almanaque chuva de versos n. 405

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Índice Mensagem na Garrafa Atila José Borges

Na restauração .......................................................................... 3 Chuvisco Biográfico ................................ ...................... 4

Chuva de Versos ................................ .............................. 6 - 18 Poeta Homenageado

António Gedeão ................................ .................... 7 - 18 Chuvisco Biográfico ................................ .................... 18

Trovador Homenageado Aloysio Alfredo Silva ................................ ........................... 20

Chuvisco Biográfico ................................ .................... 23 Jean de La Fontaine

O Rato Caseiro e o Rústico ................................ ........ 24 Chuvisco Biográfico ................................ .................... 25

Folclore Indígena Brasileiro Origem do Oiapoque ................................ .................. 25

Aparecido Raimundo de Souza Liungua Preusa ................................ .......................... 26 Chuvisco Biográfico ................................ .................... 28

Expressões Idiomáticas de Origem Mitológica ................... 29 Lenda da Mitologia Hindu

Lakshmi ................................ ................................ ...... 33 Pedro Marques

Olegário Mariano: entre romantismo e modernismo ... 37

Fábulas Sem Fronteiras África

A Hiena Mazona ................................ ......................... 47 Teatro de Ontem, de Hoje, de Sempre

Bella Ciao ................................ ................................ ... 49 Carina Isabel M. Cardoso

Luzia ................................ ................................ .......... 51 Chuvisco Biográfico ................................ .................... 52

Clevane Pessoa Parábola em Versos:

A Flor Dourada e o Pássaro Verde ............................. 53 A Escritora em Xeque

Clevane Pessoa ................................ ......................... 55 Marcelo Spalding História da leitura

(IV): A ascensão do romance ................................ ..... 62 Chuvisco Biográfico ................................ .................... 64

Estante de Livros Simões Lopes Neto

Contos gauchescos ................................ .................... 65 Trezentas Onças ................................ ........................ 69 Chuvisco Biográfico ................................ .................... 73

A Cultura na Música O Anel do Nibelungo:

Parte 1: O Ouro do Reno................................ ............ 75

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Atila José Borges

Na restauração

NÃO BASTA superarmos viagens com tempestades, relâmpagos e cascatas se continuarmos a conservar a secura em nosso interior. NÃO BASTA desbastarmos a pedra bruta com sofreguidão se confundirmos ideal com fantasia e não compreendermos que a dor também é cinzel em nossas vidas, NÃO BASTA realizar muitas marchas se o que buscamos é às apalpadelas e sem rumo. A marcha ao infinito só é realizável com passos finitos. NÃO BASTA querermos entender o final do caminho quando nem sequer sabemos o que é peregrino. NÃO BASTA querermos ser perfeccionistas se não existem regras humanas exatas; prumos rigorosamente estáticos; esquadros humanos infalíveis e compassos humanos que não circunscrevam e erro e a imperfeição.

NÃO BASTA aplaudirmos aquisições se não guardarmos com probidade e zelo aquilo que já possuímos. NÃO BASTA acelerarmos nossos passos se eles continuarem a ser passos perdidos que não nos levem a lugar nenhum. NÃO BASTA empunharmos espadas flamejantes se não entendermos que as mãos que as seguram devem também saber apertar outras mãos e usá-las para erguer e construir, fazendo dela o prolongamento do coração. NÃO BASTA galgarmos o ápice das escaladas se não tivermos a humildade de nos reportarmos às câmaras escuras para lembrar que lá também se revelam cenas coloridas. Se tivermos só nuvens sob os nossos pés, certamente cairemos. NÃO BASTA olharmos para os céus se nele não crermos, pois sendo assim não poderemos ver nada além das nuvens. NÃO BASTA sermos livres e de bons costumes se não tivermos a sabedoria de reconhecer a nossa própria ignorância. NÃO BASTA saborearmos a taça da vida humana se não entendermos que ela é um processo de aprendizagem e que devemos encontrar na lágrima salgada a doçura do agradecimento. NÃO BASTA cavarmos masmorras aos vícios se não encontrarmos o ser humano que existe em nós, reconhecendo que as exigências que fizermos aos

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outros devem ser na razão inversa do que exigirmos de nós mesmos. NÃO BASTA apreciarmos o erguimento festivo dos templos, mas sabermos que as mais sinceras e humildes tarefas são, desde que bem entendidas, colunas de luz para ampliadas lides e missões. NÃO BASTA acendermos luzes em templos e palácios, se não acendermos a nossa própria luz, por mais tênue que seja, conduzindo e vivendo a verdade.

NÃO BASTA termos um templo abarrotado de fiéis, e com cheiro de tinta novo se ele encobrir um carcomido edifício lembrando sepulcros caiados por fora… NÃO BASTA uma grandiosidade numérica. As dízimas periódicas também são resultados de numeradores e denominadores formados por poucos ou infinitos números cujos resultados são sempre acompanhados de três pontos alinhados entre si... '

Átila José Borges nasceu em 28 de fevereiro de 1936, na cidade de Porto União/SC. Filho de Óttilo Borges e de Garacita Martins Ricardo Borges Licenciado em Ciências pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Bacharel em ciências econômicas pela Fundação de Estudos Sociais do Paraná. Oficial Especialista em Comunicações pela Escola de Oficiais Especialistas da Aeronáutica. Licenciado em Estatística Superior pelo Ministério da Educação e Cultura. Foi oficial da Força Aérea Brasileira, professor da Universidade Federal do Paraná, do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná, da Fundação de Estudos Sociais do Paraná e instrutor da Força Aérea Brasileira.

Jornalista e Relações Públicas. Entre muitas honrarias que recebeu no percurso de sua vida, foi agraciado com as medalhas de Cavaleiro da Ordem do Mérito Aeronáutico; Cavaleiro da Grã Cruz do Governo da Polônia; Medalha Mérito Santos Dumont; Medalha Militar de Prata; Medalha Max Wolf Filho da Legião Paranaense do Expedicionário; Troféu “Escrínio de Santos Dumont”; Comenda Maçônica Duque de Caxias do Grande Oriente do Brasil /Paraná, entre outros. Cidadão Honorário de Curitiba. Obteve várias homenagens, placas de prata e bronze e troféus, entre as quais, das Forças Aéreas dos Estados Unidos, Bolívia, Turquia, Itália, Inglaterra e Vietnã do Sul. Foi eleito o melhor Relações Públicas das Forças Armadas pelo jornal “Letras em Armas” e pelo jornal “Diário Popular” de Curi tiba. Átila foi criador, fundador e Diretor do Museu Entre Nuvens e Estrelas, inaugurado pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso, que ficou em exposição no Aeroporto Afonso Pena por mais de cinco anos. Produziu e apresentou por mais de vinte anos, na TV Paranaense Canal 12 o programa Entre Nuvens e Estrelas (em prol da aviação) e foi colunista da Gazeta do Povo, também por mais de vinte anos Membro da Academia de Cultura de Curitiba; Associado “Bandeirante” do Círculo de Estudos Bandeirantes/PR; Filiado ao Grande Oriente do Brasil, Grau 33

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Tem trabalhos publicados no Brasil, Estados Unidos da América, Portugal, Argentina, Paraguai e na China. É autor de nove trabalhos técnicos editados e distribuídos pela Encyclopaedia Britannica do Brasil e Barsa Society além da Editora Três, Laboratório Ache do Brasil, entre outros. Obras Memórias de um guri em tempo de guerra; No pico do diabo; As mais 100 belas mensagens; Mais de 700 pensamentos preferidos; Pe ludos x pelados – A Guerra do Contestado; Emoções, eu vivi… ; A menina e o general; Eu contos, além de vários trabalhos diversificados, publicados em diversos órgãos da imprensa brasileira.

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Uma Trova de Londrina/PR

Cidinha Frigeri

O pão e o vinho, que trago à mesa para nós dois,

são muito mais que um afago, visando o agora e o depois.

Uma Trova de Caicó/RN

Prof. Garcia

Revendo entulhos e tacos, na tapera dos meus sonhos, chorei por ver tantos cacos

dos meus dias mais risonhos!

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Um Poema de Lisboa/Portugal

Antonio Gedeão

AMOR SEM TRÉGUAS

É necessário amar, qualquer coisa, ou alguém;

o que interessa é gostar não importa de quem.

Não importa de quem, nem importa de quê;

o que interessa é amar mesmo o que não de vê.

Pode ser uma mulher, uma pedra, uma flor, uma coisa qualquer,

seja lá do que for.

Pode até nem ser nada que em ser se concretize, coisa apenas pensada,

que a sonhar se precise.

Amar por claridade, sem dever a cumprir;

uma oportunidade para olhar e sorrir.

Uma Trova Humorística de São Paulo/SP

Renata Paccola

Um degrau eu sempre subo quando a grana é insuficiente

e pulo em cima do tubo pra sair pasta de dente...

Uma Trova de Juiz de Fora/MG

José Messias Braz

No aeroporto, o adeus, o abraço... e no olhar... rastros de dor!

– Lá se foi, rasgando o espaço, uma promessa de amor!...

Um Poema de Lisboa/Portugal

Antonio Gedeão

AURORA BOREAL

Tenho quarenta janelas nas paredes do meu quarto. Sem vidros nem bambinelas

posso ver através delas o mundo em que me reparto. Por uma entra a luz do Sol,

por outra a luz do luar,

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por outra a luz das estrelas que andam no céu a rolar. Por esta entra a Via Láctea como um vapor de algodão,

por aquela a luz dos homens, pela outra a escuridão.

Pela maior entra o espanto, pela menor a certeza, pela da frente a beleza

que inunda de canto a canto. Pela quadrada entra a esperança

de quatro lados iguais, quatro arestas, quatro vértices,

quatro pontos cardeais. Pela redonda entra o sonho, que as vigias são redondas, e o sonho afaga e embala à semelhança das ondas. Por além entra a tristeza,

por aquela entra a saudade, e o desejo, e a humildade, e o silêncio, e a surpresa,

e o amor dos homens, e o tédio, e o medo, e a melancolia, e essa fome sem remédio a que se chama poesia,

e a inocência, e a bondade, e a dor própria, e a dor alheia, e a paixão que se incendeia,

e a viuvez, e a piedade, e o grande pássaro branco,

e o grande pássaro negro que se olham obliquamente,

arrepiados de medo, todos os risos e choros, todas as fomes e sedes,

tudo alonga a sua sombra nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto, quem vos pudesse rasgar! Com tanta janela aberta

falta-me a luz e o ar.

Uma Quadra Popular

Autor Anônimo

Amanhã eu vou-me embora, eu não vou-me embora não.

Se eu tivesse de ir-me embora, eu não estava aqui não.

Uma Trova Hispânica da Argentina

Nora Lanzieri

Tus dos ojos son mis soles, que iluminan mi camino,

y el mar con sus caracoles el paraíso divino.

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Um Poema de Lisboa/Portugal

Antonio Gedeão

DESENCONTRO

Que língua estrangeira é esta que me roça a flor do ouvido,

um vozear sem sentido que nenhum sentido empresta?

Sussurro de vago tom, reminiscência de esfinge,

voz que se julga, ou se finge sentindo, e é apenas som.

Contracenamos por gestos, por sorrisos, por olhares,

rodeios protocolares, cumprimentos indigestos,

firmes aperto de mão, passeio de braço dado,

mas por som articulado, por palavras, isso não. Antes morrer atolado

na mais negra solidão.

Trovadores que deixaram Saudades

Augusto Rubião

– Bom dia, Felicidade... com tanta pressa aonde vais?

– Vou plantar uma saudade onde o amor não volta mais!...

Uma Trova de Belo Horizonte/MG

Clevane Pessoa

Tem gente que tanto mente, conta lorota, faz fita,

que, da verdade descrente, nem em si próprio acredita.

Um Poema de Lisboa/Portugal

Antonio Gedeão

DOR DE ALMA

Meu pratinho de arroz doce polvilhado de canela;

Era bom mas acabou-se desde que a vida me trouxe outros cuidados com ela.

Eu, infante, não sabia

as mágoas que a vida tem. Ingenuamente sorria,

me aninhava e adormecia no colo da minha mãe.

Soube depois que há no mundo

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umas tantas criaturas que vivem num charco imundo

arrancando arroz do fundo de pestilentas planuras.

Um sol de arestas pastosas

cobre-os de cinza e de azebre à flor das águas lodosas, eclodindo em capciosas intermitências de febre.

Já não tenho o teu engodo, Ó mãe, nem desejo tê-lo. Prefiro o charco e o lodo. Quero o sofrimento todo, Quero senti-lo, e vencê-lo.

Uma Trova de Porto Alegre/RS

Lisete Johnson

Hão de volver as ternuras adormecidas em mim, se despertares as juras

de ternura e amor sem fim.

Um Haicai de Irati/PR

Marcelly Caroline Bueno (10 anos)

Férias de verão

O cãozinho é companheiro Também na piscina.

Um Poema de Lisboa/Portugal

Antonio Gedeão

GOTAS DE LÁGRIMA

Eu, quando choro, não choro eu.

Chora aquilo que nos homens em todo o tempo sofreu.

As lágrimas são as minhas mas o choro não é meu.

Uma Trova de Belo Horizonte/MG

Luiz Carlos Abritta

Não foi perto, nem distante: o nosso amor, ideal,

nasceu da luz de um instante e se tornou imortal!

Uma Triverso de Maringá/PR

A. A. de Assis

Se borda é prendada, bem mais ainda se pinta.

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E se pinta e borda?

Um Poema de Lisboa/Portugal

Antonio Gedeão

LIÇÃO SOBRE A ÁGUA

Este líquido é água. Quando pura

é inodora, insípida e incolor. Reduzida a vapor,

sob tensão e a alta temperatura, move os êmbolos das máquinas que, por isso,

se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente. Embora com exceções mas de um modo geral,

dissolve tudo bem, ácidos, bases e sais. Congela a zero graus centesimais

e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão, sob um luar gomoso e branco de camélia,

apareceu a boiar o cadáver de Ofélia com um nenúfar na mão.

Uma Trova de São Fidélis/RJ

Fátima Panisset

A minha alma tão pequena perto de um mar tão profundo

torna-se grande e serena para as ressacas do mundo.

Uma Glosa de Porto Alegre/RS

Gislaine Canales

Glosando Alceu Gouveia

VELHINHO SORTUDO

MOTE: A cabecinha de prata,

do velhinho quedo e mudo, de amores de longa data no seu silêncio diz tudo.

Glosa:

A Cabecinha de prata, de um prateado tão bonito,

parece que nos relata seus anseios de infinito!

No pensamento reluz,

do velhinho quedo e mudo, a mocidade, que em luz, ele relembra a miúdo.

E essa lembrança desata as mil histórias sem fim

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de amores de longa data que um dia viveu, enfim...

E num sorriso matreiro esse velhinho sortudo

sem falar, segue faceiro... no seu silêncio diz tudo.

Um Poema de Lisboa/Portugal

Antonio Gedeão

PASTORAL

Não há, não, duas folhas iguais em toda a criação.

Ou nervura a menos, ou célula a mais, não há, de certeza, duas folhas iguais.

Limbo todas têm,

que é próprio das folhas; pecíolo algumas;

bainha nem todas . Umas são fendidas, crenadas, lobadas, inteiras, partidas,

singelas, dobradas.

Outras acerosas, redondas, agudas, macias, viscosas,

fibrosas, carnudas.

Nas formas presentes, nos atos distantes,

mesmo semelhantes, São sempre diferentes.

Umas vão e caem no charco cinzento, e lançam apelos nas ondas que fazem;

outras vão e jazem sem mais movimento. Mas outras não jazem, nem caem nem gritam,

apenas volitam nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.

Um Haicai de Mallet/PR

Natali Miszkievicz 8 anos

Domingo de sol

Tomo banho de piscina Com as bonecas.

Uma Trova do Rio de Janeiro/RJ

Josafá Silveira da Silva

Insisto em que não desistas jamais das glórias que queiras:

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– antes das grandes conquistas erguem-se as grandes barreiras!

Um Poema de Lisboa/Portugal

Antonio Gedeão

PEDRA FILOSOFAL

Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida

como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos que em verde e ouro se agitam,

como estas aves que gritam em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho

é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento,

de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho

é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia,

que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, Infante, caravela quinhentista,

que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim,

bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim,

passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora,

cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão,

desembarque em foguetão na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida.

Que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança

como bola colorida entre as mãos de uma criança.

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Recordando Velhas Canções

Baby (1968)

Caetano Veloso

Você precisa saber da piscina,

da Margarina, da Carolina, da gasolina

Você precisa saber de mim

Baby, baby, eu sei que é assim

Baby, baby, eu sei que é assim

Você precisa tomar um sorvete Na lanchonete,

andar com gente Me ver de perto.

Ouvir aquela canção do Roberto.

Baby, baby, há quanto tempo

Baby, baby, há quanto tempo

Você precisa aprender inglês Precisa aprender o que eu sei

E o que eu não sei mais

E o que eu não sei mais Não sei, comigo vai tudo azul

Contigo vai tudo em paz Vivemos na melhor cidade

Da América do Sul Da América do Sul

Você precisa, você precisa Não sei, leia na minha camisa

Baby, baby, I love you

Baby, baby, I love you

Uma Trova de Bauru/SP

João Batista Xavier Oliveira

Jamais devemos deixar a nossa esperança fora. Cada dia é um despertar na juventude da aurora!

Um Poema de Lisboa/Portugal

Antonio Gedeão

POEMA DA MEMÓRIA

Havia no meu tempo um rio chamado Tejo que se estendia ao Sol na linha do horizonte.

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Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia exatamente um espelho porque, do que sabia,

só um espelho com isso se parecia.

De joelhos no banco, o busto inteiriçado, só tinha olhos para o rio distante, os olhos do animal embalsamado

mas vivo na vítrea fixidez dos olhos penetrantes.

Diria o rio que havia no seu tempo um recorte quadrado, ao longe, na linha do horizonte,

onde dois grandes olhos, grandes e ávidos, fixos e pasmados, o fitavam sem tréguas nem cansaço.

Eram dois olhos grandes, olhos de bicho atento

que espera apenas por amor de esperar.

E por que não galgar sobre os telhados, os telhados vermelhos

das casas baixas com varandas verdes e nas varandas verdes, sardinheiras?

Ai se fosse o da história que voava com asas grandes, grandes, flutuantes,

e pousava onde bem lhe apetecia, e espreitava pelos vidros das janelas

das casas baixas com varandas verdes!

Ai que bom seria! Espreitar não, que é feio,

mas ir até ao longe e tocar nele, e nele ver os seus olhos repetidos,

grandes e úmidos, vorazes e inocentes. Como seria bom!

Descaem-se-me as pálpebras e, com isso,

(tão simples isso) não há olhos, nem rio, nem varandas, nem nada.

Um Haicai de Cornélio Procópio/PR

Rafaela Cristina Moreira 10 anos

Família se encontra

Férias na casa da tia, Piscina transborda!

Uma Trova de Pindamonhangaba/SP

José Valdez Castro Moura

Saudade, que dor enorme, é triste o nosso sentir:

– você se deita e não dorme e nem me deixa dormir!

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Um Poema de Lisboa/Portugal

Antonio Gedeão

POEMA DAS FLORES

Se com flores se fizeram revoluções que linda revolução daria este canteiro!

Quando o clarim do sol toca a matinas ei-las que emergem do noturno sono

e as brandas, tenras hastes se perfilam. Estão fardadas de verde clorofila,

botões vermelhos, faixas amarelas, penachos brancos que se balanceiam em mesuras que a aragem determina.

É do regulamento ser viçoso quando a seiva crepita nas nervuras e frenética ascende aos altos vértices.

São flores e, como flores, abrem corolas

na memória dos homens.

Recorda o homem que no berço adormecia, epiderme de flor num sorriso de flor,

e que entre flores correu quando era infante, ébrio de cheiros,

abrindo os olhos grandes como flores. Depois, a flor que ela prendeu entre os cabelos, rede de borboletas, armadilha de unguentos,

o amor à flor dos lábios,

o amor dos lábios desdobrado em flor, a flor na emboscada, comprometida e ingênua,

colaborante e alheia, a flor no seu canteiro à espera que a exaltem,

que em respeito a violem e em sagrado a venerem.

Flores estupefacientes, droga dos olhos, vício dos

sentidos.

Ai flores, ai flores das verdes hastes! A César o que é de César.

Às flores o que é das flores.

Hinos do Brasil

Estado de Goiás

Santuário da Serra Dourada Natureza dormindo no cio

Anhangüera, malícia e magia, Bota fogo nas águas do rio.

Vermelho, de ouro assustado,

Foge o índio na sua canoa. Anhangüera bateia o tempo: – Levanta, arraial Vila Boa!

Estribilho:

Terra Querida Fruto da vida,

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Recanto da Paz. Cantemos aos céus, Regência de Deus,

Louvor, louvor a Goiás! (repetem-se os três últimos versos)

A cortina se abre nos olhos, Outro tempo agora nos traz.

É Goiânia, sonho e esperança, É Brasília pulsando em Goiás!

O cerrado, os campos e as matas,

A indústria, gado, cereais. Nossos jovens tecendo o futuro,

Poesia maior de Goiás!

Terra Querida Fruto da vida,

Recanto da Paz. Cantemos aos céus, Regência de Deus,

Louvor, louvor a Goiás! (repetem-se os três últimos versos)

A colheita nas mãos operárias, Benze a terra, minérios e mais: – O Araguaia dentro dos olhos, eu me perco de amor por Goiás!

Terra Querida Fruto da vida,

Recanto da Paz. Cantemos aos céus, Regência de Deus,

Louvor, louvor a Goiás! (repetem-se os três últimos versos)

Uma Trova de Portugal

Maria José Fraqueza

Pelas procelas da vida passei tanto vendaval...

A cada onda vencida nela afundei o meu mal!

Um Poema de Lisboa/Portugal

Antonio Gedeão

POEMA DO HOMEM SÓ

Sós, irremediavelmente sós,

como um astro perdido que arrefece. Todos passam por nós

e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam. Todos se desconhecem.

Os astros nada explicam: arrefecem.

Nesta envolvente solidão compacta,

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quer se grite ou não se grite, nenhum dar-se de dentro se refrata,

nenhum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento sou eu só, e mais ninguém.

Quem sofre o meu sofrimento sou eu só, e mais ninguém.

Quem estremece este meu estremecimento sou eu só, e mais ninguém.

Dão-se os lábios, dão-se os braços dão-se os olhos, dão-se os dedos,

bocetas de mil segredos dão-se em pasmados compassos; dão-se as noites, dão-se os dias,

dão-se aflitivas esmolas, abrem-se e dão-se as corolas

breves das carnes macias; dão-se os nervos, dá-se a vida,

dá-se o sangue gota a gota,

como uma braçada rota dá-se tudo e nada fica.

Mas este íntimo secreto

que no silêncio concentro, este oferecer-se de dentro

num esgotamento completo, este ser-se sem disfarce, virgem de mal e de bem,

este dar-se, este entregar-se, descobrir-se e desflorar-se, é nosso, de mais ninguém.

Uma Trova de Fortaleza/CE

Francisco José Pessoa

Tuas palavras magoam, mas te perdoo, pois, enfim, são abelhas que ferroam

mas que dão mel para mim.

António Gedeão (pseudônimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho Filho) filho de um funcionário dos correios e telégrafos e de uma dona de casa, nasceu a 24 de novembro de 1906, em Lisboa/Portugal. Sua mãe, apesar de contar somente com a instrução primária, tinha como grande paixão a literatura, sentimento que transmitiu ao filho Rómulo, assim batizado em honra do protagonista de um drama lido num folhetim de jornal. Responsável por uma certa atmosfera literária que se vivia em sua casa, é ela que, através dos livros comprados em fascículos, vendidos semanalmente pelas casas, ou, mais tarde, requisitados nas livrarias, inicia o filho na arte das palavras. Desta forma Rómulo toma contato com os mestres - Camões, Eça, Camilo e Cesário Verde, o preferido - e conhece As Mil e Uma Noites, obra que viria a considerar uma da suas bíblias.

Criança precoce, aos 5 anos escreve os primeiros poemas e aos 10 decide completar "Os Lusíadas" de Camões. Embora a literatura o tenha acompanhado durante toda a sua vida, não se mostrava a melhor escolha para quem, além de procurar estabilidade, era extremamente pragmático e se sentia atraído pelas ciências justamente pelo seu lado experimental. Desta forma, a escolha da área das ciências. Estuda Ciências Fisico-Químicas na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

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Em 1932, um ano depois de se ter licenciado, forma-se em ciências pedagógicas na Faculdade de Letras da cidade invicta, prenunciando assim qual será a sua atividade principal daí para a frente e durante 40 anos - professor e pedagogo. Ensinou durante 14 anos no liceu Camões, sendo convidado a lecionar no liceu D. João III, em Coimbra, permanecendo aí até, passados oito anos, regressar a Lisboa, convidado para professor metodólogo do grupo de Físico-Químicas. Além da colaboração como co-diretor da "Gazeta de Física" a partir de 1946, concentra, durante muitos anos, os seus esforços no ensino, dedicando-se, inclusive, à elaboração de compêndios escolares, inovadores pelo grafismo e forma de abordar matérias tão complexas como a física e a química. Dedicação estendida, a partir de 1952, à difusão científica a um nível mais amplo através da coleção Ciência Para Gente Nova e muitos outros títulos, entre os quais Física para o Povo, cujas edições acompanham os leigos interessados pela ciência até meados da década de 1970. Apesar da intensa atividade científica, não esquece a arte das palavras e continua, sempre, a escrever poesia. Porém, não a considerando de qualidade e pensando que nunca será útil a ninguém, nunca tenta publicá-la, preferindo destruí-la. Só em 1956, após ter participado num concurso de poesia de que tomou conhecimento no jornal, publica, aos 50 anos, o primeiro livro de poemas Movimento Perpétuo. No entanto, o livro surge como tendo sido escrito por António Gedeão, e o professor de física e química, Rómulo de Carvalho, permanece no anonimato a que se votou. O livro é bem recebido pela crítica e António Gedeão continua a publicar poesia, aventurando-se, anos mais tarde, no teatro e,depois, no ensaio e na ficção. A obra de Gedeão é um enigma para os críticos, pois além de surgir, estranhamente, só quando o seu autor tem 50 anos de idade, não se enquadra claramente em qualquer movimento literário. Contudo o seu enquadramento geracional leva-o a preocupar-se com os problemas comuns da sociedade portuguesa, da época. Nos seus poemas dá-se uma simbiose perfeita entre a ciência e a poesia, a vida e o sonho, a lucidez e a esperança. Aí reside a sua originalidade, difícil de catalogar, originada por uma vida em que sempre coexistiram dois interesses totalmente distintos, mas que, para Rómulo de Carvalho e para o seu "amigo" Gedeão, provinham da mesma fonte e completavam-se mutuamente. A poesia de Gedeão é, realmente, comunicativa e marca toda uma geração que, reprimida por um regime ditatorial e atormentada por uma guerra, cujo fim não se adivinhava, se sentia profundamente tocada pelos valores expressos pelo poeta e assim se atrevia a acreditar que, através do sonho, era possível encontrar o caminho para a liberdade. É deste modo que "Pedra Filosofal", musicada por Manuel Freire, se torna num hino à liberdade e ao sonho.E, mais tarde, em 1972, José Nisa compõe doze músicas com base em poemas de Gedeão e produz o álbum "Fala do Homem Nascido". Incapaz de ficar parado, dedica-se por inteiro à investigação publicando numerosos livros, tanto de divulgação científica, como de história da ciência. Gedeão também continua a sonhar, mas o fim aproxima-se e o desejo da morrer determina, em 1984, a publicação de Poemas Póstumos. Em 1990, já com 83 anos, assume a direção do Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa, sete anos depois de se ter tornado sócio correspondente da Academia de Ciências, função que desempenhará até ao fim dos seus dias. Quando completa 90 anos de idade, a sua vida é alvo de uma homenagem a nível nacional. O professor, investigador, pedagogo e historiador da ciência, bem como o poeta, é reconhecido publicamente por personalidades da política, da ciência, das letras e da música. A 19 de Fevereiro de 1997 morre Rómulo de Carvalho. Gedeão, esse já tinha morrido alguns anos antes, quando da publicação de Poemas Póstumos e Novos Poemas Póstumos. http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/antonio_gedeao/biografia.html

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Após acender o isqueiro "desaparece" o rapaz.

Não viu o grande letreiro: – PERIGO - NÃO FUME – GÁS.

As tuas mãos displicentes, no meu rosto a deslizar,

são mansas águas correntes sem pressa de desaguar…

A terra, embora cansada

não guarda o menor rancor; devolve a cada enxadada, alimento, sombra e flor.

A trova tem a magia

de revelar de repente a tristeza ou a alegria

ocultas dentro da gente.

Cada vez me fica a prova e eu me convenci, enfim, que palpita em cada trova um bom pedaço de mim.

Eu fugindo da saudade, ocultei-me num abrigo;

ela, porém, por maldade, foi lá pernoitar comigo.

Eu leio no teu sorriso o que diz teu coração; por isso, não é preciso

tanta dissimulação.

Meus filhos, esta criança nascida do amor primeiro, será, por certo, a bonança, do meu viver derradeiro.

Muita moça maltrapilha,

sem brinco, broche ou cordão, tem uma estrela que brilha,

no céu do seu coração.

Mulher que não acredita no dom da maternidade, pode ser mulher bonita,

mas, não, mulher de verdade.

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Mulher se faz elegante, mesmo sem a passarela. A moda mais importante é a nobreza dentro dela.

Na mansão da dona Wanda,

se o marido vai pescar, a luz verde na varanda

é o sinal que eu posso entrar.

Não desespere, querida, eu sei que o fracasso dói; mas nas bigornas da vida.

é que se forja o herói.

Não quero vela, nem flor, enfeitando a minha cova; mas escrevam, por favor, a minha mais bela trova.

No calor da discussão

no lar, emprego ou na rua, não exija educação,

mas sempre demonstre a sua.

No enterro do seu Terêncio, era grande o falatório;

defunto gritou: Silêncio! esvaziou-se o velório.

Odeio o espelho do quarto, quando reflete o meu rosto. Confesso que eu ando farto de encarar tanto desgosto.

O governo sanguessuga. para as dívidas saldar,

quer que até a tartaruga, pague imposto pra morar.

O índio, com estardalhaço. diz para o filho pequeno: – Joga fora este pedaço, carne de padre é veneno.

O seu lábio semi-aberto e seu olhinho fechado,

me convidam, estou certo, para um beijo apaixonado.

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Por carta, mando-te um beijo muito antecipadamente; em breve, terei o ensejo de dá-lo pessoalmente.

Por ter chegado aos cinquenta,

não me sinto na pior; bacalhau - diz Dona Benta - quanto mais seco melhor.

Quando, à tarde, o sol descansa

de um dia de muita lida, a lua lhe envia, mansa, um beijo de despedida.

Quem quiser ganhar o mundo conquistando-o por inteiro, faça um esforço profundo de domar, a si. primeiro.

Respeite a terra cansada, meu amigo lavrador,

não dê só golpes de enxada, mas também carinho e amor.

Se queres ser trovador, fazer trovas de verdade,

coloque rimas de amor nas canetas da humildade.

Temos no exemplo dos rios

uma lição modelar; Eles vencem desafios,

porque sabem contornar.

Transparente é minha mágoa, que nem consigo fingir,

pois meus olhos rasos d'água já não permitem mentir!

Aloysio Alfredo Silva, escritor, poeta, trovador, articulista, professor, advogado, aposentado do Banco do Brasil, nasceu em Juiz de Fora/MG, a 2 de janeiro de 1931. Segundo ele: "Em Juiz de Fora eu nasci/no dia dois de janeiro./ Sorríu-me a lua Jaci/ que foi quem me viu primeiro./A Jesus agradeci/por ter nascido mineiro. Filho único de Norival José da Silva (falecido), natural de Angustura (MG) e de Dona Maria da Glória do Nascimento Silva, de São Pedro Pequeri (MG). Casou-se com Vera Lúcia Calzavara, ceramista e escultora. Trabalhou apenas em dois empregos: Cia Mineira de Eletricidade (16 anos) e Banco do Brasil (26 anos). Pelo banco exerceu funções em Volta Redonda, Barra Mansa e Três Rios. Aposentou-se aos 55 anos de idade em Juiz de Fora. Somente na terceira idade que iniciou a sua carreira literária propriamente dita, embora já escrevesse esporadicamente. Tem o Curso Técnico de Contabilidade e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

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Kardecista desde a juventude. Participa como titular das: Academia de Letras de Juiz de Fora, Academia Juizforana de Letras, Academia dos Poetas e Prosadores de Minas Gerais, Casa do Poeta Belmiro Braga, Academia Municipalista de Letras do Estado de Minas Gerais, Associação Cultural Luso-Brasileira, União Brasileira de Trovadores, Galeria dos Trovadores do Brasil e Academia Ubaense de Letras. Livros publicados: "Gênios ou Ingênuos" (1983 e 1988); "As Águas Sagradas de Todos os Tempos" (1984); "Os Cometas e a Estrela de Belém" ((1985); "Os Vilões do Templo" (1985); "Sou Mineiro. Uai" (1994); "IX Anos de Trova" (1994); "Sobre Natural" (1996); "Reminiscências Juizforanas" (1996); "Minhas doces e amargas redondilhas" (1997) e "A morada eterna" (1998). Tem matéria publicada em prosa e/ou em verso em todos os jornais e revistas de Juiz de Fora e 25 jornais do interior do país.

Jean de La Fontaine

O Rato Caseiro e o Rústico

Convida, uma vez, ratinho

Mui galante e cortesão, Certo arganaz montesinho

A sobras dum perdigão.

Em guedelhudo tapete Luz o esplêndido talher.

São dois, mas valem por sete. Que apetite! que roer!

Foi folgança regalada;

Nada inveja um tal festim. Senão quando, na malhada,

Pilha-os súbito motim.

Passos à porta da sala... Param os nossos heróis.

E o terror, que pronto os cala, Lança em pronta fuga os dois.

Foi-se a bulha. Muito à mansa Vêm-se chegando outra vez. «Demos remate à folgança – Diz o da corte ao montês.

– Nada. Mas vem tu comigo

Jantar amanhã; bem sei Que lá me não gabo, amigo,

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Desta vidinha de rei.

Mas ninguém me turba em meio Do jantar; sobra o lazer. E adeus. Figas ao prazer

Que pode aguar um recreio.»

Tradução de José de Sousa Monteiro

Jean de La Fontaine foi um poeta e fabulista francês. Filho de um inspetor de águas e florestas, nasceu na pequena localidade de Château-Thierry/França, em 8 de julho de 1621. Estudou teologia e direito em Paris, mas seu maior interesse sempre foi a literatura. Escreveu o romance "Os Amores de Psique e Cupido" e tornou-se próximo dos escritores Molière e Racine. Em 1668 foram publicadas as primeiras fábulas, num volume intitulado "Fábulas Escolhidas". O livro era uma coletânea de 124 fábulas, dividida em seis partes. La Fontaine dedicou este livro ao filho do rei Luís 14. As fábulas continham histórias de animais, magistralmente contadas, contendo um fundo moral. Escritas em linguagem simples e atraente, as fábulas de La Fontaine conquistaram imediatamente seus leitores.Várias novas edições das "Fábulas" foram publicadas em vida do autor. A cada nova edição, novas narrativas foram acrescentadas. Em 1692, La Fontaine, já doente, converteu-se ao catolicismo. Antes de vir a ser fabulista, foi poeta, tentou ser teólogo. Além disso, também entrou para um seminário, mas aí perdeu o interesse. A sua grande obra, “Fábulas”, escrita em três partes, no período de 1668 a 1694, seguiu o estilo do autor grego Esopo, o qual falava da vaidade, estupidez e agressividade humanas através de animais. Faleceu em Paris, 13 de abril de 1695.

Folclore Indígena Brasileiro

Origem do Oiapoque

Os índios oiampis explicam de maneira melancólica o surgimento do rio Oiapoque, no extremo norte do Brasil. Tudo começou num tempo muito antigo, quando a fome e a doença estavam afligindo a aldeia dos oiampis. Tarumã, uma bela índia, estava grávida e

decidiu procurar um lugar livre da moléstia e da penúria para criar seu filho. Com a barriga pesada, a pequena índia começou sua peregrinação solitária pela mata, mas passados alguns dias sentiu que não teria mais forças para ir a lugar algum.

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– Ó, Tupã, não posso mais dar um passo e morrerei com meu filho no ventre! – exclamou ela, sozinha e esfomeada no meio da mata. Então Tupã, apiedado, transformou-a numa enorme cobra. Tarumã, convertida nessa cobra, encontrou forças para seguir adiante, levando sempre o filho no ventre, até que, um dia, encontrou um lugar aprazível, onde havia água e terra boa para plantar. – Aqui haveremos todos de viver! – disse ela, pensando em retornar às pressas para avisar a gente da sua aldeia. Antes de retornar, porém, ela deu à luz uma menina. – Graças a Tupã não nasceu uma cobrinha! – disse ela, aninhando nas suas dobras o pequeno ser. Tarumã refez todo o trajeto com a menina na garupa até chegar de volta à sua aldeia. Entretanto, viu-se surpreendida pela péssima recepção dos seus. E não era para menos, já que Tarumã ainda ostentava sua figura de cobra gigante.

– É a Cobra-Grande! – disse um índio, apavorado. Desde tempos imemoriais que os índios amazônicos nutrem um medo atroz da Cobra-Grande, um ser frio e devastador, cujo único propósito é alimentar-se de índios e animais. Imediatamente, um grupo de valentes surgiu com arcos e flechas e começou a arremessar uma verdadeira chuva de setas para cima da pobre índia-cobra. Tarumã não foi atingida, protegida que estava por suas escamas, mas sua filhinha não teve a mesma sorte e acabou varada por uma flechada certeira. Ao ver a filha morta, a cobra lançou para o ar um silvo de dor e tristeza tão aterrador que os índios saíram correndo em todas as direções. Imediatamente, um verdadeiro rio de lágrimas brotou das pupilas da cobra, preenchendo todo o sulco que ela abrira durante a sua viagem de ida e de volta. Um rio imenso formou-se, e a cobra mergulhou nas suas águas caudalosas, desaparecendo para sempre.

Fonte: Franchini, Ademilson S. As 100 melhores lendas do folclore brasileiro. Porto Alegre/RS: L&PM, 2011.

Aparecido Raimundo de Souza

Liungua Preusa O advogado indica uma cadeira para o rapaz que acaba de entrar em sua sala. Antes de sentar, o moço tira da

cabeça um chapéu ensebado e o coloca sobre a mesa cheia de papéis e processos. — Aceita água gelada?

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— Nãu, oubriugaudo. — Um café? — Tenhu qui paugar? — Claro que não. É por conta do escritório. — Entãu eu aceitu um caufé. Chama a secretária pelo interfone e solicita que traga a bebida para dois. — Vamos ao seu caso, senhor… Como é mesmo seu nome? — Adeugeusto Fumouso. — Pois não. O que está acontecendo? — Meu aumiugo se meuteu nuuma encreunca e a pouliucia leuvou eule paura a deleugaucia. — Sabe o motivo? — Seugundo o pouliciaul de plauntão, roubo de uma mouto. Mas já fuoi tuudo deuviudamente esclaureucido. — Mas seu amigo continua detido? — Nãu. Acaubou de ser liubeurado. Souto, aufiunau, está em causa, grauças a Deuus. Soulto. A secretária chega com a bandeja e serve os dois homens em silêncio: — Senhor, açúcar ou adoçante? — Auçuucar, pour fauvour. — Não entendi, cavalheiro! — Aucho meulhor toumar aumaurgo, meusmo. Terminada essa tarefa, a jovem retorna à recepção. — Bem, seu Adegesto… — Adeugeusto… — Seu amigo não está mais na delegacia?

— Grauças a Deus, nãu. — Confesso ao senhor que não entendi uma coisa. Como se chama, afinal, esse seu amigo: Souto ou Solto? — Orlaundo… — Mas o senhor disse à minha colega, ainda há pouco, que seu amigo Souto foi… — Nãu, nãu diusse. Fui bem clauro com eula. Faulei o seuguinte: Que o meu aumiugo Orlaundo… De ounde eussa criatutura tirou eusse taul de Souto? — O que o senhor falou, afinal, para minha sócia? — Que meu aumiugo Orlaundo esteuve, mas agoura nãu estáu mais. — Mais o quê? — Na deleugaucia, com o doutour deuleugaudo. — Então ele foi realmente solto? — Fuoi. Diaunte diusso eu vim auté auqui agraudecer, pois nãu vuou mais preucisar de seus serviuços. Taumbém sauber se deuvo alguma coisa coum reulaução a hounourários. — Tudo bem, o prezado não me deve nada. Apenas gostaria de um pequeno esclarecimento. Estou pra lá de confuso. Desculpe a insistência. Seu amigo é o Souto? — Nãu, doutor. Pour tuudo quaunto é mais saugraudo. — Realmente acho que não estamos conseguindo nos entender. O Souto foi preso e agora está solto? — Souto e Soulto nuunca estiveuram preusos, doutor. Preuso estauva o Orlaundo… Risos.

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— Por acaso isso é algum tipo de brincadeira? — Nãu senhour. Clauro que nãu. — Então? —O Orlaundo, como diusse, está souto, Enteunde o que diugo? Eule, augoura, eustá soulto. O advogado, impensadamente, resolve brincar com o cidadão. Fala, ou melhor, arremeda, de forma grotesca. — “Iustu nus leuva a councluir que eule reualmente nãu está maius preuso?”.

O sujeito se enfurece. Dá um tapa na mesa. Por pouco não derruba o restante do café: — O senhour pour aucauso reusoulveu tiurar saurro da miunha caura e me gouzar? — De forma alguma. O cidadão se levanta, muito nervoso, passa a mão no chapéu ensebado, vira as costas e sai da sala.

Fontes: Aparecido Raimundo de Souza. Refúgio para Cornos Avariados. SP: Ed. Sucesso, 2011

Imagem = www,folhauniversal.com.br

Aparecido Raimundo de Souza, jornalista e escritor nasceu em Andirá/PR, em 19 de março de 1953. Escreve, desde os 14 anos, mas só conseguiu publicar seu primeiro trabalho em livro, em 2006. Em Osasco, onde morava com os pais, passou a publicar frases no Jornal Diário de Osasco, onde, mais tarde, ao completar 18 anos, passou a ser responsável por uma coluna chamada “Sociedade”.

Escreveu e publicou, os livros "Quem se abilita?" (sem o h mesmo), com prefácio do escritor Paulo Coelho, "As mentiras que as mulheres gostam de ouvir" entre cerca de 20 livros publicados. Os textos retratam o cotidiano das pessoas. São escritos leves e soltos, alguns cheios de intransigências, outros salpicados de ironia e muita irreverência e picardia. Seu estilo lembra o escritor gaúcho Luiz Fernando Veríssimo, embora tenha criado uma grafia própria e inconfundível que cativa o leitor. Segundo Aparecido: “Nenhum livro, por mais esdrúxulo que seja seu tema central, deve ser considerado de qualidade menor. Não devemos esquecer que há público para todos os gostos e gêneros. A moda ‘Crepusculesca’ está bem em evidência, assim como outros temas, como o espiritismo, os livros de autoajuda, os romances de amor, os romances biográficos, os de enredos policiais, enfim, tudo é valido, tudo é literatura e, por essa razão, o bom leitor, o leitor assíduo e atento, assim como eu me considero, deve ler de tudo, inclusive, bulas de remédios.” Jornalista da “Isto é”, está radicado há cerca de 30 anos em Vila Velha/ES.

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Expressões Idiomáticas de Origem Mitológica

Trabalho de Sísifo Tarefa exaustiva, interminável e inútil. Origem: Na mitologia grega, Sísifo, rei de Corinto, era considerado o mais astuto de todos os mortais. Após ter provocado a ira de Zeus por denunciar o rapto da mortal Egina, Sísifo escapou algumas vezes de Tânato, o deus da Morte, através de engenhosos ardis. Muito depois Hermes logrou levá-lo ao Hades, onde foi condenado, por toda a eternidade, a rolar até o cume de uma montanha uma grande pedra, que, ao alcançar o topo, despenca novamente montanha abaixo.

Esforço hercúleo ou titânico Esforço gigantesco, além (ou no limite) das possibilidades humanas. Origem: Héracles (nome original grego) ou Hércules (nome romano) era um herói e semi-deus, filho de Zeus e da mortal Alcmena e um importante personagem da mitologia greco-romana. Dotado de coragem e força descomunais, participou de inúmeros episódios heróicos, destacando-se seus famosos doze trabalhos. Os Titãs eram criaturas formidáveis, descendentes do Céu, Urano e da terra, Gaia, destacando-se entre os seres que enfrentaram Zeus e os deuses olímpicos na

sua ascensão ao poder. Dentre os mais famosos titãs (masculinos) e titânides (femininos), podem-se mencionar Atlas, Hiperião, Prometeu, Reia e Tétis.

Bicho de sete cabeças Enorme ameaça ou dificuldade, requerendo grande coragem e/ou astúcia para ser superada. Origem: A expressão tem origem discutida, mas destacam-se duas interpretações. A primeira sustenta que sua origem está na mitologia grega, mais precisamente na história da Hidra de Lerna, uma monstruosa serpente com sete (ou nove) cabeças que se regeneravam mal eram cortadas e exalavam um vapor que matava quem estivesse por perto. A morte da Hidra foi o segundo dos famosos doze trabalhos de Hércules. De acordo com uma segunda teoria, a expressão seria uma referência à primeira das duas bestas do Apocalipse de São João, descrita como um monstro de sete cabeças e dez chifres.

Entre Cila e Caríbdis Entre duas formidáveis ameaças, sem chance de escapar e/ou sem saber qual das duas é o mais perigosa.

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Origem: Na tradição mitológica grega, Cila e Caríbdis eram dois monstros marinhos que moravam nos lados opostos do estreito de Messina, que separa a Itália da Sicília, e personificavam os perigos da navegação perto de rochas e redemoinhos. Cila, que já fora uma bela ninfa, era uma devoradora de homens. No cimo do rochedo oposto ao de Cila, em frente a uma gruta onde Caríbdis se escondia, erguia-se uma figueira negra. Três vezes por dia, Caríbdis saía da gruta e sorvia as águas do mar, para depois cuspi-las, num turbilhão5 . Quando Odisseu passou pelo estreito de Messina, depois da guerra de Troia, foi arrastado pelo turbilhão de Caríbdis, após um naufrágio provocado pelo sacrilégio cometido contra os bois de Hélio. Conseguiu, porém, agarrar-se à figueira e depois a um mastro do navio naufragado, logrando escapar e prosseguir sua viagem de volta à Ática . Calcanhar de Aquiles Ponto vulnerável, físico, moral ou intelectual. Origem: Aquiles foi um semi-deus e herói da mitologia grega, considerado o maior guerreiro da Guerra de Troia e o personagem principal da Ilíada, de Homero. Quando Aquiles nasceu, sua mãe Tétis mergulhou seu corpo no rio Estige para torná-lo imortal; ficou, no entanto, vulnerável no calcanhar, parte do corpo pelo qual ela o segurava. No final da guerra contra Troia, Aquiles foi efetivamente morto por uma flechada no calcanhar, desferida por Páris, príncipe troiano.

Toque de Midas Capacidade de enriquecimento fácil, que pode se voltar contra o beneficiado, como castigo por sua ambição desmedida. Origem: Midas foi um personagem da mitologia grega, rei da cidade frígia de Pessinus. Após ter libertado Sileno, mestre e pai de criação do deus Dionísio, recebeu, como recompensa que ele próprio escolhera, o dom de transformar qualquer coisa em ouro, pelo simples toque. Este dom mostrou-se trágico quando Midas percebeu que nunca mais poderia comer nem beber nada. Desesperado, quase morrendo de fome, Midas implorou a Dionísio que lhe retirasse o terrível dom. Belo como um Adônis Jovem de extrema beleza, disputado pelas mulheres. Origem: Adônis, na Mitologia grega, era um príncipe que nasceu das relações incestuosas que o rei Cíniras de Chipre manteve com a sua filha Mirra. Devido à sua extrema beleza, Adônis despertou o amor das deusas Perséfone e Afrodite, que passaram a disputar sua companhia, tendo finalmente que submeter-se à sentença de Zeus. Este estipulou que Adônis passaria um terço do ano com cada uma delas, mas Adônis, que preferia Afrodite, permanecia com ela também o terço restante. Como no terço correspondente a Perséfone (esposa de Hades, deus do mundo inferior) Adônis ficava com ela no submundo, nasce desse mito a ideia do ciclo anual da vegetação, com a semente que permanece sob a terra por quatro meses.

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Leito de Procrusto Aplicação arbitrária de uma medida única; sujeição forçada à opinião ou vontade de outrem. Origem: Procrusto (ou Procusto) era um bandido da Ática, famoso pelas torturas que infligia aos viajantes a que oferecia hospedagem, até que ficassem da medida de um leito de ferro que havia em sua casa. Se os hóspedes fossem mais altos, ele os amputava; se eram mais baixos, eram esticados até atingirem o comprimento correto. Ninguém sobrevivia, pois nunca uma vítima se ajustava exatamente ao tamanho da cama. Mais tarde, foi morto por Teseu, que lhe aplicou seu próprio castigo 9 10 . Curiosamente, a tradição rabínica menciona que um dos crimes cometidos contra os forasteiros pelos habitantes de Sodoma era quase idêntico ao de Procusto, dizendo respeito à cama de Sodoma (mitat s'dom) na qual os visitantes da cidade eram obrigados a dormir. Tomar a nuvem por Juno Iludir-se; tomar os desejos por realidade. Origem: Após apiedar-se de uma punição aplicada ao vilão Íxion, criador de cavalos, Zeus convidou-o para um banquete no Olimpo. Tendo-se embriagado pelo néctar, Íxion passou a assediar Hera (Juno, na mitologia romana), a própria mulher de seu anfitrião. Ao perceber as intenções do visitante, Hera alertou o esposo a respeito das intenções de seu convidado. Zeus, em lugar de irritar-se, achou divertida a situação, e para testar seu hóspede, moldou uma nuvem na forma de sua própria esposa e deixou-a a

sós com Íxion, que a possuiu. Desse conúbio nasceu a raça dos Centauros, metade homens, metade cavalos. Como Íxion divulgou aos mortais que havia possuído a esposa de Zeus, este o fulminou com um raio e o lançou ao Tártaro, onde foi preso a uma roda em chamas e condenado a nela girar pela eternidade. Pomo da discórdia Motivo principal de uma disputa; algo que dá motivo a uma grande desavença. Origem: Ofendida por não ter sido convidada para as núpcias de Tétis com Peleu, Éris, a deusa da Discórdia, resolveu vingar-se lançando sobre a mesa do banquete uma maçã de ouro, com a inscrição "Para a mais bela das deusas". As três deusas mais poderosas, Hera, Afrodite e Atena, imediatamente quiseram o troféu. Para se livrar da delicada situação, Zeus, o senhor do Olimpo, transferiu a decisão para Páris, filho do rei Príamo, de Troia, que havia demonstrado imparcialidade em uma disputa de touros contra o deus Ares. Em troca da maçã de ouro, Atena ofereceu a Páris uma vitória gloriosa na guerra; Hera, o reinado absoluto de toda a Europa e Ásia; Afrodite, o amor da mais bela mulher do mundo. Páris concedeu o título a Afrodite e a deusa prometeu-lhe o amor da belissima Helena, casada com o rei de Esparta, Menelau. Com a ajuda de Afrodite, Páris raptou Helena e levou-a para casar-se com ele em Troia, evento que provocou a célebre Guerra de Troia.

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Profecia de Cassandra Profecia catastrófica, na qual ninguém acredita. Origem: Cassandra era uma das filhas de Príamo, rei de Troia, que recebera do deus Apolo a proposta de ganhar o dom da profecia, em troca de entregar-se a ele. Cassandra aceitou a condição, mas depois de receber o dom, esquivou-se a cumprir o combinado. Para vingar-se, Apolo manteve o dom, mas condenou-a a uma completa falta de persuasão. Durante a guerra de Troia, Cassandra por diversas vezes alerta os troianos de perigos iminentes (sendo o último deles a armadilha do cavalo de Troia), mas invariavelmente não é ouvida. Após a guerra é levada como escrava e amante por Agamenon, chefe supremo dos exércitos gregos. Presente de grego Presente ou oferta que traz prejuízo ou aborrecimentos a quem a recebe. Origem: Após 10 anos de sítio, sem derrotar as defesas das muralhas de Troia, os gregos, num estratagema concebido por Odisseu, simularem terem desistido da guerra e embarcaram em seus navios, deixando na praia um enorme cavalo de madeira, que os troianos levaram para o interior de sua cidade, como símbolo de sua vitória. À noite, quando todos dormiam, os soldados gregos escondidos dentro do cavalo saíram e abriram os portões da cidade. O exército grego pôde assim entrar em Troia, conquistar a cidade, destruí-la e incendiá-la.

Agradar a gregos e troianos Agradar a todos, mesmo a pessoas com características muito diferentes; agradar a dois partidos opostos. Origem: Páris, príncipe troiano, raptou Helena, rainha grega, esposa de Menelau. Gregos e troianos envolveram-se em violenta guerra. O conflito durou dez anos e terminou com a destruição de Troia. A vitória dos gregos foi possível graças a Odisseu, que teve a ideia de construir o célebre cavalo de Troia. Por esta história se conclui que agradar a gregos e troianos é uma tarefa difícil, mesmo impossível. Espada de Dâmocles Perigo iminente, fruto da inveja e/ou da ambição pelo poder. Origem: Dâmocles, cortesão e bajulador do rei Dionísio I de Siracusa, expressava constantemente sua inveja pela sorte do tirano. Para dar-lhe uma lição, Dionísio combinou que lhe passaria o poder por um dia. À noite, durante o banquete que o tirano lhe ofereceu, Dâmocles percebeu que sobre sua cabeça pendia a espada do tirano, suspensa por um fio de cabelo. Com isso este lhe fez perceber que o poder está sempre à mercê das mais perigosas ameaças. Cova de Caco Esconderijo de ladrões. Origem: Caco era um célebre bandido da mitologia romana, metade homem e metade animal, filho do deus do fogo, Vulcano. Caco vivia numa caverna sob o

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monte Aventino, onde guardava o fruto de seus roubos. Certa feita, Hércules retornava para casa depois de haver roubado os bois de Gerião (um de seus famosos doze trabalhos) e parou para descansar às margens do Tibre. Naquela noite, Caco roubou oito dos melhores touros e novilhas do rebanho, arrastando-os pelas caudas para cobrir suas pegadas. Quando Hércules despertou, procurou em vão o gado perdido, mas, ao passar perto da cova de Caco, escutou uma das novilhas mugir. Seguindo o som, Hércules encontrou Caco e o matou, recobrando assim o gado roubado. Caixa de Pandora Algo que gera forte curiosidade, mas que é melhor não ser revelado ou estudado. Origem: Pandora foi a primeira mulher, forjada por Hefesto e Atena por orientação de Zeus, para punir a raça humana, a quem Prometeu tinha acabado de dar

o fogo roubado dos deuses. Pandora foi foi enviada a Epimeteu, irmão de Prometeu, como um presente de Zeus. Prometeu alertou o irmão quanto ao perigo de se aceitar o presente, mas Epimeteu ignorou a advertência e tomou Pandora como esposa. Pandora trouxera consigo uma pequena caixa de ouro (ou jarra, ou ânfora, de acordo com outras tradições), colocada por Zeus em sua bagagem. Mal chegou à Terra, Pandora, movida por irresistível curiosidade, acabou abrindo a caixa, liberando assim todos os males que haveriam de afligir a humanidade dali em diante: a dor, o sofrimento, a velhice, a doença, a miséria, a ambição, o ódio, a guerra, a loucura, a mentira, a paixão... No fundo da caixa, restou apenas a esperança. A vingança de Zeus estava consumada.

Fontes: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_express%C3%B5es_idiom%C3%A1ticas_de_origem_hist%

C3%B3rica_ou_mitol%C3%B3gica Imagem = Caixa de Pandora, pintura de John William Waterhouse

Lenda da Mitologia Hindu Lakshmi

Numa época remota, existia um grande Asceta, o

Sábio Durvasa. Um dia, ele estava caminhando com uma guirlanda de flores na mão, que na Índia se chama "Santanaka" para oferecê-la a Indra. Indra que

vinha na posição oposta cavalgando o elefante Airavata, passou pelo sábio e o ignorou. Indra fez com que Airavata pisasse e rasgasse a guirlanda de flores. Durvasa se encheu de ira e rogou uma praga em Indra:

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"O orgulho da riqueza subiu à sua cabeça, Lakshmi irá te abandonar."

Então Indra, que havia percebido a loucura que tinha feito, se curvou perante Durvasa e pediu seu perdão. Durvasa disse: "Que Vishnu o faça feliz" e partiu.

Por causa da maldição de Durvasa, Lakshmi deixou Indra e desapareceu. Como Lakshmi, a deusa da prosperidade, poder e coragem, desapareceu, a vida dos Devas se tornou miserável. Os Assuras depois dessa oportunidade, invadiram o paraíso, derrotaram Indra e os Devas em uma guerra e ocuparam o paraíso. Indra perdeu seu reino e todo seu poder para os Assuras, e os Devas perderam sua imortalidade e seu valor.

Vários anos se passaram. O mestre de Indra, Brihaspati pensou num caminho para acabar com os problemas de Indra. Então ele foi juntamente com os Devas falar com Brahma, que os levou até Vishnu, de acordo com os desejos dos Devas. Então Vishnu disse: "Não tenham medo, eu lhes mostrarei uma maneira, o mar de leite precisa ser agitado. É certamente uma tarefa muito difícil, então façam amizade com os Assuras, e peçam sua ajuda. Usem a montanha Mandara como poste, e Vasuki, o rei das serpentes como corda. Eu irei ajudar na hora certa. Quando o oceano é agitado, o Amrita emerge das profundezas, bebam ele e sejam imortais, vocês ganharam força e poderão derrotar os Assuras. Quando o mar for agitado, Lakshmi que havia desaparecido, reaparecerá e derramará sua graça sobre vós".

Brihaspati foi muito inteligente. Ele foi ter com os Assuras, e com astúcia conseguiu fazer amizade com os mesmos. Então ele pediu que os ajudassem no Batimento do mar de Leite. Os Assuras aceitaram, porque secretamente queriam o Amrita para eles. Depois de conseguirem a ajuda dos Assuras, eles começaram a fazer oferendas ao Oceano de leite. Os Devas e os Assuras ofereceram toda sorte de ervas e plantas para o Oceano. Todos se juntaram para realizar a tarefa de adquirir o Monte Mandara. Eles alcançaram a planície onde o majestoso monte estava posto. Depois de grande trabalho de cavar, conseguiram desarraigar o monte da terra. Eles então tentaram carregar a montanha Mandara para o oceano, mas o peso da montanha era demais para eles, muitos morreram e muitos se machucaram. Pouco tempo depois Vishnu chegou e com um olhar ressuscitou todos os mortos e curou todos os feridos. Então ele mandou Garuda carregar o monte mandara para o oceano. Garuda carregou o monte Mandara nas suas costas até a beira-mar, então o imergiu no oceano de leite. Ele amarrou Vasuki o rei das cobras como corda no monte. Os Assuras e os Devas ficaram cada um com uma ponta da serpente, então começaram a bater no oceano. O batimento continuou por um longo tempo sem que nada emergisse dele, até que o monte começava a deslizar para o fundo do oceano. Os Devas e os Assuras não poderiam continuar com o batimento sem o monte mandara. Até que eles foram abençoados com a Misericórdia de Vishnu. Vishnu, escutou o choro deles e veio logo ao resgate. Então ele tomou a

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forma de Kurma, seu Avatar com forma de tartaruga, colocou o monte nas costas e o levou de volta à superfície. Os Devas e os Assuras respiraram aliviados, pois agora poderiam continuar com o batimento do oceano. O Batimento do oceano de leite continuou com vigor. Então surgiu do fundo do oceano uma nuvem de fumaça que sufocava os Devas e os Assuras. Então eles começaram a clamar por socorro, pois estavam sem saber o motivo do sufocamento, até que descobriram que o Oceano tinha expelido o "Kalakuta", um veneno mortal. Todos estavam amedrontados diante da ferocidade do veneno. Os Devas oraram fervorosamente por Shiva e esperaram que ele poderia vir para ajudá-los, pois era uma substância que corroía tudo que tocava, e Shiva era o mais resistente dos Deuses. Shiva escutando o clamor dos Devas, rapidamente veio ao local, então, como foi pedido pelos Devas, Shiva concordou em beber o veneno. Shiva reteu o veneno em sua garganta, e salvou os Devas da destruição. O veneno era muito poderoso, tanto que fez com que a garganta de Shiva ficasse azul, por isso até hoje ele é chamado de "Neel-Kantha", que significa "aquele que tem a garganta azul". Depois que o veneno foi consumido por Shiva, os Devas e os Assuras continuaram mais uma vez com o Batimento do Oceano de leite. Passado algum tempo com o batimento do oceano, os Presentes Celestiais tomaram forma, o batimento trouxe à tona vários tesouros perdidos:

Sura (deus do vinho); Chandra (a lua); Apsaras (ninfas celestiais); Kaustabha (uma jóia preciosa para o

corpo de Vishnu); Uchchaihshravas (o cavalo divino); Parijata (a árvore dos desejos); Kamadhenu (a vaca sagrada); Dhanvantari (o médico dos deuses) Airavata (o elefante de quatro trombas) Panchajanya (concha sagrada de Vishnu) Sharanga (o arco invencível).

Continuando com o batimento, no meio das ondas do oceano de leite, uma deusa angelical apareceu, ela estava sentada em cima de um lótus desabrochado com um colar de flores de lótus no pescoço e segurando um lótus na mão. Sua aparição foi a mais atraente de todas. Em sua face havia um sorriso brilhante, era a própria Lakshmi!

Os sábios começaram a entoar cânticos em honra de Lakshmi, enquanto as apsaras dançavam. Os elefantes esguichavam água sagrada nela, ela adquiriu o nome de Gajalakshmi. O rei do oceano apareceu em sua forma natural e revelou que Lakshmi era sua filha. O rei presenteou Lakshmi com jóias e roupas, dando à ela uma guirlanda de flores de lótus. Quando todos os Devas olhavam surpresos, Lakshmi colocou a guirlanda no pescoço de Vishnu e, a partir daí, começou a habitar seu coração. Quando Lakshmi olhou para Indra ele logo adquiriu vigor e um brilho extraordinário.

Os Devas e os Assuras continuaram a bater no oceano, até que finalmente Dhanvantari emergiu do mar. Dhanvantari é o médico dos Devas. Ele carrega um pote sagrado nas mãos, esse pote continha o Amrita, néctar que garante imortalidade a quem bebesse. Quando os Assuras viram o que tinha acontecido, correram e tomaram o pote das mãos de

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Dhanvantari! Aqui começa a luta entre os Assuras e os Devas. Vishnu que via tudo, resolveu ajudar os Devas. Ele se disfarçou de Mohini. Mohini emergiu do oceano com beleza e graça. Ela chegou para os Assuras e perguntou:

"Porque vocês estão lutando?" Eles responderam: "Nós lutamos porque queremos o Amrita!" Mohini sorrindo disse:

"Não briguem pelo Amrita! Se vocês aceitarem, eu mesmo sirvo ele pra vocês! Façam duas filas, uma de Devas e outra de Assuras!"

Os Assuras encantados aceitaram a proposta, assim como os Devas. Mohini, com seus truques, serviu veneno aos Assuras e Amrita aos Devas. Os Assuras encantados nem se tocaram do truque que havia sido usado. Os Devas beberam o Amrita e ganharam imortalidade, então começaram uma guerra com os Assuras, os quais foram derrotados facilmente.

Nota: Lakshmi é uma divindade do hinduísmo, esposa do deus Vishnu, o sustentador do universo na religião hindu. É personificação da beleza, da fartura, da

generosidade e principalmente da riqueza e da fortuna. A deusa é sempre invocada para amor, fartura, riqueza e poder. É o principal símbolo da potência feminina, sendo reconhecida por sua eterna juventude e formosura.

Lakshmi é uma Shakti, a esposa de Vishnu. Manifesta o poder que sustenta o Universo e o mantêm em equilíbrio. É representada sobre a flor de lótus, símbolo da pureza e do conhecimento. Valoriza a beleza, a generosidade, a justiça, misericórdia e representa o bem-estar, a boa alimentação, fertilidade, riqueza espiritual e material, saúde e sorte.

Pode ser vista sentada sobre uma flor de lótus, ou segurando flores de lótus nas mãos, e um cântaro que jorra moedas de ouro. Apadma é o nome dado a Lakshmi, quando representada sem o lótus, ao sair do Oceano. Lakshmi é uma Deusa Indiana consorte Vishnu, um Deus Protetor, que é muito amada por seu povo. Foi ela que deu a Indra, o Rei dos Deuses, o soma (ou

sangue do conhecimento) do seu próprio corpo para que ele produzisse a ilusão do parto e se tornasse o Rei dos Devas. A Deusa Lakshmi significa "boa sorte" para os hindus. A palavra "Lakhsmi" é derivada da palavra "Laksya" do sânscrito, significando o "alvo", o "objectivo".

Fonte: http://contosencantar.blogspot.com.br/search/label/Contos%20e%20Lendas%20da%20Mitologia%20Hindu

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Pedro Marques Olegário Mariano:

entre romantismo e modernismo Resumo: As categorias literárias atribuídas a

Olegário Mariano, êxito de público e crítica na primeira metade do século XX, passam pelas principais linhas crítico-interpretativas da poesia brasileira. De fato, o poeta refunde características românticas, parnasianas e simbolistas com a faceta nacionalista do modernismo. Nesse amplo quadro historiográfico, ressalto a ponte que sua obra propõe entre romantismo e modernismo através do nacionalismo.

1. Introdução Olegário Mariano (Recife, 1889 – Rio de Janeiro,

1958), escritor de proa em seu tempo, experimentou diversas correntes poéticas de olhos sempre atentos aos temas brasileiros. Formado na estética parnasiana sob influxos simbolistas e decadentistas, conhecedor das inovações que iniciam o século XX, os críticos, em geral, concordam quanto a sua notável infidelidade em relação às orientações literárias, mesmo àquelas pelas quais transitou. Na década anterior à Semana de 22,

período não raro visto como vácuo criativo, expandiu as possibilidades da versificação tradicional de maneira algo sutil e inédita. Longe de abandonar o característico senso melódico, dilatou o decassílabo e o alexandrino, seus metros prediletos, até os limites do verso livre e da prosa ritmada. Habilmente, Olegário não buscou o verso livre, mas fortaleceu, sobretudo nos anos 30, talvez sob efeito do modernismo, “uma espécie de compromisso entre ele e a versificação regular” (Bandeira, 1978, p. 199). Conseguiu, na prática, reelaborar a espontaneidade e a agilidade dos ritmos regulares românticos, enrijecidos no parnasianismo final.

A inclinação para os elementos que se apresentam como índices de nacionalidade a partir do romantismo, certo sertanismo, a notável apropriação do popular e do folclore pernambucano, é um dos pontos de síntese da poética de Olegário Mariano. Para Humberto de Campos, a produção do poeta seria antes “reflexo do meio, e do momento, do que da sua própria

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imaginação” (Campos, 1935, p. 155). Canto da Minha Terra (1927), realização máxima do interesse nacionalista aos poucos tornado projeto literário, escrito no instante do mergulho modernista no Brasil, indiciaria o oportunismo de Olegário: “tornou-se novidade a poesia cabocla, a celebração do país e da natureza que lhe deu estes céus e estas montanhas. O poeta adquire uma corda nova, ajusta-a à sua lira delicada, e canta com o vigor e a graça dos que mais alto e soberbamente a cantaram” (Campos, idem). No que tange às influências do parnasianismo, simbolismo e até da onda decadentista do inicio do século, o julgamento sustenta-se. Mas ao diferente do que acredita Campos – aliás, inspiradíssimo na moda critica de Taine – Olegário não começa o nacionalismo por ocasião da avalanche modernista, mesmo certamente estimulado por ela.

Antes de Canto da Minha Terra, Olegário, invariavelmente, dispensa atenção aos temas, lendas ou paisagens do Brasil. Em Visões de Moço (1906), que o poeta excluiu de suas poesias completas, quando estréia aos dezessete anos de idade, há os versos, por exemplo, de “Vendo um barco”. No soneto, sobretudo no segundo quarteto, o eu lírico, num claro aproveitamento biográfico, expressa a nostalgia por Pernambuco, metáfora de um lugar em que é possível escapar da “agonia” humana e mergulhar no mar alentador da poesia. Trata-se da recuperação modificada do motivo, bastante explorado por poetas românticos como Casimiro de Abreu, da infância

idealizada, da terra natal com colorido brasileiro, como idílio.

Vendo o Barco

É neste barco que me vou embora

De tarde, quando é rubra a serrania... Quando o horizonte imenso se colora Dos raios que o sol deita da agonia...

Corta o barquinho, as águas... Mar em fora

Iremos ambos loucos de alegria, Ver Pernambuco quando rompa a aurora

Mergulhado nos mares da poesia...

Flutua sobre a espuma do oceano... Breve estaremos lá na pátria terra

Vendo o azulado céu pernambucano...

Vamos, ligeiro, sacudindo as velas Pelo mar deslizando... Ao longe a serra. Em cima a céu ornando-se de estrelas...

(Mariano, 1906, p. 24) Do mesmo volume, o soneto “Quadro”, agora em

alexandrinos, traz o apreço pelo homem do campo. O tom caboclo, afinal, acaba revelando uma especificidade do nacionalismo romântico; a que assume os interiores rurais do país como genuinamente mais brasileiros que os centros

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urbanos. Ao contrário dos valores culturais efetivados em cidades como Rio de Janeiro, os do interior estariam, supostamente, imunes dos influxos estrangeiros. O homem interiorano calejado na lida com terra, desfrutando a fauna e a flora exuberantes in loco, substitui o índio na figuração da identidade nacional; puro no caráter e, ao mesmo tempo, mistura já das três raças (índio, negro e branco), sem os traços selvagens que distanciavam o ideal do homem brasileiro do europeu, deveria, portanto, apresentar-se como sinônimo da essência nacional.

Quadro

Eis o carro de bois seguindo a verde estrada

E as aves em lote vão cantarolando... No meio da campina o gado pasta em bando

Enquanto o sabiá saúda a madrugada...

É o tempo em que no céu a estrela d’alvorada Vai desaparecendo em nuvens se embuçando...

E o bando d’aves mil esvoaça chilreando, E o carro vagaroso atravessa a esplanada.

O regato entre as flores corre em murmúrio...

De cada flor molhando o seio perfumado, Desaparece em recato incógnito, sombrio.

Agora o camponês montando um cavalinho,

Com seu grande chapéu de palha desabado Em áspero rojão vai da roça caminho...

(Mariano, 1906, p. 30) “Em caminho da roça”, explode a idealização do

estilo de vida cabocla. O poeta assume a voz do homem do campo que possui a natureza da “bendita terra” ao alcance das mãos e dos pés, podendo, assim, integrar-se a ela. O sabiá, ave tornada símbolo de nacionalidade principalmente com a “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, e que já cantara no soneto anterior, voa absoluto aqui. A roça fortalece-se como lugar tão seguro, tão inviolável e tranqüilo, que chega a ser comparada a um ninho “feito de penas brandas como arminho”; como se este homem resultante da mistura, no mínimo, do colonizador português com o indígena, com o escravo, tivesse brotado naturalmente dali, planta nativa.

Em caminho da roça

Em caminho da roça. Que alegria

Que mudança de clima, de ar e terra!... Aqui, há no arvoredo uma harmonia

Dos pássaros cantando... ao longe a serra.

Onde e sol no Zenith – pino do dia Dardeja os raios. Que beleza encerra

Esta mata florida, onde, erradia, Voeja o sabiá!... Bendita terra!

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A morada na roça é como o ninho Feito de penas brandas como arminho,

Onde repousa um’avesinha à sesta.

Oh! como é bom vagar no verde prado! Lá ouvir o mugir do manso gado,

A ver constante a natureza em festa!... (Mariano, 1906, p. 36)

2. Ultimas Cigarras. Nacionalismo crescente. Em Últimas Cigarras (1915), sexto livro da carreira, o

impulso nacionalista mistura-se ao exercício de um topos grego ambientado na paisagem local: da epígrafe tomada a Anacreonte (séc. VI a.C.), passando pelos mais de quarenta poemas canta a cigarra que se tornaria símbolo de sua poesia. O vínculo com a tradição anacreôntica é enxertado, ainda, pela fábula “A Cigarra e Formiga” de Esopo (também grego do séc. VI a.C.) mas traduzida por La Fontaine, e ocorre exatamente no volume que alçou o nome de Olegário Mariano ao cimo da poesia brasileira do período. “O livro o consagrou definitivamente como o nosso poeta mais representativo do momento, de mais afinidade com o público, louvado por igual pela crítica de todos os setores literários” (Lima, 1968, p. 17).

O encontro de Olegário com Anacreonte encontra respaldo significativos na literatura brasileira: Tomás Antonio Gonzaga, na lira 29, Primeira Parte de Marília

de Dirceu; Silva Alvarenga, “Rondó I”; Gonçalves Dias, “A minha musa”; Machado de Assis, “Uma Ode de Anacreonte”; Alberto de Oliveira, “Vaso Grego”; Raimundo Correia, “O espelho de Anacreonte”, “Anacreôntica” e “A Luís Delfino”; Olavo Bilac, “Medalha Antiga”; Magalhães de Azeredo, “Ode à Grécia”. Apenas alguns exemplos cabais. Ao mesmo tempo, e num contexto ampliado, a antiga lírica grega é freqüentada pelas molas mestras da poesia moderna desde o século XIX. Em Olegário, a busca pela tradição “direto na fonte” tenta neutralizar leituras anteriores, compreende não só a escolha refletida de Anacreonte, mas a própria concepção de artista gerada em sua poesia. Num momento de desprendimento do parnasianismo em que se formou, fundamenta sua identidade poética com os elementos da nacionalidade edificados pelo romantismo.

Alegria da Vida

Parece que ando a sentir mais a vida. Outono! – É a suavidade da paisagem. Há carícias na luz que anda esbatida Em espasmos de cor pela folhagem.

Folhas rolando no úmido regaço

Da Terra; aromas de magnólias e de mirtos. Árvores levantando para o espaço

Apostolicamente os braços hirtos...

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Noivado de papoulas e de ramos Que ao longo das estradas vão florindo... Foi assim meu amor, que nos amamos

Neste silêncio evocativo e lindo.

Vegetação exuberante e acesa Que vibra, que perfuma, que cintila.

Parece que no Outono a Natureza Tem mais fecundidade e clorofila.

No cenário da terra adolescente,

A paisagem de encantos se renova. E a alma panteísta delirantemente Vibra numa explosão de vida nova.

Ó Natureza! A ti me entrego, suplicante, Braços para o trabalho e ânsia incontida

Para beber na tua seiva fecundante O vinho, a graça, a formosura e a vida.

(Mariano, 1957, p. 179)

Há três camadas de leitura. Na primeira, o eu lírico é simplesmente um felizardo, sente “a alegria da vida” ao rememorar a efusão amorosa sucedida num outono. Toda a natureza se mostra formidável, aromática e luminosa mesmo no outono, porque “foi assim, meu amor, que nos amamos / neste silêncio evocativo e lindo”. Paira uma ingenuidade casimiriana nesse amor pela natureza. Na segunda, tomando Últimas Cigarras como unidade narrativa, a voz deste poema é a própria cigarra personificada. Como se aquela cigarra

divulgadora do estio, referida desde a ode anacreôntica da epígrafe e ao longo do livro, despertasse da posição passiva de objeto e, em linguagem poética, comentasse a arrebentação da vida que tanto anuncia em seu trinado que canta a estação da fertilidade.

Numa terceira camada, a persona poética alinha-se ao despontar do projeto literário de visada nacionalista. Olegário Mariano vem lastreando seu plano, desde o primeiro livro, com a idealização do Brasil rural, ao que incluirá, ao poucos, os motivos folclóricos. Reconhecer o modus vivendi do sertanejo, do desbravador dos interiores, suas paisagens, significa assumir a tradição sertanista implementada desde o romantismo de um Castro Alves de “Canção do Violeiro” ou “Gondoleiro do Amor”, continuada pelo Raimundo Correia de “Noivado no Sertão”, ou pela obra de Catulo da Paixão Cearense. Na estrofe final, o poeta chama para si, em devoção, a natureza brasileira que aos poucos surge povoada de homens, lendas e costumes brasileiros: “Ó Natureza! A ti me entrego, suplicante”. Cada vez mais, buscará uma cadeira nessa tradição, a disposição para concretizar tal intento está sugerida: “Braços para o trabalho e ânsia incontida / Para beber na tua seiva fecundante”.

Velha Amizade

Amiga! Desde criança que eu te quero! Quantas noites pensei na tua sorte!

Teu canto é emocional porque é sincero E exprime a Terra na expressão mais forte.

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Quando chegava o inverno horrendo e fero

Varrendo o canavial do sul a norte, Não avalias tu meu desespero

Para te conseguir salvar da morte.

Tinha a loucura de te ouvir em tudo... Tua cantiga vaga e transitória

Para os meus nervos era de veludo.

E em casa, numa evocação perene, Lia, de olhos em pranto, a tua história Por um velho senhor de La Fontaine.

(Mariano, 1957, p. 183)

Narrativa para enternecer. Desde criança, o eu lírico detinha curiosidade lúdica, senão obsessiva, pela cigarra onipresente em som e imagem: “tinha a loucura de te ouvir em tudo...” Sente pena da cigarra concreta abatida pelo inverno. O desespero de conhecer a morte do inseto, leva o menino a descobrir a cigarra literária, portanto eterna, de La Fontaine. Esse movimento, na cigarra, do supostamente real para o simbólico, para o universo fabular, deu-se com o próprio poeta, quando em “A Cigarra que Ficou”, poema de abertura do livro, escolhe para tema a que “cantava melhor”, isto é, a da tradição. O “canavial” indica a paisagem dos engenhos, do Pernambuco em que Olegário Mariano viveu até os nove anos. Gilberto Freyre liga o uso desses rastros de memória a um “romantismo lamartinesco”, sublinhando “a evocação dos seus dias de menino de

casa-grande dos arredores do Recife. Arredores onde as cigarras que, nos dias de verão, continuam a cantar romanticamente nas mangueiras, têm hoje o nome de ‘olegárias’: homenagem desses arredores a um poeta que a admiração dos recifenses não esqueceu” (Freyre, 1958).

3. Canto da Minha Terra. Nacionalismo nas veias Antes desse livro-chave, saído em 1927, Olegário

Mariano já dava seguimento à tradição nacionalista em marcha na poesia brasileira. Do volume Ângelus (1911), os versos de “Dona Tristeza”. De Sonetos (1912), “Mãe d’água”. De Evangelho da Sombra e do Silêncio (1912), “Dezembro”. De Água Corrente (1918), “A Fazenda Santa Cruz”. De Castelos na Areia (1922), “A Balada das Folhas”. Percorri, pontualmente, tal filiação em Visões de Moço e Últimas Cigarras os quais, com Canto da Minha Terra, faíscam como estrelas principais na articulação do nacionalismo mariano. Mas a formalização e o comprometimento com um projeto de poesia nacionalista viriam em 1926, num momento de apogeu da trajetória do poeta: o discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Um trecho decisivo:

Nesta hora, dia a dia mais em êxtase diante da minha terra e da minha gente, tão bela e tão boa, volvo para ambas a sensibilidade e as exalto e as abençôo com uma devoção enternecida. É o exemplo do nosso

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amado Bilac cada vez mais vivo na admiração brasileira, preferindo, muitas vezes, a qualquer motivo, o que bendissesse desta nossa Pátria unida e forte. (Mariano, 1936, p. 257)

Olavo Bilac, que a partir de 1888, com a publicação da primeira versão de Poesias, até sua morte em 1918, tornou-se poeta nacional, ícone do artista-intelectual de toda a geração que com Machado de Assis fundadora da ABL. Um olhar ligeiro vê nisso já um impasse. Como alguém, depois da Semana de 22, conceberia Bilac, parnasiano atacado e ridicularizado pelos modernistas, como exemplo a ser seguido? Ou ainda: como alguém com essa mentalidade poderia gerar em sua obra uma ponte entre romantismo e modernismo? Ora, o amplo reconhecimento reservado a Bilac em vida, talvez o maior que um poeta no Brasil tenha gozado em todos os tempos, não se evaporou com o advento do modernismo. Embora parte de sua produção seja palatável apenas a leitores de erudição, outra porção substancial de inflexão romântica (a série Via-Láctea, anos a fio declamada de cor nos salões) e nacionalista (“O Caçador de Esmeralda”, sonetos como “Língua Portuguesa” e “Música Brasileira”) era saboreada como sinônimo do melhor já feito em verso em terras tupiniquins.

Em segundo lugar, para compreender com algum distanciamento crítico a produção de autores como Olegário Mariano e de todos que pouco ou nada se associaram ao combate modernista, é preciso cercar mais as continuidades que as rupturas na evolução da

literatura brasileira. Olegário não revela ímpeto para reescrever a história do Brasil através do que supõe primitivo, como na antropofagia oswaldiana, pretende, isso sim, inscrever-se numa tradição nacionalista já aberta e percorrida, inclusive, por Bilac. São duas estratégias distintas de valorização da identidade nacional, num momento tensivo como os anos 20. Uma tradicional, herdeira do romantismo, jamais interrompida, promovida, de alguma maneira, pelo estado desde o império e completamente absorvida pelas instituições de cultura e educação. Outra, surgida no bojo do modernismo, com a novidade de vir municiada com dicção e afirmação de vanguarda; em vez de herdeiros da tradição literária brasileira, escritores como Mário de Andrade, colocam-se como pesquisadores novos, habilitados para sondar o folclore, os mitos indígenas, africanos e sertanejos. Daí a idéia da reinvenção modernista do Brasil. Na prática, porém, tanto a estratégia prolongadora, quanto a de descontinuidade, chegam a resultados aproximáveis. Sugiro, neste sentido, a conversa entre o prolongador Canto da Minha Terra e transgressor Remate de Males (1930), de Mário de Andrade. Ambos os livros buscam nomear e representar o que seja mais autenticamente brasileiro.

Sem pretender incidir no regionalismo de horizontes limitados, parece-me que é o momento de explorarmos as nossas reservas folclóricas, tão ricas como as que mais o forem neste pletórico Novo Mundo, cantando ao mesmo passo a terra morena e moça que assombra o estrangeiro pela sua exuberância prodigiosa e

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desabrochar em vergéis incomparáveis exaltando o homem que a povoa e a opulenta. (Mariano, 1936, p. 257)

O regionalismo deve ser evitado, pois ao se voltar para a cultura particular e natural de determinada área, deixa de lado exatamente a unidade de espírito que constituiria a identidade brasileira, como nos românticos, numa espécie de harmonização positiva da grande diversidade de paisagens físicas e humanas do país. Guilherme de Almeida, modernista de primeira hora, em seu ensaio Do Sentimento Nacionalista na Poesia Brasileira, também de 1926, assume posição semelhante, revivendo o desejo de continuidade entre aqueles que assumiram a ruptura modernista: “brasileiro não quer dizer regionalista; e regionalista quer dizer caipira, tabaréu, sertanejo, roceiro, maturo, mambira... O movimento brasileiro é lógico, é centrífugo e não centrípeto; parte do particular para o geral. O contrário é absurdo” (Almeida, 1926, p. 105). Explorar as reservas folclóricas do Recife, por exemplo, apenas no que as diferencia do resto do Brasil não é realizar poesia nacionalista, é ser bairrista. Ambas proposições são de difícil execução, exigem do poeta um equilíbrio, um pé na região escolhida, outro numa idéia geral de nação. Mais uma intersecção entre romantismo e modernismo.

Eu por mim comprometo-me a colaborar nessa obra que há de ser eminentemente nacional, uma vez que nela se moverão os nossos heróis em tipos reais ou lendários, esplenderão os nossos aspectos

panorâmicos, gorgolejarão as nossas cachoeiras, correrão os nossos rios, avultarão as nossas montanhas, florirão os nossos jardins e fulgurarão as nossas noites em incêndios maravilhosos nas clareiras das matas, sob a benção estrelada do Cruzeiro. (Mariano, 1936, p. 257)

A concretização desse projeto literário, firmado em tom de compromisso patriótico, viria no ano seguinte com o aparecimento de Canto da Minha Terra. O livro engrena uma evidente pesquisa nacionalista, mas Olegário Mariano acrescenta ao seu projeto uma nota absolutamente fundamental, nem sempre disponível a qualquer poeta: a memória. Por ter nascido e crescido no Recife, os motivos populares e folclóricos, sobretudo os exclusivos e praticados em Pernambuco, não são encenados com o distanciamento de quem os observa e os recolhe de longe. Como ocorre com o Manuel Bandeira de “Evocação do Recife”, Olegário recheia muitos poemas deste volume com elementos biográficos. O refrão em ritmo de domínio público de “Tutu-Marambá”, por exemplo, pulsa mais vida quando imagino o próprio poeta ouvido o numa cena quase imemorial da meninice. A intenção nacionalista é atravessada pela verossimilhança de um rastro de memória:

Tutu-Marambá

“Tutu-marambá Não venhas mais cá Que o pai do menino

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Te manda matar.”

No seu berço de rendas com brocados d´doiro Os olhinhos redondos de espanto e alegria,

Ele olha a vida como quem olha um tesoiro... – Meu filho é o mais lindo desta freguesia!

O filho da coruja! A boquinha em rosa, a mãozinha suja, Com os dedinhos gordos já dá adeus.

Fala uma língua que ninguém compreende...

Toda a gente que o vê se surpreende: Tão bonitinho! Benza-o Deus!

É redondo como uma bola. O seu polichinelo com um grande guizo,

É a única coisa que o consola... Meu filho é o meu maior sorriso.

Que noite clara anda lá fora!

O luar entra no quarto, manso e lindo, Com a expressão angélica de quem chora...

Roça o berço: o menino está dormindo. Então a voz que mal se sente, Vai cantando maquinalmente:

“Tutu-marambá

Não venhas mais cá Que o pai do menino

Te manda matar.” (Mariano, 1957, pp. 279-280)

No que toca o aproveitamento em refrão da quadra popular entre aspas, o poema coincide com os interesses nacionalistas românticos e modernistas. Mas o tratamento formal do tema, diferente das citações de Visões de Moço e Últimas Cigarras, possui características do modernismo que diz não aderir. A colagem do refrão destacado espacialmente na página, é técnica exaustiva nas vanguardas do período. A tensão entre as redondilhas menores da quadrinha, dos alexandrinos da primeira estrofe e todos os outros versos livres rimados gera um ritmo popular em sua regularidade, mas quebrado, estranho em suas inconstâncias métricas. A linguagem direta sem oferecer dificuldade semântica ou sintática de leitura, os diminutivos para descrever a criança lastreiam esta língua poética de uma simplicidade brasileira buscada pelo Ascenso Ferreira de Catimbó ou pelo Jorge Lima de Poemas.

Todo o livro busca a realização poética do projeto nacionalista. O longo poema de abertura “O Meu Brasil” pode ser lido, inclusive, como desenvolvimento, espécie de tradução em verso, do trecho comentado acima do discurso na ABL. Apresentarei, para arredondar a discussão, um último poema que, embora menor, possui função semelhante ao poema inicial.

Canto da Minha Terra

Amo-te, ó minha Terra, por tudo o que me tens dado: Pelo azul do teu céu, pelas tuas árvores, pelo teu mar;

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Pelas estrelas do Cruzeiro que me deixam anestesiado, Pelos crepúsculos profundos que põem lágrimas no

meu olhar;

Pelo canto harmonioso dos teus pássaros, pelo cheiro Das tuas matas virgens, pelo mugido dos teus bois; Pelos raios do sol, do grande sol que eu vi primeiro...

Pelas sombras das tuas noites, noites ermas que eu vi depois;

Pela esmeralda líquida dos teus rios cristalinos, Pela pureza das tuas fontes, pelo brilho dos teus

arrebóis; Pelas tuas igrejas que respiram pelos pulmões dos

sinos, Pelas tuas casas lendárias onde amaram nossos avós;

Pelo ouro que o lavrador arranca das tuas entradas,

Pela benção que o poeta recebe do teu céu azul, Pela tristeza infinita, infinita das tuas montanhas,

Pelas lendas que vêm do Norte, pelas glórias que vêm do Sul;

Pelo teu trapo de bandeira que flamula ao vento

sereno, Pelo teu seio maternal onde a cabeça adormeci, Sinto a dor angustiada de ter o coração pequeno

Para conter a onda sonora que canta de amor por ti. (Mariano, 1957, pp. 295-296)

Como anteriormente, haveria longa análise a propor ao presente poema. Composto em polimetria rimada, longe dos melhores do poeta, os versos interessam pela evidente direção programática. Se ao longo do volume Olegário Mariano exercita o projeto nacionalista, por exemplo, ao recontar a lenda da Mãe D’água em “Iara”, ou ao recuperar a brincadeira de soltar balões em “Cai,Cai, Balão”, nos versos de “O Meu Brasil” e “Canto da Minha Terra” comenta a própria acomodação do país no epicentro de interesses da poesia nacional. Lançar mão de cansativa estrutura anafórica – só não inicia quatro versos flexionando a preposição pelo – reveste o poema com uma epiderme de exaltação ao modo do Hino Nacional. O poema fornece, de fato, o mapa de ação para escrever poesia nacionalista: na primeira estrofe, sublinha-se a beleza tropical exuberante; na segunda, esta terra já se mostra ocupada, seja pela presença dos bois, seja por ter sido o berço do poeta (“o sol que eu vi primeiro”); a terceira potencializa os recursos naturais abundantes “(pela esmeralda da liquida de seus rios”), simboliza a religiosidade marcante do povo (“as igrejas que respiram pelos pulmões dos sinos”); na quarta, refere-se à nossa vocação agrária empreendida pelo homem do campo que desbravou a selva, à comunhão telúrica entre poeta e país. No verso “pelas lendas que vêm do Norte, pelas glórias que vêm do Sul”, descortina-se a representação do país vinda do romantismo: o Norte (entenda-se também nordeste) como abrigo das tradições nacionais porque menos corrompido pelo contato estrangeiro; o Sul (entenda-se também

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sudeste), uma vez perdida as “raízes”, resta-lhe ser propulsor da economia, organizador político. Na quinta, depois de repassar os principais símbolos que costumam caracterizar toda poesia de viés nacionalista, dá-se a assunção do amor por uma concepção de Brasil voltado para o desenvolvimento de seu interior. Aqui, Olegário se afasta do modernismo que se interessava pelo folclore, pelo popular, mas que mantinha um olho vivo no crescimento urbano do país com sua decorrente revolução econômico-cultural.

A possibilidade de confrontar, através da obra de Olegário Mariano, os dois momentos literários que buscaram de maneira sistemática definir o Brasil e o que possa ser identidade nacional, é das questões que intriga meu doutoramento acerca do poeta. Neste breve espaço, apenas coloquei a questão testando alguns caminhos de uma reflexão que ainda trabalha para chegar a resultados profícuos.

4. Referências bibliográficas Almeida, G. Do Sentimento nacionalista na poesia brasileira . São Paulo: Casa Garraux, 1926. Bandeira, M. A Poesia de Olegário Mariano, In: Andorinha, andorinha. Organização de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo / Rio de Janeiro: Círculo do Livro / José Olympio, 1978. Campos, H. de. Poesia nacionalista, In: Crítica: primeira série. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935. Freyre, G. O poeta Olegário Mariano”, In: O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 14-06-1958. Lima, H. “Apresentação”, In: Olegário Mariano: poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1968. Mariano, O. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, In: Discursos acadêmicos vol. VI (1924-1927). Rio de Janeiros: Civilização Brasileira, 1936. ______. Toda uma vida de poesia – poesias completas vols. I e II. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. ______. Visões de moço. Rio de Janeiro: Typ. Carvalhaes, 1906.

Fonte:

SOUZA, E.N.F.; TOLLENDAL, E.J.; TRAVAGLIA, Luiz Carlos (orgs.). Literatura: Caminhos e descaminhos em perspectiva. Uberlândia: UFU, 2006.

Biografia de Olegario Mariano, no numero anterior, 404.

Fábulas Sem Fronteiras

África A Hiena Mazona

Outrora, dois homens, Ali e Mustafá, atravessaram o

deserto na companhia de um leão, uma serpente, uma hiena e um chacal.

A certa altura, os alimentos acabaram-se e os seis viandantes começaram a sentir fome. Por sorte, chegaram a um oásis onde encontraram um camelo.

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Cansados da longa caminhada, decidiram amarrá-lo a uma palmeira, guardando para o dia seguinte a oportunidade de fazerem um saboroso petisco.

Mas a hiena, que é o animal mais sôfrego de quantos existem acima da Terra, ficou acordada planejando um estratagema para ficar com o camelo só para si.

Quando já todos estavam a dormir, aproximou-se do leão e disse-lhe ao ouvido:

— Toma cuidado, que o chacal tem a intenção de nos roubar o camelo…

— Ai sim?! — disse o leão. — Eu já lhe dou o arroz! Aproximou-se do chacal que estava a dormir e, sem

quaisquer explicações, deu-lhe uma valente paulada e matou-o instantaneamente. E deitou-se outra vez a dormir.

Um já está! — pensou a hiena. Esta, assim que o leão adormeceu, foi ter com a

serpente. Acordou-a e disse-lhe em voz baixa: — Viste o que o leão fez? Matou o chacal e desconfio

que vai fazer o mesmo a todos nós, para poder ficar com o camelo só para si!…

— Ai o vigarista! — comentou a serpente. — Ainda bem que me avisaste, porque eu vou cortar o mal pela raiz.

Chegou junto do leão e picou-o com os seus dentes venenosos, matando-o sem lhe dar tempo sequer de acordar.

— Já vão dois! — pensou a hiena esfregando as patas de contente e rindo da maneira que lhe é

característica. Dali a pouco, estava junto de Ali, abanando-o.

— Acorda, Ali. Sabes o que eu acabo de presenciar? A serpente assassinou o leão e o chacal. Não tarda que faça o mesmo conosco, para ficar com o camelo sozinha…

— Traidora! Quem nos manda confiar nela?… Ali acercou-se do réptil com uma grande pedra e,

sem fazer ruído, esmagou-lhe a cabeça. — Três! — rejubilou a hiena. Quando Ali voltou a

pegar no sono, a matreira besuntou-lhe as mãos com sangue dos animais mortos e correu em seguida a acordar Mustafá

— Acorda, Mustafá! Olha que Ali já matou a serpente, o chacal e o leão. Receio que queira fazer-nos o mesmo a nós, para ficar sozinho com o camelo.

— Falas a sério? — admirou-se Mustafá. — Olha para ele e verás. Então Mustafá atirou-se furiosamente ao

companheiro, gritando: — Desgraçado! Estás a fingir que dormes? É verdade

que mataste o leão, o chacal e a serpente? Desculpa-te, se puderes, caso contrário, pagarás com a vida o teu ardil!

Acordando estremunhado, Ali só dizia palavras sem sentido, como se na verdade tivesse sido apanhado em flagrante.

Mustafá erguia já o punhal e preparava-se para fazer justiça com as próprias mãos, quando se ouviu uma voz:

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— Alto lá! Não é ele o assassino! Era o camelo que, amarrado à sua palmeira, tinha

presenciado tudo desde o princípio e explicou tintim por tintim como as coisas se tinham passado.

Mas antes que o camelo acabasse de falar, já a hiena tinha dito de si para si: “Pernas para que vos quero”.

Os dois homens agradeceram muito ao camelo: um por lhe ter salvo a vida, o outro por lhe ter evitado cometer um assassínio. E acabados os agradecimentos desamarraram a sua “refeição”.

— Estás livre. Podes ir à tua vida. Nós, porém, temos de ficar sem comer até ao próximo oásis.

— Não se preocupem — tranquilizou-os o camelo. — Eu ajudo-vos a encontrar comida.

Quando amanheceu, conduziu-os até ao castelo dos gênios do oásis.

— Aqui encontrarão tudo quanto quiserem, comam e bebam, mas saiam antes do anoitecer, não vão os gênios surpreender-vos quando chegarem.

Ali e Mustafá assim fizeram e, a meio da tarde, saíram do castelo, bem comidos e bebidos…

A hiena, que os tinha seguido de longe, mal os viu sair, resolveu entrar. Porém não foi capaz de refrear a gula e comeu, comeu… sem dar pelas horas.

À noite, os gênios regressaram ao castelo e, vendo-a a empanturrar-se com aquilo que lhes pertencia, mataram-na, sem lhe desejarem sequer “bom apetite”.

Desde esse dia que se diz:

Muitas vezes procuramos a verdade pelo lado de cá e ela está do lado de lá.

Fonte: Fábulas africanas. Lisboa, Editorial Além-mar, 1991

Teatro de Ontem, de Hoje, de Sempre

Bella Ciao

Dirigida pelo argentino Néstor Monasterio, radicado em Porto Alegre, Bella Ciao é uma das mais premiadas montagens do teatro gaúcho. O texto do dramaturgo paulista Luís Alberto de Abreu mostra a saga de uma família de imigrantes italianos, no decorrer de quase

40 anos, desde sua chegada ao Brasil até a luta pela democratização do país no período do Estado Novo.

A história, centrada na figura do patriarca Giovanni Baracheta, interpretado por Carlos Cunha Filho, além de traçar um painel político e comportamental do

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período, mostra os dilemas da família, com base no conflito de opiniões entre o pai anarquista, o filho que adere ao comunismo e a jovem que renega o namorado por causa de sua militância revolucionária.

Monasterio, responsável também pela elogiada montagem gaúcha de Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho, em 1984, explica em entrevista, a escolha do texto: “Bella Ciao juntava tudo o que eu penso sobre teatro. É um texto generoso, saboroso, brilhante. Tem um motivo muito forte de estar ali. Vai recuperando a dignidade do ser humano. Vai dizendo o que é um ser humano que luta, que não desiste nunca. Que tem uma ideia”.

O elenco ensaia durante um ano e estreia no Centro de Cultura de Novo Hamburgo, em abril de 1989. A seguir faz uma temporada na região da Serra Gaúcha, fortemente marcada pela colonização italiana. Só então inicia sua temporada no Teatro Renascença, em Porto Alegre.

Apesar de cobrirem um longo período de tempo, as sessenta cenas que compõem o espetáculo se sucedem sem o recurso do black out. Um grande painel serve de cenário único em que os ambientes e a dramaticidade das cenas são sublinhados pelo jogo de luzes, especialmente em lilás e vermelho. Nas cenas iniciais, em que a família Baracheta deixa sua terra rumo ao Brasil, os atores falam em italiano. “No entanto, as dificuldades de compreensão idiomática são compensadas pela boa performance dos atores que, com gestos e expressões peculiares ao comportamento

latino, estabelecem uma eficiente comunicação com a plateia. Além disso, à medida que transcorre a ação, os personagens vão mesclando os idiomas, permitindo maior clareza no entendimento do texto”, observa a crítica Maria Luiza Khaled, no Jornal do Comércio.

O espetáculo cai no gosto do público e da crítica, a ponto de permanecer dois anos em cartaz e viajar por outros estados e pelo interior do Rio Grande do Sul. Para o crítico Cláudio Heemann, “com o pitoresco linguajar italiano e as explosões temperamentais de latinidade, o texto encontra humor para desenhar seus personagens. Produz efeito do realismo e humanidade sem deixar esquecido o painel e retrato coletivo”. O crítico Décio Presser destaca que “o quarteto central, responsável pelos elementos da família, coloca uma sinceridade nos personagens que torna-se difícil ao espectador não ser envolvido pelas emoções”.

Bella Ciao recebe o Prêmio Açorianos de melhor espetáculo, diretor, trilha sonora original, para Néstor Monasterio e Paulo Campos; atriz, para Lurdes Eloy; atriz coadjuvante, para Heloísa Palaoro; e ator coadjuvante, para Fernando Waschburger. Ganha, ainda, o Prêmio Quero-Quero de melhor espetáculo e direção; ator, para Carlos Cunha Filho; e atriz, para Lurdes Eloy. A peça é premiada também no Festival de São José do Rio Preto, São Paulo, nas categorias de melhor espetáculo, direção, ator, atriz coadjuvante e ator coadjuvante.

Fonte:Enciclopédia Itaú Cultural

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Carina Isabel M. Cardoso

Luzia

Por aqueles corredores com pisos soltos, paredes

encardidas e descascadas, Luzia transitava todos os dias, vendo sua vida passar sem perceber o dia lá fora.

Mulher magra e muito alva, com aparência cansada e desleixada de quem tem pouco tempo para si, mas ainda mostrando-se bela, apenas descuidada, ela segue mais uma vez para o quarto da mãe doente e moribunda. Luzia cuida da mãe com todo o zelo que uma filha pode dispor à sua progenitora, apesar de seus olhos não esconderem o desprezo por aquela mulher que apesar de velha e doente ainda consegue ser tão cruel, com uma língua tão ferina.

Apesar de religiosa, D. Matilde não tinha nem de longe um coração puro, tinha um olhar que só passava frustração, mágoa e inveja a quem o fitasse. Nada de bom se aprendia com aqueles olhos negros e fundos, mesmo sendo tão experientes e sábios.

D. Matilde sempre foi uma mulher ligada à igreja, querida pelos que compartilhavam sua fé, tão caridosa, tão solicita aos necessitados que a comunidade ajudava, mas, dentro de casa sempre levou a família com mãos de ferro, nunca dando a menor mostra de carinho e afeição pela única filha e nem ao marido que

sempre fez de tudo para agradá-la, bancando todos os seus caprichos, até mesmo concordando que Luzia, por ser a única filha, não deveria se casar enquanto os dois ainda estivessem vivos, que ela deveria era cuidar dos pais e da casa, pois eles não tinham mais ninguém por eles, e mesmo que ela se casasse e morasse perto não seria suficiente, teria que morar sempre com eles, até o fim.

Quando o pai faleceu, Luzia perdeu sua única alegria de estar ali, pois o pai era um homem muito gentil, e apesar de fraco, nunca retrucou uma palavra maldosa de sua esposa, mesmo assim sua relação com ele era muito boa, ela procurou aceitar que o pai agia dessa maneira para manter as coisas em harmonia.

Agora que estavam sós, apenas as duas vivendo na casa, as coisas eram levadas na base da diplomacia entre elas, e ao entrar naquele quarto escuro, fétido e triste ela se preparava para ouvir qualquer coisa de sua mãe, e quando entrava aquela troca de olhares, o ódio com que aqueles olhos negros e profundos das duas se encontravam, chegava a doer na alma. E, D. Matilde não aceitava o fato de estar tão doente, sempre colocando a culpa na filha, pois se não a tivesse parido

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com certeza sua saúde estaria muito melhor, não teria perdido tanto tempo cuidando de uma criança e sim de si mesma, e não precisaria de ajuda de ninguém. Era inaceitável para ela ter que ser guiada até o banheiro, tomar banho na cama, mas Luzia mesmo com tantos motivos para odiar sua mãe, não conseguia apenas se sentia muito pequena diante daquela mulher na cama, emagrecida e doente. Queria apenas um pouco de respeito, afinal ela se abandonou completamente para estar ali, não amou, não estudou, não viveu nada além daqueles corredores com pisos soltos e paredes encardidas, ouvindo as amigas de sua mãe dizer o quanto ela era boa e generosa, o quanto ela deveria ser grata por ter nascido em um lar tão abençoado, e aquelas palavras acabavam por diminuir ainda mais sua esperança de respeito, apesar de seu tamanho, ela se imaginava quase invisível aos olhos negros, profundos e cheios de rancor com os quais sua mãe a fitava entrando no quarto trazendo sua comida, esperando até que ela desse a última garfada e para limpar a boca da mãe.

Rezava todas as noites para que aquela fosse a última de sua sina, já não aguenta mais, não o trabalho a ser feito, mas sim o desprezo, mas então outro dia recomeçava e com ele a sina que parecia não ter fim, e a cada dia que passava ficava mais difícil encarar aqueles olhos, aquele rancor. E então, aquela

menina que tanto lutou para não ter aqueles olhos, os viu no espelho quando refletia a sua imagem e não a dela; viu a mesma amargura, o mesmo mal, sem saber de onde veio o dela; sabia exatamente o quando e o porquê seus olhos se tornaram brilhantes como duas pedras de ônix; mas o brilho não era bom, não era agradável, e então ela soube que era hora de acabar com sua sina, foi até o seu algoz e com toda a coragem que o mundo poderia lhe dar naquele momento, em uma última tentativa de viver bem, abraçou sua mãe, disse que a amava e que iram ter novas regras em casa a partir daquele momento; não suportaria mais aquelas palavras cruéis, os olhares de desdém, o rancor e a culpa, tomaria as rédeas da situação e que a mãe pensasse o que quisesse daquilo. Foi então que viu sua mãe chorar pela primeira vez em sua vida de quarenta e dois anos, um choro verdadeiro e sentido, vindo da alma, como se descarregasse o peso acumulado a vida inteira, mas nunca explicou o porquê daquele choro tão dolorido, mas a partir daí as coisas ficaram diferentes, Luzia conheceu o amor e casou-se, teve filhos e ninguém mais soube de D. Matilde, o que houve com ela só a filha sabe, e o motivo daquele choro também não foi revelado…

Luzia nunca mais pisou naquela casa de pisos soltos e paredes encardidas…

Fonte: http://sorocult.com/palavrademulher/escritora.php?codigo=53

Carina Isabel M. Cardoso nasceu em dezembro de 1974 em Votorantim-SP. Em Sorocaba se formou no curso “Tecnologia de Alimentos, em 1993, sem, no entanto, nunca ter trabalhado na área. Casou-se em 1996 e desde então vive em Sorocaba. Cursou a faculdade de Letras. Por apreciar muito, pesquisa e estuda acerca da cultura egípcia reunindo com carinho diversos materiais sobre este tema. É colunista nos sites: www.clicpalavrademulher.com.br e www.sorocult.com .

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Clevane Pessoa

Parábola em Versos: A Flor Dourada e o Pássaro Verde

Passava um pássaro verdíssimo por um vergel variado ,

quando viu lá em baixo, o glitter de uma flor aberta, cor de ouro fosco, calma , a aromatizar seu entorno.

Chamou-a. Perguntou-lhe mil perguntas e ela as respondeu. Ela indagou daqueles voos, a ela desconhecidos e ele falou

de tudo que o preocupava, de seus sonhos, desejos , im/possibilidades.

De longe, dialogavam , ela fremia, a escutar encantada, a tatalar asas de ternuras, carente e cansado de voar sozinho.

Flor, abriu pétalas e recebeu eflúvios, dialogaram solidões e ensaiaram alegrias, a esperança derramou todos os tons

de seus verdes mais belos, nas penas dele, nas sépalas e folhas dela. Por um tempinho, acreditaram ser possível semear felicidade perene, nem sequer pensaram que tudo não passava de um sentimento fugaz,

de cristal puríssimo, embora, mas que poderia quebrar-se …

Ouviu o canto da ave que prometia em breve, achegar-se para melhor sentir-lhe aroma e formas, e desejou-lhe felicidades

na jornada ensaiada e que ele esperava cumprir.

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As luas passavam, ciclicamente , pela flor saudosa, seu tempo se encurtava , mas ela olhava para o alto

crendo que o pássaro verde retornaria para os ósculos sonhados.

Até que um dia, insone, numa noite linda e fresca, relembrava as promessas trocadas , enganosas sem ser falsas.

Quando ouviu chamá-la a velha coruja guardiã dos corações feridos que lhe disse:-“ Valeu, enquanto durou , enquanto acreditaste…

Valeu porque tuas palavras foram bálsamo e o curaram… Agora, sê forte e ouve, acabo de saber por uma viajante mariposa ,

que teu amado platônico , viaja agora com uma bela pássara – e buscam o melhor espaço ,para fazer seu ninho…”

A doce flor estremeceu , magoada e triste, mas não surpresa:

“Eu já sabia “, murmurou à coruja sábia , que girando a cabeça para melhor olhá-la, retorquiu:-“Não, florzinha, não sabias, apenas adivinhavas que o amor precisa de zelo e de presença, que até pode sobreviver

à distância, mas quando já está argamassado num espaço de tempo ideal para ser forte e perene, quando houve um cotidiano a imprimir

rememórias e saudade de cousas vividas , experenciadas com o néctar da boa convivência. Acorda, vê outras plantas a teu redor, acorda para o real.”

A flor dourada entendeu a mensagem, mas a dor rasgou-a de angústia

e ela desprendeu-se das sépalas, caiu ao solo, e preparou-se para fertilizar a terra daquele jardim tão grande, e renascer um dia, sem nenhum pesar…

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A Escritora em Xeque

Clevane Pessoa

Entrevista concedida à Vânia Moreira para o Jornal/Ecos

Querida amiga Clevane, você nasceu no importante Estado do Rio Grande do Norte, em São José do Mipibu guarda alguma recordação da cidade em que nasceu e gostaria de falar um pouco do período em que viveu lá?

Na verdade, apenas nasci lá, porque meus avós ali estavam: mamãe, que se casara aos quinze anos, por ser a caçula e muito inexperiente, foi dar à luz perto dos pais. Ela e papai moravam em Natal. Mesmo depois de adulta, tendo morado em muitas cidades e Estados, nunca fui lá. Noutro dia, pela Internet, é que a “visitei”. Ainda bem pequena, além de Natal, morei em João Pessoa(PB), Japurá(fronteira com a Colômbia),Manaus(AM),Recife(PE) e por último, fomos para a Ilha de Fernando de Noronha, onde, aos cinco anos, fiz minha Primeira Comunhão, na Igrejinha dos Remédios. Da Ilha, lembro-me muito bem e foi dela que viemos para Minas gerais. Completei sete anos ao chegar em Juiz de Fora. Meus pais adoravam mudanças, escolhiam um lugar que os atraía e nos comunicavam. Nós, as crianças, aprendíamos geografia

e, naturalmente, um pouco de História, Ciência e Astronomia, ao vivo…Era muito divertido viajar tanto…

Em Belo Horizonte a bela capital mineira, com

foi sua chegada e os primeiros anos passados lá? Vim morar em Belo Horizonte quando casei-me pela

segunda vez, com o engenheiro Eduardo Lopes da Silva, em 1979. Aproveitava todo tempo livre para conhecer a cidade, mas estava no último ano de Psicologia, fazia estágios e trabalhava no INAMPS,era muito ocupada.Passei aqui três anos,e quando Gabriel, meu segundo filho completou três meses de vida, fomos para S. Luiz, a Ilha do Amor, terra de Gonçalves Dias,onde passamos seis anos.De lá para S.Paulo e depois para a capital do Pará, Belém.Somente retornei a Belo Horizonte em 1990,parando, por fim , com tantas andanças…Somente agora é que realmente estou conhecendo a cidade…Mas adoro viajar, o costume ficou enraizado em mim.

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Gostaria muito que falasse um pouco de sua família e da influência dela em suas decisões futuras?

Minha família era maravilhosa, éramos alegres e talentosos para isto ou aquilo…Tive pais incríveis, avançados para a época, por exemplo, quando a inglesa Mary Quant lançou a minissaia minhas colegas eram recriminadas pela família se a usavam e meu pai mandava encurtar mais,” pois o que é bonito, deve-se mostrar”. Aprendemos, minha mana Cleone e eu, que a moral não está no modo de vestir apenas… Dançávamos muito-meu pai uma vez foi ao Rio de janeiro aprendeu Twist e fazíamos bailinhos no qual ele e mamãe ensinavam a nova moda às minhas colegas e rapazinhos…

Ele comprava-me dezenas de livros, incentivava a leitura mesmo de revistas em quadrinhos, quando a maioria dos adultos decretava que “gibi” fazia mal… Também adoravam Cinema – e os filmes impróprios para menores tinham o enredo contado por mamãe que apenas atenuava as cenas mais fortes. Aos domingos, nos levavam às matinèe, no Cine central em Juiz de Fora…

Ela era grande missivista e eu naturalmente, a imitava, correspondia-me com os parentes e amigos distantes, o que me tornou sem preguiça para escrever, desde pequena, longas redações. Papai ensinou-me ortografia. Creio que minha mãe preparou-me, oralmente, para ser escritora. Contava “histórias de Trancoso”, cantava todas as músicas que aprendia, sapateava, ensinou-me a declamar. Sou a mais velha

de seis: Cleone, Luiz Máximo, Cleber Franck, Nildo Roberto e Lourival Jr. Eles gostavam de ter crianças pequenas em casa e quando um estava grandinho, papai convidava mamãe a arranjar outro nenê, o que ela aceitava alegremente.O filho caçula, Juninho, por ser especial (Síndrome de Down), precisou de mais atenção então as gravidezes acabaram. Também criaram filhas adotivas.

Meu avô materno, paraibano, era jornalista e poeta. Ensinou-me a versificar. Eu sempre me senti a neta predileta… Mais tarde eu própria, nos Anos de Chumbo, trilhei o jornalismo. A primeira poesia brotou-me aos dez anos, em plena aula…O avô paterno era maestro e adoro música, embora nada toque. Qual a tia Terezinha, irmã de papai, pinto a óleo. Qual o tio Franck, irmão de mamãe, desenho, embora não tinha convivido tanto com eles, por causa das viagens. Somente voltei a natal, onde a minoria reside, já adulta.

Escolheu a psicologia para atuar por mero acaso,

por algum fato determinante ou era algo que estava já dentro de você?

Sempre fui escolhida como confidente de pessoas mais velhas às de minha faixa etária. Mamãe tinha esse dom também. Ainda por cima, ela fez-me sua confidente, desde criança…Eu adorava exercer todas as modalidades de jornalismo, mas quando separei-me de meu primeiro marido, o jornalista Messias da Rocha, pai de Cleanton Alessandro, meu primogênito,fiz cursinho e fui da segunda turma de

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psicologia do CES (Centro de Ensino Superior, em Juiz de Fora),pois o nascimento de Juninho motivou-me mais a fazer Psicologia e ajudá-lo.Sempre fui fascinada pelo comportamento humano, meus personagens não são criações aleatórias e sim explicadas em vários ângulos.Sempre li muito essa matéria, muito antes de cursar a faculdade.O último ano, fiz em Belo Horizonte,na FUMEC, pois me uni ao Eduardo no último semestre do curso.

Quais foram os grandes mestres que lhe

fascinaram ? Jesus Cristo (eu achava que era a queridinha do

filho de Deus), meu pai, Sidarta (“Buda”). Depois Ghandi, a garça, Golda Meir, Martin Luther King, Mandela, meus avós…

Tem orgulho consciente e justo da vida que está

trilhando? Fico bastante contente com minhas vitórias,

respeito as minhas lutas como um desafio a crescer ainda mais. Não sou vaidosa, quanto a premiações, por exemplo. Acho um golpe de sorte que um determinado texto, preenchendo os requisitos básicos de originalidade, correção ortográfica, tenham um estilo que vá agradar justamente àquele tal corpo de jurados entre tantos outros concorrentes. O contrário pode ocorrer: um escrito perfeito, por ser diferente, desagradar…

Quando ganhei o prêmio ex-aequo de Primeiro lugar de conto, nos XXIII Jogos Florais do Algarve, em Portugal, por exemplo, eu ficava sorrindo sozinha: “Primeiro Lugar”, repetia, contentíssima. Nem pude ir receber o prêmio, porque não consegui um patrocínio. Na premiação constava uma excursão à zona medieval de Portugal e três dias em Hotel. Para a viagem ficar menos cara, era preciso ficar pelo menos uma semana, então eu teria de arcar com os demais dias de hospedagem. Não houve ONG nem órgão governamental que quisesse ajudar. Disseram, de Brasília, que eu teria de ter entrado pelo menos com quarenta e cinco dias antes, com o pedido, da data da viagem. Mas tentei, até esgotar recursos. Recebi, do Governo do Faro, um prato de bronze lindíssimo, onde atrás agradeciam, à contista brasileira, “a presença entre nós”. Devem ter gravado julgando que iria .Com o prato, veio uma grande e pesada Medalha com o rosto de Samora Barros, o poeta homenageado e a coletânea. Todos os prêmios e troféus, valorizo, amo…

Também tenho a maior alegria de ter trabalhado com população carente, em especial com adolescentes e idosos, famílias, mulheres. Quando fui homenageada na Assembléia Legislativa de Belo Horizonte, no Dia da Mulher, no ano de 2001, já aposentada ,recebi, emocionada, uma placa, mas o que fez-me chorar foi um adulto jovem, de cuja adolescência eu cuidara no Hospital Júlia Kubitscheck, onde criei e coordenei a casa da Criança e do Adolescente, dizer-me, após a cerimônia: “Clevane nenhum de nós que passou por você, deu prá coisa ruim”. Na realidade, são todos

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jovens de bem, líderes e empoderados, em franco progresso ou pobreza digna…

A Revolução de 64 marcou muito sua

juventude? Pode relatar algum fato mais doloroso nessa época de incertezas?

Vivi muitas dolorosas experiências, por exemplo, com a prisão de colegas. Um deles, o astrônomo Roberto Guedes era noivo da atriz Marta Sirimarco, que escrevia a coluna de Teatro e foi um horror sabê-lo desaparecido, acompanhar a luta da jovem para conseguir-lhe uma fuga. Muitos anos depois, abri um grande Jornal e lá estava ele, falando de seus queridos astros e estrelas…Muitas pessoas vinham a mim contar torturas, porque papai era militar, tentando ajuda, no entanto ele não compactuou com o regime. Era sargento telegrafista, ficando no seu gabinete, mas quando foi promovido a tenente e teve de sair do casulo, pediu a reforma, mesmo tendo curso até major. Ele, que sempre foi muito bondoso com crianças e animais, adoeceu e teve de ser hospitalizado .Por questões de ética militar, jamais nos contou nada. Eu levava, sem problemas, para almoçar lá em casa, jovens que recolhia, às vezes sem lugar para ir. Um dos lugares onde se escondiam durante o dia, era a galeria de Arte Celina, mantida pela família Bracher, em homenagem à artista morta. Penso que os “milicos”, não se lembravam de procurar “subversivos” ali…Muitas vezes, como repórter, fui ameaçada, por exemplo, quando, num evento da Escola Federal de Engenharia, cheguei a um lançamento de livros do

Carlos Heitor Cony e do Poerner, com meu amigo Cláudio Augusto de Miranda Sá, fomos recebidos por metralhadoras na mão de jovens PM’s. Eu sempre mantinha, nesses momentos críticos, um aspecto de alienada e nos deixaram ir. Fomos…diretamente para o hotel onde estavam. Fizemos uma entrevista e tanto. Eu sempre publicava tudo. A “Gazeta Comercial”, onde escrevia, era a linotipos, então eu ia à gráfica e entregava as matérias diretamente a um linotipista, o Zequinha, de quem era comadre.

Quando Rubens Braga, Vinicius de Moraes e Fernando Sabino, bastante reprimidos no Rio, estiveram em Juiz de Fora, o diretor, temeroso das minhas clevanices, disse que não os entrevistasse. Eu queria, inclusive, fotos. Não iria perder a chance de estar com meus ídolos. Liguei então para a redação. Atendeu-me o “Seu” Théo Sobrinho, o dono do jornal. Eu falei: “Seu Theo, o Vinicius chegou”. Ele: “Quem o Ministro?” E eu”: Sim, o Ministro”. O fotógrafo chegou e eu conversei por muito tempo com o trio, ficando encantada porque o Vinicius me elogiou. galante, os longos cabelos, Braga a juventude e Sabino, a “inteligência”. O redator chefe, Sr. Paulo Lenz, irmão do diretor, vibrava com minha “coragem”, talvez a inconseqüência inocente da juventude…

Uma vez um advogado pediu-me, cheio de mistérios, que fosse visitar o irmão machucado, fazer-lhe companhia. O rapaz estava engessado, muito ferido, cheio de alucinações. Haviam conseguido retirá-lo, após tortura. Passei uma tarde dando uma de psicóloga, muito antes de entrar nessa faculdade,

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horrorizada, penalizada… Jamais contei a meus pais essa visita, para não preocupá-los. O pai de uma amiga também desapareceu e quando a mãe dela soube das circunstâncias de sua tortura e morte, urrava, dizendo que o marido era um bom homem e que aquilo era “um insulto de Deus”, uma injustiça…Eu, pessoalmente, jamais fui perseguida abertamente, embora sempre tivesse alguém a vigiar-me, em várias circunstâncias.

Como surgiu a literatura de forma definitiva em

sua vida? Penso que já na escola, queria ser escritora, minhas

redações iam “para livros de ouro”, eram afixadas no pátio, e, em Itajubá, sul de Minas, onde morei dos doze aos dezesseis anos, fui escolhida para redatora -chefe de um jornal da Escola Sagrado Coração de Jesus,( Irmãs da Congregação da Previdência) chamado Voz das Mil Também tive uma crítica literária publicada na revista da congregação. Como uma premonição, chamei-a…”Sapatilhas e Botinas”.

Ao retornar a Juiz de Fora, enviei textos a um concurso de crônicas. Passei dias me torturando, achando que nem os leriam porque os temas eram Operária, Satélite e um outro. Para o primeiro, escrevi sobre o trabalho materno, a mãe, “uma operária completa”, em vez de falar das mulheres que trabalhavam nas muitas fábricas existentes na cidade. Sobre “satélite”, em vez de falar do espacial, falei de pessoas “puxaquistas militantes”, que gravitam na órbita de alguém para favorecer-se. E ganhei o

primeiro lugar, troféu Domervilly Nóbrega, com Operária….

O radialista, mais tarde professor de jornalismo, José Carlos de Lery Guimarães, clamava pelo programa:” senhor Clevane, por favor, apareça, comunique-se, o segundo e o terceiro lugar já apareceram Precisamos marcar a entrega de prêmios”. Cleonice Rainho, se não me engano e Marilda Ladeira, foram classificadas, eram mulheres feitas, escritoras já conhecidas, o que me constrangia. A partir daí, minha carreira de escritora ficou definida Mais tarde, estudei, no Vice- Consulado de Portugal, Literatura Portuguesa, com Cleonice Rainho e lhe contei isso. Ela achou muita graça…

Um dia, reuni minhas crônicas e levei às redações dos jornais da cidade. Fui aprovada, escolhi a Gazeta Comercial,, onde ganharia menos, mas poderia fazer “de um tudo”. E adorei.

Seu momento de criação vem de algum

acontecimento específico ou pode surgir repentinamente?

Às vezes, um personagem chega e se instala, pede-me que conte sua história, insistentemente, fico inquieta enquanto não sento e o imagino, para descrever. Noutras, uma história “lateja” até que a desenvolvo. Não raro, o protagonista muda tudo que eu tinha planejado. Muito observadora, costumo ver acontecências e depois as reconto, com fantasia e criatividade. Não há nenhum método, mas escrever é

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sempre um prazer, nenhum sofrimento. Se pudesse, escrevia sem parar. Poesias, é só apaixonar-me por uma palavra, que elas se desenrolam da meada poética. É só experenciar uma emoção ou a de outrem, idem…Trovas são mais elaborada, sextilhas e sonetos, idem. Mas transito livremente da poesia concreta ou processo, para os versos brancos, a prosa poética. Gosto tanto de haikais, minipoema e agora Poetrix, como dos longos e das crônicas.

Na Gazeta Comercial tinha, por exemplo, uma coluna diária, chamada Clevane Comenta e, aos domingos, uma página inteira, de Artes e Letras, onde fazia crítica literária, colocava entrevistas, etc. E era só sobrar espaço, que eu escrevia uma poesia…Só ia lê-la no outro dia, quando saia a tiragem…Quando estou triste, escrevo mais.

Pode citar algum fato curioso envolvendo seu

primeiro nome? Sim, muitos, mas quando eu estava na Gazeta,

achavam que eu era homem, mesmo meu nome sendo feminino, a meu ver. À época da minissaia (nos Anos 60), escrevi um artigo na revista “O Lince” (hoje extinta), sobre a nova moda. O desembargador Vasques Filho, de Fortaleza, Ceará, mandou-me longa missiva, de” homem para homem”, comentando como se sentia vendo pernas de fora e desejava que “Oxalá as mulheres em breve, passassem a vestir-se como Evas, ou seja, com nada”, algo assim. Respondi num papel cor-de-rosa, dizendo-me uma senhorita. A partir daí, nos correspondemos, ele se lembrando da Juiz de

Fora que conhecera e mandando-me lindos cartões, pois era aquarelista.

Quando eu ia nascer, papai queria um Cleber. Não havia ultra-sonografia, então nasci e ele escreveu numa lista, nomes iniciados por “Cle”. mamãe e ele optaram por Clevane, por ser diferente. E tive de ser, à força dessa sinalização… Mamãe, que era parteira, muitas vezes dava seu nome, a pedido das parturientes, às meninas (Terezinha). Quando já havia uma, resolviam dar o meu ou o de minha irmã Cleone. Em sites de busca, já vi algumas “Clevane”, todas mais novas que eu. Jamais encontrei pessoalmente, alguma. Curiosamente, meu segundo marido, antes de mim, namorou uma Cleivan… Sou chamada de Cleovane, Cleivane, Clivane,etc. Na Internet há uma poeta Clivânia. Adoro meu nome, que me distingue e marca.

Você nasceu numa cidade pequena do Nordeste

e foi criada na tradicionalista Minas Gerais , pelo menos há alguns atrás, contrastando com a atuação de uma escritora, poeta e mulher. Sofreu algum tipo de preconceito?

Nunca experenciei preconceitos, sempre coloquei-me lado a lado com o homem, lutei e luto pelos direitos da Mulher, e a educação que recebi deu-me sempre muita segurança. tanto o Nordeste quanto Minas são tradicionalistas, Meus pais eram rigorosos apenas em certas questões: caráter, honestidade e… virgindade. Acho que fui a” penúltima donzela” até casar-me… O papel da escritora é usar a palavra como sua arma, na defesa do belo, do amor, sim, mas principalmente, em

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prol das militâncias sociais, das denúncias, dos exemplos edificantes…

Sua vida de psicóloga ajuda na composição de

seus “cantos”? Muitíssimo, porque a pessoa, com seus

significantes e significados, bem como a palavra, instrumento deles, me fascinam e oferecem suas múltiplas faces para a descrição verbo-poética.

O que o desenho, o colorido significou para você

e sei que seus leitores gostariam de saber desse seu lado de “artista plástica”, entre tantos talentos.

Sempre desenhei, mas foi aos doze anos que comecei a desenhar mulheres, porque uma prima o fazia e eu me encantei quase ludicamente, ao ver que podia representar a figura humana também além as coisas. Uma professora, no Ginásio Estadual de Juiz de fora, Nanci Ventura Campi, recomendou-me a Escola de Belas Artes Antonio Parreiras. Adorei e falei com papai , que imediatamente foi lá sondar o ambiente para sua princesinha, e colocou-me como aluna do presidente, Clério de Souza, que assinava como Pimpinela. Ele, rigoroso, ensinou-me a desenhar em perspectiva, sombra e luz, usando o fusain, o crayon, em papel cinza, que era usado nos açougues para embrulhar carne. Até hoje, o reflexo, a sombra e a luz me fascinam. Meu primeiro livro editado chama-se Sombras feitas de Luz(*).

O segundo, Asas de Água, possui quatro ilustrações minhas a bico-de-pena e a capa é de meu filho, Allez Pessoa, que herdou meu dom…Fiz, aos quinze anos, uma tela a óleo com professora, mas saí logo da sua escola,, por não suportar cópia, sem poder criar. Autodidata, a partir daí, fiz muitos quadros, que andam pelos brasis, porque viajei muito. Fiz muitos posterpoemas, para exposições. Meu estilo literário é sempre cheio de nuances, como se eu desenhasse escrevendo.

Tenho ilustrado livros, criei o Projeto Poesia no Pano, desenhando e escrevendo diretamente em páginas de tecido e montando os livros artesanalmente. Atualmente desenho uma capa e ilustro um livro de contos.

Quem é Clevane Pessoa, a psicóloga, a escritora,

a poeta? Conseguiria em algumas frases defini-la? *A psicóloga: uma pessoa que gosta de – e respeita

– pessoas, sem preconceitos, atenta na relação de ajuda, para que cresçam, se modifiquem para ser mais felizes. Luto pela justiça social, pelo empoderamento da mulher, dos direitos humanos, das minorias necessitadas. Gosto de criar dinâmicas de grupo, técnicas para manejo, fazer oficinas, dar palestras. A relação de ajuda faz-me muito feliz.

*A escritora: sempre a escrevinhar, com mais de dez livros para editar, sem nenhuma perspectiva de parar de criar, um dia…

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*A poeta: minha essência reside no castelo mágico da Poesia. Estou e sou perenemente em/cantada por essa feiticeira do Bem…

Jornal/Ecos- Agradecemos sua linda entrevista e a

oportunidade de ouvi-la e de saber um pouco mais de você.

Vânia: a oportunidade que você me deu, aqui no Jornal Ecos, não tem preço: adorei rememorar-me (reenamorar-me de mim ?). Quantas vezes, preocupadas com os outros esquecemos um pouco de nós mesmas? Agora, acabo de reenrolar o fio multicolorido de minha vida, novelo com cinqüenta e sete anos, renovando-o… Agradeço eu, a você e ao Jornal Ecos.

Fonte: http://www.gargantadaserpente.com/entrevista/clevane.shtml

Marcelo Spalding

História da leitura (IV): A ascensão do romance

Chegamos no alvorecer da era das máquinas,

símbolo central do período histórico que ficou conhecido como Revolução Industrial, fenômeno observado especialmente na Inglaterra no meio do século XVIII, com o surgimento da indústria têxtil (entre 1760-1780), a invenção da máquina à vapor (1769) e as primeira aplicações industriais com a produção de ferro de boa qualidade (1780).

No campo social, a Revolução Industrial aos poucos criou uma massa de trabalhadores, muitos dos quais foram alfabetizados e escolarizados para atender às demandas industriais. São esses trabalhadores,

transformados em leitores, que transformaram as narrativas em prosa em um gênero comum entre as camadas populares, e por isso mesmo até então considerado menor diante da tradição épica. Conta-nos Antonio Candido que, quando o rei da Inglaterra quis dar a Walter Scott (escritor inglês que viveu entre 1771 e 1832) o título de baronete, houve dificuldade em encontrar a justificativa oficial de praxe, pois o motivo era obviamente a glória trazida pelos seus romances, mas estes saíam anônimos e o autor não quis aparecer como tal na cédula honorífica, por se tratar de atividade incompatível com as de um gentleman bem-

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posto. A solução foi alegar a sua qualidade de poeta, aceita tradicionalmente, pelo establishment; deste modo preservou-se o segredo de Polichinelo, e o romancista mais estrepitosamente famoso do tempo foi agraciado a pretexto de poemas da mocidade, que havia assinado e cuja autoria não o vexava..

O século seguinte, o XIX, não por acaso seria o século do romance, um gênero próprio da era Industrial, da era Burguesa, em detrimento às epopeias classicistas. É o século, além de Walter Scott, de Charles Dickens, Jane Austen, Stendhal, Honoré de Balzac, Gustave Flaubert, Victor Hugo, Dostoievski, Lewis Carrol, Mark Twain, Julio Verne, nomes basilares no cânone ocidental, e Machado de Assis, José de Alencar, Aluísio Azevedo, Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, nomes fundamentais no cânone da língua portuguesa.

A produção do livro alcançou escala industrial, o público consumidor se fortaleceu, os gêneros populares, sobretudo o romance, se consolidaram e assim como havia ocorrido quando do surgimento dos tipos móveis, novamente a leitura passou a ser malvista tanto pelos detentores do poder quanto pelos pensadores, conforme sintetizou Schopenhauer em Parerga y paralipómena, de 1851:

(.) não se deve ler demais, para que o espírito não se acostume com a substituição e desaprenda a pensar, ou seja, para que ele não se acostume com trilhas já percorridas e para que o passo do pensamento alheio não provoque uma estranheza em relação ao nosso próprio modo de andar (.) Após essas considerações,

não nos espantará o fato de aquele que pensa por si mesmo e o filósofo livresco serem facilmente reconhecíveis já pela maneira como expõem suas ideias. O primeiro, pela marca da seriedade, do caráter direto e da originalidade, pela autenticidade de todos os seus pensamentos e expressões; o segundo, em comparação, pelo fato de que tudo nele é de segunda mão. Trata-se de conceitos emprestados, de toda uma tralha reunida, material gasto e surrado, como a reprodução de uma reprodução. (2005, p. 48-49).

No campo da ficção, Flaubert, no clássico Madame Bovary, de 1857, criou uma protagonista que, seguindo a tradição de Quixote, deixa-se seduzir por más leituras e condiciona sua vida real de acordo com os mundos inventados da ficção. Devido à temática do livro, Flaubert chegou a ser levado aos tribunais, acusado de ofensa à moral e à religião, num processo contra o autor e também contra Laurent Pichat, diretor da revista Revue de Paris, onde a história foi publicada pela primeira vez, em episódios e com alguns pequenos cortes.

O surgimento da imprensa comercial, diária e popular, aliás, ao lado da escolarização obrigatória e consequente alfabetização em massa, tem papel fundamental na popularização do livro nessa época. O The Times, de Londres, é de 1785; o The Guardian, um dos jornais mais vendidos no Reino Unido até hoje, surge em 1821; o New York Sun, vendido a um centavo de dólar, é de 1833; no Brasil, o Correio Braziliense é de 1808, mesmo ano do lançamento da Gazeta do Rio

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de Janeiro, publicação oficial editada pela imprensa régia.

Com os jornais de massa, surgia um novo gênero literário, o conto moderno, que passou a ser tão malvisto como fora o romance no século anterior. Edgar Allan Poe, nos "Excertos da Marginalia", faz associação direta entre o progresso realizado em alguns anos pela imprensa e a afirmação do conto, dizendo que tal progresso não é uma decadência do gosto ou das letras americanas, como queriam alguns críticos, e sim um sinal dos tempos: "o primeiro indício de uma era em que se irá caminhar para o que é breve, condensado, bem digerido, e se irá abandonar a bagagem volumosa; é o advento do jornalismo e a decadência da dissertação".

Do ponto de vista dos livros, esta mecanização não chegou, num primeiro momento, a mudar sua técnica de impressão, que seguia seu formato de códice há cerca de mil anos, mas acelerou sobremaneira a produção, multiplicou o número de exemplares e de escritores, forjou o estudo da literatura e entregou para

o século XX um objeto tradicional, capaz de suscitar medo e apreensão entre os poderosos, como bem representa Markus Zusak no romance A menina que roubava livros, sobre o período nazista, mas perfeitamente adaptado à lógica comercial e capitalista, com um sistema literário, como diria Candido, formado por autores, leitores e editores.

Neste século, o livro irá conviver com outras formas de arte e outros meios de comunicação de massa, como o cinema, o rádio e a televisão, que conquistam em pouco tempo enorme apelo popular e comercial. Nada, porém, muda a forma física do livro, até que com o surgimento da microinformática e da internet começam a surgir suportes digitais para a leitura em que não existe propriamente um objeto, e sim uma tela sobre a qual o texto eletrônico é lido, provocando uma revolução que Roger Chartier considera "com poucos precedentes tão violentos na longa história da cultura escrita".

continua…

Marcelo Spalding é formado em jornalismo e mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS, professor da Oficina de Criação Literária da Uniritter, editor do portal Artistas Gaúchos, autor dos livros 'As cinco pontas de uma estrela', 'Vencer em Ilhas Tortas', 'Crianças do Asfalto', 'A Cor do Outro' e 'Minicontos e Muito Menos', membro do grupo Casa Verde e colunista do Digestivo Cultural. Recebeu o Prêmio AGES Livro do Ano 2008 pelo livro 'Crianças do Asfalto', categoria Não-Ficção, e o Prêmio Açorianos de Literatura em 2008 pelo portal Artistas Gaúchos.

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Estante de Livros

Simões Lopes Neto Contos gauchescos

texto de André Gazola Hoje publicado normalmente unido à obra Lendas

do Sul, os contos gauchescos são narrativas regionais, pois estão profundamente ligadas ao registro direto dos tipos, da linguagem, das tradições e dos costumes típicos do espaço cultural gaúcho, constituindo um valioso documento sociológico.

Apesar disso, a obra de Simões Lopes Neto ultrapassa em muito o mero fato regional para alcançar uma qualidade literária inerente aos grandes clássicos: a universalidade. O escritor desenvolve um esforço de elaboração literária que vai além da mera observação da realidade para universalizar o seu texto, mediante o refinamento dos meios expressivos.

A linguagem coloquial, o aproveitamento do folclore, o processo de animalização da natureza, a humanização das personagens são recursos que identificam o estilo de Simões Lopes Neto e convergem para estabelecer a marca de identidade do seu mundo de ficção: a mescla entre o real e o fantástico.

Situado num período histórico em que a literatura brasileira se encontra a meio caminho entre a herança

naturalista do século XIX e as primeiras experiências modernistas, o escritor gaúcho prenuncia, assim, um dos traços mais importantes de nossa ficção contemporânea — a reunião da fotografia social com a invenção de um universo mítico. Isso abre um caminho inteiramente novo no panorama cultural gaúcho, sempre voltado para a valorização da cor local, e situa Contos Gauchescos, e Lendas do Sul como o antecedente direto da poesia de Augusto Meyer, do romance histórico de Érico Veríssimo, que aí buscaram elementos para a construção de suas respectivas obras, algumas décadas depois.

Bem assim, no que se refere à literatura nacional, estas narrativas ocupam uma posição privilegiada e pioneira, pois não só precederam em sua época o regionalismo de Afonso Arinos e Hugo de Carvalho Ramos, como fundaram uma tradição em cujo processo de desenvolvimento surgiria, já em nossos dias, o conto de João Guimarães Rosa.

Tal resultado explica a fortuna crítica que vem acompanhando a obra de Simões Lopes Neto desde o

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seu aparecimento e a sua revalorização na atualidade quando as literaturas da América Latina empreende a redescoberta de seu rico caudal mítico.

Algo que costuma afastar o leitor menos experiente ou o estudante que está preparando-se para o vestibular é a linguagem dos contos, que, por adentrar no universo gaúcho dos pampas e das tradições, acaba por praticamente fugir do nosso idioma para alcançar um vocabulário desconhecido até mesmo pela maioria dos gaúchos. Sempre sugiro aos meus alunos o volume da editora Globo, que traz um glossário que facilita em muito a leitura.

Resumo dos contos principais É essencial a leitura dos contos originais para que

você possa ter um entendimento profundo sobre o que representa a obra. Ainda assim, devido aos obstáculos que a linguagem nos impõe, torna-se interessante ler um resumo dos contos gauchescos para melhor entendimento de detalhes das histórias que possam ter passado desapercebidos. Aqui destaco os mais importantes e mais cobrados em provas.

Vale lembrar um dado muito importante: todos os contos são narrados por Blau Nunes, um personagem criado por Simões Lopes Neto e que conta as histórias que viveu ou ouviu ao longo de sua experiência nos pampas. Blau é um vaqueiro, pertence às classes não favorecidas e usa a linguagem típica do povo gaudério.

Trezentas Onças Essa é uma história vivida pelo próprio Blau Nunes.

Ele conta que certa vez estava a caminho de cumprir

uma tarefa delegada a ele por seu patrão: comprar uma tropa de gado com o dinheiro que ele lhe dera. Tratava-se de uma fortuna, as trezentas onças citadas no título do conto.

O fato é que no caminho ele resolveu tomar banho em um arroio (espécie de rio pequeno) e quando chegou ao local onde iria passar a noite percebeu que tinha perdido todo o dinheiro. Ele volta a todo o trote ao local onde tomara banho e no meio do caminho cruza com um grupo de tropeiros que ia em sentido contrário.

Chegando ao local, vê que o dinheiro não está lá. Pensa que nunca conseguiria pagar a dívida ao patrão, que poderia inclusive acusá-lo de ladrão. Em vista disso, resolve suicidar-se. No momento em que vai cometer o ato, sente seu cão lambendo seus dedos, o barulho do riacho, as estrelas no céu, o canto dos grilos e o relincho de seu cavalo. Essa simbiose com a natureza o faz desistir da ideia da morte e voltar à estância para passar a noite.

Chegando lá, surpreende-se ao ver as Trezentas Onças em cima da mesa, o grupo de tropeiros tomando mate e o questionando qual tinha sido o tamanho do susto.

O negro Bonifácio Nadico era apaixonado por Tudinha. Ela e a mãe

foram ver a carreira (nome para as corridas de cavalo) nas terras do Capitão Pereirinha.

Lá, o temido Negro Bonifácio, que também gostava de Tudinha, chegou à carreira acompanhado, mas logo

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dispensou a moça. Ele desafiou Tudinha para uma aposta: caso o Nadico ganhasse a corrida ele pagaria à moça uma libra em doces.

A aposta é ganha por tudinha, ou seja, o vencedor da corrida é Nadico, então Bonifácio foi lhe entregar os doces, mas Tudinha disse que ele deveria entregá-los a sua mãe. O Negro insistiu, então Nadico pegou os doces e jogou-os em Bonifácio. Nisso, começou a confusão entre Nadico, Bonifácio e os outros pretendentes de Tudinha, que também tinham contas a ajustar com o Negro.

Na luta sangrenta que se segue, Nadico teve a barriga aberta e logo morreu, agarrado por Tudinha.

A partir desse ponto, a narrativa atinge um ar típico de um desfecho das tragédias gregas clássicas: Fermina joga água fervendo no negro que, depois de urrar como um animal selvagem, trespassou-a com o facão. Ao mesmo tempo, um bolaço atirado por um homem (com uma arma do gaúcho chamada boleadeira) acertou a cabeça do negro, que caiu. Veja o simbolismo presente aqui: o negro estava sendo atacado por muitos, levara um tiro, facadas e uma panela de água fervente foi atirada nele, mas quem consegue derrubá-lo é, afinal das contas, um gaúcho com sua arma típica — é o gaúcho herói de Simões Lopes Neto.

Tudinha, que não chorava mais pelo Nadico morto e pela mãe Fermina, que estava morrendo, pulou com raiva sobre Bonifácio, pegou o facão e cortou os olhos dele (veja a referência à Édipo Rei).

Depois cravou o facão debaixo da bexiga (leia-se os órgãos sexuais): “várias vezes cravou o facão afiado como quem ataca uma cobra cruzeira, numa toca, como quem quer reduzir a restos uma prenda que foi querida e agora é odiada.”

Então surgiu um juiz de paz. Depois de todo o ocorrido Blau veio a saber que fora o Negro Bonifácio quem havia tirado a virgindade de Tudinha.

Blau termina o conto com a seguinte expressão: “– Ah! Mulheres!… Estancieiras ou peonas, é tudo a mesma cousa… tudo é bicho caborteiro…; a mais santinha tem mais malícia que um sorro velho…”

Outra questão interessante é prestar atenção aos

nomes dos personagens principais: Tudinha: é “tudo”, a mais bela e mais cobiçada

das moças; Nadico: é “nada”, só mais um dos pretendentes

que acaba morrendo nas mãos do inimigo; Bonifácio: “bom”+”e”+”fácil” — veja que pode ser

uma referência à questão da sexualidade ocorrida entre o negro e a moça.

No manantial Novamente Blau conta uma história que teria vivido

(ele faz parte do grupo de empregados que vai em direção à casa quando ocorrem as mortes). Ele diz que em certo lugar chamado de tapera do Mariano há um manantial, ou seja, um banhado, um pântano, e no meio dele uma roseira plantada por um defunto.

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Dizem que o local é mal-assombrado, pois pessoas que acamparam por essa região teriam visto duas almas: uma chorando e a outra praguejando loucamente.

O narrador, então, muda o tempo da narrativa para contar o que teria levado a essa situação.

Com Mariano morava a filha Maria Altina, duas velhas, a avó da menina e a tia-avó, e a negra Tanásia. Tudo em paz e harmonia.

Certa vez foram a um terço (ou seja, rezar um terço) na casa do brigadeiro Machado. Lá Maria Altina conheceu o furriel (posto militar entre cabo e sargento) André, e os dois se apaixonaram, tendo o rapaz lhe dado uma rosa vermelha que a moça plantou e que, para sua surpresa, cresceu e floresceu uma roseira muito bonita. O amor entre ambos estava selado.

Chicão, filho de Chico Triste, andava interessado em Maria Altina, que não se interessava por ele e, inclusive, tinha medo dele.

Certa vez, na casa de Chico Triste, houve um batizado. O pai e a tia-avó de Maria Altina foram ajudar. Foi então que Chicão aproveitou-se e foi à casa do Mariano, matou a avó e quis pegar à força Maria Altina. Esta, vendo a avó morta, pegou o cavalo e saiu correndo, entrando no manantial. Chicão atrás. Ela afunda no banhado e só fica a rosa do chapéu boiando.

Mãe Tanásia, que se escondera e vira tudo, vai à procura de Mariano. Nesse meio-tempo chegaram os campeiros para comer. Vendo a velha morta, uns ficaram para averiguar o ocorrido e outros foram avisar Mariano e procurar Maria Altina.

Mariano apavorou-se, pensando que a filha tinha fugido com o Chicão. Nisso chegou a mãe Tanásia para contar o sucedido. Todos vão ao manantial e encontram Chicão atolado, boiando. Mariano pega sua arma, atira e acerta Chicão no ombro. Quando está pronto para dar outro tiro, o padre que ali está coloca a cruz na frente da arma e pede que não atire mais. Mariano, louco de raiva, entra no lamaçal, luta com Chicão e os dois afundam e morrem.

A avó foi enterrada também na encosta do manantial. Uma cruz foi benzida e cravada no solo pelos quatro defuntos.

Como lembrança do trágico acontecimento, ficou, sobre o lodo, ali no manantial, uma roseira baguala, roseira que nasceu do talo da rosa do chapéu de Maria Altina que ficou boiando no lodaçal naquele dia.

O boi velho Em uma estância havia dois bois muito mansos que

levavam a família Silva para tomar banho de arroio, puxando a carroça. Os bois Dourado e Cabiúna eram adorados pelas crianças, sendo praticamente animais de estimação.

As crianças cresceram e os bois continuaram na fazenda com a mesma função. Certo dia Dourado amanheceu morto, pois tinha sido picado por uma cobra. Cabiúna ficou ao redor do amigo pastando, esperando que ele se levantasse.

A família, vendo o boi magro e velho, resolveu soltá-lo no mato, pois já não podia desempenhar suas funções. O tempo passou e Cabiúna retornou à

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fazenda, e a família, agora composta por aquelas crianças que tanto haviam brincado com os bois, resolveu matá-lo para vender o couro, a carne e tudo o mais que pudessem.

Há uma cena tocante no momento em que o peão afunda o facão no coração do boi: Cabiúna dirige-se à antiga carroça que puxava e coloca o pescoço nas cordas, como se quisesse levar uma vez mais todos para passear ou achasse que estava sendo punido por estar atrasado para a tarefa.

É um conto que mostra a animalização do homem devido à ganância, de um lado, e a humanização do animal, de outro.

Contrabandista

Novamente um conto com desfecho típico de uma tragédia de Sófocles.

O contrabandista é Jango Jorge, que está acostumado com a tarefa e tem muita experiência na área. Tem uma filha muito bonita que está prestes a se casar, então ele sai para comprar o vestido e os demais acessórios para o casamento — tudo será contrabandeado, evidentemente.

Todos estão aguardando ansiosos pela volta do pai, pois o casamento estava para começar, quando chegam os amigos de Jango com seu cadáver e uma caixa: o vestido branco, belíssimo, banhado em sangue, formando um contraste aterrorizante — o pai fora pego e recusara-se a soltar a caixa do vestido, sendo morto por isso.

André Augusto Gazola é formado em Letras, professor de Literatura e História da Arte, pós-graduando em Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa e Literatura e fundador do blog Lendo.org.É casado e mora em Bento Gonçalves-RS.

Simões Lopes Neto

Trezentas Onças

Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar.

Parece que foi ontem! ... Era fevereiro; eu vinha abombado da troteada.

— Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça

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no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda.

Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão limpa e tão fresca rolando sobre o pedregulho, tive ganas de me banhar; até para quebrar a lombeira... e fui-me à água que nem capincho!

Debaixo da barranca havia um fundão onde mergulhei umas quantas vezes; e sempre puxei umas braçadas, poucas, porque não tinha cancha para um bom nado.

E solito e no silêncio, tornei a vestir-me, encilhei o zaino e montei. Daquela vereda andei como três léguas, chegando à estância cedo ainda, obra assim de braça e meia de sol.

— Ah! . .. esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorro brasino, um cusco mui esperto e bom vigia. Era das crianças, mas às vezes dava-lhe para acompanhar-me, e depois de sair a porteira, nem por nada fazia cara-volta, a não ser comigo. E nas viagens dormia sempre ao meu lado, sobre a ponta da carona, na cabeceira dos arreios.

Por sinal que uma noite... Mas isso é outra cousa: vamos ao caso. Durante a troteada bem reparei que volta e meia o

cusco parava-se na estrada e latia e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me e latia de novo e troteava um pouco sobre o rastro; — parecia que o bichinho estava me chamando! ... Mas como eu ia, ele tornava a alcançar-me, para daí a pouco recomeçar.

— Pois, amigo! Não lhe conto nada! Quando botei o pé em terra na ramada da estância, ao tempo que dava as — boas tardes! — ao dono da casa, agüentei um tirão seco no coração... não senti na cintura o peso da guaiaca!

Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento de gados que ia levantar.

E logo passou-me pelos olhos um clarão de cegar, depois uns coriscos tirante a roxo... depois tudo me ficou cinzento, para escuro...

Eu era mui pobre — e ainda hoje, é como vancê sabe... —; estava começando a vida, e o dinheiro era do meu patrão, um charqueador, sujeito de contas mui limpas e brabo como uma manga de pedras...

Assim, de meio assombrado me fui repondo quando ouvi que indagavam:

— Então patrício? Está doente? — Obrigado! Não senhor, respondi, não é doença; é

que sucedeu-me uma desgraça: perdi uma dinheirama do meu patrão...

— A la fresca!... — É verdade... antes morresse, que isto! Que vai ele

pensar agora de mim!... — É uma dos diabos, é... mas; não se acoquine,

homem! Nisto o cusco brasino deu uns pulos ao focinho do

cavalo, como querendo lambê-lo, e logo correu para a estrada, aos latidos. E olhava-me, e vinha e ia, e tornava a latir...

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Ah!... E num repente lembrei-me bem de tudo. Parecia que estava vendo o lugar da sesteada, o banho, a arrumação das roupas nuns galhos de sarandi, e, em cima de uma pedra, a guaiaca e por cima dela o cinto das armas, e até uma ponta de cigarro de que tirei uma última tragada, antes de entrar na água, e que deixei espetada num espinho, ainda fumegando, soltando uma fitinha de fumaça azul, que subia, fininha e direita, no ar sem vento...; tudo, vi tudo.

Estava lá, na beirada do passo, a guaiaca. E o remédio era um só: tocar a meia rédea, antes que outros andantes passassem.

Num vu estava a cavalo; e mal isto, o cachorrito pegou a retouçar, numa alegria, ganindo — Deus me perdoe! — que até parecia fala!

E dei de rédea, dobrando o cotovelo do cercado. Ali logo frenteei com uma comitiva de tropeiros,

com grande cavalhada por diante, e que por certo vinha tomar pouso na estância. Na cruzada nos tocamos todos na aba do sombreiro; uns quantos vinham de balandrau enfiado. Sempre me deu uma coraçonada para fazer umas perguntas... mas engoli a língua.

Amaguei o corpo e, penicando de esporas, toquei a galope largo.

O cachorrinho ia ganiçando, ao lado, na sombra do cavalo, já mui comprida.

A estrada estendia-se deserta; à esquerda, os campos desdobravamse a perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente,

manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da noite; à direita, o sol; muito baixo, vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas.

Nos atoleiros, secos, nem um quero-quero: uma que outra perdiz, sorrateira, piava de manso por entre os pastos maduros; e longe, entre o resto da luz que fugia de um lado e a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a brancura de um joão-grande, voando, sereno, quase sem mover as asas, como uma despedida triste, em que a gente também não sacode os braços...

Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande, em tudo.

O zaino era um pingaço de lei; e o cachorrinho, agora sossegado, meio de banda, de língua de fora e de rabo em pé, troteava miúdo e ligeiro dentro da polvadeira rasteira que as patas do flete levantavam.

E entrou o sol; ficou nas alturas um clarão afogueado, como de incêndio num pajonal; depois, o lusco-fusco; depois, cerrou a noite escura; depois, no céu, só estrelas... só estrelas...

O zaino atirava o freio e gemia no compasso do galope, comendo caminho. Bem por cima da minha cabeça as Três-Marias, tão bonitas, tão vivas, tão alinhadas, pareciam me acompanhar... lembrei-me dos meus filhinhos, que as estavam vendo, talvez; lembrei-me da minha mãe, do meu pai, que também as viram, quando eram crianças e que já as conheceram pelo seu nome de Marias, as Três-Marias. Amigo! Vancê é moço,

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passa a sua vida rindo...; Deus o conserve!... sem saber nunca como é pesada a tristeza dos campos quando o coração pena!...

— Há que tempos eu não chorava!... Pois me vieram lágrimas..., devagarinho, como gateando, subiram... tremiam sobre as pestanas, luziam um tempinho... e ainda quentes, no arranco do galope lá caíam elas na polvadeira da estrada, como um pingo d'água perdido, que nem mosca nem formiga daria com ele! ...

Por entre as minhas lágrimas, como um sol cortando um chuvisqueiro, passou-me na lembrança a toada dum verso lá dos meus pagos:

Quem canta refresca a alma, Cantar adoça o sofrer; Quem canta zomba da morte: Cantar ajuda a viver! ... Mas que cantar podia eu! ... O zaino respirou forte e sentou e sentou, trocando a

orelha, farejando no escuro: o bagual tinha reconhecido o lugar, estava no passo.

Senti o cachorrinho respirando, como assoleado. Apeei-me.

Não bulia uma folha; o silêncio, nas sombras do arvoredo, metia respeito... que medo não, que não entra em peito de gaúcho!

Embaixo, o rumor da água pipocando sobre o pedregulho; vagalumes retouçando no escuro. Desci, dei com o lugar onde havia estado; tenteei os galhos do sarandi; achei a pedra onde tinha posto a guaiaca e as

armas; corri as mãos por todos os lados, mais pra lá, mais pra cá...; nada! nada!...

Então, senti frio dentro da alma... o meu patrão ia dizer que eu o havia roubado!... roubado!... Pois então eu ia lá perder as onças!... Qual! Ladrão, ladrão, é que era! ...

E logo uma tenção ruim entrou-me nos miolos: eu devia matar-me, para não sofrer a vergonha daquela suposição. É; era o que eu devia fazer: matar-me... e já, aqui mesmo!

Tirei a pistola do cinto; amartilhei o gatilho... benzi-me, e encostei no ouvido o cano, grosso e frio, carregado de bala. ..

— Ah! patrício! Deus existe! ... No refilão daquele tormento, olhei para diante e vi...

as Três-Marias luzindo na água... o cusco encarapitado na pedra, ao meu lado, estava me lambendo a mão... e logo, logo, o zaino relinchou lá em cima, na barranca do riacho, ao mesmíssimo tempo que a cantoria alegre de um grilo retinia ali perto, num oco de pau!... — Patrício! não me avexo duma heresia; mas era Deus que estava no luzimento daquelas estrelas, era Ele que mandava aqueles bichos brutos arredarem de mim a má tenção...

O cachorrinho tão fiel lembrou-me a amizade da minha gente; o meu cavalo lembrou-me a liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador trouxe a esperança.. .

Eh-pucha! patrício, eu sou mui rude... a gente vê caras, não vê corações...; pois o meu, dentro do peito, naquela hora, estava como um espinilho ao sol, num

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descampado, no pino do meio-dia: era luz de Deus por todos os lados!...

E já todo no meu sossego de homem, meti a pistola no cinto. Fechei um baio, bati o isqueiro e comecei a pitar.

E fui pensando. Tinha, por minha culpa, exclusivamente por minha culpa, tinha perdido as trezentas onças, uma fortuna para mim. Não sabia como explicar o sucedido, comigo, acostumado a bem cuidar das cousas. Agora... era vender o campito, a ponta de gado manso — tirando umas leiteiras para as crianças e a junta dos jaguanés lavradores — vender a tropilha dos colorados... e pronto! Isso havia de chegar, folgado; e caso mermasse a conta... enfim, havia de se ver o jeito a dar... Porém matar-se um homem, assim no mais... e chefe de família... isso, não!

E despacito vim subindo a barranca; assim que me sentiu, o zaino escarceou, mastigando o freio.

Desmaneei-o, apresilhei o cabresto; o pingo agarrou a volta e eu montei, aliviado.

O cusco escaramuçou, contente; a trote e galope voltei para a estância.

Ao dobrar a esquina do cercado enxerguei luz na casa; a cachorrada saiu logo, acuando. O zaino relinchou alegremente, sentindo os companheiros; do potreiro outros relinchos vieram.

Apeei-me no galpão, arrumei as garras e soltei o pingo, que se rebolcou, com ganas.

Então fui para dentro: na porta dei o — Louvado seja Jesu-Cristo; boa-noite! — e entrei, e comigo, rente, o cusco. Na sala do estancieiro havia uns quantos paisanos; era a comitiva que chegava quando eu saía; corria o amargo.

Em cima da mesa a chaleira, e ao lado dela, enroscada, como uma jararaca na ressolana, estava a minha guaiaca, barriguda, por certo com as trezentas onças dentro.

— Louvado seja Jesu-Cristo, patrício! Boa-noite! Entonces, que tal le foi o susto?...

E houve uma risada grande de gente boa. Eu também fiquei-me rindo, olhando para a

guaiaca e para o guaipeva, arrolhadito aos meus pés...

João Simões Lopes Neto nasceu em Pelotas, a 9 de março de 1865, filho dos pelotenses Capitão Catão Bonifácio Simões Lopes e Teresa de Freitas Ramos, ele era neto paterno do visconde da Graça, João Simões Lopes. Era membro duma tradicional família pelotense, e possuía ancestrais portugueses, de origem tanto açoriana como continental , tendo ambos os seus antepassados emigrado para o Brasil em busca de melhores condições de vida. Com treze anos de idade, foi ao Rio de Janeiro para estudar no famoso Colégio Abílio. Retornando ao Rio Grande do Sul, fixou-se em sua terra natal, Pelotas, uma cidade então rica e próspera pelas mais de cinquenta charqueadas que formavam a base de sua economia.

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Simões envolveu-se em uma série de iniciativas de negócios que incluíram uma fábrica de vidros e uma destilaria. Porém, os negócios fracassaram. Uma guerra civil no Rio Grande do Sul - a Revolução Federalista - abalou duramente a economia local. Depois disso, construiu uma fábrica de cigarros. A marca dos produtos, fumos e cigarros, recebeu o nome de "Diabo", o que gerou protestos de religiosos. Sua audácia empresarial levou-o ainda a montar uma firma para torrar e moer café, e desenvolveu uma fórmula à base de tabaco para combater sarna e carrapatos. Ele fundou ainda uma mineradora, para explorar prata em Santa Catarina. Em 1892, casou-se com Francisca de Paula Meireles Leite e não tiveram filhos. Entre 15 de outubro e 14 de dezembro de 1893, sob o pseudônimo de "Serafim Bemol", e em parceria com Sát iro Clemente e D. Salustiano, escreveram, em forma de folhetim, "A Mandinga", poema em prosa. Mas a própria existência de seus co-autores é questionada. Provavelmente foi uma brincadeira de Simões Lopes Neto. A criatividade do escritor impulsionou-o a organizar uma coleção de postais sobre a história pátria, denominada “Coleção Brasiliana” revelando em seus belíssimos desenhos o artista que era, porém essa empreitada não obteve sucesso. Foi nesse mesmo ano de 1907 que se iniciou com entusiasmo no caminho da escrita, porém como dois anos antes havia se desligado do trabalho no cartório para dedicar-se, ainda sem sucesso, a uma obra para a Reforma Ortográfica, viu que necessitaria de uma vida mais modesta, abdicando do palacete onde vivia com sua família e agregados. Conseguiu um montante desfazendo-se de pratas, cristais, móveis e outras preciosidades. O ministério da Educação ao rejeitar a Reforma Ortográfica proposta por Lopes Neto, na voz de um senador, determina ser absurda a ideia de trocar o –ch por –qu (como por exemplo: machina por máquina) ou ainda phosphoro, pharmacia, trocarem o –ph por –f... Desenvolveu o escritor uma nova obra dedicada às crianças, com uma série de contos nos quais realçava os nossos costumes e tradições, obra essa que teve o mesmo destino da anterior, ou seja, a rejeição do Ministério da Educação. Ao lançar a primeira edição de Lendas do Sul, seu autor anunciou que estavam por sair Casos do Romualdo, que viria a ser lançado em 1914, e Terra Gaúcha e a existência das obras inéditas Peona e Dona, Jango Jorge, Prata do Taió e Palavras Viajantes. Mas dessas obras só foram encontradas por Dona Velha, como era conhecida a viúva do escritor, o que seria o segundo volume de Terra Gaúcha. Dos demais, nada se encontrou, levando a crer que, ao se referir a inéditos, Simões Lopes Neto tinha em mente obras que ainda planejava escrever. Diretor-redator do jornal “Correio Mercantil”. Levou consigo ao assumir a direção do jornal o livro que estava concluindo, Casos do Romualdo, e publicou-o em folhetins nesse periódico. Esses “casos” lhe foram relatados pelo próprio Romualdo de Abreu e Silva, amigo da família. Morreu na mesma cidade, de uma úlcera perfurada, em 14 de junho de 1916. Segundo estudiosos e críticos de literatura, foi o maior autor regionalista do Rio Grande do Sul, pois procurou em sua produção literária valorizar a história do gaúcho e suas tradições. Só alcançou a glória literária postumamente, em especial após o lançamento da edição crítica de Contos Gauchescos e Lendas do Sul, em 1949, organizada para a Editora Globo, por Augusto Meyer e com o decisivo apoio do editor Henrique Bertaso e de Érico Veríssimo. Publicou apenas quatro livros em sua vida: Cancioneiro Guasca (1910); Contos Gauchescos (1912); Lendas do Sul (1913); Casos do Romualdo (1914);

Fontes; http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Sim%C3%B5es_Lopes_Neto; http://www.infoescola.com/biografias/joao-simoes-lopes-neto/

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A Cultura na Música

O Anel do Nibelungo: Parte 1: O Ouro do Reno

O ciclo de óperas O Anel do Nibelungo (Der Ring des

Nibelungen) é uma das obras mais importantes de Richard Wagner. É baseado na mitologia nórdica, semelhante à germânica e mais documentada. Música e libretto foram escrito por Wagner entre 1848 e 1874.

A obra é constituída das óperas: Das Rheingold (O ouro do Reno) – prólogo Die Walküre (A Valquíria) Siegfried Götterdämmerung ou Ragnarök (O Crepúsculo dos

Deuses) 1 – O OURO DO RENO Ato Único – Cena 1. Nas Águas do Reno, três ninfas, as irmãs “ondinas” –

uma espécie de “sereias de água doce” (sem cauda de peixe), jovens guardiãs do “Ouro do Reno” – nadam, em ágeis movimentos. As mais afoitas, Wellgunde e Woglinde, brincam de correr atrás uma da outra, como

crianças travessas. A terceira, Floßhilde, mais ajuizada, repreende as irmãs por sua brincadeira excessiva e seu descuido na vigilância do “Ouro”. Sem ser visto pelas três, um gnomo, o “nibelungo” Alberich, sobe a um rochedo e as observa, encantado. Dirigindo-se às jovens, elogia-lhes a graça, manifestando o desejo de tê-las para si. Elas, a princípio, assustam-se, mas logo passam ao gracejo, ante a investida apaixonada do feio e repulsivo gnomo. Maliciosamente – na típica malícia da implicância infantil – elas fingem ceder a suas tentativas, mas logo fogem, e caçoam dele. As três alternam-se, uma a uma, nessa maldosa brincadeira, despertando a raiva de Alberich, que, por fim, pára, exausto e furioso, erguendo, impotente, o punho cerrado.

Neste momento, começa algo a brilhar, de dentro das águas, num fulgor dourado que intensifica-se até ocupar todo o ambiente. As três ninfas param de brincar e divertir-se à custa do nibelungo, e passam a reverenciar aquela irradiação esplêndida, a que chamam “Ouro do Reno”: “Ouro do Reno! Ouro do

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Reno! Luminoso júbilo!”- Intrigado e curioso, o gnomo pergunta às meninas “o que é aquilo que tanto brilha”. Elas demonstram incredulidade perante o fato de alguém desconhecer “a esplêndida luz do fundo do rio, que reluz, sublime, através das águas”. Convidam o gnomo a participar de sua alegria, banhando-se, com elas, na luminosidade que se faz. Alberich não compreende o devoção das ninfas àquele “ouro”, que para ele nada significa. Woglinde e Wellgunde, empolgadas, deixam escapar comentários sobre o poder do ouro, “de cuja beleza o gnomo não faria pouco caso, se conhecesse a sua magia: aquele que do Ouro do Reno forjar um anel tornar-se-á senhor do mundo.”

Floßhilde, na prudência que lhe é peculiar, adverte as irmãs, que falam demais, pondo em risco a segurança do Ouro. As outras riem-se de seus cuidados, uma vez que “só aquele que renunciar ao amor” poderá apossar-se do Ouro, e o gnomo, lascivo que é, jamais se disporia a tal privação. Floßhilde concorda e despreocupa-se. As três voltam a convidar Alberich a participar do seu júbilo. Ele, porém, numa atitude totalmente mudada, olha fixamente para o Ouro e manifesta um resto de dúvida – talvez simulada – quanto ao poder mágico mencionado pelas jovens: “Estais brincando! Vou entrar no vosso jogo!” E salta ao rochedo onde está o Ouro. As meninas movimentam-se em algazarra, e, ainda sem perceber a intenção de Alberich, voltam a caçoar do nibelungo. Mas ele conclui seu objetivo: chega ao cume do rochedo, leva a mão ao Ouro e, após proferir: “Assim eu amaldiçôo o Amor!”, foge com sua prenda. As águas

baixam, imergindo consigo as ondinas, que escutam, vinda do subsolo, a terrível gargalhada de Alberich, e gritam por socorro pelo Ouro roubado. A luminosidade anterior dá lugar a densa escuridão; as águas continuam baixando.

Ato Único – Cena 2. A cena altera-se ante nossa vista, à medida em que

as águas assumem o aspecto de nuvens, que transformam-se gradualmente numa névoa diáfana, sob uma claridade matinal, e vemo-nos diante de um espaço amplo nas montanhas. A luz solar, cada vez mais viva, torna visível um imponente castelo, sobre um cume rochoso. Num ponto da cena, sobre um terreno florido, dormem Wotan, o Rei dos Deuses, e sua mulher, Fricka, a Deusa do Matrimônio.

Esta acorda e tenta despertar o marido, que não acorda de imediato, e põe-se a falar, em sonho, sobre seu contentamento pelo castelo, cuja construção acaba e ser concluída: “A beatífica mansão do fausto, cujas portas e ameias hão de guardar-me; a honra do homem e o poder eterno, que elevam-se à glória imperecível!” Fricka, irritada, sacode-lhe o corpo, forçando-o a despertar: “Deixa de devaneios! Acorda e pensa!”

Ao despertar e erguer-se, Wotan manifesta a mesma disposição de ânimo, e contempla, extasiado, “o mais augusto, o mais magnífico edifício!” Fricka o repreende por sua fixação na imponência da fortaleza, pois há um porém: “Esqueces, acaso, o preço que prometeste

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pagar?” O pagamento combinado é justamente Freia, a Deusa da Juventude, irmã de Fricka, e os construtores do castelo, a quem foi prometida a cunhada de Wotan, são os gigantes Fasolt e Fafner.

Wotan, displicente e sereno, responde a Fricka, como dando a entender que ela não deve imiscuir-se neste assunto: “eis a fortaleza, erguida, graças aos fortes gigantes; quanto ao pagamento, não te preocupes”. A deusa, revoltada, reprova a atitude do marido, “leviano, irônico”; diz que, fosse ela avisada a tempo, teria impedido aquele acerto, “mas vós, homens, tudo ocultam às mulheres, para que possam cometer sossegados os vossos desatinos; assim pusestes à venda minha querida irmã, tudo por causa da avidez que vós, os varões, têm pelo poder!”

Sempre fleumático, Wotan argumenta, perguntando à mulher se ela é mesmo tão isenta de “semelhante avidez”, já que fora ela própria que sugerira a construção do castelo. A resposta de Fricka – cujas palavras e a bela temática musical expressam nitidamente seu caráter caseiro e familiar – esclarece que “desejando a fidelidade de meu esposo, fui tola e julguei que um lar aconchegante e belo poderia sossegá-lo dentro de casa; mas a casa para ti nada mais significou que soberania e poder; o castelo só serviu para aumentar o tormento.” Seguindo a mesma linha melódica, um tanto alterada, Wotan – que é dado a freqüentes e longas ausências, e nada tem de marido fiel – replica, em tom de riso, que seria inútil aos intentos da mulher mantê-lo dentro da fortaleza, pois, mesmo apartado do mundo, ele disporia dele, à

distância. Fricka volta a repreendê-lo com veemência, acusando-o de não respeitar nem valorizar as mulheres. Ele, agora sério, responde com severidade à acusação da esposa: “Para obter-te como mulher, perdi um de meus olhos;” – pois, de fato, lhe falta um olho – “que tola censura acabas de fazer!” E acrescenta que, quanto a Freia, não a dará em pagamento aos gigantes: jamais levara a sério aquele acordo. Fricka, então, exige-lhe atitude: “Trata, pois, de protegê-la agora!” A própria Freia então surge, a correr aflita, pedindo socorro à irmã e ao cunhado, pois “Fasolt já se aproxima, e vem buscar-me!”

Wotan, na sua costumeira e irritante calma, dá a entender que não importa; pergunta a Freia se ela não viu Loge (o Deus do Fogo). Ao ouvir o nome de Loge, Fricka fica ainda mais aflita e furiosa, pois não entende a confiança que Wotan vota “àquele ardiloso”; Wotan argumenta que pode agir sozinho, sempre que bastam força e coragem; mas precisa do esperto Loge quando é necessária a astúcia, para vencer o inimigo. “Ele me estimulou a este acordo, e tudo agora depende dele.” Fricka reage: “É! E ele te deixa sozinho! Lá vêm os gigantes, e onde anda o teu experto auxiliar?” Freia grita pelos irmãos – Donner e Froh, Deuses do Trovão e do Sol – , e Fricka diz-lhe, soturnamente: “Primeiro te traem com um pacto imoral, e agora se escondem todos.”

No exato momento, ao som, pela orquestra, de um tema estrondoso, repetitivo e pesado, entram Fasolt e Fafner, os dois irmãos gigantes, vestidos de peles cruas e portando rústicas e pesadas clavas. Fasolt, mais

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dado ao diálogo que Fafner, cujo temperamento é mais bruto e taciturno, dirige-se a Wotan: “Enquanto dormias serenamente, nós erguíamos o castelo, em árduo trabalho, jamais relaxando; e ei-lo de pé, levantado por nós. Faz agora a tua parte: paga-nos!”

Hipocritamente, Wotan pergunta: “Sim, meu povo, dizei vosso preço.” Fasolt replica, ingenuamente: “Ora, já temos um preço; não te lembras? Freia, a bela; Holda, a livre;” (Holda é outro nome de Freia; os dois termos estão associados aos vocábulos “Frei”, livre, e “Holde”, bela) “tal foi o pagamento contratado; levá-la-emos, pois, para nossa terra.” Wotan responde, com brusquidão: “Estais loucos?! Solicitai outra paga! Freia não está à venda!” Fasolt, então, emudece, sem poder acreditar no que ouve, mas, por fim, reage: “O que? Tu, o próprio Wotan, estás pensando em trair um contrato?!”, e seu irmão, Fafner, escarnece dele, chamando-o de “imbecil”, por ter acreditado na trapaça de Wotan.

(Um dos atributos de Wotan é a condição de legislador, que ele exerce por meio de pactos de honra, ou seja, os tratados ou contratos, aos quais ele próprio deve rija fidelidade; sobre o cabo de sua inseparável lança, um arquétipo de seu poder, estão gravadas as Runas, caracteres teutônicos com os quais são selados os pactos. É, pois, indiscutivelmente cabível a indignação de Fasolt, ante esta atitude recalcitrante do “Deus dos Tratados”.) Com sua peculiar dignidade, Fasolt reprova o comportamento de Wotan, dizendo que é seu dever “guardar fidelidade aos tratados”, e que, ainda que Wotan seja sábio “mais do que os

gigantes possam ser apenas astutos”, é exatamente um tolo gigante que lhe dá esta lição de moral, e que “maldito seja aquele que, sendo o guardião dos tratados, ainda assim é capaz de ser infiel aos mesmos.” Wotan, em crescente descaso aos argumentos do ogro, retruca: “Como pudeste levar a sério um contrato feito por pura brincadeira? De que pode valer a vós, brutos que sois, os encantos da bela e radiosa deusa?”

Fasolt, ofendido com a alusão à inferioridade que Wotan atribui aos gigantes, expressa-se, agora, em tom de mágoa: “Zombas de nós, não é? Que injustiça! Os luminosos deuses servem-se do trabalho dos rudes, prometendo-lhes uma bela e terna mulher, e agora invalidas o contrato?” Fafner, irritado com as simplórias instâncias do irmão, interrompe-o rispidamente: “Para com isso! Não vai adiantar! E a posse de Freia é de pouca valia para nós!” E, em tom mais baixo: “O único interesse que podemos ter com ela é o enfraquecimento dos deuses, que nutrem-se das maçãs douradas, que só ela sabe cultivar.” (Freia, a Deusa da Juventude, cultiva maçãs mágicas, douradas, que fornece aos seus parentes, os quais, ingerindo-as, são dotados de juventude eterna.

A falta dessas frutas causaria o envelhecimento e a fraqueza dos deuses, o que interessa aos gigantes, pois, de tal sorte, ficariam livres de seu jugo.) Wotan demonstra impaciência com a demora de Loge, do qual ele espera uma alternativa para o pagamento dos construtores. Fasolt exige uma pronta resolução, e só aceita Freia, nada mais! Os dois gigantes fazem

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menção de levar a deusa à força, quando irrompem Donner e Froh, os dois irmãos de Freia e Fricka. Ambos intentam impedir a investida dos gigantes, e Donner os ameaça com seu martelo (um martelo de grande porte, atributo do Deus do Trovão). Wotan reprime sua agressividade, interpondo, imperiosamente, a lança entre os inimigos: “Nada pela força! Minha lança guarda os pactos.”

Todos estão desolados, quando, finalmente, aparece Loge. Em seus típicos movimentos “flamejantes” e ágeis, ele chega, e, irônico, parece zombar das aflições dos outros deuses. Ao ser argüido por Wotan sobre a solução “que fora buscar para corrigir o mau negócio”, ele torna: “De que negócio falas? Acaso te referes ao pacto que acertaste com os gigantes?” Começa, então, a tagarelar a respeito de suas características pessoais. Ele é um andarilho, que movimenta-se como bem entende; não é como os outros deuses, que desejam casar-se e gostam de “casa e lareira”. A eles, certamente, aquele castelo vem a calhar: uma imponente construção, como quer Wotan, agora pronta e sólida. Ele próprio fora fiscalizar as estruturas, e estavam perfeitas: “Fasolt e Fafner estão de parabéns!”

Wotan interrompe sua sarcástica eloqüência, e lembra-lhe a promessa que ele fizera de conseguir livrar Freia, promessa esta que fora a única razão de ter ele, Wotan, aceito o seu conselho de firmar aquele contrato com os construtores da fortaleza. Loge, com ironia, diz que não: “O que eu prometi foi tentar achar um modo de livrá-la. Uma tentativa, sim, eu prometi. Mas como posso prometer encontrar, de fato, uma

coisa que não existe?” Todos os deuses revoltam-se contra Loge, e ameaçam-no. Wotan ordena calma e defende “seu amigo”. Os gigantes tornam a exigir a solução, e Wotan dirige-se energicamente a Loge: “Vamos, seu cabeça-dura, cumpre o que prometeste.”

Loge, num simulacro de mágoa, diz que todos lhe são ingratos, e que só para resolver o problema de Wotan correu mundo atrás de um substituto para Freia que bem satisfizesse aos gigantes. Mas tudo em vão. Ninguém soube apontar nada mais interessante ao homem que “o amor e o prazer que a mulher pode proporcionar”. Loge prolonga-se nesse discurso desanimador, até que insinua que “há um, apenas um que renunciou ao amor e à mulher, optando pelo poder que lhe proporcionara o ‘ouro reluzente’”; este era Alberich, o nibelungo que roubara das “cristalinas crianças do Reno“ seu amado Ouro. Todos, sobretudo Wotan, ficam interessados; até os gigantes tendem a admitir uma mudança de idéia, caso lhes seja possível obter o ouro mágico. Inclusive o fato de estar em poder do traiçoeiro Alberich é mais uma razão para o cobiçarem, pois o gnomo, com ele, poderá escravizar e arruinar a todos. Fafner, por fim, sugere autoritariamente ao irmão que aceite o Ouro em lugar de Freia.

Fasolt concorda, a contragosto. (Diferentemente de Fafner, que é prático e objetivo, Fasolt, menos rude que o irmão, é um tanto romântico e está apaixonado por Freia. Seu único interesse para com ela é, realmente, tê-la como mulher.) Fafner, decidido, dirige-se a Wotan e declara que os gigantes abrirão mão de

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Freia, se, em lugar dela, lhes for entregue o tesouro do nibelungo. Wotan exaspera-se: “Como posso dar-vos aquilo que não tenho?” Fafner diz que, se o castelo foi construído a duras penas, nada custará a Wotan conseguir, pela astúcia, subjugar o gnomo, coisa que eles, os gigantes, jamais conseguiriam pela força.

Como Wotan tenta ainda recusar o que eles pedem, Fasolt e Fafner decidem levar Freia como garantia, dizendo que “voltaremos ao anoitecer, e se lá não estiver o tesouro, pronto para nós, Freia nos pertencerá para sempre”. Freia é levada, aos gritos. Donner e Froh querem reagir, olham para Wotan, como a pedir consentimento, mas o patriarca não dá ordem alguma. Eles ficam. Loge põe-se a observar, à distância, a grotesca marcha dos gigantes, que carregam Freia. Comenta, zombeteiro, cada etapa do percurso, conforme observa. Depois, olhando para os deuses, nota como eles envelhecem rapidamente. Escapa-lhes o vigor.

O coração de Froh baqueia, o martelo de Donner pende-lhe da mão, Wotan está encanecido, todos sentem-se fracos e desencorajados. Todos, menos Loge. Ele compreende o que está ocorrendo. Privados das maçãs de Freia, os deuses perdem o vigor da juventude; eles são dependentes das maçãs. Ele não. Loge é um “meio-deus”, sua natureza é outra, e Freia sempre lhe fora avara, concedendo-lhe menos maçãs que aos outros. “Debilitada e submetida ao sarcasmo do mundo” – escarnece ele – “a estirpe dos deuses perecerá.” Fricka lamenta-se, repreendendo Wotan por sua irresponsabilidade. Wotan, tomando uma decisão

súbita, ordena a Loge que o conduza ao “País dos Nibelungos” (Nibelheim), para que juntos apossem-se do Ouro do Nibelungo. Loge, ironicamente, pergunta-lhe se pretende devolvê-lo às ninfas do Reno. Wotan esbraveja com ele, e diz que o Ouro é para a libertação de Freia. Ordena aos outros que esperem até à noite.

Enquanto Donner, Froh e Fricka expressam votos de boa sorte, Loge e Wotan imergem numa fenda sulfurosa, rumo às cavernas onde vivem os nibelungos, sob a tirania de Alberich.

Ato Único – Cena 3. Vemos uma passagem rochosa interna, movendo-se

verticalmente, o que dá a entender uma descida ao subterrâneo. Surge o interior de uma furna. Saindo de uma estreita abertura, vem Alberich, arrastando brutalmente pelas orelhas um outro nibelungo, Mime, seu irmão. Alberich cobra do outro um artefato cuja confecção lhe ordenara. Mime tenta ludibriar Alberich, dizendo não estar certo da boa compleição da peça, mas, ante a atitude ameaçadora do irmão, acaba cedendo, por medo, e lhe entrega um objeto metálico. Alberich, constatando a perfeição do trabalho, castiga Mime, por perceber que ele tentava enganá-lo, no intuito de ficar com o artefato para si. (O artefato é o “Tarnhelm”, um elmo mágico que dá a quem o use o poder de invisibilidade ou de qualquer transformação desejada).

Para testar a eficiência mágica da peça, Alberich experimenta tornar-se invisível, o que dá certo, e, sem

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ser visto, surra Mime com uma chibata, rindo e escarnecendo do irmão: “Obrigado, estúpido! Fizeste um bom trabalho!” Ele vocifera, impondo sua tirania a todo o seu povo: “Nibelungos todos! Curvai-vos ante Alberich!” (Desde que do Ouro do Reno, obtido por roubo, forjara um anel mágico, Alberich tem a todos os nibelungos como seus escravos, que agora trabalham para ele na mineração do ouro, cujo acúmulo aumenta a cada dia.) Chegam, finalmente, Loge e Wotan, vindos das alturas das montanhas.

Loge percebe Mime, que, caído ao chão, está gemendo e se lamentando pelos golpes que recebera de Alberich. Cinicamente, Loge o cumprimenta, e pergunta o motivo de seus lamentos. O gnomo desventurado reage: “Deixa-me em paz!” Loge diz que pretende ajudá-lo, ao que Mime demonstra incredulidade, comentando a situação em que se encontra, sob a senhoria cruel do próprio irmão. Loge, então, dá início a uma série de perguntas sobre tal estado de coisas, às quais Mime vai respondendo, até que, intrigado, pergunta quem são os dois forasteiros. Loge responde: “Amigos teus. Aqui viemos para libertar-te, e aos demais nibelungos, deste jugo.” Mas, como percebe a aproximação de Alberich, Mime recomenda-lhes cuidados. Os dois forasteiros postam-se à espera do tirano, que chega, mais uma vez impondo terror e submissão a seu povo.

Reparando na presença dos dois estranhos, dirige a Mime interrogações ameaçadoras, mas, sem esperar resposta, fustiga-o a chicote, forçando-o a juntar-se aos outros servos. Por fim, exibindo ameaçadoramente

o anel, profere, mais uma vez, sua expressão de déspota: “Tremei e obedecei prontamente ao senhor do anel!” Todos os nibelungos dispersam-se, apavorados, dirigindo-se aos diversos fossos, onde trabalham. Ficando a sós com os forasteiros, Alberich os interroga, com desconfiança: “O que quereis aqui.” É Wotan que responde, citando uma série de rumores que ouvira falar sobre “as maravilhas que estariam sendo operadas por Alberich, em Nibelheim.”

Envaidecido, o gnomo diz que “a inveja é que os atrai a seus domínios.” Loge intervém, reprovando a falta de hospitalidade e a ingratidão de Alberich, que “deve a ele o fogo do qual precisa para iluminação e aquecimento das frias cavernas onde vive, e para alimentação de suas forjas”; Alberich alude à “falsa amizade de Loge”. Este procura conduzir a conversa de modo a fazer com que Alberich revele detalhes sobre seu poderio e riqueza. Envaidecido e seguro de si, o nibelungo nada oculta; afirma que, tão logo o tesouro atinja um grande acúmulo, ele poderá assenhorar-se do mundo inteiro. Fingindo indiferença, Wotan pergunta-lhe de que modo começará seu empreendimento dominador. Alberich responde que será justamente lá nas alturas onde eles, os deuses, vivem. Entra em detalhes a respeito de seus planos que despertam a fúria do temperamental Wotan, que ameaça golpeá-lo mortalmente.

Alberich parece não perceber sua investida, prontamente bloqueada pelo astuto Loge. Este dá prosseguimento a seus estratagemas, tecendo efusivos elogios às conquistas de Alberich, cuja vaidade, cada

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vez mais inflada, leva-o a fazer mais e mais revelações. Fala sobre o “Tarnhelm”, que lhe confere a possibilidade de “vigiar tudo sem ser visto”. Loge manifesta incredulidade quanto a esse poder. Alberich desdenha: “Achas que sou fanfarrão como tu?” Loge exige uma prova, ao que o vaidoso Alberich assente. Colocando o Tarhelm sobre a cabeça, profere a fórmula mágica, e logo transforma-se numa serpente monstruosa. Loge simula pavor, suplicando à serpente que “não o devore”. Wotan, por sua vez, ri-se e faz um elogio hipócrita à façanha de Alberich, que, voltando à sua forma original, pergunta desafiadoramente aos “sábios” se acreditam nele agora. Ainda fingindo medo e admiração, Loge se dá por convencido, mas interpela-lo novamente, perguntando-lhe se “assim como pudeste crescer, podes também diminuir?” Refere-se Loge a uma eventual necessidade de escapulir, o que faria necessário tornar-se pequeno, de modo a que pudesse escapar por qualquer mínimo espaço. “Mas creio que isto seja muito difícil”, conclui Loge, despertando ainda mais o exibicionismo de Alberich, que ri-se de tamanha “estupidez”, e pede-lhe que ordene a que proporção quer que ele encolha. Loge insinua a dimensão do corpo de um sapo.

Usando novamente o elmo, e proferindo a invocação, Alberich assume justamente a forma de um sapo. Pronto: Loge alcançou seu intento. Com o pé, Wotan imobiliza o metamorfoseado Alberich; Loge retira-lhe o elmo mágico. Alberich volta ao normal, esbravejando, e, sendo amarrado com uma corda, é carregado por

Wotan e Loge, pelo mesmo caminho que os trouxera à caverna.

Ato Único – Cena 4. De volta à mesma região montanhosa onde

ocorreram os incidentes com os gigantes, os triunfantes Wotan e Loge trazem Alberich, aprisionado. Loge zomba dele, que responde com impotentes ameaças. Wotan declara que sua libertação tem um preço. Ao que Alberich continua a ameaçar, Loge lembra-lhe que “só pagando o preço exigido, poderá ficar livre e vingar-se”.

Sem alternativa, o nibelungo pergunta o que lhe cobram. Wotan exige o tesouro. Contrafeito, Alberich cede, lembrando que, se o anel continua em seu poder, poderá recuperar tudo depois. Conclama seus escravos para que tragam para cima todo o ouro acumulado. À medida em que eles obedecem, Alberich manifesta a vergonha que sente ao ver-se naquele estado (atado em cordas) diante de seus servos. Estes concluem o transporte do tesouro, e Alberich ordena-lhes, com sua usual arrogância, que voltem ao trabalho, que ele logo regressará para vigiá-los. Julgando ter cumprido a exigência de seus carcereiros, o nibelungo exige que o deixem ir, e que lhe devolvam o Tarnhelm. Loge diz que o elmo também faz parte do preço, e junta-o ao tesouro. Mais uma vez indignado, Alberich, no entanto, torna a ponderar, supondo que o mesmo que lhe confeccionara o artefato (Mime) far-lhe-á outro igual.

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Alberich exige novamente que o libertem. Loge pergunta a Wotan se pode soltá-lo, ao que o outro responde que ainda falta o anel, que o gnomo também deve entregar. Ante a alusão de perder o anel, fonte de todo o seu poder, Alberich sobressalta-se: “A vida, mas não o anel!” Wotan replica, autoritário: “Eu quero o anel; quanto à tua vida, faz dela o que quiseres!” Desesperado, Alberich grita que o anel é tão próprio dele o quanto o são as partes do seu corpo.

Com iracunda veemência, Wotan acusa: “Chamas o anel de ‘tua propriedade’. Estás variando, desprezível gnomo? Pergunta às Filhas do Reno se elas de bom grado te ofereceram o ouro!” Alberich vocifera, ocultando uma interna súplica, pelo que tenta manter seu tom de exigência, expondo argumentos que não comovem nem convencem Wotan, que, por fim, arranca-lhe o anel da mão, à força. Alberich emite um grito de desespero, após o que profere um lamento arrasado, ao passo que Wotan exprime seu triunfo. Loge torna a perguntar a Wotan se pode libertá-lo. Wotan consente. Após ser desamarrado por Loge, que, ironicamente, o declara livre, o nibelungo, no auge do ódio, exclama: “Estou livre agora?” – emite um riso curto e furioso – “Realmente livre? Pois eis a vós minha primeira saudação de homem livre: Assim como por maldição me foi útil, amaldiçoado esteja este anel!” Profere, então, a famosa e longa praga, pela qual determina a desgraça a todo aquele que venha a possuir o anel, até que o mesmo “volte à sua mão”. Vai-se embora, a correr. Dirigindo-se a Wotan, Loge faz uma lacônica referência à maldição de Alberich. Wotan

responde com indiferença. Olhando à distância, Loge informa que os gigantes estão chegando, com Freia.

À medida em que a névoa se dispersa, aparecem Froh, Donner e Fricka, que vêm ao encontro dos recém chegados, ansiosos por saber como se haviam saído. Wotan tranqüiliza-os, mostrando o tesouro que libertará Freia. Donner comenta a aproximação dos esperados, e Froh, num belíssimo andamento melódico, exprime seu contentamento: “Que adorável ar volta a soprar sobre nós! Deleitosa sensação que invade os sentidos! Trágico seria a todos nós ficarmos para sempre apartados da juventude eterna e isenta de infortúnios, que nos concede o prazer jubiloso.” Clareia-se, aos poucos, o ambiente.

Chegam Fasolt e Fafner, trazendo Freia. Fricka tenta aproximar-se da irmã, mas é detida por Fasolt, que adverte-a sobre a condição ainda cativa da jovem deusa, pois ainda não foi pago o resgate. Wotan esclarece os gigantes, indicando o tesouro: “Eis aí o resgate. Seja, pois, devolvida Freia.” Fasolt, que, como sabemos, é apaixonado por ela, dirige-se a Wotan e, com tristeza, lembra ao deus o quanto lhe será penoso renunciá-la. Diz que, para esquecê-la, será preciso que o tesouro – isto é, a prenda que a substitui – seja empilhado ante a jovem, até que ele, Fasolt, não mais a veja. Wotan ordena que assim se faça.

Os dois gigantes fincam suas respectivas clavas ao solo, a cada lado de Freia. Wotan ordena aos outros que façam o trabalho, “demasiado repugnante para ele próprio”. Começa a deposição do tesouro, por Loge, que pede ajuda a Froh, passando ambos à

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desagradável tarefa, acompanhada de incômodas intervenções de Fafner, o qual acha que “aqui e ali” o acúmulo está mal compactado. Loge o repele, com impaciência, mas o gigante continua a exigir mais coesão. O trabalho é entremeado de comentários indignados de Wotam, Fricka e Donner. Este último quase provoca Fafner a uma briga, mas Wotan intervém, observando que, segundo parece, o acúmulo já perfaz a altura de Freia. Fafner diz que os cabelos da deusa “ainda brilham”, e exige o Tarnhelm para ocultá-los. Loge tenta argumentar, porém Wotan ordena a entrega do artefato. Após arremessar o elmo sobre o tesouro, Loge diz aos gigantes que o trabalho está feito. Fasolt, em seu peculiar sentimentalismo, lamenta-se ainda pela perda de Freia. “Tenho mesmo que deixá-la?” E, num súbito arroubo de paixão, percebe que ainda vê “o raiar dos olhos” de sua amada. Afirma que não a deixará enquanto ainda o veja. Fafner exige o fechamento da lacuna pela qual seu irmão enxerga aquele brilho. Loge argumenta que “já foi tudo entregue”. Fafner discorda: “Não, meu caro! Na mão de Wotan reluz ainda um dourado anel!”

Ante a hipótese de privar-se do anel, Wotan, reage, indignado. Loge tenta contemporizar, dizendo aos gigantes que o anel pertence às Filhas do Reno, a quem Wotan o devolveria. Num misto de indignação e sarcasmo, Wotan ridiculariza o argumento de Loge, dizendo que o anel lhe pertence, uma vez que o obtivera com dificuldade. Todos tentam, em súplicas, convencê-lo a abrir mão do anel, sem o que Freia permanecerá em poder dos gigantes. Wotan é

categórico: “Deixai-me! Não cederei o anel!” De repente, ouvimos um forte, grave e profundo acento da orquestra, anunciando o que segue: após novo escurecimento da cena, emerge, de uma fenda na rocha, uma luz azulada, em meio à qual surge, a meio corpo, Erda, uma forma feminina de aspecto nobre, envolta em sua basta cabeleira negra. (Esta misteriosa personagem é – como veremos a seguir, e em próximas passagens da Tetralogia – a “mulher original”, uma espécie de “mãe universal”, detentora de todo o conhecimento e sabedoria, chamada às vezes de “Deusa da Terra”, pois vive nas profundezas, num eterno sono, em cujos sonhos acumula conhecimento. Sua existência “subterrânea” talvez seja uma representação simbólica do inconsciente, que tudo absorve e guarda; ou, mais amplamente, um símbolo do contexto espiritual do homem, ou mesmo do Universo, ao(s) qual(is) o inconsciente está ligado.

O despertar de Erda, isto é, o momento em que ela acorda e emerge à superfície, parece uma alusão aos raros momentos em que, altamente inspirada, nossa consciência percebe elementos profundos, que ordinariamente ignoramos, embora sejam inerentes a nosso espírito.) Num lento e sugestivo andamento melódico, Erda dirige-se a Wotan, numa firme e zelosa advertência: “Cede, Wotan, cede! Foge à maldição do anel!” A “mulher primeva”, sempre no mesmo tom profundo, avisa a Wotan que o anel lhe levaria à ruína “tenebrosa e irremissível”. Impressionado, Wotan dirige-se a ela: “Quem és tu, admoestadora mulher?”

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Em resposta, Erda expõe a grandeza de seus atributos: “Enxergo tudo o que foi, o que é e o que está para ser”.

A mulher primordial do Eterno Mundo é quem adverte o teu espírito. Três filhas primevas que meu ventre gerou, as Nornas, costumam dizer-te à noite o que eu vejo. Porém, hoje, um grande perigo obrigou-me a vir-te em pessoa. Ouve! Ouve! Ouve! Tudo o que existe acaba. Um dia sombrio se abaterá sobre os deuses: eu te aconselho: renuncia ao anel!” Enquanto ela imerge lentamente, de volta ao subterrâneo, Wotan, tocado pelas profundas palavras de Erda, pede-lhe que fique e lhe conceda mais ensinamentos. Erda, concluindo sua imersão, responde que basta a Wotan o aviso que ela acaba de lhe dar, e que ele reflita “com ânsia e temor”. Acaba de imergir completamente, e Wotan tenta ainda segui-la, ao que é contido por Fricka e Froh. Donner, por sua vez, percebendo que a decisão está consumada, dirige-se aos gigantes, avisando-lhes que o anel lhes será entregue. Todos fitam Wotan, que, após ficar pensativo por momentos, chama Freia para junto de si, e, aos gigantes: “Eis vosso anel!” E lança a jóia sobre o tesouro. Fasolt e Fafner libertam Freia, que corre a abraçar os outros deuses. Fafner, tomando a iniciativa, abre um enorme saco, no qual começa a introduzir as peças do tesouro. Fasolt, percebendo que o irmão está armazenando para si uma parcela exagerada, o que resultaria numa partilha desigual, e que ele, Fasolt, ficaria em prejuízo, reclama com Fafner, dizendo que aquilo não está direito.

Fafner, arrogante, responde com um argumento absurdo: “És um janota, a quem me foi difícil convencer a aceitar o ouro em lugar da garota. Se ficasses com ela, não a dividirias com ninguém; é justo, portanto, que seja minha a maior parte do tesouro.” Indignado, Fasolt pede aos deuses que atuem como árbitros daquela questão. Wotan dá-lhe as costas, com desprezo, e Loge tem a idéia de sugerir a Fasolt que fique com o anel e deixe o resto todo para Fafner. Fasolt, então, exige o anel, alegando que a jóia corresponde aos olhos de Freia. Fafner, no entanto, não quer ceder o anel, e os dois irmãos passam da discussão à luta corporal; Fasolt toma o anel à força, mas Fafner dá-lhe um golpe mortal com a clava.

Fasolt cai por terra, e, enquanto ainda agoniza, Fafner retira-lhe do dedo o anel, e diz, com desprezo: “Agora sonha com a tua Freia; no anel nunca mais porás a mão”. Fasolt morre, e enquanto Fafner conclui o ensacamento do tesouro, ocorre uma forte comoção entre os deuses, após a cena de fraticídio que acabaram e presenciar. Wotan entende, então, a força da maldição de Alberich, que acabara de apresentar seu primeiro efeito. Fricka procura acalmar Wotan, e Donner, também abalado, decide convocar suas servas, as nuvens, para provocar uma tempestade que purifique o céu e o ambiente. Após subir a uma rocha, brande seu martelo e profere a célebre invocação: “He da! He da! He do! A mim, nevoeiro! Vapores, a mim! Donner, vosso amo, convoca-vos!”

Donner conclui suas ordens, e, com um sonoro golpe do martelo sobre a rocha, brada a Froh: “Aqui, irmão!

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Mostra o caminho da ponte!” Faz-se o arco-íris, ao qual Froh convida os demais a passar, rumo ao castelo, agora pronto para ser ocupado. Wotan pronuncia uma longa saudação à fortaleza, e fala a Fricka, como um cônjuge cordial: “Vem, mulher, viver comigo no ‘Walhall’” (ou “Walhalla”, nome que Wotan acaba de dar a seu castelo). Fricka indaga-lhe pelo significado de tal nome. Wotan responde que o sentido daquele termo “será dado a ela pela coragem de Wotan, que soube inspirá-lo, vitoriosa sobre o medo” (é, sem dúvida, uma explicação enigmática). Entrementes, Loge os acompanha e observa à distância, fazendo um comentário crítico. (Por ser mais realista que seus companheiros, Loge não incide no erro deles, que tendem a ocultar de si mesmos a série de fatores e eventos negativos ou indignos, pelos quais tornara-se possível a conjuntura desse momento, que tranqüiliza e alegra a todos.) Diz o Deus do Fogo: “Envergonha-me cooperar com eles. Sinto o belo desejo de transformar-me de novo na chama tremulante, para consumir estes que um dia puseram-me entre cegos para que eu

acabasse como um parvo. Assim os deuses seriam mais divinos!”

Entretanto, faz-se ouvir, das profundezas, o lamento das Filhas do Reno, por seu Ouro perdido. Wotan pergunta a Loge o que é aquilo. Loge esclarece, e Wotan, irritado, ordena-lhe que as repreenda. O outro obedece, sugerindo às jovens um ridícula compensação: “Se vosso Ouro não mais brilha, Wotan quer que, a partir de agora, fiqueis felizes com o novo esplendor dos deuses!” Os deuses riem. As ondinas reiteram seu lamento, ao passo que os deuses continuam a caminhar sobre a ponte. Cai o pano.

____________ Nota Donner = Thor (Deus do Trovão) Loge = Loki (Deus do Fogo e das Trevas) Wotan = Odin (Deus dos Deuses) continua…

Fontes: http://www.luiz.delucca.nom.br; http://pt.wikipedia.org;

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