvida da verdadeira identidade do casal. Vivek - o ancião que por pouco não

encontrou a morte nas mãos de Jahnu era um. Somente da mãe ele não sabia o

nome. Mas isso era uma questão de tempo. Aflito, não fazia a menor ideia de

como voltar ao corpo físico, até lhe ocorrer o óbvio. Se a saída tinha se dado

pelo estado de relaxamento total, a volta só poderia ocorrer da mesma forma.

E assim foi. Quando saiu da projeção e voltou ao estado de vigília, Jay estava

em paz. Não havia ódio em seu coração. Mesmo diante da revelação de que Sudhir

Mahajan tinha sido o responsável pela perda das terras de sua família,

continuou a respeitar aquele homem austero a quem aprendera a amar como pai.

E mais do que nunca, tinha a convicção de que precisava tomar conta de Jahnu.

O jovem poeta, por sua vez, não foi a nenhum lugar no plano astral desta

feita. O que ele experimentava enquanto meditava e esperava, era um forte

estado de presença. O ontem - nada mais que o passado - não lhe atormentava

mais; o amanhã – o futuro não vivido – perdera todo o aspecto sombrio. Só

existia o presente, o agora. O único momento real da vida.

Quando a noite caiu, o misterioso Jyotishi surgiu das sombras. Ele trazia

nas mãos algo que se assemelhava a uma sacola e uma moringa e várias plantas

da mesma espécie. Elas tinham caules longos e uma coloração verde-clara. Assim

que notaram sua presença, Jahnu e Jay vieram ter com ele. Ambos ficaram

curiosos com o que o velho segurava, mas não fizeram perguntas e puseram-se

a observar. Sempre taciturno, o ancião passou a ocupar-se da retirada da seiva

das plantas, socando-as com uma pedra. Quando terminou o processo, filtrou o

líquido em lã de ovelha e misturou com outros ingredientes em uma cuia. Desses

ingredientes exóticos, Jay só conseguiu identificar o leite de vaca.

Finalmente, Jyotishi virou-se para os dois jovens e disse com um leve sorriso:

“Está pronto!” Jahnu Mahajan lembrou-se de menções sobre uma bebida sagrada

em inúmeros versos do Rigveda. Recordou-se também de seu poder enteógeno e

da alegada personificação de um ser divino. A reação natural do vaixá foi

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abster-se de participar daquele ritual védico. Contudo, a intuição lhe dizia

claramente que o que estava prestes a ocorrer fazia parte de um plano

superior. O poeta manteve-se em silêncio e havia um tênue sentimento de medo

em seu coração. Momentos depois, o brilho da lua cheia enfim iluminou a

clareira onde os homens tinham se sentado formando o desenho de um triângulo.

Com os olhos firmes no corpo celeste, Jahnu viu descer dele como que uma fina

névoa dourada. O espectro pairou um instante acima da pequena egrégora e

fundiu-se ao elixir que Jyotish tinha acabado de preparar. Tomando a cuia

com as mãos, o velho ergueu-a e recitou uma pequena prece incompreensível.

Depois sorveu uma quantidade generosa e passou-a a Jay. Este, temeroso, bebeu

somente um pouco. A maior parte ficou para o poeta que, resoluto afinal, tomou-

a com um gole só. De início nada aconteceu. Só depois da centésima oitava

repetição do mantra “om mane padme hum” é que a bebida começou a fazer efeito.

Quando a beberagem corria por todo o corpo, Jay não resistiu e levantou-se.

Mesmo cambaleante e prestes a perder o controle do intestino, conseguiu correr

para trás de uma grande árvore. Enquanto se aliviava, também vomitava

repetidamente.

Jahnu Mahajan mantinha-se na posição de lótus. De repente, sentiu uma

pontada na cabeça, que rapidamente se transformou em um formigamento no lado

esquerdo do rosto. Ele sentia o pulsar intenso do sangue nas veias como lavas

de um vulcão recém-desperto a abrir caminho pelo chão. O formigamento

espalhou-se para o corpo inteiro e intensificou-se no coração. Os seus chakras

giravam em espiral e deles saíam fortes matizes de luz. As vísceras pareciam

entrelaçar-se e o poeta ouviu pequenos estalos dentro da cabeça, como se o

crânio estivesse sendo esmagado por uma gigantesca mão invisível. Em estado

de consciência, em plena comunhão com o Eu Superior, Jahnu tinha se elevado

acima do ego, esse formidável sabotador da divina natureza humana. Agora o

pensamento estava colocado no devido lugar. Ele era apenas mais um sentido -

como o são a visão, o paladar, o olfato, a audição e o tato. Com os olhos da

alma ele percorria a mente como quem olha uma cena externa e vê com perfeita

nitidez tudo o que não está de acordo.

Por fim, foi tomado por uma enorme leveza. A impressão que tinha é que

o corpo girava suspenso no ar. Ainda assim manteve-se de olhos fechados.

Envolto por uma fortíssima onda de energia, abandonou o corpo físico e quando

abriu os olhos, estava na órbita lunar. Seu coração regozijou-se de alegria

quando um rosto gigantesco de Krishna apareceu diante de si. A encarnação de

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Vishnu abriu a boca e, como se olhasse para um imenso buraco negro, o vaixá

viu milhares de sóis, planetas, estrelas e astros. Em um movimento veloz, a

divindade literalmente engoliu Jahnu, que só conseguia repetir mentalmente

a louvação “Hare Krishna, Hare Rama”. Lumes cintilantes de todas as cores iam

e vinham dentro daquele universo extraordinário. Ele sentiu-se dentro de um

grande caleidoscópio. Percorrendo uma ponte dourada, foi parar em um palácio

com paredes cravejadas de diamantes. As portas descomunais estavam abertas e

ele entrou. No interior, ouvia-se uma música alegre. No centro de um grande

salão, dançavam dezenas de pessoas trajadas com vestes alaranjadas.

“Finalmente você chegou”, ouviu Jahnu, sem, contudo, conseguir localizar

de onde partira a fala. Andando por entre os homens e mulheres, ele procurava

e procurava. “Meu amor, você terá de fechar os olhos para me ver”, falou

novamente a voz, que tinha um tom de irresistível candura. Assim que o vaixá

fechou os olhos, o salão ficou totalmente vazio. A música ainda continuava e

o jovem deparou-se com um ser que irradiava intensa luz. Pensando estar

diante de um anjo ou de uma divindade, ajoelhou-se demonstrando reverência.

O espírito, tomando Jahnu pelas mãos, o fez levantar-se. Lentamente seu brilho

foi diminuindo, até que o poeta pôde vislumbrar a mulher mais linda diante

da qual já tinha estado. Ela trajava um ghagra choli cor-de-rosa com detalhes

bordados em branco e azul. Os cachos dos cabelos loiros caíam-lhe até a cintura;

os olhos azuis eram como pétalas de violeta bailando ao sabor do vento; o rosto

tinha tons como de pequenos morangos silvestres e os lábios a delicada sedução

de uvas prontas a serem colhidas da videira e suas mãos – pequenas e delicadas

– tinham o perfume de todas as rosas.

O poeta desviou o olhar, constrangido pelos farrapos que vestia. Ela

sorriu com indulgência. Quando olhou para si de novo, Jahnu percebeu

maravilhado que estava dentro de uma belíssima calça branca de linho e seu

sherwani era adornado com bordados prateados com fundo azul marinho. Ela

sorriu e, tomando-lhe as mãos novamente, beijou-as com ternura. Beijou-lhe

também a testa, os olhos e a boca. Como que em um passe de mágica, o casal já

não estava dentro do salão dourado. De mãos dadas, percorreram as estrelas

até pararem em cima de um asteróide. “Meu príncipe, sinto tanto a tua falta.

Estamos separados há muito tempo”, confidenciou. E Jahnu Mahajan compreendeu

o significado daquelas palavras em toda a plenitude. Tudo estava claro. Mas

apesar do êxtase de estar na eternidade junto com a alma gêmea, o poeta aceitou

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quando ela disse que era preciso ele voltar para cumprir sua missão. E um

longo e apaixonado beijo marcou a despedida do casal.

O vaixá sentiu um choque e, ao abrir os olhos, demorou a reconhecer

Jyotishi e Jay. Ambos estavam em concentração. Ainda sentindo o efeito do

elixir sagrado, sob o olhar de Jahnu, as figuras dos dois homens tremulavam

como a chama de uma vela. O mesmo ocorria com a floresta. O chão, coberto pelo

mato rasteiro, movimentava-se tal qual as ondas do mar. A lua estava

totalmente azul. Repentinamente, a atenção do poeta foi atraída para dentro

da floresta, envolvida pela escuridão total. Na clareira, as sombras das

árvores pareciam ter vida própria, aumentando e diminuindo de tamanho mesmo

sem os galhos e folhas serem conduzidos pelo vento. O filho de Sudhir Mahajan

tinha a impressão de estar cercado por centenas de espíritos curiosos – que

só não chegavam mais perto por causa do círculo de proteção que havia se

formado em torno dele e dos amigos. Ao olhar de novo, assustou-se por não

conseguir enxergar seus rostos. Era como se houvesse um borrão no lugar.

Intrigado, o poeta concentrou-se o máximo que pôde. Continuou sem ver nada,

até que como que sobreposta à face de Jay, viu a figura de um homem negro,

com vestes e pinturas tribais a sorrir larga e cordialmente. No caso de Vivek,

quem aparecia era um homem de olhos azuis, trajes europeus e ralos cabelos

brancos.

O vaixá voltou a atenção para o serviçal. Pela primeira vez desde que

retornara da Inglaterra, percebeu o ridículo da situação: ele - um miserável

- ter um servo. Na verdade, achou inconcebível qualquer homem servir a outro,

como se fosse uma propriedade. Foi quando lembrou-se de momentos felizes de

uma vida inteira passada ao lado do amigo e fiel companheiro. Jay, o sudra

que havia lhe salvado a vida quando foi expulso a socos e pontapés de sua

própria casa pelos ingleses e abandonado para morrer na estrada, sem ao menos

ser ouvido. Jahnu Mahajan então estremeceu. Como em um relâmpago e mesmo sem

ter estado presente fisicamente, a visão da expulsão do casal pelo seu pai lhe

veio à mente. Jay era a criança cujos pais optaram por deixá-la com outra

família para que não morresse de fome. Em seguida, seu coração foi invadido

por um terrível remorso quando percebeu que quase matara o pai do amigo.

Jahnu chorou de vergonha, pois a intuição lhe dizia que o companheiro também

recebera a mesmíssima revelação.

O choro despertou Jay e Vivek do transe. Devagar, o efeito da bebida ia

diminuindo, embora permanecesse intenso. Sem saber porque o mestre chorava,

Page 70: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

o serviçal veio e envolveu-lhe com o que um dia tinha sido uma capa.

Sensibilizado pela atitude, o poeta abraçou-lhe demoradamente e depois

declarou: “Perante a luz augusta de Krishna, determino que, doravamente, não

mais serás meu servo e sim meu amigo e irmão”. Depois de proferir as palavras

que assustaram Jay, Jahnu olhou-o nos olhos e disse: “Meu irmão, tive a mesma

revelação que tivestes sobre teus pais. Humildemente eu peço perdão por todas

as ofensas que lhe causei nesta ou em outras vidas, tanto passadas como

futuras. Não tenho ouro nem prata, mas divido contigo aquilo que tenho de

mais valioso: o amor ao Nosso Divino Pai Eterno”. Jay não soube o que responder

e com lágrimas nos olhos limitou-se a dizer: “Gratidão, Jahnu Ji”.

Quietos e com o coração pulsando de amor fraternal, os irmãos ouviam o

barulho preguiçoso e melódico do rio. “Será que Jyotishi é um asceta?”, por

fim perguntou Jahnu. Ao virarem para procurar pelo xamã, ele havia sumido.

Sozinhos novamente, os moços sentiram fome e se alimentaram de uma diminuta

porção de arroz e bananas. Recostado à grande pedra, o vaixá olhava fixamente

o céu, pululando os olhos entre as estrelas, dando a impressão de que buscava

o asteroide em que estivera junto da alma gêmea. Seus olhos então se fecharam

e Jay não se atreveu a pertubá-lo de tão tranquilo sono – mesmo o irmão tendo

como leito a grande pedra.

Page 71: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

17

Embora fino e intermitente, não era o zunido de um mosquito que

João Guilherme ouvia quando despertou. Também não era um som mecânico. De

todo modo, incomodava. Os olhos insistiam em não se abrir. Porém, desta vez,

ele conseguiu mover sutilmente o dedo mínimo da mão direita. Sentindo-se

exausto, mas com o coração tranquilo, não se assustou quando percebeu o colchão

se afundar no lado esquerdo. A presença que se manifestou, tocou-lhe a mão

esquerda com gentileza e disse: “João, amado irmão, estou aqui para pedir-lhe

que tenha bom ânimo. Tudo está correndo conforme acordado no astral superior.

Só mais um tempo e o véu da dúvida será descortinado”. O professor ouviu as

palavras de alento no plano físico, como se ouve quem está diante de nós em

uma conversa. A voz era de Eleanor. Ela ficou mais um tempo transmitindo

energias positivas pelo toque das mãos. Depois de despedir-se, partiu com a

mesma graça e leveza com que tinha chegado e o jornalista adormeceu novamente.

Sem sonhos, o sono foi profundo e restaurador. Horas depois acordou e,

novidade, conseguiu abrir os olhos por uma fração de segundos. Entretanto, o

corpo ainda continuava subjugado pela catalepsia. João tinha lido que nas

esferas mais sutis, a relação tempo/espaço desenvolve-se de forma totalmente

diferente do que acontece no plano físico. Por exemplo, às vezes adormecemos

às 22h e temos um sonho prolongado, mas quando despertamos e olhamos no

relógio, constatamos estupefatos que são apenas 22h05. Nessa perspectiva,

considerou que havia se passado por volta de uma semana desde que a projeção

astral começara, com seu pedido de luz. A bem da verdade, não era a falta de

referência temporal que incomodava João Guilherme e sim o fato de as projeções

não serem voluntárias, uma vez que ele não saía e retornava ao corpo por

vontade própria. Escarafunchando a mente, procurou recordar do conteúdo

teórico das oficinas de que tinha participado. Devia existir alguma coisa que

não estava sendo feita da maneira correta. Lembrou-se então da técnica mais

utilizada pelos praticantes do desdobramento astral: a elevação do estado

vibratório. O projetor visualiza uma esfera de luz branca sobre a cabeça e,

com a força do pensamento, vai deslizando-a devagar até a ponta dos pés. O

processo deve ser repetido aumentando-se a intensidade e velocidade da esfera

até que ela extrapole o corpo. A prática dura em torno de uma hora, que é

quando a pessoa começa a sentir o estado de balonamento, como se estivesse

flutuando e orbitando ao redor do próprio corpo. Esse é o momento mágico da

Page 72: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

saída. Era aí que as coisas não davam certo para o poeta. Depois dessa quase

uma hora, ele acabava dormindo e acordava no outro dia com uma remota

lembrança dos lugares por onde seu psicossoma tinha estado. Somente o último

sonho da manhã permanecia-lhe claro na mente. Como de hábito, antes de iniciar

o exercício, João fez uma prece à sua mentora espiritual – que agora conhecia

melhor – para que o guiasse pelos caminhos nem sempre agradáveis do astral.

Com paciência de Jó, pôs-se a colocar em prática o que havia aprendido.

Esforçou-se para ter bons pensamentos e emanar amor no coração, pois era isso

que determinava qual seria o destino no astral. Cumprida essa etapa e o

posterior aumento do estado vibracional, imaginou-se desprendendo do corpo

primeiro pela ponta dos pés - como se estivesse sendo elevado - depois pelas

pernas, tronco e braços e por último pela cabeça. Finalmente havia dado certo.

O corpo astral de João Guilherme rodopiou no ar, como os astronautas fazem

na gravidade zero, e foi imediatamente alçado às alturas. Tudo foi tão rápido

que o poeta nem conseguiu ver de que ambiente saíra, se de sua casa mesmo ou

de algum outro lugar.

“Jão das Letras, quer dizer, João Guilherme. As minhas escusas, meu

querido irmão. É a força do hábito”, disse Zé Pelintra com o sorriso maroto de

sempre. O professor ficou feliz em rever o amigo de longa data. “E bota longa

data nisso”, pensou em meio a um sorriso, lembrando-se de Jay.

- Salve mestre Zé!

- Salve mestre Jão.

- Então...

“Não, não, não. Nem me pergunte nada que Eleanor deixou instruções

claríssimas para que eu não respondesse a nenhuma das tuas perguntas. Que

mania que jornalista tem de ficar perguntando sem parar, oras”, revelou Seu

Zé utilizando toda a irresistível canastrice. “Eu requisitei vossa ajuda junto

a mentora para que o amigo me auxiliasse em um trabalho. Topas?”, completou

o exu. João sorriu e assentiu com a cabeça. “Mas vamos ter de esperar um pouco

ainda. Enquanto isso, o compadre bem que podia cantar uma musiquinha pra

ajudar a passar o tempo”, sugeriu malandramente Zé Pelintra. João Guilherme

conhecia alguns pontos e chamadas, mas nenhum daquele orixá específico, então

cantou um hino de louvor a Iemanjá. Quando terminou, foi aplaudido pelo

companheiro que, com um sorriso, pedia por outra canção. Deixando a timidez

de lado, o poeta cantou mais uma, duas, três músicas de Dorival Caymmi. Novos

aplausos. “Para ficar perfeito, só está faltando dançar. Se solta homem, eu

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sei que você sabe. Fui eu quem te ensinou. Sacode esse esqueleto”, provocou Seu

Zé. Baden Powell, Ney Matogrosso, Clara Nunes, Chico César e naturalmente,

Vinícius de Moraes. João cantava e dançava, girando e girando o corpo pelo

ar. De repente, passou a cantar músicas até então desconhecidas por ele, que

reconheceu como pontos de Umbanda. Zé Pelintra agora cantava junto. Os dois

amigos se divertiam feito meninos como nos velhos tempos da Lapa. Passado

mais algum tempo, fez-se um clarão, como de relâmpago, e a dupla foi parar em

um grande salão repleto de gente vestida de branco. As pessoas dançavam e

havia sons de atabaque no ar. A sala tinha o formato retangular e na parede

do lado oposto à porta, um altar enfeitado com muitas imagens e velas e um

senhor trajado igual a Seu Zé sentado em um banquinho posto em frente.

O professor precisou de um tempo para conseguir fazer a cabeça parar de

girar. Seu corpo respondia instintivamente ao ritmo da música. Enquanto

andava pelo salão, reparou o rosto de pessoas vestidas com roupas comuns

sentadas em bancos e cadeiras no fundo do terreiro. Uma moça em especial

chamou-lhe a atenção. Nem tanto pela beleza – estonteante - e sim pela

melancolia que se sobrepunha ao olhar atento e sensual. Ao contemplar a jovem,

João Guilherme sentiu na própria alma a dor que afligia o espírito daquela

filha de Deus. Dominada pela baixa auto-estima, ela prestava favores sexuais

em troca de dinheiro. O jornalista lembrou-se de mulheres com as quais já

tinha estado na mesma situação. Seu sentimento foi de compaixão e ao mesmo

tempo de tristeza por ter usado de expediente tão vil para satisfazer aos

desejos da carne, em detrimento do amor. Diante da fragilidade da praticamente

adolescente que tinha diante de si, João derramou uma lágrima por aquelas

que ao invés de oferecer uma palavra de carinho, ajudara a empurrar ainda

mais para o fundo do poço. A vontade foi de abraçá-la, de fazer acender uma

luz qualquer que fosse naquela alma atormentada. “Pois que assim seja”, o

professor ouviu soprarem-lhe no ouvido. Depois de cantar mais um ponto,

fechou os olhos. Quando abriu, estava sentado no banquinho em frente ao altar,

com as mãos repousadas na perna esquerda cruzada sobre a direita, como sempre

gostava de fazer. Ele não percebeu de pronto, mas seu psicossoma havia

substituído o do homem que ocupava o banquinho antes. Estendendo as mãos e

tocando o rosto, o jornalista examinou a nova casa, estranhando estar

habitando temporariamente outro corpo. Este era mais alto, esguio e bem mais

velho que o seu. Ao virar-se para trás, o poeta percebeu o titular em pé, com

a cabeça baixa em sono profundo. Ficava clara a situação de incorporação ou

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aparelhamento, como alguns diziam. Com um pouco de dificuldade, João

levantou-se e caminhou até a moça que lhe despertara a atenção. Antes de

chegar onde ela estava sentada, saudou as pessoas presentes, que ficaram

espantadas ao ver o senhor já encurvado pela idade a caminhar com

desenvoltura e a espinha ereta. Quando chegou na jovem, sem dizer uma palavra,

tomou-a por uma das mãos e a conduziu até o meio do terreiro. Depois, pousando

respeitosamente as mãos sobre seus ombros, a cumprimentou com um sorriso. Em

seguida sentou-se de volta no banquinho e deu ordens para que trouxessem

outro para a moça e colocassem de frente ao seu. João levou um susto ao falar

e ouvir sair uma voz que não era a sua. Solicitação obedecida, o poeta pegou a

mão esquerda da senhorita e a envolveu com as suas.

“Minha filha, nosso Senhor Jesus Cristo me concedeu a graça de vir hoje

a esta casa”, disse sussurrando em seus ouvidos. “Quando cheguei notei a

tristeza e a amargura da tua alma. Ao te olhar melhor, eu soube o porquê”,

acrescentou. Ele fez uma pausa e a garota começou a chorar. “Minha menina, o

amor de Deus é remédio para todos os males da matéria. Não se permita ser

menor do que aquilo que Divino Pai Eterno tem reservado para ti. Reconheça-

se como uma mulher capaz, que tem forças para vencer todas as agruras da vida

e dar a volta por cima. Não estou aqui para julgar se o que você faz é certo

ou errado. Isso não cabe a mim. Estou lhe falando estas coisas porque está

perfeitamente claro que essa situação também não lhe agrada, não é mesmo?”,

questionou com a ternura de um pai. Segurando o choro, a garota disse um sim

quase inaudível.

“Pois então, doce criança, Deus está sempre à disposição para ajudar os

filhos que lhe procuram com sinceridade. Você é jovem, inteligente e forte.

Volte a estudar, procure um trabalho pelo qual as pessoas te respeitem. Pense

no teu futuro, pense no teu filhinho. Sempre é hora de recomeçar”, aconselhou,

enxugando com os dedos as lágrimas da jovem. “Eu preciso fazer alguma oferenda

pro senhor?”, quis saber ela. O professor achou a pergunta esquisita, mas

respondeu calmamente: “Não, minha filha. A minha maior recompensa será saber

que você reencontrou, sob o manto misericordioso da Nossa Virgem Maria

Santíssima, a alegria de viver. Nos momentos mais difíceis, erga sua voz à Ela.

Pois Ela é mulher e todas as mulheres têm a Sua pureza e santidade”. João

Guilherme levantou-se e beijando as mãos da moça com carinho e com afeto, a

despediu. Foi quando percebeu que ele, ou melhor, o senhor que usava como

aparelho, era o centro das atenções e uma pequena fila de pessoas também

Page 75: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

buscando uma palavra de conforto tinha se formado. Virou-se para Seu Zé

Pelintra como que a pedir orientação. O olhar da entidade foi categórico: era

preciso levar conforto a todos os necessitados. Ciente da seriedade do momento,

João Guilherme recebeu cada um daqueles irmãos e irmãs. O último a ser

atendido era um senhor franzino e de aspecto triste. O homem tinha a cabeça

baixa e quando o professor tentou tocar-lhe a mão, este a retraiu, para logo

em seguida, constrangido, estendê-la de novo. O fato desagradável ainda

repetiu-se mais duas vezes, até que João notasse o que acontecia. Havia um

espírito desencarnado por trás do senhor a comandar-lhe os movimentos, assim

como o titereiro faz com o fantoche. O jornalista levantou-se e abraçando de

lado o homem atormentado, tentou ser o mais discreto possível para não

constrangê-lo ante os olhares curiosos. Falando tão baixo quanto podia,

questionou em tom educado, porém incisivo: “Quem sois vós que estais a obsediar

este pobre irmão, roubando-lhe a paz de espírito?” Não houve resposta. O poeta

preparava-se para repetir a arguição quando o corpo do homem estremeceu e

seu olhar foi de despeito como quando se é obrigado a falar a contragosto. “Eu

sou alguém que este infeliz tirou a vida e não vou descansar enquanto não

acabar com ele. Ele vai sofrer tudo que eu sofri também”, respondeu o espírito.

O tom de voz fez com que João Guilherme se lembrasse do sargento Savério, que

tinha lhe feito a mesma jura de vingança. Ainda que o abraço do poeta fosse

brando, o senhor tentava se desvencilhar e não conseguia, como se subjugado

por uma força superior.

“Meu irmão, quanto maior o ódio, pior será a tua existência fora da

matéria. É certo que este homem tirou-lhe a vida, mas ele assim o fez para

proteger a família. Não é certo que você tentou matar-lhe ao assaltar a sua

casa?”, argumentou o professor. “E quem é você pra me julgar? Você por acaso

sabe alguma coisa da vida desgraçada que levei?”, gritou de volta. Mesmo diante

do tom elevado, João continuou a falar baixo para que só o espírito ouvisse.

“Não, não sei. Mas nada justifica tirar a vida de um irmão, pois ela é um

presente de Deus e só Ele a pode tirar. Por isso eu te digo: busque a luz do

Nosso Senhor Jesus Cristo. É preciso evoluir. Seguir em frente. O amor e o

perdão são as forças mais poderosas do Universo”, disse repetindo o que ouvira

da boca do Rei Ogum. Aquelas palavras tocaram profundamente o espírito que,

após hesitar, suplicou: “E o que devo fazer pra me livrar dessa revolta?”

“Clame pela luz de Jesus Cristo. É essa luz que vai lhe dar a força para

perdoar este irmão. Ele já sofreu demais também. Agora é hora de andar para

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a frente. Vamos deixar o passado em seu devido lugar: lá trás!”, afirmou. Tão

logo o poeta terminou de falar, o corpo do homem tombou inerte em seus braços.

Depois de constatar que ele apenas dormia, recomendou aos dirigentes da casa

que lhe assistissem.

Tarefa cumprida, o professor procurou por Zé Pelintra. Quando o

encontrou, quis saber, pelo olhar, como i para sair do corpo do velho. “Olhe

pra cima e pense em Deus”, esclareceu o exu. Acatando a orientação, o jornalista

estava suspenso novamente no ar. Antes de sair definitivamente do Centro,

olhou uma última vez para a moça – agora recomposta - e viu uma luz violeta

a piscar no compasso de seu coração. João sentiu-se em paz e agradeceu a Jesus.

“E então, Zé? Como me saí?”, perguntou colocando a mão esquerda no ombro do

amigo. “Bem, tirando o fato de você ter quebrado quase todos os protocolos da

Umbanda, até que não foi tão ruim”, respondeu o Exu malandro zombeteiramente.

João Guilherme achou graça e brincou: “Deve ser porque Umbanda é coisa de

Preto Velho e eu ainda sou um preto novo”. Percebendo a piada grosseira,

fechou os olhos e desculpou-se com as entidades que trabalhavam naquela casa.

Depois, deu um longo abraço no irmão espiritual Zé Pelintra e ganhou as

alturas novamente.

Page 77: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

18

“Shhh!” - ouviu João Guilherme, como se alguém lhe orientasse a continuar

dormindo quando despertou. Não era um pedido difícil de atender, posto que

não conseguia abrir os olhos e nem se mover. Na verdade, achou até cômico o

paradoxo de estar com a mente a trabalhar intensamente enquanto o corpo

permanecia imóvel. E voltou a pensar na estrada percorrida desde que abraçou

o Daime. Agora era um ser espiritual bem mais ciente do papel na Terra. O

estilo de vida, exótico para muitos, refletia a sinceridade na busca pela

evolução. Mais do que nunca sabia que era uma alma vivendo uma experiência

humana e não o contrário. Embora desejasse, compreendeu que sua função não

era doutrinar ninguém e sim emanar uma luz que pudesse inspirar outras

pessoas a buscarem, também, a Consciência que lhes mostraria as maravilhas

reservadas a todos no coração do Pai Eterno. Decidiu que continuaria a

desempenhar a missão sem fanatismo, dogmas ou sectarismo. Ele usaria os

talentos de forma criativa e até mesmo divertida para levar a poesia contida

no pó das estrelas e que havia descoberto dentro de si para o maior número

possível de pessoas. Pensando assim, lembrou-se de dezenas de irmãos

espirituais que faziam o mesmo trabalho, algumas até sem o saber. Que

formidável reconhecer-se com um homem a quem fora confiado um labor tão

digno. Assim, agradeceu humildemente pela luz de todas as pessoas que passaram

por sua vida e confortado por tão doce sentimento, adormeceu.

O primeiro beija-flor chegou quando Jahnu ainda dormia. O segundo logo

depois que abriu os olhos. O terceiro veio tão perto que, por pouco, não foi

parar em sua mão. Os três pequeninos passarinhos, perdoada a redundância,

voaram por um tempo ao redor do jovem poeta e depois, como crianças traquinas

que acabaram de fazer arte, foram se esconder dentro da floresta. “Como nunca

notei a incomparável beleza de um nascer do sol?”, pensou ao ser tocado pelo

brilho da estrela matutina. O vento fez balançar-lhe a vasta e desgrenhada

cabeleira. O moço espreguiçou-se e foi até a beira do rio. De cócoras, diante

da água calma e cristalina, sentiu-se um narciso às avessas. Não era pelo seu

belo rosto que estava apaixonado e sim pelo que havia acima e além dele: a

alma imortal. Jay ainda dormia e Jahnu, pela primeira vez na vida, dentro

das limitações das circunstâncias, preparou um café da manhã para si e para

o irmão. Quando este acordou, encontrou mangas, bananas e metade de uma jaca.

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Jahnu Mahajan banhava-se no rio, com o pudor de manter-se submerso até a

altura do peito. Assim que terminou o banho, vestiu-se com a única roupa à

disposição e foi ter com o amigo. Havia assuntos urgentes a serem tratados.

- Jay Ji, amado irmão, nossa Mãe Índia não pode continuar a ser usurpada

pelos ladrões britânicos. Precisamos montar um exército para expulsá-los.

- Mas o que podemos fazer, Jahnu Ji? Eles têm armas e são muitos.

- Nós podemos estar desarmados, mas somos em número bem maior e

conhecemos estas terras melhor do que eles. E armas podem ser fabricadas – ou

roubadas. Eu vi em sonho o grande exército que libertará nosso povo. Nós

fazíamos parte dele.

- E por onde vamos começar?

- As pessoas não me conhecem e provavelmente não me darão ouvidos. Mas

com certeza ouvirão a Vivek.

Com a menção do nome de seu pai, Jay compreendeu o que o poeta estava a

lhe pedir. “Vivek se lembra de Jahnu e de Sudhir, mas não deu sinais de que

se lembra de mim também”, argumentou o sudra. “É por isso mesmo que devemos

procurá-lo. Ele não sabe que é teu pai”, rebateu o vaixá. A caminhada de volta

à vila foi longa e o sol castigou impiedosamente os jovens. Quando chegaram,

a pele queimada estava coberta de poeira. Ainda assim, foram reconhecidos de

imediato pelas crianças que brincavam na rua. Elas começaram a gritar no

intuito de chamar a atenção dos adultos. À algazarra dos pequeninos, somava-

se agora a das mulheres. Resolutos, Jahnu e Jay pararam na porta da casa de

Vivek. Desta vez, quem os atendeu foi Lalita, a filha mais velha. Mesmo em

trajes simples, a beleza da moça impressionava. Os olhos castanhos eram grandes

e amendoados; o rosto desenhava quase que o formato de um triângulo de ponta-

cabeça; as sobrancelhas eram grossas, cabelos escorridos e longos e um decote

generoso insinuava seios fartos. Seu olhar foi firme e tinha um quê de sedução.

Jahnu ficou desconcertado. Jay percebeu e adiantou-se: “Namaskar!

Humildemente pedimos para ser recebidos por Vivek Ji”. Sem olhar para aquele

que não sabia ser seu irmão, Lalita entrou na choupana e chamou pelo pai. Os

moços ficaram do lado de fora sob o olhar atento e desconfiado de quatro

adolescentes, que agora livres da penumbra da outra noite, não deixaram de

notar sua semelhança com Jay.

“Meu pai vai recebê-los”, disse a jovem olhando para Jahnu, assim que

voltou. As visitas entraram na casinha de dois cômodos e encontraram Vivek

sentado no primeiro. Ele não pareceu surpreso. Na verdade, demonstrava

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esperar pelos rapazes. Depois das saudações de praxe, o poeta tomou a palavra:

“Vivek Ji, eu estou aqui para, com humildade e respeito, pedir perdão pelas

ofensas cometidas. Elas foram fruto de uma mente turvada pela ignorância e

pelo preconceito. Nós somos todos irmãos, filhos do Grande Pai Krishna e o Seu

Santo desejo é que vivamos em harmonia”. Ainda que impregnadas por um excesso

de formalismo, as palavras do vaixá soaram sinceras ao ancião. “Eu aceito o

pedido de perdão, Jahnu Ji. E também peço perdão pela forma como o tratei,

pois não tens culpa pelas atitudes de vosso pai”, replicou com amabilidade.

– Há um outro assunto de suprema importância que desejo lhe falar, se

me permite.

- Sinta-se à vontade.

- Como filhos queridos desta terra sagrada, temos o dever moral de

protegê-la. Os ingleses não podem vir e saquear as nossas riquezas. Precisamos

reagir.

- E como pretendeis fazer isso?

- Formando um exército.

- Estou velho demais para pegar em armas.

- Vivek Ji é um grande líder, respeitado por todos. Os homens obedecerão

vossa convocação. Da luta cuidamos eu e meu irmão Jay.

O velho olhou para o sudra e este teve certeza de que, ao contrário do

que imaginara, seu pai sabia sim quem ele era. Ademais, a semelhança física

era impressionante. “O ímpeto natural da juventude lhes impede ver as coisas

da maneira correta. É certo que estamos sendo humilhados dentro do nosso

próprio lar por um inimigo impetuoso e ganancioso, mas tudo que acontece aqui

na Terra tem um propósito maior. Até mesmo isso. Meus filhos, nós nos afastamos

da luz divina por causa do pecado e agora os deuses nos punem. Os ingleses

sairão do nosso país da mesma forma que entraram. Não será preciso um exército

armado para expulsá-los. As armas que irão derrotá-los são a paciência, a

mansidão e o amor. Olho por olho e logo estaremos todos cegos”, discursou.

Ainda que muitíssimo transtornado pelo que considerou conformismo de Vivek,

desta vez Jahnu não começaria nenhuma confusão. Ele apenas levantou-se,

saudou o anfitrião e pediu licença para sair. Do lado de fora, olhou para a

pequena multidão que se formara e pensou: “Eu mesmo vou arregimentar um

exército. Se Vivek é um covarde, eu não sou”. Jay não saiu imediatamente. A

sós com o pai, a vontade era de abraçá-lo e pedir-lhe a bênção, mas o velho

mantinha a distância de forma contundente, embora o brilho de seus olhos

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demonstrasse que gostaria de fazer o mesmo. No fundo, ele sentia-se

envergonhado por ter abandonado o filho. Quando o jovem se preparava para

sair, Lavanya, a mãe que nunca conhecera, entrou no aposento. Ela chorava

quando abraçou fortemente Jay e lhe cobriu o rosto de beijos chamando-o de

filho sem parar. O pai não resistiu e também o abraçou. Depois pediu-lhe

perdão e o abençoou. Madhu, Nalini, Sahana, Udaya e Lalita também vieram

abraçar o irmão.

De volta à velha choupana de Jay, a única coisa em que Jahnu conseguia

pensar era em como convencer os homens da cidadela a segui-lo em seu intento.

Oferecer dinheiro não podia, pois também não tinha. Quem sabe pudesse pagá-

los depois de reaver as terras? Ou talvez se revelasse o sonho que tivera

sobre o exército? Nenhuma das alternativas pareceu plausível. Enquanto

matutava sobre o assunto, esperava Jay voltar com a lenha para acender o

fogo, pois tinham ficado sem nenhuma quando abandonaram o lugar e fora uma

sorte encontrá-lo ainda vazio.

O vaixá estava nos fundos da choupana quando ouviu barulhos de alguém

entrando. Contente pela volta do irmão, apressou-se em ir ajudá-lo com a

lenha, pois o almoço naquele dia seria por sua conta. O barulho continuou no

segundo cômodo e parou. Tal atitude não era usual de Jay, sempre tão disposto

ao trabalho. Quando foi conferir o que acontecera, Jahnu Mahajan constatou

que não se tratava do sudra, e sim de sua irmã Lalita. O moço conteve qualquer

palavra - não por timidez - mas por não ter ideia do que dizer diante do olhar

ardente de desejo da jovem. Mas se ele não sabia o que fazer, ela parecia saber

muito bem. Aproximando-se, atirou-se em seus braços e, enquanto tentava

beijar-lhe a boca segurando-lhe a nuca com a mão esquerda, tocou-lhe a

virilidade com a direita. Jahnu teve a reação natural de qualquer rapaz na

flor da idade. Com o corpo pegando fogo e prestes a ceder às carícias atrevidas,

o poeta repeliu-a com veemência. A atitude, incompreensível para Lalita, era

porque, para o poeta, tratava-se da irmã do amigo de infância e isso seria um

desrespeito sem tamanho. Segundo, porque lembrou-se da mulher que encontrou

no plano astral depois de ter tomado a bebida sagrada. “Não tenha medo.

Ninguém sabe que estou aqui”, argumentou a senhorita. “Você não entende”,

redarguiu Jahnu. “Não entendo o quê? Que sou uma sudra e você um vaixá? É

isso? Eu não sou digna de tua casta?”, explodiu em revolta. Antes que o moço

pudesse dizer algo, sofreu nova investida. Desta vez, Lalita tinha se

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desvencilhado das roupas. “Por favor, não faça isso. Eu não posso. Eu não

quero”, enfatizou o vaixá. “Eu te amo, Jahnu. Eu te amei desde o primeiro

momento em que ouvi a tua voz”, confessou entre lágrimas. Sem olhar para ela,

Jahnu Mahajan limitou-se a dizer “sinto muito”. A sudra vestiu as roupas e

com uma forte convicção no olhar disse: “Você só está confuso. Mas não faz mal,

eu sei esperar. Com o passar do tempo, você vai ver que sou a mulher certa

para ser a mãe de seus filhos”. Assim que passou pela pequena porta de entrada,

defrontou-se com o irmão. Diante da situação embaraçosa, inventou uma

desculpa: “Meu pai mandou convidar você e Jahnu Ji para tomar chai esta

noite”. Dito isto, voltou com pressa para casa. Ao olhar para o amigo, Jay

desconfiou de que algo estava errado, mas ficou calado. Constrangido, o amigo

tomou a lenha de seus braços e tratou de acender o fogo. Feita a refeição, ou

algo parecido com uma, o poeta teve a ideia de voltar à beira do rio onde tinha

passado a noite para meditar. Desta vez sozinho. Ao chegar no local, horas

depois, lembrou-se de que não trouxera a moringa com o resto do elixir

preparado por Jyotishi. Mas isso não tinha importância. Ele só queria ficar

em paz. E foi com enorme contentamento que Jahnu viu que a grande pedra em

que tinha dormido estava totalmente coberta pela sombra de um imenso

carvalho. Posição de lótus. Silêncio. Concentração. Meditação.

A beberagem parecia estar fazendo efeito novamente. O uivo do vento a

vagar no meio das árvores, a voz constante e melódica da correnteza do rio e

a passarada em algazarra lentamente foram deixando o vaixá em transe e ele

viu-se mais uma vez em sonho armado como soldado na antevéspera da batalha.

O general do batalhão insistia em ficar em sua biga em cima do monte. Porém,

desta vez, Jahnu conseguiu enxergar seu rosto. Era um homem belo. O imenso

bigode conferia-lhe um ar de autoridade e intrepidez. Prestando um pouco mais

de atenção, o poeta percebeu que havia uma segunda pessoa no veículo de guerra,

muito embora não conseguisse distinguir-lhe a figura. Do outro lado do monte,

Jahnu viu centenas de homens com fardas azuis. A prova era inequívoca. Um

poderoso exército expulsaria os invasores. A visão durou poucos segundos.

Depois dela, o vaixá não viu mais nada e entrou em um estado de relaxamento

profundo. O sol tocava o horizonte no triste itinerário de todo dia, quando o

poeta abriu os olhos. Imóvel e em silêncio, foi capaz de notar o vai e vem da

respiração. Ele sentia que havia um segundo corpo dentro do seu. Não físico,

palpável, e sim menos denso e disforme. Envolvido pela graça do momento,

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entoou – em sânscrito - o Gayatri mantra – a oração universal ensinada por

Krishna.

Sua voz era melodiosa, resultado das aulas de teatro e canto tomadas em

Londres. Quando chegou ao fim da décima quinta repetição, sentiu que era

observado. Novamente julgou ser Jay. Novamente estava errado. Seu coração

vibrou de contentamento quando, ao virar-se, viu a amada. A mulher de beleza

divina de quem beijara a boca durante a projeção astral. O poeta sorriu e seu

sorriso combinava alegria desmedida de menino com a paixão sem limites de um

homem. Ela também sorriu. O sorriso era de recato. Ele fechou os olhos na

esperança de elevar-se novamente com ela. E assim ficou esperando por

instantes. Porém, nada aconteceu. Aflito, abriu os olhos a musa havia partido.

O reencontro não tinha sido como Jahnu queria, mas mesmo assim ele não se

cabia de felicidade e o coração foi tomado pela poesia. Ele tinha que voltar

logo para casa. Era preciso escrever.

Quando chegou à choupana, já de noite, ignorou a pressa de Jay em ir à

casa dos pais para tomar chai, em convite comunicado por Lalita. “Meu amado

irmão, vá sozinho e apresente minhas escusas à tua família. Eu tenho de ficar”.

A reação do sudra foi de decepção e por isso Jahnu resolveu contar o encontro

astral quando foi engolido por Krishna e acabou conhecendo a alma gêmea. Jay

ouviu o relato atento e maravilhado. Quando o amigo terminou de falar,

perguntou: “E como ela se chama?” Dando-se conta de que tinha deixado escapar

detalhe tão importante, Jahnu Mahajan socou a própria cabeça como a dizer:

“Estúpido!” Assim que o amigo saiu, o poeta ficou decepcionado porque não tinha

nem onde nem como escrever o poema. Porém não se deu por vencido e usou a

capa de Jay como papel e um pedaço de carvão que sobrara da fogueira como

lápis.

“Ó doce amada

que meus versos tenham o dom de despertar em ti

as lembranças de outras vidas

quando nossas almas eram uma só

e vagavam em harmonia pelos confins do Universo

Que a noite,

abençoada pela luz da lua

e pelo brilho dos astros,

Page 83: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

seja o manto a nos aquecer

neste inverno que não tardará a passar

para dar lugar à mais linda das primaveras

E o nosso lar será a pétala da rosa pequenina

as águas das cachoeiras

as asas do beija-flor

o ventre da Mãe Terra

e a vastidão das estrelas”

Assim que terminou de escrever, dobrou o pano e guardou dentro de um

alforge. Ainda que estivesse sem sono, o desejo era dormir logo para sonhar

com a amada e perguntar-lhe o nome. Como Jay não voltava do chá na casa da

família, resolveu ir até lá. Quando chegou, encontrou o lugar em festa.

Flautas, pandeiros e cítaras marcavam o ritmo dos mantras entoados em louvor

a Krishna, Shiva e Ganesha. “Jahnu Ji, venha dançar conosco”, convidou o amigo

e irmão. “E por que não?”, considerou o poeta. E assim cantou e dançou como há

muito não fazia. A alegria era tanta que podia passar a noite toda naquela

confraternização. Apenas o olhar insistente de Lalita o incomodava. Quando o

brilho da lua atingiu seu ápice, Vivek deu ordens para a música parar e puxou

em voz alta: “Ó vós, infinita e sagrada Presença Divina, altíssima fonte de

toda vida! Abençoado seja o vosso sagrado nome! Nós nos prosternamos aos vossos

pés; nós vos rendemos ação de graças; nós vos glorificamos por vossa majestosa

presença no Universo: porque vós sois Eu Sou o Eu Sou”. Após breve pausa, a

pequena multidão continuou em uníssono a oração de Krishna. Quando o “assim

seja” foi pronunciado, ninguém disse mais nada e todos se retiraram

silenciosamente com o coração em júbilo.

De volta à salinha apertada da choupana, Jahnu Mahajan confidenciou ao

amigo que tinha escrito um poema que entregaria à amada quando finalmente a

reencontrasse. Ao deitar-se, recebeu o tão aguardado sono de braços abertos. O

breu que reinava no ambiente impediu que o poeta enxergasse o que quer que

fosse quando abriu os olhos no sonho. Ele sentiu falta do brilho da lua e com

estranheza percebeu que estava em pé. O ponto de luz que se insinuava à meia

distância era diminuto. Intuitivamente, decidiu caminhar até ele. Não deu nem

dois passos e sentiu como que caindo em um abismo. “Luz!” o grito saiu

automaticamente, sem querer. E todo o ambiente clareou. Melhor teria sido

Page 84: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

ficar no escuro. Centenas de corpos estraçalhados jaziam no chão. O odor azedo

de sangue dominava o ar. Em pé, no meio de uma multidão de cadáveres, estava

Jahnu empunhando uma espada coberta de sangue. Cerca de vinte metros à

frente, havia um inimigo de farda vermelha montado em um cavalo branco e

também armado de espada. Golpeado pelas esporas do cavaleiro, o corcel empinou

e relinchou como uma besta fera, partindo enlouquecido na direção do vaixá.

A fúria do golpe do poeta fez com que o oponente despencasse da montaria.

Agora no mesmo plano, a contenda seria mais justa. O ódio no olhar dos dois

homens atestava que aquela era uma batalha particular, que suplantava a luta

pela independência da Índia. O guerreiro indiano urrou como um louco quando

finalmente sua espada atravessou o peito do soldado inglês. Ao examinar

melhor, viu que se tratava de um oficial e sorriu de satisfação.

O sorriso continuou estampado no rosto quando Jahnu acordou. Ao seu

lado, o irmão dormia o sono dos justos. Feliz, ainda que ofegante, saiu da casa

pela porta dos fundos e foi olhar as estrelas. Assim ficou até todas elas

sumirem com a chegada do sol. “Jay Ji, sonhei de novo. Desta vez foi diferente.

A vitória é nossa, querido irmão”, relatou esfuziante, detalhando o sonho,

quando o amigo veio ter com ele. “Se os homens desta vila não querem lutar,

com certeza não será difícil achar quem queira em outro lugar”, completou.

“Jahnu Ji, eu nunca lhe disse não. Mas agora é diferente. Eu reencontrei

minha família e vou ficar com ela”, disse timidamente o sudra. O poeta olhou

qualquer coisa desapontado para o amigo, todavia compreendeu a situação. “Pois

bem, então irei sozinho”, pensou. Com a mão sobre o ombro do irmão quis saber:

“E como vocês farão para sobreviver em meio a esta miséria?” “Eu e Lalita

vamos trabalhar para os ingleses que estão ocupando a casa do teu pai”, revelou

Jay.

- O quê? Você enlouqueceu, homem?

- Não, eu não enlouqueci. Mas há tempo para tudo debaixo da Terra. Tempo

de lutar e tempo de esperar. Este é o momento de esperar.

- Mas logo lá?

- O que se comenta é que eles estão contratando e eu não tenho escolha.

A fazenda não é tão longe e posso vir cuidar da minha família nos dias de

folga.

Jahnu Mahajan não tinha palavras diante do que acabara de ouvir e antes

que contra-argumentasse, o irmão soltou de supetão: “Por que você não vem

comigo?” “Isso só pode ser brincadeira, Jay. Como posso ser um mero

Page 85: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

empregadinho na casa onde fui criado como um príncipe?”, vociferou. A proposta

tinha soado tão insana que o poeta nem percebeu a agressividade do destempero

verbal. O clima ficou pesado entre os dois e o vaixá decidiu partir

imediatamente. Foi só o tempo de recolher os poucos pertences e colocar o pé

na estrada. Na rua, consultou alguns homens sobre a localização da vila mais

próxima e partiu sem olhar para trás, desprezando totalmente os apelos de

Lalita para que ficasse. Ao deparar-se com o irmão mais velho, a jovem olhou-

o com ódio.

O poeta tinha andado muitos quilômetros quando a noite chegou. Exausto,

com fome e sedento, resolveu parar e pernoitar debaixo de um grande carvalho.

Uma pequena fonte próxima resolveu o problema da sede. O da fome ficou sem

solução. Nem a moringa com a bebida preparada por Jyotish ele se lembrara de

trazer, tamanho o desgosto com Jay. Sem habilidade para acender uma fogueira,

encolheu-se junto à árvore e se esforçou para dormir, na esperança de ter

alguma revelação. O sono começou agitado. Imagens confusas se alternavam em

sua mente como a luz do vagalume que se acende e apaga. Quando as visões

cessaram, o primeiro golpe foi nas costas, o segundo na cabeça e o terceiro nas

pernas. Sem saber por quem e por quê, Jahnu estava sendo espancado. Pensando

estar novamente na batalha, levantou-se bradando “morram, ingleses malditos”.

Obra do acaso, foi justamente esse rompante que lhe salvou a vida. “Basta!”,

ordenou uma voz de homem. Em seguida, foi acesa uma tocha e colocada próxima

ao rosto do vaixá. “Ah... é apenas um sudra! Essa raça de covardes. Só são

valentes quando estão dormindo”, continuou a voz desconhecida. Somente ao

levantar-se é que o poeta percebeu que não estava sonhando. Era o segundo

espancamento em poucos dias e isso ele não iria aceitar. Muito menos ser

chamado de sudra e de covarde. Com a fúria de um tigre, pulou em cima do

primeiro agressor que viu e o esmurrou. O segundo foi jogado para longe como

um pedaço de pano. O terceiro veio em sua direção com um punhal na mão, mas

foi impedido com veemência por aquele que parecia ser o líder do bando. “Parem!

Este sudra é diferente. É forte e sabe lutar. É de homens assim que estamos

precisando”, disse com voz de comando.

- Estamos formando um exército para expulsar os invasores ingleses. Você

tem coragem de lutar para libertar seu país, sudra?

Page 86: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

- Eu não sou um sudra! Sou um vaixá. Meu nome é Jahnu Mahajan, filho

de Sudhir Mahajan. Estou nesta condição porque as terras de meu pai foram

usurpadas pelos ladrões britânicos.

- E onde ficam essas terras?

- A cerca de um dia de caminhada daqui rumo ao norte.

Os homens - cinco ao todo - se entreolharam e ficaram muito felizes com

o que tinham acabado de ouvir. “Eu me chamo Samarjit e estes são Dhiren,

Chaya, Bhadrak e Amish. Você deve estar com fome, não é mesmo?”, disse o líder.

Pouco depois, com a fogueira acesa, comeram pães e frutas. Todos alimentados,

Samarjit - o chefe - quis saber mais detalhes do infortúnio de Jahnu. História

contada, o cabeça do bando propôs: “Meu irmão, as terras de teu pai ficam

justamente entre nosso acampamento e a fortaleza que os ingleses estão

construindo. Se eles conseguirem terminá-la, nossa vitória será impossível.

Por ironia do destino, o comandante deles está instalado justamente na tua

antiga casa. Precisamos saber quantos são e que armas têm. E é aí que você

entra”.

- Eu? Como?

- Ora, pelo que contou, você morou lá quase que a vida inteira e

obviamente conhece o lugar como a palma da mão. Deve saber muito bem entrar

e sair sem ser visto.

O espírito de Jahnu regozijou-se diante da iminente chance de vingança.

“Pois bem, podem contar comigo”, exclamou. O dia ainda não tinha nascido quando

o poeta tomou o caminho de volta e para não passar novamente no vilarejo de

Vivek, teve de dar uma grande volta.

Page 87: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

19

Como quando se está lendo um livro com voracidade e se é obrigado a

parar, João Guilherme percebeu que despertara e estava de volta da projeção

astral. As lembranças de cada momento dos desdobramentos estavam tão vivas

na mente, que ele nem se importou com o fato de ainda não ter recobrado a

memória recente do plano físico. Como o repórter que se organiza para escrever

uma grande matéria, começou a fazer um apanhado de tudo que tinha visto de

duas de suas encarnações anteriores. Um detalhe em particular o deixou

sobremaneira incomodado: quando Jahnu encontrou-se com Amparo pela primeira

vez no astral, ela disse que estava o esperando há muito tempo. Mas como? Pelo

que pôde entender, eles – Jahnu e Amparo - ainda não se conheciam, tanto que

ele não soube o nome dela. Isso só podia significar que Amparo estava

desencarnada à espera do amado que, por sua vez, estava no plano físico. Ou

seja, eles se conheceram em uma existência anterior àquela e só ficariam juntos

depois da morte de Jahnu Mahajan. Por algum motivo ainda desconhecido, os

dois reencarnaram no Rio de Janeiro – ele como João Maria e ela como Amparo

- e viveram um tórrido caso de amor que terminou em tragédia. Analisando

tudo isso, João Guilherme sentiu compaixão por Jahnu, só para, em seguida,

dar-se conta de que ele e o indiano eram a mesma alma. O vacilo o fez achar

graça de si mesmo. Contudo, o riso logo foi embora, pois se ele, enquanto João

Guilherme Ribeiro, também não conhecia ninguém com o perfil de Amparo (ela

sempre tinha a mesma aparência e ele não), isso significava que só a conheceria

depois que morresse ou nesta mesma encarnação? E por que ele tinha

reencarnado em Cuiabá e não novamente no Rio? Aflito, clamou em prece pelo

auxílio de Eleanor. Para sua decepção, desta vez ela não veio. Cego, surdo,

mudo e imobilizado pela catalepsia, não lhe restava alternativa senão fazer

aquilo em que tinha se tornado um especialista: esperar.

O tempo passava e o sono não vinha. O poeta estava cansado de saber que

a projeção só acontece em estado de relaxamento total. Mas como relaxar diante

daquela situação de angústia? Lembrou-se então que aprendera em um livro

uma técnica para esvaziar a mente e conectar-se à Consciência. Era simples:

bastava ficar em silêncio e observar a respiração. O truque, se é que se pode

chamar assim, residia no fato de que por ser disforme, ao prestarmos atenção

nela, calamos nossos pensamentos e nos ligamos ao presente, passando a sentir

o chamado corpo interior – o espaço vazio entre as moléculas de nosso corpo

Page 88: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

físico. A essência divina. Teoria revisada, João tratou de colocá-la em prática.

Não demorou muito para adormecer. Na verdade, sua conexão com a Consciência

estava tão alta, que pôde perceber os olhos se fechando como que em câmera

lenta.

Quando recobrou a visão, de volta ao plano astral, o jornalista estava

parado em frente à uma porta fechada. Para trás de si havia somente escuridão.

Logo, a única coisa a fazer era seguir adiante. Ele tentou atravessá-la e não

conseguiu. “Então vamos da maneira tradicional”, pensou. Girou a maçaneta,

abriu a porta e entrou. Do outro lado havia um homem sentado e de cabeça

baixa. “Olá, irmão!”, cumprimentou inseguro. “Olá, João Guilherme! Então

finalmente estamos frente a frente”, respondeu o espírito. Por um instante o

professor julgou que era o sargento Savério, mais uma vez buscando vingança.

Julgou errado. Quando o homem levantou a cabeça, João tinha diante de si uma

figura horripilante. “Quem é você?”, tomando coragem, perguntou. “Como quem

sou eu?”, disse a entidade friamente. O poeta olhou de novo. Mesmo naquela

cara carcomida por manchas asquerosas, era impossível não notar o formato da

boca, do queixo e do nariz. E o olhar era inconfundível. João Guilherme tinha

encontrado a si mesmo. “Não precisa dizer nada. Eu sei o que está pensando.

Aliás, eu conheço cada um de seus pensamentos. Quer saber o porquê desta forma

decadente, não é? Pois digamos tratar-se do reencontro entre criador e

criatura. Isso mesmo, mestre. Eu sou o resultado de cada boa ou má ação, cada

bom ou mau pensamento teus em todas as encarnações já vividas. Fique sabendo

que esta aberração aqui lhe fez companhia a vida inteira e você não a via.

Mas fique feliz por ver-me agora. Se minha aparência lhe causa asco é porque

não me vistes em outros tempos. Antes, uma sabedoria intrínseca era o teu guia

e cada passo bem sucedido na evolução espiritual me diminuía

proporcionalmente a feiura e cada má ação piorava ainda mais a minha forma.

E assim será até o dia da tua morte, só que com uma pequena diferença. Antes

você não me enxergava e agora não vai conseguir deixar de me ver. Eu serei o

reflexo vivo e presente de todos os teus atos. E tua missão será transformar-

me em um ser de perfeita luz. Quando isso acontecer - se acontecer - então nos

tornaremos um e o medo da morte não mais existirá”, palestrou. O professor

permaneceu em silêncio até que o espírito continuou: “Vês esta porta atrás de

mim?” “Sim”, respondeu João. “Pois bem, não ouses percorrer a estrada que há

por trás dela se não estiveres disposto a honrar o mais sagrado dos

compromissos, pois terás nas mãos o poder de interromper o ciclo

Page 89: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

reencarnatório de tua alma. Mas lembre-se: enquanto não tiveres me

transformado em um ser de luz, por meio de boas ações e expiando no mundo

Terra os pecados, terás de voltar à matéria, sempre em um novo corpo. Se fores

bem sucedido nesta missão, eu mesmo virei como anjo da morte para que renasças

para a eternidade. Mas não se preocupe, pois não terás nenhum medo de

abandonar a vida. Pelo contrário, esse será um dia de júbilo”, acrescentou.

Antes de tomar a decisão, o jornalista olhou firmemente para o seu corpo

cármico materializado e conseguiu enxergar nele traços de beleza e de luz.

Isso lhe deu confiança para seguir em frente. Assim que passou pela segunda

porta, começou a caminhar em um mundo totalmente novo. Sua busca passava a

ser muito mais um processo de retificação de caráter e os primores e

maravilhas que enxergava quando tomava o Daime ficavam agora em segundo

plano. Enquanto caminhava por uma longa estrada, viu centenas de outras

pessoas. Cada uma delas, assim como ele próprio, acompanhada de perto pelo seu

guardião. Embora destemido na maioria das vezes, João Guilherme jamais

imaginara que chegaria naquele nível de evolução ainda nesta encarnação.

“Pedi e abrir-se-vos-á”, lembrou-se da promessa de Jesus.

Foi só pensar no Cristo Planetário que lhe veio à mente que precisava

retomar a regressão até a época em que era indiano e se chamava Jahnu Mahajan.

Havia vários bancos vazios na espécie de alameda pela qual caminhava.

Sentando-se em um deles, fechou os olhos e concentrou-se. Até o momento o

poeta tinha sido uma testemunha ocular e passiva de suas existências

pregressas. Era como se assistisse ao filme da própria vida. Desta vez, contudo,

algo diferente e surpreendente ocorreu: quando abriu os olhos, João era

novamente Jahnu. Sua Consciência estava de volta ao corpo que ocupara há

quase trezentos anos. Ou pelo menos metade dela, pois havia incorporado

parcialmente no corpo do indiano. Ele já tinha passado por essa experiência

diversas vezes no Daime, embora lá tivesse sido o aparelho e não o espírito

visitante. A princípio, essa dualidade lhe causou certa confusão, pois não

sabia se de fato tinha voltado no tempo e com poder de influenciar nos eventos

de uma encarnação anterior ou se ele, João Guilherme, tornara-se, assim como

Eleanor, um mentor espiritual, só que de si mesmo.

Depois de um dia e meio de jornada, Jahnu Mahajan finalmente chegou ao

seu destino. Dali a pouco o sol já iria se por. Era bom estar de volta ao lar,

ainda que na condição de espião. Ele entrou nas terras do pai pelo lado sul,

Page 90: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

por onde passava o rio de águas cristalinas no qual se banhara tantas vezes.

Parado na margem, percebeu que estava bem próximo ao local onde tomara o

elixir sagrado e vira a amada pela última vez. Cerca de vinte metros abaixo,

reconheceu a ponte improvisada de pedras que ele e Jay usavam na infância

para atravessar para o outro lado ou para brincadeiras, como para ver quem

conseguia ficar mais tempo equilibrado em uma perna só. A lembrança fez com

que Jahnu risse. João riu também. A primeira missão de reconhecimento teria

de esperar até a noite alta. Enquanto isso, escondeu-se atrás da grande pedra

na clareira e aguardou. Com os olhos de Jahnu Mahajan, João Guilherme olhou

para os lados e viu o misterioso Jyotish em silêncio. Diante da indiferença

do vaixá, o professor constatou que este não tinha visto o xamã. Por causa

disso, passou a considerar que, muito provavelmente, Jahnu ignorava que

carregava dentro de si outro espírito. E de repente, o jornalista foi tomado

por outra curiosidade: será que ele conseguiria olhar em volta sem usar os

olhos de sua encarnação indiana? Girando o pescoço, constatou que sim. Próxima

dúvida: seria possível comunicar-se diretamente com Jahnu Mahajan? “O que

disseres, ele interpretará como sendo pensamento próprio”, esclareceu

Jyotishi, surgindo como que por encanto. “Você até pode tentar alertá-lo de

alguma coisa, mas será sempre dele o julgamento se o conselho da voz em sua

cabeça foi bom ou mau. Ou como acontece na maioria das vezes, por mais sábia

que seja a orientação, a pessoa pode, para desgosto do espírito auxiliador,

simplesmente não aplicá-la em sua vida”. “Eu sei muito bem como é isso”, disse

João, reconhecendo a própria teimosia.

Após algumas horas em vigília, Jahnu decidiu que tinha chegado o momento

de agir. Levantou-se e tomou o rumo em direção à casa grande. O labirinto

formado pela vegetação do jardim que sua mãe Induma idolatrava ajudaria a

conservá-lo no anonimato. Com a desenvoltura do Minotauro na ilha de Creta,

o vaixá percorreu os intrincados corredores e chegou ao primeiro destino.

Quem olhasse assim, jamais diria que o lugar havia se transformado em uma

espécie de quartel. Silêncio absoluto. Apenas três soldados vagavam pela

imensa varanda. Era preciso saber quantos estavam dentro da propriedade e

nos fundos e quantos estavam nos alojamentos dos criados.

Arrastando-se pela grama, o poeta chegou até a parte de trás e, péssima

surpresa, havia dez tendas armadas. Pelo tamanho, calculou que caberiam

quatro homens em cada. Com os três da frente e talvez mais uns dez nas três

dependências dos criados, resolveu arredondar para sessenta a quantidade de

Page 91: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

inimigos, incluindo o comandante do batalhão, instalado na casa grande.

Primeira missão completada, era preciso todo o cuidado para fazer o caminho

de volta. Enquanto o vaixá ladeava a casa, arrastando-se de cabeça baixa, João

Guilherme percebeu na calçada lateral, vinda da varanda, a projeção da sombra

de um homem que parecia estar armado de um rifle. “Jahnu, cuidado, tem um

guarda ali na frente”. Diante da indiferença do indiano ao aviso, o brasileiro

gritou com todas as forças que conseguiu reunir. Finamente Jahnu Mahajan se

deteve e viu a sombra. Foi preciso um longo tempo de espera até a sentinela

afastar-se. Caminho livre, o jovem prosseguiu com a saída estratégica. João

olhava em todas as direções procurando por algum guarda. Quando o vaixá

chegou perto do jardim, pensando ter o caminho livre, acelerou os movimentos.

Desaparelhando, o jornalista foi na frente e topou com dois soldados que

fumavam atrás dos arbustos. De lá gritou novamente para o indiano. Como se

não tivesse ouvido, o indiano continuou seu trajeto. João Guilherme berrou

mais uma vez. O vaixá não se deteve e o professor concluiu que a comunicação

só era eficaz quando estivessem aparelhados. João ainda tentou voltar e

retomar a incorporação, mas era tarde demais. Jahnu, ao passar por baixo do

arbusto, entregou-se de mão beijada aos soldados. Espantados com a repentina

aparição, eles prenderam imediatamente o invasor, que não ofereceu

resistência. Não houve agressão física desta vez e o indiano foi levado pelos

braços até uma das casinhas dos empregados. No meio do caminho, o professor

aparelhou novamente, já pensando em como ajudar.

“Tenente, encontramos este miserável se arrastando por baixo dos

arbustos”, disse um dos soldados. Ao ser chamado de miserável, Jahnu esboçou

uma reação. “Calma! Nem pense em reagir ou revelar a identidade”, ordenou

João. Jahnu Mahajan não reagiu. O oficial olhou para o intruso com desprezo

e tédio. Depois de dar uma tragada no cigarro, questionou: “Quem é você e o

que está fazendo aqui a esta hora da noite?” “Diga que é um sudra procurando

por trabalho”, orientou João. “Eu sou um sudra procurando por trabalho”, disse

Jahnu.

- E por que estava se arrastando no chão?

- Diga que estava perdido e resolveu esperar o amanhecer.

- Eu estava perdido e resolvi esperar o amanhecer.

O tenente olhou com surpresa para Jahnu, não por causa da resposta, mas

pelo seu jeito de se comunicar. “Acho que é a primeira vez que ouço um indiano

Page 92: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

falar sem aquele sotaque patético. Diga-me, sudra, por que você não fala como

sua gente?”

Mesmo detestando mentiras, João Guilherme antecipou-se: “Diga que o

filho do teu ex-patrão era um ator inglês e você o auxiliava na leitura de

peças teatrais”. “O filho do meu ex-patrão era um ator inglês e eu o auxiliava

na leitura de peças teatrais”, disse Jahnu Mahajan. “Um ator aborígene?”,

exclamou o oficial, provocando risadas nos soldados. O movimento tinha

chamado a atenção de outros guardas que vieram ver o que estava acontecendo.

“Pois bem, senhor ator. Que tal nos dar uma pequena amostra do vosso grande

talento?”, provocou o britânico em tom de sarcasmo. Apesar de muito apreciar

o trabalho do ilustre poeta William Shakespeare, Jahnu tinha imensa

dificuldade em decorar trechos de suas peças e sonetos. Diante do impasse, João

Guilherme entrou em cena - literalmente. Encarando o tenente, o vaixá soltou-

se dos braços das sentinelas e começou a recitar, repetindo o que o professor

lentamente soprava-lhe:

“Ser ou não ser, eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os

dardos e arremessos do fardo sempre adverso, ou armar-se contra um mar de

desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais

nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes

infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-

se. Morrer... dormir... dormir... talvez... é aí que bate o ponto. O não sabermos

que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando ao fim desenrolarmos toda a

meada mortal, nos põe suspensos. É essa ideia que torna verdadeira calamidade

a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo,

a injustiça dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não

retribuído, as leis amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia

contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um

punhal? Que fardos levaria nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não por

temer algo após a morte – terra desconhecida de cujo âmbito jamais ninguém

voltou – que nos inibe a vontade, fazendo que aceitemos os males conhecidos,

sem buscarmos refúgios noutros males ignorados? De todos os covardes a

consciência. Desta arte o natural frescor de nossa resolução definha sob a

máscara do pensamento, e empresas momentosas se desviam da meta diante dessas

reflexões, e até o nome de ação perdem”

Page 93: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Quando Jahnu Mahajan terminou de recitar o clássico monólogo de Hamlet,

foi ovacionado por dois dos soldados. Apesar da emocionante performance, o

tenente limitou-se a olhá-lo com desdém. Em seguida ordenou: “Ele parece

inofensivo. Deixem-no trancado esta noite e amanhã o comandante decidirá o

que fazer”. Quando Jahnu foi jogado no pequeno quarto improvisado como cela,

ainda não conseguia acreditar no que acabara de fazer. Seu corpo vibrava de

emoção. João Guilherme, por sua vez, finalmente entendia toda a complexidade

do texto shakesperiano que já tinha declamado tantas vezes.

Apesar de ter achado Jahnu somente mais um indiano medroso e

subserviente, o tenente Matthew Donalds viu algo em seus olhos que não gostou.

“Esse miserável vai me causar problemas”, pensou. Contudo, não podia

simplesmente executar o prisioneiro, como bem gostaria, sem a expressa

autorização do major Joseph Wickert. Ainda mais que ficaria noivo de sua

filha no dia seguinte. Bem cedo, Jahnu foi acordado por um soldado, que lhe

ofereceu água e um pedaço de pão. Aproximadamente uma hora depois, chegava o

tenente acompanhado do major. Trazido pelo braço até o lado de fora, Jahnu

foi apresentado ao comandante Wickert. “Ele me parece apto para trabalhos

domésticos”, disse o major sem ligar muita importância. “Você disse que ele

fala bem o inglês, não é mesmo? Sendo assim, poderá servir como mordomo. Estou

cansado de confusão com essa gente que não me entende e que não consigo

entender”, completou tediosamente. “Preparado para hoje a noite, tenente?”,

falou o major mudando o rumo da prosa. “Tudo será perfeito, meu comandante”,

respondeu o oficial Donalds. Quando estava prestes a sair, o major fez uma

pequena pausa e, virando-se para Jahnu, emendou: “Um dos soldados disse que

este pobre moço é capaz de recitar Shakespeare. Talvez ele pudesse nos brindar

com algumas interpretações esta noite. Vai ser no mínimo divertido. Um

chimpanzé tocando violino”. O comentário final arrancou gargalhadas de toda

a tropa reunida ali. Jahnu sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. “Calma, calma,

calma. A ordem agora é ter calma”, falou João Guilherme. Apesar da aparente

tranquilidade, ele é quem tinha se sentido mais ofendido com a humilhação.

Logo em seguida, Jahnu Mahajan foi levado à cozinha para se inteirar das

atribuições. Chegando lá, não ficou surpreso ao encontrar Jay e Lalita,

acompanhados de Jagadamba, sua velha babá. Ela o abraçou longa e ternamente

e chorou. Rapidamente o vaixá colocou os amigos a par do que acontecera na

noite anterior e porque tinha voltado. Explicações dadas, quando viu a

quantidade de comida sendo preparada, quis saber do que se tratava. Foi Lalita

Page 94: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

que apressou-se em dizer que a filha do comandante e o tenente ficariam

noivos. Na verdade, a informação não fez diferença para Jahnu, que só pensava

em como dar uma escapada para repassar os informes aos colegas rebeldes. O

melhor momento veio no cair da tarde. Com a desculpa de conhecer um lugar

onde poderia colher flores para a decoração, o vaixá encontrou-se no local

combinado com um dos revolucionários e o pôs a par de tudo. De volta ao ofício,

ajudou Jay a preparar a mesa de jantar.

Quando os convidados começaram a chegar - oficiais de outros regimentos

e algumas autoridades - Jahnu ficou responsável por servir-lhes champanhe.

Ao entrar na grande biblioteca, teve um acesso de fúria. O quadro com o retrato

de seu amado pai havia sido retirado da parede. Enquanto isso, som de violinos,

flautas e violoncelos animavam a festa. A área de atuação do poeta ficou

restrita ao salão e o espaçoso átrio interno a cargo de Jay. Era lá que estava

a maioria das mulheres – inclusive a noiva. Por volta de nove da noite, o

major Wickert dirigiu-se ao salão de festas e bateu levemente duas vezes em

sua taça usando uma colher e todos ficaram em silêncio. Jahnu estava a poucos

metros, atrás de um grande balcão repleto de bebidas. “Senhoras e cavalheiros,

um minuto de sua atenção, por favor. Como todos sabem, hoje minha amada filha

Olivia, está ficando noiva do tenente Matthew, a quem considero como um filho”

– proclamou orgulhosamente. “Olivia, por gentileza, aproxime-se”, solicitou

cerimoniosamente.

O vaixá fez um pequeno contorcionismo para ver a noiva. “Para casar com

um idiota desses, só sendo mais idiota ainda”, pensou. “Concordo plenamente”,

João Guilherme ratificou. À medida que os convidados foram abrindo passagem,

os poetas conseguiram ver um pedaço do vestido branco da nubente. Ela ficou

ao lado do pai e do noivo, de costas para o serviçal. “Garçon, uma taça de

champanhe para a minha filha, por favor”. Assim que ficou de frente para a

moça, o vaixá empalideceu. João Guilherme, sem saber como, assumiu totalmente

o controle do corpo de Jahnu e evitou que ele desabasse no chão, embora seu

susto não tenha sido menor quando constatou que a noiva era ninguém menos

que Amparo, agora chamada de Olivia. Champanhe servido, voltou cambaleante

para o seu lugar. Ninguém, a não ser Lalita – que assistia a tudo maravilhada

de um canto – notou a reação do poeta.

Brinde feito, o vaixá queria sair correndo daquele ambiente

insuportável. Agora nada mais importava. Nem mesmo a independência da Índia.

Assim como Jyotish, ele também se tornaria um asceta, ou seja lá o que fosse.

Page 95: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

João Guilherme precisou de muita energia para acalmar a mente de Jahnu.

Enquanto os noivos dançavam a valsa, o jornalista disse à encarnação indiana:

“Eles estão ficando noivos, mas ainda não estão casados. Ela está destinada a

ti. Lembra-te do teu sonho. Não desista da tua alma gêmea”. O ex-nobre não

conseguia parar de olhar para a amada. Embora estivesse linda, seu rosto não

demonstrava alegria. João Guilherme aproximou-se do casal e, como se dançasse

junto, ficou olhando nos olhos da donzela. Então repetiu-se o que acontecera

no terreiro de Umbanda: o professor conseguiu ver a alma de Olivia. E ela,

para sua alegria, estava triste. Era preciso contar isso a Jahnu

imediatamente. Porém, antes que chegasse nele, a música parou e depois dos

aplausos, o major Wickert anunciou: “E agora, senhoras e cavalheiros, um pouco

de diversão. Nosso empregado hindu vai nos brindar recitando Shakespeare com

seu sotaque vitoriano”. O riso foi geral. Jahnu, todavia, decidira no fundo da

alma que não iria se prestar a esse papel ridículo dentro da própria casa.

Rápido como um pensamento, João Guilherme aproximou-se e falou em tom

enérgico: “Os humilhados serão exaltados. Olivia ainda não lhe conhece. Use

este momento para fazer com que ela te reconheça. Recite com paixão, como

nunca fizestes antes”. Impelido por uma inspiração sobrenatural o vaixá

respirou fundo e encaminhou-se ao centro do salão. Curiosos, os convidados

ficaram em silêncio. Então como o ator inseguro que sobe ao palco e é ajudado

pelo colega escondido que sopra o texto, repetiu de olhos fechados o monólogo

de Hamlet ditado por João. Quando terminou, já de olhos abertos, viu uma

atônita Olívia a lhe encarar como se tentasse lembrar de onde o conhecia.

Percebendo o efeito da performance sobre a noiva, apressou-se em partir para

o segundo número. Humilde por fora, mas sarcástico por dentro, dedicou ao

casal um trecho de “Romeu e Julieta”. Se no começo a reação da plateia tinha

sido fria, agora ele foi esplendidamente aplaudido. O desconcerto no rosto de

Olivia era evidente. Era preciso recitar mais e João Guilherme lhe soprou os

sonetos 12, 18, 22 e 66. Sem querer, Jahnu tinha virado a estrela da festa. “Que

tal o jovem cantar uma canção?”, sugeriu alguém. João pensou em deixar a

escolha para o próprio vaixá, uma vez que desconhecia as músicas da época. Mas

para sua surpresa, o indiano não conhecia uma só canção de amor. Foi quando

o jornalista tomou uma decisão inusitada: escolher uma canção de seu tempo.

“E o que poderia soar o menos estranho possível para a época?”, considerou.

“Andrew Lloyd Webber que me perdoe, mas diante das circunstâncias, vou ter

Page 96: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

que antecipar uma de suas canções em alguns séculos”, concluiu. E assim,

aparelhou totalmente em Jahnu e começou:

“Basta de falar em trevas

abandone estas lágrimas

estou aqui, nada pode feri-la

meus versos serão teu refúgio e acalanto

permita que eu seja a tua liberdade

que a luz do dia enxugue tuas lágrimas

estou aqui, contigo e ao teu lado

para lhe guiar e lhe guardar

diga que me ama, a cada momento,

mude meu pensamento com palavras de verão

diga que precisa de mim agora e sempre

prometa-me que cada palavra tua é verdadeira

é tudo o que peço de ti

deixa-me ser teu abrigo

deixa-me ser tua luz

estás segura, ninguém te encontrará

os teus temores foram deixados para trás

tudo o que anseio é por liberdade

um mundo sem trevas

e você, sempre ao meu lado,

para me abraçar e proteger

então diga que compartilharás comigo o amor, a própria vida

permita-me tirá-la da tua solidão

diga que precisa de mim contigo, aqui ao teu lado

aonde quer que vá, deixa-me ir também

é tudo que peço de ti”

Page 97: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Assim que cantou o último verso, João Guilherme sentiu-se, literalmente,

o fantasma da ópera. Abrindo espaço para que Jahnu saísse do transe, ambos

notaram a luz violeta que começava a brilhar no coração de Olivia. A semente

do amor havia germinado. Os poetas sorriram de satisfação. Com exceção do

tenente Matthew, todos aplaudiram, até mesmo o pai da noiva. Esta olhou para

o vaixá como jamais havia olhado para outro homem em toda a vida. “Estou

apaixonada”, pensou. Tragédia das tragédias, encontrar o amor de sua vida

quando já era tarde demais. E uma lágrima beijou-lhe o rosto. Quando a festa

acabou, os criados se dedicaram a uma primeira arrumação da casa. De tão feliz

que estava, Jahnu limparia tudo sozinho. A velha Jagadamba, que o conhecia

como ninguém, entendeu perfeitamente o que acontecera e temeu pela vida de

seu eterno menino. Ela pensou em chamá-lo para conversar naquela mesma noite,

mas a alegria do poeta era tanta que ela não teve como. Ao invés, puxou uma

conversa amistosa: “Jahnu Ji, onde é que aprendestes aquela canção? Em

Londres?”. “Não faço a menor ideia. As palavras simplesmente saíram pela minha

boca, como se outra pessoa estivesse cantando em meu lugar”. João Guilherme

ouviu a tudo comovido.

Jahnu Mahajan bem que tentou, mas naquela noite dormir seria muito

difícil. Olivia era ainda mais linda em carne e osso do que vira no astral.

“Olivia, Olivia, Olivia, Olivia, Olivia...”, ficou repetindo mentalmente ao

olhar para o céu estrelado pela janela aberta. Enquanto isso, João, em um

arroubo de atrevimento, esgueirou-se no quarto da donzela. Ela ainda usava o

vestido da festa e se olhava no espelho com ar de melancolia. “Oh minha mãe,

como eu gostaria que estivesses aqui agora. Para a senhora eu poderia abrir o

coração”, disse sussurrando. Ao lado da amada, João viu uma senhora

desencarnada sentada a acariciar-lhe os cabelos. O professor teve vergonha

da intromissão e virou-se para sair do quarto. “Cuide bem da minha filha. Ela

é o meu maior tesouro”, disse o espírito. João Guilherme admirou-se pelo fato

de sua presença ter sido notada. “Eu estou a lhe observar desde quando chegou”,

continuou a senhora, desta vez virando-se para o jornalista. “Por tudo que é

mais sagrado, eu juro que farei dela a mulher mais feliz do mundo”, prometeu

João. A mãe de Olivia não esboçou reação. A conversa foi interrompida pelo

choro da noiva, que nervosamente abriu uma gaveta da cômoda e, depois de pegar

um diário, passou a escrever:

Page 98: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

“Ó ventos do amor, quem é este anjo que me trouxestes? É por isso que nunca

consegui me apaixonar por Matthew, apesar de toda a sua dedicação? Quando vi

aquele moço pela primeira vez, a cantar uma oração à beira do rio, eu soube

em meu coração, que ele seria especial. Sua voz, seus olhos tão cheios de vida,

sua paz interior não me saem da cabeça. Minha vida jamais será a mesma depois

desta noite. É como se eu o conhecesse de outras vidas. Mas como isso é possível?

Mas não devo mais pensar nisso. Capricho do destino, estar tão perto e tão

longe do meu amor, de quem não sei ao menos o nome”.

Ao perceber que Olivia começaria a se despir, João Guilherme saiu do

quarto e voltou para junto de Jahnu. Entorpecido pelo amor, o vaixá parecia

levitar. Foi então que se deu conta de que não sonhava na última vez que vira

Olivia, quando cantava o Gayatri mantra, sentado na grande pedra às margens

do rio. Ela realmente tinha estado lá.

Pela manhã, Lalita foi encarregada de servir o café da senhorita no

quarto. Ela recebeu a criada com um sorriso afável e teve de volta um olhar

frio e indiferente. Naquele momento, o que incomodava a sudra não era a beleza

da inglesa, já que ela mesma era tão bela quanto, mas o inconfundível brilho

da paixão em seus olhos. Olivia estava tão radiante que parecia ter acabado

de despertar depois de uma noite de amor. Isso deixou a moça indiana

enlouquecida de raiva. A gota d’água que transbordou o copo foi quando a jovem

inglesa suspirou profundamente e sussurrou: “a um dia de verão, como hei de

comparar-te?”, verso de um dos sonetos que Jahnu tinha declamado. Sobre a

cômoda, Lalita viu algo que lhe chamou a atenção. O diário da rival estava

aberto em uma página com algumas linhas escritas. Embora analfabeta,

esforçou-se ao máximo e conseguiu reconhecer a palavra “amor”. Imediatamente

a sudra intuiu que aquele caderno poderia ser-lhe útil no futuro.

Café da manhã tomado, Olivia saiu do quarto, passou pelo grande corredor

e parou no átrio interno. O sol brilhava forte e a luz refletiu em seus olhos.

Momentaneamente cega, não percebeu Jahnu que estava a poucos metros

recolhendo uma cadeira. Assim que achou uma sombra, a donzela sentou-se. Nas

mãos estava o diário. Ela o abriu na página em que tinha escrito na noite

anterior e sorriu discretamente. Distraída, assustou-se com o “bom dia,

senhorita”, de Jahnu. “Ah, bom dia”, respondeu gentilmente. O vaixá preparava-

se para deixar o ambiente quando ela falou: “Espere um instante, por favor.

Page 99: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

No tumulto da festa de ontem à noite, eu nem lhe agradeci pelas recitações.

Devo dizer que gostei muito. Você é bem talentoso”. Sem demonstrar, o poeta

quase explodiu de contentamento com o elogio. “Não há de quê. A poesia de

Shakespeare é que é maravilhosa”, replicou.

- Bem, como deves saber, meu nome é Olivia. Qual é o teu?

- Jahnu Aruna.

A troca do sobrenome foi proposital. Se dissesse o verdadeiro, correria

grande risco de ter a identidade revelada.

- E como conheces tão bem a obra de Shakespeare?

Meio a contragosto, o jovem já se preparava para contar a mesma mentira

que dissera ao tenente Matthew, quando este surgiu pelo corredor requisitando

a companhia da noiva. Ela pediu licença e saiu. Assim que chegaram à sala de

jantar, o oficial demonstrou contrariedade com o que acabara de testemunhar.

“Meu amor, não considero que seja prudente perder tempo dando atenção aos

criados. Eles são mestres em tirar vantagem da bondade alheia”, asseverou. “Eu

só estava agradecendo a gentileza do rapaz de ter feito as declamações”,

esclareceu Olivia. “Ah, aquela bizarrice, você quer dizer. E que canção

horrorosa era aquela?”, retrucou o oficial.

O casal encaminhou-se até o jardim e foi seguido por João Guilherme.

Sentados em um banco, diante de uma fonte em forma de peixe, adornada pela

escultura de um menino, o tenente tomou as mãos de Olivia e revelou: “Assim

que a construção da fortaleza for concluída, dentro de no máximo seis meses,

nós voltaremos para Londres, para o nosso casamento. Isso não é maravilhoso?”

Atento a tudo, o professor olhou bem nos olhos da amada e tanto alegrou-se

como entristeceu-se com a resposta. Alegre porque foi um sim evasivo, sem

convicção. Triste porque era assim que a senhorita sentia-se naquele momento.

Nada era mais penoso para ela do que mentir para alguém. O tenente Matthew

era um homem educado, gentil, dedicado ao comandante Wickert e leal ao seu

país. Ele não merecia ser enganado. Requisitado em suas obrigações, o oficial

beijou leve e respeitosamente os lábios da noiva e saiu.

Ela continuou sentada. Olhando em volta e tocada pela beleza do jardim,

pensou: “Aqui deve ter morado um jardineiro muito dedicado”. De fato – Induma

- a mãe de Jahnu, tinha na jardinagem uma espécie de sacerdócio. Para ela, as

flores eram um portal de entrada para seres divinos que vinham à Terra nos

trazer luz, amor, bondade, pureza e sabedoria. Enquanto pensava isso, seu corpo

foi cercado por pequeninos pontos de luz azulada. Ela não os viu, mas João

Page 100: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Guilherme sim. Ela os sentiu e João Guilherme também. O jornalista aproximou-

se e sentou-se ao seu lado. Ele fechou os olhos, concentrou-se a passou a

imaginar que um feixe de luz dourada vinda das estrelas preenchia-lhe todo

o coração. Intensificada, de lá ela se dirigia ao coração de Olivia. E seus

corações vibraram na mesma energia, unidos pelo mais puro amor. A donzela

abriu o livro de sonetos que tinha em mãos, marcado em certa página. Havia um

coração desenhado a lápis no início e no fim do verso de um dos sonetos

recitados por Jahnu na noite anterior: “Pois toda essa beleza que te veste,

vem de meu coração – que é teu espelho”. A lembrança do poeta recitando com

tanta paixão não lhe saía da cabeça, e ela pensou ter ouvido a voz dele quando

João Guilherme lhe sussurrou: “Meu amor, a força que nos une é a mesma força

que move o Universo. Nossas almas são como uma só e é chegado o momento do

reencontro. Por isso vos rogo: não desista de mim. Não desista de ti. Não desista

do nosso amor. O Pai Eterno há de nos abençoar com a felicidade”. Imediatamente

após dizer isso, o poeta sentiu o corpo astral se elevando, como se conduzido

por uma força desconhecida. O azul do céu tornou-se como que alaranjado e

João percebeu que não estava mais no mesmo lugar. Apesar do desconforto de

ter saído de perto da amada, ele sabia que o que acabara de acontecer tinha

algum motivo – que veio na figura de uma moça de aproximadamente vinte anos.

Ela era negra - como seus olhos - e tinha uma tiara nos cabelos. Usava um

vestido vermelho com detalhes pretos e amarelos. No pescoço fino havia um

colar de pérolas e nos braços muitas pulseiras e braceletes. Os brincos eram

grandes, feitos de algum tipo de madeira e adornados com penas azul turquesa.

Ao chegar perto do professor, o espírito sorriu cordialmente. “Olá João

Guilherme! Ou devo dizer João Maria? Ou quem sabe Jahnu Mahajan?” disse com

bom humor. Não sabendo de quem se tratava inicialmente, a recepção do poeta

foi tímida: “Saudações, minha irmã! Em que posso ser útil?” A jovem divertiu-

se com o formalismo na fala de João.

- Minha nossa, falando assim, você fica parecendo um garçon. Sou eu,

irmãozinho querido. Eleanor.

- Eleanor? Perdoe-me, é que você está tão diferente...

- Não, não, não, moço. Esta é a forma que assumi definitivamente aqui no

astral. Naquela outra vez você que escolheu qual seria a minha aparência,

lembra?

João Guilherme fez um pequeno movimento com os olhos e com a boca como

a dizer “ah, sim...” Eleanor pegou a mão direita do jornalista e disse: “Eu

Page 101: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

preciso que você me acompanhe em uma tarefa espiritual. Mas devo alertar que

não é nada agradável. Você não precisa vir se não quiser”, explicou. João

Guilherme jamais diria não ao espírito que sempre lhe acompanhou nos piores

momentos. “Claro que sim, minha irmã. Do que se trata?”. “Pois bem, uma pessoa

que você conhece está prestes a fazer a passagem. É preciso que alguém de sua

confiança a receba aqui nas esferas mais sutis e os espíritos superiores

escolheram você para esclarecer que ela deixou a matéria”. A princípio

temeroso da grande responsabilidade que tinha diante de si, João elevou o

pensamento ao Cristo e pediu amor e sabedoria para cumprir a missão. A mentora

passou a segurar também a sua outra mão e ambos foram envoltos por um feixe

de luz branca. Quando a luz começou a desvanecer-se, eles estavam ao lado de

um leito de hospital. João Guilherme olhou para a pessoa amiga que agonizava

e a reconheceu de imediato. Reconheceu também as outras pessoas ao redor da

cama. Na cabeceira, havia um espírito de aparência sombria a emanar uma fraca

luz fosca. Quando notou a chegada de João e Eleanor, cessou o que estava

fazendo. “Está na hora”, disse o ser com respeito e humildade. Tomando a pessoa

pela mão, fez com que ela deixasse o corpo físico. João Guilherme olhou para

o anjo da morte com temor. Este, por sua vez, olhou-o calma e firmemente nos

olhos e o jornalista viu como e quando seria o seu próprio encontro com ele e

sentiu-se reconfortado. Embora não pudessem ver os espíritos visitantes, os

parentes e amigos próximos da pessoa que acabara de deixar a vida, entenderam

o que se passara e o pranto foi automático. Quando desencarnou, a pessoa amiga

de João Guilherme caminhava lentamente de olhos fechados, como faz o

sonâmbulo que anda a esmo. Incentivado por Eleanor, o poeta segurou-lhe mão

e os três passaram por um grande portal de luz que se formara na altura do

teto do quarto. Do outro lado, o professor viu muitas outras pessoas dormindo

em um imenso e lindo jardim. Algumas estavam despertas, chorando ou em

silêncio introspectivo. Com a ajuda de sua mentora espiritual, o poeta

depositou o corpo astral da pessoa amiga na relva verde e ficou velando pelo

seu sono. Passado um tempo que João não saberia precisar, ela acordou. Quando

abriu os olhos, sua reação foi de alegria ao deparar-se com o velho amigo.

“Que gentil vir me visitar. Sei que não tenho mais muito tempo, mas é sempre

muito bem vê-lo, meu querido”, confidenciou. Segurando fortemente as mãos da

alma tão querida, o professor não conseguiu conter as lágrimas e com toda a

doçura e carinho que conseguiu juntar, disse: “Você não está mais na matéria.

Agora você caminha em direção ao coração do nosso Divino Pai Eterno. Seu

Page 102: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

tempo na Terra acabou. É chegado o momento de avaliar como foi a experiência

terrena e planejar a próxima encarnação. A luz da nossa Virgem Mãe irá lhe

abençoar e proteger. Busque no Cristo o consolo para as tuas dores e não te

esqueças dos momentos felizes que passamos juntos dos nossos amigos. Que essas

lembranças lhe sejam como um bálsamo para o espírito. Nossa separação é apenas

temporária. Não demorará muito até que estejamos reunidos para sempre sob a

luz redentora do Pai Soberano”.

Dito isto, houve um demorado abraço e a pessoa amiga pediu para que o

jornalista se juntasse a ela em um momento de oração. De mãos dadas, rezaram

a prece de Cáritas, o Pai Nosso e a Ave Maria. Após um instante de silêncio, a

alma desencarnada, como que se lembrando de algum fato do plano material e

com certo espanto pela presença de João Guilherme, quis saber: “Mas meu irmão,

como é possível que você esteja aqui? Você...” Antes que continuasse o

raciocínio, o espírito foi gentil e educadamente interrompido por Eleanor.

“João, é preciso voltar”. Novo abraço de despedida e, amparado pela mentora, o

poeta atravessou novamente o portal.

Page 103: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

20

Quando João Guilherme e Eleanor voltaram à casa dos Mahajan, o poeta

estava calado e pensativo. A pessoa amiga que desencarnara estava prestes a

lhe revelar algo da vida na Terra e a guia espiritual não permitiu. Notando

seu desconforto, ela apiedou-se de sua angústia. “João, amado irmão, eu

gostaria imensamente de poder lhe ajudar. Sei que você tem inúmeras dúvidas

e que lhe incomoda muito não ter as respostas. Contudo, não tenho autorização

superior para isso. Mas confie em mim, querido. Nosso Pai Celestial jamais lhe

deixaria desamparado. Concentre-se em tudo que tem aprendido desde que chegou

aqui ao astral. Pense nos irmãos encarnados e desencarnados que você tem

ajudado. Nada é mais doce aos olhos de Deus do que a abnegação daqueles que se

colocam a serviço do próximo. Você buscou do fundo de seu coração e o Cristo

lhe ouviu. Todos os anjos do céu choram de alegria quando vocês humanos são

bem-sucedidos na sagrada missão de semear o amor, vencer a ilusão da matéria

e reconciliar-se com o Pai. Cada vez que uma pessoa emite um pensamento puro

em direção ao Universo, isso produz uma energia que propicia a muitos irmãos

terem acesso a essa luz e assim também encontrar o próprio caminho da evolução.

Cada poema, cada música, cada livro, cada dança, cada peço teatral, cada filme

– cada manifestação de arte genuína nascida dessa comunhão entre o Eu

Inferior e o Eu Superior, espalha na atmosfera terrestre uma poesia cujo

aroma inspira as pessoas a buscarem a Essência Divina que têm dentro de si.

Você, assim como Vinícius de Moraes e Seu Zé Pelintra – teus dois amigos e

irmãos – vêm de uma falange espiritual cujo trabalho é justamente esse:

impregnar o coração dos homens com a poesia que lhes tira da escuridão e

acende a luz que lhes conecta novamente com aquilo que têm de melhor”.

“Perdoe-me pela minha fraqueza, Eleanor. Estar neste plano, vendo e fazendo

todas essas coisas é muito mais do que sempre sonhei”, respondeu o professor.

“Não há por quê pedir perdão, João Guilherme. Você não teria sido trazido até

aqui se não considerássemos que estava apto. Durante alguns anos de sua

adolescência, primeira juventude e principalmente na fase adulta, você

desviou-se muito do caminho traçado por si mesmo e pelos arquitetos

espirituais; das coisas que comprometeu-se a fazer e da evolução moral e

intelectual que prometeu cumprir. Com muita dor no coração, fomos obrigados

a nos afastar para que, através do sofrimento, você pudesse retomar o caminho.

Ainda assim, por mais que tentássemos lhe ajudar, a energia negativa de seus

Page 104: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

pensamentos e de atitudes impedia que qualquer luz chegasse à sua pessoa.

Foram preciso anos de privações, humilhações e sofrimento para que você

finalmente despertasse dessa letargia. E, desse caminho que agora trilhas, não

há volta. Você não conhece, nunca viu ou ouviu, mas há muitas pessoas

encarnadas fazendo o mesmo trabalho. Vocês estão ligados pelo fio invisível

do amor incondicional. Olhe para ele, seu aspecto mais tenebroso já esvaiu-

se”, falou Eleanor apontando para o corpo cármico de João Guilherme que,

conforme prometera, não havia se afastado nem por um segundo. Dizendo isso,

a mentora abraçou ternamente o poeta e despediu-se.

Jahnu foi procurado durante a noite por Jagadamba. Ela estava

preocupadíssima com o que julgava ser uma atitude tresloucada. “Menino, você

tem noção da confusão em que está se metendo? Essa moça é estrangeira, rica e

para piorar, está noiva. Esqueça Olivia. Ela é diferente dos outros ingleses,

mas jamais terá a coragem de enfrentá-los por tua causa. Procure uma mulher

com quem você possa se casar, ter filhos, ter um futuro”, aconselhou apontando

para Lalita com os olhos. Depois completou: “Você tem estudo, é inteligente.

Logo as coisas vão se ajeitar e muitas oportunidades de trabalho surgirão”.

Em respeito à velha amiga de sua mãe, Jahnu nada disse. Parecia-lhe

claro que havia o dedo da irmã de Jay nessa conversa. Quanto ao amigo e irmão,

este também manteve-se calado. Sua principal preocupação era evitar que o

poeta sofresse ou, no pior dos casos, morresse por causa desse amor avassalador

que havia se instalado em seu coração. João Guilherme apenas assistia à

pequena assembleia familiar. Ele havia decidido que só voltaria a intrometer-

se em algum caso extremo. Enquanto os três confabulavam, o jornalista foi

visitar Olivia.

Quando chegou à casa grande, encontrou a amada no salão de festas e

rapidamente reconheceu a melodia que ela tocava ao piano. Eram os acordes da

canção que ele cantara durante a festa de noivado. Pela destreza dos seus

dedos, ficou claro que a jovem era talentosa. “Tomara que ela não passe as

notas para uma partitura”, torceu João. Com um toque de inconsequência,

considerou a catástrofe que seria a ópera de Andrew Lloyd Webber, adaptação

da obra do romancista francês Gaston Leroux, sem a peça principal.

Repentinamente, como se sentisse a presença do professor, Olivia parou de

tocar. Ela olhou apreensiva em volta procurando alguém, mas não havia medo

em seu coração. Depois de uma breve pausa, a donzela voltou a tocar a melodia

Page 105: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

de “All I ask of you” e, sensibilizado pela beleza da composição, João Guilherme

cantou a letra. “Eu realmente sou um cantor de outro mundo”, disse o poeta a

si em meio a um sorriso.

As semanas se passaram e Jahnu e Olivia já não conseguiam esconder o

clima de paixão que brotara entre eles. Como o tenente Matthew havia viajado

para vistoriar a construção da fortaleza, o vaixá teve toda a liberdade para

fazer a corte. Em momentos estratégicos do dia, embrenhava-se na mata para

por os amigos rebeldes a par da evolução dos fatos. Jahnu Mahajan era

frequentemente chamado ao salão de festas para conversar com Olivia sobre

literatura, filosofia e religião. Juntos, passavam horas lendo em voz alta as

peças de Shakespeare. Ela se divertia com a variedade de sotaques e inflexões

de voz que o indiano conseguia fazer. Em um arroubo de ousadia, Jahnu propôs

que fizessem uma cena de “Romeu e Julieta”. Ela concordou. A enorme

escrivaninha, debaixo de onde se escondera tantas vezes quando criança, serviu

como o balcão dos aposentos da Capuleto. Os jovens atuaram com desenvoltura e

leveza. No momento do beijo Olivia hesitou, mas diante da intrepidez do poeta,

não resistiu e se beijaram apaixonadamente. Quando os lábios se tocaram, foi

como se seus corpos tivessem sido tomados por uma força que transcendia o

tempo, que os tornava inseparáveis desde o momento em que suas almas receberam

o sopro divino do Criador. Não houve sentimento de culpa quando finalmente

as bocas se despediram. Pelo olhar, os jovens concordaram que era preciso

guardar segredo e ter paciência. Então, como o menino tímido que entrega uma

flor para a namoradinha, Jahnu entregou a Olivia o poema que escreveu quando

a viu na clareira da grande pedra. Ela quis ler de imediato, mas ele insistiu

que só o fizesse quando estivesse sozinha.

Quando chegou ao jardim, depois de sair da casa, Jahnu Mahajan olhou

para o céu e era como se ele se movesse em círculos e o número de estrelas

tivesse sido multiplicado por dez, por cem, por mil. Dentro da casinha dos

empregados, Jay o esperava preocupado e todas as tentativas de abrir-lhe os

olhos foram frustradas. “Jay Ji, ainda que eu tenha de morrer mil vezes, nada

me fará desistir do amor da minha doce Olivia”, disse com a típica fisionomia

dos jovens apaixonados. Conformado com o que considerava loucura, o sudra fez

com que Jahnu jurasse que pelo menos não cometeria nenhuma insanidade. “Sinto

muito, amado irmão, mas estou disposto a tudo”, respondeu enfaticamente.

Page 106: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Logo que o sol nasceu, os dois criados foram bruscamente acordados por

um dos soldados. “Levante-se sudra metido a poeta, o tenente Matthew quer lhe

ver”. Do lado de fora o oficial esperava com um chicote na mão. Todos os outros

empregados – quinze no total – tinham sido convocados para testemunhar a

lição. Jahnu olhou para Matthew com frieza e desprezo. Isso deixou o britânico

ainda mais irritado. A ponta do chicote sibilou no ar e foi em direção ao

vaixá. Ele desviou-se. A segunda chibatada acertou-lhe em cheio as costas. Com

uma força descomunal e até então desconhecida por ele próprio, Jahnu segurou

o instrumento de punição com as duas mãos e com um puxão vigoroso, tirou-o

do tenente. Todos assistiam em silêncio. Enlouquecido de cólera pela situação

vexatória, o oficial partiu para cima de Jahnu Mahajan. Os soldados britânicos

não acreditaram quando viram o superior ser suspenso no ar feito um boneco

de porcelana e atirado ao chão e partiram em seu auxílio. O vaixá reagiu como

um leão acuado, rangendo os dentes e urrando de fúria. Finalmente contido

pelos soldados, foi amarrado a uma viga que serviu de tronco. A cada chibatada,

o tenente proferia ofensas e enfatizava aos berros: “Nunca mais chegue perto

da minha noiva, seu selvagem”. Embora não tivesse visto o beijo nem soubesse

do poema, Lalita – em um acesso de ciúme – fizera saber a Matthew dos saraus

particulares. A gritaria do britânico fez com que Olivia acordasse. Abrindo a

janela, desesperou-se com o que estava acontecendo. Rapidamente vestiu-se com

um roupão e saiu descalça em direção ao local da confusão. “Matthew, pelo amor

de Deus, estás louco? Pare com isso imediatamente”, disse em meio a lágrimas.

Foi como se ela não estivesse ali. O oficial estava surdo aos seus apelos. “Mas

que diabos está acontecendo aqui?”, questionou energicamente o comandante

Wickert, também despertado pela algazarra. “Este miserável anda se

aproveitando da ingenuidade de Olivia para tentar seduzi-la”, acusou o futuro

genro. “Eu já estava mesmo preocupado com o excesso de liberdade que minha

filha concedia a ele. Vistam esse homem, deem alguma coisa para comer e o

expulsem das minhas terras”, foi o veredicto do major.

Nenhuma das chicotadas causou mais dor a Jahnu do que ter ouvido “minhas

terras” da boca de quem considerava um ladrão. Com um movimento que lhe fez

gritar de dor, o vaixá conseguiu desvencilhar-se das cordas. Nada mais se

interpunha entre ele e o comandante. Nada, a não ser João Guilherme. “Se você

atacar esse homem, perderá Olivia para sempre”. O grito de João Guilherme na

cabeça de Jahnu Mahajan foi tão forte que quase o derrubou. O indiano olhou

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para Olivia, que com os olhos fez a mesma súplica desesperada. Depois olhou

para o tenente Matthew como a dizer “isso não vai ficar assim”.

Page 108: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

21

Quando Jahnu chegou à clareira da grande pedra, as costas ainda

sangravam e latejavam de dor. Ele precisava descansar antes de se reunir com

os companheiros revolucionários. Movido por um código de honra particular,

tinha preferido sair seminu e faminto das terras do pai a receber algo das

mãos dos ingleses. Pela segunda vez tinha sido expulso da própria casa. Não

haveria uma terceira. De repente, um movimento como de alguém caminhando

entre o mato, o colocou em alerta. Se tivesse sido seguido, desta vez não teria

piedade. O poeta aliviou-se e no fundo ficou contente quando viu que quem se

aproximava era Jyotish. Sem dizer uma palavra, o xamã fez-lhe entender que

cuidaria de suas feridas com um unguento que trazia nas mãos. Enquanto

recebia atenção por parte do velho, Jahnu recostou-se na pedra e, sob o efeito

das ervas medicinais, adormeceu. Quando acordou, horas mais tarde, os

primeiros sinais da noite se faziam notar e o ancião mais uma vez desaparecera.

A seus pés, estava uma cuia cheia até a metade com a bebida sagrada. O poeta

colocou-se na posição de meditação e esperou. Quando a noite chegou em toda a

plenitude, não havia nuvens no céu e a promessa era de chuva. Sem paciência

para as 108 repetições do “om mani padme hum”, Jahnu tomou o elixir de uma

golada só e ficou em silêncio. Quase duas horas depois, nenhum efeito havia se

manifestado. Desorientado, a única referência espacial que tinha era o som do

rio passando a poucos metros. A escuridão – agora absoluta - somada aos sons

das criaturas da noite lhe encheu a alma de pavor. Ele não sabia se estava de

olhos abertos ou fechados quando viu a figura de uma salamandra descomunal

se arrastando pela floresta em sua direção. A primeira reação foi correr. Mas

era preciso dar um basta nisso. Ele nunca mais fugiria de nada. Em pé, sobre

a pedra, pôs-se em posição de combate. O Elemental do Fogo foi rápido e

impiedoso. Com apenas um golpe engoliu o poeta. Ele sentiu-se como que no meio

de uma labareda. Da mesma forma que o lingote de ouro é derretido pelo calor

das chamas no processo de fundição, seu corpo foi lentamente sendo

desconstruído em centenas de partículas. Feito faca afiada, a foice da morte

cortava-lhe o cordão de prata e sua vida chegava ao fim. O eco do grito de não

que saiu da garganta de Jahnu Mahajan fez calar a floresta e ele foi cuspido

no chão pela salamandra, que partiu tão veloz quanto viera. Devolvido à

escuridão, o poeta tateava o solo em busca da grande pedra, feito o bebê que

de gatinhas, busca a segurança do colo materno.

Page 109: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Com a visão entorpecida pelo efeito da bebida sagrada, como o ébrio que

vê o mundo girar em torno de si, Jahnu viu um homem de elmo prateado apeando

de um estranho cavalo negro e indo em direção a uma igualmente estranha

carruagem, de onde, ameaçada por outro homem, uma jovem gritava em uma língua

incompreensível. O cavaleiro arrancou o agressor de dentro do veículo e

tomando-lhe uma espécie de punhal com o cabo em forma de ele, dominou-o, mas

não o atacou. O aparente ato de misericórdia fez com que ele não percebesse

um segundo inimigo por detrás da carruagem, portando o mesmo tipo de punhal.

De sua ponta saíram duas chamas de fogo. Atingido pelas costas, o guerreiro

tombou e o vaixá contorceu-se de dor ao sentir a pele rasgada no mesmo lugar.

Assustados com a chegada de um dragão de olhos amarelos, os agressores

correram para a escuridão e a visão se desfez.

Novamente na clareira, uma explosão de luz fez com que Jahnu visse

dezenas de macacos com cabeça de homem se aproximar. Sem forças para qualquer

reação, implorou pela misericórdia de Krishna. Com os olhos quase fechados,

viu um facho de luz azulada a ricochetear por entre as árvores e todos os

macacos-homem fugiram assustados. Antes que seus olhos se fechassem por

completo, o poeta olhou para o céu e viu a lua saindo radiante por trás da

nuvens. E pensando ter morrido, adormeceu.

Já perto do meio-dia, foi o rufar das asas de três beija-flores que

despertou Jahnu Mahajan. O sentimento em seu peito era, ao mesmo tempo, de

alegria e de tristeza. Alegre por estar vivo e triste por ter perdido Olivia.

Com o coração dilacerado pela dor, chorou profundamente. “Meu Romeu!” Mesmo

ouvindo a voz da amada, o poeta não abriu os olhos. “Por favor, espírito das

trevas, me deixe em paz. Eu vos imploro”. “Meu amor, sou eu que estou aqui”. De

olhos abertos, o vaixá sentiu a alma estremecer diante da visão de sua estrela

matutina. Ela correu e, atirando-se em seus braços, beijou-lhe a boca com

volúpia. Ardendo de desejo, ele começou a desfazer os laços do vestido branco

dela e, instantes depois, surgiram-lhe diante dos olhos os seios rijos da amada.

Quando a última peça de roupa foi tirada, o corpo alvo da inglesa e o corpo

moreno do indiano gentilmente se entrelaçaram, tendo a grande pedra como

leito de núpcias. Os cabelos loiros da moça se assemelhavam a um véu dourado

que se estendia até tocar a relva. Quando suas intimidades se fundiram, os

jovens sentiram o prazer consumado no Amor Divino. E Jahnu viu a presença

de Deus nas entranhas dela e Olivia viu a presença de Deus na espinha dorsal

Page 110: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

dele. Quando chegaram ao clímax da paixão, como são idênticos os tons do azul

do céu e do azul do mar, suas almas voltaram a ser uma e assim ficaram pela

eternidade de uma batida do coração.

Extasiados, os amantes entraram em um longo período de silêncio,

contemplando as poucas nuvens no céu e com a luz dourada do sol a banhar seus

corpos entrelaçados e nus. Como o artista que escolhe criteriosamente as cores

que irão compor a tela, o poeta mediu as palavras que estavam prestes a ser

ditas. “Meu amor, eu ansiei muito por este momento. Ter você aqui do meu lado,

é a realização do sonho de uma vida inteira”, começou. Ao ouvir tão tocante

declaração de amor, Olivia apertou forte a mão de Jahnu Mahajan e, virando o

rosto, beijou-lhe o peito. O vaixá suspirou e depois continuou: “Antes que

tomemos qualquer decisão sobre o nosso futuro, é preciso que você saiba algumas

coisas sobre mim”. Olivia assustou-se com a ressalva do amado, mas aguardou

em silêncio. E o poeta contou-lhe de quem era filho e onde morava. Falou

também do tempo em que estudou na Inglaterra, descreveu minuciosamente os

sonhos que tivera antes e depois da experiência com o elixir santo e por fim

revelou os planos dos exércitos insurgentes que se formavam por todo o país.

A donzela então lhe agradeceu pela sinceridade e confidenciou-lhe o

desconforto em relação à ocupação britânica. Ciente da determinação de Jahnu,

pediu-lhe que não causasse nenhum mal ao pai. Relutante, o vaixá concordou.

“Quando os ingleses forem embora, eu retomarei a propriedade da minha família

e lá poderemos construir um lar e cuidar de nossos filhos. Mas até que isso

aconteça, é preciso que você tome muito cuidado. Preste atenção no que fazer

quando notar que a propriedade está sendo atacada. No guarda-roupa do meu

quarto – que agora você ocupa - há uma passagem secreta. Para acioná-la, você

deve girar uma alavanca que fica no meio da parte dos fundos. Essa passagem

dá acesso a um pequeno cômodo. Meu pai mandou construir para o caso de alguma

emergência. Não se preocupe, porque ela é ventilada por várias correntes de

ar. Leve cobertor, água e comida e só saia de lá quando eu lhe chamar.

Entendeu?” Olivia disse que sim e ele acrescentou: “Outra coisa vos peço: diga

a Jay que volte imediatamente com Lalita e Jagadamba para a casa de seu pai”.

Procedimentos combinados, quando Olivia levantou-se para ir embora, o poeta

solicitou que ela não se vestisse imediatamente. Ele ainda queria contemplar

aquele corpo, guardar na memória cada curva e o cheiro de flores que exalava

de sua pele. A moça reagiu com certo recato, mas, depois, consentiu com um

sorriso insinuante e, pegando o poema que recebera de presente do bolso do

Page 111: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

vestido, pediu a Jahnu que o lesse. Ele leu com alma. Foi o suficiente para

que o coração da Julieta apaixonada se incendiasse de desejo e eles se amaram

mais uma vez.

A tarde encaminhava-se para seu fim e Lalita estava na varanda da casa,

ajeitando alguns vasos de flores, quando Olivia chegou. Imediatamente a criada

correu para a biblioteca e avisou o tenente Matthew. Este a orientou para que

chamasse a noiva à sua presença. O pedido foi atendido a contragosto pela

donzela.

- Pode-se saber onde você se meteu durante toda o dia?

- Eu fui passear na beira do rio e ler.

Em suas mãos havia o livro de sonetos de Shakespeare. Melhor não tê-lo

mostrado. O oficial o tomou com rispidez e atirando-o ao chão, disparou:

“Maldita poesia! Aquele selvagem envenenou sua alma com essa porcaria”.

“Jahnu não é um selvagem”, replicou com firmeza. A atitude inusitada da noiva

só fez piorar o estado de nervos do tenente. “Então é assim? Quer dizer que

agora você o defende? Você está apaixonada por ele?”, interrogou apertando-

lhe com força o braço. Diante do olhar desafiador de Olivia, o militar deu-

lhe um tapa no rosto. “Nunca mais ouse me tocar”, disse com veemência sem,

contudo, elevar o tom de voz. Caindo em si, Matthew Donalds apressou-se em

pedir desculpas, abraçando-a e tentando a todo custo beijar-lhe a boca. Cada

negativa da noiva aumentava-lhe ainda mais o furor. Não fosse pela chegada

inesperada de Jay, o oficial a teria tomado à força. “O que você quer,

selvagem?” reagiu nervosamente. “O major deseja lhe ver no átrio interno”,

esclareceu o sudra, de cabeça baixa. “Nossa conversa ainda não acabou”, disse

o homem em tom ameaçador à donzela.

Sozinha com o criado, Olivia revelou que estivera com Jahnu,

naturalmente omitindo alguns detalhes. O servo ouviu pacientemente o relato

e, assim que ela terminou de falar, limitou-se a pedir humildemente: “Por

favor, senhorita, não o faça sofrer”. Disse isso e saiu. Olivia foi para o seu

quarto banhar-se. Despida, notou na roupa íntima, a mancha rubra de sangue

da inocência perdida. Dobrando-a, guardou com cuidado e devoção junto com o

poema. Já dentro da banheira, reviveu com carinho cada instante daquela manhã

passada com o amor de sua vida. Com a cabeça apoiada por uma toalha, fechou

os olhos e adormeceu. Em seu sonho, estava de volta à clareira da grande pedra.

As árvores, o céu e a terra tinham uma coloração que unia diferentes tons de

Page 112: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

azul, laranja e violeta. Sentado na grande pedra, um homem de cabelos

cacheados entoava a mesma canção que Jahnu havia cantado na noite do noivado.

Sem parar de cantar, o homem virou-se e sorriu. A voz era a mesma do amado

mas, não reconhecendo-lhe o rosto, a moça permaneceu calada. Ele então se

aproximou e quanto mais perto chegava, ela notava nele – ainda que anos mais

velho - as linhas inconfundíveis do rosto de seu príncipe. Ele beijou-lhe as

mãos, testa, olhos e boca. “Minha estrela matutina, o nosso amor resistirá ao

tempo e ao espaço. Ainda nos encontraremos em outras vidas até que por fim

fiquemos juntos por toda a eternidade”, disse ternamente enquanto deslizava

os dedos sobre o rosto da senhorita, enxugando-lhe as lágrimas. Depois a

abraçou delicadamente e sussurrou bem baixinho: “Amo-te”.

“Olivia!”, o chamado enérgico à porta trouxe-a de volta ao plano físico.

Após recompor-se, foi atender a solicitação do major Wickert. “Minha filha,

comece a arrumar as coisas imediatamente. Partirás amanhã mesmo de volta à

Inglaterra até que eu e Matthew cheguemos para o casamento. Enquanto isso,

estás proibida de sair do quarto”. Antes que a jovem pudesse dizer alguma

coisa, o homem saiu apressadamente. Em pânico, ela pensava na melhor forma

de falar com Jahnu e explicar-lhe a situação. Sem outra alternativa, começou

a escrever uma carta que pediria a Jay para entregar. Nervosa, tinha

dificuldade em escolher as palavras. Foi a lembrança da mãe que lhe trouxe a

tranquilidade para concluir com sucesso o intento. Agora aguardaria até que

Lalita trouxesse o almoço para solicitar a presença de Jay. A desculpa seria

pegar as pesadas malas que compunham sua bagagem. O sudra veio assim que

convocado. Após ter ouvido as minuciosas orientações, partiu sem demora em

direção à clareira da grande pedra. Porém, não encontrou o amigo quando lá

chegou. Ele gritou o poeta pelo nome várias vezes e ninguém apareceu. O servo

ainda considerou procurá-lo mais adiante, mas daí se afastaria demais e seu

retorno se tornaria mais demorado.

Por volta de três da tarde, Jahnu Mahajan foi avistado pelo primeiro

sentinela do grupo de resistência. Depois de recebido por Samarjit, colocou os

colegas a par das novidades. Pelo relato feito, a conclusão geral foi de que

não havia melhor momento para um ataque surpresa. Com o coração saltando de

entusiasmo, o vaixá ficou sabendo que semelhantes ações estavam programadas

para diversas províncias. Finalmente a visão de seu sonho se tornaria

realidade. A única diferença é que agora ele não teria uma armadura dourada

ou capacete – muito menos um corcel negro, apenas um escudo e uma espada.

Page 113: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Chamando Samarjit em particular, pediu veementemente que cinco pessoas não

sofressem nenhum mal durante a ofensiva: Jay, Lalita, Jagadamba, Olivia e o

pai dela. Perguntado do porquê da preocupação com a moça e o comandante, o

vaixá confessou o envolvimento amoroso – o que foi interpretado como fraqueza

pelo líder rebelde. Mas diante da inflexibilidade do poeta, acabou cedendo.

Últimos detalhes acertados, a tropa - formada por 70 homens - partiria com o

cair da noite. A intenção era surpreender o inimigo antes do amanhecer do dia

seguinte.

Como se fora um comandante passando o pelotão em revista, João Guilherme

ficou prestando atenção aos soldados que lutavam pela independência da Índia.

Ao olhar mais de perto, contudo, notou que aqueles homens estavam longe de

serem guerreiros. Ainda que corajosos e determinados, que chances teriam

contra um exército altamente treinado para a guerra? Afinal, o que dava a

Jahnu Mahajan tamanha convicção da vitória? Incomodado por essa dúvida, o

professor aproximou-se da encarnação indiana e uniu-se a ela. Buscou nos

pensamentos do vaixá algo que pudesse saciar-lhe a dúvida, mas nada encontrou.

O aparelhamento, somado ao cansaço, fez com que o indiano adormecesse

profundamente e o jornalista passou a ver o que sonhava. Primeiro ele sonhou

que novamente fazia amor com Olivia em cima da grande pedra à beira do rio,

depois sonhou com os pais e por fim com a batalha. João Guilherme viu o vaixá

montado no cavalo negro, trajando a armadura dourada e o elmo prateado e

empunhando espada e escudo. Então os olhos de Jahnu e de João fundiram-se.

Para onde o primeiro olhava, o segundo olhava também. Embora vendo as mesmas

cenas, cada um as interpretava de um jeito diferente. Para o indiano, tratava-

se de um evento futuro; para o brasileiro, de um evento passado. João teve

esse entendimento porque tudo o que via pelos olhos de Jahnu era exatamente

como descrito na epopeia do Bahgavad Gita, quando a Índia era uma gloriosa

nação, unificada política e culturalmente.

A confirmação para a desconfiança do professor veio quando, ainda pelos

olhos de Jahnu Mahajan, viu o general de seu exército no alto do monte em

uma biga. Tendo a agitação do espírito guerreiro do vaixá como adversária,

João conseguiu direcionar o olhar para a figura imponente do comandante. O

que se revelou causou-lhe uma reação de indescritível alegria na alma. O

general era Arjuna, o guerreiro de braços fortes – como Krishna mesmo

costumava descrevê-lo. E era o próprio Krishna, a encarnação de Vishnu, a

divindade que estava ao seu lado confortando-lhe a alma sufocada pela dúvida

Page 114: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

sobre se devia ou não lutar. E então, como a luz da vela que é soprada com

vigor, o sonho acabou. Acordado, Jahnu mal podia esperar pela hora da

vingança. E contra esse desejo, o jornalista não poderia fazer nada.

Page 115: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

22

Na propriedade dos Mahajan o clima era de tensão. A descoberta da fuga

de três empregados colocara o tenente Matthew em alerta. Enclausurada e

aflita, Olivia rezava para que nenhum mal se abatesse sobre Jahnu e torcia

para que Jay voltasse logo com alguma boa notícia. Foi então que lembrou-se

da passagem que o poeta lhe falara. A descrição da localização e do mecanismo

de abertura tinha sido perfeita. Com extrema cautela, deixou no cômodo secreto

uma coberta, água, pães e algumas frutas. Quando saiu de dentro do guarda-

roupa, a surpresa não poderia ser mais desagradável. O pai e o noivo batiam à

porta. “Meu amor, acabamos de receber um comunicado de que grupos insurgentes

estão se organizando no norte e centro do país”, revelou Matthew assim que

entrou no quarto. Depois completou: “Mesmo sem sinais de qualquer

movimentação por esta região, seu pai e eu decidimos que você estará mais

segura na fortaleza. Um grupamento de soldados irá escoltá-la. Partindo

imediatamente, vocês chegarão em no máximo três horas e, ao amanhecer, poderá

pegar uma embarcação em direção à capital da província”. “Isso mesmo minha

filha. Coloque somente o indispensável em uma valise que a escolta já está

pronta”, concordou o major. O desespero tomou conta de Olivia. Ela nem poderia

esconder-se no cômodo secreto porque, óbvio, o primeiro lugar a ser vasculhado

seria o quarto. Essa estratégia só seria eficiente com a agitação causada pela

chegada dos rebeldes. Obedecendo a ordem paterna, colocou o mínimo de coisas

na pequena mala. Entre elas, o livro de sonetos de Shakespeare e poema de

Jahnu. A despedida do pai e do noivo foi a mais fria possível. Quando entrou

na carruagem que a levaria à fortaleza, deu uma última olhada no lindo jardim

e afundando a cabeça entre as mãos, chorou copiosamente. Cada solavanco da

carruagem aumentava-lhe o martírio. Somente depois de quase duas horas de

viagem, quando o sol começava a se por, é que ela teve disposição de olhar pela

janela. Foi aí que notou que o rio estava próximo. Recordando-se da manhã de

amor que tivera com Jahnu, tentou enxergar a grande pedra. Esforço em vão,

com a mão espalmada, lançou ao ar um último beijo na esperança que ele,

conduzido pelo vento, encontrasse seu grande amor. Depois de mais duas horas

chegaram à fortaleza.

Finalmente havia chegado a hora. Às dez da noite os rebeldes estavam

prontos para o ataque e marcharam rumo à propriedade dos Mahajan. Três horas

Page 116: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

depois, ao passar próximo à grande pedra, o coração do poeta apertou-se e foi

preciso um esforço hercúleo para que não chorasse. Mais duas horas depois,

quando os revolucionários estavam a somente dois quilômetros da casa grande,

a tropa interrompeu a marcha. Era preciso certificar-se de que nenhuma

emboscada os aguardava. Novamente Jahnu Mahajan foi o batedor. Com exceção

da grande varanda, todas as luzes da casa estavam apagadas. O vaixá ainda

teve tempo de olhar com carinho na direção do quarto onde pensava estar

Olivia. De volta ao grupamento, relatou não ter notado nenhuma movimentação

estranha. Samarjit determinou então que o ataque começaria uma hora antes do

amanhecer.

A vegetação estava molhada pelo sereno da madrugada quando os rebeldes

chegaram. Por causa das armas de fogo da tropa inglesa, um confronto direto

seria suicídio. Era preciso pegá-los de surpresa, enquanto estivessem

dormindo. Silenciosos como uma serpente, os insurgentes cercaram a casa e o

acampamento que ficava na parte de trás. O plano principal era capturar o

major Wickert e o tenente Donalds e forçar uma rendição. Olivia estaria a

salvo no cômodo oculto. Aliás, essa não era a única passagem secreta. Havia

ainda mais três. E por elas Jahnu conduziria os combatentes. A primeira dava

acesso ao quarto principal – onde estava o comandante inglês; a segunda à

biblioteca e a terceira à cozinha. Dez homens foram destacados para penetrar

na casa e realizar os sequestros. O restante tomaria conta do acampamento.

Uma vez dentro, Samarjit - acompanhado de Amish - não teve problemas

com o comandante. Ele ainda estava de pijamas quando foi surpreendido. A

dificuldade dos outros rebeldes foi saber em qual dos quatro aposentos estava

o tenente, já que Jahnu tinha ido ao quarto de Olivia. Assim que entrou, o

vaixá viu o uniforme do militar pendurado na cabeceira da cama e a

possibilidade do que poderia ter acontecido lhe cegou de ciúme. Com um ríspido

movimento, puxou a coberta e para seu alívio, apenas Matthew dormia na cama.

Surpreso com a súbita invasão, o inglês sacou do revólver que tinha embaixo

do travesseiro e atirou na direção do indiano. O projétil pegou de raspão o

ombro direito e antes que o tenente pudesse fazer o segundo disparo, o poeta

atirou-se para cima dele. O tiro acordou o restante da tropa que dormia nas

barracas. Quando saíram foram surpreendidos pelos soldados rebeldes. A

batalha começou com baixas de ambos lados.

Durante a luta, a arma de Matthew caiu no chão e Jahnu a pegou

rapidamente. Ele não queria correr o risco de uma bala perdida atingir Olivia,

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que supostamente estaria no cômodo secreto. Depois de dominar o inimigo, o

vaixá amarrou-lhe e o arrastou para os fundos da casa, onde o major Wickert

estava em poder de Samarjit. Ao ver os dois oficiais dominados, o restante da

tropa depôs as armas. A alegria dos indianos foi imensa pela primeira vitória.

Depois de todos os inimigos imobilizados, o poeta correu para dentro da casa

em busca de Olivia. Para sua decepção, não a encontrou no local combinado.

Como um louco, pegou a espada do pai, que ficava pendurada na parede da

biblioteca, e partiu em direção a Matthew. “Desgraçado! Onde ela está? Diga ou

eu te mato”, ameaçou com a lâmina no pescoço do rival. “Você pode me matar,

mas ela jamais será sua. Você não é digno dela. Você não passa de um selvagem”,

respondeu o tenente com um sorriso sarcástico. Tomado de ódio, Jahnu o golpeou

no rosto com o cabo da espada. “Você é muito corajoso, sudra. Especialmente

contra um inimigo desarmado e amarrado”. A insinuação de que era um covarde

feriu o orgulho do poeta. “Soltem esse miserável e lhe deem uma espada”.

No meio do terreiro, os homens se encararam furiosamente. Os primeiros

movimentos foram cautelosos até que as investidas mais fortes começaram. O

choque nervoso das armas soltava faíscas de fogo no ar. O duelo se estendeu

por longos minutos até que Jahnu atingiu o braço de Matthew e este deixou a

espada cair. “Vamos selvagem, acabe logo com isso”, gritou o inglês reconhecendo

a derrota. Como que em um coral sedento por sangue, os rebeldes bradavam:

“Mata! Mata! Mata!”. João Guilherme assistia a tudo em silêncio. Esta era a

segunda vez que via aquela situação. Em diferentes épocas, eram os mesmos

homens brigando pelo amor da mesma mulher. Antes do golpe fatal, a doce

recordação de Olivia veio ao coração de Jahnu Mahajan. “O amor e o perdão são

as forças mais poderosas do Universo”. Era a voz dela clamando para que ele

não permitisse que a alma fosse contaminada pelo ódio. “Prendam esse homem!”,

o vaixá limitou-se a dizer. Depois entrou na casa, agora novamente sua e,

depois de encontrar o quadro com a imagem do pai, pendurou-o de volta no

lugar devido. A primeira vitória havia sido alcançada. Contudo, o poeta não

estava feliz.

Ele entrou em seu quarto e era como se pudesse sentir ainda a energia

de Olivia. Penetrou no cômodo secreto e, desolado, raciocinou que muito

provavelmente ela tinha sido mandada de volta à Inglaterra. Viu-se então

diante de um dilema: tentar chegar à capital da província antes dela ou

continuar na luta pela libertação do país. O coração falou mais alto que a

obrigação. Depois de colocar Samarjit a par da decisão, Jahnu partiu

Page 118: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

imediatamente. Forçando ao máximo o corcel negro que lhe servia de montaria,

foi em busca do grande amor. Por volta de meio-dia parou para dar água ao

cavalo e descansar um pouco. Em seguida, fez uma rápida refeição, limpou o

ferimento do ombro e pegou a estrada outra vez. No fim da tarde, chegou ao

destino. Vestido de acordo com sua verdadeira condição social e com uma

altíssima quantia de dinheiro que pegara no cofre instalado no cômodo secreto

do quarto, dirigiu-se até as docas para informar-se de embarcações com destino

à Europa. “O senhor está sem sorte. Hoje pela manhã um veleiro partiu para

Paris, Escócia e Londres”, informou um velho marujo. “E quando será o

próximo?”. “Este navio que está aportado aqui parte em no máximo quinze dias”,

informou o homem do mar. Mais uma vez, Jahnu Mahajan tinha de tomar uma

decisão: ou ficava e aguardava o navio ou voltava ao grupo de insurgentes. A

obrigação falou mais alto que o coração. Ele partiria na manhã seguinte.

Enquanto isso, procurou uma hospedaria e aproveitou para se inteirar das

notícias sobre os levantes que varriam a Índia. Na casa de chá não se falava

em outra coisa. “Essa situação precisa ser resolvida o mais rápido possível.

Ingleses e indianos podem conviver em perfeita harmonia. Nós estamos aqui

para ajudar”, discursou um senhor britânico. “Sim, esses rebeldes precisam

entender que ninguém pode impedir o progresso”, ratificou um vaixá. O diálogo,

surreal no entendimento do poeta, quase o fez perder a calma, mas ele controlou

a fleuma, pois sabia que qualquer atitude impensada poderia gerar suspeitas

e colocar tudo a perder.

João Guilherme ficou ainda mais um tempo na casa de chá depois que Jahnu

foi para o quarto. Ele também achava inaceitável aquela estranha

confraternização entre oprimido e opressor. Saindo para a rua, olhou para as

estrelas que lotavam o céu. Quanto mais olhava, mais se sentia conectado com

o Universo. “As estrelas são como o brilho dos olhos de nossos antepassados a

velar por nós”, exclamou um yogi sentado no canto da varanda da estalagem.

João surpreendeu-se pelo fato de ter sido notado pelo asceta. “Como o senhor

percebeu que eu estava aqui?”, espantou-se. “Estás a irradiar uma luz muito

forte”, respondeu o ancião sem abrir a boca e o jornalista compreendeu que ele

estava se comunicando via telepatia.

- Como está indo a vossa missão?

- Ainda estou confuso em relação a muitas coisas, mas tudo tem se

encaminhado bem.

- Como é o mundo no futuro?

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- A humanidade passou um longo tempo como que adormecida e agora,

lentamente, começa a despertar. Estamos sendo abençoados por uma grande

abertura cósmica em nossa busca espiritual.

O yogi sorriu e completou: “É bom saber que nosso trabalho será bem

sucedido. Que o Augusto Pai Krishna lhe abençoe, meu filho”. Ainda sorrindo,

o ancião convidou-o para que meditassem juntos. João Guilherme achou o

convite gentil e aceitou. Sentado na posição correta e de olhos fechados, foi

envolvido por um sutil fluxo de energia que foi se intensificando até que

simplesmente perdeu os sentidos. Uma sensação de vazio e plenitude tomou conta

do professor. Ele tornara-se o tudo e o nada.

Com extrema dificuldade João Guilherme conseguiu abrir os olhos e foi

saudado pelo sorriso tímido da moça de olhos azuis. Não fosse pelos cabelos

pretos e pele morena, ele diria estar diante de Olivia, tamanha a semelhança.

A garota chorava muito. Por alguns instantes, os dois ficaram se olhando como

dois amigos que se reencontram depois de anos. Meio sem jeito, ela aproximou-

se e, dando um beijo no rosto do professor, disse um surpreendente “muito

obrigada”. João não conhecia aquela voz e tentou dizer alguma coisa, mas não

conseguiu. Segurando a mão direita do poeta, a jovem disse em tom sereno:

“Enfermeira, ele acordou!”

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23

Jahnu Mahajan acordou decidido. Ele não podia ficar sem fazer nada

enquanto o país pegava fogo. Todavia, era preciso, primeiro, ir ter com Jay na

vila onde estava com a família e depois voltar à casa de seu pai. O próximo

passo seria engajar-se novamente na luta com o exército rebelde e só então

voltaria à província para pegar o navio que o levaria até os braços da amada.

Porém, por algum motivo que não conseguiu compreender, preferiu ficar mais

um dia na cidade. Na manhã seguinte, partiu bem cedo e horas depois chegou ao

vilarejo onde tudo começara. Embora a miséria fosse a mesma, o ar estava mais

pesado. Foi com desconforto que entrou nas ruas montado em seu cavalo de raça

e com vestes de nobre – o que atraiu os piores olhares para si. “A ostentação

era totalmente desnecessária”, pensou. Assim que chegou à choupana de Jay,

abraçou-o longamente. O sudra retribuiu o afeto, mas não conseguiu esconder

a aflição.

- Há algo errado, irmão?

- Venha comigo até a casa de meu pai - respondeu Jay secamente.

Vivek os esperava na porta do casebre. A notícia da chegada do vaixá

espalhara-se rapidamente. Ao recebê-lo, seu olhar foi de desdém por causa da

exagerada elegância. “Como você consegue vestir-se assim, enquanto morremos

de fome?” Ainda que não tenha dito com a boca, foi o que o ancião disse com os

olhos. “Namastê, Vivek Ji”, disse o filho de Sudhir Mahajan, meio sem jeito.

“Jahnu Ji, eu lhe disse que a nossa vitória não seria através da espada. Olho

por olho, dente por dente, e todos acabaremos cegos e banguelas. Hoje nossas

famílias choram a morte de seus varões. Ontem, depois de sufocar a movimento

revolucionário, os britânicos retomaram o controle da propriedade de vosso

pai. Depois, vieram aqui e, como lição a qualquer nova tentativa de

insurgência, mataram um filho de cada família. Somos pobres e miseráveis, sim,

mas ainda tínhamos uns aos outros. Esses moços morreram na flor da juventude.

Tudo que queriam era viver em paz; casar-se; ter um filho, ser feliz quem sabe.

Eles foram sacrificados para que você, Jahnu Mahajan, pudesse novamente

vestir suas roupas de seda e festejar a riqueza de vosso pai com banquetes.

Maldito sejas tu, imperialista sem coração. Tens as mãos manchadas para sempre

com o sangue do povo sudra. Eu sugiro que pegue o que conseguiu reaver de sua

fortuna e volte para a Inglaterra. Volte para o teu povo. A tua cabeça está a

prêmio e o tenente Matthew jurou não descansar enquanto não vos capturar e

Page 121: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

qualquer um que lhe ajudar será punido com a morte. Em consideração a meu

filho, permitiremos que você parta. Vá e não volte”.

As palavras do ancião rasgaram a carne do poeta. Humilhado, sua alma

sangrava em via pública. Jahnu olhou em volta e entendeu que Vivek falava

por todos. O clima se tornara insustentável. Ainda assim, antes de sair, pediu

permissão para falar. Permissão concedida. “Meus irmãos, meu espírito está

profundamente abatido com tudo que ouvi. Humildemente, eu rogo – se possível

– perdão a todos a quem causei sofrimento. Vivek Ji está certo. Inicialmente,

todo o meu empenho nunca teve como objetivo a independência da nossa amada

mãe Índia. Eu fiz isso por meu pai. Pela minha família. Por mim. Mas assim

como é certo que Krishna derrama a Sua bondade e misericórdia sobre nós, foi

aqui que aprendi o significado da lealdade. Foi aqui que aprendi o valor da

amizade, da solidariedade e da cooperação. E, no meio dessa batalha, uma luz

brilhou-me na escuridão da alma. Descobri o amor de uma mulher e não

descansarei enquanto não reencontrá-la. Mas minha vida não terá sentido

enquanto a justiça não for feita e os ingleses sejam expulsos. É certo que

vossos filhos e meus companheiros rebeldes morreram, mas a morte, na luta

pela liberdade, é a mais nobre de todas. Nós viemos livres a este mundo e

livres devemos deixá-lo. Não lutar pela liberdade é desprezar o maior tesouro

que o Augusto Pai Brahma nos deu”.

Em seguida, Jahnu Mahajan tirou as roupas de luxo, ficando apenas com

a parte que lhe tapava a intimidade. Abrindo o alforje, pegou o suficiente

para comprar roupas comuns e pagar o navio que o levaria à Inglaterra.

Ajoelhando-se aos pés de Vivek, implorou, em lágrimas, que aceitasse o restante

como oferta para comprar comida ao povo. Como já acontecera antes, o ancião

percebeu sinceridade nas palavras do jovem e acatou o pedido. Depois, o ergueu

pelas mãos e o abençoou. Jay acompanhou o amigo e irmão até a saída do vilarejo

e, chegando lá, recomendou-lhe uma trilha segura. O abraço de despedida foi

demorado e sentido. Antes que o poeta partisse definitivamente, o sudra

passou-lhe o envelope com a carta que Olivia escrevera e que não tivera a

chance de entregar. O coração de Jahnu pulou de alegria, mas ele não leu a

correspondência de imediato. A intenção era fazê-lo com calma. Montou no

cavalo com ânimo revigorado e em pouco tempo era apenas um pequenino ponto

negro sob a luz do sol do meio-dia na estrada deserta.

“Príncipe,

Page 122: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Mais uma vez, o destino põe o nosso amor à prova. Meu pai determinou que

eu retornasse à Inglaterra o mais rápido possível. Estou escrevendo com

pressa, pois a qualquer momento podem entrar no quarto. Saiba, meu Romeu, que

nunca fui tão feliz em toda a minha vida quanto nos momentos em que passamos

juntos. Eu te esperarei sempre. Não importa o tempo. Assim que chegar a

Londres, irei todos os fins de tarde ao Palácio de Westminter, em frente ao

relógio Big Bem, e lá ficarei a contar os minutos para o nosso reencontro. A

felicidade há de nos sorrir. Por favor, não me deixe.

Com amor eterno,

Olivia

Jahnu leu e releu a pequena carta inúmeras vezes, até que memorizou cada

palavra. Com a alma renovada, saiu da pequena caverna natural, banhada por

uma pequena fresta de sol que lhe servira de lâmpada e continuou a viagem

sem demora. Quando estava quase chegando novamente à capital, deixou o cavalo

em um lugar seguro e entrou a pé na cidade. Depois de comprar roupas modestas,

voltou para buscar o corcel na intenção de vendê-lo. Foi preciso muita

habilidade para barganhar um bom preço. Estava tudo pronto para a partida.

O grande desafio, contudo, era permanecer incógnito durante os dez dias que

ainda faltavam para o próximo navio zarpar. Para tanto, não poderia instalar-

se em nenhuma hospedaria e nem demonstrar que tinha dinheiro. O tenente

Matthew deveria ter colocado agentes com a incumbência exclusiva de procurá-

lo. Sem saber o que fazer, entrou no primeiro templo que encontrou e ficou

meditando no meio da multidão de fiéis. Se pudesse, ficaria lá o tempo todo,

pois certamente os soldados britânicos não ousariam violar um lugar sagrado

para os hindus. “E por que não?”, raciocinou Jahnu. Então decidiu que não

faria outra coisa se não meditar e orar e só comeria o mínimo possível. Assim

foi. Todavia, no terceiro dia de vigília algo inesperado aconteceu. Vestido à

paisana e com a desculpa de querer conhecer os costumes locais, o temido oficial

inglês Matthew Donalds entrou na casa de oração. Jahnu Mahajan não o viu,

todavia sentiu sua presença. Já habituado à concentração, o poeta ficou ainda

mais imóvel, pois qualquer movimento, ainda que mínimo, o denunciaria.

Mentalmente o vaixá rogou pelo socorro de Krishna e abriu os olhos. A

Page 123: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

princípio a oração pareceu não ter sido atendida. Muito pelo contrário, pois

o tenente estava a poucos metros. Jahnu pensou em se levantar e sair correndo,

mas João Guilherme soprou em seu ouvido: “Não se mexa! Fique exatamente onde

está!” O filho de Sudhir Mahajan obedeceu o que considerou ser o próprio

pensamento. Encarando o militar britânico, acendeu-se uma estranha suspeita

na mente. Por algum motivo de ordem sobrenatural, apesar de olhar diretamente

para o poeta, o tenente não o via. Era como se tivesse ficado invisível. E foi

o que de fato ocorreu. Aliviado, depois que o inglês saiu, Jahnu Mahajan passou

vários minutos agradecendo mentalmente a Krishna por mais esta bênção.

Por fim chegara o dia da partida. Novo problema. Havia um grupo de

soldados ingleses na plataforma de embarque. Para driblá-los, o vaixá não

pensou duas vezes, comprou trajes femininos e os vestiu. Ainda foi preciso

gastar um pouco mais das parcas economias para subornar o funcionário que

recolhia as passagens na entrada reservada à classe econômica para não checar

seus documentos. Finalmente a bordo, Jahnu aguardava ansiosamente pela

partida. Quando a âncora foi içada, de uma tonelada, sua alma passou a pesar

um grama - tamanho o alívio. Em alto mar livrou-se das roupas de mulher e

ao olhar para o imenso tapete azul que se estendia em todas as direções, chorou

de saudade dos olhos de Olivia. Ao lado do indiano, João Guilherme sentia a

mesma saudade. A diferença era que Jahnu tinha estado com ela no plano físico

e ele não. O dia tinha sido cheio. Era preciso descansar um pouco. Os poetas

voltaram à cabine e dormiram.

“Olá, João”. Acordado dentro do sonho, o jornalista olhou para o lado e

com o coração feliz, viu Eleanor. “Meu irmão, é chegada a hora de algumas

respostas. Feche os olhos e venha comigo, por gentileza”, disse ela com o tom

carinhoso de sempre. O professor obedeceu à orientação e quando abriu os olhos,

estava de volta à chácara onde morava. Espíritos saídos das sombras da noite,

como velhos amigos, vieram lhe saudar.

João e Eleanor pararam em frente à casa do professor. Embora densa,

havia brechas na vegetação que permitiam contemplar o céu enluarado e

estrelado. Inúmeras vezes o poeta tinha passado um bom tempo ali a olhar para

o fino e negro véu da noite. Nem a moto e nem a rede estavam na varanda e a

janela estava aberta. Entrando na sala, João Guilherme surpreendeu-se com

tamanha arrumação. O ambiente estava limpinho e ordenado. As centenas de

Page 124: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

livros; os CDs e DVDs; revistas, hinários da doutrina e algumas peças de

artesanato. Estava tudo na estante. O espanto explica-se pelo fato de que, por

mais que tentasse, o professor nunca sido um homem exatamente organizado,

muito embora tivesse progredido bastante. A mentora sentou-se na cadeira de

palha e João Guilherme na poltrona de veludo. Como sempre costumava fazer,

estendeu os pés no banquinho almofadado. Percebendo a grosseria perante uma

senhorita, recolheu-os. “Fique à vontade, amado irmão”. João olhou para as

paredes brancas chapiscadas e, como já ocorrera muitas vezes, viu desenhos que

lembravam figuras humanas e símbolos parecidos com sânscrito e hieróglifos

egípcios. Por trás do sofá onde sentara, primeiro veio Wicca. Depois Orfeu

surgiu do corredor que levava ao quarto. Eles miaram como que a saudar o

companheiro de residência e subiram na poltrona, naquele vai e vem típico.

Contente por rever os gatos, o jornalista lamentou não poder fazer-lhes

cafuné como tanto gostavam. Em seguida, foi até o escritório, sempre seguido

pelos bichanos, onde mantinha um altar com pequenas estátuas de São Miguel

Arcanjo, Buda, Jesus Cristo, Nossa Senhora da Conceição e uma foto de Mestre

Irineu. A estrela de fardado, o maracá indígena e o pequeno cruzeiro de

madeira também estavam lá. Como sempre, havia uma vela de sete dias acesa.

Após fazer o sinal da cruz, rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria. Finalmente o

grande momento chegara. Ele entraria e veria seu corpo em estado de sono

profundo. No quarto, tudo estava perfeitamente arrumado. O laptop, placa de

som externa e os microfones sobre a escrivaninha cor de verniz. A cadeira

giratória; o umidificador de ar; o suporte de madeira para roupas, o

ventilador em cima da mesinha de madeira e a imagem de Jesus Cristo

trabalhada em uma telha e com uma joia vermelha no lugar do coração,

pendurada à parede por um barbante. Como foi dito, tudo estava em seu devido

lugar – menos o corpo de João Guilherme sobre a cama impecavelmente feita.

Foi quando Eleanor interveio. “Querido, deite-se na posição de projeção

astral”. Cumprindo a solicitação, colocou-se de barriga para cima, com as

pernas levemente afastadas e os braços estendidos ao lado do corpo com as mãos

ligeiramente abertas. Amparado pelo espírito de luz, o jornalista caiu em sono

profundo.

O solavanco da moto na estrada de chão batido despertou João. Sonolento,

sabia que era uma temeridade andar naquelas condições depois do anoitecer. A

passagem pela cachoeira tinha sido mais longa do que o planejado e sem

Page 125: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

equipamento de camping, não seria possível passar a noite lá e ele também

tinha tomado Daime. A solução era rodar os cerca de dez quilômetros de volta

à cidade de Chapada dos Guimarães para o conforto do hotel. Habituado a

pilotar por aquela rota, não estranhou de imediato o carro parado à beira da

estrada. Muitas pessoas deixavam o veículo assim enquanto pegavam alguma

trilha. Ele só se deteve quando, ao passar do lado, notou um movimento suspeito.

A primeira impressão foi de que um casal mais afoito se divertia ali mesmo. O

grito de socorro foi quase inaudível. Imediatamente o poeta deu meia-volta,

desceu da moto preta, tirou o capacete prateado e aproveitando o farol alto

da Shadow 750 como lanterna, encostou o rosto no vidro do automóvel. Não

poderia haver erro. A moça estava sendo violentada. Seus gritos de desespero

eram sufocados pela mão do estuprador. João Guilherme abriu a porta e puxando

o homem pela camisa, o tirou do carro. Os dois rolaram na terra vermelha e a

garota imediatamente trancou as portas. Em pânico, tentou dar partida e não

conseguiu. O primeiro tiro ricocheteou no capacete e perdeu-se na mata. Quando

foi tentado o segundo disparo, a arma falhou. Tempo suficiente para que João

partisse para cima do homem e o acertasse no rosto. O golpe fez com que o

agressor deixasse cair o revólver calibre trinta e oito. O poeta o pegou e

apontou. “O amor e o perdão são as forças mais poderosas do universo”, foi o

que disse a voz feminina em sua cabeça. João Guilherme hesitou. Com a pistola

segura pela mão direita apontada para o malfeitor, com a esquerda tentou

alcançar o celular no bolso da frente da calça jeans para chamar a polícia.

Esse lapso foi tempo suficiente para que um segundo homem, escondido atrás do

carro, viesse pelas costas e disparasse duas vezes contra o jornalista. Ainda

haveria um terceiro tiro não fosse pela aparição providencial de mais um

carro com as luzes altas – o que fez os homens fugirem.

“É o professor João Guilherme!”, constatou com espanto o rapaz que

ofereceu o primeiro socorro e o colocou imediatamente no carro. O amigo que

estava junto pegou a direção do automóvel da moça – ainda em estado de choque.

Embora receba centenas de turistas aos fins de semana, Chapada dos Guimarães

carece de um posto de saúde equipado para aquele tipo de situação. Havia duas

alternativas: seguir mais 67 quilômetros para Campo Verde ou voltar 64 para

Cuiabá. A polícia preferiu a segunda opção. Os rapazes ficaram detidos para

prestar depoimento e a garota foi encaminhada para receber atendimento

médico. A sirene estridente da ambulância abriu caminho no perímetro da

cidade, enquanto o movimento ainda era intenso naquela noite de sábado. Dentro

Page 126: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

da unidade móvel de saúde, Eleanor segurava a mão do poeta. Pela primeira

vez, em muitos anos, ela não demonstrava calma. Aquele acontecimento não fazia

parte dos eventos planejados pelo astral para João Guilherme Ribeiro. “O que

teria saído errado?”, pensou. Quando chegou ao Pronto Socorro de Cuiabá, o

paciente recebeu o primeiro atendimento, mas sem vagas na unidade de

tratamento intensivo, teve de aguardar no box, respirando com dificuldade

entre a vida e a morte. “Ele tem que ser levado para a UTI de um hospital

particular urgente”, explicou a plantonista ao enfermeiro. Dizendo isso, a

médica esforçou-se para segurar uma lágrima, já que ela mesma tenha sido

aluna de João durante o ensino médio. “Aguenta firme professor. Ainda não

está na hora de dizer good bye”, falou ela imitando a despedida que ele sempre

fazia ao final das aulas, esticando ao máximo a palavra “good”. Ao vasculharem

a carteira do poeta, não foi encontrado nenhum cartão de saúde. “Menino

cabeçudo! Quantas milhões de vezes eu já não te disse para comprar um plano?”,

esbravejou Eleanor. “Pegue o celular dele e ligue para o Luiz. É tio dele. Está

registrado como ‘titio’”, gritou a mentora espiritual na mente da médica.

Intuitivamente, a profissional pegou o aparelho e passando nervosamente pelos

contatos, procurou por algum nome que sugerisse parentesco. Já quase no final,

viu o “titio”. Luis demorou a atender e quando atendeu, o fez do modo

brincalhão de sempre: “Faaala negrão!” A médica pediu pela identificação do

interlocutor. “Aqui é o Luiz Mariano Ribeiro. Do que se trata, por favor?”,

perguntou apreensivo, como se prevendo algo trágico com o sobrinho. “Senhor

Luiz, meu nome é Karina Vittori. Sou médica da unidade de emergência do

Pronto Socorro e João Guilherme Ribeiro acabou de dar entrada. O senhor é

parente dele?”, questionou tentando aparentar calma.

- Sim, sim. Eu sou tio dele. O que aconteceu?

- Ele levou dois tiros nas costas. A situação é crítica. Ele precisa ser

removido imediatamente para uma UTI e infelizmente nós não temos nenhuma

vaga.

- Como assim, levou dois tiros? Isso é algum trote?

- Claro que não. É melhor o senhor vir para cá imediatamente. Cada

segundo é precioso. Aqui conversaremos melhor.

Eleanor tinha escolhido Luiz por se tratar do parente com mais condições

de ajudar. Os pais adotivos de João - idosos e doentes - poderiam ter um choque

fatal caso fossem avisados de imediato. Como o próprio poeta costumava brincar

“ele era mundialmente famoso em Cuiabá”. Quando o tio chegou, fez um

Page 127: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

telefonema, que foi sendo replicado até que a vaga na UTI de um hospital

particular fosse conseguida. Como João Guilherme perdera muito sangue quando

vinha de Chapada, era preciso conseguir a maior quantidade possível de

doadores. Ciente do alarde que causaria e que fatalmente a família acabaria

sendo informada, Luiz publicou o apelo em uma rede social da internet – que

rapidamente foi sendo repassado a frente. Em pouco tempo, dezenas de pessoas

chegaram à recepção do hospital. A fatalidade também acabou chegando aos sites

de notícia. Agora não eram mais apenas doadores, mas uma pequena multidão

que trancava o trânsito na porta do hospital querendo saber notícias do poeta,

professor e jornalista e correntes de oração foram formadas. Luciana, a

sobrinha de João, leu a postagem e contou à mãe – que achou melhor não dizer

nada aos pais.

No leito da sala fria e levemente iluminada, João Guilherme dormia

profundamente. No seu lado direito, estava Eleanor. Na cabeceira estavam

Antonio, o buscador espiritual com quem fizera o curso de projeção astral pela

primeira vez – ainda encarnado e desdobrado - e Luisa, sua mãe biológica – já

falecida. No seu lado esquerdo, estava Olivia. Todos tinham os olhos fechados

e das mãos saíam feixes de energia que penetravam no corpo de João e o

mantinham vivo. De repente, o coração do poeta parou de bater e um espectro

surgiu flutuando sobre ele. A figura fúnebre causou desespero em Olivia e

Eleanor. Sabedoras que seria inútil qualquer rogo ao anjo da morte, clamaram

ao Cristo. O professor não podia morrer. Não naquele dia. Muitas coisas

precisavam ser reparadas. Os olhos azuis de Olivia se elevaram aos céus e

afogada em lágrimas, orou: “Ó Mestre amado, vós que sois a luz do mundo, atendei

a minha prece. O Senhor mesmo disse que aquele que der a vida pelo seu irmão,

ganha-la-á. Foi o que fez o meu príncipe. Ele ainda não está pronto para

desencarnar. Se ele não voltar à matéria e cumprir sua missão, nós nunca

ficaremos juntos e minha existência não terá mais sentido. Ainda há um sopro

de vida em seu coração. Pelo amor da Virgem Mãe, eu imploro Senhor, dê-lhe

mais uma chance”. Assim que a alma gêmea do poeta terminou de falar, uma

rajada de luz violeta clareou toda a sala e quando se desfez, o espectro havia

desaparecido e João voltou a respirar. Olivia e Eleanor choravam de alegria

e não paravam de agradecer pela misericórdia divina.

Encerrada a regressão de volta à chácara, como quem desperta assustado

de um sonho ruim, João Guilherme abriu os olhos e compreendeu o que se passara.

Page 128: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Finalmente lhe era revelado porque a memória curta tinha sido eliminada e

ele conseguira projeções astrais tão intensas. Ao seu lado, ternamente, Eleanor

se antecipava ao pedido que iria fazer: “Sinto muito, João, mas você não pode

ir ao hospital onde está internado. Ver o teu corpo poderia agravar-lhe o

estado de saúde. As coisas estão caminhando bem. Tenha um pouco mais de

paciência, amado irmão. Em alguns dias você e Olivia se encontrarão e uma

revelação maravilhosa será feita”.

- Alguns dias? Por que não pode ser hoje mesmo?

- Aquieta o coração, menino poeta. O teu psicossoma está debilitado. Agora

é hora de descansar. Antes mesmo que a mentora espiritual concluísse a fala,

João Guilherme caiu em sono profundo.

Page 129: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

24

Os macaquinhos da chácara faziam sua algazarra de todas as manhãs, os

passarinhos revezavam-se no canto solo e uma imensa trilha de formigas

formava-se no chão molhado pela fina chuva que caíra durante a madrugada

quando João Guilherme despertou do sono astral – ainda em estado de projeção.

Por mais que tentasse, não conseguia parar de pensar no que lhe ocorrera, pois

nunca cogitara a possibilidade de ser baleado. “E quem pensa uma coisa dessas?”,

perguntou Eleanor, que acabara de surgir ao seu lado. “Bom dia pra você

também”, brincou o poeta refazendo-se do susto. “Bom dia, moço apaixonado”.

- Eleanor, minha amada irmã, responda-me com sinceridade, eu vou

sobreviver?

- Vai sim, irmãozinho. Ou já se esqueceu do que viu nos olhos da morte

quando amparou a passagem daquela pessoa querida?

E João lembrou-se da revelação de como seria seu fim na matéria. E era

bem diferente de morrer vítima de dois tiros.

- O homem que atirou em mim era Savério e Matthew, não é mesmo?

- Sim, o ódio dele por você não tem limites.

- E quem era a moça que vi quando acordei no hospital?

- Eu até poderia dizer, mas prefiro deixar que Olivia mesma lhe conte.

- E onde está ela?

- Você não aprende mesmo, hein?

- Como assim?

- Preste atenção, João-cabeça-de-melão! Apenas pense nela e ela estará

aqui. Lembra que você leu que é possível conjurar o espírito de uma pessoa,

mesmo que ela esteja encarnada? Pois é, isso está correto. Olivia também tem

experimentado projeções astrais no mesmo nível que você. Fisicamente vocês

estão longe um do outro, mas sua alma e a dela estão permanentemente ligadas

e se reencontram frequentemente no plano astral, ainda que nenhum de vocês

se lembre disso quando acordam. A única coisa que fica é aquela sensação de

que existe alguém especial no Universo esperando por vocês. Ela também está

agoniada a sua procura no plano físico, muito embora não saiba quem você é ou

onde está. A minha missão é aproximá-los na Terra e para que nenhum dos dois

desanime e acabe casando com outra pessoa, eu levo você até ela ou vice-versa,

enquanto dormem.

Page 130: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

João ficou olhando para sua mentora e comoveu-se de existir alguém com

tamanho amor ao próximo no coração. “Maninha, em breve você vai me deixar,

não vai?”, perguntou o poeta, trocando o sorriso por uma lágrima. “Sim, João

Guilherme Ribeiro. Eu e os outros vamos nos afastar por um tempo para que

você se torne independente, para que aprenda a andar com as próprias pernas.

E você deverá evitar nos chamar. Creia-me, irmão, isso será tão doloroso pra

você quanto para nós”. Em seguida, tomou as mãos do poeta e desta vez foi ela

quem chorou copiosamente. “A tua felicidade e de Olivia é a coisa mais

importante do mundo para mim”, disse afogada em lágrimas. “Oh minha querida,

você é a alma mais bondosa que já encontrei em toda a vida”, disse o professor

a abraçando.

- Você nem imagina o quanto me deixa feliz dizendo isso, João. Mas chegou

o momento que espero há mais de duzentos anos terrestres. Eu preciso que você

me perdoe, amado irmão.

- Eu te perdoar? Do que você está falando, Eleanor?

Ela fez uma longa pausa e olhando nos olhos do jornalista disse: “Sim,

perdoar. Perdoar por tê-lo impedido de ser feliz”. Diante do olhar atônito de

João Guilherme, prosseguiu: “É muito vergonhoso o que vou lhe mostrar agora.

E por causa desse pecado, fui expulsa de casa pelo meu pai e severamente

castigada pelos espíritos superiores quando desencarnei. Feche os olhos,

querido”. João fechou.

Fazia muito frio na manhã em que o navio que Jahnu viajava atracou no

Porto de Londres, depois de quase um mês de viagem. Com pouco dinheiro para

comida e hospedagem, decidiu procurar o casal Gary e Sophia Stewart – o mesmo

que lhe recebera durante a época de estudante. Quando bateu à porta dos amigos,

foi recebido com um misto de alegria e de surpresa. Tanto pelo fato de estar

vestido de forma humilde quanto por ter voltado tão pouco tempo depois de

partir. Após vestir roupas mais apropriadas ao clima e alimentar-se, narrou

toda a saga. Solidários, Gary e Sophia prometeram ajudar-lhe. Jahnu ainda

tinha muito tempo antes do horário que Olivia prometera esperá-lo no Palácio

de Westminter, em frente ao Big Ben, e aproveitou para sair e comprar-lhe

uma joia de presente. Em seguida foi a uma livraria e comprou um lindo caderno

com capa de couro para escrever as poesias que dedicaria a sua musa. A

tranquilidade das pessoas passeando pelas ruas da metrópole nem de longe

Page 131: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

combinava com o estado de sítio da colônia ocupada. E Jahnu Mahajan sentiu

vergonha de si mesmo por ter estado tanto tempo alienado.

Por fim, as paredes do tempo do Big Ben marcaram cinco horas. O poeta

escolheu um banco que ficava bem de frente para o cartão postal londrino e

pôs-se a esperar. A cada novo rosto desconhecido que passava, aumentava sua

angústia. “O senhor aprecia Shakespeare?” A pergunta era inusitada, mas a voz

era inconfundível. Quando Jahnu virou o rosto para confirmar a suspeita, foi

como se uma faca afiada lhe atravessasse o coração. Sim, era o tenente Matthew

que viera no lugar de Olivia. Se não estivesse sentado, o poeta teria caído

por causa da falta de ar que lhe acometeu. Com toda a tranquilidade do mundo,

o oficial britânico sentou-se ao seu lado, como um velho amigo.

- Então você realmente pensou que podia me vencer, sudra imundo? Não,

não, nem pense em se levantar. Há quatro homens prontos a agir sob meu

comando, caso você tente alguma coisa. Você só pode ser de outro planeta por

achar que poderia casar-se com Olivia. Eu já te falei, selvagem! Aprenda de

uma vez por todas: você não é digno dela. E por falar nela, olha quem vem

chegando.

Olivia só percebeu a situação quando estava bem próxima dos dois homens

que lutavam pelo seu amor. Com um sorriso de sarcasmo, Matthew convidou a

donzela para também sentar-se. No meio dos dois amantes, continuou com a

ironia: “Não é de partir o coração ver um casalzinho tão apaixonado sendo

obrigado a se separar para sempre?” Jahnu olhou para o tenente como que a

perguntar como ele descobrira tudo. Percebendo a dúvida, o tenente disse: “É,

Shakespeare indiano, você deveria ter mais cuidado ao dizer não a uma mulher.

Uma mulher desprezada pode tornar-se vingativa. Ainda mais uma sudra”.

Depois com um gesto de cabeça, deu sinal para que os soldados à paisana se

aproximassem e o prendessem. “Matthew, eu faço o que você quiser. Eu me caso

com você, mas não faça nenhum mal a Jahnu”, rogou Olivia entre lágrimas.

“Ora, minha noiva, tão certo quanto o sol está para se por em alguns minutos,

você será a minha esposa - quer queira, quer não. E você, animal imundo, será

decapitado por crime contra a Coroa”, falou cheio de contentamento. Antes de

ser levado, Jahnu Mahajan deixou cair propositalmente os presentes que havia

comprado e olhando nos olhos de seu amor, disse com tranquilidade e ternura:

“Nós sempre estaremos juntos, minha estrela matutina. Mesmo que eu morra mil

vezes, mil vezes eu voltarei para lhe procurar. Nosso destino é passar a

eternidade juntos. Eu amo você”.

Page 132: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Assim que Jahnu foi colocado na carruagem, sem que o tenente percebesse,

Olivia pegou os embrulhos que tinham ficado no chão. Depois de dar ordens ao

cocheiro, o ex-noivo veio e, como se nada tivesse acontecido, ofereceu o braço

como que a convidando para passear. “Afaste-se de mim, canalha”, gritou,

chamando a atenção dos transeuntes. O militar apenas sorriu cinicamente e

continuou a caminhar tranquilamente.

Livre da incômoda companhia, Olivia correu para casa. Ela não podia

perder tempo. Era preciso interceder junto ao pai pela vida do homem que

amava. “Minha filha, o que me pedes é inaceitável. Esse rapaz liderou um bando

rebelde contra a Coroa britânica. Sua punição deve ser vista como exemplo a

todos que ousarem desafiar o poder de Vossa Majestade”, foi a resposta que

ouviu. Quando entrou em seu quarto, a donzela tinha toda a dor do mundo no

coração. Aos prantos e em desespero, resolveu rezar a Krishna, o deus hindu

que seu Romeu tanto adorava. “Ó Lorde Krishna, eu vos imploro pela vida de

vosso filho. Não permita que nada de mal lhe aconteça. Permita que eu e Jahnu

possamos ser felizes juntos nesta ou em outra vida”. Ao terminar a oração, a

senhorita caiu em um sono profundo. Horas mais tarde, abriu os olhos e

assustou-se por não estar mais no quarto. Já era dia novamente e ela estava

no meio da multidão que fora assistir em praça pública a execução do

insurgente indiano. Ela entrou em pânico quando viu o poeta sendo conduzido

ao cadafalso onde o carrasco o aguardava e correu em sua direção. A pressa

era tanta que nem reparou que atravessava o corpo das pessoas que gritavam

“morte ao traidor! Morte ao traidor!”

Quando a cabeça de Jahnu foi encaixada na guilhotina, Olivia tentou

ampará-la. Foi só aí que percebeu que isso não era possível. Mas se não podia

tocá-lo, ninguém a impediria de falar. “Meu amor, meu príncipe, meu Romeu. Eu

estou aqui do teu lado. Seja forte. Tenha coragem. Mostre a eles que estão

diante de um homem que não teve medo de lutar pelo que acreditava. Um homem

que não teve medo de amar. Um homem com coragem suficiente para dar as costas

ao mundo. Eu sempre estarei contigo. Como você mesmo disse, nosso destino é

passarmos a eternidade juntos. Eu amo você”. Inspirado pelas palavras de sua

alma gêmea, o vaixá encarou a turba hostil e bradou com toda a força: “A

tirania não durará para sempre. A Mãe Índia será livre outra vez. O amor

vencerá o ódio. Olívia, eu amo você!” No mesmo instante em que Jahnu fechava

os olhos para a vida, a donzela abria os seus, desperta do que julgava ter sido

um terrível pesadelo. Ao olhar pela janela e ver a multidão dispersando, ela

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soube, para seu profundo pesar, que tinha estado em espírito ao lado de seu

príncipe no momento da morte.

Um mês se passara desde a execução do poeta e Olivia ainda se recusava a

sair do quarto e mal tocava na comida. Até que o pai resolveu dar um basta. A

primeira providência foi chamar um médico para ver até que ponto a falta de

alimentação adequada lhe havia afetado a saúde. O doutor Henry Muller

assistia a família há quase trinta anos. Quando foi recebido, primeiro falou

a Olivia como um velho amigo e emocionou-se com a história que ouviu da boca

da menina que havia trazido ao mundo. Somente então a examinou. Foi quando

ficou tomado pela aflição e decidiu que, antes de dizer qualquer coisa à

donzela, deveria conversar imediatamente com o pai.

O major Wickert relutou muito em acreditar que a filha pudesse estar

grávida e, para piorar, ao que tudo indicava, de um indiano que acabara de

ser executado por traição. E agora? Como ficaria a sua imagem perante a

sociedade? A carreira militar? E o casamento de sua herdeira com o tenente

Matthew? Depois de breve ponderação, escolheu o caminho previsível para um

homem mais preocupado consigo mesmo do que com a filha. Usando todos os

eufemismos que conseguiu juntar, questionou o médico quanto a viabilidade de

uma “solução alternativa” para a situação. Ninguém precisaria ficar sabendo,

nem mesmo Matthew. “Embora a saúde dela esteja debilitada, o melhor momento

para a solução alternativa é agora”, respondeu o doutor Henry.

“Não se atreva a fazer alguma coisa contra a minha vontade. Eu vou ter

esse filho, o senhor aprovando ou não”, desafiou Olivia ao ser colocada a par

da notícia da qual já desconfiava. No fundo, havia mais alegria do que rebeldia

em sua voz. Krishna havia lhe ouvido a prece. Jahnu ainda estava vivo dentro

dela. “Aqui nesta casa não viverá o filho bastardo de um selvagem”, decretou

o pai. “Pois que assim seja. Eu saio”, revoltou-se a filha.

- E como você pretende ter essa criança? Onde vai morar?

- Krishna não há de me deixar desamparada.

- Krish... quem?

No outro dia cedo, Olivia fez uma pequena mala, pegou as economias, a

caixa de joias que herdara da mãe e, antes de sair, disse ao major Wickert:

“Meu pai, eu tenho aprendido que o amor e o perdão são as forças mais poderosas

do Universo. Eu te amo muito e sempre serei grata por todo o amor, carinho e

cuidado que o senhor me dispensou, especialmente após a morte de mamãe. Peço

Page 134: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

perdão pelas vezes em que lhe faltei como filha, mas não posso pedir perdão

por esperar um filho do homem que amo. O que houve entre Jahnu e mim foi um

presente divino. Saio desta casa com o coração entristecido, porém certa de

que esta é a melhor coisa a ser feita. Serás muito bem-vindo o dia em que

quiseres conhecer o teu neto”. Disse isso e beijou a mão do pai, rogando-lhe a

benção, que não veio, e saiu sem dizer mais nada.

Com o dinheiro da venda dos colares, brincos, anéis, pulseiras e

braceletes, a futura mamãe alugou uma parte da casa do senhor e da senhora

Stewart, onde pretendia dar aulas de piano, a única coisa que pegaria do

antigo lar. Quando o instrumento chegou, imediatamente colocou a plaquinha

de aulas particulares na porta da rua. A primeira aluna foi justamente a

dona da casa. Logo de cara, a relação professora/aluna extrapolou para uma

grande amizade. E quando não era mais possível esconder a condição de

gestante, Olivia resolveu contar-lhe toda a história. Mulher madura, Sophia

compreendeu que havia sido usada por Deus para amparar a amada do rapaz

indiano que adorava como um filho, quando este também morou debaixo de seu

teto. As duas amigas choraram muito ao perceber que não tinha sido

coincidência suas vidas se cruzarem e a professora de piano mostrou à amiga

o poema com que Jahnu havia lhe presenteado.

João Guilherme abriu os olhos e ao olhar para Eleanor, por uma fração

de segundos, viu Lalita. A mentora espiritual ficou em silêncio como a esperar

alguma palavra de repreensão. Calma e ternamente, o poeta beijou-lhe as mãos

e a testa. “O amor e o perdão são as forças mais poderosas do Universo, minha

amada irmã. Eu é que peço perdão por ter sido insensível aos teus sentimentos

e tê-la tratado com frieza. E agradeço do fundo do coração por todo amor,

paciência e amizade que você tão abnegadamente tem me dispensado por todos

esses anos”. Disse isso e a abraçou forte. Depois choraram juntos por longos

minutos.

O professor quase não acreditou quando Eleanor disse que estava na hora

de partir e que eles não se veriam mais por um longo tempo.

- E para onde você irá agora?

- Vou reencarnar.

- Onde?

- Não sei. Depois da Índia, eu encarnei por um breve período na África

do Sul e a próxima ainda está em aberto.

Page 135: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

- É verdade que são os filhos que escolhem quem serão os seus pais?

- Totalmente!

- Já tem alguém em mente?

- Digamos que sim.

Depois da insinuação e antes que João pudesse emendar mais uma pergunta,

Eleanor sorriu e o abraçou mais uma vez. Em seguida, passou lentamente por

um portal de luz verde-claro que se formou diante dela até sumir

completamente. Sozinho, o jornalista olhou para baixo e viu seu planeta natal.

“Sim Yuri, a Terra é azul”, pensou em voz alta. Ele ficou olhando para aquele

pequeno ponto no universo e foi tomado por uma imensa onda de amor. Em

seguida, notou que milhares de pequenos feixes de luz alaranjados viajavam

em direção à Terra. E então, de dentro dele também, saiu uma luz da mesma cor

e fez igual trajeto. Aquele fluxo de energia foi envolvendo o psicossoma do

poeta, até que ele adormeceu completamente.

Page 136: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

25

O lugar era uma espécie de santuário. Havia muitas velas acesas, flores

e estátuas. Centenas de pessoas, quase todas vestidas de branco, rezavam de

joelhos. Foi lá que João Guilherme descobriu-se, quando abriu os olhos. Com a

alma repleta de paz, o poeta ouviu um coral, como de monges beneditinos, a

entoar o Agnus Dei em latim. A cabeça começou a girar no ritmo compassado do

hino e ele pensou que perderia os sentidos. Mas, ao contrário, seu estado de

presença aumentou ainda mais. Era como se a música tivesse se convertido em

sangue e agora lhe corresse por todo o corpo. Junto com o coral, João ouvia

vozes a orar o Pai Nosso, a Ave Maria e tantas outras preces. E ouviu também

o próprio nome sendo repetido inúmeras vezes, algumas em meio a lágrimas. E

o corpo do jornalista foi suspenso no ar e lentamente conduzido de volta à

Terra. “João Guilherme, você consegue me ouvir?”, o professor escutou, sem

identificar a direção de onde partira a pergunta. O mesmo questionamento

ainda foi repetido por mais duas vezes até que se desse conta de que estava

definitivamente de volta ao corpo físico. Havia uma máscara de oxigênio em

sua boca e inúmeros fios conectados nos braços e tórax. “Seja bem-vindo de

volta, meu amigo. Parabéns! Você é um vencedor!”, disse o médico com satisfação.

O jornalista sorriu com humildade. Logo em seguida, alguns parentes e amigos

mais próximos vieram comemorar a saída do estado de coma.

Por mais que estivesse feliz por tudo que ocorrera e grato pelo carinho

das pessoas que estavam à volta, ainda pairavam muitas dúvidas na cabeça de

João. Sem Eleanor por perto, as coisas ficariam um pouco mais difíceis. Quando

todos saíram da sala, o professor decidiu concentrar-se para uma projeção

voluntária. Foi só fechar os olhos que sentiu o corpo astral se descolando.

Projetado, antes de deixar a sala de UTI, foi a cada um dos outros cinco leitos

e passou alguns minutos dando passes energéticos nos companheiros pacientes.

Quando terminou, esticou o corpo para cima e saiu volitando do lugar. O céu

estava especialmente iluminado naquela noite e ele espalhava felicidade pela

amada cidade. Depois de percorrer diversos bairros, resolveu ir à igreja do

Santo Daime que frequentava. Surpresa agradabilíssima, era dia de bailado.

Todos estavam em seu devido lugar, nos lados dos batalhões masculino e

feminino. O hinário daquela noite era “O Cruzeiro”, do Mestre Irineu. João

sentou-se em um dos dois bancos de madeira, fora da corrente. Ainda que já

tivesse cantado muitas vezes aqueles hinos, cada um deles trazia um novo

Page 137: ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

ensinamento à medida em que era vocalizado. Antes de sair, o professor olhou

com amor para os irmãos fardados e desejou-lhes um bom trabalho.

Do lado de fora da igreja, o jornalista pensou em Olivia e ao dizer

mentalmente seu nome, perdeu os sentidos. João foi despertado pelo leve toque

dos dedos da amada em seus cabelos. Ela solfejava docemente o Gayatri mantra.

Ao abrir os olhos, viu-se deitado com a cabeça sobre o regaço da alma gêmea.

Eles estavam sobre a grande pedra da clareira e a sensação era a de que

despertara de um sono de duzentos anos. A menina dos olhos azuis de Olivia

movimentava-se com a graça das sereias que dançam sobre as ondas do mar em

volta da rainha Iemanjá. Os amantes se olharam com paixão. João Guilherme

ajeitou-se e tomando a mulher nos braços, levou sua boca à boca dela. O beijo

começou de forma ingênua, infantil até. Antigas emoções foram reacesas e agora

seus lábios tocavam-se com a fúria de um maremoto. Sem pressa, como o

agricultor que sabe o momento correto de colher o fruto da terra, o poeta

gentilmente começou a despir sua Julieta. O fluxo intenso e vibrante do sangue

correndo nas veias emprestava um tom escarlate ao corpo de Olivia. Ela o

beijou novamente e com a gentileza típica das mulheres apaixonadas, tirou-

lhe a roupa. Quando se abraçaram, seus corpos eram como duas chamas

flamejantes a arderem em uma fogueira a iluminar a noite escura. Olivia

soltou um leve suspiro de êxtase quando o poeta beijou-lhe a intimidade, que

abriu-se com a delicadeza da rosa ansiosa pela chegada da abelha. Quando João

penetrou no santuário dela, foi como se tivesse sido recebido pela própria

deusa do amor e suas quintessências tornaram-se uma só.

Jahnu e Olivia, João Maria e Amparo, João Guilherme e Olivia. No momento

mesmo do gozo, eles eram todos e nenhum. Após o silêncio cúmplice do momento

do depois, os namorados astrais levantaram-se e foram banhar-se nas águas

cristalinas do irmão riacho. Em seguida, sentaram-se novamente na grande

pedra. Seus corpos ainda estavam nus e neles havia a pureza do amor inocente

de Adão e Eva. Passado um tempo, a voz do professor juntou-se ao canto dos

pássaros. “Meu amor, onde poderei encontrá-la na Terra?”, perguntou qualquer

coisa aflito. “Príncipe, não tenhas pressa. Até aqui nos tem ajudado o Senhor.

Apenas espera e confia. No momento certo, nem antes e nem depois, tal qual no

poema, a Terra girará em torno de si mesma e dentro de nós e nos unirá”.

- Nesta encarnação teu nome ainda é Olivia?

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- Não, amado meu. Eu não tenho autorização para dizê-lo agora, mas quando

ouvi-lo, saberás que sou eu.

- Há algo que eu possa fazer para apressar nosso encontro?

Diante da insistência de João Guilherme, Olivia sorriu e o beijou no

rosto.

- Meu menino poeta, sempre tão afoito... Mas há algo que podes fazer sim.

Lance uma luz para o Universo para que ela seja a minha estrela guia até

você.

O jornalista ficou pensativo e como lhe desse alguns cascudinhos na

cabeça, a donzela brincou: “Tem alguém aí?” João riu meio sem jeito.

- Amorzinho, essa luz pode ser um pensamento, uma vibração de energia,

uma oração. Um livro! Por que não escreve um livro, já que gostas tanto de

escrever? Você pode escrever um livro e o Universo se encarregará de trazê-

lo até mim.

- Você também não se lembra do que acontece durante as projeções depois

que acorda?

- Não, não me lembro. A única coisa que me lembro quando acordo é que em

algum lugar do mundo existe um homem para quem guardei o amor de uma vida

inteira. Meu amor por ele é tamanho que eu até disse não ao pedido de casamento

de um marajá.

- Como é que é? Um marajá te pediu em casamento?

A gargalhada de Olivia espalhou-se no ar e tinha o som da chuva quando

beija a terra e as matas.

- Eia indômito Montecchio! Abrandai vosso coração e oferece à tua

Capuleto vosso mais lindo sorriso.

E o poeta riu-se do ridículo da pergunta que acabara de fazer.

De repente, a mata agitou-se e houve grande rebuliço entre os bichos.

Alguém se aproximava. Instintivamente, o professor colocou-se em posição de

defender a alma gêmea. “Não há nada a temer, João. Quem vem lá, vem em nome

de Deus”, observou a senhorita.

Quem chegou primeiro foram os erês. Meninos e meninas batendo palmas,

cantando, dançando, correndo e dando cambalhotas. Em seguida, amparada por

uma moça e um rapaz de olhos de fogo, surgia a Divina Rainha, a bela orixá.

Oxum, a protetora dos velhos, das crianças e dos desamparados trazia em suas

mãos os lírios do amor e da paz. A alma de João Guilherme resplandeceu de

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alegria diante da luz da divindade a quem tinha erguido a voz tantas vezes

em oração e por um instante ficou ruborizado pelo fato de estar nu.

- Ôxe, se avexe não, filho querido! Tudo é puro para os puros. O amor

entre dois filhos de Deus que se unem com sinceridade de coração é perfume

por demais gostoso de se sentir.

O poeta e a jovem se levantaram e prostraram-se aos pés da entidade, que

tocou a cabeça de cada um deles e os abençoou. “Saravá, Mamãe Oxum. Ora yê!”,

falou João sem conseguir conter a emoção, no que foi seguido por Olivia.

“Filhinhos, estou aqui para dizer que muito em breve vocês estarão juntos

finalmente. Tende bom ânimo, pois”, exortou. Depois pediu: “Fechem os olhos,

por obséquio”.

E como se tivessem somente um olho, os amantes viram em ritmo acelerado

tudo o que havia acontecido desde a primeira projeção de João Guilherme. A

passagem pelo Rio de Janeiro; a passagem pela Índia. Tudo. Até mesmo o

nascimento da filha de Jahnu e Olivia, que foi chamada de Lucy. Elas moraram

em Londres por dez anos e depois, a convite de Gary e Sophia Stewart, mudaram-

se para a colônia portuguesa na América do Sul, onde pretendiam dar

prosseguimento ao movimento abolicionista já deflagrado na Inglaterra.

Olivia desencarnou alguns anos depois, vítima do surto de pneumonia que

assolou a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Lucy tornou-se uma grande

pianista e continuou com a militância política.

Ainda com o olho único, João e Olivia viram uma moça morena de cabelos

longos e olhos azuis de aparentemente vinte anos. Ela dirigia seu carro por

uma estrada escura, em uma cidade de beleza exuberante. Ingenuamente, atendeu

ao suposto pedido de socorro de um homem cujo automóvel aparentava ter

quebrado. Tudo foi rápido como um relâmpago. Quando o homem aproximou-se e

ela baixou o vidro, ele enfiou a mão pela janela e abrindo a porta, invadiu o

veículo. A garota resistiu o quanto pôde e quando o estupro estava quase

consumado, notou o clarão de um farol que se aproximava. Instintivamente

gritou por socorro. Ela não viu, mas quem passava era um motociclista que,

desconfiado de que algo estava errado, parou e foi verificar. Em seguida, a

senhorita sentiu o agressor ser tirado de cima de si e ser puxado para fora

do carro. Imediatamente, trancou as portas e, sem sucesso, tentou ligar o motor.

Então ouviu o som de um tiro e, por uma fração de segundos, cessou-se o barulho

de luta. Atrapalhada pelo vidro fumê, ela não conseguiu discernir quem

apontava uma arma para quem. Até que aquele que tinha o revólver foi atingido

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duas vezes pelas costas por um outro homem que ela mesma não tinha notado.

Desesperada, começou a gritar. Os estupradores fizeram menção de entrar no

carro, mas desistiram assim que surgiu a luz dos faróis de um outro automóvel

que se aproximava. De seu interior desceram dois rapazes. Um deles, depois de

dar o primeiro socorro ao ferido, exclamou: “É o professor ...” Ela não

conseguiu entender o nome.

O olho único multiplicou-se por quatro e João e Olivia passaram a

enxergar por si só novamente. Quietos, ouviram a Mãe Oxum falar. “Meu

príncipe e minha princesa, vocês não são da Terra. Vocês vieram de estrelas

distantes para ajudar na evolução espiritual da humanidade. É um sacerdócio

que exige renúncias e sacrifícios. Vocês poderiam ter ficado juntos no astral

depois da etapa na Índia, mas se colocaram como voluntários para retornar à

matéria. Agora, o Divino Pai Eterno, junto com o Cristo Planetário vem coroar

de flores vosso caminho. João, meu filho, tome cuidado com a vaidade, não se

deixe iludir pela intelectualidade. A compreensão de todos os mistérios da

Vida é uma prerrogativa exclusiva de Deus. O conhecimento que você tem

adquirido desde que abraçou a doutrina do Santo Daime deve gerar em teu

coração um amor incondicional por todas as coisas vivas e por todas as pessoas.

Afasta de ti todo o sentimento de rancor, ódio e amargura. O amor e o perdão

são as forças mais poderosas do Universo. Mas isso você já sabe, não é mesmo?

Minha filha, cuide bem do meu menino. Juntos vocês realizarão grandes coisas.

Andem sempre de mãos dadas. Você é ele e ele é você. E como um só voltarão à

Casa Celestial e nela habitarão por toda a eternidade. Agora fechem os olhos

e durmam. Para o bem de vocês, tudo que foi visto por esses dias será esquecido.

Mas antes, meu pretinho, por gentileza”.

E um dos anjos negros que acompanhavam a Orixá veio e esculpiu flores

nos cabelos de Olivia e entregou uma pequena cabaça de coco dividida ao meio

para João Guilherme. Ao abri-la, o poeta encontrou dois anéis feitos de tucum.

E eles foram a aliança do casamento no astral entre o filho da estrela Sirius

e a filha das Plêiades. Depois de se beijar, cerraram os olhos e dormiram

abraçados sobre a grande pedra da clareira. Impondo as mãos sobre o casal, a

rainha Oxum proclamou: “Sejam felizes, minhas crianças”.

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Johnny Marcus tem 45 anos e nasceu em Cuiabá. É jornalista, professor e

radialista. Como jornalista trabalhou na TV Cidade Verde e nos jornais

Circuito Mato Grosso, Correio de Mato Grosso e revista RDM. Leciona língua

inglesa desde 1990 e língua portuguesa desde 2010. Passou pelas rádios Clube,

Cuiabana, comunitárias CPA e Alternativa e Centro América FM. Em 2014 foi o

locutor oficial da Copa do Mundo na Arena Pantanal. Johnny Marcus estreia

na literatura com “Almas em Sonho – um romance espiritualista” e está com

outro livro em fase de conclusão.