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Mecânica Analítica II Mecânica Hamiltoniana e uma introdução a sistemas dinâmicos Prof. Alysson F. Ferrari sites.google.com/site/alyssonferrari 20 de janeiro de 2011

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Mecânica Analítica IIMecânica Hamiltoniana e uma introdução a sistemas dinâmicos

Prof. Alysson F. Ferrarisites.google.com/site/alyssonferrari

20 de janeiro de 2011

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Estas notas são essencialmente um resumo das aulas da disciplina e não cons-tituem uma fonte de referência completa sobre os temas abordados, não subs-tituindo assim a leitura da bibliografia recomendada. Em particular, poucaatenção é dada para o rigor matemático da apresentação. Exemplos repre-sentativos são muitas vezes usados para motivar conclusões gerais, sem umaargumentação completa. Referências específicas à bibliografia da disciplinasão eventualmente feitos, mas na maioria dos casos, subentende-se que o es-tudante complemente os comentários e exemplos aqui expostos com uma lei-tura da fonte que lhe parecer mais conveniente.Esta é uma versão ainda preliminar destas notas, portanto não divulgue estematerial sem comunicar ao autor.

Bibliografia Básica:

• S. Thornton, J.B. Marion, Classical Dynamics of Particle and Systems.

• N.A. Lemos, Mecânica Analítica.

• L.D. Landau, E.M. Lifshitz, Mecânica.

• H. Goldstein, C. Pole, J. Safko, Classical Mechanic.

Bibliografia Adicional:

• A. O. Lopes, Introdução à Mecânica Clássica.

• R.K. Symon, Mecânica.

• H.C. Corben, P. Stehle, Classical Mechanics.

• D.Kleppner e R. Kolenkow, An Introduction to Mechanics

• J.R. Taylor, Classical Mechanics

Alysson Fábio Ferrarisites.google.com/site/alyssonferrari

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Sumário

1 Introdução / Motivação 71.1 Formulação Newtoniana da Mecânica Clássica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71.2 Formulação Lagrangiana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121.3 Alguns conceitos e métodos de Equações Diferenciais Ordinárias . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

2 Mecânica Hamiltoniana: Equações Canônicas 272.1 A função Hamiltoniana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272.2 A Dinâmica em termos da Função Hamiltoniana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

3 Princípios Variacionais no Espaço de Fase 513.1 A ação como funcional e como função no espaço de fase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 513.2 O Princípio de Hamilton no Espaço de Fase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 553.3 O Princípio de Maupertius . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

4 Transformações Canônicas 634.1 Transformações de Coordenadas em Mecânica Lagrangiana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 634.2 Transformações de Coordenadas em Mecânica Hamiltoniana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 644.3 Transformações Canônicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

5 Parêntesis de PoissonTeorema de Liouville e de Poincaré 755.1 Parêntesis de Poisson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 755.2 A Mecânica Hamiltoniana em Termos dos Parêntesis de Poisson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 785.3 Parêntesis de Poisson e Transformações Canônicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 855.4 A Evolução Temporal como Transformação Canônica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 915.5 Teorema de Liouville . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

6 Teoria de Hamilton-Jacobi 976.1 Teoria de Hamilton-Jacobi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 976.2 A Equação de Hamilton-Jacobi e a Óptica Geométrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1046.3 A Teoria de Hamilton-Jacobi e a Mecânica Quântica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1096.4 Parêntesis de Poisson e Mecânica Quântica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1116.5 Invariantes Adiabáticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114

5

Page 6: Allison analitica

6 SUMÁRIO

Page 7: Allison analitica

Capıtulo 1Introdução / Motivação

1.1 Formulação Newtoniana da Mecânica Clássica

É suposto que o estudante já tenha familiaridade com as Formulações Newtoniana e Lagrangiana da MecânicaClássica. Iremos revisar alguns de seus princípios básicos e, neste processo, vamos introduzir e revisar algumalinguagem matemática e alguns métodos de resolução de equações diferenciais que talvez o estudante já tenhaaprendido em outras disciplinas.

A Formulação Newtoniana da Mecânica Clássica é baseada em três leis fundamentais descobertas porIsaac Newton no século XVII.

• 1ª Lei: Na ausência de forças externas, um corpo permanece em repouso ou em movimento com velocidade constante.

⇒ essencialmente, incorpora o chamado princípio de inércia, já anteriormente descoberto por GalileuGalilei

• 2ª Lei: A aceleração de uma partícula é diretamente proporcional à força total exercida sobre ela, e inversamenteproporcional a sua massa.

– Por inércia, um corpo tem seu estado de movimento inalterado (aceleração nula) a menos que hajainteração com algum outro corpo. O conceito de força representa matematicamente esta interação.

– Para fixar ideias, consideremos uma partícula com massa constante, em 1D. Sua posição é dada poruma função x (t).A força em geral é função da posição x (t), da velocidade x (t) e do tempo t:

F = F (x (t) , x (t) , t)

A 2ª Lei de Newton escreve-se, matematicamente

mx (t) = F (x (t) , x (t) , t)

Trata-se de uma equação diferencial ordinária (EDO) de 2ª ordem no tempo.– A 2º Lei de Newton nos informa portanto que a dinâmica de partículas clássicas é dada por EDOs de 2ª

ordem no tempo.– Por simplicidade, de ora em diante vamos supor que as forças não dependem de velocidade.

• 3ª Lei: Se um corpo A exerce sobre o corpo B uma certa força ~F, então no mesmo instante de tempo o corpo B exercesobre A uma força contrária igual a −~F⇒ essencialmente, leva à conservação de momento linear e angular para um sistema de partículas

7

Page 8: Allison analitica

8 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO / MOTIVAÇÃO

Exemplo 1. Massa presa a uma mola

• A equação de movimento para uma massa presa a uma mola escreve-se

x (t) =1m

F (x (t)) =1m

(−kx (t))⇒ x (t) +km

x (t) = 0

• Trata-se de uma equação diferencial ordinária linear e de 2ª ordem. Isso significa que existe uma soluçãogeral que depende de duas (por ser de 2ª ordem) constantes arbitrárias, A e B:

x (t) = A sin

(√km

t

)+ B cos

(√km

t

).

Qualquer solução da EDO tem necessariamente a forma acima, o que muda são apenas os valores de Ae B (é isto que significa o nome solução geral).

• Para determinar completamente a solução, temos que fixar A e B. Para tanto, necessitamos de duascondições iniciais: usualmente, x (t0) = x0 e x (t0) = v (t0) = v0.

• Supondo t0 = 0:

x (0) = B = x0

x (t) = A

√km

cos

(√km

t

)− B

√km

sin

(√km

t

)

⇒ x (0) = A

√km

= v0

⇒ A =

√mk

v0

logo:

x (t) =√

mk

v0 sin

(√km

t

)+ x0 cos

(√km

t

)

• Consideremos um sistema de N partículas. Cada uma é localizada pelo vetor posição

~ri (t) = xi (t) x + yi (t) y + zi (t) z .

Para cada partícula vale a 2ª Lei de Newton:

~r1 (t) =1

m1~F1 (~r1 (t) ,~r2 (t) , . . . ,~rN (t) , t)

~r2 (t) =1

m1~F2 (~r1 (t) ,~r2 (t) , . . . ,~rN (t) , t)

...

~rN (t) =1

m1~FN (~r1 (t) ,~r2 (t) , . . . ,~rN (t) , t)

Page 9: Allison analitica

1.1. FORMULAÇÃO NEWTONIANA DA MECÂNICA CLÁSSICA 9

São N equações vetoriais. Cada uma implica em três equações escalares:

~ri =1

mi~Fi →

xi (t) = 1

miFix (xi (t) , yi (t) , zi (t) , t)

yi (t) = 1mi

Fiy (xi (t) , yi (t) , zi (t) , t)zi (t) = 1

miFiz (xi (t) , yi (t) , zi (t) , t)

São portanto um total de 3N equações. Concluímos:

2ª Lei de Newton ⇒ um sistema físico de N partículas é descrito por 3N equações diferenciaisordinárias de 2ª ordem no tempo

• Estas 3N equações determinam completamente a dinâmica do sistema conforme o tempo passa.

• Como as EDOs são de 2ª ordem no tempo, é preciso conhecer 2× 3N = 6N condições iniciais para encon-trar uma solução única. Tipicamente: 3N posições iniciais e 3N velocidades iniciais.

Sistemas mecânicos com vínculos

A formulação Newtoniana geralmente não é a mais adequada quando existem vínculos. Vejamos alguns exem-plos:

Exemplo 2. N partículas sobre um plano

Sejam N partículas cujo movimento está restrito a um determinado plano. Escolhemos o referencial de talforma que este plano coincida com o eixo xy do referencial. Todas as N equações de movimento para os zi sãoresolvidas trivialmente por zi (t) = 0; desta forma, restam apenas

3N − N = 2N

equações envolvendo os xi e yi a resolver. Neste caso, os vínculos zi = 0 reduzem o número de variáveisindependentes, e houve uma redução do problema tridimensional para um problema bidimensional.

Exemplo 3. Pêndulo duplo num plano vertical fixo

Inicialmente, temos 6 variáveis: x1, y1, z1, x2, y2, z2.Temos quatro vínculos independentes:

y1 = 0 ; y2 = 0

x21 + z2

1 = `21 ; (x1 − x2)

2 + (z1 − z2)2 = `2

2

Dois vínculos eliminam as variáveis y1 e y2 trivialmente. Pode-mos, em princípio, usar as outras duas equações para, por exemplo,eliminar z1 e z2 em termos de x1 e x2, ficando estas duas como úni-cas variáveis independentes. Ou seja, vale novamente a contagem:

6 variáveis − 4 vínculos = 2 variáveis independentes

Isso significa que é possível descrever toda a evolução do sis-tema com apenas duas variáveis, que podem ser x1 e x2, por exemplo.

Contudo, outra descrição possível, e geometricamente mais natural, é adotar os dois ângulos θ1 e θ2 comovariáveis independentes. Em termos destas variáveis, não se precisa sequer falar em vínculos, pois estes estão

Page 10: Allison analitica

10 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO / MOTIVAÇÃO

automaticamente levados em conta na própria interpretação de θ1 e θ2 como os ângulos representados. θ1 e θ2especificam completamente o estado do sistema e podem variar independentemente, sem restrição. Contudo,como não são variáveis cartesianas, não sabemos de antemão quais são as equações de movimento, pois asequações de Newton são dadas em coordenadas cartesianas.

Exemplo 4. Pêndulo simples

Vamos mostrar como se resolve um problema mecânico com vínculosusando o formalismo de Newton. Vamos considerar o pêndulo simples.

Pela contagem de variáveis, temos: 3 variáveis inicialmente (x, y, z),sujeitas a dois vínculos,

y = 0 ; x2 + z2 = `2

logo esperamos que o sistema seja descrito por uma única variável inde-pendente.

A equação de Newton escreve-se

m~r (t) = m~g + ~T

onde aparece uma força de vínculo ~T. Esta força não é conhecida de antemão, o que é um obstáculo na resoluçãoda equação acima.

Para evitar o problema, deve-se projetar a equação de Newton na direção tangencial ao vínculo, onde nãoaparece a força ~T. Este é um problema geométrico, que neste caso em particular, pode ser facilmente resolvido.

Daí, a projeção da equação de Newton na direção tangencial escreve-se

m`θ (t) = −mg sin θ (t)⇒ θ (t) +g`

sin θ (t) = 0

que é uma EDO de 2ª ordem envolvendo unicamente a função θ (t).Esta equação pode ser resolvida em princípio, conhecendo-se as condições iniciais θ (t0) e θ (t0). Obtemos

assim a função θ (t). A partir dela, podemos determinar as posições,{x (t) = ` sin θ (t)z (t) = ` cos θ (t)

bem como a força de vínculo,~T (t) = mg cos θ (t)

~rr

.

Page 11: Allison analitica

1.1. FORMULAÇÃO NEWTONIANA DA MECÂNICA CLÁSSICA 11

Ou seja, a força de vínculo é obtida após a solução do problema. Neste caso, a geometria era simples o suficientepara que esta dificuldade fosse facilmente sobrepujada. Vejamos no próximo exemplo que nem sempre éassim.

Exemplo 5. Uma conta deslizando, sem atrito, sobre um fio de metal

Um problema que parece muito simples à primeira vista mas que naprática é terrivelmente difícil de tratar usando a mecânica de Newton:considere uma conta deslizando, sem atrito, sobre um fio de metal curvo.

Neste caso, as forças de vínculo variam de direção ponto a ponto (sãosempre perpendiculares ao fio), e escrever as condições de vínculo torna-se bastante difícil. A condição pode ser verbalmente dita da seguinte ma-neira: o comprimento do menor segmento de linha perpendicular ao fio e passandopela conta é nulo. Não é simples escrever um conjunto de equações que re-presente esta condição.

Claramente, contudo, o movimento pode ser descrito por uma únicavariável: s (t), a distância, ao longo da linha, desde um ponto inicial arbitrário. Isso significa que existemduas equações de vínculo no problema, que reduzem o movimento tridimensional da conta a um movimentodescrito por uma única variável independente.

Seguindo o espírito da 2ª Lei de Newton, o movimento da conta deve ser regido por uma equação diferencialde 2ª ordem envolvendo s (t). Obter esta equação, contudo, não é simples dada a geometria complicada doproblema.

• Dos exemplos vistos, sugerem-se algumas conclusões, que são discutidas em mais detalhes na bibliogra-fia do curso (ver em particular a seção 1.2 de LEMOS, N.A.).

• Para vínculos que envolvem apenas as coordenadas do problema e do tempo, i.e., expressões da forma,

f (~ri, t) = 0

valem as seguintes conclusões gerais:

• A presença de vínculos implica na redução no número de variáveis necessárias para descre-ver um sistema.

– Para um sistema com N partículas, inicialmente descrito por 3N variáveis, apresença de p vínculos relacionando estas variáveis reduz o número de variá-veis independentes para 3N − p.

– Neste caso, portanto, após projetar as forças e acelerações sobre os vínculos,encontraremos 3N − p equações de movimento.

• Pode-se encontrar, em geral, um conjunto de variáveis que descrevem completamente osistema, e que podem variar independentemente, sem estarem sujeitas a qualquer vínculo.Tais variáveis, contudo, em geral não são cartesianas.

• A mecânica clássica Newtoniana está naturalmente definida em coordenadas cartesianas. Para lidarcom problemas que envolvem vínculos, é desejável uma formulação em que se tenha a liberdade deadotar coordenadas não-cartesianas para descrever o sistema, de tal forma que seja possível encontrarfacilmente as equações de movimento para tais coordenadas.

Page 12: Allison analitica

12 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO / MOTIVAÇÃO

• Outros tipos de vínculo, que também envolvem velocidades, da forma geral

f(~ri,~ri, t

)= 0

também podem ser considerados com as ferramentas adequadas, mas não é nosso interesse tratar dissoaqui. Sempre que nos referimos a vínculos nesta aula, estamos nos referindo a vínculos que nãodependem de velocidades.

1.2 Formulação Lagrangiana

• A mecânica de Newton está baseada em vetores. A formulação Lagrangiana da mecânica baseia-se numafunção escalar, a Lagrangiana.

• Dada a Energia Cinética

K(~ri)=

N

∑i=1

12

mi(~ri)2

e a Energia Potencial U (~ri, t), define-se a Função Lagrangiana como

L(~ri,~ri, t

)= K

(~ri)−U (~ri, t) .

• O princípio que vai fornecer as equações da dinâmica é o Princípio de Hamilton, que é um princípiovariacional.

Princípio de HamiltonDada uma configuração inicial ~r1 (t0) = ~r1i, ~r2 (t0) = ~r2i,..., e uma configuração final~r1(t f)=~r1 f ,~r2

(t f)=~r2 f ,..., de um sistema mecânico de N partículas, de todas as possí-

veis trajetórias~r1 (t),~r2 (t),..., tais que~r` (t0) =~r`i e~r`(t f)=~r` f , a trajetória efetivamente

seguida pelo sistema é aquela em que o valor da integral

ˆ t f

t0

L(~r`,~r`, t

)dt =

ˆ t f

t0

[K(~r`)−U (~r`, t)

]dt

é mínimo.

• Uma condição necessária, mas não suficiente, para que o valor da integral´Ldt seja mínimo para uma

dada trajetória, é que´Ldt seja extremal para esta trajetória. Esta condição implica que as funções~r1 (t),

~r2 (t),..., solução para o problema mecânico segundo o princípio de Hamilton, obedecem a um conjuntode equações chamadas de Equações de Euler-Lagrange, que em nossa notação atual se escreveriam:

ddt

∂L∂xi− ∂L

∂xi= 0

ddt

∂L∂yi− ∂L

∂yi= 0

ddt

∂L∂yi− ∂L

∂yi= 0

Page 13: Allison analitica

1.2. FORMULAÇÃO LAGRANGIANA 13

Trata-se de um conjunto de 3N equações diferenciais de 2ª ordem no tempo. Pode-se mostrar que taisequações são sempre equivalentes às equações de Newton.

Interlúdio: Noções de cálculo variacional

O que significa que uma dada trajetória “extremiza” a integral?Consideremos, por simplicidade, um problema unidimensional, que é descrito por uma única variável –

uma função x (t). Fixamos x0 = x (t0) e x f = x(t f).

Seja uma caminho x (t) tal que x0 = x (t0) e x f = x(t f). Queremos comparar a diferença entre o valor

da integral´Ldt para o caminho x (t) e um caminho “muito próximo” a x (t), como na figura. Se a diferença

entre o valor da integral´Ldt entre os dois caminhos for nulo, em primeira aproximação, diz-se que a integral

é extremal para a função x (t), ou que a função x (t) extremiza a integral.Para isso, vamos comparar x (t) com x (t) + η (t), onde η (t) é uma função “bem comportada” tal que

|η (t)| e |η (t)| são “muito pequenos” para t ∈[t0, t f

]. Como os pontos extremos estão fixados, impomos que

η (t0) = η(t f)= 0. Veja a figura abaixo:

Queremos calcular

δ

ˆ t f

t0

L (x (t) , x (t) , t) dt

≡ˆ t f

t0

L (x (t) + η (t) , x (t) + η (t) , t) dt−ˆ t f

t0

L (x (t) , x (t) , t) dt

=

ˆ t f

t0

[∂L∂x

η +∂L∂x

η

]dt

=

ˆ t f

t0

[∂L∂x− d

dt∂L∂x

]ηdt +

∂L∂x

η

∣∣∣∣t f

t0

O último termo se anula pois η (t0) = η(t f)= 0. Como η é uma função arbitrária (salvo as condições já

impostas de “suavidade”), a única forma de anular a integral da última linha é se o integrando é identicamentenulo, ou seja:

δ

ˆ t f

t0

L (x (t) , x (t) , t) dt = 0 ⇔ ∂L∂x− d

dt∂L∂x

= 0

Daí vem a equação de Euler-Lagrange, satisfeita pela função x (t) que extremiza a integral´Ldt.

O Princípio de Hamilton diz que a variação δ´Ldt é nula quando x (t) é a solução do problema mecânico

considerado.

Page 14: Allison analitica

14 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO / MOTIVAÇÃO

Exemplo 6. “Descobrindo” a solução do movimento uniformemente variado

• Considere um sistema unidimensional que se move sob a ação de uma força constante f0

L (x (t) , x (t) , t) =12

m [x (t)]2 + f0x (t)

Vamos supor que a solução do problema seja da forma genérica

x (t) = αt + βtγ

Fixamos os pontos iniciais e finais do movimento: x (0) = 0 e x (τ) = `. Desta última condição:

x (τ) = ατ + βτγ = ` ⇒ α =`− βτγ

τ

e portanto

x (t) =(`− βτγ

τ

)t + βtγ .

Variando β e γ temos uma família de funções que passam pelos pontos inicias e finais fixados.

τ = 1s, ` = 1m, β ∈ [0, 1] , γ ∈ [0.5, 5]

• Conhecendo x (t), substituímos em L (x (t) , x (t) , t)

L (x (t) , x (t) , t) =12

m(

βγtγ−1 +`− βτγ

τ

)2

+ k(

βtγ +t (`− βτγ)

τ

)e calculamos a integral em questão, obtendo uma expressão que vamos entender como uma função de βe γ:

f (β, γ) =

ˆ τ

0L (x (t) , x (t) , t)

=k2

τ

(`− β(γ− 1)τγ

γ + 1

)+

m2τ

(`2 +

β2(γ− 1)2τ2γ

2γ− 1

)• Escolhendo k, m e τ com valores unitários, podemos fazer um gráfico de f (β, γ):

Page 15: Allison analitica

1.2. FORMULAÇÃO LAGRANGIANA 15

• Não é elementar encontrar o ponto de mínimo deste gráfico. Para os valores citados acima, podemosprocurar numericamente os valores de β e γ onde se localiza o mínimo, usando para tal qualquer pacotede cálculo numérico disponível. Os valores encontrados, neste caso, são: β = 0.5 e γ = 2.0.

• Ou seja, “descobrimos” pelo princípio de Hamilton que a solução para um problema de força constanteé da forma

x (t) =(`− βτγ

τ

)t +

12

t2,

que é justamente o que esperaríamos da conhecida expressão x (t) = x0 + v0t + 12

f0m t2.

Exemplo 7. Oscilador Harmônico em 1D: variáveis não-usuais

• Considere a Lagrangiana para um oscilador harmônico unidimensional,

L (x (t) , x (t)) =12

m [x (t)]2 − 12

k [x (t)]2

Equação de Euler-Lagrange: mx (t) + kx (t) = 0. A solução pode ser facilmente encontrada:

x (t) = A cos

(√km

t + B

)

• Suponha que, por alguma razão, queiramos descrever o problema usando uma coordenada q definidacomo:

q = x2

Então:x =√

q ; x =1

2√

qq

O Lagrangiano escrito nas coordenadas q:

L (q, q) =18

mq2

q− 1

2kq

Page 16: Allison analitica

16 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO / MOTIVAÇÃO

Equações de Euler-Lagrange nas coordenadas q:

∂L∂q

= −18

mq2

q2 −12

k ;ddt

[∂L∂q

]=

ddt

[14

mqq

]=

14

mqq− 1

4m

q2

q2

⇒ q− 12

q2

q+ 2

km

q = 0

• Claramente, esta transformação de variáveis complica substancialmente a equação de movimento. Con-tudo, para fins puramente didáticos, podemos verificar que

q (t) = x2 (t) = C cos2

(√km

t + D

)é uma solução da equação acima. Ou seja, as soluções encontradas nas variáveis Q correspondem àsmesmas soluções encontradas na variável q, apenas sendo mapeadas pela mudança de coordenadasque adotamos. É neste sentido que dizemos que a mecânica Lagrangiana é invariante sob transformações decoordenadas.

Coordenadas Generalizadas

• A liberdade de se mudar variáveis em mecânica Lagrangiana sugere a definição de coordenadas generali-zadas.

• Seja um sistema de N partículas sujeitas a p vínculos que só dependem de posição e do tempo,

f1 (~r1,~r2, . . . ,~rN , t) = 0...

fp (~r1,~r2, . . . ,~rN , t) = 0

então os p vínculos podem ser usados para eliminar p das 3N variáveis cartesianas originais que descre-vem o sistema, restando 3N − p variáveis independentes necessárias para descrever a configuração dosistema.

Lembramos que não vamos considerar aqui vínculos que dependem de velocidades: estes podem sertratados no formalismo Lagrangiano usando multiplicadores de Lagrange, tema que não nos interessaabordar nesta disciplina.

• Como vimos nos exemplos, muitas vezes queremos usar 3N − p variáveis para descrever o sistema quenão são um subconjunto das 3N variáveis cartesianas originais, podendo ser em geral variáveis não-cartesianas, como ângulos por exemplo.

Na formulação Lagrangiana, podemos escolher qualquer conjunto de 3N − p coordenadas generalizadas,com a condição que a especificação destas 3N − p coordenadas especifica univocamente a posição decada partícula do sistema, e que elas possam variar independentemente, sem nenhum vínculo adicio-nal.

• Sejam assim as 3N − p coordenadas generalizadas,

q1 = q1 (~r1,~r2, . . . ,~rN , t)...

q3N−p = q3N−p (~r1,~r2, . . . ,~rN , t)

Page 17: Allison analitica

1.2. FORMULAÇÃO LAGRANGIANA 17

que podemos representar como uma matriz coluna de 3N − p componentes:

q (t) =

q1q2...

q3N−p

Por princípio, deve ser possível inverter estas relações, escrevendo cada posição~ri em termos das coor-denadas generalizadas,

~r1 =~r1(q1, q2, . . . , q3N−p, t

)...

~rN =~rN(q1, q2, . . . , q3N−p, t

)Desta forma, podemos re-escrever o Lagrangiano do sistema em coordenadas generalizadas,

L (qi, qi) = K (q)−U (q, t)

• A vantagem fundamental do princípio dinâmico da Mecânica Lagrangiana – o Princípio de Hamilton– é que ele pode ser diretamente “traduzido” para coordenadas generalizadas, diferentemente do queacontece com as leis de Newton, por exemplo.

Definindo a ação associada a um dado caminho q (t) que vai de uma configuração inicial q0 até umaconfiguração final q f pela integral

S [q (t)] =ˆ t f

t0

L (q, q, t) dt ,

o Princípio de Hamilton pode ser enunciado da seguinte forma:

Princípio de Hamilton

(em coordenadas generalizadas)

Dada uma configuração inicial q (t0) = q0 e uma configuração final q(t f)= q f , com

i = 1, . . . , 3N − p, de um sistema mecânico de N partículas, de todas as trajetórias q (t)tais que q (t0) = q0 e q

(t f)= q f , a trajetória efetivamente seguida pelo sistema é aquela

em que o valor da ação S [q (t)] é mínimo.

Do Princípio de Hamilton, obtêm-se as equações de Euler-Lagrange em coordenadasgeneralizadas:

∂L∂qi− d

dt∂L∂qi

= 0

para i = 1, . . . , 3N − p.

Exemplo 08 - O Pêndulo SimplesDa geometria do pêndulo simples (veja exemplo 4), é claro que podemos adotar como coordenada genera-

lizada o ângulo θ (t).

Page 18: Allison analitica

18 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO / MOTIVAÇÃO

A velocidade é sempre perpendicular à direção da haste, e tem módulo `θ (t). Daí, a Lagrangiana pode serfacilmente reescrita em termos de θ (t) e θ (t),

L(~r,~r, t

)=

12

m~r2 −mgz (t)

=12

m`2θ2 −mg` cos θ

A equação de Euler-Lagrange fornece imediatamente:

∂L∂θ

= mg` sin θ ;ddt

[∂L∂q

]= m`2θ

⇒ m`2θ −mg` sin θ = 0

⇒ θ − g`

sin θ = 0

No formalismo Lagrangiano, obtemos imediatamente as equações de movimento, o que, no formalismoNewtoniano, exige uma projeção de forças e acelerações nas direções dos vínculos.

Espaço de Configuração

• Adotamos como coordenadas generalizadas qi (t) um conjunto mínimo de variáveis que especifica a po-sição de cada partícula do sistema considerado num dado instante do tempo. O espaço das coordenadas{qi (t)} é chamado de espaço de configuração. Sutilezas matemáticas à parte, é um espaço onde atribuí-mos um eixo coordenado a cada coordenada generalizada qi. Desta forma, em determinado instante dotempo, a posição de cada componente do sistema mecânico está completamente determinada por umponto no espaço de configuração.

• Conforme o tempo passa, este ponto vai se mover, desenhando uma trajetória. Esta trajetória é a repre-sentação matemática, no espaço de configuração, da evolução temporal do sistema.

• Uma particularidade do espaço de configuração, cujas implicações ficarão mais claras na próxima seção(e muito mais claras no capítulo ??), é que as equações dinâmicas são de 2ª ordem no tempo. Por isso,de um mesmo ponto do espaço de configuração, podem partir diferentes trajetórias, correspondendo acondições iniciais com configuração idêntica (mesmo qi), mas diferentes velocidades iniciais (diferentes qi).

Page 19: Allison analitica

1.3. ALGUNS CONCEITOS E MÉTODOS DE EQUAÇÕES DIFERENCIAIS ORDINÁRIAS 19

Exemplo 8. O Espaço de Configuração do Pêndulo

• Para o pêndulo simples, o espaço de configuração é o segmento [−π, π] da reta real. O espaço de confi-guração é 1D, apesar do movimento real ser em duas dimensões, devido à existência de um vínculo.

• Para o pêndulo duplo, o espaço de configuração é um subconjunto do plano:

{q1, q2 ; q1 ∈ [−π, π] , q2 ∈ [−π, π]}

Na verdade, como fisicamente a configuração especificada por qi = π e qi = −π são idênticas, temosque identificar os lados opostos da figura acima, à direita. Isto significa que, para o pêndulo duplo, oespaço de configuração na verdade é um toro bidimensional.

1.3 Alguns conceitos e métodos de Equações Diferenciais Ordinárias

Faremos agora um interlúdio para discutir alguns detalhes de uma ferramenta matemática essencial para adiscussão da Mecânica Clássica: a resolução de equações diferenciais ordinárias.

Page 20: Allison analitica

20 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO / MOTIVAÇÃO

Sistemas de Equações Diferenciais de 1ª Ordem

• Para fixar ideias, vamos considerar um sistema de duas equações diferenciais ordinárias, mas os resulta-dos aqui enunciados são de validade geral.

• Um sistema de equações diferenciais ordinárias de 1ª ordem no tempo é da forma geral:

x (t) = F (x (t) , y (t) , t)y (t) = G (x (t) , y (t) , t)

Se as funções F e G não dependem explicitamente do tempo, o sistema é dito autônomo.

• Um problema de valor inicial consiste num sistema de equações diferenciais ordinárias, mais uma condiçãoinicial x (t0) = x0, y (t0) = y0. A solução de um problema de valor inicial é garantida por um teoremade existência e unicidade:

Teorema de Existência e UnicidadeDado o sistema de equações diferenciais ordinárias

x (t) = F (x (t) , y (t) , t)y (t) = G (x (t) , y (t) , t)

se F e G são contínuas e possuem derivadas parciais contínuas numa dada região A =[t1, t2]× [x1, x2]× [y1, y2], então dada uma condição inicial x (t0) = x0, y (t0) = y0 com{t0, x0, y0} ∈ A, existe δ > 0 tal que existe e é única a solução da EDO com a condiçãoinicial dada, para t no intervalo (t0 − δ, t0 + δ).

Em particular, se as funções F e G são lineares em x e y,

x (t) = a11 (t) x (t) + a12 (t) y (t) + f (t)y (t) = a21 (t) x (t) + a22 (t) y (t) + g (t)

a solução existe e é única por toda a região em que os coeficientes aij (t) , f (t) , g (t) são contínuos.

• O sistema de EDOs considerado tem a importante interpretação gráfica de representar um campo dedireções no plano {x, y}. Soluções particulares desta EDO são curvas que são tangentes ao campo dedireções em cada ponto. O teorema de existência e unicidade garante essencialmente que, satisfeitascondições de regularidade do campo de direções considerados, fixado qualquer ponto do plano, existeuma e somente uma curva que passa por este ponto e é sempre tangente ao campo de direções.

Page 21: Allison analitica

1.3. ALGUNS CONCEITOS E MÉTODOS DE EQUAÇÕES DIFERENCIAIS ORDINÁRIAS 21

Redução de Equações de 2ª Ordem para Equações de 1ª Ordem

• Considere uma equação diferencial ordinária de 2ª ordem no tempo,

x + a (t) x + b (t) x = f (t)

definindoy = x

podemos reescrever a equação inicial como

y + a (t) y + b (t) x = f (t)

A equação diferencial de 2ª ordem

x + a (t) x + b (t) x = f (t)

é equivalente ao sistema de equações diferenciais de 1ª ordem no tempo,

x = yy = −a (t) y− b (t) x + f (t)

Ou seja: podemos baixar a ordem de uma equação diferencial, com o preço de aumentar a dimensiona-lidade do espaço que estamos considerando.

• Em geral: um sistema mecânico de N partículas que seja descrito por M coordenadas generalizadas(M pode ser menor que 3N, pois supomos que quaisquer vínculos presentes já foram levados em conta

Page 22: Allison analitica

22 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO / MOTIVAÇÃO

na prescrição das coordenadas generalizadas) tem como equações dinâmicas M equações diferenciaisordinárias de 2ª ordem,

q (t) = f (q (t) , q (t) , t) .

Definindov (t) = q (t)

temos, equivalentemente, o sistema de 2M equações de 1ª ordem

q (t) = v (t)v (t) = f (q (t) , v (t) , t)

• A vantagem em se fazer tal redução é que a análise de equações de 1ª ordem no tempo pode ser feitapor métodos geométricos e qualitativos muito poderosos, que nos fornecem as características gerais dassoluções, mesmo sem resolver explicitamente as equações.

Exemplo 9. Movimento com aceleração constante

Considere o problema de uma partícula movendo-se em uma dimensão com aceleração constante. A soluçãogeral do movimento é da forma

x (t) = x0 + v0t +12

at2 .

No gráfico, vemos três soluções do problema, com diferentes condições iniciais (escolhemos a = 2 m/s2).

Repare que soluções com condições iniciais diferentes partem de pontos coincidentes (soluções azul everde); além disso, soluções podem se cruzar com o passar do tempo.

Page 23: Allison analitica

1.3. ALGUNS CONCEITOS E MÉTODOS DE EQUAÇÕES DIFERENCIAIS ORDINÁRIAS 23

Reduzindo o sistema para equações de 1ª ordem, obtemos:

x (t) = y (t)y (t) = a

A solução pode também ser encontrada por integração direta:

x (t) = x0 + v0t +12

at2

y (t) = v0 + at

Podemos fazer os gráficos das mesmas soluções que consi-deramos antes, agora no espaço bidimensional {x, y} (na mai-oria dos sistemas computacionais disponíveis atualmente, taisgráficos são chamados de gráficos paramétricos). Note que condi-ções iniciais diferentes são representadas por pontos diferentes.Além disso, não existe cruzamento de soluções. Como veremosno capítulo ??, estas propriedades fazem com que, consideradasem conjunto, as soluções das equações de movimento, no plano {x, y}, tem uma geometria muito mais simplese que pode ser, em grande parte, compreendida sem a necessidade de se resolver efetivamente estas equações.

Equações Autônomas

• No caso particular de equações autônomas, i.e., quando não há dependência explícita no tempo

x (t) = F (x (t) , y (t))y (t) = G (x (t) , y (t))

vale ainda o importante resultado: as soluções jamais se cruzam no plano {x, y}.

• O raciocínio é simples: suponha que duas soluções se cruzam em algum ponto (x0, y0).Note que o cruzamento não precisa acontecer no mesmo instante de tempo, pois as soluções podem levartempos diferentes para chegar ao ponto de cruzamento.Considere agora o seguinte problema de valor inicial: seja o sistema de equações diferenciais

x (t) = F (x (t) , y (t))y (t) = G (x (t) , y (t))

com a condição inicial x (t0) = x0, y (t0) = y0, onde t0 é arbitrário. As duas soluções que supomosexistirem acima resolvem o problema de valor inicial enunciado acima – contrariando o teorema deexistência e unicidade.

• Note que, se o sistema não é autônomo, tais cruzamentos podem ocorrer desde que as soluções passempelo ponto de cruzamento em instantes diferentes. Como as equações diferenciais dependem explicita-mente do tempo, problemas de valor inicial em tempos diferentes são efetivamente diferentes, entãopodem resultar em soluções diferentes.

Equações Autônomas, Lineares, Homogêneas, de Coeficientes Constantes

• Consideremos a equação

x (t) = a11x (t) + a12y (t)y (t) = a21x (t) + a22y (t)

Page 24: Allison analitica

24 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO / MOTIVAÇÃO

reescrita de forma matricial,[x (t)y (t)

]=

[a11 a12a21 a22

] [x (t)y (t)

]= A

[x (t)y (t)

].

• Este é um similar matricial da equação x = ax, cuja solução sabemos ser x = ceat. Tentamos uma soluçãoda mesma forma, [

x (t)y (t)

]= Xert =

[ξ1ξ2

]ert

Substituindo na equação: [x (t)y (t)

]= A

[x (t)y (t)

]⇒ rXert = A · Xert

⇒ (A− r ) · Xert = 0

• Lembre-se: para um sistema [b11 b12b21 b22

] [ξ1ξ2

]= 0

ter solução com ξi 6= 0, o determinante da matriz 2× 2 deve ser nulo.

• Então, voltando ao nosso ansatz, para termos uma solução não trivial de

(A− r ) · Xert = 0

deve valer quedet (A− r ) = 0

Esta é a equação secular. Como estamos lidando com matrizes 2× 2, trata-se de uma equação de 2º grauque tem duas soluções em geral complexas r1 e r2, chamadas de autovalores do sistema.

• Resolvendo-se a equação secular, encontramos duas possíveis soluções,[x1 (t)y1 (t)

]= X1er1t ;

[x2 (t)y2 (t)

]= X2er2t

Como as EDOs são lineares, qualquer combinação linear destas soluções é solução,[x (t)y (t)

]= c1X1er1t + c2X2er2t

Pode-se mostrar que esta última expressão é a solução geral do problema proposto.

Exemplo 10. Uma EDO linear, homogênea, de coeficientes constantes

• Considere a equação [x (t)y (t)

]=

[1 14 1

] [x (t)y (t)

]• Equação secular:

det([

1 14 1

]− r

[1 00 1

])= det

[1− r 1

4 1− r

]= 0

⇒ (1− r)2 − 4 = 0⇒ duas soluções:{

r1 = 3r2 = −1

Page 25: Allison analitica

1.3. ALGUNS CONCEITOS E MÉTODOS DE EQUAÇÕES DIFERENCIAIS ORDINÁRIAS 25

• r1 = 3:

(A− r1 ) · Xer1t = 0⇒[−2 14 −2

] [ξ(1)1

ξ(1)2

]e3t = 0

⇒ 2ξ(1)1 − ξ

(1)2 = 0

Como todo sistema homogêneo, ele só tem solução se é indeterminado, e as duas equações resultamproporcionais. Podemos portanto escolher ξ

(1)1 = 1, obtendo ξ

(1)2 = 2. Ou seja, uma solução é da forma[

12

]e3t

• r2 = −1:

(A− r2 ) · Xer2t = 0⇒[

2 14 2

] [ξ(1)1

ξ(1)2

]e−t = 0

⇒ 2ξ(1)1 + ξ

(1)2 = 0

Escolhendo ξ(1)1 = 1 obtemos ξ

(1)2 = −2. Ou seja, uma solução é da forma[

1−2

]e−t

• Solução geral: [x (t)y (t)

]= c1

[12

]e3t + c2

[1−2

]e−t

Os vetores[

12

]e[

1−2

]definem duas direções em que as soluções se afastam/aproximam linear-

mente da origem. As outras soluções não podem cruzar estas separatrizes e, além do mais, não podemse cruzar. Todas as soluções, na proximidade da origem, tem portanto um comportamento como o dafigura:

Page 26: Allison analitica

26 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO / MOTIVAÇÃO

• O comportamento das soluções das equações depende basicamente dos autovalores da equação seculardet (A− r ) = 0. Pode-se fazer um catálogo bastante completo com o comportamento geral das soluçõesdependendo destes autovalores. Maiores detalhes o leitor pode encontrar em qualquer bom livro deEquações Diferenciais Ordinárias.

• De forma geral: para autovalores da forma r = a + ib, teremos

ert = e(a+ib)t = eat (cos bt + i sin bt)

O sinal positivo/negativo de a está associado ao afastamento/aproximação da solução em relação à origem.Por outro lado, a parte imaginária b provoca uma rotação das soluções em torno da origem.

• Por exemplo:

– r1 e r2 reais e negativos: não há rotação, e as soluções tendem a se aproximar da origem.

– r1 e r2 complexos, com parte real negativa: as soluções se aproximam da origem, mas há rotação dassoluções devido à presença da parte imaginária dos autovalores.

Page 27: Allison analitica

Capıtulo 2Mecânica Hamiltoniana: Equações Canônicas

2.1 A função Hamiltoniana

• Seja um sistema físico descrito por M coordenadas generalizadas qi, i = 1, . . . , M. De ora em diante,vamos sempre supor que os índices i, j variam de 1 a M. Usaremos também a notação q para representarcoletivamente o conjunto de variáveis qi e similarmente para as velocidades q e outras grandezas quedefiniremos abaixo.

• O espaço cartesiano com coordenadas q (t) é chamado espaço de configuração do sistema considerado. Umponto no espaço de configuração está em correspondência biunívoca com uma configuração do sistema,entendendo-se aí a posição de cada partícula que constitui tal sistema.

Conforme o tempo passa, o ponto que representa o sistema no espaço de configuração move-se, descre-vendo uma trajetória no espaço de configuração. Toda a informação sobre a posição do sistema em cadainstante do tempo está contida nesta trajetória.

27

Page 28: Allison analitica

28 CAPÍTULO 2. MECÂNICA HAMILTONIANA: EQUAÇÕES CANÔNICAS

• A função Lagrangiana deste sistema físico é uma função de qi, qi, t:

L = L (q, q, t)

Sendo que a derivada total de L com respeito ao tempo é dada por:

ddtL (q, q, t) = ∑

i

∂L∂qi

dqi

dt+ ∑

i

∂L∂qi

dqi

dt+

∂L∂t

= ∑i

∂L∂qi

qi + ∑i

∂L∂qi

qi +∂L∂t

Entendendo L como uma função num espaço com coordenadas (qi, qi), que também pode adicional-mente variar com o tempo, interpretamos a expressão acima da seguinte forma: a variação de L notempo vem de duas partes:

– conforme o tempo passa, o ponto representativo do sistema se move no espaço (qi, qi), e a função Lassume em princípio valores distintos ao longo da trajetória deste ponto; os termos ∑i

(∂L∂qi

qi +∂L∂qi

qi

)dão conta da variação do valor de L ao longo da linha da trajetória

– além disso, L como função no espaço (qi, qi) pode mudar conforme o tempo passa; o termo ∂L∂t dá

conta desta possibilidade

• Efetuando-se uma integração por partes:

dLdt

= ∑i

∂L∂qi

qi + ∑i

∂L∂qi

qi︸ ︷︷ ︸∑i

[ddt

(∂L∂qi

qi

)− d

dt∂L∂qi

qi

]+

∂L∂t

⇒ ddt

(L−∑

i

∂L∂qi

qi

)= ∑

i

[∂L∂qi− d

dt∂L∂qi

]︸ ︷︷ ︸

=0

qi +∂L∂t

Ou seja, se qi (t) corresponde a uma solução das equações de movimento do sistema, vale que

Page 29: Allison analitica

2.1. A FUNÇÃO HAMILTONIANA 29

ddt

(∑

i

∂L∂qi

qi −L)

= −∂L∂t

• Uma definição:

Para cada variável qi definimos o seu momento canonicamente conjugado

pi (q, q, t) =∂L∂qi

(q, q, t)

Note que qi é uma função unicamente de t; contudo, seu momento canonicamente conjugado, por hora,é em princípio uma função de qi, qi, t, pois é obtido por derivação da Lagrangiana, que por sua vezdepende destas variáveis.

• Reescrevemos nosso resultado, agora com todas as dependências explícitas

ddt

[∑

ipi (q (t) , q (t) , t) qi (t)−L (q (t) , q (t) , t)

]

= −∂L∂t

(q (t) , q (t) , t)

Em suma, podemos definir uma função h da forma

h (q, p, q, t) = ∑i

pi qi −L (q, q, t)

que, escrita assim, parece depender de qi, pi, qi, t. Provamos que esta função tem a propriedade de que

ddt

h (q, p, q, t) = −∂L∂t

(q, q, t)

onde q (t) é uma solução das equações de Euler-Lagrange do sistema, e q (t) e p (t) são por sua vezobtidas a partir desta q (t).

Como anteriormente, a variação total no tempo da função h (q, p, q, t) teria em princípio duas partes:

– a variação de h devido à variação das coordenadas qi, pi, qi

– a variação devida à dependência explícita de h no tempo

O resultado diz que esta primeira parte é inexistente, ou seja, h é uma função constante conforme qi, qi, pivariam no tempo; h só pode variar no tempo se conter explicitamente uma dependência em t.

• Embora escrevemos h como função de qi, pi, qi, t, na verdade é de se lembrar que qi, pi, qi não são real-mente independentes, pois obedecem à relação de definição de pi, i.e.,

pi =∂L∂qi

(q, q, t) .

Page 30: Allison analitica

30 CAPÍTULO 2. MECÂNICA HAMILTONIANA: EQUAÇÕES CANÔNICAS

Para ver as consequências disso, consideramos a variação de h em relação a todas as variáveis que apa-recem em sua expressão

dh = d

(∑

ipi qi −L

)

= ∑i

dpi qi + ∑i

pidqi −∑i

∂L∂qi

dqi −∑i

∂L∂qi

dqi −∂L∂t

dt

= ∑i

(pi −

∂L∂qi

)︸ ︷︷ ︸

=0

dqi + ∑i

dpi qi −∑i

∂L∂qi

dqi −∂L∂t

dt

dh = ∑i

qidpi −∑i

∂L∂qi

dqi −∂L∂t

dt

Em suma, uma variação h é totalmente definida pelas variações de pi, qi e t. Isso torna possível considerar huma função unicamente de pi, qi, t, eliminando a dependência em qi.

• Para tanto, voltamos à definição do momento, que pode ser escrita como

fi (q, p, q, t) = pi −∂L∂qi

(q, q, t) = 0 .

que é uma equação envolvendo pi, qi, qi e t. Apenas para simplificar o raciocínio, consideremos qi e tcomo constantes. A pergunta é: em que condições conseguimos usar esta equação para escrever qi comofunção de pi?

A resposta é dada pelos matemáticos na forma do Teorema da Função Implícita. Ele garante basicamente oseguinte:

Se temos uma relação f (x, y) = 0 e ∂ f∂y 6= 0, então podemos usar

f (x, y) = 0 para encontrar y em função de x, ou seja, encontrary = y (x).

Generalizando este resultado para uma função de várias variáveis como é o caso de fi (q, p, q, t),temos oseguinte: as derivadas parciais segundas de L definem o que se chama de matriz Hessiana:

Wij (q, q, t) =∂2L

∂qi∂qj(q, q, t)

Então prova-se:

Se

det Wij = det∂2L

∂qi∂qj6= 0

então a equação que define o momento canonicamente conjugado pode ser“invertida”, fornecendo as velocidades como funções dos momentos,

qi = qi (q, p, t)

Page 31: Allison analitica

2.1. A FUNÇÃO HAMILTONIANA 31

• Tendo em mãos a relação qi = qi (q, p, t), podemos substituir na função h (q, p, q, t), que passará expli-citamente a depender apenas de qi, pi e t. Desta forma, estaremos definindo a função Hamiltoniana dosistema,

H (q, p, t) = ∑i

pi qi (q, p, t)−L (q, p, t)

Note um pequeno abuso de notação aqui: L (q, p, t) é entendido como a expressão que se obtém ao substituir qi emL (q, q, t) pela sua expressão em termos de qi, pi, t.

Exemplo 11. Partícula movendo-se em 1D sob ação de força constante

• Lagrangiana que define o sistema

L (x, x) =12

mx2 + f0x

e sua correspondente equação de movimento:

∂L∂x− d

dt∂L∂x

= f0 −mx = 0

• Momento canonicamente conjugado

p =∂L∂x

= mx

• Função h = px−L:

h (x, x, p) = px− 12

mx2 − f0x

Embora formalmente h dependa de x, x, p, note que

dh = pdx + xdp−mxdx− f0dx= (p−mx) dx + xdp− f0dx

e, como p = mx por definição,

dh = xdp− f0dx ,

ou seja, h na verdade depende unicamente de x e p.

• Matriz Hessiana: neste caso,∂2L∂x2 = m 6= 0

e, de fato, como m 6= 0, podemos escrever

x =pm

• Reescrevendo x em termos de p, definimos a função Hamiltoniana como:

H (x, p) = px−L (x, p)

= p( p

m

)− 1

2m( p

m

)2− f0x

=p2

2m− f0x

que é explicitamente uma função apenas de x e p.

Page 32: Allison analitica

32 CAPÍTULO 2. MECÂNICA HAMILTONIANA: EQUAÇÕES CANÔNICAS

Exemplo 12. O pêndulo simples

• Lagrangiana que define o modelo:

L(θ, θ)=

12

m`2θ2 + mg` cos θ

• Momento canonicamente conjugado:

pθ =∂L∂θ

= m`2θ

• Como∂2L∂θ2

= m`2 6= 0

podemos encontrar θ em termos de p:

θ =pθ

m`2

• Função Hamiltoniana:

H(θ, θ)= pθ θ −L

= pθ

( pθ

m`2

)− 1

2m`2

( pθ

m`2

)2−mg` cos θ

=(pθ)

2

2m`2 −mg` cos θ

Observação: Se o potencial não depende de velocidades e se xi é uma coordenada cartesiana, seu momentocanonicamente conjugado será a i-ésima coordenada do vetor momento linear. De fato, se xi é cartesiana, suacontribuição à energia cinética é da forma 1

2 m (xi)2, e daí

pi =∂L∂xi

= mxi .

Por exemplo, num sistema de coordenadas cilíndricas,

x = ρ cos φ

y = ρ sin φ

z = z

Page 33: Allison analitica

2.1. A FUNÇÃO HAMILTONIANA 33

Pode-se mostrar que (exercício),

K =12

m(ρ2 + ρ2φ2 + z2)

Portanto,

pz =∂L∂z

= mz

Por outro lado,

pρ =∂L∂ρ

= mρ

pφ =∂L∂φ

= mρ2φ

O momento canonicamente conjugado a φ é justamente a componente do momento angular na direção z. Jáo momento canonicamente conjugado a ρ tem dimensão de momento linear, e na verdade corresponde àprojeção do momento linear na direção radial, embora neste caso ρ não seja uma coordenada cartesiana.

Num caso mais geral, em que a coordenada generalizada qi é qualquer grandeza perti-nente à descrição da configuração do sistema, podemos não ter uma interpretação físicaimediata para seu momento canonicamente conjugado pi.

Interlúdio: Transformação de Legendre

• O processo de se obter a função Hamiltoniana a partir da Lagrangiana não é nada mais do que umcaso particular de uma transformação de Legendre, que é um método geral para substituir uma funçãoque depende de um conjunto de coordenadas independentes por um outro conjunto de coordenadasindependentes.

• De fato, considere uma função qualquer dependendo de duas coordenadas f (x, y). Se x, y são indepen-dentes, uma variação geral de f é dada por

d f =∂ f∂x

(x, y) dx +∂ f∂y

(x, y) dy

Vamos definir agora uma nova variável,

u =∂ f∂x

(x, y) .

A primeira leitura desta equação é que u é uma variável dependente de x e y. Contudo, satisfeitascertas condições, podemos também entender que u e y são independentes, e x é dependente das demais:x = x (u, y).

• De fato, é possível obter a partir de f (x, y) uma função que depende de y e u da seguinte forma: escre-vendo

d f = udx +∂ f∂y

(x, y) dy

por integração por partes:

d f = d (ux)− xdu +∂ f∂y

(x, y) dy

⇒d ( f + ux) = −xdu +∂ f∂y

(x, y) dy

Page 34: Allison analitica

34 CAPÍTULO 2. MECÂNICA HAMILTONIANA: EQUAÇÕES CANÔNICAS

Ou seja, a funçãog = f + ux

na verdade depende apenas de u e y. Supondo que a relação

u =∂ f∂x

(x, y)

define implicitamente x como função de u e y,

x = x (u, y)

conseguimos obter a partir de f (x, y) uma função

g (u, y) = f (x (u, y) , y) + u x (u, y)

que depende só de y e u = ∂ f∂x .

• Esta tecnologia é amplamente usada na termodinâmica. Conhecemos por exemplo a variação de energiainterna U de um dado sistema,

dU = dQ− dW .

Por outro lado, a transferência de calor está associada a uma variação de entropia:

dQ = TdS

enquanto que o trabalho mecânico, a uma variação de volume,

dW = −PdV ,

de forma quedU = TdS− PdV .

Daqui fica claro que a energia interna é função da entropia e do volume,

U = U (S, V)

e que

T =∂U∂S

(S, V) ; P = −∂U∂V

(S, V) .

• Em muitas ocasiões, contudo, trabalhamos com sistemas que estão a pressão constante e não a volumeconstante, como por exemplo numa reação química em contato com a atmosfera terrestre. Seria preferível,neste caso, trabalhar com uma grandeza termodinâmica que dependesse de P e não de V. Tal grandezapode ser obtida por uma transformação de Legendre:

dU = TdS− PdV= TdS− d (PV) + VdP

⇒d (U + PV) = TdS + VdP

Define-se assim a entalpia do sistema considerado, como função de S e P:

H (S, P) = U (S, V (S, P)) + PV (S, P) ,

onde V (S, P) é definido implicitamente por

P = −∂U∂V

(S, V) .

• Transformações de Legendre permitem grande liberdade na escolha de variáveis termodinâmicas, e co-nectam todos os diferentes potenciais termodinâmicos: energia interna, entalpia, potencial de Gibbs e aenergia livre de Helmholtz.

Page 35: Allison analitica

2.2. A DINÂMICA EM TERMOS DA FUNÇÃO HAMILTONIANA 35

2.2 A Dinâmica em termos da Função Hamiltoniana

• Vamos entender a função Hamiltoniana como uma função definida num espaço de coordenadas (q, p),e que pode eventualmente depender explicitamente do tempo t.

• Dada uma solução q (t) em particular, podemos calcular q (t) e daí obter p (t) a partir da relação dedefinição

pi =∂L∂qi

(q, q, t) .

Podemos então imaginar um espaço com coordenadas qi e pi de tal forma que, conforme o tempo passa,tanto qi quanto pi variam continuamente com o tempo, descrevendo um trajetória neste espaço.

Sob este ponto de vista, contudo, p e q não são coordenadas independentes, pois p é obtido a partir deq.

• O objetivo fundamental de uma formulação da mecânica clássica é ter uma teoria que nos preveja adinâmica do sistema conforme o tempo passa. Na prática, ela deve fornecer um sistema de equaçõesdiferenciais que, resolvidas para uma certa condição inicial (posição e velocidades iniciais) forneçam aposição de cada partícula do sistema em cada instante futuro do tempo.

• Podemos, em princípio, adotar a seguinte filosofia: vamos entender o estado do sistema num determi-nado instante como descrito tanto pelas coordenadas generalizadas q quanto pelos momentos canoni-camente conjugados p, que passaremos a considerar como variáveis independentes entre si, e que dependemdo tempo. Num instante t0, conhecemos seus valores iniciais, q0 = q (t0) e p0 = p (t0), e gostaríamosde determinar as funções q (t) e p (t) para t > t0, conhecendo assim o estado do sistema em instantesfuturos. Obviamente, as funções q (t) e p (t) deverão ser soluções de alguma equação diferencial.

Se as q (t) assim obtidas coincidirem com as soluções das equações de Euler-Lagrange do sistema, e se asp (t) assim obtidas satisfizerem a relação p (t) = ∂L (q (t) , q (t) , t) /∂q, então diremos que estas novasequações diferenciais definem uma dinâmica que é equivalente às da Mecânica Lagrangiana.

• As equações diferenciais que permitirão encontrar q (t) e p (t) são obtidas da seguinte maneira: já vimosque a variação deH como resultado de uma variação de qi, pi, t é dada por

dH (q, p, t) = ∑i

qidpi −∑i

∂L∂qi

dqi −∂L∂t

dt

Page 36: Allison analitica

36 CAPÍTULO 2. MECÂNICA HAMILTONIANA: EQUAÇÕES CANÔNICAS

Note, contudo, que se as funções qi (t) são soluções das equações de movimento, elas devem necessaria-mente satisfazer as equações de Euler-Lagrange,

∂L∂qi− d

dt∂L∂qi

=∂L∂qi− pi = 0 ,

portanto,

dH (q, p, t) = −∑i

pidqi + ∑i

qidpi −∂L∂t

dt .

Por outro lado,

dH (q, p, t) = ∑i

∂H∂qi

dqi + ∑i

∂H∂pi

dpi +∂H∂t

dt

Comparando as duas equações:

qi =∂H∂pi

(q, p, t) ; pi = −∂H∂qi

(q, p, t)

∂H∂t

= −∂L∂t

• Dada então a função Hamiltoniana H (q, p, t) encontrada conforme descrito anteriormente, as duasequações da primeira linha do quadro acima definem um conjunto de 2M equações diferenciais ordiná-rias de 1ª ordem no tempo. Sua resolução portanto fornece justamente o que pretendíamos: encontramosq (t) e p (t) uma vez conhecendo as 2M condições iniciais q0 = q (t0) e p0 = p (t0).

• Pela simetria destas equações, em que q e p aparecem praticamente em pé de igualdade, estas são cha-madas as equações canônicas do movimento.

• A relação ∂H∂t = − ∂L

∂t diz que a Hamiltoniana só depende explicitamente do tempo se a Lagrangianatambém depende, e vice-versa. Discutiremos esta conexão mais adiante.

Exemplo 13. Partícula movendo-se em 1D sob ação de força constante (revisitada)

• Lagrangiana que define o sistema

L (x, x) =12

mx2 + f0x

e sua correspondente equação de movimento:

∂L∂x− d

dt∂L∂x

= f0 −mx = 0 ,

cujas soluções são trivialmente encontradas por integração:

x (t) = x0 + v0t− f0

2mt2

• Podemos fazer gráficos de diferentes soluções x (t) para diferentes condições iniciais. No gráfico, vemostrês soluções do problema, com diferentes condições iniciais (escolhemos a = 2 m/s2):

Page 37: Allison analitica

2.2. A DINÂMICA EM TERMOS DA FUNÇÃO HAMILTONIANA 37

• Mostramos que a função Hamiltoniana correspondente escreve-se:

H (x, p) =p2

2m− f0x

• Equações de movimento canônicas:

x =∂H∂p

=pm

p = −∂H∂x

= f0

• Neste caso, é fácil ver a equivalência entre as equações canônicas e a equação de Euler-Lagrange. Aprimeira equação acima apenas reproduz a relação entre momento e velocidade; substituindo-se estaequação na segunda,

p =ddt

(mx) = f0 ⇒ mx = f0

que é a equação de 2ª ordem da formulação Lagrangiana.

• As equações canônicas formam um sistema de duas equações diferenciais de primeira ordem lineares enão-homogêneas: [

x (t)p (t)

]=

[0 1

m0 0

] [x (t)p (t)

]+

[0f0

]• A solução geral é a soma da solução geral da equação homogênea mais uma solução particular da não-

homogênea [x (t)p (t)

]=

[x (t)p (t)

]homogênea

+

[x (t)p (t)

]particular

• A solução homogênea resolve-se: [x (t)p (t)

]=

[ 1m p (t)

0

]p = 0⇒ p (t) = p0

Page 38: Allison analitica

38 CAPÍTULO 2. MECÂNICA HAMILTONIANA: EQUAÇÕES CANÔNICAS

x =1m

p (t) =p0

m⇒ x (t) = x0 +

p0

mt

A solução depende de duas constantes arbitrárias, x0 e p0. Logo[x (t)p (t)

]homogênea

=

[x0 +

p0m t

p0

]• Uma solução particular pode ser encontrada da seguinte forma: claramente se p = f0t teremos p = f0,

satisfazendo uma das equações; neste caso, a outra equação lê-se:

x =pm

=f0

mt⇒ x (t) =

f0

2mt2

(escolhemos x (0) = 0 pois qualquer solução particular serve) e portanto[x (t)p (t)

]particular

=

[ f02m t2

f0t

]• Solução geral: [

x (t)p (t)

]=

[x0 +

p0m t + f0

2m t2

p0 + f0t

]• Podemos agora desenhar as trajetórias correspondentes no espaço de fase, para as mesmas escolhas de

p0 e x0 do gráfico anterior:

Exemplo 14. O pêndulo simples (revisitado)

• Lagrangiana que define o modelo

L(θ, θ)=

12

m`2θ2 + mg` cos θ

Equação de Euler-Lagrange:∂L∂θ− d

dt∂L∂θ

= −mg` sin θ −m`2θ = 0

⇒ θ = − g`

sin θ

Page 39: Allison analitica

2.2. A DINÂMICA EM TERMOS DA FUNÇÃO HAMILTONIANA 39

• A Função Hamiltoniana correspondente escreve-se:

H(θ, θ)=

(pθ)2

2m`2 −mg` cos θ

• Equações Canônicas:

θ =∂H∂pθ

=pθ

m`2

pθ = −∂H∂θ

= −mg` sin θ

• Novamente, inserindo-se a primeira equação na segunda, obtemos

ddt(m`2θ

)= −mg` sin θ ⇒ θ = − g

`sin θ

que é a mesma equação obtida na formulação Lagrangiana.

Exemplo 15. Uma Lagrangiana que depende linearmente da velocidade

• Suponha que existe algum sistema físico que é descrito pela Lagrangiana

L (x, x) = αxx + βx2 ,

onde α e β são constantes.

• Momento canonicamente conjugado:

p =∂L∂x

= αx

• Note que p não depende de x, e portanto esta equação não pode ser usada para escrever x em termos deq e p. De fato,

∂x

(p− ∂L

∂x

)=

∂2L∂x2 = 0

• A função h (x, x, p) escreve-seh = px− αxx− βx2

• Se ingenuamente substituímos a relação que encontramos,

p = αx

na definição de h, encontramos a “Hamiltoniana”

H = −βx2

Da qual obteríamos as equações canônicas:

x =∂H∂p

= 0⇒ x = x0 (= constante)

p = −∂H∂x

= −2βx = −2βx0 (= constante)

Page 40: Allison analitica

40 CAPÍTULO 2. MECÂNICA HAMILTONIANA: EQUAÇÕES CANÔNICAS

logop = −2βx0t + p0

que não é constante no tempo (a menos que x0 ou β sejam nulos), o que não é consistente com a relação

p = αx .

Obviamente, não conseguimos assim definir uma formulação Hamiltoniana que represente a mesmadinâmica da formulação Lagrangiana com a qual iniciamos.

Exemplo 16. Um sistema com vínculos

• Considere agora a Lagrangiana de um sistema físico com espaço de configuração bidimensional:

L (x, y, x, y) =α

2(x− y)2 +

β

2(x− y)2 ,

onde novamente α e β são constantes.

• Matriz Hessiana:

Wij (q, q, t) =∂2L

∂qi∂qj(q, q, t)

Neste caso:

Wij =

[∂2L∂x∂x

∂2L∂x∂y

∂2L∂y∂x

∂2L∂y∂y

]= α

[1 −1−1 1

]e portanto

det Wij = 0

Isso significa novamente que não é possível reescrever x e y em termos das posições e momentos.

• De fato, calculando os momentos canonicamente conjugados a x e y:

px =∂L∂x

= x− y

py =∂L∂y

= − (x− y)

Estas duas equações não são independentes, justamente por isso não podemos eliminar x e y em termos dex, px, y, py. Pelo contrário, podemos observar que

px + py = 0

que é um vínculo sobre px e py. Portanto, os momentos neste caso não podem ser considerados como variáveisindependentes.

• O resumo da ópera: caso a matriz Hessiana tenha determinante nulo, não é possível encontrar as veloci-dades como funções das posições e momentos, então nossa “receita” para obter a função Hamiltonianaa partir da Lagrangiana não funciona. No caso aqui exemplificado, o que acontece é que nem todas asvariáveis canônicas q e p são independentes entre si.

• Tais sistemas são denominados sistemas vinculados, e existe um procedimento que permite obter uma for-mulação Hamiltoniana consistente (veja por exemplo o belo e mui resumido livro Lectures on QuantumMechanics, de Dirac). Por limitação de tempo, não vamos discutir aqui tal procedimento. É interessanteperceber, contudo, que muitas das mais importantes teorias fundamentais da física são justamente des-critas por Lagrangianas que possuem Hessiano nulo. As chamadas teorias de calibre, base para a descriçãounificada das interações fundamentais conhecidas, são todas teorias vinculadas.

Page 41: Allison analitica

2.2. A DINÂMICA EM TERMOS DA FUNÇÃO HAMILTONIANA 41

A Formulação Hamiltoniana e o Espaço de Fase

• O espaço com coordenadas (qi, pi) é conhecido como espaço de fase do sistema físico em questão. Diz-seque a especificação de um ponto no espaço de fase especifica de forma biunívoca o estado do sistemafísico.

• Como as equações diferenciais que descrevem a dinâmica do sistema do espaço de fase são de 1ª ordem notempo, a especificação de um ponto neste espaço também especifica completamente uma condição inicialdeste sistema de equações, sendo única a solução do sistema de equações dada esta condição inicial.

Note que o mesmo não vale no espaço de configuração: a especificação de um ponto no espaço deconfiguração define apenas as posições das partículas que compõem o sistema naquele instante, e nãosuas velocidades. Lembre-se que as equações de movimento no espaço de configuração são equaçõesde 2ª ordem no tempo. É perfeitamente possível, como já observamos, que do mesmo ponto inicial noespaço de configuração, emanem duas soluções fisicamente válidas das equações de movimento.

• Para um sistema com M graus de liberdade, o espaço de fase tem dimensão 2M. A formulação Hamilto-niana pode ser entendida como uma forma particular de se fazer a redução de um sistema de equaçõesde 2ª ordem no tempo (eqs. de Euler-Lagrange) para um sistema de equações de 1ª ordem no tempo (eqs.de Hamilton). A particularidade da formulação Hamiltoniana é a simetria: o formalismo é construídode tal forma que as coordenadas qi e pi aparecem de forma simétrica.

Page 42: Allison analitica

42 CAPÍTULO 2. MECÂNICA HAMILTONIANA: EQUAÇÕES CANÔNICAS

Conservação de Energia

• Já provamos anteriormente que a função h satisfaz

ddt

h = −∂L∂t

.

Transcrevendo em termos da função Hamiltoniana, obtemos

ddtH (q, p, t) = −∂L

∂t(q, p, t)

• Note, por outro lado, se q (t) e p (t) satisfazem as equações canônicas de movimento,

ddtH (q, p, t) = ∑

i

∂H∂qi

qi + ∑i

∂H∂pi

pi +∂H∂t

= ∑i

∂H∂qi

(∂H∂pi

)+ ∑

i

∂H∂pi

(−∂H

∂qi

)+

∂H∂t

=∂H∂t

Comparando estas duas equações,∂L∂t

= −∂H∂t

Ou seja, a Lagrangiana só depende explicitamente do tempo se a Hamiltoniana também depender, evice-versa. Note que já havíamos obtido este resultado anteriormente.

• Destas considerações podemos escrever que

ddtH (q, p, t) =

∂H∂t

(q, p, t)

Em particular∂H∂t

= 0 ⇒ ddtH (q, p, t) = 0

resultado que vamos frasear desta forma: se a Hamiltoniana não depende explicitamente do tempo t,entãoH (q, p, t) é constante ao longo da trajetória do ponto representativo do sistema no espaço de fase. Ou seja,H (q, p) é uma constante de movimento.

• Considere o caso particular em que a energia cinética do sistema é uma função quadrática nas velocida-des,

K = ∑i,j

Kij (q, t) qi qj

onde obviamente Kij = Kji. Além disso, suponha que a energia potencial não dependa de velocidades,ou seja, V = V (q, t). Desta forma, a Lagrangiana que descreve tal sistema é da forma

L (q, q,t) = K−V = ∑i,j

Kij (q, t) qi qj −V (q, t)

Page 43: Allison analitica

2.2. A DINÂMICA EM TERMOS DA FUNÇÃO HAMILTONIANA 43

Neste caso, o momento canonicamente conjugado a q` é dado por:

p` =∂L∂q`

=∂

∂q`∑i,j

Kij (q, t) qi qj

= 2 ∑j

K`j (q, t) qj

e portanto,

∑`

p`q` = 2 ∑j,`

K`j (q, t) qjq` = 2K

A função Hamiltoniana, neste caso, escreve-se:

H = ∑`

p`q` −L

= 2K− (K−V) = K + V

Se a energia cinética é uma função quadrática das velocidades generalizadasqi e se a energia potencial não depende das velocidades, então a função Ha-miltoniana corresponde à energia mecânica total do sistema considerado,

H (q, p, t) = K + V

• Da relação ddtH (q, p, t) = ∂H

∂t (q, p, t) já discutida, podemos acrescentar que

Nas condições expressas acima, se além disso a função Hamiltoniana nãodepende explicitamente do tempo, então a Energia Mecânica é uma constantede movimento.

Exemplo 17. Um sistema com dependência explícita no tempo

• Considere um sistema constituído por uma massa presa a uma mola, que por sua vez está presa a umcarrinho que move-se com velocidade constante v0 ao longo de uma linha, como na figura abaixo.

Page 44: Allison analitica

44 CAPÍTULO 2. MECÂNICA HAMILTONIANA: EQUAÇÕES CANÔNICAS

• Usando como coordenadas para a massa a distância x, medida no referencial em repouso, a força damola é dada por

−k (x− v0t)

e portanto a energia potencial correspondente é

+12

k (x− v0t)2

A Lagrangiana que define o sistema é dada por

L =m2

x2 − k2(x− v0t)2

=m2

x2 − k2

x2 + kv0xt− kv 20

2t2

ComoL é quadrática em x, e o potencial não depende de x, então neste caso sabemos que a Hamiltonianaé a energia mecânica total do sistema,

H =p2

2m+

k2

x2 − kv0xt +kv 2

02

t2

Note, contudo, que ∂H∂t 6= 0, o que significa que a energia mecânica não é conservada. Isto não surpre-

ende, já que trabalho tem que ser feito continuamente sobre o carrinho para mantê-lo com velocidadeconstante v0, apesar do ir-e-vir da massa presa na mola.

• Por outro lado, poderíamos tratar o problema nas coordenadas x′; neste caso, a velocidade da partículaé v0 +

dx′dt e portanto a Lagrangiana é dada por

L =m2

(v0 +

dx′

dt

)2

− k2(x′)2

=m2

v 20 + mv0

dx′

dt+

m2

(dx′

dt

)2

− k2(x′)2

O termo constante m2 v 2

0 pode ser desprezado, pois ele não contribui nas equações de movimento dosistema.

Neste caso, a energia cinética não é função quadrática nas velocidades (existe um termo linear em dx′dt ). Por-

tanto, neste caso a Hamiltoniana não vai corresponder à energia mecânica total. De fato:

p =∂L

∂(

dx′dt

) = mv0 + mdx′

dt

logodx′

dt=

pm− v0

e

H = pdx′

dt−L

= p( p

m− v0

)−mv0

( pm− v0

)− m

2

( pm− v0

)2+

k2(x′)2

=p2

2m− pv0 −

m2

v 20 +

k2(x′)2

Page 45: Allison analitica

2.2. A DINÂMICA EM TERMOS DA FUNÇÃO HAMILTONIANA 45

Neste caso, a Hamiltoniana é uma constante de movimento, mas já não corresponde à energia total do sis-tema. De qualquer forma, quaisquer das duas Hamiltonianas vai fornecer equações de movimento quedescrevem corretamente a dinâmica do movimento com o passar do tempo. A escolha das coordenadasusadas para descrever o problema é puramente questão conveniência.

Exemplo 18. O Oscilador Harmônico

• Lagrangiana:

L (x, x) =12

mx2 − 12

kx2

Momento canonicamente conjugado:

p =∂L∂x

= mx ⇒ x =pm

Função Hamiltoniana:

H (x, p) = px−L

= p( p

m

)− 1

2m( p

m

)2+

12

kx2

=p2

2m+

k2

x2

Claramente, neste exemplo, a Hamiltoniana corresponde à energia mecânica total do sistema, que éconservada.

Equações Canônicas:

x =∂H∂p

=pm

p = −∂H∂x

= −kx

• Uma forma de resolver o problema é eliminar p entre as duas equações, obtendo assim a equação de 2ªordem

x = − km

x

que pode ser resolvida:

x (t) = A sin

(√km

t

)+ B cos

(√km

t

),

esta solução, por sua vez, inserida em p = −kx forneceria

p = −kA sin

(√km

t

)− kB cos

(√km

t

)

que pode ser trivialmente resolvida para p por integração direta

p (t) =√

mkA cos

(√km

t

)−√

mkB sin

(√km

t

).

Page 46: Allison analitica

46 CAPÍTULO 2. MECÂNICA HAMILTONIANA: EQUAÇÕES CANÔNICAS

Das condições iniciais:

x (0) = B = x0

p (0) =√

mkA = p0

portanto

x (t) =p0√mk

sin

(√km

t

)+ x0 cos

(√km

t

)

p (t) = p0 cos

(√km

t

)− x0√

mk sin

(√km

t

)

Desta forma, resolvemos um sistema de duas equações diferenciais de 1ª ordem escrevendo-o como umaequação de 2ª ordem. É uma solução válida, contudo foge um pouco à filosofia de tratar a mecânicaHamiltoniana como uma formulação de 1ª ordem da mecânica clássica.

• Podemos também resolver diretamente o sistema de equações diferenciais de 1ª ordem no tempo,[x (t)p (t)

]=

[0 1

m−k 0

] [x (t)p (t)

],

com condição inicial [x (0)p (0)

]=

[x0p0

].

Introduzindo-se a notação matricial:

x (t) =[

x (t)p (t)

]

A =

[0 1

m−k 0

]a equação a ser resolvida escreve-se

ddt

x (t) = A · x (t) ; x (0) = x0

Tal equação é similar à equação dxdt = ax, que tem como solução x = x0eat. Da forma forma, pode-se

mostrar que a solução geral de

ddt

x (t) = A · x (t) ; x (0) = x0

é escrita comox (t) = eAtx0

Observação 1. Aparece aqui a exponencial de uma matriz

eAt

Page 47: Allison analitica

2.2. A DINÂMICA EM TERMOS DA FUNÇÃO HAMILTONIANA 47

que é definida através de uma série formalmente idêntica à que define a função exponencial

eAt = ∑n≥0

1n!

Antn

ondeA0 =

eAn = A ·A · (· · · ) ·A︸ ︷︷ ︸

n vezesou seja, escrevendo-se explicitamente,

eAt = + A t +12!

A ·A t2 +13!

A ·A ·A t2 + · · ·

Não vamos aqui considerar sob que condições esta série converge; vamos simplesmente supor que isso acon-tece. Ademais, vamos supor que a série pode ser derivada ou integrada termo a termo.

Satisfeitas estas condições, vemos que

ddt

eAt =ddt

[+ A t +

12

A ·A t2 +13!

A ·A ·A t3 + · · ·]

= A + A ·A t +12!

A ·A ·A t2 + · · ·

= A ·(

+ At +12!

A ·A t2 + · · ·)

= A · eAt

e portanto,

ddt

x (t) =ddt(eAtx0

)=

ddt(eAt) x0

= A · eAt · x0 = A · x (t)

além disso,x (0) = · x0

de forma que realmente a solução proposta resolve a equação diferencial e a condição inicial do problema.

• Voltando ao caso particular do oscilador harmônico: a matriz A a considerar é dada por

A =

[0 1

m−k 0

]Sendo portanto necessário calcular

e

0 1m

−k 0

t

= ∑n≥0

1n!

[0 1

m−k 0

]n

tn

Calculando explicitamente: [0 1

m−k 0

]1

=

[0 1

m−k 0

]

Page 48: Allison analitica

48 CAPÍTULO 2. MECÂNICA HAMILTONIANA: EQUAÇÕES CANÔNICAS

[0 1

m−k 0

]2

=

[− k

m 00 − k

m

][

0 1m

−k 0

]3

=

[0 − k

m2

k2

m 0

]

[0 1

m−k 0

]4

=

(

km

)20

0(

km

)2

[

0 1m

−k 0

]5

=

[0 − k2

m3

k3

m2 0

]e assim por diante. Por indução finita pode-se mostrar a validade das seguintes expressões:

(At)2n+1 =

[0 (−1)n kn

mn+1 t2n+1

− (−1)n kn+1mn t2n+1 0

]

=

[0 1/

√km

−√

km 0

](−1)n

(√km

t

)2n+1

(At)2n =

(−1)n(

km

)nt2n 0

0 (−1)n(

km

)nt2n

=

[1 00 1

](−1)n

(√km

t

)2n

e portanto, dividindo a série da exponencial numa série contendo os termos de ordem par e os de ordemímpar:

eAt = ∑n≥0

1n!

Antn

= ∑n≥0

1(2n)!

(At)2n + ∑n≥0

1(2n + 1)!

(At)2n+1

∑n≥0

1(2n)!

(At)2n =

[1 00 1

]∑n≥0

(−1)n

(2n)!

(√km

t

)2n

=

[1 00 1

]cos

(√km

t

)

∑n≥0

1(2n + 1)!

(At)2n+1 =

[0 1/

√km

−√

km 0

]

× ∑n≥0

(−1)n

(2n + 1)!

(√km

t

)2n+1

=

[0 1/

√km

−√

km 0

]sin

(√km

t

)

Page 49: Allison analitica

2.2. A DINÂMICA EM TERMOS DA FUNÇÃO HAMILTONIANA 49

ou seja,

e

0 1m

−k 0

t

=

cos(√

km t)

1/√

km sin(√

km t)

−√

km sin(√

km t)

cos(√

km t)

• Desta forma, a solução da equação[

x (t)p (t)

]=

[0 1

m−k 0

] [x (t)p (t)

],

com condição inicial [x (0)p (0)

]=

[x0p0

],

é dada por

[x (t)p (t)

]=

cos(√

km t)

1/√

km sin(√

km t)

−√

km sin(√

km t)

cos(√

km t)

[ x0p0

]

ou seja

x (t) =p0√km

sin

(√km

t

)+ x0 cos

(√km

t

)

p (t) = −x0√

km sin

(√km

t

)+ p0 cos

(√km

t

)

Reobtemos assim a solução que já havíamos encontrado, agora resolvendo genuinamente um sistema de1ª ordem no tempo.

Page 50: Allison analitica

50 CAPÍTULO 2. MECÂNICA HAMILTONIANA: EQUAÇÕES CANÔNICAS

Page 51: Allison analitica

Capıtulo 3Princípios Variacionais no Espaço de Fase

3.1 A ação como funcional e como função no espaço de fase

• Na formulação Lagrangiana da Mecânica, o princípio dinâmico fundamental é de natureza variacional,e é dado pelo Princípio de Hamilton, já citado na página 17. A partir deste princípio físico fundamental,descobre-se as equações de movimento comparando o valor de S entre duas trajetórias muito próximas:

e exigindo que em primeira ordem S seja o mesmo para os dois caminhos, i.e.,

δS =

ˆ t f

t0

L (q + δq, q + δq, t) dt−ˆ t f

t0

L (q, q, t) dt = 0 ,

o que resulta nas equações de Euler-Lagrange,

∂L∂qi− d

dt∂L∂qi

= 0

• A notação S [q (t)] significa que S é um funcional, ou seja, uma operação que associa a um conjunto defunções qi (t) um número, que no caso é dado pela integral da definição acima. Compare com a notaçãopara uma função:

função f : número x → número f (x)

funcional S : função q (t) → númeroˆLdt

51

Page 52: Allison analitica

52 CAPÍTULO 3. PRINCÍPIOS VARIACIONAIS NO ESPAÇO DE FASE

Entendendo geometricamente: S [q (t)] associa a um dado caminho no espaço de configuração um nú-mero.

• Nada nos impede de adotar outro ponto de vista: mantemos fixo o instante inicial t0 e o ponto inicial q0,e fixamos também uma solução q (t) que satisfaz esta solução inicial. Variando o instante final t f , variao ponto final q

(t f), e também o valor da integral

´Ldt. Desta forma, podemos entender S como uma

função do instante e configuração finais da trajetória considerada: S(q f , t f

).

Note que é necessário explicitamente selecionar uma particular solução das equações de movimento, jáque existem em princípio infinitas soluções q (t) tais que q (t0) = q0.

• No espaço de fase, que é o cenário adequado para o estudo do sistema na formulação Hamiltoniana,podemos também entender a ação como uma funcional para caminhos que ligam um ponto inicial atéum ponto final. Usando o resultado anterior, e lembrando que H = ∑i pi qi − L, então obviamentepodemos escrever

S [q (t)] =ˆ t f

t0

[∑

ipi (q, q, t) qi −H (q, p (q, q, t) , t)

]dt

onde substituímos p por sua expressão em termos de q, q: pi = ∂L∂qi

(q, q, t). Contudo, não chegamosassim a um funcional legitimamente de q e p, que é o que deveríamos ter no espaço de fase, pois nestaconstrução o papel de q (t) e p (t) são obviamente diferenciados.

• No espaço de fase, fixado um ponto inicial (q0, p0) num instante inicial t0, há somente uma solução(q (t) , p (t)) das equações dinâmicas satisfazendo tal condição inicial. Desta forma, bastando fixar acondição inicial, podemos calcular S integrando a expressão p q − H do ponto inicial fixado até umponto final variável e, desta forma, podemos entender S como uma função do ponto final da trajetória:S = S (q, p, t) .

Page 53: Allison analitica

3.1. A AÇÃO COMO FUNCIONAL E COMO FUNÇÃO NO ESPAÇO DE FASE 53

Vamos agora comparar a ação calculada sobre dois caminhos no espaço de fase: a solução fixada con-forme acima, e um outro caminho próximo (que em geral não é solução das equações de movimento), tais queos pontos iniciais coincidem num dado instante inicial t1, enquanto que os pontos finais diferem entre sinum dado instante final t2

Pela definição de S:

δS =

ˆ t2

t1

L (q + δq, q + δq, t) dt−ˆ t2

t1

L (q, q, t) dt

=

ˆ t2

t1

[∑

i

∂L∂qi

δqi + ∑i

∂L∂qi

δqi

]dt

=

ˆ t2

t1

[∑

i

∂L∂qi

δqi +ddt

(∑

i

∂L∂qi

δqi

)−∑

i

ddt

∂L∂qi

δqi

]dt

=

ˆ t2

t1∑

i

(∂L∂qi− d

dt∂L∂qi

)δqidt + ∑

i

∂L∂qi

δqi

∣∣∣∣∣t2

t1

Como o caminho original é uma solução das equações de movimento, o termo com a integral anula-se;como no instante inicial, δqi = 0, sobra

δS = ∑i

∂L∂qi

∆qi

Mas, pela definição do momento canonicamente conjugado, pi =∂L∂qi

, logo

δS = ∑i

pi∆qi

Page 54: Allison analitica

54 CAPÍTULO 3. PRINCÍPIOS VARIACIONAIS NO ESPAÇO DE FASE

Note que não existe variação associada à ∆p. Isso significa que, na verdade, a função S (q, p, t) nãodepende dos momentos finais, ou seja, na realidade

S = S (q, t)

e o que acabamos de descobrir foi que∂S∂qi

= pi

• Da definição

S =

ˆ t

t0

Ldt

segue imediatamente pelo teorema fundamental do cálculo,

dSdt

= L

Por outro lado, como S = S (q, t),dSdt

= ∑i

∂S∂qi

qi +∂S∂t

comparando-se as duas últimas expressões:

∂S∂t

=dSdt−∑

i

∂S∂qi

qi = L−∑i

pi qi

percebemos que∂S∂t

= −H

• Em suma, mostramos que a função S = S (q, t) satisfaz

dS = ∑i

∂S∂qi

dqi +∂S∂t

dt

= ∑i

pidqi −Hdt

sendo esta a diferença dS entre o valor da ação em dois pontos muito próximos, como na figura abaixo,à esquerda.

Page 55: Allison analitica

3.2. O PRINCÍPIO DE HAMILTON NO ESPAÇO DE FASE 55

Segue-se que, integrando-se ao longo da solução (q (t) , p (t)) considerada, temos

S =

ˆdS =

ˆγ

(∑

ipidqi −Hdt

)

onde agora entende-se que a integral é sobre a curva γ da figura da direita, que é o segmento da soluçãoque une o ponto inicial ao ponto final considerado, no espaço de fase. Esta é portanto a definição quequeríamos da ação como um funcional no espaço de fase.

• Geometricamente, entendemos que S associa a cada caminho γ no espaço de fase, um número dado peloresultado da integral

´γ (pdq−Hdt).

A notação empregada não deve confundir o leitor: a expressão acima significa que, uma vez dadas asfunções qi (t) e pi (t) que parametrizam a curva γ considerada, basta substituir q e p por estas funçõesna integral, lembrando que dqi = qi (t) dt,

S [q (t) , p (t)] =ˆ t f

t0

[∑

ipi (t) qi (t)−H (q (t) , p (t))

]dt

3.2 O Princípio de Hamilton no Espaço de Fase

• O resumo de toda a discussão precedente é que podemos considerar a ação naturalmente como umafuncional no espaço de fase,

S [q (t) , p (t)] =ˆ t f

t0

[∑

ipi (t) qi (t)−H (q (t) , p (t))

]dt

• Se o espaço de fase é o cenário adequado para se tratar da dinâmica Hamiltoniana, deve ser possí-vel encontrar as equações canônicas de movimento a partir de um princípio variacional no espaço defase. Realmente isto acontece. Considere um dado caminho q (t) , p (t) no espaço de fase e uma va-riação infinitesimal δq (t) , δp (t), ou seja, funções δqi (t) e δpi (t) que são bem comportadas, tais que|δqi (t)| , |δpi (t)| são pequenos para t ∈

[t0, t f

], e

δqi = δpi = 0 para t = t0 e t = t f

Vamos então comparar o valor da ação entre os dois caminhos “próximos” no espaço de fase, como nafigura.

Page 56: Allison analitica

56 CAPÍTULO 3. PRINCÍPIOS VARIACIONAIS NO ESPAÇO DE FASE

Temos:

δS [q (t) , p (t)] =S [q (t) + δq (t) , p (t) + δp (t)]− S [q (t) , p (t)]

=

ˆ∑

i

(δpi qi + piδqi −

∂H∂qi

δqi −∂H∂pi

δpi

)dt

integrando por partes o termo piδqi,

δS [q (t) , p (t)] =ˆ

∑i

(δpi qi − piδqi −

∂H∂qi

δqi −∂H∂pi

δpi

)dt

− piδqi|t ft0

O último termo anula-se pois δqi se anula nos pontos inicias e finais, portanto:

δS [q (t) , p (t)] =ˆ

∑i

[(qi −

∂H∂pi

)δpi −

(pi +

∂H∂qi

)δqi

]dt

Exigindo que δS [q (t) , p (t)] = 0 para qualquer variação δq (t) , δp (t), devemos impor que os coeficientesentre parêntesis acima sejam identicamente nulos, o que fornece

qi =∂H∂pi

; pi = −∂H∂qi

Acabamos de mostrar, portanto, que a dinâmica no espaço de fase é dada pelo seguinte princípio varia-cional,

Page 57: Allison analitica

3.3. O PRINCÍPIO DE MAUPERTIUS 57

Princípio de Hamilton no Espaço de Fase

Dado um estado inicial q (t0) = q0, p (t0) = p0 e um estado final q(t f)= q f , p

(t f)=

p f de um dado sistema mecânico, de todas as curvas no espaço de fase que passam pelosestados iniciais e finais fixados, o caminho efetivamente seguido pelo sistema é aqueleem que o valor da ação

S =

ˆγ

(∑

ipidqi −Hdt

)é mínimo.

• Note que, a rigor, na demonstração não precisamos usar que δpi = 0 nos extremos das trajetórias para chegaràs equações de movimento. Desta forma, o princípio variacional poderia ser enunciado de forma maisgeral, exigindo apenas as posições iniciais e finais fixadas, os diferentes caminhos podendo diferir nosvalores dos momentos canonicamente conjugados nos instantes iniciais e finais. Não usufruímos destaliberdade pois ela não traz nenhum benefício ao formalismo, pelo contrário, ela conspira contra a simetriaentre q e p que é a base da Mecânica Hamiltoniana. Ao se considerar o tópico das transformações canônicas,veremos que admitir este tipo de assimetria, ou seja, δqi = 0 mas δpi 6= 0 nos extremos, limitaria o lequede transformações de coordenadas disponíveis no formalismo Hamiltoniano, e impediria uma série dedesenvolvimentos formais.

3.3 O Princípio de Maupertius

• Historicamente, os princípios variacionais foram introduzidos na mecânica por Maupertius, que buscavadar um embasamento “teológico” para a mecânica: o universo buscaria sempre o “caminho ótimo”, queminimiza uma certa grandeza.

O princípio variacional de Maupertius difere um pouco do Princípio de Hamilton, pois só é aplicávelquando a função Hamiltoniana é igual à energia mecânica total e é uma constante de movimento, ouseja, se

H (q, p) = E = constante

• Considere dois caminhos no espaço de fase, tais que os pontos iniciais e finais coincidem. Não vamosexigir, contudo, que eles sejam percorridos no mesmo intervalo de tempo. Desta forma, é um tipo devariação diferente daquela considerada no Princípio de Hamilton.

Page 58: Allison analitica

58 CAPÍTULO 3. PRINCÍPIOS VARIACIONAIS NO ESPAÇO DE FASE

Lembrando da expressão que já encontramos para a variação dS devido a uma variação δt do instantefinal da trajetória, e de uma variação δqi da posição final,

δS = ∑i

piδqi −Hδt

Neste caso, contudo, os pontos finais estão fixados, logo δqi = 0, e portanto, a diferença entre o valor deS para os dois caminhos considerados é

δS = −Hδt

Lembrando agora queH = E,

δS = −Eδt

Por outro lado,

δS =

ˆγ1

(∑

ipidqi −Hdt

)−ˆ

γ2

(∑

ipidqi −Hdt

)

(∑

i

ˆpidqi

)− Eδt

comparando as duas expressões, vemos que

δ

(∑

i

ˆpidqi

)= 0

• Embora a grandeza ∑i´

pidqi tenha sido originalmente chamada de ação por Maupertius, vamos chamá-la de ação reduzida S0 para não confundir com a grandeza que aparece no princípio variacional de Hamil-ton. Desta forma, enunciamos o seu princípio variacional da seguinte maneira:

Page 59: Allison analitica

3.3. O PRINCÍPIO DE MAUPERTIUS 59

Princípio de Maupertius

Dado um estado inicial q0, p0 e um estado final q f , p f de um dado sistema mecânico, detodas as trajetórias no espaço de fase que passam pelos estados iniciais e finais fixadose que obedecem à lei de conservação da energia, H (q, p) = E = constante, o caminhoefetivamente seguido pelo sistema é aquele em que o valor da ação reduzida

S0 = ∑i

ˆpidqi

é mínimo.

Note que nenhuma referência é feita ao tempo neste princípio: as duas trajetórias não precisam passarpelos pontos iniciais e finais nos mesmos instantes. O Princípio de Maupertius pode ser útil quandoqueremos descobrir a forma das trajetórias no espaço de fase, sem necessariamente conhecer sua depen-dência explícita no tempo.

• Note que a ação reduzida

∑i

ˆpidqi

tem uma interpretação gráfica elementar: cada termo da soma é a área compreendida entre a curva domomento pi e o eixo das coordenadas no plano qi, pi, entre as posições iniciais e finais do movimento,como na figura abaixo.

Princípio de Maupertius para uma partícula

• Num caso de movimento unidimensional, a condição de conservação de energia fornece

p2

2m+ V (x) = E

Page 60: Allison analitica

60 CAPÍTULO 3. PRINCÍPIOS VARIACIONAIS NO ESPAÇO DE FASE

o que imediatamente fixa p como função de x e E,

p =√

2m [E−V (x)]

Neste caso, a ação reduzida escreve-se

ˆ x f

x0

√2m [E−V (x)]dx

e neste caso não há variação admissível, já que só existe uma curva p (x) que é condizente com a conser-vação de energia.

• Num caso geral de três dimensões, contudo, da conservação de energia temos (em coordenadas cartesi-anas)

∑i p2i

2m+ V (x1, x2, x3) = E

que é uma relação que já não fixa univocamente p1, p2 e p3 como funções de coordenadas. O que fazemosé reescrever esta condições em termos das velocidades

12

m

(∑

ixi

)2

+ V (x1, x2, x3) = E

Esta equação fornece uma relação entre as variações dxi e dt, que já não são independentes:

√∑

i(dxi)

2 =

√2 [E−V (x1, x2, x3)]

mdt

Esta relação deve ser levada em conta na definição de pi em termos de posições e velocidades:

pi =∂L∂xi

= mdxi

dt

e portanto

∑i

pidxi = ∑i

mdxi

dtdxi

= m ∑i (dxi)2

dt

=√

2m [E−V (x1, x2, x3)]√

∑i(dxi)

2

Mas√

∑i (dxi)2 não é mais que o elemento infinitesimal de comprimento da trajetória,

S0 =

ˆ √2m [E−V (x1, x2, x3)]d` ,

onde a integral é feita por qualquer caminho que leva do ponto inicial ao ponto final no plano x1x2 (aconservação de energia já foi levada em conta ao se obter esta forma para S0).

Page 61: Allison analitica

3.3. O PRINCÍPIO DE MAUPERTIUS 61

• No caso particular de uma partícula livre, V = 0 e o princípio de Maupertius diz que

S0 =√

2mEˆ

d` =√

2mEL

é mínimo, onde L é o comprimento da trajetória. Como massa e energia são constantes, o princípio demínima ação reduzida reduz-se a um princípio de mínimo caminho: a distância percorrida do ponto inicialao final deve ser mínimo. Como, no espaço Euclidiano, a menor distância entre dois pontos é por umalinha reta, segue que a trajetória de uma partícula livre é uma linha reta – resultado já bem conhecido.

• É imediata a similaridade deste princípio com o princípio de Fermat da óptica geométrica: um raio deluz percorre sempre o menor caminho óptico entre os dois pontos considerados. A analogia se estende,obviamente, para o caso mais geral

S0 =

ˆ √2m [E−V (x1, x2, x3)]d` =

ˆF (x1, x2, x3) d`

que corresponderia, por analogia, a um raio de luz propagando-se por um meio com coeficiente derefração variável.

Estas similaridades entre óptica geométrica e mecânica clássica só podem ser percebidas no formalismoHamiltoniano, e podem ser aprofundadas no estudo das transformações canônicas, que veremos mais adi-ante. Mais que uma curiosidade formal, é mais um exemplo do poder do formalismo Hamiltoniano emconectar diferentes áreas da física por um mesmo formalismo matemático. Desta forma, métodos de so-luções desenvolvidas para uma área podem ser aplicadas em outras áreas aparentemente não-correlatas,por exemplo.

Page 62: Allison analitica

62 CAPÍTULO 3. PRINCÍPIOS VARIACIONAIS NO ESPAÇO DE FASE

Page 63: Allison analitica

Capıtulo 4Transformações Canônicas

4.1 Transformações de Coordenadas em Mecânica Lagrangiana

• Uma das principais vantagens da formulação Lagrangiana da mecânica clássica é a liberdade de mudarcoordenadas. Dada uma Lagrangiana L (q, q, t), sabemos que a dinâmica clássica é determinada peloprincípio de Hamilton,

δ

ˆL (q, q, t) dt = 0 .

Uma mudança de coordenadas é especificada por uma relação

Qi = Qi (q, t)

entre as velhas coordenadas q e as novas Q. Para estar bem definida, esta relação tem que ser invertível,ou seja, é possível escrever também

qi = qi (Q, t) .

Inserindo esta última relação em L (q, q, t), obtemos a nova Lagrangiana nas novas coordenadas, ou seja,

L(Q, Q, t

)= L

(q(Q, Q, t

), q(Q, Q, t

), t)

.

A dinâmica descrita pela nova Lagrangiana L(Q, Q, t

)é idêntica à do sistema original, já que o valor da

integral´L (q, q, t) dt não é alterado por uma simples mudança de variáveis:

ˆL (q, q, t) dt =

ˆL(Q (q, t) , Q (q, t) , t

)dt

ou seja, as equações de Euler-Lagrange nas novas variáveis,

∂L∂Qi− d

dt∂L∂Qi

= 0

descrevem as mesmas soluções que as equações de Euler-Lagrange das variáveis originais q.

Para um caso concreto, reveja o exemplo 7 na página 15.

63

Page 64: Allison analitica

64 CAPÍTULO 4. TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS

4.2 Transformações de Coordenadas em Mecânica Hamiltoniana

• Na Mecânica Hamiltoniana, o número de coordenadas usadas para descrever o sistema é ampliado, in-cluindo coordenadas q e momentos p. Desta forma, temos em princípio mais liberdade para fazer mudan-ças de coordenadas, podendo trabalhar com novas coordenadas Q e novos momentos P. Em princípio,podemos adotar novas coordenadas que “misturam” as velhas coordenadas e momentos q e p:

Qi = Qi (q, p, t)Pi = Pi (q, p, t)

Veremos logo mais que qualquer mudança de coordenadas que pode ser feita no formalismo Lagran-giano, Qi = Qi (q, t), pode também ser feita no formalismo Hamiltoniano; por outro lado, como vistoacima, existem possíveis transformações de coordenadas no formalismo Hamiltoniano que não são pos-síveis no formalismo Lagrangiano.

Portanto, a passagem do espaço de configuração para o espaço de fase efetivamente aumenta a liberdadede se escolher coordenadas. Contudo, nem toda mudança de coordenadas no espaço de fase é adequada,pois algumas não preservam a estrutura Hamiltoniana da teoria. Veremos o que isso quer dizer por meiode um exemplo.

Exemplo 19. Uma transformação “infeliz”

• A Hamiltoniana do oscilador harmônico é dada por

H =p2

2+

ω2

2q2

e as equações de movimento escrevem-se

q =∂H∂p

= p

p = −∂H∂q

= −ω2q

• Considere a seguinte mudança de coordenadas:

Q = q2

P = p3

Em termos das novas variáveis, o Hamiltoniano escreve-se

H =12

P2/3 +ω2

2Q .

As equações de movimento podem ser reescritas em termos das novas variáveis:

Q = q2 ⇒ Q = 2qq⇒ q =Q

2√

Q

P = p3 ⇒ P = 3p2 p⇒ p =P

3P2/3

Page 65: Allison analitica

4.3. TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS 65

logo: {q = p

p = −ω2q ⇒{

Q = 2√

QP1/3

P = −3ω2√QP2/3 .

Estas são das equações diferenciais que descrevem as soluções do problema físico nas novas coordena-das.

O problema é que estas equações não possuem a forma Hamiltoniana, já que

Q =∂H∂P

=13

P

P = −∂H∂Q

= −ω2

2

o que não coincide com as equações encontradas nas novas variáveis. Em outras palavras: as equações deHamilton para a Hamiltoniana H não descrevem a mesma dinâmica da Hamiltoniana original.

• Dizemos que a mudança de variáveis de (q, p) para (Q, P) não preservou a estrutura Hamiltoniana dosistema. Embora nada nos impeça, na prática, de usar transformações de variáveis destes tipos para re-solver problemas particulares, elas não são adequadas do ponto de vista formal, para o desenvolvimentode métodos gerais para o estudo de sistemas Hamiltonianos.

• Estamos interessados em transformações que preservam a estrutura Hamiltoniana do sistema; estas se-rão chamadas de transformações canônicas, e são definidas como segue:

Transformações CanônicasSeja uma transformação de coordenadas no espaço de fase,

Qi = Qi (q, p, t)Pi = Pi (q, p, t)

A transformação é dita canônica se existir uma função Hamiltoniana K (Q, P, t), tal que asequações de movimento do sistema nas novas coordenadas possuem a forma Hamilto-niana,

Q =∂K∂P

P = −∂K∂Q

4.3 Transformações Canônicas

• Queremos achar transformações de coordenadas

Qi = Qi (q, p, t)Pi = Pi (q, p, t)

e uma nova função Hamiltoniana K (Q, P, t), tal que as equações de movimento nas novas coordenadastenham a forma Hamiltoniana. Para garantir a forma Hamiltoniana das equações de movimento, basta

Page 66: Allison analitica

66 CAPÍTULO 4. TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS

exigir que as soluções Q (t) , P (t) sejam mínimo de uma funcional ação S da forma

S =

ˆ (∑

iPidQi −K (Q, P) dt

),

pois já mostramos que tal princípio variacional conduz à forma Hamiltoniana das equações de movi-mento:

Q =∂K∂P

P = −∂K∂Q

.

Resta agora garantir que tais soluções Q (t) , P (t) correspondam às mesmas soluções q (t) , p (t) do pro-blema original. Para tanto, podemos exigir que S seja mínimo sempre que

S =

ˆ (∑

ipidqi −H (q, p) dt

)

for mínimo. Em outras palavras, podemos exigir que

δS = δS⇒ δ(S− S

)= 0

onde δ é uma variação sobre qualquer caminho no espaço de fase. Escrevendo explicitamente, a condiçãoque queremos impor é

δ

ˆγ

(∑

ipidqi −∑

iPidQi + [K (Q, P)−H (q, p)] dt

)= 0

onde γ é uma curva qualquer no espaço de fase (q, p), e está subentendido na expressão acima queestamos considerando Q e P como funções de q e p.

• Agora, notemos o seguinte: pode ser possível “inverter” a relação Qi = Qi (q, p, t) obtendo os velhosmomentos como função de q e Q,

pi = pi (q, Q, t)

e, neste caso, podemos alternativamente considerar q e Q como coordenadas independentes, e p e Pcomo funções de q e Q. Neste caso, a condição para a transformação de coordenadas ser canônicas é

δ

ˆΓ

(∑

ipidqi −∑

iPidQi + [K−H] dt

)= 0

onde agora Γ é uma curva no plano (q, Q).

Uma maneira de garantir a igualdade acima é se existir uma função F1 (q, Q, t) tal que

dF1 = ∑i

pidqi −∑i

PidQi + [K−H] dt

pois então teríamos

δ

ˆΓ

dF1 (q, Q, t) = 0

já que a integral seria igual à variação de F1 (q, Q, t) nos extremos do caminho Γ, e sempre exigimosδq = δp = 0 e δt = 0 (e, portanto, δQ = δP = 0) nos extremos do caminho.

Page 67: Allison analitica

4.3. TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS 67

Em resumo, se existe uma função F1 (q, Q, t) tal que

dF1 = ∑i

pidqi −∑i

PidQi + [K−H] dt

então a mudança de variáveis considerada é canônica. Desta expressão éclaro que

pi (q, Q, t) =∂F1

∂qi; Pi (q, Q, t) = − ∂F1

∂Qi

K (q, Q, t) = H (q, Q, t) +∂F1

∂t

• Escritas estas relações, por pressuposto podemos “inverter” as relações pi (q, Q, t) = ∂F1∂qi

obtendo Qi

como função de (q, p, t), escrevendo assim a mudança de coordenadas desejada

Qi = Qi (q, p, t)Pi = Pi (q, p, t)

obtida a partir da função F1. A nova Hamiltoniana K, obtida desta forma, é tal que as equações demovimento têm, por construção, a forma Hamiltoniana:

Qi =∂K∂Pi

Pi = −∂K∂Qi

• Revertendo o raciocínio: dada qualquer função F1 (q, Q, t), define-se pelas fórmulas acima uma mudançade variáveis tal que as equações de movimento preservam a forma Hamiltoniana. Temos assim umprocedimento que permite gerar muitas transformações canônicas; uma questão mais delicada, é claro,é encontrar as transformações canônicas que são úteis, que ajudem de alguma forma na resolução deproblemas.

Exemplo 20. A partícula livre

• Seja a Hamiltoniana de uma partícula livre de massa m,

H =p2

2m

• Considere a seguinte função

F1 (q, Q, t) =m (q−Q)2

2tque, como discutido, fornece uma transformação canônica de variáveis, desde que

p =∂F1

∂q=

m (q−Q)

t

⇒ Q = q− pm

t

Page 68: Allison analitica

68 CAPÍTULO 4. TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS

e

P = −∂F1

∂Q=

m (q−Q)

t

=mqt− mQ

t

Usando a relação obtida anteriormente:

P =mqt− m

t

(q− p

mt)= p

Em resumo, as novas variáveis com que estamos tratando são:{Q = q− p

m tP = p

• A Hamiltoniana nas novas coordenadas é dada por

K = H+∂F1

∂t

=p2

2m− m (q−Q)2

2t2

=p2

2m− 1

2m

[m2 (q−Q)2

t2

]︸ ︷︷ ︸

p2

ou sejaK = 0

• Nas novas variáveis, a Hamiltoniana é constante igual a zero, o que significa que a dinâmica nas variáveisQ e P é trivial:

Q =∂K∂P

= 0

P = −∂K∂Q

= 0

logo

Q = α

P = β

onde α e β são constantes.

• Voltando para as variáveis antigas:p = P = β

e

q = Q +pm

t = α +β

mt

que é justamente a solução da partícula livre.

Page 69: Allison analitica

4.3. TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS 69

• Observe o que foi conseguido neste exemplo: através de uma mudança de variáveis adequada, trans-formamos o problema que queremos resolver num problema de solução trivial. Encontrada a soluçãonas coordenadas transformadas, basta voltar para as variáveis antigas para se encontrar a solução doproblema original.

• There is no free lunch: obviamente, geralmente encontrar transformação canônica tão proveitosa comoesta, num problema mais complicado, não é simples. A dificuldade de resolver o problema inicialtransfere-se para a dificuldade de se obter a transformação canônica adequada. Em muitos casos, con-tudo, pode-se desenvolver uma teoria geral que permite procurar tais transformações resolvendo-secerta equação diferencial parcial, como veremos mais adiante.

Outros tipos de transformações canônicas

• Nosso desenvolvimento demandou que q e Q pudessem ser tratadas como coordenadas independentes;nem sempre isso é possível, por exemplo, a transformação identidade Q = q e P = p não satisfaz talcondição. Claramente, devem haver outros tipos de transformações canônicas. De fato, para perceberisso, basta considerar

dF1 = ∑i

pidqi −∑i

PidQi + [K−H] dt

e integrar por partes o termo PidQi,

d (F1 + PQ) = ∑i

pidqi + ∑i

QidPi + [K−H] dt

• Desta expressão, vemos que F1 + PQ é na verdade uma função de q e P; chamando de F2 (q, P, t) tal fun-ção, temos outro conjunto de relações que define uma transformação canônica a partir de tal F2 (q, P, t):

pi (q, P, t) =∂F2

∂qi; Qi (q, P, t) =

∂F2

∂Pi

K (q, P, t) = H (q, P, t) +∂F2

∂t

e, por suposto, podemos “inverter” a primeira relação, pi (q, P, t) = ∂F2∂qi

, obtendo P como função de q ep.

Exemplo 21. A transformação identidade

• Seja F2 (q, P, t) da formaF2 (q, P, t) = ∑

iqiPi

• Então:pi (q, P, t) =

∂F2

∂qi= Pi

Qi (q, P, t) =∂F2

∂Pi= qi

eK = H+

∂F2

∂t= H

ou seja, tal F2 gera a transformação identidade.

Page 70: Allison analitica

70 CAPÍTULO 4. TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS

Exemplo 22. Transformações de ponto

• Chamam-se transformações de ponto aquelas em que definimos novas coordenadas em termos de velhascoordenadas e tempo,

Qi = fi (q, t)

Claramente, as funções fi devem ser tais que seja possível inverter a transformação, obtendo as velhascoordenadas em termos das novas,

qi = gi (Q, t)

São estas as mudanças de coordenadas permitidas dentro do formalismo Lagrangiano. Vamos mostrarque para toda transformação de ponto existe uma correspondente transformação canônica no espaço de fase, pro-vando que efetivamente o universo das mudanças de variáveis permitidas no formalismo Hamiltonianoé maior do que no formalismo Lagrangiano.

• De fato, podemos encontrar uma F2 (q, P, t) que gera tal transformação: queremos que

Qi = fi (q, t) =∂F2

∂Pi

basta tomar:F2 (q, P, t) = ∑

ifi (q, t) Pi

A partir de tal F2 (q, P, t), temos:

pi =∂F2

∂qi= ∑

j

∂ f j

∂qiPj

Definindo a matriz: [∂F∂q

]ij=

∂ f j

∂qi

ou seja,

[∂F∂q

]=

∂ f1∂q1

∂ f2∂q1· · · ∂ fM

∂q1∂ f1∂q2

∂ f2∂q2

.... . .

∂ f1∂qM

∂ fM∂qM

temos a relação matricial

p =

[∂F∂q

]P

Fica clara aqui a condição para que seja possível encontrar P em termos de q e p: a matriz[

∂F∂q

]deve ser

inversível, de forma que

P =

[∂F∂q

]−1

p

Como a F2 considerada não depende do tempo, a Hamiltoniana K tem o mesmo valor da HamiltonianaH, bastando fazer a substituição das coordenadas antigas pelas novas:

K (Q, P, t) = H+∂F2

∂t= H (q (Q, P, t) , p (Q, P, t))

Page 71: Allison analitica

4.3. TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS 71

• Note que tal transformação não é única: de fato, para satisfazer

Qi = fi (q, t) =∂F2

∂Pi

poderíamos também ter tomado

F2 (q, P, t) = ∑i

fi (q, t) Pi +F (q, t)

onde F (q, t) é uma função arbitrária. Neste caso, a definição dos novos momentos seria modificada jáque

pi =∂F2

∂qi= ∑

j

∂ f j

∂qiPj +

∂F∂qi

(q, t)

e também a nova Hamiltoniana

K (Q, P, t) = H+∂F2

∂t

= H (q (Q, P, t) , p (Q, P, t)) +∂F∂t

(q (Q, P, t) , t)

Exemplo 23. A transformação “infeliz” da página 64 corrigida

• Consideremos novamente a Hamiltoniana do oscilador harmônico,

H =p2

2+

ω2

2q2

cujas equações de movimento escrevem-se

q =∂H∂p

= p

p = −∂H∂q

= −ω2q

• Queremos considerar uma mudança de variável tal que as novas coordenadas sejam dadas por

Q = q2

ou seja,

Q =∂F2

∂P= q2 ⇒ F2 (q, P) = q2P

Note que poderíamos adicionar qualquer funçãoF (q, t) a tal F2, mas por simplicidade vamos considerarque F = 0.

• Temos que

p =∂F2

∂q= 2qP = 2

√QP

de forma que a transformação de coordenadas que estamos considerando agora é

Q = q2 ; P =p

2q

Page 72: Allison analitica

72 CAPÍTULO 4. TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS

com inversaq =

√Q ; p = 2

√QP

Destas últimas relações, obtemos:

q =Q

2√

Q

p =QP√

Q+ 2√

QP

e daí podemos diretamente reescrever as equações de movimento nas novas coordenadas:

q = p ⇒ Q = 4QP

p = −ω2q ⇒ P = −2P2 − ω2

2

• Por outro lado, a Hamiltoniana nas novas coordenadas é dada por

K = H = 2QP2 +ω2

2Q

e por isso, as equações canônicas escrevem-se

Q =∂H∂P

= 4QP

P = −∂H∂Q

= −ω2

2− 2P2

mostrando que, efetivamente, a estrutura Hamiltoniana da teoria foi preservada pela transformação decoordenadas considerada.

• Note que mesmo usando a mais geral F2 possível,

F2 (q, P) = q2P +F (q, t)

jamais conseguiríamos obter a transformação “infeliz” que havíamos considerado,

Q = q2 ; P = p3

já que

p =∂F2

∂q= 2qP +

∂F∂q

(q, t)

e não há como obter p = 3√

P por qualquer escolha de F (q, t).

Funções Geradoras

• O resumo da história é que, para qualquer função da forma F1 (q, Q, t), ou F2 (q, P, t), está definida umatransformação canônica através das fórmulas dos quadros abaixo.

Função F1 (q, Q, t)

pi =∂F1

∂qi; Pi = −

∂F1

∂Qi; K = H+

∂F1

∂t

Page 73: Allison analitica

4.3. TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS 73

Função F2 (q, P, t)

pi =∂F2

∂qi; Qi =

∂F2

∂Pi; K = H+

∂F2

∂t

Pode-se também encontrar fórmulas correspondentes para funções do tipo F3 (p, P, t) e F4 (p, Q, t). Comonão iremos utilizá-las nos exemplos aqui discutidos, encontrá-las fica a cargo do estudante.

• As funções Fi são chamadas de funções geradoras (“generating functions”, em inglês), já que o conheci-mento da forma funcional da Fi define univocamente uma transformação canônica. Temos assim umaversátil “fábrica” de transformações canônicas, bastando escolher diferentes formas para as funções Fi.

• Este procedimento é uma receita que permite encontrar transformações canônicas, mas não garante quetais transformações sejam úteis para efetivamente resolver o problema físico considerado. Encontrartransformações úteis pode exigir bastante talento e experiência, e não é uma tarefa simples por princípio.Discutiremos mais adiante, contudo, a teoria de Hamilton-Jacobi, que fornece um método geral paraconstruir transformações canônicas que são úteis para resolver problemas, desde que se consiga resolveruma certa equação diferencial parcial – o que por si não é tarefa fácil, mas que pode ser executada emdeterminadas situações.

Exemplo 24. Uma transformação canônica instrutiva

• Considere a seguinte função geradora F1 (q, Q, t):

F1 (q, Q, t) = ∑i

qiQi

• A transformação canônica associada é obtida de:

pi =∂F1

∂qi= Qi

ePi = −

∂F1

∂Qi= −qi

além disso,K = H

pois F1 é independente do tempo.

• Ora, a transformação canônica obtida

Qi = pi ; Pi = −qi

consiste basicamente em trocar coordenadas por momentos, deixando claro assim a simetria que existe,na Mecânica Hamiltoniana, entre coordenadas e momentos canonicamente conjugados. “Coordenadas”e “Momentos” são apenas nomes arbitrários atribuídos a pares de coordenadas que estão de algumaforma associadas (o tipo de associação ficará mais claro quando discutirmos os Parêntesis de Poisson)dentro do formalismo Hamiltoniano.

Fica claro, também, porque sempre consideramos δq = δp = 0 nos extremos das trajetórias, ao con-siderar o princípio variacional no espaço de fase. Somente assim garantimos que todo o poder dastransformações canônicas esteja disponível na teoria.

Page 74: Allison analitica

74 CAPÍTULO 4. TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS

Page 75: Allison analitica

Capıtulo 5Parêntesis de PoissonTeorema de Liouville e de Poincaré

A formulação da Mecânica Hamiltoniana vista até aqui é bastante geométrica, baseada em caminhos per-corridos pelo ponto representativo do sistema no espaço de fase conforme o tempo passa, e um princípiovariacional que compara os valores de uma funcional chamada ação para diferentes caminhos, identificandoaquele que corresponde à trajetória física do sistema.

A Mecânica Hamiltoniana, contudo, também pode ser totalmente descrita em termos de uma estruturaalgébrica que discutiremos brevemente neste capítulo: os parêntesis de Poisson. Esta formulação alternativaé muito importante principalmente para o estudo da mecânica quântica, como veremos, além de nos permitirobter alguns resultados particularmente interessantes: o Teorema de Liouville de Poincaré.

5.1 Parêntesis de Poisson

• Considere uma função qualquer definida no espaço de fase, i.e., uma função F qualquer que pode de-pender de q, p e de t:

F = F (q, p, t)

A derivada total de F com respeito ao tempo, como já discutimos, tem duas partes: uma devida àdependência implícita em q (t) e p (t), outra devido à dependência explícita em t:

F = ∑i

∂F∂qi

qi + ∑i

∂F∂pi

pi +∂F∂t

;

lembrando a forma das equações canônicas:

qi =∂H∂pi

; pi = −∂H∂qi

podemos escrever

dFdt

= ∑i

∂F∂qi

∂H∂pi−∑

i

∂F∂pi

∂H∂qi

+∂F∂t

75

Page 76: Allison analitica

76 CAPÍTULO 5. PARÊNTESIS DE POISSON TEOREMA DE LIOUVILLE E DE POINCARÉ

DefiniçãoDadas duas funções arbitrárias definidas no espaço de fase, e que podem também de-pender explicitamente do tempo,

F = F (q, p, t) ; G = G (q, p, t)

definimos o Parêntesis de Poisson entre F e G como

{F ,G} = ∑i

(∂F∂qi

∂G∂pi− ∂F

∂pi

∂G∂qi

)

• Em termos do Parêntesis de Poisson, o resultado que obtivemos foi

dFdt

= {F ,H}+ ∂F∂t

em particular, se ∂F∂t = 0,

dFdt

= {F ,H}

que entendemos como: a Hamiltoniana gera, via Parêntesis de Poisson, a mudança no tempo de uma função Fdo espaço de fase.

• Um caso particular: se F = q` ou F = p`:

q` = {q`,H}

= ∑i

∂q`∂qi︸︷︷︸δ`i

∂H∂pi−∑

i

∂q`∂pi︸︷︷︸

0

∂H∂qi

=∂H∂p`

p` = {p`,H}

= ∑i

∂p`∂qi︸︷︷︸

0

∂H∂pi−∑

i

∂p`∂pi︸︷︷︸δ`i

∂H∂qi

= −∂H∂q`

ou seja, reobtemos as equações canônicas de movimento a partir do Parêntesis de Poisson.

• Outro caso particular: seja F uma função definida no espaço de fase que não depende explicitamente dotempo ( ∂F

∂t = 0), então se{F ,H} = 0

significa que F é uma constante de movimento, ou seja,

dFdt

= 0 ⇒ F é constante

ao longo das soluções q (t) , p (t) do sistema físico considerado.

Page 77: Allison analitica

5.1. PARÊNTESIS DE POISSON 77

• Por fim, podemos calcular o Parêntesis de Poisson entre as próprias coordenadas do espaço de fase:

{qi, qj

}= ∑

`

∂qi

∂q`

∂qj

∂p`︸︷︷︸0

−∑`

∂qi

∂p`︸︷︷︸0

∂qj

∂q`= 0

{pi, pj

}= ∑

`

∂pi

∂q`︸︷︷︸0

∂pj

∂p`−∑

`

∂pi

∂p`

∂pj

∂q`︸︷︷︸0

= 0

{qi, pj

}= ∑

`

∂qi

∂q`︸︷︷︸δi`

∂pj

∂p`︸︷︷︸δj`

−∑`

∂qi

∂p`

∂pj

∂q`︸︷︷︸0

= δij

Estes são os chamados Parêntesis de Poisson fundamentais.

Propriedades dos Parêntesis de Poisson

• Sejam F , G, O funções arbitrárias no espaço de fase, i.e., funções de q e p. Então podemos listar asseguintes propriedades do Parêntesis de Poisson

Propriedades do Parêntesis de Poisson

• Antisimetria:{F ,G} = −{G,F}

• Linearidade:{F , αG +O} = α {F ,G}+ {F ,O}

onde α é independente de q e p

• Uma propriedade similar à “regra de Leibnitz”:

{F ,G O} = {F ,G} O + {F ,O} G

• Identidade de Jacobi:

{F , {G,O}}+ {G, {O,F}}+ {O, {F ,G}} = 0

que podemos escrever sinteticamente como

∑cíclica

{F , {G,O}} = 0

• Todas estas propriedades, exceto à última, são demonstradas com facilidade pela definição do Parêntesis

Page 78: Allison analitica

78 CAPÍTULO 5. PARÊNTESIS DE POISSON TEOREMA DE LIOUVILLE E DE POINCARÉ

de Poisson. Por exemplo:

{F ,G O} =∑i

∂F∂qi

∂pi(G O)−∑

i

∂F∂pi

∂qi(G O)

=∑i

∂F∂qi

(∂G∂piO + G ∂O

∂pi

)−∑

i

∂F∂pi

(∂G∂qiO − G ∂O

∂qi

)

=

(∑

i

∂F∂qi

∂G∂pi−∑

i

∂F∂pi

∂G∂qi

)O +

(∑

i

∂F∂qi

∂O∂pi−∑

i

∂F∂pi

∂O∂qi

)G

= {F ,G} O + {F ,O} G

A prova da Identidade de Jacobi pode ser feita por via direta como acima, mas é bastante longa e tra-balhosa. Existem algumas demonstrações alternativas, mais sintéticas, na literatura, mas não vamosdiscuti-las.

• As propriedades acima, notadamente a identidade de Jacobi, significam que os Parêntesis de Poissonsatisfazem o que se chama de uma Álgebra de Lie. Talvez você já tenha visto, em cursos matemáticos, queálgebras de Lie estão naturalmente associados a grupos de simetria, e existe uma rica teoria matemáticaque explora suas propriedades: a Teoria de Grupos de Lie. O estudo de grupos e álgebras de Lie é funda-mental para uma compreensão profunda da noção de simetria na física, contudo está além do escopo dapresente disciplina.

5.2 A Mecânica Hamiltoniana em Termos dos Parêntesis de Poisson

• As propriedades algébricas dos Parêntesis de Poisson nos permitem uma formulação da Mecânica Ha-miltoniana que não faz referência a caminhos no espaço de fase ou princípios variacionais.

Suponha que existe um espaço de fase, com coordenadas qi e pi satisfazendo os Colchetes de PoissonFundamentais, {

qi, qj}={

pi, pj}= 0{

qi, pj}= δij

então a dinâmica da Mecânica Clássica é totalmente controlada por uma função Hamiltoniana H (q, p, t),da seguinte forma: para qualquer variável no espaço de fase F (q, p, t), a evolução no tempo de F éregida pela equação

dFdt

= {F ,H}+ ∂F∂t

;

em particular, para as próprias coordenadas da trajetória do sistema no espaço de fase,

q` = {q`,H} ; p` = {p`,H}

Exemplo 25. O Oscilador Harmônico isotrópico em 3D

Suponha que exista um espaço de fase de seis dimensões, com coordenadas qi, pi, i = 1, 2, 3, tais que{qi, qj

}={

pi, pj}= 0{

qi, pj}= δij

Page 79: Allison analitica

5.2. A MECÂNICA HAMILTONIANA EM TERMOS DOS PARÊNTESIS DE POISSON 79

e que a Hamiltoniana que controla a dinâmica do sistema é

H = ∑i

p2i

2+

ω2

2 ∑i

q2i .

Então as equações de movimento são:

q` = {q`,H} ={

q`, ∑i

p2i

2+

ω2

2 ∑i

q2i

}

= ∑i

12{

q`, p2i}+ ∑

i

ω2

2{

q`, q2i}

= ∑i{q`, pi}︸ ︷︷ ︸

δ`i

pi + ∑i

ω2

2{q`, qi}︸ ︷︷ ︸

0

qi

= p`

p` = {p`,H} ={

p`, ∑i

p2i

2+

ω2

2 ∑i

q2i

}

= ∑i

12{

p`, p2}︸ ︷︷ ︸0

+ ∑i

ω2

2{

p`, q2}= ∑

i

12{

p`, p2}︸ ︷︷ ︸0

+ ∑i

ω2{p`, qi}︸ ︷︷ ︸−δ`i

qi

= −ω2q`

que são justamente as equações de movimento do oscilador harmônico.Note que não precisamos considerar explicitamente a forma do Parêntesis de Poisson em termos das deri-

vadas parciais, mas apenas suas propriedades algébricas, para obter as equações de movimento.

• De forma bastante geral, a existência de uma dinâmica Hamiltoniana é garantida:

1. pela existência de um espaço de fase com coordenadas qi, pi, onde pode-se definir um Parêntesis dePoisson que satisfaça as propriedades listadas anteriormente, bem como os parêntesis de Poissonfundamentais entre os qi e pi, {

qi, qj}={

pi, pj}= 0 ;

{qi, pj

}= δij

2. e pela existência de uma função Hamiltoniana H (q, p, t) que controla a evolução temporal de qual-quer grandeza física.

• Um espaço onde são satisfeitas as propriedades enumeradas acima são chamadas pelos matemáticos devariedades simpléticas. O que mostramos, assim, é que qualquer sistema físico terá sua dinâmica clássicacontrolada por uma função Hamiltoniana definida uma variedade simplética. Isto motiva os matemáti-cos a estudarem com profundidade as propriedades de tais espaços em geral, o que também está fora doescopo desta nossa disciplina.

Page 80: Allison analitica

80 CAPÍTULO 5. PARÊNTESIS DE POISSON TEOREMA DE LIOUVILLE E DE POINCARÉ

Notação Simplética

• Já muitas vezes apontamos para o fato de que, em Mecânica Hamiltoniana, coordenadas qi e momentos pisão tratados em pé de igualdade, de forma que os nomes diferentes “coordenadas” para qi e “momentos”para pi apenas obscurecem esta igualdade.

• O espaço de fase que descreve um determinado sistema físico tem dimensão necessariamente par, e aforma dos Parêntesis de Poisson fundamentais,

{qi, qj

}={

pi, pj}= 0

{qi, pj

}= δij

mostra que existem pares de coordenadas que são relacionadas por terem Parêntesis de Poisson não-nulo:

{q1, p1} = 1 ; {q2, p2} = 1 ; etc

Tais pares são chamados de “coordenadas canonicamente conjugadas”. Afora esta particularidade, gos-taríamos de considerar o conjunto das qi e pi e tratá-las como “coordenadas do espaço de fase”, sem fazera distinção entre coordenadas e momentos.

• Para tanto, vamos introduzir a seguinte notação: se a dimensão do espaço de fase é 2M, iremos usarcoordenadas

ηi, i = 1, . . . , 2M

onde

ηi = qi, i = 1, . . . , M e ηM+i = pi, i = 1, . . . , M

ou, na forma matricial:

η∼=

η1...

ηMηM+1

...η2M

=

q1...

qMp1...

pM

• As equações canônicas de Hamilton podem ser convenientemente escritas de forma matricial, se intro-

duzimos a seguinte notação para a matriz[

∂H∂ηi

]:

∂H∂η∼

=

∂H∂η1...

∂H∂ηM∂H

∂ηM+1...

∂H∂η2M

=

∂H∂q1...

∂H∂qM∂H∂p1...

∂H∂pM

Page 81: Allison analitica

5.2. A MECÂNICA HAMILTONIANA EM TERMOS DOS PARÊNTESIS DE POISSON 81

então, claramente:

q1...

qM

p1...

pM

=

0 · · · 0 1 0 · · · 0...

. . . 0 0. . . 0

0 · · · 0... · · · 1

− 1 0 · · · 0 0 0

0. . . 0

.... . .

...0 · · · −1 0 · · · 0

∂H∂q1...

∂H∂qM∂H∂p1...

∂H∂pM

ou seja

η∼=

[0− 0

]· ∂H

∂η∼

,

onde O e são, respectivamente, a matriz nula e a matriz identidade M×M.

• Definindo a matriz J, chamada de matriz simplética:

J =[

0− 0

]escrevemos as equações de Hamilton da forma compacta:

Equações Canônicas de Movimento em Notação Simplética

η∼= J · ∂H

∂η∼

• A matriz simplética satisfaz algumas propriedades que podem ser facilmente verificadas:

Dada a Matriz Simplética:

J =[

0− 0

]então valem as propriedades:

1. J2 = −

2. JT · J = J · JT = , ou seja, JT = J−1 = −J

3. det J = 1

• A notação simplética, mais que compactar a notação e tratar coordenadas e momentos em pé de igual-dade, também permite demonstrar de forma muito mais clara e simples vários resultados do formalismo.Podemos por exemplo reconhecer facilmente quando uma transformação de coordenadas é canônica ou

Page 82: Allison analitica

82 CAPÍTULO 5. PARÊNTESIS DE POISSON TEOREMA DE LIOUVILLE E DE POINCARÉ

não. Por simplicidade, vamos nos ater a transformações canônicas independentes do tempo. Como jávimos que

K = H+∂F∂t

se a transformação canônica não depende explicitamente do tempo, ∂F∂t = 0, o que significa que a função

Hamiltoniana não é modificada pela transformação, ou seja

K = H

Suponha então uma transformação de coordenadas da forma

Qi = Qi (q, p)Pi = Pi (q, p)

que, escrita no formalismo simplético, corresponde simplesmente a trocar as coordenadas ηi por novascoordenadas ξi

(ηj), ou seja,

ξ∼= ξ∼

(η∼

)=

ξ1 (ηi)...

ξM (ηi)ξM+1 (ηi)

...ξ2M (ηi)

Por definição, a transformação de coordenadas η → ξ é canônica se ela preserva a forma Hamiltonianadas equações de movimento, ou seja, se a derivada no tempo de ξ

∼satisfizer:

ξ∼= J · ∂H

lembrando que a Hamiltoniana nas novas coordenadas é igual à Hamiltoniana de partida, i.e., K = H,neste caso.

• Calculando explicitamente a derivada no tempo de ξ∼

:

ξi = ∑i

∂ξi

∂ηjηj

ou, em notação matricial,ξ∼= M · η

onde introduzimos a matriz Jacobiana da transformação η∼→ ξ∼

,

M =

[∂ξi

∂ηj

]=

∂ξ1∂η1

∂ξ1∂η2

· · · ∂ξ1∂η2M

∂ξ1∂η2

. . ....

.... . .

...∂ξ1

∂η2M· · · ∂ξ2M

∂η2M

Page 83: Allison analitica

5.2. A MECÂNICA HAMILTONIANA EM TERMOS DOS PARÊNTESIS DE POISSON 83

Por outro lado, nas coordenadas de partida η∼

sabemos a validade das Equações de Hamilton, η∼= J · ∂H

∂η∼

,

portanto,

ξ∼= M · J · ∂H

∂η∼

Agora, aplicando regra da cadeia nas derivadas ∂H∂η∼

:

∂H∂ηi

= ∑j

∂H∂ξ j

∂ξ j

∂ηi

mas note que∂ξ j

∂ηi=[MT]

ij

onde MT é a transposta da matriz Jacobiana, e portanto

∂H∂η∼

= ∑j

[MT]

ij

∂H∂ξ j

= MT · ∂H∂ξ∼

• Em resumo, por cálculo direto encontramos que

ξ∼= M · J ·MT · ∂H

∂ξ∼

logo, se queremos que nas novas coordenadas seja válida a forma Hamiltoniana das equações de movi-mento, devemos ter

M · J ·MT = J

Com um pouco de trabalho algébrico, pode-se mostrar que esta condição é equivalente a

MT · J ·M = J

Para tanto, lembramos que JT = J−1 = −J. Multiplicando a equação acima por M−1 e por J−1, peladireita, obtemos

MT · J = J ·M−1 ⇒ MT = J ·M−1 · J−1

Usando este resultado:

MT · J ·M = J ·M−1 · J−1 · J︸ ︷︷ ︸ ·M= J ·M−1 ·M︸ ︷︷ ︸= J

• Provamos assim o seguinte:

Page 84: Allison analitica

84 CAPÍTULO 5. PARÊNTESIS DE POISSON TEOREMA DE LIOUVILLE E DE POINCARÉ

Uma transformação de coordenadas η∼→ ξ∼

é canônica se e somente se a matriz Jacobiana

da transformação,

Mij =

[∂ξi

∂ηj

]satisfizer

M · J ·MT = J

ou, equivalentemente,MT · J ·M = J

• Um corolário imediato deste teorema, de que precisaremos logo mais, é o seguinte:

Se a transformação η∼→ ξ∼

é canônica, então

|det M| = 1

onde M é a matriz Jacobiana da transformação.

A prova é imediata, usando as propriedades fundamentais do terminante:

det(

M · J ·MT)= det J = 1⇒ det M det J︸︷︷︸

1

det MT︸ ︷︷ ︸=det M

= 1

⇒ (det M)2 = 1⇒ |det M| = 1

• Notamos que o Parêntesis de Poisson pode também ser facilmente escrito em termos da notação simplé-tica. Começamos com,

{F ,G} = ∑i

∂F∂qi

∂G∂pi−∑

i

∂F∂pi

∂G∂qi

= ∑i

∂F∂ηi

∂G∂ηM+i

−∑i

∂F∂ηM+i

∂G∂ηi

Com um pouco de prática, pode-se perceber que esta expressão pode ser escrita de forma matricial como:

∂F∂ηi...

∂F∂ηM∂F

∂ηM+1...

∂F∂η2M

T

0 · · · 0 1 0 · · · 0...

. . . 0 0. . . 0

0 · · · 0... · · · 1

− 1 0 · · · 0 0 0

0. . . 0

.... . .

...0 · · · −1 0 · · · 0

∂G∂ηi...

∂G∂ηM∂G

∂ηM+1...

∂G∂η2M

ou seja

{F ,G} =

∂F∂η∼

T

· J · ∂G∂η∼

Page 85: Allison analitica

5.3. PARÊNTESIS DE POISSON E TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS 85

• Um caso particular importante é quando F = η`. Neste caso:

∂η`∂ηi

= δ`i

e portanto,

{η`,G} = ∑i

δ`i

J · ∂G∂η∼

i

=

J · ∂G∂η∼

`

ou seja

{η∼

,G}

= J · ∂G∂η∼

• Desta relação, podemos reescrever as Equações Canônicas de Movimento,

η∼= J · ∂H

∂η∼

em termos dos Parêntesis de Poisson:

Equações Canônicas de Movimento em Notação Simplética

η∼=

{η∼

,G}

• Por fim, mostramos como a relaçãodFdt

= {F ,H}+ ∂F∂t

obtida no começo da aula pode ser derivada de forma mais elegante usando a notação simplética:

dFdt

=

∂F∂η∼

T

η∼+

∂F∂t

=

∂F∂η∼

T

· J · ∂H∂η∼

+∂F∂t

= {F ,H}+ ∂F∂t

5.3 Parêntesis de Poisson e Transformações Canônicas

• Usando a notação simplética, fica fácil provar um teorema muito importante, e que seria muito difícil deprovar usando a notação tradicional: uma transformação canônica preserva a forma dos Parêntesis de Poisson.

Page 86: Allison analitica

86 CAPÍTULO 5. PARÊNTESIS DE POISSON TEOREMA DE LIOUVILLE E DE POINCARÉ

• Considere o Parêntesis de Poisson entre duas grandezas F = F (ηi) e G = G (ηi),

{F ,G}η =

∂F∂η∼

T

· J · ∂G∂η∼

onde deixamos explícito que estamos calculando as derivadas em termos das variáveis ηi:

Considere agora uma transformação canônica de coordenadas, η∼→ ξ∼

. Sabemos que a matriz Jacobiana,

Mij =

[∂ξi

∂ηj

]satisfaz

M · J ·MT = J

Substituindo η∼

em termos de ξ∼

(o que podemos fazer “invertendo” a relação ξi = ξi(ηj)), podemos

escrever F e G como funções de ξ∼

,

F(

ξ∼

)= F

(η∼

(ξ∼

))e o mesmo para G.

Podemos assim calcular o Parêntesis de Poisson entre F e G, agora nas novas coordenadas ξ∼

,

{F ,G}ξ =

∂F∂ξ∼

T

· J · ∂G∂ξ∼

Lembre-se que já mostramos que∂H∂η∼

= MT · ∂H∂ξ∼

e este resultado obviamente também vale para as funções F e G. Usando isso na definição de {F ,G}η :

{F ,G}η =

∂F∂η∼

T

· J · ∂G∂η∼

=

MT · ∂F∂ξ∼

T

· J ·MT · ∂G∂ξ∼

=

∂F∂ξ∼

T

·M · J ·MT · ∂G∂ξ∼

=

∂F∂ξ∼

T

· J · ∂G∂ξ∼

= {F ,G}ξ

Page 87: Allison analitica

5.3. PARÊNTESIS DE POISSON E TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS 87

Parêntesis de Poisson são invariantes sob uma transformação canônica η∼→ ξ∼

, i.e., para

quaisquer funções do espaço de fase F e G, vale que

{F ,G}η = {F ,G}ξ

• Este resultado nos permite uma nova caracterização útil para uma Transformação Canônica. Considere-mos uma transformação canônica

Qi = Qi (q, p)Pi = Pi (q, p)

Por definição, os Parêntesis de Poisson fundamentais nas novas coordenadas são dados por{Qi, Qj

}(Q,P) =

{Pi, Pj

}(Q,P) = 0

{Qi, Pj

}(Q,P) = δij

onde

{F ,G}(Q,P) = ∑i

∂F∂Qi

∂G∂Pi−∑

i

∂F∂Pi

∂G∂Qi

Agora, pelo recém provado teorema da invariância dos Parêntesis de Poisson, deve valer {F ,G}(Q,P) =

{F ,G}(q,q), onde {F ,G}(q,q) é calculado como

{F ,G}(q,p) = ∑i

∂F∂qi

∂G∂pi−∑

i

∂F∂pi

∂G∂qi

escrevendo-se F e G como funções de (q, p) pela inversa da transformação canônica. Provamos assim oseguinte resultado:

Uma transformação de coordenadas

Qi = Qi (q, p)Pi = Pi (q, p)

é canônica se e somente se {Qi, Qj

}(q,p) =

{Pi, Pj

}(q,p) = 0{

Qi, Pj}(q,p) = δij

Exemplo 26. A transformação “infeliz” corrigida na página 71

Page 88: Allison analitica

88 CAPÍTULO 5. PARÊNTESIS DE POISSON TEOREMA DE LIOUVILLE E DE POINCARÉ

Considere a transformação canônica

Q = q2 ; P =p

2q.

Calculando os Parêntesis de Poisson com respeito às variáveis q, p,

{Q, Q}(q,p) =∂Q∂q

∂Q∂p︸︷︷︸0

− ∂Q∂p︸︷︷︸0

∂Q∂q

= 0 ,

igualmente para {P, P}(q,p) = 0. Já para {Q, P}(q,p):

{Q, P}(q,p) =∂Q∂q

∂P∂p− ∂Q

∂p∂P∂q

Mas:∂Q∂q

= 2q ;∂Q∂p

= 0 ;∂P∂q

= − p2q2 ;

∂P∂p

=12q

e portanto

{Q, P}(q,p) = 2q× 12q

= 1

como deveria ser, para uma transformação canônica.

Transformações Canônicas Infinitesimais

• Já mostramos, ao discutir funções geradoras, que a função

F2 (q, P, t) = ∑i

qiPi

gera a transformação identidade. Somando a tal F2 uma função qualquer G (q, P, t) multiplicada por umparâmetro infinitesimal ε, portanto, devemos gerar uma transformação canônica próxima à identidade.De fato, considere

F2 (q, P, t) = ∑i

qiPi + εG (q, P, t)

temos que

pi =∂F2

∂qi= Pi + ε

∂G∂qi

(q, P, t)

ou seja

Pi = pi − ε∂G∂qi

(q, P, t)

eQi =

∂F2

∂Pi= qi + ε

∂G∂Pi

(q, P, t)

Note, contudo, que P difere de p por um termo de ordem ε, e tanto ∂G∂qi

quanto ∂G∂Pi

aparecem já multipli-cados por ε nas expressões acima; isto significa que, em primeira ordem em ε, podemos substituir P porp, e escrever a transformação canônica infinitesimal como:

Qi = qi + ε∂G∂pi

(q, p, t)

Pi = pi − ε∂G∂qi

(q, p, t)

Page 89: Allison analitica

5.3. PARÊNTESIS DE POISSON E TRANSFORMAÇÕES CANÔNICAS 89

• Em notação simplética, escrevemos:ξ∼= η∼+ δη∼

comδη∼= εJ · ∂G

∂η∼

Comparando com a expressão que já obtivemos para o Parêntesis de Poisson em coordenadas simpléti-cas, podemos escrever:

Qualquer função G (q, p, t) gera uma transformação canônica infinitesimalξ∼= η∼+ δη∼

com

δη∼= ε J · ∂G

∂η∼

=

{η∼

, εG}

;

G é dita a função geradora da transformação infinitesimal.

• Dado que a função G (q, p, t) é arbitrária, nada nos impede de tomar G como sendo a função Hamiltoni-anaH (q, p, t), e tomar ε como um intervalo de tempo infinitesimal, dt. Neste caso, obtemos

δη∼=

{η∼

,H}

dt = εη∼

dt

ou seja, a transformação canônica considerada é

qi (t)→ qi (t) + δqi (t) = qi (t) + qi (t) dt

e igualmente para pi (t); em resumo, temos:

qi (t)→ qi (t + dt)pi (t)→ pi (t + dt)

• Esta “transformação” não é mais do que a evolução temporal infinitesimal que leva as coordenadas dosistema no espaço de fase num instante determinado, até as coordenadas num instante imediatamenteposterior. Antes de interpretar este resultado, vamos fazer um breve interlúdio...

Interlúdio: visão ativa e passiva de uma transformação de coordenadas

• Ao discutir a evolução temporal como uma Transformação Canônica, vale a pena relembrar a distin-ção entre a visão ativa e a visão passiva de uma transformação. São duas interpretações possíveis parauma mesma mudança de variáveis η

∼→ ξ∼

. Matematicamente são equivalentes, mas em determinadas

situações é mais natural considerar uma interpretação ou outra.

• Em ambos os casos, imaginamos que temos um espaço no qual é possível adotar um determinado sis-tema de coordenadas. Por simplicidade, vamos considerar um sistema de coordenadas cartesiano global.

Visão Passiva da Transformação

Page 90: Allison analitica

90 CAPÍTULO 5. PARÊNTESIS DE POISSON TEOREMA DE LIOUVILLE E DE POINCARÉ

• A visão passiva de uma transformação consiste no seguinte: temos um único ponto do espaço, que numsistema de coordenadas inicial tem coordenadas η

∼. A mudança consiste em se adotar um novo sistema de

coordenadas ξ∼

, tal que o mesmo ponto passa a ser especificado por coordenadas diferentes em termos

deste novo referencial. A figura anterior mostra como funciona esta transformação: o referencial ηi étransformado num novo referencial ξi e, como consequência, as coordenadas que descrevem o mesmoponto mudam. À direita, mostramos a situação como vista no novo referencial ξi, onde fica claro que ascoordenadas do ponto mudaram.

Visão Ativa da Transformação

• A visão ativa de uma transformação consiste em considerar o referencial fixo, e dizer que a posição doponto é modificada. A mesma transformação da figura anterior seria entendida como na figura acima:os eixos coordenados novos e velhos são identificados, e a posição de cada ponto é modificada. Note quea posição final do ponto é a mesma que se vê no novo referencial, na figura anterior à direita; as duastransformações são portanto equivalentes, mas interpretadas de forma diferente.

Page 91: Allison analitica

5.4. A EVOLUÇÃO TEMPORAL COMO TRANSFORMAÇÃO CANÔNICA 91

5.4 A Evolução Temporal como Transformação Canônica

• Mostramos há pouco que a função Hamiltoniana gera a seguinte transformação canônica

δη∼=

{η∼

,H}

dt = εη∼

dt

que implica em

qi (t)→ qi (t + dt)pi (t)→ pi (t + dt)

• Uma sucessão de transformações canônicas infinitesimais ainda é uma transformação canônica. Por-tanto, a evolução do sistema desde um instante t até qualquer instante posterior t + ∆t pode ser enten-dida como uma sucessão de transformações canônicas infinitesimais, e portanto é também uma transfor-mação canônica, ou seja, a transformação

qi (t)→ qi (t + ∆t)pi (t)→ pi (t + ∆t)

onde ∆t é um intervalo finito de tempo é uma transformação canônica.

• Interpretando agora a transformação canônica como uma transformação ativa, o que estamos fazendo élevar as coordenadas η

∼(t) de um ponto no espaço de fase até a nova coordenada η

∼(t + ∆t), que corres-

ponde justamente ao estado do sistema físico num instante posterior. Ou seja: a função Hamiltonianagera uma transformação canônica que corresponde à evolução temporal do sistema físico considerado.

Podemos reafirmar, portanto, literalmente, que a função Hamiltoniana é responsável por gerar a evoluçãotemporal do sistema no espaço de fase.

5.5 Teorema de Liouville

• O teorema de Liouville é outra importante propriedade de sistemas mecânicos que pode ser “descoberta”naturalmente na formulação Hamiltoniana. É um resultado particularmente importante na formulaçãoda Mecânica Estatística, uma teoria que procura fundamentar a Termodinâmica a partir do comporta-mento médio dos numerosos componentes microscópicos que constituem qualquer sistema macroscó-pico.

Page 92: Allison analitica

92 CAPÍTULO 5. PARÊNTESIS DE POISSON TEOREMA DE LIOUVILLE E DE POINCARÉ

• Até agora, sempre consideramos o seguinte problema: dado um sistema físico, que num instante inicialtem seu estado representado por um determinado ponto η

∼(t0) do espaço de fase, queremos encontrar o

estado do sistema η∼(t) em qualquer instante t posterior.

• Queremos trabalhar contudo numa situação em que não temos conhecimento perfeito sobre o estadodo sistema. Considere por exemplo 1 mol (1023) moléculas de um certo gás contidas num recipiente devolume fixo, mantendo fixas temperatura e pressão. Em princípio, em dado instante de tempo t, pode-ríamos descrever o estado do sistema por um conjunto de 6× 1023 coordenadas ηi. Em termos práticos,contudo, seria impossível obter as posições e velocidades iniciais das 6× 1023 moléculas contidas no re-cipiente. E mesmo que as obtivéssemos, e tivéssemos computadores potentes o suficiente para resolveras 6× 1023 equações de movimento resultantes, teríamos como resultado 6× 1023 soluções ηi (t), e seriamuito difícil tirar daí qualquer resultado útil sobre o comportamento do gás.

O que realmente caracteriza o gás, num determinado instante do tempo, é um conjunto muito pequenode grandezas, a saber: volume, temperatura e pressão, que são médias de determinadas grandezas micros-cópicas: por exemplo, a temperatura está associada à energia cinética média das moléculas, a pressão, àforça média exercida sobre as paredes, etc...

Fixadas V, T e P, existem muitos estados microscópicos η∼(t0) que diferem nas posições e velocidades de

várias moléculas, e contudo fornecem os mesmos valores de V, T e P para o gás como um todo. Quandofixamos um estado macroscópico do gás (ou seja, fixamos V, T e P), estamos na verdade considerando umgrande número de estados microscópicos que não podemos (e não queremos) distinguir entre si.

• Somos levados naturalmente a considerar, assim, o que acontece com a evolução temporal de regiões doespaço de fase, ou seja, coleções de muitos pontos representando, por exemplo, os estados microscópiosque correspondem a um mesmo estado macroscópico.

Em particular, consideramos uma região A, como na figura. Podemos considerar cada ponto a∼(t0) em

A como condição inicial para a dinâmica do sistema físico considerado, de forma que a Hamiltoniana dosistema H gera a evolução de a

∼para a

∼(t), onde t é um instante posterior fixado. Repetindo isso para

cada ponto em A, obtemos uma nova região do espaço de fase, que chamamos A′.

Conforme vai passando o tempo, a região A′ vai evoluindo. Desta forma, quando pensamos em conjuntosde soluções ao invés de apenas uma solução, a evolução Hamiltoniana é representada por esta evoluçãoda região A conforme o tempo vai passando.

Pictoricamente, podemos entender esta evolução da seguinte forma: imagine que temos um fluxo dealgum líquido incolor, e num dado instante do tempo “marcamos” uma região despejando tinta sobre ela.Conforme o tempo passa, a tinta vai sendo carregada pelo fluído, e a região “pintada” vai assim sendo

Page 93: Allison analitica

5.5. TEOREMA DE LIOUVILLE 93

arrastada e deformada pelo fluxo do fluído. Temos assim a representação da evolução Hamiltonianacomo o fluxo de um fluído, onde cada partícula do fluído corresponderia à uma particular solução dasequações canônicas de Hamilton.

• O Teorema de Liouville, que vamos enunciar primeiro e depois provar, afirma que esta evolução Ha-miltoniana obedece às condições do fluxo de um fluído incompressível, i.e., o volume da região A não semodifica conforme o tempo passa.

Teorema de LiouvilleSeja A uma dada região do espaço de fase, e seja A′ a região obtida de A pela evoluçãoHamiltoniana em um determinado intervalo de tempo ∆t. Então, o volume de A e de A′

são iguais, ou seja, a evolução Hamiltoniana preserva volume.

Demonstração. Para provar o resultado, note que o volume de A é obtido pela integral

Vol (A) =

ˆA

dη1 · · · dη2M

A cada ponto (ηi) de A, sejam ξi (ηi, t) as coordenadas do ponto ao qual (ηi) é levado pela evolução Hamilto-niana no instante final t considerado. Pensando no ponto de vista ativo, podemos pensar numa mudança decoordenadas

ηi → ξi (ηi, t)

e um dos resultados fundamentais que encontramos é que tal transformação é canônica. O volume de A′ podeser escrito, portanto,

Vol(

A′)=

ˆA′

dξ1 · · · dξ2M

O teorema de mudança de variáveis de uma integral múltipla, contudo, afirma que

ˆA′

dξ1 · · · dξ2M =

ˆA

∣∣∣∣det[

∂ξ

∂η

]∣∣∣∣ dη1 · · · dη2M

onde [∂ξ

∂η

]ij=

[∂ξi

∂ηj

]é a matriz Jacobiana da transformação η

∼→ ξ

∼. Como já mostramos, toda transformação canônica tem matriz

Jacobiana com determinante de módulo 1, i.e., ∣∣∣∣det[

∂ξ

∂η

]∣∣∣∣ = 1

logo segue que ˆA′

dξ1 · · · dξ2M =

ˆA

dη1 · · · dη2M

ou sejaVol (A) = Vol

(A′)

que é o Teorema de Liouville.

• Analisando conjuntos de soluções no espaço de fase podemos chegar a outro resultado surpreendente,uma consequência imediata do Teorema de Liouville: o chamado Teorema de Recorrência de Poincaré.

Page 94: Allison analitica

94 CAPÍTULO 5. PARÊNTESIS DE POISSON TEOREMA DE LIOUVILLE E DE POINCARÉ

• Considere um sistema mecânico tal que o espaço de fase disponível para as soluções seja finito. Isto étipicamente o caso para um sistema com o valor de energia mecânica fixada (finita). Por exemplo, paraum oscilador harmônico

H =12

p2 +ω2

2q2

claramente a imposição H = E ≤ ∞ significa que q e p não podem tomar valores arbitrariamentegrandes. Nenhuma solução do sistema pode, portanto, visitar regiões do espaço de fase que estejamfora de algum domínio D. Neste caso, temos o seguinte Teorema:

Teorema de Recorrência de PoincaréSeja um sistema mecânico cujos estados ocupam uma região finita do espaço de fase.Então, dado qualquer estado inicial do sistema, existem estados próximos que voltarãoa estar próximos do estado inicial num tempo finito.

Demonstração. Vamos provar o teorema por absurdo, supondo que ele não é verdadeiro, ou seja: existe algumestado inicial e uma vizinhança U ⊂ D deste estado, tal que nenhum ponto de U retorna a U após um tempofinito.

• Fixe um intervalo de tempo ∆t qualquer, e seja g a função que leva U até o resultado da evolução Ha-miltoniana de U pelo intervalo ∆t: ou seja, g (U ) é a região que contêm, no instante t + ∆t, todos ospontos que no instante t estavam em U . Aplicando sucessivas vezes a função g, estamos “tirando retra-tos” da evolução da região U em intervalos regulares de tempo ∆t. Se o teorema não é válido, significasimplesmente que todas as regiões gn (U ) são disjuntas, ou seja, não possuem pontos em comum.

• Como o fluxo Hamiltoniano preserva volume, isto significa que a soma dos volumes das regiões

U , g (U ) , g2 (U ) , · · ·

vai crescendo continuamente já que as regiões não se sobrepõem. Mas como o volume total deD é finito,o volume de

U⋃

g (U )⋃

g2 (U )⋃· · ·

ultrapassaria o volume de D após um número finito de aplicações de g, ou seja, após um tempo finito:isto é o absurdo, o que prova o Teorema de Recorrência.

• Graficamente, temos a situação como na figura: como o volume disponível no espaço de fase é finito, aregião U forçosamente volta a ter uma interseção não-nula consigo mesmo após um intervalo de tempofinito.

Page 95: Allison analitica

5.5. TEOREMA DE LIOUVILLE 95

• O Teorema de Recorrência de Poincaré, quando aplicado em considerações de Mecânica Estatística, pa-rece levar a absurdos: suponha um recipiente dividido por uma parede em dois sub-recipientes: umcontendo gás ideal e outro vazio. Após retirar a parede interna, sabemos que o gás ocupa todo o volumedisponível, e nunca mais volta a ocupar apenas a metade original do recipiente. Contudo, o teorema re-cém demonstrado implica que que o sistema deveria voltar a estados próximos do seu estado inicial apósum tempo finito, ou seja, o gás deveria voltar a ocupar aproximadamente apenas a metade do recipiente.

• Este tipo de consideração foi usado para criticar a formulação da Mecânica Estatística, que tomava porbase a mecânica clássica para descrever a evolução das partículas que compõem o gás (a mecânica quân-tica ainda não havia sido descoberta). O Teorema de Recorrência de Poincaré parecia descrever umcomportamento quase cíclico do sistema microscópico, que obviamente não estava de acordo com asobservações experimentais.

• A solução deste dilema está na real dimensão do tempo finito do teorema: Boltzmann calculou o tempo derecorrência para um gás de 1018 partículas, ocupando um volume de 1cm3 como sendo de 101018

segun-dos, o que é inconcebivelmente maior que a idade do universo conhecido, da ordem de 1017 segundos.Este tipo de intervalo de tempo pode ser completamente descartado nas considerações da Mecânica Es-tatística. Nos intervalos de tempo que nos são acessíveis, nunca observamos a Recorrência de Poincaré.

Page 96: Allison analitica

96 CAPÍTULO 5. PARÊNTESIS DE POISSON TEOREMA DE LIOUVILLE E DE POINCARÉ

Page 97: Allison analitica

Capıtulo 6Teoria de Hamilton-Jacobi

6.1 Teoria de Hamilton-Jacobi

• Já mostramos que a partir de uma função geradora da forma F2 (q, P, t), função das velhas coordenadas edos novos momentos, encontramos uma transformação canônica de coordenadas por meio das fórmulas

pi =∂F2 (q, P, t)

∂qi; Qi =

∂F2 (q, P, t)∂Pi

; K = H+∂F2

∂t

onde devemos “inverter” a primeira equação para obter uma expressão para os novos momentos P emtermos das velhas coordenadas q e velhos momentos p.

• Vamos discutir agora um método sistemático para encontrarmos uma função geradora adequada, ouseja, que simplifique a resolução do problema. Vamos usar uma função geradora do tipo F2, mas paraconcordar com a notação usual da Teoria de Hamilton-Jacobi, vamos chamar esta função de S (q, P, t)1.

• Suponha que encontremos uma função S (q, P, t) tal que, nas novas variáveis, a Hamiltoniana do pro-blema é identicamente nula,

K = 0

então as equações de movimento nas novas variáveis são triviais,

Qi = 0⇒ Qi = βi

Pi = 0⇒ Pi = αi

onde αi e βi são constantes que devem ser encontradas das condições iniciais do problema. Como Piresulta ser constante, na verdade a função S depende apenas das velhas coordenadas e do tempo:

S = S (qi, t; αi)

• A passagem da solução nas variáveis Qi, Pi para as variáveis qi, pi dá-se da seguinte maneira: temos que

pi =∂S∂qi

; Qi =∂S∂Pi

Como as novas coordenadas são constantes, a segunda equação implica

βi =∂S∂αi

(qi, t; αi)

1Note que a letra S é justamente usada para denotar a ação; esta repetição não é acidental, mas não iremos discutir este ponto emmaiores detalhes nestas aulas. O leitor interessado pode consultar qualquer livro da bibliografia do curso a este respeito.

97

Page 98: Allison analitica

98 CAPÍTULO 6. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI

de onde encontramosqi = qi (αi, βi, t)

uma vez fixadas αi e βi pelas condições iniciais, encontramos assim qi como função de t. Inserindo qi (t)na 1ª equação, por sua vez, encontramos

pi = pi (αi, βi, t)

de forma que obtemos a solução completa do problema, desde que, é claro, efetivamente consigamosencontrar tal função S que faça K = 0, ou seja,

K = H (q, p, t) +∂S∂t

= 0

Como pi =∂S∂qi

, podemos escrever

H(

qi,∂S∂qi

, t)+

∂S∂t

= 0

lembrando que S = S (q, t). Esta é chamada de Equação de Hamilton-Jacobi. Trata-se de uma equaçãodiferencial parcial para a função S, que se resolvida nos fornecerá a solução do problema seguindo oprocedimento delineado acima.

Exemplo 27. A Partícula Livre Unidimensional

• A Hamiltoniana original do problema é

H (q, p) =p2

2m

• A equação de Hamilton-Jacobi escreve-se:

H(

qi,∂S∂qi

, t)+

∂S∂t

=

=1

2m

(∂S∂q

)2

+∂S∂t

= 0

• Uma solução desta equação pode ser encontrada por separação de variáveis, ou seja, tentamos o ansatz:

S (q, t) = W (q) + T (t)

que, introduzido na equação de Hamilton-Jacobi, fornece

12m

(dWdq

)2

= −dTdt

O lado esquerdo desta equação é função somente de q, enquanto que o lado direito é função somente det; a única forma da igualdade ser mantida é se ambos forem iguais a uma constante,

12m

(dWdq

)2

= −dTdt

= α

Portanto:−dT

dt= α⇒ T = −αt + s1

Page 99: Allison analitica

6.1. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI 99

e1

2m

(dWdq

)2

= α⇒ dWdq

=√

2mα⇒W =√

2mαq + s2

onde α, s1 e s2 são constantes. Note, contudo, que uma constante aditiva em S é irrelevante, já queS sempre aparece com derivadas nas equações que definem as coordenadas como funções do tempo.Temos então:

S (q, t) =√

2mαq− αt

• Uma vez encontrada S, usamos que

β =∂S∂α

(q, α, t)⇒ β =

√m2α

q− t

ou seja

q =

√2α

m(β + t)

Por outro lado,

p =∂S∂q⇒ p =

√2mα

Concluímos:

q =

√2α

m(β + t)

p =√

2mα

• Considerando agora as condições iniciais:

p (t0) = p0 ⇒ p0 =√

2mα⇒ α =p2

02m

⇒ q =

√2α

m(β + t) =

p0

m(β + t)

e

q (t0) = q0 ⇒ q0 =p0

m(β + t)⇒ β = m

q0

p0− t0

daí, encontrados α e β em termos das condições iniciais q0, p0, ficamos com

q = q0 +p0

m(t− t0)

p = p0

que é justamente a solução da partícula livre.

Page 100: Allison analitica

100 CAPÍTULO 6. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI

Integral completa da Equação de Hamilton-Jacobi

• A solução de equações diferenciais parciais é em princípio bastante mais complexa do de equações di-ferenciais ordinárias, mesmo assim, existem várias técnicas matemáticas que permitem resolver muitoscasos importantes. Nesta seção, vamos discutir um método em particular que é suficiente para tratar aEquação de Hamilton-Jacobi, o chamado método da integral completa.

• Se o espaço de fase tem dimensão 2M, então S (q, t) é função de M + 1 variáveis, os qi e t. A equação deHamilton-Jacobi,

H(

qi,∂S∂qi

, t)+

∂S∂t

= 0

é uma equação de 1ª ordem envolvendo derivadas com respeito a estas M + 1 variáveis. Por similaridadeao que acontece com equações diferenciais ordinárias, seríamos tentados a dizer que deve haver umasolução geral desta equação, envolvendo M + 1 constantes indeterminadas. A questão é mais delicada,contudo, ao percebermos que a equação de Hamilton-Jacobi é tipicamente não-linear. Ademais, mesmo seencontrarmos uma solução S envolvendo M + 1 constantes a determinar, esta não será uma solução geral:podem haver outras soluções que não se podem obter desta por escolhas adequadas das constantesM + 1. Isto devido ao fato de estarmos lidando com uma equação diferencial parcial, ao invés de uma EDO.

• Embora uma “solução geral” para S envolvendo M + 1 constantes não é “geral” no sentido exato, aindaassim vamos mostrar que encontrar tal solução é suficiente para resolver o problema mecânico que es-tamos considerando. Na verdade, como S sempre aparece na equação com derivadas, uma das M + 1constantes será sempre aditiva: ou seja, se S é solução, S + α também será solução, se α for constante.Esta constante aditiva é irrelevante para o problema, e portanto pode ser descartada: ficamos assim comouma solução

S = S (qi, αi, t)

dependendo de M constantes arbitrárias αi. Tal solução é chamada de integral completa se satisfaz aseguinte condição:

DefiniçãoUma solução S (qi, αi, t) envolvendo M constantes arbitrárias não-aditivas é chamada deintegral completa da Equação de Hamilton-Jacobi se

det[

∂2S∂qi∂αj

]6= 0

• O Teorema de Jacobi garante que, uma vez encontrada uma integral completa da Equação de Hamilton-Jacobi, encontramos a solução do problema mecânico considerado.

Teorema de JacobiDada uma integral completa S (qi, αi, t) da Equação de Hamilton-Jacobi, então as equa-ções

βi =∂S∂αi

(qi, αi, t) ; pi =∂S∂qi

(qi, αi, t)

definem implicitamente uma solução

qi = qi (αi, βi, t) ; pi = pi (αi, βi, t)

das equações canônicas de movimento.

Page 101: Allison analitica

6.1. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI 101

Demonstração. Para provar o teorema, derivamos βi =∂S∂αi

com respeito ao tempo, lembrando que βi é cons-tante

βi = ∑j

∂2S∂αi∂qj

qj +∂2S

∂αi∂t= 0

⇒ ∂2S∂αi∂t

= −∑j

∂2S∂αi∂qj

qj

Por outro lado, como pi =∂S∂qi

(qi, αi, t), podemos escrever a Equação de Hamilton-Jacobi como

H (qi, pi (qi, αi, t) , t) +∂S∂t

= 0

Derivando parcialmente com respeito a αi:

∑j

∂H∂pj

∂pj

∂αi+

∂2S∂t∂αi

= 0

Lembrando que derivadas parciais comutam, i.e., ∂2S∂t∂αi

= ∂2S∂αi∂t , podemos substituir ∂2S

∂t∂αipelo que encontramos

anteriormente, e como∂pj

∂αi=

∂2S∂αi∂qj

obtemos

∑j

∂2S∂αi∂qj

(∂H∂pj− qj

)= 0

Como det ∂2S∂αi∂qj

6= 0, a única solução possível desta equação é

qj =∂H∂pj

Por outro lado, derivando pi =∂S∂qi

com respeito ao tempo:

pi = ∑j

∂2S∂qi∂qj

qj +∂2S

∂qi∂t

e derivando a Equação de Hamilton-Jacobi com respeito a qi:

∂H∂qi

+ ∑j

∂H∂pj

∂pj

∂qi+

∂2S∂t∂qi

= 0

⇒ ∂2S∂t∂qi

= −∂H∂qi−∑

j

∂H∂pj

∂2S∂qi∂qj

logo

pi = ∑j

∂2S∂qi∂qj

(qj −

∂H∂pj

)︸ ︷︷ ︸

=0

− ∂H∂qi

Concluímos, assim, que qi e pi satisfazem

qj =∂H∂pj

; pi = −∂H∂qi

que são justamente as equações canônicas de movimento. Está provado assim o Teorema de Jacobi.

Page 102: Allison analitica

102 CAPÍTULO 6. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI

• A importância do Teorema de Jacobi está em mostrar que basta encontrar uma solução particular envol-vendo M constantes arbitrárias não-aditivas, para encontrar a solução do problema considerado. Nãoprecisamos abordar o problema de encontrar todas as soluções da Equação de Hamilton-Jacobi, o que emprincípio é uma questão bem mais complexa.

Sistemas Conservativos

• Se H não depende explicitamente do tempo, a Hamiltoniana é uma grandeza conservada. Nestes casos,a equação de Hamilton-Jacobi escreve-se

H(

qi,∂S∂qi

)+

∂S∂t

= 0

• Então uma possível integral completa para S terá a forma

S (qi, αi, t) = W (qi, α1, . . . , αM−1)− αMt

onde αM é uma das M constantes arbitrárias da integral primeira, ou seja, W depende de M− 1 constan-tes arbitrárias.

• De fato, substituindo esta expressão na equação de Hamilton-Jacobi, como

∂S∂qi

=∂W∂qi

encontramos uma equação que só envolve W:

H(

qi,∂W∂qi

)= αM

chamada de equação de Hamilton-Jacobi independente do tempo.

• Em muitos casos de interesse físico, vimos que a Hamiltoniana corresponde à Energia Mecânica total dosistema, ou seja, H = E. Nestes casos, a constante αM pode ser identificada com a Energia MecânicaTotal. Em resumo:

Quando a Hamiltoniana não depende explicitamente do tempo e é igual à EnergiaMecânica Total E, uma integral completa da equação de Hamilton-Jacobi pode serencontrada da forma

S (qi, t) = W (qi)− Et

onde W (qi) é uma função que depende de M− 1 constantes arbitrárias não-aditivas, esatisfaz a equação

H(

qi,∂W∂qi

)= E

Exemplo 28. O Oscilador Harmônico

• A Hamiltoniana do problema é

H =p2

2+

ω2

2q2

Page 103: Allison analitica

6.1. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI 103

• Claramente, estamos numa situação em que podemos usar a equação de Hamilton-Jacobi independentedo tempo. Ou seja, para encontrar a integral primeira

S (q, α, t)

que depende de uma constante arbitrária, vamos supor que

S (q, t) = W (q)− Et

onde a constante arbitrária foi identificada com a energia E, e W satisfaz

H(

q,∂W∂q

)= E

⇒ 12

(∂W∂q

)2

+ω2

2q2 = E

onde W não depende de nenhuma constante arbitrária.

• Desta última equação encontramos, imediatamente,

∂W∂q

=√

2E−ω2q2

logo

W =

ˆ √2E−ω2q2dq

Note que teríamos uma constante arbitrária aditiva aqui, que podemos descartar como já foi observadoanteriormente.

• Optando por não efetuar a integral em q por enquanto, podemos escrever

S (q, t) =ˆ √

2E−ω2q2dq− Et

que é a integral completa do problema. Encontramos q (t) através de

β =∂S∂E

⇒ β =

ˆ∂

∂E

(√2E−ω2q2

)dq− t

=

ˆdq√

2E−ω2q2− t

=1√2E

ˆdq√

1− ω2

2E q2− t

• Consultando uma tabela de integrais:

ˆdq√

1− ω2

2E q2=

√2E

ωarcsin

(ω√2E

q)

Page 104: Allison analitica

104 CAPÍTULO 6. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI

• Portanto:

β =1ω

arcsin(

ω√2E

q)− t

⇒ arcsin(

ω√2E

q)= ω (t + β)

⇒ q (t) =√

2Eω

sin [ω (t + β)]

que é a conhecida solução do oscilador harmônico.

6.2 A Equação de Hamilton-Jacobi e a Óptica Geométrica

• Hamilton descobriu uma similaridade surpreendente entre a dinâmica de um sistema mecânico e a óp-tica geométrica. Para encontrar esta conexão, vamos considerar o movimento de uma partícula sob açãode um dado potencial, descrito em coordenadas cartesianas ~x, onde ~x = (x1, x2, x3). Neste caso, a Ha-miltoniana será da forma

H (~x,~p) =1

2m ∑i

p2i + V (~x)

e podemos encontrar uma integral completa da forma

S (~x, t) = W (~x)− Et

onde a função W satisfaz1

2m ∑i

(∂W∂xi

)2

+ V (~x) = E

Em termos do gradiente ∇W, temos

(∇W)2 = 2m (E−V (~x))

• Dada uma função S (~x, t), fixamos o tempo t e consideramos a equação

S (~x, t) = C

onde C é uma constante. Supondo S uma função suficientemente bem comportada, tal equação defineuma superfície no espaço. Para um valor de t diferente, temos em geral uma superfície diferente, comona figura.

Page 105: Allison analitica

6.2. A EQUAÇÃO DE HAMILTON-JACOBI E A ÓPTICA GEOMÉTRICA 105

Assim, a equação S (~x, t) = C define uma família de superfícies no espaço tridimensional, parametrizada pelotempo t.

• Pode-se ver facilmente que o gradiente ∇W é perpendicular às superfícies de S (~x, t) constante:

De fato, por definição, a diferença entre o valor de W em dois pontos próximos, separados pelo vetorinfinitesimal d~r = (dx1, dx2, dx3) é

dS = (∇S) · d~r = (∇W) · d~r

contudo, se d~r é tangente à superfície de S (~x, t) constante, como na figura, temos que

dS = 0

o que significa que(∇W) · d~r = 0

sempre que d~r for tangente à superfície – logo, ∇W é um vetor perpendicular à superfície de S (~x, t)constante.

• Em cada instante de tempo, o momento linear é um vetor com componentes

pi =∂S∂xi

=∂W∂xi

ou seja~p = ∇W

E acabamos de descobrir que ∇W é sempre perpendicular às superfícies de S constante. Isto significaque se pensamos na família de superfícies definida por

S (~x, t) = C

conforme t vai variando, a partícula move-se de forma a estar sempre perpendicular a tais superfícies,como nas linhas tracejadas da figura:

Page 106: Allison analitica

106 CAPÍTULO 6. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI

Exemplo 29. Um caso trivial

Suponha, por exemplo, que a função S (~r, t) seja dada por

S (~r, t) = r2 − ct

então a equaçãoS (~r, t) = C

define uma esfera centrada na origem, com raio C + ct. As trajetórias das partículas correspondentes seriam as curvasque são sempre perpendiculares a tais superfícies – ou seja, linhas radiais partindo da origem.

• Esta construção lembra a noção de raios de luz, que são também perpendiculares às frentes de onda queemanam de qualquer fonte luminosa. Na óptica, as frentes de onda são superfícies de fase constante queevoluem no tempo. Ao passar de um meio para outro, as frentes de ondas são deformadas, e consequen-temente o raio de luz muda de direção. Abaixo, a construção de Huygens para a explicação da refraçãoda luz a partir das frentes de onda.

Page 107: Allison analitica

6.2. A EQUAÇÃO DE HAMILTON-JACOBI E A ÓPTICA GEOMÉTRICA 107

• Poderíamos imaginar, desta analogia, que a trajetória da partícula estaria associada a algum processo ondulatóriofictício, cuja fase é dada pelo valor de S. Se tal fosse verdade, poderíamos calcular a velocidade desta “ondafictícia” que está associada ao movimento da partícula, como se segue: considere a superfície

S (~x, t) = C

em dois instantes próximos de tempo, como na figura:

• Sendo dS a diferença entre o valor de S entre os pontos P e P′, temos dS = 0 por definição. Por outrolado, como S = W − Et,

dW − Edt = 0

e, como já vimos que(∇W)2 = 2m (E−V (~x))

podemos escrever

dW = (∇W) · d~s = |∇W| ds =√

2m (E−V (~x))ds

e

dt =dWE

=

√2m (E−V (~x))

Eds

Page 108: Allison analitica

108 CAPÍTULO 6. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI

Daí, a velocidade da frente de onda é

u =dsdt

=E√

2m (E−V (~x))

• Ora, tomando por exemplo o caso de uma partícula livre

E = mv2

2; V = 0

temos

u =m v2

2√m2v2

=12

v

ou seja, as frentes de onda não se movem com a mesma velocidade da partícula. Em princípio parecedifícil dizer que efetivamente existe algum processo ondulatório real que está associado ao movimentoda partícula. Esta dificuldade em particular pode ser resolvida usando-se o conceito de pacotes de onda(este é um conceito geralmente discutido em cursos elementares de Mecânica Quântica, e foge do escopode nossa discussão).

• Outra dificuldade é a seguinte: na propagação de ondas, existem fenômenos como interferência e difração,que são típicos fenômenos ondulatórios. Por exemplo, uma onda encontrando um anteparo onde existemdois furos (S2) vai gerar uma figura de interferência num 2º anteparo (F), uma figura de máximos emínimos.

A distância entre máximos e mínimos é da ordem de λ/d, onde d é a distância entre os dois furos.

Contudo, no movimento de partículas, tal figura de interferência não se forma: num experimento similar,envolvendo balas de um rifle, cada bala passa ou por furo ou pelo outro, e mesmo considerando adistribuição estatística de várias balas não encontramos nenhuma figura de interferência.

Page 109: Allison analitica

6.3. A TEORIA DE HAMILTON-JACOBI E A MECÂNICA QUÂNTICA 109

Para resolver esta dificuldade, podemos pensar no limite da óptica geométrica: quando o comprimento deonda λ tende a zero, os efeitos de interferência e difração são suprimidos, e vale a óptica geométricade Newton. Poderíamos assim “salvar” esta noção ondulatória subjacente à Mecânica Hamiltoniana,entendendo-a como o limite de comprimento de onda muito curto de alguma teoria ondulatória.

• Na época de Hamilton, contudo, não havia qualquer indicação experimental que favorecesse a busca poruma teoria ondulatória do movimento. Por isto, esta analogia ficou quase que como uma curiosidadeteórica. Como você deve saber, esta situação mudou no começo do século XX, quando efetivamentecomeçou a se descobrir certos comportamentos ondulatórios associados a elétrons, por exemplo.

6.3 A Teoria de Hamilton-Jacobi e a Mecânica Quântica

• No começo do século XX, Einstein mostrou que a emissão/absorção da luz se comportava de formaquantizada. Mais concretamente, a luz de frequência ν se comportaria em algumas situações como com-posta por partículas de energia

E = hν

onde h é a constante de Planck.

Por outro lado, Louis de Broglie conjecturou que partículas como o elétron também deveriam ter umanatureza ondulatória, associando a uma partícula de momento p um comprimento de onda da ordem

λ =hp

• No começo de 1926, Erwin Schrödinger apresentou um seminário em Zurique, sobre a proposta de deBroglie; após o seminário, um estudante da plateia comentou que, se havia uma onda associada ao elé-tron, esta deveria obedecer uma Equação de Onda. Nas semanas seguintes a este seminário, Schrödingerencontrou a Equação de Onda, conhecida hoje como equação de Schrödinger. Sua principal inspiração foijustamente a teoria de Hamilton-Jacobi e sua conexão com a óptica geométrica.

• O que Schrödinger conjecturou é que efetivamente existe uma fenômeno ondulatório associado ao mo-vimento de uma partícula. Assim como a luz é entendida como um fenômeno ondulatório, onde são

Page 110: Allison analitica

110 CAPÍTULO 6. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI

os campos elétrico e magnético que oscilam no tempo, Schrödinger supôs que associada ao movimentode uma partícula havia uma quantidade Ψ que oscilava no tempo, com uma fase proporcional à funçãoS (~r, t) da teoria de Hamilton-Jacobi:

Ψ (~r, t) = exp(

ih

S (~r, t))= exp

[ih(W (~r)− Et)

],

onde h = h/2π. Lembre-se que uma exponencial de um número complexo é escrita em termos defunções senos e cossenos; a parte Real de Ψ por exemplo seria

cos[

1h

W (~r)− Eh

t]

e lembrando que, por exemplo, uma onda plana é da forma

cos [kx−ωt]

por comparação teremosEh= ω ⇒ E = hω = hν

Com esta expressão para Ψ (~r, t), Schrödinger conseguia assim reproduzir a relação E = hν da MecânicaQuântica.

• Schrödinger supôs que Ψ satisfizesse uma equação de onda usual,

∇2Ψ− 1u2

∂2Ψ∂t2 = 0

e lembrou-se da velocidade das frentes de onda da Teoria de Hamilton-Jacobi

u =E√

2m (E−V)

obtendo assim

∇2Ψ− 2m (E−V)

E2∂2Ψ∂t2 = 0

por outro lado:∂2Ψ∂t2 = − 1

h2 E2Ψ

obtem-se assim

− h2

2m∇2Ψ + VΨ = EΨ

que é equação de Schrödinger independente do tempo. Novamente lembrando-se da forma de Ψ, pode-seescrever também

− h2

2m∇2Ψ + VΨ = ih

∂Ψ∂t

que é a forma dependente do tempo da Equação de Schrödinger.

• Podemos agora postular que Ψ obedece a esta equação de onda, e fazer a substituição

Ψ (~r, t) = exp[

ih(W (~r)− Et)

]

Page 111: Allison analitica

6.4. PARÊNTESIS DE POISSON E MECÂNICA QUÂNTICA 111

para encontrar uma equação para W. Encontramos:

∇2 exp[

ih

W (~r)]= ∑

i

(∂

∂xi

)2

exp[

ih

W (~r)]

= ∑i

∂xi

(ih

∂W∂xi

exp[

ih

W (~r)])

= ∑i

(ih

∂2W∂x2

i− 1

h2

(∂W∂xi

)2)

exp[

ih

W (~r)]

ou seja (lembrando que ∂∂x W = ∂

∂x S),

− h2

2m∇2Ψ = − ih

2m(∇2S

)Ψ +

12m

(∇S)2 Ψ

por outro lado,

ih∂Ψ∂t

= EΨ

e desta forma, da equação de onda

− h2

2m∇2Ψ + VΨ = ih

∂Ψ∂t

obtemos a seguinte equação para S

12m

(∇S)2 + V +∂S∂t− ih

2m∇2S = 0

Esta é justamente a equação de Hamilton-Jacobi, com um termo de correção imaginário dependendode h. Desta forma, Schrödinger constatou que no limite h → 0 sua teoria recaía no limite clássico daEquação de Hamilton-Jacobi, ao menos formalmente.

• Todo este desenvolvimento, contudo, não explica o significado físico da função Ψ. De fato, uma interpre-tação adequada para Ψ não foi dada por Schrödinger, mas por Max Born, alguns anos depois. Umadificuldade inicial para interpretar fisicamente a função Ψ é que ela é em geral complexa, como se vêpelo aparecimento de um termo imaginário na equação anterior. E embora tenhamos visto que, for-malmente, a Mecânica Quântica parece ser uma continuação quase natural do formalismo da MecânicaHamiltoniana, na verdade a interpretação física dos dois formalismos é radicalmente diferente: na Mecâ-nica Clássica, S fornece diretamente as coordenadas e momentos q (t) e p (t) como função do tempo, naMecânica Quântica, Ψ fornece a amplitude de probabilidade para encontrar a partícula num determinadoponto do espaço.

6.4 Parêntesis de Poisson e Mecânica Quântica

• Também é possível fazer uma conexão entre o formalismo da Mecânica Quântica e da Mecânica Ha-miltoniana pensando-se em termos de parêntesis de Poisson. Na verdade, esta conexão é o caminhogeralmente empregado para se definir uma teoria quântica a partir de uma teoria clássica, no procedi-mento chamado de quantização canônica.

• Vimos que a formulação Hamiltoniana da Mecânica Clássica pode resumir-se na existência de um espaçode fase, com coordenadas qi, pi, onde existe um Parêntesis de Poisson satisfazendo{

qi, qj}={

pi, pj}= 0 ;

{qi, pj

}= δij ,

Page 112: Allison analitica

112 CAPÍTULO 6. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI

e onde está definida uma função Hamiltoniana H (q, p), responsável por gerar a evolução temporal dequalquer grandeza física pela equação

dFdt

= {F ,H}+ ∂F∂t

.

• Este foi o ponto de partida para Werner Heisenberg encontrar sua formulação da Mecânica Quântica. Achave para esta conexão é a observação de que as grandezas que representam, na Mecânica Quântica,determinadas grandezas físicas não comutam entre si. Conforme Heisenberg mostrou, posição e momentode uma partícula obedecem uma relação de incerteza fundamental

∆x∆p ≥ h

e esta relação está ligada ao fato de que posição e momento são representados por certas matrizes q e pque obedecem a uma relação de comutação não trivial:

q · p− p · q = ih

Definindo o comutador de duas matrizes

[A, B] = A · B− B ·A

temos[q, p] = ih

• Ora, o comutador entre matrizes tem propriedades idênticas às dos Parêntesis de Poisson:

– Antisimetria:[A, B] = − [B, A]

– Linearidade:[A, αB + C] = α [A, B] + [A, C]

– Uma propriedade similar à “regra de Leibnitz”:

[A, B · C] = [A, B] · C + B · [A, C]

– Identidade de Jacobi:∑

cíclica[A, [B, C]] = 0

• Daí, é possível um mapeamento formal entre uma teoria mecânica no formalismo Hamiltoniano e umateoria de matrizes, como se segue: a cada coordenada ηi do espaço de fase temos que encontrar umamatriz η tal que os comutadores entre estas matrizes são dados pela Regra de Correspondência de Heisenberg

ih{

ηi, ηj}→[ηi, ηj

]Encontramos também uma matriz Hamiltoniana H, obtida deH (ηi) substituindo-se ηi pela matriz ηi.

• Em particular, fazemos corresponder aos Parêntesis de Poisson Fundamentais{qi, qj

}={

pi, pj}= 0 ;

{qi, pj

}= δij ,

os comutadores [qi, qj

]=[pi, pj

]= 0 ;

[qi, pj

]= ihδij

Page 113: Allison analitica

6.4. PARÊNTESIS DE POISSON E MECÂNICA QUÂNTICA 113

• Então, dada qualquer grandeza F função das matrizes η, a evolução temporal é dada pela Equação deHeisenberg

dFdt

= ih[F , H

]+

∂F∂t

Exemplo 30. O Oscilador Harmônico

Consideremos

H =p2

2+

ω2

2q2 ,

suponha que você consiga construir matrizes q e p que satisfazem

[q, q] = [p, p] = 0 ; [q, p] = ih

(é possível encontrar tais matrizes, mas não vamos mostrar aqui explicitamente como). Então você podedefinir uma matriz Hamiltoniana substituindo-se q por p e p por p emH:

H =p2

2+

ω2

2q2

As equações de movimento para q e p, por exemplo, são obtidas de

q =[q, H

]=

12[q, p2] = p

p =[p, H

]=

ω2

2[p, q2] = −ω2q

que são formalmente idênticas às equações canônicas clássicas. Não surpreendentemente, as soluções tambémsão formalmente idênticas:

q (t) =p0

ωsin ωt + q0 cos ωt

p (t) = p0 cos ωt−ωq0 sin ωt

onde q0 e p0 são os operadores posição e momento no instante inicial t = 0.

• A similaridade formal entre a Mecânica Quântica e a formulação Hamiltoniana da Mecânica Clássica,portanto, é grande. A interpretação física dada às grandezas, contudo, é bastante diferente. Na MecânicaClássica, o conhecimento das coordenadas ηi em cada instante fornece a posição e o momento exato decada partícula que compõe o sistema naquele instante. Conhecer as funções ηi (t) significa conhecer atrajetória de cada partícula do sistema.

Na Mecânica Quântica, este conhecimento não é possível por princípio. As matrizes que representamposições e momentos não tem significado físico direto, mas carregam as todas as informações físicas quepodem ser obtidas sobre o sistema, a saber: as probabilidades de encontrar cada partícula com determinadaposição e momento em cada instante. Estas informações são obtidas das matrizes por métodos da álgebralinear, análise de autovalores e autovetores, etc...

• A similaridade formal destacada aqui justifica o nome de Quantização Canônica ao processo de encontraruma teoria quântica a partir de uma correspondente teoria clássica, conforme aqui descrito. Apenas nadécada de 60 Richard Feynman propôs um método de quantização diferente, inspirado na formulaçãoLagrangiana, conhecido como quantização funcional. Até hoje, contudo, a quantização canônica é aquelaconsiderada matematicamente mais bem estabelecida.

Page 114: Allison analitica

114 CAPÍTULO 6. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI

6.5 Invariantes Adiabáticos

• Na conferência de Solvay de 1911, que reuniu os maiores físicos da época para discutir questões sobre aincipiente Mecânica Quântica, Lorentz apontou o que seria um problema: imaginemos um pêndulo decomprimento `, que oscila numa determinada frequência ω com energia E; se encurtarmos lentamenteo fio, passando para um comprimento `′ = `− d`, temos que fazer trabalho sobre o sistema, e por issomodificamos sua energia para E′ = E + dE, ao mesmo tempo, a frequência também varia ω′ = ω + dω.Fazendo d` tão pequeno quanto se queira, podemos assim fazer E e ω variar continuamente.

• Pensando num oscilador quântico, contudo, os níveis de energia devem ser quantizados

E = hωn

e a passagem de um nível de energia a outro só é possível pela absorção de uma quantidade de energiafinita ∆E = hω. Ora, ω está associado aos parâmetros do oscilador, que em princípio poderíamos variarmuito lentamente (“encurtando lentamente o fio”, por exemplo), o que deveria ocasionar uma variaçãocontínua de E; por exemplo, uma variação ∆ω pequena estaria associada a uma variação de energiah∆ω, que é muito menor que ∆E = hω e portanto não é suficiente para ocasionar uma transição de nívelquântico.

• Por um lado, a energia precisa mudar porque ω muda; por outro, ela não pode mudar porque a variaçãoh∆ω não é suficiente para gerar uma transição de nível – este era o aparente paradoxo apontado porLorentz.

• Einstein resolveu o problema mostrando que, diante de uma mudança dos parâmetros do oscilador,tanto E quanto ω mudavam de forma que sua razão fosse constante, ou seja

= constante

constante que é igualada ao produto da constante de Planck com o nível de energia n,

= hn

diante de uma pequena mudança de parâmetros, portanto, tanto a energia quanto a frequência mudavamde forma a manter constante o nível de energia do oscilador, de forma que nenhuma transição de nívelestava em jogo.

Page 115: Allison analitica

6.5. INVARIANTES ADIABÁTICOS 115

• Uma variação muito lenta dos parâmetros de um sistema é chamada de adiabática (nome inspirado natermodinâmica, onde transformações de estado termodinâmico devem ser infinitamente lentas para queo sistema possa ser sempre tratado como se estivesse num estado de equilíbrio termodinâmico). O queEinstein mostrou é que a razão energia/frequência é uma grandeza que permanece constante quando osparâmetros do sistema variam adiabaticamente, ou seja, é o que se chama de um Invariante Adiabático.

Demonstração. Para demonstrar o resultado de Einstein, consideremos um oscilador harmônico unidimensio-nal, com energia

E =m2

x2 +mω2

2x2

cuja solução, sabemos, é da forma x = x0 cos (ωt + δ0). Calculemos a derivada temporal de E,

dEdt

= mxx + mω2xx + mωx2 dω

dt

onde admitimos que ω varia no tempo muito lentamente, ou seja, na equação acima, ω pode ser consideradoaproximadamente constante durante um período de oscilação dos x.

A variação de E no tempo tem duas partes: dE/dt tem uma contribuição que vem da oscilação (rápida) dosx, e uma que vem da variação (lenta) de ω. Estamos interessados apenas nesta última, por isso, calculamos amédia temporal desta equação durante um período de oscilação do x,⟨

dEdt

⟩= m 〈xx〉+ mω2 〈xx〉+ mω

⟨x2⟩ dω

dt

onde

〈F〉 = 1T

ˆ T

0Fdt

sendoT =

ω

o período de oscilação do x. Note que tanto ω quanto dω/dt são considerados constantes durante uma oscila-ção do x.

Não é difícil ver que 〈xx〉 = 〈xx〉 = 0, já que os dois termos serão proporcionais a

ˆ T

0sin (ωt + δ0) cos (ωt + δ0) dt = 0

por outro lado,

mω⟨

x2⟩ = mω× ω

2πx2

0

ˆ 2π/ω

0cos2 (ωt + δ0)︸ ︷︷ ︸

π/ω

=mω

2x2

0 =Eω

ou seja, ⟨dEdt

⟩=

dt⇒ dE

E=

ω

como dxx = d ln x,

d (ln E− ln ω) = 0⇒ d lnEω

= 0

Page 116: Allison analitica

116 CAPÍTULO 6. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI

chegamos assim ao resultado de Einstein,Eω

= constante

o que nos diz que a razão energia/frequência é realmente um invariante adiabático.

• Vamos agora fazer uma discussão mais geral sobre invariantes adiabáticos de um sistema físico qualquer,descrito pela Hamiltoniana

H (q, p, λ (t))

que depende um certo parâmetro λ (t), que varia muito lentamente no tempo. Para precisar este requeri-mento, suponhamos que quando λ é constante, o sistema executa um movimento periódico, de períodoT (figura abaixo, à esquerda). Então, exigimos que, quando λ varia, é de forma que sua variação ∆λdurante um período

∆λ =dλ

dt× T

seja muito menor do que λ, ou seja,

Tdλ

dt� λ

• Quando λ varia, o movimento já não é mais exatamente periódico e a energia E já não é mais constante(figura, direita); contudo, se a variação de λ é suficientemente lenta, o sistema oscila numa escala detempo aproximadamente igual a T, de forma que vamos aproximar o movimento do sistema como se eleainda fosse dado pela trajetória periódica de período T que vale para λ constante.

• A variação de E no tempo teria em princípio duas partes: aquela devida à oscilação de q (t) , p (t) e aqueladevida à variação de λ. Contudo, já provamos que, em geral,

dHdt

=∂H∂t

,

ou seja, não há variação temporal de H devido à variação de q (t) , p (t), toda variação tem que vir davariação de λ,

dEdt

=∂H∂λ

dt.

• As coordenadas q (t) , p (t) oscilam rapidamente, numa escala de tempo T, enquanto que λ oscila muitolentamente. Como não estamos interessados no efeito desta oscilação rápida do sistema, calculamos umamédia temporal da equação acima, ou seja,⟨

dEdt

⟩=

⟨∂H∂λ

⟩dλ

dt

=dλ

dt1T

ˆ T

0

∂H∂λ

dt

Page 117: Allison analitica

6.5. INVARIANTES ADIABÁTICOS 117

onde de novo lembramos que dλdt é aproximadamente constante durante um ciclo.

• Note que,dqdt

=∂H∂p⇒ dt =

dq∂H/∂p

e com isso trocamos a integral em t por uma integral em q ao longo de um ciclo fechado do movimento,⟨dEdt

⟩=

dt1T

˛∂H/∂λ

∂H/∂pdq

O período pode também ser escrito como

T =

˛dq

∂H/∂p

e portanto ⟨dEdt

⟩=

dt

¸∂H/∂λ∂H/∂p dq¸ dq

∂H/∂p

• Lembre-se que as integrais são calculadas sobre as trajetórias periódicas do sistema com λ constante;estas satisfazem a conservação de energia,

H (q, p, λ) = E

que nos permite encontrar p como função de q, λ e E,

p = p (q, λ, E)

Diferenciando a 1ª equação com respeito a λ,

∂H∂λ

+∂H∂p

∂p∂λ

= 0⇒ ∂H/∂λ

∂H/∂p= − dp

substituindo na expressão para⟨

dEdt

⟩,

⟨dEdt

⟩= −dλ

dt

¸ dpdλ dq¸ dq

∂H/∂p

ou seja˛ (⟨

dEdt

⟩1

∂H/∂p+

dtdpdλ

)dq = 0

• Como p = p (q, λ, E), temos∂H∂p

=1

∂p/∂E

e daí˛ (

dpdE

⟨dEdt

⟩+

dtdpdλ

)dq = 0

Page 118: Allison analitica

118 CAPÍTULO 6. TEORIA DE HAMILTON-JACOBI

Note que⟨

dEdt

⟩é a variação de E ao longo do tempo, devido à variação de λ (a oscilação das coordenadas

tendo sido integrada); entendendo a derivada temporal neste sentido, podemos reescrever esta equaçãocomo

ddt

˛p (q, λ, E) dq = 0

que nos diz que a quantidade ˛p (q, λ, E) dq

é um invariante adiabático, ou seja, sua derivada temporal é nula, quando se considera apenas as variaçõesmuito lentas em t, desconsiderando as oscilações rápidas de período T.

• Num sistema com várias coordenadas qi e pi, encontramos assim uma coleção de invariantes adiabáticos,

˛pidqi

• Vimos da discussão inicial que uma grandeza clássica dificilmente poderá ser quantizada, na MecânicaQuântica, a menos que seja um invariante adiabático: isto porque, em princípio, variações muito lentasnos parâmetros λ do sistema deveriam significar variações lentas (contínuas) nestas grandezas, o quenão é consistente com uma grandeza quantizada, que só pode variar em “saltos” discretos.

• A chamada Regra de Quantização de Bohr-Sommerfeld, que foi usada com muito sucesso na descriçãodo átomo de hidrogênio, postula que todo invariante adiabático da teoria clássica é quantizado, ou seja, valeque ˛

pidqi = hni

onde os ni são os números quânticos. Por exemplo, no caso de uma partícula num potencial central V (r)que é o caso do átomo de Hidrogênio, os três invariantes adiabáticos

˛prdr ;

˛pθdθ ;

˛pϕdϕ

estão associados aos três números quânticos: n, `, m,

˛prdqr = hn

˛pθdqθ = h`

˛pϕdqϕ = hm

Estas regras de quantização foram usadas para calcular, em detalhe, o espectro do átomo de Hidrogênio,antes mesmo da descoberta de uma formulação completa da Mecânica Quântica.

• Graficamente, o valor de¸

pdq corresponde a área, no espaço de fase, contido pela órbita fechada dosistema:

Page 119: Allison analitica

6.5. INVARIANTES ADIABÁTICOS 119

De fato,˛

pdq =

ˆ qmax

qmin

p+ (q) dq +ˆ qmin

qmax

p− (q) dq

=

ˆ qmax

qmin

p+ (q) dq︸ ︷︷ ︸área sobre o eixo dos x

+

ˆ qmax

qmin

(−p− (q)) dq︸ ︷︷ ︸área sob o eixo dos x

• Assim, costuma-se dizer que a regra de quantização de Bohr-Sommerfeld é equivalente à quantizaçãoda área do espaço de fase do sistema clássico.