alimentaÇÃo (1978): fotografia · composição de imagens intencional, ou seja, não seria apenas...

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AlimentAÇÃO (1978): performance, body art, fotografia Deisi Beatriz Barcik (Universidade Federal do Paraná) Resumo: O artigo traz a imagem de um trabalho de arte intitulado AlimentAÇÃO produzido no final da década de 1970 pelo artista visual Paulo Bruscky. O texto tem como objetivo abordar essa obra levando em conta termos como performance e body art, duas linguagens artísticas de natureza efêmera que evidenciam algumas das características da chamada arte conceitual, por exemplo, a desmaterialização do objeto de arte e a importância do processo artístico em detrimento da produção de um objeto final. Nessas linguagens o corpo do artista torna-se o suporte para sua obra, contudo, muitos artistas utilizaram recursos, como a fotografia, para registrar suas ações. Nesse sentido, a obra AlimentAÇÃO dá margens para questões em torno da relação entre imagem e representação, especialmente por conta de certa mudança no status dessa obra de performance ou body art para composição fotográfica. Assim, pondo o foco no produto resultante, ou seja, nos registro da ação que Bruscky realizou em 1978, essa análise se apropria de conceitos trazidos por Hans Belting que escreve que a imagem é sempre representativa, pois corporifica ou torna presente uma ideia - e por Jacques Aumont - para quem a imagem é produzida de modo deliberado, mistura imitação da semelhança natural e signos comunicáveis socialmente, visando atingir certos efeitos sociais - para discutir o processo de produção dessa obra, pensando nela não só como registro de uma ação, mas como ausência, reminiscência, representação, montagem e narratividade. Palavras-chave: Paulo Bruscky; arte conceitual; imagem; representação Financiamento: CAPES Body art e a relação com a fotografia Os termos performance, body art e happening dizem respeito às linguagens artísticas que, apesar de não possuírem uma definição precisa, trazem o corpo do artista como suporte para a arte e evidenciam algumas tendências da chamada arte conceitual: a desmaterialização do objeto artístico, a negação do caráter institucional da arte e a aproximação entre a arte e a vida cotidiana. Na arte conceitual é Mestranda em História pela Universidade Federal do Paraná; Bolsista CAPES

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AlimentAÇÃO (1978): performance, body art, fotografia

Deisi Beatriz Barcik

(Universidade Federal do Paraná) Resumo: O artigo traz a imagem de um trabalho de arte intitulado AlimentAÇÃO produzido no final da década de 1970 pelo artista visual Paulo Bruscky. O texto tem como objetivo abordar essa obra levando em conta termos como performance e body art, duas linguagens artísticas de natureza efêmera que evidenciam algumas das características da chamada arte conceitual, por exemplo, a desmaterialização do objeto de arte e a importância do processo artístico em detrimento da produção de um objeto final. Nessas linguagens o corpo do artista torna-se o suporte para sua obra, contudo, muitos artistas utilizaram recursos, como a fotografia, para registrar suas ações. Nesse sentido, a obra AlimentAÇÃO dá margens para questões em torno da relação entre imagem e representação, especialmente por conta de certa mudança no status dessa obra – de performance ou body art para composição fotográfica. Assim, pondo o foco no produto resultante, ou seja, nos registro da ação que Bruscky realizou em 1978, essa análise se apropria de conceitos trazidos por Hans Belting – que escreve que a imagem é sempre representativa, pois corporifica ou torna presente uma ideia - e por Jacques Aumont - para quem a imagem é produzida de modo deliberado, mistura imitação da semelhança natural e signos comunicáveis socialmente, visando atingir certos efeitos sociais - para discutir o processo de produção dessa obra, pensando nela não só como registro de uma ação, mas como ausência, reminiscência, representação, montagem e narratividade. Palavras-chave: Paulo Bruscky; arte conceitual; imagem; representação

Financiamento: CAPES

Body art e a relação com a fotografia

Os termos performance, body art e happening dizem respeito às linguagens

artísticas que, apesar de não possuírem uma definição precisa, trazem o corpo do

artista como suporte para a arte e evidenciam algumas tendências da chamada arte

conceitual: a desmaterialização do objeto artístico, a negação do caráter institucional

da arte e a aproximação entre a arte e a vida cotidiana. Na arte conceitual é

Mestranda em História pela Universidade Federal do Paraná; Bolsista CAPES

estabelecida uma nova relação entre obra e artista, pois o corpo do artista passa a

ser um meio de expressão, como consequência, o processo artístico se torna mais

importante do que o resultado final. É justamente desse aspecto, de não

preocupação do artista com a produção de uma imagem ou um objeto final, que

surgiram algumas questões cujo texto pretende abordar.

A body-arte, as performances e os happenings possuem natureza efêmera,

são obras de um instante ou do desenrolar de um processo. Para que grande parte

da produção artística de natureza temporária conseguisse ser veiculada, atingindo

maior número de espectadores e, inclusive pudesse existir na contemporaneidade

alguns artistas passaram a usar recursos para registrar suas ações. Tiveram lugar a

fotografia e o vídeo no sentido de documentação. E é desse modo, através de um

gesto perenizado pela

fotografia, que entramos em

contato hoje com o trabalho

intitulado AlimentAÇÃO

(1978) do artista Paulo

Bruscky.

AlimentAÇÃO dá

margens para o

desenvolvimento de

questões em torno da

relação entre imagem e

representação, muito por

conta de certa mudança no

status do trabalho: de

performance ou body art,

como foi aparentemente

concebido, portanto, de

natureza efêmera, para

uma composição em

Paulo Bruscky, AlimentAÇÃO. 1978

imagem fotográfica que representa ou carrega o vestígio de uma ação realizado em

1978.

Com garfo e faca em mãos, o artista propõe uma autofagia, simula se

alimentar de seu próprio corpo. Cristina Freire (2006, p.44) comenta que

AlimentAÇÃO (1978) é “um exercício de autofagia fotográfica” e, por esse motivo,

ele está alinhado com a body art. Freire (1999, p.95) também escreve que a

fotografia ocupa lugar destacado em projetos conceituais como a body art, a

performance etc., porém, ela pontua diferenças nos usos da fotografia em cada

expressão artística: “Há uma diferenciação na intenção que mobilizou o registro

fotográfico e tal intenção é fator definitivo na diferenciação de propostas

congêneres”.

Dessa maneira, seria possível pensar em AlimentAÇÃO como uma

composição de imagens intencional, ou seja, não seria apenas o registro de uma

ação, tampouco as imagens seriam apenas “resultantes” de uma performance

artística de Bruscky sobre seu próprio corpo. Mais do que isso, a possível

intencionalidade da fotografia de body art, aliada a sequência como as imagens

estão dispostas na obra, mostram ações encadeadas. De fato, há um processo, uma

sucessão de acontecimentos. Essas ações encadeadas permitem abordar a obra

pensando ausência, reminiscência, representação, montagem e narratividade.

Assim, é apropriado, para prosseguir com o texto, a inserção de algumas ideias

sobre esses termos presentes em Hans Belting e em Jacques Aumont.

Imagem e representação

Apoiado nos estudos de Jean-Pierre Vernant, Hans Belting (2005, p. 68)

aborda o conceito de imagem afirmando que ele surge na cultura grega, quando, na

evolução do pensamento grego, as imagens passam a ser discutidas relacionadas

“ao símbolo, semelhança, imitação e aparência”.

Na Cultura grega havia o conceito eidolon - que era compreendido como

imagem de um sonho ou como uma imagem transitória, o que abrange a ideia de

imagens mentais, assim como imagens projetadas no mundo exterior - e Kolossos –

ou o meio no qual as imagens se materializam. Tanto eidolon quanto kolossos

remetem ao ser humano, que seria o “terceiro parâmetro” do que Belting (2005,

p.68) chama de “inter-relação triangular”: “uma pessoa vivendo em um corpo físico,

que experimentou o eidolon e fabricou o kolossos, sendo o primeiro um produto da

imaginação, enquanto o segundo é o resultado de artefatos criadores”.

Um elemento que tem papel importante para compreender a criação de

imagens está relacionado com o significado da morte, porém, não é o significado da

morte que importa, e sim a busca pela imagem que pode fazer presente um ausente:

O corpo e o meio estão igualmente envolvidos no sentido das imagens em funerais, à medida em que é no lugar do corpo ausente do morto que são instaladas as imagens. Mas essas imagens, por sua vez, permaneciam na carência de um corpo artificial, para ocupar o lugar vago do falecido. Aquele corpo artificial pode ser chamado meio (não só material), no sentido em que as imagens necessitavam de corporificação para adquirir qualquer forma de visibilidade. Nesse sentido, o corpo perdido é trocado pelo corpo virtual da imagem. É nesse ponto que alcançamos a origem da exata contradição que para sempre caracterizará a imagem: imagens, como todos concordamos, fazem uma ausência visível ao transformá-la em uma nova forma de presença. (BELTING, 2005, p. 69)

Ou seja, a imagem mental (Eidolon) precisa de um meio para ter visibilidade,

as imagens precisam, neste caso, de corporificação, ou kolossos. A imagem,

impregnada no kolossos, fará visível uma ausência. Seria, de tal modo, uma

presença icônica que acontece na inter-relação entre o nosso fitar e o meio no qual

a imagem está corporificada. Dessa forma, uma das características principais de

grande parte das imagens em uso humano seria a oposição entre presença e

ausência.

Olhando para a obra AlimentAÇÃO, vemos, de imediato, a presença de uma

figura humana. Na fotografia, que para Hans Belting (2005, p.71) é um tipo de

“cunhagem” que fixa o momento da permanência, vemos a imagem de Bruscky

marcando seu corpo com linhas que remetem a incisões feitas em sua própria carne.

Bruscky corporifica uma imagem mental que, ao que parece, está relacionada a

alguns códigos presentes em nossa sociedade: Bruscky desenha em seu corpo

linhas que se assemelham aos desenhos que esquematizam os cortes de carnes

para consumo humano. Com as linhas o artista marca a presença de uma ideia, ou

seja, a presença de uma imagem mental.

Mas não são apenas as linhas no corpo de Bruscky que estão presentes na

imagem. Há também uma sequência de atos resultantes daquilo que Cristina Freire

chamou de performance para câmera ou body art. A obra, composta por quatro

quadros que, de certa forma, narram um acontecimento, seria a reminiscência

daquilo que aconteceu e que, portanto, é ausente.

A imagem no todo, analógica nos termos de Jacques Aumont (2012), é uma

fabricação que mistura imitação da semelhança natural - o corpo do artista e signos

que são comunicáveis socialmente - e duplamente representativa nos termos de

Hans Belting (2005) - pois corporifica, ou torna presente, a ideia, ou imagem mental,

do artista sobre a execução de uma performance ao mesmo tempo em que marca a

ausência desta, como Hans Belting explica:

A relação entre ausência – entendida como invisibilidade – e presença – entendida como visibilidade – é a última instância baseada em nossa experiência física. (...) tendemos a imaginar como presente o que de fato há muito se tornou ausente e aplicamos a mesma capacidade às imagens externas que fabricamos. A medialidade é o elo perdido entre as imagens e

nossos corpos. (BELTING, 2005, p.77)

A respeito da ausência, Hans Belting (2005, p.72) encontra em Régis Debray

o termo “fitar” para lidar com a intangível imagem mental, ele explica: “Debray insiste

no “fitar” como sendo a força que transforma um quadro em imagem”, ou seja, a

imagem, nesse sentido, só existe se for “fitada”, e o fitar serve para organizar

mentalmente o visível, dessa forma, nós só criamos relações com a imagem ao olhá-

la atentamente, ao ordená-la em nossas mentes.

Mas para fitarmos uma imagem é preciso que ela esteja visível. Este

elemento que permite que haja interação entre as imagens endógenas (mentais) e

exógenas (imagens do mundo exterior, visível), é que Hans Belting (2005, p.73)

chama de medium e explica que o termo é no sentido de “vetor, agente, dispositf

(como dizem os franceses) ou suporte, anfitrião e ferramenta de imagens”.

Diante do que está disponível em AlimentAÇÃO é possível que sejam

considerados dois medium: o próprio corpo do artista, medium natural - que age por

conta própria no sentido de um medium vivo, pois a capacidade do corpo

representar é inata - no qual Bruscky mesmo impregnou imagens mentais; e um

segundo artificial, a fotografia que foi carregada com as imagens da ação do artista

sobre seu corpo. Para compreender melhor a distinção que Hans Belting (2005,

p.75) faz de imagem e meio, ele propõe que pensemos na iconoclastia, pois esta

tem como alvo de destruição o “suporte-medium” das imagens seus “corpos visíveis

e tangíveis”.

Tal proposta pode levar a pensar a “self food” de Bruscky de um modo

irreverente: porque num primeiro momento o artista corporifica imagens mentais

inserindo linhas ou marcas em um medium natural – seu próprio corpo (ainda que

essas linhas lembrem cortes na própria carne), e num segundo momento, de garfo e

faca, simula consumir esse corpo seccionado. Nesse sentido, quando o artista

remete à representação de uma autofagia, quando simula consumir seu próprio

corpo no instante mesmo em que este é o suporte de sua obra, ele simula consumir

o medium em que a imagem se faz visível.

Partindo da opinião de que Bruscky teve outras intenções além de registrar

sua performance, ou melhor, acreditando que o artista, quando produziu

AlimentAÇÃO, já pensava em outro médium, além de seu corpo, em que sua obra

pudesse ser corporificada e transmitida, ou seja, já pensava em uma composição

fotográfica, chegamos até as concepções de Jacques Aumont (2012, p. 205) que

acredita que toda imagem é produzida de modo deliberado visando atingir certos

efeitos sociais, e que busca examinar o valor representativo da imagem e a relação

desta com a “realidade visível”.

Discorrendo sobre a representação como processo de produção de

imagens, Jacques Aumont (2012, p. 206) utiliza o termo “analogia” para abordar o

problema entre a imagem e a realidade que ela supostamente representa, mas a

analogia de que fala é relativa e não está apenas nas imagens que contém uma

semelhança perfeita com seu modelo. Apoiado em Ernest H. Gombrich, para quem a

analogia tem sempre aspecto duplo: aspecto espelho - redobra a realidade visual - e

aspecto mapa - as representações são feitas a partir de esquemas mentais, ou

convencionalizados, que visam à simplificação das formas e a clareza na

representação -, Jacques Aumont (2012, p.207) escreve que em toda

representação, mesmo na mais analógica, há convenções e, inclusive, algumas

convenções são mais naturais que outras.

As representações sempre passam por esquemas pelos quais buscam se

fazer compreender. “Um bom sinônimo para analogia”, diz Jacques Aumont (2012,

p. 208), é mimese, palavra grega que significa “imitação” e especificamente em

Aristóteles, indica “imitação representativa”. Com o termo analogia este autor busca

designar o “ideal de semelhança “absoluta”, considerando que mesmo as imagens

analógicas são também diegéticas, na acepção de serem “carregadas de ficção”. A

analogia, constatada através da percepção, foi, segundo Jacques Aumont (2012,

p.213), “produzida artificialmente, no decurso da história, por diferentes meios, que

permitiram atingir uma semelhança mais ou menos perfeita”, mas sempre com

intenções simbólicas ligadas à linguagem, desse modo, em imagens representativas

sempre haverá analogia.

Vale lembrar que a analogia de que Aumont fala é mais em relação àquela

que é produzida por um criador, do que a que é percebida por um espectador, seria

interessante tentar encontrar quais analogias Bruscky produziu em AlimentAÇÃO.

A composição, comparável a uma página de fotonovela, traz, em quatro

quadros, imagens que representam momentos diferentes de uma mesma narrativa.

Seguindo a orientação de leitura ocidental - da esquerda para a direita e da parte

superior para a inferior – temos a primeira “cena”, vocábulo que nas artes figurativas,

nos termos de Jacques Aumont (2012, p. 238), é “a própria figura de representação

do espaço”, ou ainda, a “unidade dramática” da representação. Dessa forma, na

primeira cena, ocupando quase todo o espaço de representação, podemos ver parte

do rosto e tronco de Bruscky que, com uma faca em sua mão esquerda, parece

cortar seu peito e braço em linhas contínuas. Na segunda cena a ocupação do

espaço é semelhante à primeira, mas é possível ver quase a metade superior do

corpo do artista que, instrumentalizado com um garfo em sua mão esquerda e com

uma faca na direita, com um gesto análogo ao de que podemos ter em uma refeição

parece querer tirar um pedaço da carne de seu peito.

Na terceira cena o artista, que ocupa quase todo o espaço de

representação, aparece sentado à mesa, mas outros elementos são inseridos. Na

mesa, um prato recebe algo que parece escorrer de dentro do corpo do artista que,

ainda com garfo e faca em mãos, conserva um semblante de tranquilidade.

A quarta cena é ocupada por imagens deformadas. Nesse último quadro o

reconhecimento analógico da imagem pelo espectador fica um pouco comprometido.

É possível perceber uma espécie de representação de um olho, uma caixa torácica

dilacerada que, por conseguinte, faz pensar em restos, em carcaça. Mas o que há

de mais evidente na quarta cena são os vocábulos ingleses “self food”.

Retomando o modo como os quadros compõe AlimentAÇÃO, é importante

considerar “o fechamento do espaço figurativo” que, como ensina Jacques Aumont

(2012, p.229), “resulta da instituição de um corte do visível por um olhar” que é o que

ele chama de campo. Campo é o resultado de um enquadramento, é um pedaço de

um espaço que foi recortado por um olhar, um olhar que selecionou, recortou e

organizou um fragmento de um espaço em função de um ponto de vista. A escolha

do campo demonstra o privilégio concedido à atividade de um olhar que, no caso, é

considerado o olhar do próprio Bruscky, pois ainda que tenha havido outra pessoa

presente na ação, ocupando a posição de fotógrafo, foi o artista quem fez a seleção

das imagens para depois apresentá-las como podemos vê-las.

Jacques Aumont (2012, p. 236) comenta que pode ser produtivo pensar na

noção de fora de campo em imagens fixas (pintura, fotografia) que têm personagens

cortados pela borda do quadro. Nessas imagens os artistas parecem sugerir ao

espectador que prolongue imaginariamente o quadro para além de seus limites

impostos pelas bordas, contudo salienta que o “fora de campo na imagem fixa

permanece para sempre não visto, sendo apenas imaginável”.

Em AlimentAÇÃO, o “fora de campo” é absolutamente presente. As bordas

dos quadros cortam o corpo do personagem, mas ao mesmo tempo em que podem

sugerir a continuação do corpo do artista tem-se impregnada a noção de

fragmentação proposta pelas cenas. O espaço representado que é também o lugar

da ação ou da encenação simbólica, fornece informações sobre um tempo que

representa e um tempo condensado na imagem e podem, por isso, exprimir a

essência do acontecimento. Jacques Aumont (2012, p. 238) divide o tempo em

“instante pregnante”, possível apenas quando apoiado em toda uma encenação

baseada em códigos relativos aos gestos, posturas etc. que busca reter na imagem

aquele momento de maior significância de um acontecimento, e “instante qualquer”,

mais relacionado com a ideia de autenticidade.

A fotografia tornou possível a impregnação na imagem de um instante de um

acontecimento real, e nesse sentido, a estética do instante mais expressivo foi

buscada na fotografia de arte, mas o sentido dessas fotografias que buscam o

instante mais expressivo é bastante ambíguo, ambiguidade muitas vezes explorada,

pois o instante pregnante é escolhido em virtude do que se quer exprimir. Ao que

parece, no caso em questão, Bruscky age mais, na fabricação de AlimentAÇÃO, no

sentido de “montagem”.

A montagem, para Jacques Aumont (2012, p. 248), vai apontar para outras

formas de relação temporal na imagem: “a pontos diferentes no espaço da imagem

correspondem pontos diferentes no tempo do acontecimento representado”. Entre

uma imagem e outra de AlimentAÇÃO, percebemos a passagem de um tempo para

outro. Se for justamente a fotografia que melhor constitui séries de imagens em que

o tempo é marcado, “pode-se, assim, falar de intervalo (temporal) entre duas

imagens fixas pertencentes a uma mesma série ou a uma mesma sequência”. O

intervalo marca uma diferença visual entre duas imagens e é essa diferença que

torna o tempo perceptível.

Além disso, se a imagem é a representação de um acontecimento no tempo

e no espaço, logo, ela pode ser narrativa. Se AlimentAÇÃO é fruto de uma

performance artística e se, pelas escolhas visuais do artista, o que temos são

quadros de imagens diferentes que marcam uma passagem temporal, ela seria uma

imagem narrativa. Escreve Jacques Aumont (2012, p. 257): “a imagem narra, antes

de tudo quando ordena acontecimentos representados, quer essa representação

seja feita no modo do instantâneo fotográfico, quer de modo mais fabricado e mais

sintético”. Porém, inscrita no espaço e no tempo, a narrativa e toda imagem que é

representativa, é marcada por códigos, mesmo as imagens que não são

apresentadas em sequência. Ou seja, toda construção diegética, para que seja

compreendida, precisa utilizar os códigos e símbolos em vigor na sociedade em que

é construída, porque a representação está sempre relacionada aos espectadores e

precisa ser acessada por eles, pois sem os quais ela não fará sentido.

Sentido, aliás, que tem muita relação com a linguagem, com a palavra

mesmo. Jacques Aumont (2012, p.260) informa que os enunciados não precisam

necessariamente ser explícitos, podem ser apenas formuláveis verbalmente, isso

porque não há imagem “puramente icônica, já que para ser plenamente

compreendida uma imagem necessita do domínio da linguagem verbal”. Essa

interdependência pode se configurar no problema de “como imagem e linguagem

veiculam as informações”, esse ponto é importante para pensar o caso do trabalho

aqui abordado que, explicitamente, conjuga imagem e palavra.

As imagens não são compreendidas facilmente, principalmente se o

contexto em que foram produzidas estiver distante do nosso, seja temporal ou

espacialmente. Jacques Aumont (2012, p.262) explica que a abordagem semiológica

fornece algumas respostas sobre o problema da interpretação: “em nossa relação

com a imagem, diversos códigos são mobilizados, alguns quase universais (os que

resultam da percepção), outros relativamente naturais, porém já mais estruturados

socialmente (os códigos da analogia por exemplo), e outros ainda, totalmente

determinados pelo contexto social. O domínio desses diferentes níveis de códigos

será desigual segundo os sujeitos e sua situação histórica, e as interpretações

resultantes serão proporcionalmente diferentes”. É por este motivo que, dependendo

do espectador, alguns códigos são acessados e interpretados, enquanto outros

podem nem ser acessados.

Além do próprio título presente na parte superior da obra, de um endereço

físico, contendo o nome do artista, CEP, estado e cidade em que ele vive, A obra

traz outras palavras: está carimbado na imagem fotográfica a frase “CÓPIA

CONFORME ORIGINAL”; no último quadro lemos “self food”; a borda lateral direita é

ocupada pela frase “AMERICA LATINA BRASIL URGENTE” e no canto superior

direito, outro carimbo, “GENTE URGENTE URGE”.

AlimentAÇÃO: composição fotográfica

As próximas linhas serão destinadas à tentativa de acessar e interpretar

alguns dos códigos, além daqueles que já foram comentados, presentes em

AlimentAÇÃO (1978) e que podem colaborar, por fim, com a discussão que foi

proposta inicialmente, se a obra em questão foi de fato pensada para o medium em

que é apresentada.

Em AlimentAÇÃO (1978), Paulo Bruscky primeiro secciona seu corpo em

várias partes, impregnando em seu corpo, ou naquilo que Hans Belting chama de

medium natural, imagens que remetem a cortes de carne, simulando, uma

automutilação. Nesse trabalho, que para Cristina Freire está mais alinhado com a

body art, Bruscky realiza uma “autofagia fotográfica”. Mas não podemos ignorar que

o que vemos é uma imagem composta e que há nela palavras e frases.

Jacques Aumont (2012, p.265) escreve que tal como existe na linguagem

verbal o “sentido figurado”, também deve haver na imagem um segundo nível de

significação; o autor explica que “A figura é no enunciado verbal uma configuração

mais ou menos única, que se diferencia da regularidade do discurso pelo fato de

procurar produzir sentido de um modo mais original (...) mais metafórico”. O termo

“figura”, ou ainda a ideia de metáfora, aponta para uma “contaminação do verbal

pelo icônico”, esse pensamento vai de encontro à ideia de perceber na linguagem

figurada outro modo de uso que difere daquele “empregado pela linguagem verbal

“comum””. O sentido figurado seria então, a representação de novas formas de

expressão.

Tanto a imagem como as palavras contidas nela colaboram mutuamente

para que a apreensão da obra tenha pelo menos um sentido explícito, a autofagia.

Mas, como comentado anteriormente, essa atitude autofágica de Bruscky, ainda que

seja apenas simulação, remete a ideia de iconoclastia, de destruição ou de

consumação da obra pelo próprio artista, pois o medium utilizado para a ação é o

seu próprio corpo. Não são poucos os trabalhos, sobretudo de arte conceitual da

década de 1970, que podem ser vistos como análogos à AlimentAÇÃO,

principalmente no sentido em que o artista imprime em seu próprio corpo marcas ou

gestos que levam a pensar também na consumação desse corpo.

Para citar um exemplo, em Trademarks, de 1970, o artista norte-americano

Vito Acconci já propunha um trabalho de body art em que ele se direciona para o

seu próprio corpo no intuito de compreender como este se estabelece como objeto.

No trabalho, Acconci morde várias partes do próprio corpo numa atitude que

artista e obra mudam de status continuamente. Nos termos que neste texto foram

tratados, o que Acconci faz em 1970 se assemelha muito ao que Bruscky realizou

em 1978, pois o corpo do artista passa a ser também o lugar em que a imagem se

configura, ele é então criador da obra e própria obra.

Além dessa relação do corpo do artista como meio para sua arte,

AlimentAÇÃO invoca outro questionamento sobre mídia, é o carimbo no canto

superior esquerdo: “cópia conforme original”. A técnica do carimbo foi e é muito

usada por Bruscky em muitos de seus trabalhos, mas especificamente nesse o

artista tensiona a questão de originalidade. O carimbo pode remeter a originalidade

do corpo presente na obra, pois a fotografia faz um registro do original. Mas também

tensiona outros elementos importantes, a ideia de documento e de registro da obra.

Fig.3: Vito Acconci, Trademarkes, 1970

O dizer do carimbo remete imediatamente as instituições burocráticas: cartórios,

repartições públicas etc. e que tem o poder de validar ou invalidar algo como

verídico, como fiel à sua matriz, ou seja, a cópia que está conforme seu original.

Com o mesmo carimbo, Bruscky marcou outros de seus trabalhos, principalmente os

trabalhos de xerox arte.

Com os dizeres “AMERICA LATINA BRASIL URGENTE” E “GENTE

URGENTE URGE”, uma espécie de jogo de palavras, Bruscky faz referência à

situação política de grande parte da América Latina naquele momento, pois, na

década de 1970, vários países latino americanos sofriam com sistemas ditatoriais.

AlimentAÇÃO, conjuga imagens e palavras que, com sentido metafórico, se

completam em uma narrativa. A narrativa da autofagia de Paulo Bruscky. Se o

artista produziu essa imagem factual, é aceitável acreditar que foi, como escreve

Jacques Aumont (2012, p.205) “de modo deliberado para certos efeitos sociais”,

então, é razoável pensar em AlimentAÇÃO, não apenas como registro e extensão

de uma performance ou body art que o artista realizou em 1978, mas como uma

composição fotográfica, ou seja, uma produção de imagens que foi pensada para a

mídia em que está. Obra em que o artista teve preocupação com o processo

artístico, mas que nem por isso ignorou a produção de um produto estético final,

aliás, ao que parece, muito pelo contrário.

Por fim, a intenção do texto foi no sentido de tentar compreender a obra,

percebendo que, por mais que ela seja composta pela reminiscência de uma

performance que aconteceu há décadas, ela é uma imagem e, como assinala Hans

Belting (2005, p. 76) “as imagens atestam a ausência do que fazem presente”.

Assim, as considerações que aqui estão postas, não se dão no sentido de pretender

catalogar ou encontrar termos que definam o trabalho do artista, mas sim no sentido

de refletir sobre imagem e representação.

Referências

AUMONT, Jacques. A parte da imagem. In: A imagem. Campinas, Papiros, 2012, p.205-270. BELTING, Hans. Por uma antropologia da imagem. Concinnitas. UERJ, Rio de Janeiro, vol.1, n8, 2005. FREIRE, Cristina. Arte conceitual. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 2006. ______. Paulo Bruscky: arte, arquivo e utopia. Companhia editora de Pernambuco, São Paulo, 2006. ______. Poéticas do processo. Arte Conceitual no Museu. São Paulo, Ed. Iluminuras, 1999.+