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    Alm das coisas e do imediato:cultura material, Histria imediata e ensino de Histria*Marcos Silva**

    Este artigo reflete sobre algumas possibilidades do Ensino de Histria com o universo da Cultura Material e a Histria Imediata. Ele evoca estas problemticas nos Par-metros Curriculares Nacionais Histria e comenta dois ensaios da coleo Histria da vida privada no Brasil, que lhe so pertinentes.Palavras-chave: Ensino de Histria Cultura material Histria imediata

    Beyond Things and the Immediate. Material Culture, Immediate History and History TeachingThis article reflects on some possibilities in History Teaching concerning Material Culture and Immediate History universes. It evokes these problems in National Curriculum Parameters - History and comments two essays from the book collection History of private life in Brazil which are pertinent to the subject.Keywords: History Teaching Material culture Immediate History

    Au-del des choses et de limmdiat. Culture matrielle, histoire immdiate et enseignement dhistoireCet article est ddi rflchir sur quelques possibilits denseignement dune his-toire centre autour de lunivers de la culture matrielle et de lhistoire immdiate. On voque la faon comme ces problmatiques apparaissent dans les Paramtres

    *Artigo recebido em abril de 2006 e aprovado para publicao em junho de 2006.** O autor livre-docente em Metodologia da Histria pela FFLCH/USP e Professor na mesma instituio. E-mail: [email protected].

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    des Programmes Nationaux/Histoire et on commente aussi deux essais parus dans la collection Histoire de la vie prive au Brsil.Mots-clefs: Enseignement dhistoire Culture matrielle Histoire immdiate

    O ensasmo marxista, desde meados do sculo XIX, interpretou o Ca-pitalismo visando a sua superao. Abordou o fazer-se material da experincia histrica (trabalho, alimentao, sade) como uma de suas problemticas centrais, articulada em relaes de propriedade e poder, e considerou seu presente como Histria.1

    Na passagem para a dcada de 30 do sculo XX, os debates que mar-caram a criao da Escola dos Annales consolidaram um conceito universa-lizante de documento, abarcando vestgios de quaisquer fazeres humanos.2 Artefatos e o prprio corpo de homens e mulheres passaram a ser debatidos como fontes de pesquisa. O olhar dos historiadores foi tambm considerado em relao a experincias de seu presente, como se observa em artigos dedi-cados Economia sovitica, na etapa inicial da revista. Marc Bloch dedicou belas pginas derrota francesa diante da Alemanha nazista e sobre outras questes do panorama internacional contemporneo.3

    Jacques Le Goff e Pierre Nora incluram, na trilogia Faire de lHistoire continuadora da tradio da Escola dos Annales e manifesto inaugural da Nova Histria francesa4 , alguns ensaios que abordavam a historicidade a partir de experincias ligadas materialidade da Cultura, como os textos de Andr Leroi-Gourhan, Henri Moniot, Alain Schnapp, Andr Burguire, Henri Zerner, Jacques Revel/Jean-Pierre Peter e Jean-Paul Aron. As reflexes metodolgicas de Pierre Nora e Pierre Vilar, dentre outras, incidiram tambm sobre o imediato.

    1 Friedrich Engels, Situao da classe trabalhadora em Inglaterra, Porto, Afrontamento, 1975; Karl Marx, O Capital Crtica da Economia Poltica (Traduo de Rgis Barbosa e Flvio Kothe), So Paulo, Nova Cultural, 1988.2 Marc Bloch, Apologia da Histria ou O ofcio do Historiador, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002; Lucien Febvre, Combates pela Histria, Lisboa, Presena, 1977.3 Marc Bloch, L trange dfaite, Saint-Amand, Gallimard, 1990 (Folio Histoire 27), 1 ed. 1946.4 Jacques Le Goff e Pierre Nora (dirs.), Histria Novos Problemas, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976; Idem, Histria Novas Abordagens. Traduo de Henrique Mesquita. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976; Idem, Histria Novos Objetos, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976.

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    Os debates da Nova Histria francesa retomaram tradies clssicas de pesquisa, representadas, no caso da Cultura Material, principalmente por Arqueologia e Histria da Arte, sem esquecer de Histria Local e Histria dos Costumes. Ao mesmo tempo, redirecionaram estas tradies: a Arqueologia tendia, antes, a ser encarada como adequada para as sociedades que legaram uma documentao escrita escassa, quando no eram grafas; ela priorizou, durante bom tempo, o objeto de cunho artstico; a Histria da Arte tendeu a ser isolada num plano de elevada espiritualidade da Cultura, vida de grandes artistas e aos estilos considerados mais marcantes; e as Histrias Local e dos Costumes eram freqentemente ligadas a setores menores da experincia. Num sentido similar, o trabalho da pesquisa histrica com sua contempora-neidade evidenciou o peso atribudo s relaes entre passado e presente.5

    Quando aqueles Historiadores rediscutiram esses universos, driblaram as hierarquias da erudio clssica e suas compartimentaes. Tenderam, ain-da, a deixar de lado projetos polticos explcitos, centrais no vis marxista, o que se consolidou com a queda do bloco sovitico, nos anos 80 e 90 do sculo XX, e o argumento ideolgico do fim da Histria.6 Apesar disto, muitas das questes debatidas pela tradio marxista continuaram a ser valorizadas e a Histria Social inglesa, de heterodoxa inspirao marxista, deu grande destaque ao de grupos populares e ao seu cotidiano, a mltiplos suportes documentais e ao dilogo presente/passado.7

    Os debates sobre Cultura Material e Histria Imediata tornaram-se referncias clssicas, tanto para a Pesquisa acadmica como para o Ensino fundamental e mdio de Histria. Nos Parmetros Curriculares Nacionais Histria, tais vnculos foram evocados a partir da Nova Histria francesa e da Histria Social inglesa, mesmo que de forma ligeira, alm de enfatizar pouco, ou sequer registrar, a importncia de se problematizar o presente de que se fala historicamente. Correu-se o risco de reduzir o trabalho com Cultura Material ao arrolamento de diferentes artefatos, sem pensar sobre sua situao num mundo de homens e mulheres que se relacionam atravs de smbolos e poderes e se fazem por diferentes vias. O Imediato surgiu, por vezes, como

    5 Jean Lacouture, A Histria Imediata, Jacques Le Goff et al., A Histria, So Paulo, Martins Fontes, 1990, p. 215-240; Jacques Le Goff, Passado/Presente, Jacques Le Goff et al., Histria e Memria, Campinas, Editora UNICAMP, 2003, p. 207-233.

    6 Francis Fukuyama, O fim da Histria e o ltimo homem, Rio de Janeiro, Rocco, 1992.7 Edward Thompson, Formao da classe operria inglesa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; Raphael Samuel (org.), Historia popular y Teora socialista, Barcelona, Crtica, 1984.

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    motivao pedaggica ou instncia comparativa. Verso mais recente daquele documento oficial, dedicada ao Ensino mdio, diminuiu tais deficincias, embora o Marxismo ainda seja abordado apenas a partir do sculo XX.8

    No plano da Histria Imediata, muitos exemplos de Cultura Material se encontram na prpria sala de aula e nos corredores e arredores da escola: corpos humanos, roupas, mveis, equipamentos esportivos, alimentos... Esta amostragem ainda restrita, considerando-se a infinidade de outras experi-ncias que lhe so contemporneas. O Conhecimento Histrico ganha muito quando incorpora o imediato em seu universo, mas perde mais se ficar restrito a este mundo, como presente contnuo. Um de seus objetivos pode ser sair deste crculo vicioso, permitindo a compreenso de experincias sociais em diferentes temporalidades.

    A Cultura Material, associada s outras problemticas de conhecimento histrico, encontra mltiplos itens para reflexo em museus. Mesmo livros didticos convencionais costumam apresentar fotografias e desenhos sobre alguns tpicos pertinentes rea, embora os explorem pouco. E o Patrimnio Histrico edificado ou disperso em diferentes fazeres e saberes contm inestimveis elementos para a discusso daquele universo. A Histria Imediata, por sua vez, oferece um torrencial de possibilidades temticas e documentais, a partir de seu trabalho com os processos histricos em andamento. Seu de-safio maior a identificao de agentes sociais e suportes documentais mais significativos para diferentes questes.

    Discutirei aspectos da Cultura Material e da Histria Imediata a partir de dois ensaios editados numa srie de livros do final do sculo XX, pensan-do sobre possveis articulaes entre eles e a Cultura Histrica do Ensino. A coleo Histria da vida privada no Brasil inclui alguns escritos que abordam o universo da produo material do cotidiano. Exemplo de ponta da Histo-riografia brasileira na passagem para o sculo XXI, a srie uma importante referncia para o Ensino de Histria em diferentes graus, que dialoga com suas questes na definio de currculos. O passado mais recente (ou mesmo o Imediato dos Historiadores que a escreveram) se apresenta de forma mais palpvel no ltimo volume da srie, embora questes de diferentes momentos possam servir de referncia para refletir sobre prticas sociais do presente.

    8 Parmetros Curriculares Nacionais / Histria, Terceiro e quarto ciclos do Ensino fundamental, Braslia, MEC/SEF, 1998; Parmetros Curriculares Nacionais PCN Ensino mdio, Braslia, MEC/SEMTEC, 2002.

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    A opulncia na provncia da Bahia, de Katia M. de Queirs Mattoso,9 articula a riqueza no sculo XIX com outras experincias sociais (o contra-ponto da pobreza, o aspecto fantasmagrico de algumas manifestaes de suntuosidade). A autora indica como fonte de inspirao o livro A Bahia no