allen, scotty - as vozes do passado e do presente

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  • 7/21/2019 ALLEN, Scotty - As Vozes Do Passado e Do Presente

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    ALLEN, S. J. As Vozes do Passado e do Presente: Arqueologia, Poltica Cultural e o Pblico naSerra da Barriga. CLIO Srie Arqueolgica. v20(1), 2006, 81-101

    As Vozes do Passado e do Presente1

    Arqueologia, Poltica Cultural e o Pblico na Serra da Barriga

    Scott Joseph Allen, Ph.D.

    Ncleo de Ensino e Pesquisa Arqueolgico/UFAL

    Resumo

    A arqueologia da Serra da Barriga, local do principal quilombo dos Palmares no sculoXVII, iniciou-se na tentativa de compreender o cotidiano de escravos fugitivos quetomaram o seu destino nas suas prprias mos. Devido a visibilidade poltica desse stio,smbolo de resistncia escravido na histria, e catalisador de discurso socialcontemporneo, os projetos arqueolgicos foram e so intrinsicamente ligados spolticas culturais de diversos rgos, de nvel federal at movimentos sociais locais. Nodecorrer de pesquisas nos anos 90, as evidncias indicaram uma inegvel presena

    indgena na Serra da Barriga em poca pr-palmarina ao menos uma forte influnciaindgena concomitante com o quilombo. Tais revelaes levaram a Fundao CulturalPalmares a proibir atividades arqueolgicas em 1997, situao superada apenas em marode 2005 devido a mudanas na viso dessa fundao sobre a importncia e papel dearqueologia nesse stio. Atualmente, um novo projeto turstico-educativo-cultural visa aconstruo de um parque temtico na Serra da Barriga que contempla uma forteparticipao de arqueologia. Mesmo assim, o desafio ainda persiste: como apresentar aarqueologia da Serra da Barriga como lugar multi-vocal enquanto o lugar conhecidoapenas pelo passado palmarino?

    Abstract

    The archaeology of the Serra da Barriga, location of the principal maroon community ofPalmares in the 17th century, began in the attempt to understand the daily life of runawayslaves who took their destiny into their own hands. Owing to the political visibility of thesite, symbol of resistance to slavery in history, and catalyst for contemporary socialdiscourse, archaeological research has been connected intrinsically to the cultural politicsof diverse organizations, from the federal level to local social movements. During fieldresearch in the 1990s, evidence indicated an irrefutable Native American presence on theSerra da Barriga in pre-colonial times and at least a strong Native American influenceconcomitant with Palmares in the 17thcentury. Such evidence led the Fundao CulturalPalmares to prohibit excavations in 1997, a situation overcome only in March of 2005

    owing in large measure to changes in that foundations policy and vision of the role ofarchaeology at the site. Currently, a tourism, education and cultural project includes theconstruction of an historic theme park on the Serra da Barriga, which contemplates astrong participation for archaeology. Even so, the challenge persists: how to present thearchaeology of the Serra da Barriga as multivocal, when it is know only for its maroonpast?

    1Uma verso anterior desse trabalho foi includo no cd dos Anais do XIII Congresso da SAB.

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    INTRODUO

    A arqueologia encontra-se cada vez mais articulada com os diversos pblicosinteressados no passado. As audincias ou consumidores do produto arqueolgico variamentre estudantes do primeiro grau e universidades, educadores, polticos, empresrios,

    grupos tnicos e religiosos e assim por diante. Na esfera do turismo, a arqueologia, oumelhor, os indivduos responsveis pela montagem de museus e parques histricos tm odesafio de alcanar as audincias que eventualmente visitaro esses lugares. Tarefa nomuito fcil.

    A Serra da Barriga, reduto principal dos quilombos dos Palmares, foi tombada como StioHistrico Nacional nos anos 80. Desde ento, essa serra recebe milhares de visitantes nodecorrer de cada ano, a grande maioria fazendo a sua visita em 20 de novembro, Dia daConscincia Negra. Muitos projetos visando o desenvolvimento turstico da Serra daBarriga foram propostos ao longo dos ltimos 20 anos, mas lamentavelmente nenhumsaiu do papel, a no ser projetos de curto prazo especificamente ligados comemorao

    anual.O Parque Memorial Quilombo dos Palmares, projeto que rene historiadores, artistas,antroplogos, arquitetos, arquelogos e polticos, representa um esforo corajoso eiluminador por parte do Estado de Alagoas, da Fundao Cultural Palmares e do governomunicipal de Unio dos Palmares. Pela primeira vez, vemos a participao de muitosindivduos e grupos interessados em tornar a Serra da Barriga num ponto de reflexosobre o passado.

    Embora o futuro das pesquisas arqueolgicas na Serra da Barriga parea ser promissor,houve uma poca em que os dirigentes desse Stio Histrico Nacional proibiramatividades arqueolgicas desde escavao ou mesmo prospeco. O impasse deveu-se necessidade de manter uma imagem da Serra da Barriga defronte de dados arqueolgicosque comearam a question-la. Neste trabalho, apresentamos o contexto histrico e socialde arqueologia na Serra da Barriga, e perguntamos se os impasses do passado podem serevitados futuramente.

    AARQUEOLOGIA DE PALMARES,19921997

    Embora haja informaes de pesquisadores vistitando a Serra da Barriga em anosanteriores, apenas em 1992 foram iniciadas pesquisas sistemticas sob a coordenao dePedro Funari e Charles Orser Jr. que formaram o Projeto Arqueolgico de Palmares(figura 1). O objetivo fundamental desse esforo desbravador foi determinar se o stioconteve um registro arqueolgico propcio a estudos profundos sobre Palmares. Em duastemporadas de campo, a primeira em 1992 com durao de duas semanas, e a segunda em1993, com durao de uma semana, a equipe revelou 14 stios, e retirou mais de 3.000artefatos, na sua maioria cermica. Afirmaram esses estudiosos que a arqueologia dePalmares prometeu abrir um novo captulo no estudo da Dispora Africana s Amricas,at ento limitado em grande parte a pesquisas de plantaes no sudeste dos EstadosUnidos.

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    Figura 1Serra da Barriga

    Anlises preliminares de dados obtidos atravs das escavaes realizadas por Orser eFunari resultaram em concluses dispersas. Rowlands (1999) baseou-se em evidnciasespaciais para argumentar que o quilombo teve uma organizao formada por uma liteplural, Orser (1994, 1996) viu a diversidade como evidncia de relaes (redes) globais,

    enquanto Allen (1998) entendeu a diversidade em cermica como indicao dosurgimento de uma comunidade nova, com implicaes para identidade cultural.

    Os resultados baseados nos dados escavados por Orser e Funari prometeram ampliarbastante o nosso conhecimento de Palmares e, de fato, a repercusso internacional no foipouca. Todos os membros da equipe palestraram em diversos pases e em diversaslnguas, catapultando a arqueologia de Palmares numa posio privilegiada, de difcilalcance para um stio histrico. Talvez mais saliente tenha sido a aceitao do programaarqueolgico em meados dos anos 90 pelas autoridades que tm o poder sobre asatividades que ocorrem no stio. Nessa esfera leiga, a arqueologia foi vista comofornecedora de dados concretos que poderiam ilustrar uma histria j conhecida.

    As expectativas para uma arqueologia de Palmares foram grandes quando Allen chegouem 1996 para iniciar suas pesquisas de pr-doutoramento, no.entanto, ficou evidentemuito cedo, que enfrentaria dificuldades imensas quanto a complexidade do stio emvirtude das enormes transformaes culturais sofridas. Atravs de histria oral esondagens em alguns dos stios identificados por Orser, foi possvel detalhar o impactotanto da cultivao que iniciou-se nos anos 40, quanto a terraplenagem e limpeza manualdo plat (site 1 em Orser, atualmente SB1-A)(figuras 2 e 3).

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    Figura 2Auge de Terraplenagem 1995

    Figura 3

    Auge de Terraplenagem 1995

    Estudo do perfil estratigrfico no stio principal (SB1) mostra que at 60cm de solo foramremovidos do plat (discutido mais adiante). Alm disso, os montes de solo deixadas pelotrator foram rebaixados aos poucos pelos moradores em virtude de seus trabalhos na roa.Essas prticas tambm ocorreram nos outros stios (menos a terraplenagem) e quandoconsideramos que essas atividades comearam nos anos 40 do sculo passado, podemosapreciar o impacto no registro arqueolgico. Alm disso, nos meses de chuva, o solo eartefatos descem nessas reas cultivadas.

    Trados colocados ao redor da Lagoa dos Negros (stio 4 em Orser), no revelaramcermica, mas uma estratigrafia muito fora de carter para a Serra da Barriga. Ao nosinformarmos sobre essa rea, os moradores contaram que a chamada lagoa obra recente,e seria mais corretamente referida como aude artificial, alimentado por uma fonte. Essasobras, que empregaram tratores e dinamite, de acordo com os moradores, aconteceramrecentemente, provavelmente nos anos 70 ou 80 julgando pelas idades dos informantes.Sondagens (trados) feitas na subida para o pico da Serra (site 3 em Orser), revelaram umaestratigrafia tambm misturada, espelho daquela identificada por Orser, porm ausente deartefatos. A maioria dessas questes foram assinaladas nos relatrios iniciais (Orser 1992;1993), porm a falta de captao de recursos financeiros para continuar o projeto

    efetivamente deixou esses problemas em aberto.Os estudos ocorridos entre 1996-97 delinearam um perfil diferente daquele proposto peloProjeto Arqueolgico de Palmares ou seja, as evidncias de uma intesa ocupaoindgena ao menos em pocas pr-coloniais foram considerveis. vlida a posio deque um determinado conjunto de dados arqueolgicos pode nos levar a interpretaesdiferentes. Por exemplo, uma distribuio de artefatos pode ser resultado de fatorestnicos, ou manifestaes de classe a diferena depender muito das questes colocadas

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    e da posio terica do pesquisador. Mas a revelao de dados estratigrficos na Serra daBarriga em anos posteriores s primeiras prospeces mostrou que as nossasinterpretaes anteriores teriam que ser revisadas, se no descartadas completamente, nopelas teorias que as guiaram, mas pelos problemas de evidncias convincentes. Rowlandsdependeu de relaes espaciais para a defesa de sua idia da organizao social no

    quilombo, mas essa espacialidade simplesmente no existe sendo feita pela remoo dasprimeiras camadas de solo no SB1-A e pela intensa cultivao nos outros stios. Taltransformao efetivamente criou espaos diferenciados pela cultura material. O graude perturbao tambm coloca em questo a contemporaneidade dos artefatos utilizadospor Allen no seu argumento de uma identidade cultural emergente, e por Orser naconstruo das redes globais.

    Nessa poca foi levantada a possibidade (posteriormente comprovada) de que a Serra daBarriga serviu como cemitrio indgena. Apesar de no haver dados suficientes nessemomento para se aprofundar sobre essa ocupao pr-colonial, as evidncias existentesconfirmam a presena de grupos da tradio Aratu (ou sub-tradio a ela

    relacionada)(Prous 1993; Martin 1998; Allen, em preparao). Urnas funerriasdescobertas atravs de prospeces, alm de outras desenterradas por terraplenagem eindivduos desconhecidos, indicam prticas de enterramento primrio e secundrio. Estficando cada vez mais aparente que a Serra da Barriga no foge muito aos padres pr-coloniais conhecidos no nordeste (Martin 1998)

    Procuramos entre 1992 e 1997 resgatar a histria de Palmares, e at os primeirosrelatrios carregam o ttulo,In Search of Zumbi. No cabe aqui uma discusso profundaacerca da formulao de hipteses, o lugar do pesquisador e correntes na disciplina deArqueologia Histrica (ver Allen 2001). Basta salientar que as primeiras escavaesvisaram evidenciar dados relacionados aos palmarinos. A formao da prpria equipereflete esse objetivo: Orser, que se destacou no estudo de plantaes e Rowlands, quetrouxe ao projeto a sua vasta experincia em arqueologia Africana. Funari escreveubastante sobre a significncia social dos trabalhos para a cultura afro-brasileira, umacontribuio particularmente influente na imagem do projeto. Allen, apesar de no terescavado com a equipe do Projeto Arqueolgico de Palmares, empregou os dadosescavados em sua tese de mestrado, e foi influenciado por teorias antropolgicas deetnicidade e pela histria de quilombos nas Amricas. Nenhum arquelogo tinhaexperincia na arqueologia do nordeste naquela poca, e muito menos na arqueologia depopulaes pr-coloniais. Uma equipe mais diversificada, incluindo por exemplo pr-historiadores, certamente teria chegado a concluses diferentes. Com isso, fica evidenteque a arqueologia de Palmares teria que voltar estaca zero, e tambm ampliar seu foco.

    Alm dos dados e interpretaes arqueolgicos, que frequentemente empregam umalinguagem tcnica e fora de alcance para grande parte do pblico leigo, existe adivulgao dos trabalhos pela mdia popular. Reportagens na revista Veja, e at o NewYork Times focalizaram as possibilidades de resgatar uma histria fascinante deresistncia escravido. Essas manchetes carregam peso pois frequentemente so osnicos contatos no-arquelogos ca nossa disciplina. O lado inverso da moeda tambmpesa: como divulgar evidncias indgenas num stio chamado de stio negro? Um

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    exemplar da Gazeta de Alagoas chegou diretamente ao ponto Presena Indgena sobPalmares. Um certo mal estar pairou sobre a equipe quando vemos essa reportagem poissabamos que iria carregar muito significado.

    A divulgao nesse perodo das informaes sobre grupos indgenas no foi bem aceito

    em alguns crculos, particularmente a FCP que finalmente mandou fax exigindo a paradade todas as atividades arqueolgicas.

    PALMARES NO PALCONACIONAL

    A proibio de arqueologia parece no primeiro passo ao aleatria e extremamente forade razo, visando censurar a histria. A arqueologia da Serra da Barriga prometia revelarevidncias sobre a vida cotidiana palmarina, s que precisamos tambm atentar para umainegvel presena indgena. Todavia, a deciso da presidenta da FCP em 1997 estavaenraizada em contextos histricos marcados por desafios enormes quanto ao discurso deraa no Brasil. Embora no caiba aqui uma anlise profunda de relaes raciais ou da

    historiografia de Palmares, sendo essa publicada anteriormente (Allen 2001), misterresumir alguns pontos salientes.

    Alm da academia, as palavras Palmares e em particular Zumbi, servem como smbolospara uma pletora de fins sociais. Alm de movimentos negros, diversos grupos polticos,por exemplo o MST, partidos de esquerda e at movimentos para a defesa doshomosexuais tm usado a histria dos Palmares e as suas figuras em seus discursos (verMott 1995). Times de esportes e trofus de corridas apropriam-se do nomeprovavelmente por sua referncia a perseverana e fora. Em 1995, o Presidente Cardosodeclarou o Zumbi um heri nacional. Fica bvio que o Palmares e Zumbi (alm dasoutras personagens dessa histria) alcanam uma audincia verdadeiramente ampla. Umaplaca fixada num memorial ao heroi diz tudo (figura 4).

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    Figura 4

    O uso de tradies, ou melhor, das imagens da cultura Afro-brasileira pela populaobranca no recente, sendo componente importante na criao de uma identidadenacional. Muitas prticas anteriormente ligadas populao negra, foram apropriadas aospoucos, tornando-se marcadores da cultura Brasileira. Capoeira, feijoada, samba ecandombl so exemplos do embraquecimento de tradies Afro-brasileiras para apopulao nacional.

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    Ao lado desse multivocalismo, existe uma tenso enraizada na prpria histria dasrelaes raciais no Brasil, que est repleta de barreiras quanto a colocao de questesraciais no palco nacional. Abdias do Nascimento (1992), escrevendo sobre essa histria,aponta os desentendimentos entre a esquerda poltica e movimentos negros ao longo dosculo XX. Para ele, dicurso sobre raa sempre teve que tomar o segundo lugar atrs de

    discursos sobre os problemas de classe. A ideologia da esquerda, embora extremamenteligada a questo da posio do negro no pas, permitiu pouco espao para o Afro-Brasileiro. At a prpria historiografia de Palmares um projeto da esquerda (ver Maestri1997, Allen 2001), e os dois principais autores escreveram as suas obras enquantoexilados do pas (Carneiro 1947; Freitas 1984).

    O movimento, Memorial Zumbi, criado por Nascimento e os seus colaboradores,conseguiu tombar a Serra da Barriga como Stio Histrico Nacional. Esse movimentopretendeu recuperar, para a comunidade Afro-Brasileira, as terras da Repblica dosPalmares e construir um centro dinmico de Cultura Africana de Libertao nosterritrios palmarinos (Nascimento e Nascimento 1992:65; traduo do original em

    ingls pelo presente autor).Nesse contexto, podemos entender que um programa arqueolgico visando o resgate dePalmares seria bem aceito pelos movimentos negros e poderes polticos a esses ligados. Adivulgao sobre o projeto e as primeiras interpretaes oferecidas cabiam muito bemnessa poltica envisionada por Nascimento. Mas o surgimento de dados pertencentes apopulaes indgenas, mesmo em pocas pr-colonias, representavam, argumentamos,mais uma barreira ao discurso especificamente direcionado ao Afro-Brasileiro. Nessesentido, a Serra da Barriga corria o risco de ser mais uma apropriao da histria Afro-brasileira para a identidade nacional, e pior ainda, o Zumbi corria risco de sersimbolicamente embranquecido. Enquanto no havia nenhuma medida para prevenirapropriaes anteriores, dessa vez o poder de controlar a histria e a subsequente imagemdesejada, estava ao alcance. Vemos que a proibio de arqueologia na Serra da Barrigateve as suas justificativas.

    Esse perodo de proibio, permitiu que as autoridades pudessem transformar a Serra daBarriga em uma imagem apropriada as suas percepes sem ter que enfrentar ouconsiderar outras vozes histricas. Foram construdas cabanas representantes de umPalmares imaginrio, alm de elementos obtidos dos registros histricos (figuras 5 e 6).As representaes todas foram informadas pela suposta idia do que a frica significanas mentes do povo contemporneo.

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    Figura 5

    Figura 6

    Ficamos preocupados com a falta de acompanhamento arqueolgico ao longo dessesanos, mas tambm entendemos (embora no concordssemos) a necessidade de ter umfoco para discurso exclusivamente Afro-Brasileiro pelas razes acima elaboradas.

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    Infelizmente, a destruio dos stios continua apagando cada vez mais a histria indgenae ironicamente a histria Palmarina. Alm disso, desentendimentos entre rgos dogoverno municipal, estadual e federal persistiram e aumentaram at o ponto,argumentamos, de que a Serra da Barriga tornou-se assunto desagradvel de se tocar.Nenhum projeto visando o desenvolvimento da Serra a longo prazo foi realizado, e

    centenas de milhares de reais foram gastos para a realizao das festas comemorativas nodia 20 de novembro.

    AARQUEOLOGIA DA SERRA DA BARRIGA,2005?

    O ano 2005 marca um novo captulo na arqueologia da Serra da Barriga que certamenteampliar o nosso conhecimento tanto de Palmares quanto dos grupos pr-coloniais. Oprojeto Parque Memorial Quilombo dos Palmares objetiva desenvolver o stiocomo ponto turstico, educativo e cultural. mais uma tentativa de valorizar o passadodos palmarinos e de oferecer ao pblico lugar para reflexo durante o ano todo, noapenas no dia 20 de novembro.

    Embora estejamos contentes com a retomada dos trabalhos, enfrentamos no momento umstio devastado pela falta de polticas de preservao. De fato, atividades ao longo dosltimos vinte anos vm provocando eroso em reas que anteriormente eramrelativamente estveis.

    O papel principal neste momento para a arqueologia acompanhar esse processo dedesenvolvimento e oferecer conselhos tcnicos baseados em pesquisas de campo.Estamos encarregados de delimitar stios existentes, formular estratgias para umaarqueologia de salvamento onde for necessrio, designar reas a serem preservadas, eidentificar reas propcias para estudos profundos.

    Iniciamos os trabalhos em maro de 2005, e concentramos os nossos esforos no stioSB1, por tratar-se da rea na qual se pretende iniciar as obras do projeto arquitetnico(figura 7). A sua designao como stio deve-se similaridade das evidncias superficiaisao redor da parte terraplenada, ou seja, acreditamos que se trata de um stio pr-colonialde grande extenso. O SB1 dividido em sete reas at o momento, podendo haveroutras divises futuramente.

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    Figura 7

    Foram realizadas sondagens dentro da rea terraplenada, nos montes de solo deixados poressa atividade e nas reas alm de terraplenagem. O objetivo dessas sondagens foideterminar a seqncia das transformaes sofridas pelo stio, os limites dadescaractizao das camadas e identificar reas propcias a conterem registrosarqueolgicos relativamente intactos. Determinamos que na rea A fossem removidos 40-60cm de solo alcanando em parte a camada estril, ausente de materiais culturais salvoaqueles enterrados das camadas antigas superiores. Essa rea apresenta numerosasmanchas escuras (figura 8) que, aps a escavao de algumas, revelaram vasilhames decermica e fogueiras (antigas e modernas).

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    Figura 8Mancha Escura na rea A (plat)

    Embora perdendo muitas informaes contextuais por causa da terraplenagem nessa rea,acreditamos que o mapeamento espacial dos vestgios, junto com as eventuais escavaesa serem feitas em reas adjacentes, revelaro dados importantes.

    Os montes de solo resultantes da terraplenagem encontram-se nas margens ao norte, leste

    e sul da rea A. Foram realizadas sondagens nesses montes na interface das reas A/C eA/E que revelaram informaes importantes quanto a interpretao do registroarqueolgico (figura 9).

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    Figura 9Sondagens Realizadas na Interface das reas A e C

    Os montes foram rapidamente cultivados pelos moradores, efetivamente trazendo o solo

    com a enxada at as reas no perturbadas pela terraplenagem. O resultado dessaatividade, pouco perceptvel nas cores das camadas, a apario de quatro camadas quenos levou inicialmente acreditar termos encontrado uma estratigrafia mais ou menosintacta, ou ao menos no extremamente danificada pelo trator. De fato, trata-se dasuperposio da superfcie e camada I removida da rea A, acima da antiga superfcie ecamada I nas suas margens. Atravs dessas sondagens, percebemos que as camadas I e II(antiga camada I) so altamente misturadas. Todas as sondagens ao redor da rea Arevelaram seqncias similares (figura 10).

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    Figura 10

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    A primeira sondagem realizada na interface das reas A/E revelou uma estrutura depedras, seguida por uma urna funerria com pelo menos trs tigelas associadas (figura11). A urna, periforme e sem decorao mede 64cm de bojo e 54cm de altura.. A bocaestava danificada, porm no podemos determinar a origem da perturbao, se natural oucultural2. Alm disso, o solo a invadiu quando o indivduo ainda no estava em

    decomposio completa, parte da arcada dentria superior e inferior foram encontradas aapenas 13cm e 22cm, respectivamente, abaixo da abertura.

    Figura 11

    2Ver Allen (em preparao) para uma discusso maior das urnas at o momento encontradas na Serra daBarriga.

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    At o momento, os trabalhos iniciados este ano continuam a revelar evidncias indgenas.Temos de aceitar que no sabemos quase nada da vida Palmarina atravs de estudosarqueolgicos, e que nossas interpretaes anteriores necessariamente voltam ao nvel dehipteses a serem exploradas. Encontramos sim artefatos histricos, tais como faianagrossa, resduos de chumbo e cermica de uma confeco desconhecida nas tradies

    indgenas e no fabricados nos centros coloniais do nordeste ou de alm mar. Mas essaspoucas evidncias tm provenincia na superfcie ou na camada I, sendo essasanteriormente perturbadas.

    Iniciaremos nos prximos meses escavaes amplas. Formamos uma equipediversificada, especificamente para enfrentar os desafios que esse stio nos apresenta.Contamos com especialistas em arqueologia histrica, arqueologia pr-colonial,antropologia fsica, zooarqueologia, etnografia indgena e certamente historiadores dePalmares, Brasil colonial e da frica. Temos confiana que alcanaremos eventualmentea histria palmarina escrita no solo da Serra da Barriga e nas suas redondezas. O processoarqueolgico requer pacincia. Enquanto isso, continuaremos a revelar as outras vozes ali

    contidas, seja o passado de grupos indgenas pr-coloniais ou de moradores ps-palmares. Preocupamo-nos todavia que as autoridades polticas no tenham a mesmapacincia requerida por esse processo cientfico, e que nos encontremos novamente emsituao similar aquela que levou proibio de arqueologia em 1997, ou at mesmocorte de recursos e apoio.

    CONCLUSO

    A histria e futuro de arqueologia da Serra da Barriga atingem o corao de debatescentrais em arqueologia mundial. A propriedade do passado uma questo que ocupoumuito espao na literatura arqueolgica durante as ltimas dcadas. Tentativas decompreender o relacionamento entre o arquelogo e os diversos pblicos consumidoresda nossa produo, levaram ao surgimento de programas que visaram a incluso do no-arquelogo na produo de histria num esforo de tornar a arqueologia maisdemocrtica. Porm, percebemos tendncias nessa lituratura que busca vilificarprogramas arqueolgicos que, por desenho ou acaso, so ou foram empregados para finspolticos. Kossina um saco de pancadas comum em argumentos que objetivam revelar arelao prxima de arqueologia e a sociedade em geral (ver Arnold 1995 para umtratamento equilibrado dessa questo). Mas a realidade no to simples, eargumentamos que nas tentativas de identificar histrias aceitveis (no opressoras, eresistentes) e no aceitveis (dominantes e manipuladoras), muitas vezes a arqueologia setorna pea de xadrez no jogo poltico. O risco nessa partida a excluso de outas vozeshistricas. Cabe a ns arquelogos buscarmos entender no mximo possvel os contextosdentro dos quais operamos. Precisamos manter as exigncias cientficas arqueolgicas aolado da nossa responsibilidade social.

    Kohl e Fawcett escreveram,

    Em qualquer anlise histrica ou arqueolgica, cada casotem de ser examinado em termos das suas circunstncias

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    histricas especficas, e julgada por um padro universalmnimo que requer: primeiro, que a construo do passadode um grupo no seja feita ao prejuzo de outro; e, segundo,que respeito e considerao sejam dados s todas astradies culturais (1995:8; traduo do original em ingls

    pelo presente autor).AArqueologia de Palmaresfoi formulada nos corredores acadmicos, e foi rapidamenteaceita pelos poderes. A arqueologia foi visto como meio para um fim fornecimento dedados que pudessem ilustrar o passado do quilombo, e da serem incluidos como parte daimagem desejada para Palmares. Mas direcionar pesquisas e interpretaes apenas paraum momento histrico, embora esse momento seja o mais importante em termos sociaiscontemporneos, traria a arqueologia em nvel de polticas culturais, e significaria umapreterio das nossas responsabilidades ticas. AArqueologia da Serra da Barrigafoiformulada em cima das exignicas do stio, que no quer contar apenas uma histria, masdiversas. Os nossos trabalhos certamente revelaro essas histrias, e precisamos juntar

    todos os pblicos interessados a participar.

    Agradecimentos

    Devo agradecer os meus alunos do Ncleo de Ensino e Pesquisa Arqueolgico cujadedicao aos trabalhos na Serra da Barriga e no laboratrio facilitaram a elaboraodesse texto. Agradecimentos especficos ao Secretrio Zezito de Arajo (SEDEM/AL) e Prefeitura Municipal de Unio dos Palmares pelo apoio das pesquisas em 2005, e a SelmaLima da Silva pela correo do texto. Como sempre, a responsabilidade pelos argumentose possveis falhas contidos restringem-se ao autor.

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