alma dramaturgia v2

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Alma de GIL VICENTE encenação NUNO CARINHAS Versão dramatúrgica | 30 Jan. 2012 TEATRO NACIONAL SÃO JOÃO | 2012

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Estudo dobre Auto da Alma de Gil Vicente

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Page 1: Alma Dramaturgia v2

Alma

de GIL VICENTE

encenação NUNO CARINHAS

Versão dramatúrgica | 30 Jan. 2012

T E A T R O N A C I O N A L S Ã O J O Ã O | 2 0 1 2

Page 2: Alma Dramaturgia v2

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Nota prévia

A dramaturgia do espectáculo toma por referência a fixação textual publicada no vol. I de As Obras de Gil Vicente, edição Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa/Imprensa Nacional-Casa da Moeda (direcção científica de José Camões), diferindo desta nos seguintes pontos:

— verso 257: “por mercante”, em vez de “por marcante”; — verso 370: “tudo tendes”, em vez de “tudo temos”; — verso 556: “Torná-la-ei a afagar”, em vez de “Torná-la-ei a afogar”; — verso 770: “Come-se com grã tristura”, em vez de “Come-se com grã tristeza”.

Para além destas variações, a intervenção inicial de Agostinho (versos 1-42) é suprimida, as duas primeiras falas do Anjo são distribuída por seis actores e os versos 693-699, originalmente destinados a Jerónimo, são atribuídos a Ambrósio. O exórdio explicativo e a didascália de abertura foram eliminados do documento. As didascálias relativas à toalha “varónica” e às iguarias, mencionando os hinos litúrgicos, sofreram ligeiros cortes. Para efeitos de cotejo e pontuação do texto, foram consultadas as edições do Prof. Marques Braga (Livraria Sá da Costa) e de Maria Leonor Carvalhão Buescu (Imprensa Nacional-Casa da Moeda). A dramaturgia inclui textos exógenos à obra vicentina, assinalados no documento com um tipo de letra distinto (Calibri 11) e proferidos em cena por Miguel Loureiro. Referimo-nos aos seguintes poemas:

— “A minha voz”, de Vitorino Nemésio (In O Bicho Harmonioso, 1938); — “A lágrima”, de Guerra Junqueiro (In Poesias Dispersas, 1920); — “Prece”, de Vitorino Nemésio (In O Verbo e a Morte, 1959); — “A minha aldeia” (excerto), de Teixeira de Pascoaes (In Sempre, 1902).

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Vamos a ver se te levanto

Com estas palavras escuras

Que são a luz do meu canto.

Vamos a ver se pode ser.

Na minha lama azeda e quente

Crias a tua forma

E compões o teu vulto no meu amor,

Por isso creio que és gente.

Toma lá pão, sinal humano,

Conhecimento e dor.

Bem; já existes,

Embora sem a graça de um nome:

Eu, que te sinto em mim, já não hei-de chamar-te.

Quando acabares o pão, pede mais,

Pois te darei a tua parte:

Já resolvi ficarmos tristes

Para matar a fome,

Que os tristes a tudo são fatais.

Aí está: TRISTE. Se era a palavra, aí está.

Tens frio, e um nome é manta pela cabeça:

Talvez abrigue a cabeça de quem vá

Sozinho, à noite, pelos caminhos ladrados

De uma aldeia estelar, sem fim, que em mim começa.

Seu nome, como um Outro, serve de companhia:

Só os viandantes são enganados

Sobre a verdade de quem lá ia.

Vamos a ver se eu te crio,

A ti que me encheste de ser

E enches o escuro de confiança

Adiante dos meus passos,

Como os choupos levam o rio.

Sai um pouco de mim para eu te ver,

Cuida a tua aparência,

Abre na escuridão um rodado qualquer

E veste-te de lume ou de essência

Ou do teu cabelo, se és mulher.

Quando te cito, canta,

Longe, uma voz diversa,

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Uma voz aguda como um grito e o espinho que o fez dar.

Ninguém lhe conhece garganta;

É uma simples coisa imersa

Em mim, na noite e no mar.

Outras vezes não te cito: tu me citas,

A tua angústia trava o meu mínimo gesto,

Tremo diante do teu látego,

Cheio de palavras aflitas

E do suor do meu protesto.

Então do meu transe se adianta

O teu vulto coberto do meu vulto,

E é sempre assim que o duplo canta.

O farrapo de mim, a que se agarraram uns limos,

Lá no seu tanque pútrido mexe,

Lá vive e cria suas bichezas.

Assim nos vimos,

Minha voz:

Assim o cabo do látego remexe

Bichos, limos, vozes, tristezas,

E tudo isto dentro de nós.

[VITORINO NEMÉSIO – “A MINHA VOZ”]

Vem o Anjo Custódio com a Alma e diz: ANJO [1]: Alma humana, formada

de nenhũa cousa, feita mui preciosa, 45 de corrupção separada e esmaltada naquela frágua perfeita, gloriosa.

Planta neste vale posta 50 pera dar celestes flores olorosas, e pera serdes tresposta em a alta costa, onde se criam primores 55 mais que rosas.

ANJO [2]: Planta sois e caminheira,

que, ainda que estais, vos is

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donde viestes. Vossa pátria verdadeira 60 é ser herdeira da glória que conseguis: andai prestes. Alma bem aventurada, dos anjos tanto querida, 65 nam durmais; um ponto nam esteis parada, que a jornada muito em breve é fenecida, se atentais. 70

ALMA : Anjo que sois minha guarda,

olhai por minha fraqueza terreal: de toda a parte haja resguarda, que nam arda 75

a minha preciosa riqueza principal. Cercai-me sempre ò redor, porque vou mui temerosa de contenda. 80 Ó precioso defensor, meu favor! Vossa espada lumiosa me defenda.

Tende sempre mão em mim, 85

porque hei medo de empeçar e de cair.

ANJO [3]: Pera isso sam e a isso vim, mas enfim, cumpre-vos de me ajudar 90 a resistir. Nam vos ocupem vaidades, riquezas, nem seus debates. Olhai por vós, que pompas, honras, herdades 95 e vaidades são embates e combates pera vós.

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ANJO [4]: Vosso livre alvidrio, isento, forro, poderoso, 100 vos é dado polo divinal poderio e senhorio, que possais fazer glorioso vosso estado. 105 Deu-vos livre entendimento e vontade libertada e a memória, que tenhais em vosso tento fundamento, 110 que sois por ele criada pera a glória.

ANJO [5]: E vendo Deos que o metal

em que vos pôs a estilar, pera merecer, 115 que era mui fraco e mortal, e por tal me manda a vos ajudar e defender. Andemos a estrada nossa: 120 olhai, nam torneis atrás, que o imigo à vossa vida gloriosa porá grosa. Nam creais a Satanás, 125 vosso perigo.

ANJO [6]: Continuai ter cuidado

na fim de vossa jornada, e a memória que o spírito atalaiado 130 do pecado caminha sem temer nada pera a glória. E nos laços infernais e nas redes de tristura 135 tenebrosas da carreira que passais nam caiais. Siga vossa fermosura as gloriosas. 140

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Adianta-se o Anjo e vem o Diabo a ela, e diz o Diabo:

DIABO: Tam depressa, ó delicada,

alva pomba, pera onde is? Quem vos engana e vos leva tam cansada por estrada, 145 que somente nam sentis se sois humana? Nam cureis de vos matar, que ainda estais em idade de crecer. 150 Tempo há i pera folgar e caminhar: vivei à vossa vontade e havei prazer.

Gozai, gozai dos bens da terra, 155

procurai por senhorios e haveres. Quem da vida vos desterra à triste serra? Quem vos fala em desvarios 160 por prazeres? Esta vida é descanso, doce e manso: nam cureis doutro paraíso. Quem vos põe em vosso siso 165 outro remanso?

ALMA : Nam me detenhais aqui,

deixai-me ir, que em al me fundo. DIABO: Oh, descansai neste mundo,

que todos fazem assi. 170 Nam são embalde os haveres, nam são embalde os deleites e fortunas; nam são debalde os prazeres e comeres: 175 tudo são puros afeites das criaturas.

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Pera os homens se criaram. Dai folga a vossa passagem d’hoje a mais; 180 descansai, pois descansaram os que passaram por esta mesma romagem que levais. O que a vontade quiser, 185 quanto o corpo desejar, tudo se faça. Zombai de quem vos quiser reprender, querendo-vos marteirar 190 tam de graça.

Tornara-me, se a vós fora.

Is tam triste, atribulada, que é tormenta. Senhora, vós sois senhora 195 emperadora; nam deveis a ninguém nada: sede isenta.

ANJO: Oh, andai. Quem vos detém? Como vindes pera a glória 200 devagar! Ó meu Deos, ó sũmo bem, já ninguém nam se preza da vitória em se salvar. 205

Já cansais, Alma preciosa?

Tam asinha desmaiais? Sede esforçada! Oh, como viríeis trigosa e desejosa 210 se vísseis quanto ganhais nesta jornada! Caminhemos, caminhemos; esforçai ora, Alma santa, esclarecida. 215

Adianta-se o Anjo e torna Satanás:

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DIABO: Que vaidades e que estremos tam supremos! Pera que é essa pressa tanta? Tende vida!

Is mui desautorizada, 220

descalça, pobre, perdida de remate; nam levais de vosso nada, amargurada. Assi passais esta vida 225 em disparate. Vesti ora este brial, metei o braço por aqui: ora esperai. Oh, como vem tam real! 230 Isto tal me parece bem a mi: ora andai.

Uns chapins haveis mister de Valença: ei-los aqui. 235 Agora estais vós molher de parecer. Ponde os braços presumptuosos: isso si. Passeai-vos mui pomposa, 240 daqui pera ali e de lá pera cá, e fantasiai. Agora estais vós fermosa como a rosa. Tudo vos mui bem está. 245 Descansai.

Torna o Anjo à Alma dizendo:

ANJO: Que andais aqui fazendo? ALMA : Faço o que vejo fazer

polo mundo. ANJO: Ó Alma, is-vos perdendo; 250

correndo vos is meter no profundo. Quanto caminhais avante, tanto vos tornais atrás

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e a través. 255 Tomastes ante com ante por mercante o cossairo Satanás porque querês.

Oh, caminhai com cuidado, 260

que a virgem gloriosa vos espera. Deixais vosso principado deserdado! Enjeitais a glória vossa 265 e pátria vera! Deixai esses chapins ora, e esses rabos tam sobejos, que is carregada. Nam vos tome a morte agora 270 tam senhora, nem sejais com tais desejos sepultada.

Andai, dai-me cá essa mão. ALMA : Andai vós, que eu irei 275

quanto puder.

Adianta-se o Anjo e torna o Diabo: DIABO: Todas as cousas com rezão

tem sazão. Senhora, eu vos direi meu parecer. 280 Há i tempo de folgar e idade de crecer, e outra idade de mandar e triunfar, e apanhar 285 e aquirir prosperidade a que puder.

Ainda é cedo pera a morte;

tempo há de arrepender e ir ao céu. 290 Ponde-vos a for da corte; desta sorte

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viva vosso parecer, que tal naceu. O ouro pera que é? 295 E as pedras preciosas, e brocados, e as sedas pera quê? Tende por fé que pera as almas mais ditosas 300 foram dados.

Vedes aqui um colar

d’ouro mui bem esmaltado e dez anéis. Agora estais vós pera casar 305

e namorar: neste espelho vos vereis e sabereis que nam vos hei de enganar. E poreis estes pendentes, 310 em cada orelha seu: isso si, que as pessoas diligentes são prudentes. Agora vos digo eu 315 que vou contente daqui.

ALMA : Oh, como estou preciosa,

tam dina pera servir e santa pera adorar.

ANJO: Ó Alma despiadosa, 320 perfiosa, quem vos devesse fugir mais que guardar! Pondes terra sobre terra, que esses ouros terra são. 325 Ó senhor, por que permites tal guerra, que desterra ao reino da confusão o teu lavor? 330

Nam íeis mais despejada

e mais livre da primeira pera andar?

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Agora estais carregada e embaraçada 335 com cousas que à derradeira hão de ficar. Tudo isso se descarrega ao porto da sepultura. Alma santa, quem vos cega, 340 vos carrega dessa vã desaventura.

ALMA : Isto nam me pesa nada,

mas a fraca natureza me embaraça. 345 Já nam posso dar passada de cansada,

tanta é minha fraqueza e tam sem graça. Senhor, ide-vos embora, 350 que remédio em mi nam sento; já estou tal.

ANJO: Sequer dai dous passos ora até onde mora a que tem o mantimento 355 celestial.

Ireis ali repousar,

comereis alguns bocados confortosos, porque a hóspeda é sem par 360 em agasalhar os que vem atribulados e chorosos.

ALMA : É longe? ANJO: Aqui mui perto;

esforçai, nam desmaieis, 365 e andemos que ali há todo concerto mui certo: quantas cousas querereis tudo tendes. 370

A hóspeda tem graça tanta,

far-vos-á tantos favores. ALMA : Quem é ela?

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ANJO: É a madre Igreja santa e os seus santos doutores 375 i com ela. Ireis di mui despejada, chea do spírito santo e mui fermosa. Ó Alma, sede esforçada! 380 Outra passada, que nam tendes de andar tanto a ser esposa.

DIABO: Esperai. Onde vos is?

Essa pressa tam sobeja 385 é já pequice. Como! Vós que presumis, consentis continuardes a Igreja sem velhice? 390 Dai-vos, dai-vos a prazer, que muitas horas há nos anos que lá vem. Na hora que a morte vier, como xiquer, 395 se perdoam quantos danos a alma tem.

Olhai por vossa fazenda: tendes ũas scrituras de uns casais 400 de que perdeis grande renda. É contenda que leixaram às escuras vossos pais. É demanda mui ligeira, 405 litígios que são vencidos em um riso. Citai as partes terça feira de maneira como nam fiquem perdidos, 410 e havei siso.

ALMA : Cal-te por amor de Deos,

leixa-me, nam me persigas; bem abasta

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estorvares os heréus 415 dos altos céus, que a vida em tuas brigas se me gasta. Leixa-me remediar o que tu, cruel, danaste 420 sem vergonha, que nam me posso abalar nem chegar ao lugar onde gaste esta peçonha. 425

Manhã de Junho ardente. Uma encosta escalvada,

Seca, deserta e nua, à beira duma estrada.

Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha,

Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.

Sobre uma folha hostil duma figueira brava,

Mendiga que se nutre a pedregulho e lava,

A aurora desprendeu, compassiva e divina,

Uma lágrima etérea, enorme e cristalina.

Lágrima tão ideal, tão límpida, que ao vê-la,

De perto era um diamante e de longe uma estrela.

Passa um rei com o seu cortejo de espavento,

Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento.

– «No meu diadema, disse o rei, quedando a olhar,

Há safiras sem conta e brilhantes sem par.

«Há rubins orientais, sangrentos e doirados,

Como beijos d'amor, a arder, cristalizados.

«Há pérolas que são gotas de mágoa imensa,

Que a Lua chora e verte e o mar gela e condensa.

«Pois brilhantes, rubins e pérolas de Ofir,

Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir

«Nesta c’roa orgulhosa, olímpica, suprema,

Vendo o globo a teus pés do alto do teu diadema!»

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E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,

Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.

Couraçado de ferro, épico e deslumbrante,

Passa no seu ginete um cavaleiro andante.

E o cavaleiro diz à lágrima irisada:

«Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada!

«Far-te-ei relampejar, de vitória em vitória,

Na Terra Santa, à luz da Fé, ao sol da Glória!

«E à volta há-de guardar-te a minha noiva, ó astro,

Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro.

«E assim alumiarás com teu vivo esplendor

Mil combates de heróis e mil sonhos d’amor!»

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,

Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.

Montado numa mula escura, de caminho,

Passa um velho judeu, avarento e mesquinho.

Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro:

Grandes arcas de cedro, abarrotadas d’oiro.

E o velhinho andrajoso e magro como um junco,

O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco,

Vendo a estrela, exclamou: «Oh Deus, que maravilha!

Como ela resplandece e tremeluz e brilha!

«Com meu oiro em montão podiam-se comprar

Os impérios dos reis e os navios do mar.

«E por esse diamante esplêndido trocara

Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!»

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,

Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.

Debaixo da figueira, então, um cardo agreste,

Já ressequido, disse à lágrima celeste:

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«A terra onde o lilás e a balsamina medra

Para mim teve sempre um coração de pedra.

«Se, a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso,

O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso.

«Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos,

Ouvi trinar, gorjear a música dos ninhos.

«Nunca junto de mim ranchos de namoradas

Debandaram, cantando, em noites estreladas…

«Voa a ave no azul e passa longe o amor,

Porque ai! nunca dei sombra e nunca tive flor!...

«Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota d’água,

Cai na desolação desta infinita mágoa!»

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,

Tremeu, tremeu, tremeu… e caiu silenciosa!…

E algum tempo depois o triste cardo exangue,

Reverdecendo, dava uma flor cor de sangue,

Dum roxo macerado e dorido e desfeito,

Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito…

E ao cálix virginal da pobre flor vermelha

Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!…

[GUERRA JUNQUEIRO – “A LÁGRIMA”]

ANJO: Vedes aqui a pousada

verdadeira e mui segura a quem quer vida.

IGREJA: Oh, como vindes cansada e carregada! 430

ALMA : Venho por minha ventura amortecida.

IGREJA: Quem sois? Pera onde andais? ALMA : Nam sei pera onde vou.

Sou salvagem, 435 sou ũa alma que pecou

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culpas mortais contra o Deos que me criou à sua imagem.

Sou a triste sem ventura, 440

criada resplandescente e preciosa, angélica em fermosura e per natura como raio reluzente 445 lumiosa. E por minha triste sorte e diabólicas maldades violentas, estou mais morta que a morte, 450 sem deporte, carregada de vaidades peçonhentas.

Sou a triste sem mezinha,

pecadora abstinada, 455 perfiosa; pola triste culpa minha mui mesquinha, a todo mal inclinada e deleitosa. 460 Desterrei da minha mente os meus perfeitos arreos naturais; nam me prezei de prudente, mas contente 465 me gozei com os trajos feos mundanais.

Cada passo me perdi;

em lugar de merecer eu sou culpada. 470 Havei piedade de mi, que nam me vi; perdi meu inocente ser e sou danada. E por mais graveza sento 475 nam poder me arrepender quanto queria,

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que meu triste pensamento, sendo isento, nam me quer obedecer 480 como soía.

Socorrei, hóspeda senhora,

que a mão de Satanás me tocou, e sou já de mi tam fora 485 que agora nam sei se avante se atrás nem como vou. Consolai minha fraqueza com sagrada iguaria, 490

que pereço, por vossa santa nobreza que é franqueza; porque o que eu merecia bem conheço. 495

Conheço-me por culpada

e digo diante vós minha culpa. Senhora, quero pousada, dai passada, 500 pois que padeceu por nós quem nos desculpa. Mandai-me ora agasalhar, capa dos desemparados, Igreja madre. 505

IGREJA: Vinde-vos aqui assentar mui devagar, que os manjares são guisados por Deos padre.

Santo Agostinho doutor, 510

Jerónimo, Ambrósio, sam Tomás, meus pilares, servi aqui por meu amor, a qual milhor. E tu, Alma, gostarás 515 meus manjares. Ide à santa cozinha, tornemos esta Alma em si,

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por que mereça de chegar onde caminha 520 e se detinha: pois que Deos a trouxe aqui nam pereça.

Enquanto estas cousas passam, Satanás passea fazendo muitas vascas, e vem

outro e diz: OUTRO: Como andas desassossegado! DIABO: Arso em fogo de pesar! 525 OUTRO: Que houveste? DIABO: Ando tam desatinado

de enganado que nam posso repousar que me preste. 530 Tinha ũa alma enganada, já quasi pera infernal mui acesa.

OUTRO: E quem ta levou forçada? DIABO: O da espada. 535 OUTRO: Já m’ele fez outra tal

bulra como essa. Tinha outra alma já vencida,

em ponto de se enforcar de desesperada, 540 a nós toda oferecida, e eu prestes pera a levar arrastada. E ele fê-la chorar tanto que as lágrimas corriam 545 pola terra. Blasfemei entonces tanto que meus gritos retiniam pola serra.

Mas faço conta que perdi, 550

outro dia ganharei e ganharemos.

DIABO: Nam digo eu, irmão, assi, mas a esta tornarei e veremos. 555 Torná-la-ei a afagar.

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Despois que ela sair fora da Igreja e começar de caminhar, hei de apalpar 560 se venceram ainda agora esta peleja.

Alma com o Anjo.

ALMA : Vós nam me desempareis,

senhor meu Anjo Custódio. Ó incréus 565 imigos, que me quereis, que já sou fora do ódio de meu Deos? Leixai-me já, tentadores, neste convite prezado 570 do senhor, guisado aos pecadores com as dores de Cristo crucificado redentor. 575

Estas cousas estando a Alma assentada à mesa e o Anjo junto com ela em pé,

vem os doutores. Santo Agostinho diz: AGOSTINHO: Vós, senhora convidada,

nesta cea soberana celestial, haveis mister ser apartada e transportada 580 de toda a cousa mundana terreal. Cerrai os olhos corporais, deitai ferros aos danados apetitos, 585 caminheiros infernais, pois buscais os caminhos bem guiados dos contritos.

IGREJA: Benzei a mesa vós, senhor, 590

e pera consolação da convidada

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seja a oração de dor sobre o tenor da gloriosa paixão 595 consagrada. E vós, Alma, rezareis contemplando as vivas dores da senhora. Vós outros respondereis, 600 pois que fostes rogadores até agora.

Oração pera santo Agostinho:

AGOSTINHO: Alto Deos maravilhoso,

que o mundo visitaste em carne humana, 605 neste vale temeroso e lacrimoso tua glória nos mostraste soberana. E teu filho delicado, 610 mimoso da divindade e natureza, per todas partes chagado e mui sangrado pola nossa infirmidade 615 e vil fraqueza.

Ó emperador celeste, Deos alto mui poderoso, essencial, que polo homem que fizeste 620 ofereceste o teu estado glorioso a ser mortal. E tua filha, madre, esposa, horta nobre, frol dos céus, 625 virgem Maria, mansa pomba gloriosa. Oh, quam chorosa quando o seu Deos padecia!

Oh, lágrimas preciosas, 630 do virginal coração

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estiladas, correntes das dores vossas, com os olhos da perfeição derramadas. 635 Quem ũa só pudera ver vira claramente nela aquela dor, aquela pena e padecer com que choráveis, donzela, 640 vosso amor.

E quando vós, amortecida,

se lágrimas vos faltavam, nam faltava a vosso filho e vossa vida 645 chorar as que lhe ficaram de quando orava. Porque muito mais sentia polos seus padecimentos ver-vos tal; 650 mais que quanto padecia, lhe doía e dobrava seus tormentos vosso mal.

Se se pudesse dizer, 655

se se pudesse rezar tanta dor; se se pudesse fazer podermos ver qual estáveis ao clavar 660 do redentor. Ó fermosa face bela, ó resplandor divinal, que sentistes quando a cruz se pôs à vela 665 e posto nela o filho celestial que paristes?

Vendo por cima da gente

assomar vosso conforto 670 tam chagado, cravado tam cruelmente,

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e vós presente, vendo-vos ser mãe do morto e justiçado? 675 Ó rainha delicada, santidade escurecida, quem nam chora em ver morta e debruçada a avogada, 680 a força de nossa vida?

AMBRÓSIO: Isto chorou Jeremias

sobre o monte de Sião há já dias, porque sentiu que o messias 685 era nossa redenção. E chorava a sem ventura, triste de Jerusalém homecida, matando contra natura 690 seu Deos nascido em Belém nesta vida.

Quem vira o santo cordeiro

antre os lobos humildoso, escarnecido, 695 julgado pera o marteiro do madeiro, seu rosto alvo e fermoso mui cuspido!

Agostinho benze a mesa:

AGOSTINHO: A benção do padre eternal, 700

e do filho que por nós sofreu tal dor, e do spírito santo, igual Deos imortal, convidada, benza a vós 705 por seu amor.

IGREJA: Ora sus, venha água às mãos. AGOSTINHO: Vós haveis-vos de lavar

em lágrimas da culpa vossa, e bem lavada. 710

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E haveis-vos de chegar a limpar a ũa toalha fermosa, bem lavrada c’o sirgo das veas puras 715 da virgem sem mágoa nacido e apurado, torcido com amarguras às escuras, com grande dor guarnecido 720 e acabado.

Nam que os olhos alimpeis,

que o nam consentirão os tristes laços, que tais pontos achareis 725 da face e envés que se rompe o coração em pedaços. Vereis seu triste lavrado natural, 730 com tormentos pespontado e figurado Deos criador em figura de mortal.

Esta toalha que aqui se fala é a varónica.

IGREJA: Venha a primeira iguaria. 735 JERÓNIMO: Esta iguaria primeira

foi, senhora, guisada sem alegria em triste dia, a crueldade cozinheira 740 e matadora. Gostá-la-eis com salsa e sal de choros de muita dor, porque os costados do messias divinal, 745 santo sem mal, foram polo vosso amor açoutados.

Page 25: Alma Dramaturgia v2

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Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,

Como quem deixa à porta o saco para o pão.

Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.

O que for, assim seja, à tua mão.

Tua vontade se faça, a minha não. [VITORINO NEMÉSIO – “PRECE”, 1.ª estrofe]

Esta iguaria em que aqui se fala são os açoutes.

JERÓNIMO: Estoutro manjar segundo

é iguaria 750 que haveis de mastigar, em contemplar a dor que o senhor do mundo padecia, pera vos remediar. 755 Foi um tromento improviso, que aos miolos lhe chegou, e consentiu por remediar o siso que a vosso siso faltou; 760 e pera ganhardes paraíso a sofriu.

Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,

Do flanco de teu Filho copiado.

Corre água, tempo e pus no sangue quente:

Outro bem não me é dado.

Tudo e sempre assim seja,

E não o que a alma tíbia só deseja. [VITORINO NEMÉSIO – “PRECE”, 2.ª estrofe]

Esta iguaria segunda de que aqui se fala é a coroa de espinhos.

IGREJA: Venha outra do teor. JERÓNIMO: Estoutro manjar terceiro

foi guisado 765 em três lugares de dor, a qual maior, com a lenha do madeiro mais prezado. Come-se com grã tristura, 770 porque a virgem gloriosa o viu guisar;

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viu cravar com grã crueza a sua riqueza e sua perla preciosa 775 viu furar.

Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,

Que com pontas de fogo o podre se adormenta.

O teu perdão de Pai ainda não pode ser,

Mas lembre-te que é fraca a alma que aguenta:

Se é possível, desvia o fel do vaso:

Se não é, beberei. Não faças caso. [VITORINO NEMÉSIO – “PRECE”, 3.ª estrofe]

E a este passo tira santo Agostinho os cravos. Diz o Anjo à Alma:

ANJO: Leixai ora esses arreos,

que estoutra nam se come assi como cuidais. Pera as almas são mui feos, 780 e são meos com que nam andam em si os mortais.

Despe a Alma o vestido e jóias que lho imigo deu, e diz Agostinho:

AGOSTINHO: Ó Alma bem aconselhada,

que dais o seu a cujo é, 785 o da terra à terra: agora ireis despejada pola estrada, porque vencestes com fé forte guerra. 790

IGREJA: Venha essoutra iguaria. JERÓNIMO: A quarta iguaria é tal,

tam esmerada, de tam infinda valia e contia, 795 que na mente divinal foi guisada. Por mistério preparada no sacrário virginal, mui coberta, 800 da divindade cercada

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e consagrada, despois ao padre eternal dada em oferta.

Apresenta sam Jerónimo à Alma um crucifício.

ALMA : Com que forças, com que spirito 805

te darei, triste, louvores, que sou nada, vendo-te Deos infinito tam aflito, padecendo tu as dores 810 e eu culpada? Como estás tam quebrantado, filho de Deos imortal! Quem te matou? Senhor, per cujo mandado 815 és justiçado, sendo Deos universal que nos criou?

AGOSTINHO: A fruita deste jantar,

que neste altar vos foi dado 820 com amor, iremos todos buscar ao pomar adonde está sepultado o redentor. 825

Minha aldeia na Páscoa… Infância, mês de Abril!

Manhã primaveril!

A velha igreja,

Entre as árvores, alveja,

Alegre e rumorosa

De povo, luzes, flores…

E na penumbra dos altares, cor-de-rosa,

Rasgados pelo sol os negros véus,

Parece até sorrir a Virgem Mãe das Dores.

Ressurreição de Deus!

Domingo da Esperança!

Aleluias fazendo uma outra luz, no ar…

(Os olhos me ficaram de criança.

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Que para mim é ver o recordar).

Sai o Compasso. Em pleno Azul, erguida,

Entre a verde folhagem das uveiras,

Rebrilha a cruz de prata florescida…

Na igreja antiga a rir seu branco riso a cal,

Ébrias de cor, tremulam as bandeiras…

Vede! Jesus lá vai, ao sol de Portugal!

Ei-lo que entra contente nos casais;

E, com amor, visita as rústicas choupanas.

É ele, esse que trouxe aos míseros mortais

As grandes alegrias sobre-humanas!

Lá vai, lá vai, por íngremes caminhos!

Linda manhã, canções de passarinhos!

A campainha toca: aleluia!

Aleluia!

Lá vai o padre e a sua branca estola

E o seu ramo de flores.

E, às portas espalhado, o rosmaninho evola

Um místico perfume de oração.

Velhos trabalhadores,

Por quem sofreu Jesus,

E mães acalentando os filhos, no regaço,

Esperam o Compasso…

E ajoelhando, com séria devoção,

Beijam os pés da Cruz.

E no lúcido espelho da paisagem

Reflecte-se, num sonho, a branca imagem

De Cristo ressurgido… Que mistério!

O sol que nasce, o despertar do vento,

Os soldados brutais do grande Império

Caídos por terra, num deslumbramento!

Madalena, num gesto enlouquecido,

Gritando: eu vi a Deus.

Aleluias de amor subindo além dos céus,

E o milagre, de mundo em mundo, repetido…

[TEIXEIRA DE PASCOAES – excerto de “A MINHA ALDEIA”]