alfas - as melhores entre as melhores

7/30/2019 ALFAS - As Melhores Entre as Melhores

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ACADEMIA ALFA Se você não se der bem de primeira, não pode ser uma Alfa

NOME: Skye Hamilton

IDADE: 14

CIDADE DE ORIGEM: Westchester, NY

MELHORES DISCIPLINAS ESCOLARES:

• Matemática (eu + menino gato = beijo na boca)

• Desi gn de moda (você já ouviu falar de mangas de camisa para dança?

Bom, você vai)

• Poesia (palavras têm que rimar, penso nisso sem parar)

VOLUNTARIADO, ONGs E GRUPOS DE TRABALHO:

• Pegadoras DSL: lfa

• Bolinhos para filhos de pais divorciados: supervisor a de coberturas

• Corpo Vivo Estúdio de Dança: líder de grupo • Moda Sem Bicho: promotora de peles sintéticas

• Praia Elétrica Salão de Bronzeamento: ssociada nível ouro

ATIVIDADES EXTRA-CURRICULARES:

• Contato super -rápido com garotos

• Dança contempor ânea, balé, break dance e sapateado

• Musa da grife Corpo Vivo Moda para Dança • Fanática por animais

O QUE FAZ DE VOCÊ UMA ALFA?

O que não faz?

POR QUE VOCÊ SE DESTACARIA NA ACADEMIA ALFAS?

Dou belos rodopios e grandes saltos em uma competição. Literalmente.

SEU LEMA ALFA:

Dançar pra não dançar.



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ACADEMIA ALFA

Bem-vinda à aula inaugural da Academia Alfa. Durante o último ano,

milhares de garotas responderam ao chamado alfa. Cem foram

selecionadas. Apenas as melhores sobreviverão.

Como você deve ter lido em minhas autobiografias best-sellers,

Saltando com cuidado — A luta por sobrevivência de uma órfã australiana,

Esperança não se come, e Dos cangurus ao sucesso é um pulo , eu construí

um império bilionário do nada, usando apenas instinto e determinação, ou,

como muitos dos diretores das empresas listadas entre as 500 mais na

revista Fortune chamam hoje em dia, “Determinação Shira”. Meus WEFs

(Workshops de Empoderamento Feminino) foram licenciados por todo o

mundo e traduzidos para setenta idiomas. Minha empresa de cosméticos, a

Cromossomo X, é a líder na fabricação de produtos de beleza para meninasdo mundo inteiro. E a Brazille Enterprises... Bom, vou parar por aí.

Isto aqui é sobre você.

Ao contrário do meu legado, que viverá para sempre, pode ser que eu

não viva1

. No caso de eu um dia vir a morrer, terei deixado uma centena degarotas transformadas para sempre pela Academia Alfa. Nossas

ilustríssimas salas de aula estão cheias de alunas com talentos múltiplos:

Temos uma poetisa-ambientalista, uma dançarina-modelo-atriz, uma

vencedora da liga mirim de Wimbledon e inventora, uma estrela de cinema-

escritora de romances de celular. Mas uma verdadeira Alfa é mais do que

seu currículo. É mais do que um ouvido absoluto, um quorum absoluto, um

1 Status do grau de mortalidade de Shira no momento da impressão (sujeito a mudanças, já que os

laboratórios da BE estão próximos de descobrir uma cura para a morte).



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dez absoluto, ou mesmo um QI absoluto. Uma Alfa é uma máquina com

coração. É o futuro. É você.

Sobreviva a um ano na Academia Alfa e seus sonhos mais

fantásticos vão se estender à sua frente como um tapete vermelho gigante.

As aulas começam no dia 5 de setembro. Traga sua dedicação e sua escova

de dentes. Oferecemos todo o resto. Em anexo vai um aPod que explicará

mais detalhes. É só ligar.

Atenciosamente,

shira

Shira Brazille

Presidente da Brazille Enterprises

Fêmea Alfa Internacional



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1

WESTCHESTER, NY

CORPO VIVO ESTÚDIO DE DANÇA

QUINTA-FEIRA, 22 DE JULHO

11:37

Cinco Skye Hamiltons podiam ser vistas no Corpo Vivo Estúdio de

Dança. Uma em cada parede espelhada do salão e uma em carne e osso.

Quando a Skye-em-carne-e-osso dava um passo-giro-passo- plié -passo-

leque-passo-bola, os reflexos a seguiam. As outras nove garotas no Ateliê no

1 também. Ou pelo menos elas tentavam.

Um fio de suor escorreu da base do coque que prendia firmemente os

cachos dourados de Skye, e seguiu pelas costas do seu collant azul-bebê.

Ela jogou os ombros pra trás (ainda mais), tentando limpar as costas — não

porque tivesse ficado envergonhada, mas porque podia. Seu corpo semprefazia o que ela mandava. Tudo o que precisava fazer era dar corda na

música e pedir.

— E um... dooois... t-rrrrês... quatrrrro... cinko... sei-z... seeete... oito.

— Madame Prokofiev batia palmas lentamente ao som meloso de “Fever”, de

Michael Bublé, enquanto escrutinizava suas alunas à procura de RIDS

(Ritmo, Incongruências, Desleixos e Sorrisos). Como sempre, seus olhoscastanhos examinavam tudo e passavam zunindo por Skye como duas

balas mirando em outra pessoa.



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— Menos pulso, Becca! — Ela batia uma palma. — Menos queixo,

Reese. — Palma. — Gira o joelho, Wendi. Sem enrolação. — Palma. Palma.

— E eu juro pelos meus tendões, Heidi, se você não consertar essa postura,

eu vou usar você como almofada de decoração!

Vestida de espartilho preto e calça bailarina combinando, e com os

cabelos castanhos presos em um coque, a elegante Madame P parecia uma

primeira-bailarina, mais apertada do que uma sapatilha de ponta. E ainda

assim ela se movia como mel e picava como uma abelha.

Skye a adorava.

Skye acrescentou um giro antes de parar, incentivada pela aprovação

silenciosa de Madame P, e terminou com as mãos em posição de reza — uma Flor Namastê de Bollywood2. A coreografia não pedia aquilo — seus

instintos é que pediram. Ela tinha baixado a música da MIA da trilha

de Quem quer ser um milionário 3 , e assim como algumas pessoas ficam com

uma música na cabeça, Skye tinha ficado com essa no corpo.

— Chega — disse Madame P com uma palma abrupta. As linhas de

expressão na sua testa enrugada estavam franzidas como polainas

frouxas. Será que Skye tinha ido longe demais com a sua flor?

Todas as nove dançarinas pararam esbaforidas, mas o coração de

Skye continuou batendo apertado no seu peito. Finalmente, ela cruzou os

braços sobre seu sutiã 42 e pediu que seu coração lhe desse cinco minutos.

Então se posicionou ao lado das outras Pegadoras DSL (elas

estabeleciam contatos super-rápidos com garotos): Missy Cambridge, Becca

Brie, Leslie Lynn Rubin e Heidi Sprout. Assim como Skye, suas melhores

amigas eram louras — duas usavam tranças, duas, rabo de cavalo — e

todas vestiam saias balonê cor-de-rosa, idênticas, sobre collants cinza e

2 Referência à indústria indiana de filmes populares nos quais é frequente a presença de dançarinos

habilidosos. O nome vem da junção das palavras Bombaim (antigo nome de Mumbai, cidade onde seconcentra a produção) e Hollywood (N.E.).

3 Slumdog Millionaire : filme britânico de 2008 filmado na Índia cujo enredo narra a história de um

jovem pobre que tem a oportunidade de se tornar milionário ao vencer um jogo em um programa deauditório. A obra conquistou vários Oscar em 2009, incluindo Melhor Filme, Roteiro, Direção eFotografia (N.E.).



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meias-calças da Coleção CVED (Corpo Vivo Estúdio de Dança), por Anna

Pavlova. Skye tinha acrescentado as mangas que eram sua marca

registrada — como polainas para os braços; as de hoje eram pretas de

arrastão com amuletos pendurados nos pulsos: pra dar sorte, uma

ferradura; pra celebrar sua paixão, uma sapatilha de dança; para atrair

beijos, um par de lábios; e por razões práticas uma chave de armário. Toda

vez que ela se mexia, os pingentes tilintavam, acrescentando um pouquinho

a mais de graça à trilha musical enfadonha.

— Mais personalidade, meninas. — Madame P caminhou para o

centro da sala, estalando a língua com decepção. — Dançar não é só saber

os passos. É interpretá-los. — Ela piscou para Skye, que se sentiuabsolvida da bronca. — Então, por favor, tentem não esquecer. Nós estamos

dançando house , e não como o Dr. House, então parem com as mancadas!

Algumas das garotas ficaram boquiabertas. Outras deram risinhos

nervosos. Skye apertou o polegar contra os dentes da chave do seu armário.

A dor a impedia de rir e tripudiar.

Madame Prokofiev estalou os dedos.

— Mais uma vez! E um... dooois... t-rrrês... quaaatrrrro... cinko... sei-

z... seeete... oito.

Desta vez as garotas reagiram como puros-sangues ao sinal de

largada. As Capezio nos seus pés poliam a madeira brilhante do chão do

salão que pertencia à família Hamilton há anos. A força dos seus

movimentos sincronizados enchia Skye de energia e transformava o seu

suor em orgulho — não só das meninas que dançavam ali, mas também

dos pais dela, que deram a elas esse lugar para fazerem isso.

Uma pancada ensurdecedora interrompeu o fluxo da dança. A porta

abriu apenas o suficiente para Madame P perceber que alguém

no hall queria vê-la. Ela acenou com a cabeça para Skye, silenciosamente

transferindo o poder para a sua menina dos olhos, e então saiu.

Skye girou o pescoço, depois trotou rapidamente para a frente da

classe, parando apenas pra mudar a música.



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— Mesma coreografia, três vezes mais rápido. — Ela arreganhou os

dentes e contraiu as pernas, pronta para dançar de verdade.

“When I grow up I wanna be famous I wanna be a star ...”, o Pussycat

Dolls miava do deck do aPod.

— No... cinco, seis, sete, oito... — Skye começou, severa. A luz do

meio-dia entrava pelas janelas e a iluminava como um holofote.

Nos passos da break-dance , movendo os braços rijos, envergando os

ombros, fazendo a dança do robô e agitando o corpo, ela se mexia mais

rápido ao som da batida do que o Demônio da Tasmânia no So You Think

You Can Dance 4 . Livre de Madame P, podia abandonar os passos de dança

tradicionais e se expressar livremente. Ela repetia alguns movimentos deBollywood, acrescentando a energia da Broadway, um pouco do rebolado da

Beyoncé e uma pitada de tesouras do balé Romeu e Julieta , se apropriando

de cada coisa conforme a sua vontade. Skye mudava mais de estilos do que

um trailer do Moulin Rouge . Por fim, executou um último glissé tour jeté ,

deu um salto e fez uma reverência para o público cativo, que um dia estaria

lá. Os pingentes nas suas mangas ressoavam. Era como se fossem

aplausos.

Skye aprumou-se, virou para as duas fileiras de quatro meninas

atrás dela e falou esbaforida:

— Mais uma. Sem mim desta vez.

Skye tinha estabelecido um novo nível de competição. Do mesmo

jeito que a mãe tinha feito com ela alguns anos antes. Leslie Lynn iniciou os

movimentos com vontade, mas este mesmo entusiasmo fez a sua franja

escapulir da trança frouxa. A tentativa de Leslie de jogá-la de volta para o

lado durante um salto axel a deixou um segundo atrás das outras

dançarinas, arrastada como um pedaço de papel higiênico na sola de um

sapato.

Com os pés pra fora na primeira posição — a sua posição de poder —

Skye fez beicinho e incorporou o seu ditador russo interior.

4 Reality show norte-americano em forma de concurso de dança (N.E.).



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— Estes espelhos estão aqui pra gente acertar a postura, não o

cabelo — ela anunciou. Leslie alcançou o passo com um sorriso

envergonhado.

— Peito pra fora — Skye exigiu, já que a postura de Heidi tinha dado

outro mergulho. Heidi tinha passado a usar sutiã 44 esse ano e obviamente

ainda estava tendo dificuldades em se ajustar ao novo peso. — Faça por

merecê-los, Hei!

Heidi empertigou os peitos e suas costas arquearam em protesto.

Nota pra mim mesma, Skye pensou: Apresentar Hei à nova linha da

Martha Graham de tops redutores de busto. E se ela ficar constrangida, dar o

cupom de desconto para família e amigos. Do lado dela, Becca se jogou num spacatto que mais pareceu um

passo de líder de torcida. Skye puxou para baixo o rabo de cavalo de Becca

para barrar seu excesso de zelo com o penteado.

— Menos balanço, mais peso.

Becca encolheu sua barriga, que já era côncava, ao ouvir a

palavra peso . Skye suspirou. Becca não era uma beta muito inteligente,

mas era mais doce que adoçante e seguia Skye com a dedicação de um

cisne do coro em Lago dos cisnes . Os que não podem liderar, seguem. E

desde que seguissem Skye, estava tudo perfeito.

Depois ela se aproximou de Missy. Cada fio de cabelo dela estava

perfeitamente no lugar, assim como os seus passos. Ela costurava as

sequências com perfeição técnica: sua ponta assinalava um ângulo de

quarenta e cinco graus, seus ombros paralelos ao chão, e seus saltos

acompanhavam a batida com nanossegundos de precisão. Mas ela parecia

mais cheia de chumbo que um brinquedo chinês.

A música acabou e as dançarinas pararam. Missy piscou pra amiga,

aguardando ansiosamente as suas notas. Era como aguardar um cartão-

postal de um sádico; quando você se importa tanto que quer ser insultada

pelo melhor de todos.

— Olhem pra mim. — Skye deu um perfeito tour piqué , com os braços

abertos e as mãos dadas, como se estivesse abraçando o Pavarotti. — A



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ideia é ser sólida e líquida ao mesmo tempo, como uma caixa de suco

fechada rodopiando em um carrossel — ela ensinou, pegando emprestada

uma frase da mãe e repassando como se fosse dela mesma.

Um... dois... três...

Depois da terceira repetição, a porta abriu com um rangido, e

Madame P deslizou de volta pra dentro.

Na quarta sequência, Skye viu os pais, vestidos em roupas de

aquecimento para dança, cinza e branco combinando. Sua mãe acenava

com um pedaço de papel dourado acima da cabeça.

E na quinta — espera aí, aquilo era uma equipe de filmagem? Skye

diminuiu o ritmo até parar, numa meia-ponta. Garçonetes ágeis vestidascom macacões e tutus prateados do CVED circulavam bandejas de dim

sum 5 seguidas pelo bolo favorito de Skye, sabor mousse de chocolate. Era

uma festa-a-porter . Mas por quê? Nunca permitiam comida dentro do

estúdio. Nem dentro das dançarinas, aliás.

Missy e Leslie arregalaram seus olhos dourados de glitter para Skye,

que respondeu dando de ombros.

— Parabéns, minha querida! — Natasha Hamilton gritou com seu

sotaque levemente russo. Seu cabelo louro quase branco estava preso em

um rabo de cavalo baixo. Mas o resto dela se movia com uma alegria

desinibida. Ela balançou um envelope de glitter dourado no ar. — Você foi

aceita na Academia Alfa!

As oito meninas deram um gritinho de inveja-exultação.

— O quê? — Os olhos azul-caixa-da-Tiffany de Skye buscaram os

idênticos da mãe por uma explicação. Uma retratação. Uma pegadinha.

Mas o orgulho estampado no rosto da sua mãe era tão genuí-no

quanto raro.

A última vez que Skye tinha visto orgulho assim tinha sido sete anos

antes, quando ela disse pra mãe que queria ser uma bailarina profissional,

5 Prato da culinária chinesa que consiste em pequenas porções de comida servidas em cestinhas

(N.E.).



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igual a ela. Meses depois o estúdio havia sido construído, instrutores

tinham sido importados e o treinamento, começado. Mas não importava o

quanto Skye dançasse em busca dela, aquela expressão orgulhosa nunca

tinha retornado. Até agora.

A excêntrica bilionária, magnata do entretenimento, Shira Brazille

tinha anunciado a abertura da escola no seu programa, A hora Brazille , na

última primavera, e Skye tinha estado desesperada pra estudar lá desde

então. A imigrante australiana havia fundado esse exclusivo internato para

cultivar a próxima geração de dançarinas, escritoras, artistas e inventoras

excepcionais, porque ela era — por seus próprio critério e de todos os

outros — a última palavra em todas as coisas alfa . Diretora da Alfa GirlInternational, aclamada empreendedora, guru fashion, Shira estava em

todas. Ela era mais respeitada do que Martha Stewart, mais reverenciada

do que Michelle Obama, e mais amada do que Oprah Winfrey.

Skye jogou os braços pra cima e girou em uma pirueta perfeita.

— Eu consegui! — Ela bateu a ponta do pé no chão, com a respiração

ofegante. A hora tinha chegado. O seu grande momento. Uma porta para

mais palcos, mais solos, mais ovações de pé, mais expressões de orgulho,

mais chances de estar no centro de tudo.

Uma repórter morena com uma covinha no queixo que competia com

a de Demi Lovato estava em pé na frente de um câmera. Ela forçou um

sorriso largo nos seus lábios rosa.

— Aqui é Winkie Porter, do Westchester News 1, direto do estúdio de

dança Corpo Vivo, em Westchester, Nova York. — A voz de Winkie subia no

fim de todas as frases, fazendo com que até o seu nome soasse como uma

pergunta. — Na última primavera, a excêntrica bilionária e magnata do

entretenimento Shira Brazille anunciou a abertura da escola em seu

programa, a Hora Brazille . O objetivo, segundo ela, é “cultivar a próxima

geração de talentos excepcionais sem as distrações do nosso mundo

medíocre”. E a nossa prata da casa, Skye Hamilton, prodígio da dança, é

uma das cem sortudas a assegurar essa vaga tão cobiçada!



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— Você conseguiu, Skye! — Seu pai a ergueu no ar, e ela deu

risadinhas na descida. Apesar de ter aterrissado perfeitamente, Skye ainda

sentia como se estivesse flutuando.

— Estamos gravando isso? — Winkie perguntou pro seu operador de

câmera, um garoto bonitinho, mas com a barba por fazer. Quando ele fez

que não com a cabeça, ela disse: — Senhor Hamilton, será que o senhor

podia fazer isso de novo?

As dançarinas correram para trás da Skye e do pai em uma tentativa

de aparecer na câmera. Elas se moviam numa massa confusa, como um

tufo de cabelo correndo em redemoinho na direção do ralo.

Skye deu de ombros e acenou com a cabeça para o pai, cujos olhoscastanhos brilhavam de orgulho enquanto rodopiava com ela mais uma vez.

Quando ele colocou a filha no chão com delicadeza, seus cabelos louro-

escuros estavam levemente bagunçados por causa do rodopio. Ela deu

tapinhas pra colocá-lo no lugar, como se seu pai fosse um poodle obediente

gigante.

— Você alguma vez imaginou que a sua filha seria solicitada pela

mulher de maior influência no mundo? — Winkie enfiou o microfone sob o

seu queixo quadrado.

— Claro que sim. — Geoffrey sorriu para a filha.

Winkie pousou sua mão gelada no ombro de Skye.

— Ficamos sabendo que houve um pequeno acidente com a sua

redação e que ela se perdeu no correio. Você passou a noite em claro

reescrevendo o texto? Conta pra gente como foi passar por esse sufoco.

Skye arregaçou as mangas. Como Winkie sabia disso?

Ela tinha ficado sabendo que a redação para a sua inscrição tinha

sido perdida no mês anterior, mas não tinha se dado ao trabalho de

escrever outra. Estava muito ocupada perseguindo o seu outro passatempo

favorito: garotos. Skye estava na esperança de descobrir se a boca do Dune

Baxter, um surfista gatíssimo, tinha gosto de bala de alga marinha, mas

acabou que ele estava interessado na Kristen Gregory, da oitava série.



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— Foi muito estressante — Skye mentiu. — Eu só vou dizer que

agora eu tenho calos nas mãos pra combinar com os dos meus pés.

Winkie riu com a boca fechada.

Atrás da câmera, antigos instrutores, amigos da escola e vizinhos

começavam a chegar. Eles cumprimentavam-se uns aos outros com

abraços, enchiam a boca de dumplings 6 C:\Users\Poty\Text\alphas-33.xhtml - footnote-210-

6 e depois mastigavam, balançando a cabeça prazerosamente com essa

história de sucesso local.

Winkie enfiou um microfone embaixo dos lábios quase sem gloss de

Skye.

— Conta pra gente como é ser escolhida por Shira Brazille, magnatado entretenimento. Ícone. Alfa.

Skye esticou a mão e puxou um palito prateado, desfazendo o

penteado artístico de ninho de passarinho, e soltou uma avalanche de

ondas douradas para a câmera.

— Shira é uma heroína pra mim — ela disse, confiante. — A

trajetória dela é uma superinspiração, porque mostra o que uma garota

pode fazer quando se dedica. E agora, retribuir dessa maneira..., uau! —

Skye flexionou a fala como se tudo isso tivesse acabado de lhe ocorrer e ela

não tivesse ensaiado um milhão de vezes com a mãe no verão anterior,

antes do sumiço da redação.

— E, para aqueles de nós não familiarizados com o termo, o que

exatamente é uma “alfa”? — Winkie perguntou através do seu sorriso

permanente, fazendo aspas no ar com a mão que não estava segurando o

microfone.

— Se você precisa perguntar, é porque você nunca vai saber. — Skye

não tinha um botão para editar o que pensava antes de falar. Meninas

como ela não precisavam disso.

Winkie franziu o olho, mas passou para o próximo assunto sem

esforço.

6 Bolinhos cozidos de massa de batata e farinha, típicos da culinária chinesa (N.E.).

http://c/Users/Poty/Text/alphas-33.xhtml%23footnote-210-6








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— Skye, você foi a única menina escolhida do estado de Nova York.

Você não tem medo de, ao sair daqui, passar a ser mais uma na multidão?

Você se sente pronta pra deixar isso tudo pra trás? — Ela passou a língua

nos lábios, como se tivesse chegado à sua pergunta Barbara Walters,

aquela pra levar o entrevistado ao choro.

Será que Skye estava pronta? Ela olhou em volta para o CVED, onde

era a melhor dançarina que eles já tiveram, e para as Pegadoras DSL, que

não passavam de Quebra-Nozes bem vestidas antes de ela lhes dar a vida.

Skye apertou o seu amuleto em forma de boca entre o polegar e o

mindinho. Ela já tinha beijado todos os Top Westies (garotos de

Westchester). E sempre suspeitou que estava destinada a coisas maiores.Os dedos ossudos de Natasha buscaram a mão da filha — uma deixa

para voltar para o roteiro.

— Minha mãe me ensinou que o sucesso é como o balé. Você precisa

trabalhar até os seus pés doerem, até os seus músculos doerem, até o seu

corpo saber os passos sem nem pensar. Você se desafia a cada dia pra

dançar com mais força, melhor e por mais tempo. E assim, quando se

acendem as luzes e a performance começa, parece não estar fazendo

nenhum esforço.

Os lábios carnudos da boca arredondada da mãe se mexiam junto

com os dela. Depois de uma carreira cheia de entrevistas e aparições na TV,

Natasha sempre sabia o que dizer. Skye é que nunca conseguia transformar

os seus sentimentos em palavras. Ela era do tipo que tinha que ficar de pé

e mostrá-los.

— Bom, você está pronta com certeza. — A voz de Winkie não foi para

o agudo desta vez... não havia dúvida quanto àquilo.

— Obrigada pela festa, mãe. — Skye seguiu Natasha até um par de

cadeiras no canto, depois que todo mundo tinha ido embora. — E por

reescrever minha redação.

— Eu não escrevi. — Natasha mastigava um pedaço de aipo. — Eu

acrescentei umas frases aqui e ali, mas você fez a maior parte do trabalho.



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— Conhecer o seu pai...

Natasha começou a divagar, tirando o cabelo de Skye de trás das

orelhas. Skye conhecia bem a história. Sua mãe, a Pegadora DSL original,

veio para os Estados Unidos quando tinha dezessete anos para se

apresentar no Lincoln Center. Depois de uma dança no palco, ela recebeu

uma proposta de casamento do pai de Skye e desertou.

— ...montar este estúdio de dança — Natasha continuava — e você.

As palavras da mãe encheram os seus músculos com o tipo de calor

que a gente sente depois de um bom alongamento. Um calor que a deixava

mais comovida e mais forte ao mesmo tempo. Quem se importa como é que

a sua inscrição tinha aterrissado na escrivaninha de Shira? O queimportava é que isso tinha acontecido.

Skye olhou em volta para o lugar onde tinha aprendido a dançar. De

repente, se sentia grande demais para o pequeno estúdio. As janelas de

vitral, as luminárias de trilho com lâmpadas especiais que realçavam

cabelos louros, o buraco no batente que ela tinha feito com a sua varinha

da Sininho, quando ainda tinha seis anos. Todas essas coisas agora eram

parte do seu passado, destinadas a encolher e virar fotos 3x4 na sua

memória. Imagens que ela folhearia quando precisasse se lembrar de onde

tinha vindo.

Entrelaçando as amarras de seda da sapatilha entre os dedos, Skye

deu uma olhada nas maçãs do rosto da sua mãe. Quando ela sorria, a pele

clara que as encobria parecia uma meia-calça branca sobre rochas macias.

— Você vai ser a melhor dançarina da Academia Alfa. — A mãe

puxou a filha na direção do coração, como se o abraço delas tivesse sido

coreografado. O tilintar dos amuletos fez Skye sentir saudades de casa,

apesar de ainda estar lá. — O que é que você vai desejar primeiro?

Skye abriu o compartimento secreto e descobriu quadrados de papel

cuidadosamente dobrados e cheirando a lavanda. Eles tinham o cheiro de

casa.

— Não sei — Skye mentiu. A verdade era que ela sabia exatamente o

que queria. O que ela tinha esperado e sonhado pela vida toda.



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O DEA Nº 1 era fazer a mãe ter orgulho dela.



19

2

EM ALGUM LUGAR SOBRE O DESERTO DE MOJAVE JATO ALFA

DOMINGO, 5 DE SETEMBRO

9:24

A trinta e oito mil pés acima do deserto, Allie Abbott tentou localizar

seu estado emocional no GPS. Era alguma coisa entre “uau” e “opa, o q ue

foi que eu fiz!?”. Suas lentes de contato esmeralda passearam pelo interior

aconchegante do avião particular. Depois de mais de duas horas de voo e

choro, seus olhos finalmente estavam suficientemente secos para absorver

o ambiente.

As paredes convexas em forma de ovo eram cobertas de metal

prateado martelado, refletindo prismas e arco-íris por toda a cabine de

passageiros.

— Sou feita de sessenta mil latas de alumínio reciclado — a paredeanunciou em uma voz cordial de mulher, com sotaque britânico, quando

ela passou os dedos sobre a superfície curva.

Allie esterilizou as mãos com álcool gel imediatamente.

Ela nunca saberia que estava voando “verde”, se a gravação

automática do avião não lhe relembrasse toda vez que tocava em alguma

coisa. Afundando na sua poltrona acolhedora, feita de pneus reciclados,

pensou que gostava da ideia de que tudo naquele avião tinha sido outra

coisa antes — tudo ali tinha tido um recomeço, uma segunda chance, e



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agora, graças à Academia Alfa, Allie também teria a sua. Ela deu um gole

no suco de clorofila, o favorito de Allie J.

— Ham-ham! — Allie engasgou e quase vomitou. A gosma azeda feria

suas papilas gustativas, e ela, em um reflexo, chupou as bochechas.

— Algum problema com o suco de clorofila? — perguntou uma voz

suave e maternal através do interfone da cabine do piloto. Era a mesma voz

que havia lhe dado boas-vindas a bordo. A mesma voz que tinha contado

que ela ia voar para um lugar secreto em algum lugar do deserto de Mojave.

E a mesma voz que tinha lhe lembrado que não teria mais volta, quando as

rodas levantaram na pista em Santa Ana, Califórnia.

— Não. O suco está perfeito — Allie mentiu. Uma habilidade quepassou a dominar nas últimas semanas. E que ela esperava desenvolver

ainda mais depois de aterrissar, porque a Academia Alfa tinha preparado

aquele avião para uma Allie Abbot totalmente diferente. Allie J. Abbott,

mais especificamente. A poeta Girl Power 7 e compositora, obcecada por

ecologia. Não para a modelo de shopping , de coração partido, que idolatrava

a cultura pop, a música pop, e os Pop-Tarts. Não. Ninguém queria aquela

Allie hoje em dia.

Allie enxugou mais uma lágrima e se aninhou em sua poltrona

ergonômica reclinável. Aquelas poltronas eram feitas de um material que

parecia um plástico bolha cheio de água e davam a sensação de estar sendo

massageada por cem pessoas diferentes ao mesmo tempo. Se ela não

estivesse com o intestino revirando por causa daquele maldito suco, ia ser

uma sensação incrível.

— Hum, oi? Eu posso assistir a um filme? — Allie perguntou para o

vazio na cabine de passageiros. Será que a comissária de bordo estava

sentada na frente do piloto? De repente, diminuíram as luzes e um carrinho

elétrico cheio de pipoca orgânica estacionou do lado dela. Um cobertor feito

de fibras de cânhamo foi ejetado de dentro do encosto do braço,

7 Do inglês, "poder das meninas". Expressão feminista difundida pelo grupo Spice Girls no começo de

sua carreira (N.E.).



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escorregando como um fax, e enrolou-se em volta do seu corpo todo, até ela

se sentir como um cone de kani .

A última hora, com Leonardo DiCaprio, começou imediatamente.

— Este filme será exibido em high definition usando Smell-O-Vision ,

um dispositivo com patente pendente que pulveriza um cheiro para

combinar com a imagem na tela — a voz britânica informou pelo interfone.

E então Leo apareceu na tela, acompanhado pelo aroma fresco de jojoba e

eucalipto, as mesmas essências do protetor labial Intense Therapy de

Fletcher.

A boca de Allie começou a contrair involuntariamente, ansiando pelo

gosto dos beijos do seu ex-namorado. Tipo, seeeério? Se voar num jatinhoparticular falante a caminho da academia mais privilegiada do mundo

enquanto cometia um roubo de identidade não ajudasse a esquecê-lo, então

uma lobotomia seria a única saída.

Allie tinha visto Fletcher Barton pela primeira vez no Shopping

Riverside Palace, no centro de Santa Ana. Eles cruzaram os olhares nas

escadas rolantes da ala norte — ela estava subindo, ele estava descendo.

Os braços dela estavam cheios de sacolas. Os dele estavam cheios de

músculos. O corpo dela, bronzeado artificialmente, ficou todo arrepiado,

mas não tinha nada a ver com o ar-condicionado, e tudo a ver com a

jaqueta de couro dele. Ele era alto e tinha um corpo bacana, o cabelo

castanho-claro cheio de produtos e olhos azuis apertados. Ela também. Por

um segundo, Allie pensou se eles seriam parentes. Talvez gêmeos fraternos

separados no nascimento. Mas a atração que ambos sentiram foi forte

demais para alguma coisa tão bizarra.

— Espera! — ele gritou, passando com empurrões por mães e

crianças, dois degraus de cada vez, enquanto subia correndo a escada que

descia.

Eles se encontraram no alto.

— Meu nome é Fletcher — ele disse ofegante, estendendo a mão.

Allie pôs as suas sacolas no chão na mesma hora e enfiou as mãos

no bolso de canguru da sua túnica de veludo. Dentro do bolso, ela bombeou



22

álcool gel nas palmas das mãos e esfregou uma na outra. Não porque

achasse que ele parecia contagioso — na verdade, ele parecia mais higiênico

do que qualquer menino que ela já tinha visto — , mas porque ele tinha

segurado o corrimão de borracha por no mínimo vinte segundos, e isso era

tempo mais do que suficiente para um vírus se impregnar nos seus dedos.

— Quer? — Allie estendeu a garrafa transparente.

— Não, obrigado. — Ele sorriu com o rosto todo. — Eu tenho lenços

umedecidos. — Ele puxou um pacote quadrado do bolso de trás, rasgou

com seus dentes brilhantes, abriu, arrancou um e esfregou nas mãos. Num

rasante, o paninho usado acertou em cheio a lata de lixo, e uma flecha do

Cupido, o coração de Allie.A partir dali eles viraram inseparáveis e rapidamente ficaram

conhecidos pela combinação de suas perfeições físicas e pelos seus

sistemas imunológicos fortes. Todo mundo brincava que, quando eles

casassem, seus filhos seriam estudados para melhorar o genoma humano.

Allie também dizia isso, só que ela falava sério.

E a melhor parte era que sua MAPS (Melhor Amiga Para Sempre),

Trina, que não tinha namorado e era muito menos atraente do que eles,

nunca teve ciúmes nem nunca pediu que Allie escolhesse entre os dois. Na

verdade, ela parecia tão inspirada pela beleza deles quanto todos os outros.

Sempre querendo estar com eles e herdar os subprodutos daquele amor.

Mas o que faltava a Trina em beleza sobrava em talento artístico. Ela até se

ofereceu para seguir o casal até a Disneylândia no aniversário de onze

meses de namoro e fazer desenhos em carvão dos momentos pitorescos do

dia encantado deles.

— Há! — Uma risada amarga escapuliu pelos lábios cobertos de

manteiga de cacau da Burt’s Bees, bálsamo natural que infelizmente era o

favorito de Allie J.

— Tudo certo aí atrás? — a voz perguntou da cabine do piloto.

Hummm — Allie teve vontade de gritar — se por certo você quer dizer

estar desesperada de vontade de dar um chute com o meu pé sem esmalte

nem pedicure na bunda da minha ex-amiga, então, sim, está tudo certo . Mas



23

isso ia estragar o seu disfarce mais rápido do que uma amostra de DNA.

Assim, ela simplesmente se conformou e deu um sorriso forçado, para o

caso de a voz onisciente poder vê-la por trás da parede de alumínio.

— Que bom — a voz respondeu, satisfeita.

Mas não estava. Nada estava bom. Não, desde que o trio tinha

embarcado no submarino azul e amarelo no brinquedo do Procurando

Nemo . Não, desde que tudo ficou escuro quando eles foram “engolidos por

uma baleia”. Não, desde que as luzes voltaram a se acender e o pescoço do

Fletcher estava coberto de impressões digitais em carvão. E os lábios de

Trina cheiravam a jojoba e eucalipto. E os dois pareciam mais capturados

do que Nemo.Allie fechou seu espelho de bolsa sem um clique. Ela não conseguia

entender. Com lábios carnudos, olhos apertados azul-marinho, uma pele

que parecia ser iluminada de dentro pra fora e um nariz tão perfeito que

uma menina a duas cidades de distância tinha pedido um igual de

aniversário de quinze anos, a beleza era o seu passe vip. Fazia com que ela

conseguisse tudo o que queria. Então por que não tinha sido suficiente

para segurar o Fletcher? Ou melhor, como ela tinha perdido ele para uma

menina que, de 0 a 10, era um mero 6,5 depois do Photoshop?

Um dia, depois da escola, ela perguntou pra ele.

— Alliegata, você é uma belezinha, não há dúvida. — Fletch se

inclinou pra trás, como se houvesse uma parede atrás dele, apesar de

estarem no meio da quadra de basquete, no meio do treino. — Mas o

talento de Trina me atrai mais do que uma perfeição nota 10. — Ele pegou

a bola e foi driblando até o fundo da quadra. Allie o seguiu, apesar da raiva

do técnico e das suas ameaças de chamar a polícia. Fletcher arremessou e

converteu. O resto do time se cumprimentou com high fives . Na

arquibancada vazia, Trina fazia um esboço do momento. Allie começou a

chorar.

— Desculpa. — Fletcher enxugou a testa suada com a parte de baixo

da camisa. — Mas beleza não é o que importa pra mim.



24

— Desde quando? — Allie resmungou, observando a franja preta de

bruxa, os olhos castanhos assimétricos e o nariz achatado de Trina, com

um sentimento que beirava a inveja. Talvez se ela tivesse nascido feia,

tivesse precisado desenvolver um talento também. Mas não tinha. E não era

sua culpa! E no entanto ela estava ali, pagando o pato.

— Desde sempre — Fletcher insistiu, claramente mentindo. Porque

pelos últimos onze meses ele não tinha tido nenhum problema em postar

fotos dela no álbum dele do Facebook. — Eu quero inspiração. E ela me dá

isso.

— Tipo, seeeério? Como? Fazendo desenhos de você com cinzas de

churrasco? — Allie sentiu no ombro o aperto da mão carnuda do técnico. — Os rabiscos dela são só mais uma maneira de você se autoadmirar. São,

tipo, espelhos, ou fotos. — As mãos carnudas apertaram ainda mais e

começaram a empurrá-la em direção à saída. — Ai! — Allie gritou durante

todo o caminho até a porta dupla.

Chegando lá fora, ela esterilizou o ombro com álcool gel até que ouviu

onze garotos e uma menina aplaudindo. Soavam como mil tapinhas na sua

cara.

A notícia do escândalo logo se espalhou, e a da batalha na quadra se

espalhou mais rápido ainda. Só lhe restava uma coisa a fazer.

Esconder-se.

Allie se retirou para o seu quarto com a intenção de nunca mais sair

de lá. Ela tinha perdido o namorado e a melhor amiga em apenas uma

tarde, e a solidão e a traição doíam mais do que depilar o buço. Sua mãe

frequentemente entrava no quarto trazendo suas comidas favoritas da

praça de alimentação. Mas o buraco no estômago dela era profundo demais

pra ser preenchido com asinhas de frango crocantes e pasteizinhos

japoneses.

Isso até dois dias depois, quando o cup noodles chegou junto com um

pacote dourado, pesado. Allie sentou na cama e pediu, por favor, que a mãe

fechasse a porta ao sair.



25

Já estava na hora! — Ela refletia, choramingando e rasgando o papel.

Ficou pensando se Fletcher iria só pedir desculpas ou se iria rastejar

mesmo, e que tipo de presente ele estava mandando para reparar as coisas.

Um dispositivo móvel dourado caiu no edredom que cobria o seu colo, junto

com uma carta. Parecia um iPod mergulhado em glitter. — Hã?

Querida Allie J,

Bem-vinda à aula inaugural da Academia Alfa...

Allie jogou à carta no chão e bateu no seu travesseiro de Sininho.

Parecia que Allie J estava voando alto enquanto a simples Allie estava porbaixo.

Allie vinha recebendo cartas de fãs dela por anos. A compositora

tinha crescido na Comunidade Hippie de Applemay, a apenas cinco milhas

de Santa Ana. Mas desde que ela tinha partido pra Antártica numa missão

para salvar as calotas polares, as cartas estavam chegando com mais

frequência. Allie podia ter notificado o correio, mas isso teria envolvido

formulários e conversas com funcionários. Duas coisas que eram chatas e

provavelmente cheias de bactérias. Além do mais, havia músicas da Allie J

nas trilhas sonoras de três filmes adolescentes do verão e, segundo uma

fofoca do Page Six 8 , um certo trio de irmãos da Disney estava brigando por

mais do que o seu corpo de trabalho. E imagina o que um deles podia

mandar? Ele mesmo?

Allie baixou a cabeça, sucumbindo a mais uma geração de lágrimas.

O selo dourado brilhou na luz através da sua visão borrada e piscou pra ela

do chão. Como se eles compartilhassem uma piada. Ou um segredo. Ou a

necessidade de escapar.

Allie correu pro laptop e escreveu Allie J no Google Image. Só três

fotos apareceram:

1. Um olho verde atrás de uma confusão de cabelo preto.

8 Coluna de fofocas do jornal New York Post (N.E.).



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2. Seu corpo magro fotografado por trás. Ela estava no palco, de

frente para o público, no famoso Nuyorican Poets Cafe e Nova York, usando

um vestido branco e com os pés descalços.

3. Uma foto granulada, tirada com câmera de celular, de seu rosto

com o que parecia ser uma pinta enorme.

E só.

Era perfeito.

Allie correu para o shopping pela primeira vez em dias.

Horas depois, ela tinha cabelo preto, lentes de contato verdes, e uma

pinta feita com lápis de olho na bochecha esquerda. Ela disse pros pais que

o novo look era parte de um plano de recuperação do coração partido. Asegunda parte era se inscrever na Academia Alfa. Eles não conseguiam

entender muito bem o papel da pinta na história, nem como “posar para

catálogos e um vasto conhecimento da cultura de shopping ” fossem talentos

que Shira Brazille valorizasse, mas, de qualquer maneira, embarcaram.

Claro que a Academia era direcionada para artistas, escritores e inventores,

mas Allie tinha seus próprios dons. Ela se lembrava de frases de todas as

comédias românticas que tinha visto, com tanta precisão quanto

um nerd apaixonado por ficção científica conseguia decorar falas de Star

Wars . Ela aplicava maquiagem como uma pintora. Era uma perfeita

historiadora de celebridades: sabia altura, peso, histórico romântico e

preferência de moda de todas as grandes estrelas. E pelo menos ela estava

comendo pasteizinhos japoneses de novo.

Dias depois, Allie saiu balançando sua carta de admissão por aí

(depois de cobrir o J com dourado) e disse adeus para os seus pais

incentivadores.

E ali estava ela, uma borboleta de olhos verdes voando na direção de

um recomeço na missão supersecreta de “Esquecer Aquele Garoto”.

— Faltam sessenta segundos para entrarmos na zona de

comunicação proibida. Não é permitido mandar mensagens, nem telefonar,

nem usar a Internet — anunciou a voz britânica.



27

— Por quanto tempo? — Allie perguntou para o autofalante sobre sua

cabeça.

— Até você voltar.

— Tipo, seeeério?”

— Cinquenta segundos.

O quê? — Allie sentiu o estômago revirar como a máquina de suco do

supermercado. Se Fletcher e Trina não pudessem ficar sabendo o quanto a

vida dela estava incrível sem eles, pra que servia tudo aquilo? Ela sacou o

seu Samsung e começou a digitar.

Estou num avião particular em direção à Academia Alfa. Esta é a

última vez que vocês vão ter notícias minhas. Parece que, no fim das contas,eu tenho talento.

Allie releu. Será que a mensagem dava a entender “estou muito bem

sem você” ? “Parti pra outra” ? “Eu tenho mais talento do que Trina” ?

— Vinte segundos. — Uma contagem regressiva apareceu onde

estava a cara do Leo DiCaprio. Tinha cheiro de solidão.

O dedo de Allie flutuava sobre o botão de send . Estava faltando

alguma coisa no texto, uma coisa que fizesse doer como mil tapinhas na

cara. Uma coisa que...

— Nove segundos.

— Já sei! — Allie deu um meio sorriso, preocupada em não borrar

sua pinta, e depois acrescentou mais umas frases finais.

Neste mundo existem artistas e musas. Sabe, as pessoas que vale a

pena desenhar? Bom, eu sou uma delas. Sempre serei. Capture minha

essência, se puder. — Allie.

Ela apertou o send e derrubou o obsoleto telefone no colo do seu

vestido branco de brechó — Emily Dickinson vestia alguma coisa branca

todos os dias, então Allie J também. Mas mesmo depois de lavar a seco o

vestido nove vezes e borrifar propositalmente Clinique Happy nele, Allie

ainda sentia cheiro de gente morta.

— Estamos agora na área de comunicação proibida — anunciou a

voz — e estamos iniciando nossa aterrissagem na Ilha Alfa, onde a



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temperatura no solo se encontra em perfeitos vinte e dois graus. — Ela riu

em silêncio, com um leve ar malicioso. — Por enquanto.

Allie estendeu o pescoço para fora das minijanelas do avião para ver

a vista do Deserto de Mojave lá embaixo. Cactos preenchiam as lacunas

entre as extensões de terra vermelha. Formações de pedras monstruosas de

argila rubra empilhadas uma em cima da outra tentavam alcançar o céu,

como se elas, também, quisessem uma carona para a Ilha Alfa. Allie piscou

três vezes quando o deserto deu lugar a um oásis de azul. Era como se

alguém tivesse pego uma forma de biscoito no formato @ e esculpido uma

ilha. Allie avistou construções brancas embaixo de uma cobertura de

palmeiras, sem dúvida plantadas para proteger do calor do Mojave edos paparazzi intrometidos.

Sem nenhum aviso, o avião deu um mergulho, junto com o estômago

de Allie, quando ela considerou a situação em que se meteu. Enfiou um

fone em cada ouvido e se concentrou na letra do último hit de Allie J,

“Aquecimento Global do Coração”, para entrar no personagem.

Reduza, reutilize e recicle meu coração

E o devolva para mim

Porque eu quero começar do zero

Agora que estou legal

Você está de joelhos

Me implorando por favor

Para ser sua namorada oficial

Você está entrando em pânico

Me chamando de satânica

Mas eu prefiro comida orgânica

E pegar leve com a proteína

Reduza, reutilize e recicle o meu coração

Ele está pronto pra recomeçar do zero



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Ela nunca tinha gostado muito das músicas de Allie J — eram

muito hippie e com mensagenzinhas demais para o gosto dela, que era mais

animado. Mas a letra dessa era certeira. Ela batucou com as suas unhas

recém-cortadas e continuou decorando a letra, que podia ter sido escrita

para ela — ou, melhor ainda, por ela. Depois, retocou a pinta e aumentou o

volume.

O jato começou a baixar voo. Era a hora do show .



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3ACADEMIA ALFA

PISTA DE POUSO

DOMINGO, 5 DE SETEMBRO11:43

— A temperatura acabou de aumentar de vinte e dois para mil graus!

— Charlie Deery afrouxou a gravata metálica e começou a abanar as

bochechas vermelhas.

— Olha a hipérbole, Chah-lie — Bee Deery, com um sotaque

britânico perfeito, corrigiu sua filha nascida em Jersey, como se exagero

fosse um traço estritamente americano. Bee foi rapidamente na direção do

tecido prateado que pendia em volta do pescoço da filha e refez o laço. Nem

mesmo o cheiro familiar do hidratante de rosas, a única constante na vida

de Charlie, podia acalmá-la hoje.

— Hiper-saco-cheio! Me deixa em paz! — Charlie deu um tapa na

mão da mãe, que estava lhe chateando, e instantaneamente se arrependeu.

Machucar Bee era como bater no Bambi , só que pior. — Desculpa. — Ela

evitou os olhos castanhos gentis da mãe. — Mas eu não estou conseguindo

respirar.

Bee examinou a área rapidamente e depois refez o laço com uma

certeza definitiva.



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— Hoje não é dia para desrespeitar o uniforme. Não no primeiro dia.

Shira já tem problemas suficientes.

— E eu? — Charlie bateu o pé como uma criança, sempre frustrada

pelos esforços da mãe para agradar a chefe a qualquer custo, mesmo

custando a asfixia familiar. — Eu nem estudo lá. Quem se importa se eu

estou usando essa porcaria dessa gravata?

— É por respeito — Bee falou com firmeza, alisando o penteado

firmemente enrolado da filha. Será que ele estava preso pelo spray de

cabelo ou pelo poder do pensamento positivo dela?

Com um suspiro de resignação, Bee mirou seu aPod para o uniforme

de Charlie; um colete prateado, gravata combinando, minissaia de pregasnuma cor de estanho brilhante, blusa champanhe com mangas

bufantes oversize , e sandálias gladiador na altura do joelho, transparentes,

com palmilhas massageadoras e tecnologia para não deixar marcas de sol.

— Aqui. — Ela apertou um botão. Os cristais microscópicos na

camisa de Charlie ficaram gelados. — Melhor?

— Bem melhor — Charlie agradeceu com um sorriso.

Então, cem plataformas se desenrolaram do prédio que tinha o

formato trançado da bala Twizzler atrás delas, com o zumbido de um

carrinho de golfe. Uma pra cada Avião Particular Alfa — ou APA, como

Charlie brincava em segredo — estacionar depois de pousar.

Charlie levantou os olhos castanhos e procurou por todo o céu

saturado de sol. Pontinhos de luz piscaram ao longe como winks cor de

cobre. Eles estavam se aproximando.

Na pista, a equipe de terra de Shira corria vestindo macacões de

couro envernizado branco. As assistentes de número 2 a 5 estavam pra lá e

pra cá na passarela, segurando pranchetas eletrônicas que as atualizavam

sobre o progresso das alfas chegadas. A assistente no 1 de Shira, a mãe de

Charlie, vestia um conjunto de saia e jaqueta no mesmo tecido dos

macacões.

De repente, Bee se virou, com a orelha na direção do ombro.



32

— Positivo — informou pelo dispositivo bluetooth , que tinha sido

remodelado pra parecer um brinco de diamante. Charlie sabia, por tristes

motivos, que a mãe nunca desligava aquilo, nem mesmo pra fazer número

dois no banheiro. Ela adoraria que aquela lealdade fosse por causa do

orgulho (Charlie é quem tinha inventado o moderno dispositivo), mas não

caía nessa. Ser a principal assistente de Shira não era um emprego, era um

estilo de vida. Só que sem a vida. E estar fora de cobertura não era uma

opção.

— Estamos em posição. — Bee endireitou-se, ainda cobrindo o

ouvido com a mão. — Sim. Estamos na plataforma de boas-vindas em cima

da pista virados na direção sul.Os olhos doces de Bee miraram na bainha da saia de Charlie — um

protótipo que seria doado para o Instituto Smithsoniano assim que as alfas

de verdade chegassem e Charlie fosse embora para o internato em

Hoboken. O que aconteceria em exatos noventa minutos. Aquela realidade

devastadora fazia o estômago de Charlie dar cambalhotas. Ou seria o seu

coração?

— Ugh! — Ela se sacudiu, como se estivesse tentando escapar da

própria pele.

— Fica parada — pediu sua mãe, arrancando um fio errante da

minissaia plissada de estanho.

Mas Charlie não conseguia ficar quieta. O tempo estava se

esgotando. Em oitenta e oito minutos ela não estaria apenas deixando sua

mãe, ou a ilha que secretamente ajudou a projetar — estaria deixando ele.

Um calor opressivo veio de repente como um cheiro ruim trazido pelo

vento. Uma massa cinzenta de nuvens se formou, e gotas mornas, na

temperatura de lágrimas, começaram a cair. Como não se importava mais

com coisa nenhuma, Charlie nem se deu ao trabalho de cobrir o precioso

uniforme. Em vez disso, ela tirou o protótipo do aPod do bolso e checou

suas mensagens. Havia três bolhas douradas em forma de coração, todas

de Darwin, todas perguntando quando poderia vê-la.



33

Pelos últimos dez meses, enquanto Bee supervisionava a construção

da Ilha Alfa, Charlie brincava de Lagoa Azul com seu namorado de catorze

anos, Darwin Brazille, filho de Shira. Ela andava com todos os cinco irmãos

Brazille, mas amou Darwin desde que eles cochilaram juntos pela primeira

vez, há doze anos, no berçário do avião particular de Shira. Darwin, por

outro lado, alegava que a amava desde antes de se conhecerem. E Charlie

acreditava nele. Ele nunca havia dado motivo para o contrário.

Shira conheceu Bee em um dos seus primeiros Workshops de

Empoderamento Feminino, quando Charlie e Darwin eram bebês. Desde

então, eles tinham viajado juntos pelo mundo inteiro, sendo educados pela

experiência de vida e por um tutor que era obrigado legalmente a secertificar de que a educação deles estava dentro dos padrões convencionais.

Quando Charlie fez doze anos, o tutor pediu demissão. Ela e Darwin tinham

passado com sucesso pelas provas do ensino médio tradicional e tinham

recebido o sinal verde para relaxar e aproveitar a viagem. Uma viagem que,

graças às suas mães trabalhadoras, os levava aos lugares mais exóticos do

planeta onde podiam explorar o mundo sozinhos. Uma viagem que tinha

enchido suas câmeras digitais com mais imagens românticas do que uma

temporada de The Bachelor . Uma viagem que, graças a Shira, estava

prestes a terminar num acidente trágico.

No resto do mundo, Shira Brazille era querida e admirada. Seu

império, um exemplo de criatividade, altruísmo, glamour e controle. Ela

havia começado sua carreira como continuísta em programas de TV

australianos, e foi evoluindo até chegar a produtora. Aí descobriu que

gostava de criar mundos e controlá-los, não apenas na tela — queria fazer

aquilo na vida real. E assim transformou “salvar o mundo” em um negócio,

na sua mais nova produção/reality show . Shira era uma pop

star internacional, a rainha do baile e uma mãe coruja, tudo isso em uma

só. De que outra maneira os americanos confiariam nela para cuidar e

educar suas filhas mais talentosas, longe de casa e da família?

Mas Charlie não caía nessa.



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— Ela está fazendo de propósito. — Charlie limpou o cantinho do

olho com a sua manga cor de champanhe, sentindo uma dor pulsando por

todo o corpo, como se estivesse gripada.

— Eu realmente duvido que ela tenha construído tudo isso só para

separar você e Darwin. — Bee apontou para a arquitetura de ponta, as

palmeiras, os cactos e a praia na frente delas. Charlie encarou as árvores

como se elas também fosse coconspiradoras na trama armada para destruir

a vida dela.

— Então por que é que estão me mandando para um internato no

leste do país enquanto Darwin fica aqui, com um monte de meninas alfa?

Bee suspirou como se estivesse cansada de dizer o que ia dizer umaúltima vez.

— Cada menina na academia foi selecionada a dedo por Shira por

causa de suas habilidades extraordinárias. E depois de pensar muito, ela

achou que não seria justo admitir você com base em conexões familiares.

Não seria justo com elas e não seria justo com você.

Charlie cerrou os punhos, com vontade de socar aquela fofura

do Bambi .

— Além do mais, você acha mesmo que uns poucos meses longe vão

apagar doze anos? — Bee levantou suas sobrancelhas arqueadas e

balançou a cabeça, incrédula. — Desde quando você é insegura com

Darwin?

— Eu não sou insegura com Darwin — Charlie insistiu. — Eu sou

insegura comigo mesma.

Apesar do seu cérebro desenvolvido e dos seus cabelos na cintura,

Charlie sempre se viu como mediana. Cabelo castanho médio. Com uma

textura média entre ondas e cachos. Olhos castanhos de tamanho médio. E

médio atraente — mais pra Jennifer Aniston do que pra Angelina Jolie.

— Nós, as mulheres da família Deery, temos uma beleza silenciosa,

que chega sorrateiramente nas pessoas. Pelo menos era isso o que o seu pai

costumava dizer. — Bee sorriu com carinho com essa recordação.

Charlie entrelaçou as três pulseiras no seu pulso.



35

— Mãe, os meninos não querem uma beleza que fique à espreita.

Elas querem uma beleza que chegue e dê um tapa na cara deles. E é isso o

que vai aterrissar aqui daqui a pouco. Cem dessas.

A chuva parou de repente. Bee deu uma olhada para o céu. Os beijos

cor de cobre estavam ficando maiores.

— Você tem mais talento do que cada uma dessas meninas, e Darwin

sabe disso.

— É, mas Shira não sabe — Charlie censurou. — Ela não faz ideia de

que eu desmontei o cachorro-robô dela e o reprogramei pra ele se

comportar como um gato. Ou que eu costumava tirar os motores dos

carrinhos elétricos do Darwin e colocar nas minhas bonecas Bratz pra elasfazerem tranças nos cabelos umas das outras. Ela não sabe que você deu

minhas plantas para o laboratório da Academia Alfa e que parte deste lugar

foi projetada por mim. Talvez, se ela soubesse, ela me deixaria ficar aqui

com você e com Darwin.

— Fala baixo — Bee repreendeu com um sussurro.

Mas Charlie não conseguia. Ela tinha falado baixo por tempo demais.

— Não é justo, mãe. Esta escola é para inventores, também. —

Charlie tirou uma borboleta eletrônica da sua pochette de pulso e abriu a

mão devagarzinho.

Bee não conseguiu parar de sorrir para a última criação da filha. Na

palma da mão de Charlie, uma criaturazinha fofa iridescente batia suas

asas em forma de coração.

— O que é que ela faz?

Charlie baixou a cabeça, pensando no seu primeiro beijo com Darwin

no Jardim Botânico de Borboletas da Costa Rica. Ela encostou os lábios

nas asinhas. E de repente, a borboleta alçou voo.

— Ah, é linda. — Bee bateu palmas até ela pousar e depois deu um

sorriso triste. — A sua hora vai chegar, Charlie. Um dia. Agora apenas tente

lembrar que Shira nos deu tudo.

— Não, ela nos deu tudo o que ela não quer.



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Os dedos de Charlie imediatamente se dirigiram às três pulseiras

prateadas no seu pulso. Tanto ela quanto Darwin tinham PFs (Pais

Falecidos) que tinham morrido em acidentes de carro quando eles eram

bebês. O pai dele tinha deixado um quarto cheio de discos de vinil para ele,

o que explicava sua paixão por música. E o dela tinha lhe deixado aquelas

pulseiras, tesouros que ele tinha herdado da mãe. Cada pulseira tinha um

camafeu que abria; um tinha uma foto da sua mãe, um a foto do seu pai e

um a foto de Darwin. Aquilo era a única coisa não manchada por Shira que

ela possuía. Todas as outras tinham sido de Shira, ou compradas por

Shira, ou compradas para Shira e nunca devolvidas.

De repente, o céu lá em cima escureceu e mais nuvens detempestade surgiram. Um trovão rugiu ao longe. A temperatura caiu seis

graus em um instante. A Ilha Alfa tinha sido construída em uma biosfera

própria, o que permitia a Shira o controle de todos os aspectos do ambiente

— inclusive o clima. Sensores em sua roupa o alteravam automaticamente

para manter a temperatura ideal para o corpo dela. Assim, quando ela

estava calma, o céu ficava limpo. E quando sua temperatura corporal

aumentava de raiva, nuvens e chuva vinham na sequência.

Uma plataforma transparente, idêntica àquela em que elas estavam,

se elevou do chão. Shira segurava o corrimão como se estivesse na proa de

um navio, olhando para o horizonte, até a plataforma travar no devido

lugar. Ela se virou na direção de Bee e Charlie; seu cabelo ruivo ondulado

esvoaçava como se soprado por uma máquina de vento, enquanto seu

vestido preto de ombros de fora ficava perfeitamente no lugar. Como

sempre, óculos escuros de aros pretos redondos escondiam os seus olhos.

— Inacreditável! — O sotaque australiano de Shira estava fresquinho,

mesmo ela estando fora daquele continente havia quase duas décadas.

Um rugido de trovão assustou todo mundo, menos Shira.

— O que foi? — Bee perguntou suavemente, com uma preo-cupação

de obediência.

— Tivemos uma desistência de última hora. Bee, você acredita que a

nossa atriz caiu fora? Ela nunca teria conseguido aquele papel se eles não



37

tivessem ficado sabendo que eu a tinha escolhido. — Shira empurrou os

óculos pra cima do nariz. — Um papel no novo filme do George Clooney,

rodado na Romênia. Ninguém diz não para Clooney. Bom, a não ser eu. E

ninguém diz não para mim.

Uma série de piadas prontas atravessaram a mente de Charlie, mas

ela continuou quieta. Shira era o equivalente humano da laringite. Charlie

bem queria dar uma alfinetada, mas o emprego da sua mãe dependia do

seu silêncio.

— Bee, por favor, fale para Clooney o quanto eu fiquei chateada. —

Shira choramingou. — E que ele vai ter de me recompensar — acrescentou.

Bee virou de costas e começou a discar.Os dedos de Charlie começaram a formigar. Isso sempre acontecia

quando ela pensava numa nova invenção. Era o seu corpo lhe impelindo a

começar a construir. Só que desta vez, sua língua formigou também,

forçando-a a falar.

— Então isso quer dizer que vocês têm uma vaga? — perguntou

rapidamente, antes que a mãe dela pudesse desligar o telefone.

Shira assentiu vagarosamente.

— O que é que você está fazendo? — Bee desligou o telefone e

encarou a filha.

— Ela está tentando me convencer a admiti-la. Outra vez. — Shira

olhou seu reflexo no esmalte prata espelhado das suas unhas. — Mas nós

sabemos que isso é impossível.

— Por quê? — Charlie falou sem pensar. — Porque você quer me

separar do Darwin? Porque você acha que eu não sou boa o suficiente...

— Charlie! — Bee censurou.

— Bom, eu questiono os seus motivos para querer frequentar a

Academia. — Shira espanou uma partícula de glitter do seu braço pálido. —

Eu não a construí para as meninas tirarem diplomas em P-A-Q-U-E-R-A.

Charlie apertou os seus olhos castanhos. Ela estava prestes a ser

exilada da Ilha Alfa — afinal, o que tinha a perder?



38

— Eu não quero ir para a Academia por causa do Darwin — somente ,

acrescentou em silêncio. — Eu quero ir por mim — E por ele. Por nós!

Shira virou-se de frente para ela.

— Esta questão é discutível, docinho — ela falou com uma tristeza

fingida. — O comitê de admissões tem regras rígidas sobre nepotismo que

dizem que ninguém com algum parentesco com um funcionário pode entrar

para a Academia.

— Mas você é o comitê!

— Chega, Charlotte! — Bee falou com firmeza. Ela virou-se para

Shira, e sua cara feia se dissolveu como suco em pó na água. — Clooney

mandou pedir desculpas. Você precisa de mais alguma coisa, ou eu possoliberar os aviões e preparar a equipe de terra para a chegada?

Shira bateu as unhas no corrimão da plataforma e o céu se abriu

instantaneamente.

— A não ser que...

A frase pairou no ar. Bee arregalou os olhos com a expectativa.

Charlie segurou a respiração.

— A não ser que... — Shira virou-se para sua assistente de muito

tempo — você peça demissão. E aí Charlie não seria parente de ninguém. —

Ela abriu um sorriso largo.

— O quê? — Charlie cruzou os olhos com os da mãe e um rio de

sentimentos passou silenciosamente entre elas. As pálpebras trêmulas de

Bee pareciam querer perguntar se era isso o que Charlie queria. Se a filha

ficaria bem sem ela. Se isso a faria feliz.

Charlie sentiu como se o seu cérebro e o seu coração fossem

explodir. Sua mãe estava num jogo unilateral de verdade ou desafio com

Shira, onde Shira inventava desafios inatingíveis para Bee e Bee tinha

acordos de confidencialidade que não deixavam que ela falasse a verdade

nem pagasse para ver.

Até agora.

— Muito bem. — Bee alongou-se até o alto dos seus um metro e

sessenta. — Eu me demito.



39

— Você está brincando? Mãe, você não pode fazer isso! — Charlie

falou sem pensar. Desde que seu pai tinha morrido, Bee vinha trabalhando

em todos os aniversários, feriados, fins de semana — o trabalho fazia parte

da mãe de Charlie tanto quanto chá da tarde. E por mais que Charlie

detestasse Shira, não tinha certeza se Bee iria conseguir viver sem ela.

— Está tudo bem. — Bee estendeu a mão para a filha. Seus lábios

estavam na posição de essa discussão acabou . Seus olhos castanhos

brilharam de orgulho. — Chegou a sua hora, Charlie. E eu estava

precisando visitar o papai e a mamãe em Manchester faz doze anos. Você

não acha que eu estou atrasada?

— Você tem certeza disso, Bee? — Shira perguntou.Bee assentiu.

— Muito bem — Shira assentiu de volta.

Tinham um trato.

Uma expressão que Charlie nunca tinha visto antes atravessou o

rosto de Shira. Os cantos da sua boca levantaram. Suas sobrancelhas

relaxaram por trás dos óculos. Será que aquilo era respeito ou ela estava

soltando gases?

Bee puxou a filha para perto e cochichou no seu ouvido.

— Tudo o que eu fiz foi por você. Você tem um dom. Está na hora de

compartilhá-lo.

— Mas mãe, eu não posso... — Charlie cochichou de volta sem

conseguir processar direito tudo o que tinha acabado de acontecer. Em

alguns minutos, o rumo da vida inteira da sua mãe tinha mudado. E por

quê? Por um garoto?

— Temos um acordo? — Shira estendeu a mão.

Bee deu uma cotovelada no quadril da filha. Charlie se rendeu e

ofereceu sua mão direita.

— Não. — Shira espantou a mão para longe. — A outra.

— Hã? — Charlie estendeu a esquerda lentamente.

Shira foi até a beira da plataforma, se inclinou para a frente e tirou

uma pulseira do braço de Charlie. Em um único movimento, ela abriu o



40

camafeu e retirou a foto redonda do seu filho. Contente, devolveu a

pulseira.

Como você sabia da foto? Como você sabia em que pulseira ela

estava? Como você pode simplesmente tomar isso de mim? — Charlie queria

gritar. Mas não pôde. Seu estômago estava preso na sua garganta.

O céu zuniu. Uma frota de APAs dourados circulava lá no alto,

esperando o OK para aterrissar. Shira fez um aceno de cabeça para Bee.

Bee sinalizou para a equipe trazer os aviões. Era a sua última missão para

a Brazille Enterprises.

— Enquanto você estiver aqui, o seu foco serão os estudos — Shira

afirmou, enquanto assistia às suas protegidas descerem para a pista depouso até a plataforma parar. — Darwin é zona proibida. Quando você

terminar com ele, deixe essa conversa fora disso. Uma verdadeira alfa faz

sacrifícios em nome dos seus objetivos. E ele vai ser o seu primeiro

sacrifício. — Ela fechou a mão em volta da foto e a amassou. — Entendido?

Charlie engasgou. Acabar o namoro com Darwin? Ela respirou fundo,

tentando se acalmar por meio da respiração. Como ela conseguiu perder a

mãe e Darwin, os dois, em dez minutos? Mas de qualquer maneira, qual era

a outra alternativa? O internato em Nova Jersey? Um relacionamento a

distância com as duas pessoas mais importantes da sua vida? Pelo menos

agora ela podia ver uma delas. E talvez com o tempo, se ela conseguisse

notas boas, Shira ia ver que Charlie era boa o suficiente para o filho. E sua

mãe podia conseguir o emprego de volta e...

— Entendido? — Shira pressionou.

— Entendido — Charlie conseguiu falar.

Os lábios de Shira se curvaram para dentro, encostando nos dentes.

Para uma pessoa destreinada, aquilo podia parecer um sorriso. Mas Charlie

sabia. Era a expressão de um predador se preparando pra devorar sua

presa.

— Bem-vinda à Academia Alfa.



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4 ACADEMIA ALFA

TREM BOLHA


12:18

Skye desceu saltitando a escada do avião, diminuindo o seu sorriso

de radiante para contido, pra não cegar ninguém com a sua empolgação. A

sua saia de dança de tricô verde limão inflou, e ela enfiou as mãos nos

bolsos para empurrá-la pra baixo, em volta das suas pernas longas e

bronzeadas. Assim que suas sapatilhas entraram em contato com o tapete

dourado que atravessava a pista de pouso, a porta do avião particular

fechou atrás de si.

Uma torre de vidro erguia-se ao longe, e árvores verdes no formato de

lagartas balançavam com a brisa. Skye arrumou seu cabelo platinado e

ondulado para trás e piscou. Onde estava o comitê de boas-vindas? Ondeestava o seu adorado público? Onde estava todo mundo? Ela não estava

acostumada a ficar sozinha. Era uma política sua ter pessoas à sua volta o

tempo todo. O silêncio fez com que se sentisse um pouco perdida e um

pouco adulta, de uma vez só, como na primeira vez que viajou sozinha pra

visitar a avó na Flórida.

Pescando o seu aPod de dentro da bolsa, ela fixou os olhos no

horizonte, procurando algum sinal de vida.

— Siga o tapete dourado — uma voz australiana doce ressoou.



42

Lá, na tela retangular do seu aPod, estava o rosto de Shira

emoldurado por seu famoso cabelo ruivo ondulado. Caminhando pelo

tapete, que piscava como mil cristais Swarovski, Skye se sentiu como

Dorothy em Oz — só que ela não queria mesmo voltar pra casa.

O tapete a conduzia por uma floresta de cactos, e quando ela

emergiu do outro lado da cortina de pinheiros verdes, deparou-se com uma

praia de areia rosa e o que parecia serem quilômetros de água azul.

— Ahmeudeus! — ela exclamou, boquiaberta, percebendo o arco-íris

em alta definição na sua frente.

UAUUUUUUU!

Um trem transparente que parecia um enorme colar de pérolasdeslizava pela areia até parar na frente dela. Skye tentou espiar as outras

garotas, mas tudo o que viu foi a parte de trás dos cabelos escovados

enquanto elas subiam nos seus vagões particulares.

Era possível um corpo de alunos com mais alfas do que obsessivo-

compulsivas? E se fosse, que aparência teria? A da Vogue de setembro? Ela

estava engasgada com isso. Ou aquele gosto amargo de chocolate no fundo

da sua garganta eram os minicupcakes saindo sem permissão depois do

passeio no jatinho particular?

Uma vez lá dentro, Skye se acomodou numa cadeira Lucite em forma

de ovo. Havia outra, idêntica, na sua frente; só que estava vazia. Por um

momento Skye tentou imaginar quem ela queria que se juntasse a ela nessa

aventura de sonho, se pudesse escolher uma pessoa para preencher aquele

lugar. Repassou sua longa lista de amigos, namorados e colegas de dança.

Mas ninguém do passado parecia bom o bastante para o futuro. Nem

mesmo a sua mãe perfeita. Não quando o futuro era daquele jeito! Por que

usar as sapatilhas de dança do ano passado no recital do ano que vem?

Uma rodinha prateada perto da cadeira girava como uma roda-

gigante em miniatura, circulando uma seleção de minilanches — saquinhos

de chips de legumes, pequenos brownies e aquelas balas pequenas que as

crianças ganham no Dia das Bruxas — o tipo que Skye nunca tinha

passado da idade de gostar e as quais adorava o ano todo. Miniaturas



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faziam com que ela se sentisse muito importante, como se o mundo

estivesse na palma da sua mão.

Pegou uma bandeja de minixícaras cheias de água colorida — azul,

roxa, rosa e amarela — e deu um gole. Pareciam bastões de luz bebíveis e

tinham gosto de bala. E então ela voltou sua atenção para o mapa em

forma de @ que subitamente apareceu na sua frente.

Uma seta dourada que piscava ao lado das palavras “Skye Hamilton

está aqui ” percorria o círculo desde o começo até o a lá dentro. Skye lutava

contra a vontade de colar os seus lábios cheios de gloss na janela do trem

para conseguir ver melhor o oásis com cara de miragem que surgia no meio

do deserto empoeirado. A água transparente e as palmeiras passavamrapidamente. Ela estava em movimento!



44

— Bem-vinda à Academia Alfa, Skye. — Shira Brazille, usando um vestido

grego de um ombro só e óculos escuros redondos, apareceu de repente na

outra cadeira.

Skye tomou um susto e depois soltou um risinho nervoso.

— Ah, oi, Sra. Brazille. — Ela engasgou com o gosto amargo de chocolate

de novo. — É uma grande honra conhecê-la! — Estendendo a mão direita

como uma verdadeira profissional, Skye se inclinou para apertar a mão de

Shira, mas os seus dedos passaram direto através da magnata australiana

e ela caiu no chão.

— Você não pode interagir com esse holograma — um sotaque britânicosevero avisou.

Skye se endireitou, escondendo sua bochecha ruborizada atrás de uma

parede de cabelo louro.

Shira gargalhou.

— Nada é o que parece, não é? — Ela continuou rindo, como se essa fosse

uma piada interna que elas fizessem uma com a outra há anos.

Skye olhou pra janela, torcendo pra sua bochecha fazer a transição de

fúcsia para o seu brilho rosado normal.

— Meu campus é inspirado na Acrópole — o holograma de Shira explicou,

enquanto elas passavam voando por folhas de palmeiras que logo se

transformavam em flores de cerejeira, como se alguém tivesse clicado o

“substituir todas”. Segundos depois, as cerejeiras cor-de-rosa viravam

cactos floridos.

— O que é esse lugar? — Skye perguntou maravilhada. Ela tinha ido para

a Acrópole de verdade e tinha visto as ruínas com os seus pais, mas não

tinha nada de grego naquela arquitetura superfuturista que saltava à sua

volta como páginas de um livro pop-up . Em vez de estruturas de mármore

caindo aos pedaços, erguiam-se torres de vidro. A vista lhe lembrou seu

jeito de dançar, fluido e em evolução constante.



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— Observe o Pavilhão — Shira berrou, quando elas passaram por uma

estrutura alongada com asas brancas de aço saindo do centro como uma

fênix se erguendo.

— Ele tem brise soleil , guarda-sóis que abrem e fecham dependendo da

quantidade de luz do sol.

Como se seguindo uma deixa, as asas do edifício começaram a bater,

criando uma sombra com brisa.

— Ah-meu-deus... — Skye piscou com força, tentando tirar uma fotografia

mental para seus amigos e sua família em casa poderem ver. Não importava

a quantas turnês internacionais de dança sua mãe tivesse ido, ela com

certeza nunca tinha visto nada igual. — O Pavilhão é o lugar central onde as pessoas se reúnem. Aí dentro tem

uma praça de alimentação saudável, lojas, terraços, spa e um salão de

beleza. Você não vai precisar de dinheiro para comprar nada. Só de boas

notas, que aqui têm valor monetário e serão depositadas imediatamente na

sua conta pessoal. Você acessa através do seu aPod. Você pode comer por

uma semana com um A. Mas um F vai deixar você mais magra do que se

tivesse salmonela. É bem como a vida, querida. Se você falhar, passa fome.

Skye riu, contando com a hipótese de Shira estar brincando.

— Perceba que todas as estruturas aqui são curvas. — O holograma de

Shira apontou para o Centro Zen (uma construção gigante com a forma de

um Buda de pernas cruzadas), o Music Hall em forma de harpa, e o

zoológico em forma de arca, cheio de espécies em extinção. Não existem

ângulos na Academia Alfa, pelo menos não na arquitetura. — Shira jogou a

cabeça para trás e riu. Ela não tinha uma única obturação na boca.

O trem desviou para a área ultramoderna no estilo Times Square de

Tóquio, localizada ao norte do Pavilhão. A frase “Bem-vinda, Skye!” rolava

em cada um dos letreiros eletrônicos. Depois as letras se transformaram em

imagens diferentes dela dançando.

A performance de Skye no Juilliard, no verão passado, trechos do Corpo

Vivo, vídeos caseiros dela e a mãe fazendo um pas de deux . Um vídeo de

celular dela e as Pegadoras DSL dançando hip hop . Será que as garotas nas



46

outras bolhas estavam vendo isso, ou será que elas tinham os próprios

melhores momentos?

O holograma de Shira gesticulou para fora da janela na direção de uma

fazenda vertical, em que cada andar abrigava uma plantação diferente de

superfrutas, como açaí, e coisas básicas, como feijão-verde ou aqueles

adoráveis tomates cereja.

— Alfa é cem por cento verde. Painéis solares oferecem energia para a ilha

e todos os edifícios são inteligentes e autossuficientes em energia.

— Igual a você — Skye brincou. Mas o holograma não entendeu. Ao

contrário, ele a encarou com um olhar de me avisa quando terminar de

fazer esse stand-up amador para eu poder continuar . — Desculpa. — Skyemordeu seu lábio inferior.

Fileiras de cúpulas em forma de globo de neve vazios emergiram, quando

o trem bolha virou outra esquina. O trem se aproximou e Skye percebeu

que as casas não tinham números nem nomes de ruas para identificar as

residências, apenas os autógrafos em glitter das mulheres alfa que davam

nome a cada casa irradiavam dos vidros.

Skye bateu palmas. Onde mais Oprah, Hillary Clinton, Beyoncé, Madre

Teresa e Virginia Woolf seriam vizinhas?

— Bem-vinda à sua nova casa. — A imagem de Shira começou a

esvanecer. — Pode parecer meio tosca por fora, mas, acredite, é bem

diferente quando você entra lá.

As portas abriram com um pop , deixando Skye e um carregamento de

vento gelado na frente da casa chamada Jackie O. Ondas de calor

ameaçavam derretê-la como a um Yogoberry, mas a porta de vidro da sua

nova casa sentiu sua presença e se abriu.

Lá dentro, a casa era dividida em três andares, conectados por uma

escada de vidro móvel que corria pela parede circular. Skye percorreu tudo,

gritando de alegria a cada nova descoberta. A coleção de óculos original da

Jackie O guardada em uma caixa de vidro, a cozinha inteligente com

uma touch screen gigante cheia de opções de lanches, o home

theater completo, com palco e controle de iluminação cênica, o banheiro



47

com chuveiro de água Vichy, a sala de estudo com cadeiras de massagem,

o closet de uniformes com uma coleção de peças em cores metálicas, a

piscina de raia!

— Oi? — Skye chamou, torcendo para poder dividir o entusiasmo com

uma pessoa de verdade.

Em seguida, ela subiu para o quarto no andar de cima por uma escada de

vidro aparentemente flutuante, ancorada por um vidro transparente. O

espaço era aberto como um loft , e uma claraboia gigante enchia o quarto de

luz. Cinco camas com dossel estavam dispostas em “u”, cada uma coberta

com um edredom branco fofo.

— Ufa — murmurou, aliviada. Cinco camas queriam dizer cinco meninas.Ela não ficaria sozinha para sempre.

— A vida é uma aventura ousada ou então não é nada — disse uma

inspiradora voz feminina.

— Oi? — Seu coração pulsava, os olhos de Skye varreram o quarto. —

Quem falou isso?

— Helen Keller — disse a voz. — Eu a estava citando. — Uma mulher

extremamente alta, com uma túnica amarelo-claro apareceu na frente dela.

Seu rosto era surpreendentemente delicado, com traços suaves

emoldurados por um cabelo louro longo e ondulado. Ela parecia ter sido

esculpida em manteiga.

— Hum, oi? — Skye estendeu sua mão em um cumprimento, não porque

ela fosse tão formal, mas porque precisava saber se a sua mão atravessaria

a mulher.

Não atravessou.

A manteiga apertou com tanta firmeza que os dedos de Skye pareciam

que tinham sido enfiados dentro de uma bota de bico pontudo.

— Eu sou Thalia, a musa da casa. Eu vou providenciar inspiração pra

você e... — Thalia voltou sua atenção para alguma coisa atrás de Skye. —

Allie J, nossa poeta alfa laureada! Bem-vinda.

Allie J, a compositora que vivia reclusa apesar do seu sucesso

fenomenal!? Skye virou rapidamente. Era mesmo !



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Ela sempre achou que a reclusão de Allie J era em razão de algum tipo de

doença de pele embaraçosa, como doença-do-sinal-peludo. Mas não era. A

pinta dela tinha um apelo totalmente Crawford, e o cabelo dela era preto,

brilhoso e pregado na cabeça dela. Mesmo seus pés descalços pareciam

bem cuidados e impressionantemente limpos. Como alguém podia se

preocupar tanto com sua imagem ao vivo e absolutamente nada com sua

presença na Web ? Afinal, a beleza passa, mas jpegs são para sempre.

Skye segurou o tornozelo e o puxou na direção ao bumbum. Uma

sensação de ardência percorreu o seu quadríceps, fazendo-a relaxar

imediatamente.

— Então você é uma dessas. — Allie J fixou seus olhos esmeralda emSkye. Skye soltou o tornozelo curiosamente. Como Allie J sabia que ela era

uma praticante de alongamento nervoso?

— Uma o quê?

— Uma bailarina. Dá pra notar. Bailarinas têm a melhor postura. — Allie

J agachou e esfregou álcool gel entre os dedos dos pés.

— Ah. — Skye riu. — É, obrigada.

— A mãe dela é Natasha Flailenkoff — a musa explicou, enquanto

borrifava eucalipto no chão, ao lado das camas.

— E você é uma escritora? — Skye fingiu não saber. Ela tinha,

obviamente, ouvido falar do livrinho de poesias de Allie J, Verde de inveja ,

das suas músicas subindo nas paradas e do seu blog ecológico sempre

ativo. Mas ela não ia ficar toda eufórica por causa de alguém que só estava

a um J de distância de ser uma pessoa sem sobrenome.

Allie J levantou a cabeça. Ela estava vermelha. — Você leu? — perguntou,

como se não tivesse ideia de que todo mundo tinha lido.

— A gente meio que teve de ler na aula de literatura. Estávamos

estudando poetas americanos e...

— Maneiro. Ah, bom, não se preocupe se você não terminou de ler — Allie

J interrompeu. — Eu também já estou bem de saco cheio de falar disso, na

verdade. Espere até filmarem o musical. É quase a mesma coisa, só que

com música.



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— Não desista — Thalia disse com doçura, borrifando uma última vez o

eucalipto no chão. O quarto estava com cheiro de Junior Mint. — “Quem

altos montes galga, de começo progride lentamente”. William Shakespeare.

Skye e Allie J trocaram olhares e riram.

— Que tal bebermos alguma coisa enquanto esperamos as outras? — a

musa ofereceu, indo na direção da escada antes que elas pudessem

responder.

— Qual é a do biscoito da sorte? — Skye sussurrou, assumindo a cama

no centro do semicírculo.

Allie J riu e sentou-se do lado dela.

— Jogadora de basquete. Lesionada. Se formou em psicologia. Não pôdeviver o seu próprio sonho, então agora se dedica a ajudar as outras pessoas

a encontrarem os seus. Ela é um filme da Lifetime.

— Como você sabia disso?

— Eu a escaneei. — Allie J sacudiu seu aPod. Apertou um botão chamado

ALFA ID e uma série de dados rolaram pelo display de LCD. — Você aponta

para qualquer pessoa no campus, clica, e ele te dá o perfil dela.

— Sério? — Skye pescou o novo melhor amigo digital dela de dentro da

bolsa.

— Sério — Thalia falou lá de baixo. — Você pode experimentar na Andrea.

Eu a estou ouvindo chegar à calçada agora mesmo.

— Ah, e ela tem uma audição excepcional — Allie J acrescentou. — Foi

documentada em publicações científicas.

Antes que Skye pudesse descobrir como ativar o seu novo BFD, a garota

apareceu no topo da escada. Ela parecia uma ex-supermodelo — que-virou

— apresentadora-de-talk -show , só que seus olhos eram castanho-claros e

seus cílios gigantes eram de verdade.

— Meninas, esta é a Andr...

— Podem me chamar de Ameaça Tríplice — a sósia da Tyra corrigiu.

Skye piscou, esperando pela conclusão da piada, que não veio.

— O quê? — A garota torceu o cabelo longo e escuro em um coque e

enfiou um palito dourado no centro. A sua estrutura óssea era tão angulosa



50

que ela provavelmente poderia raspar as pernas com o queixo. — Era assim

que me chamavam na escola e acabou pegando.

— Quais são as suas ameaças? — Uma menina mignon com olhos violeta

grandes, tipo animé, e cabelo beehive rosa apareceu atrás dela,

mergulhando na conversa com uma entrada perfeita e sem estardalhaço.

Ela parecia com a Wanda de Os padrinhos mágicos .

— Eu sou uma mo-dan-triz.

— O que é isso? — Allie J perguntou, aparentemente ela não era

familiarizada com a abordagem finja-que-sabe-do-que-a-pessoa-está-

falando-e-pergunte-ao-Google-depois.

— Modelo-dançarina-atriz — explicou Ameaça Tríplice, jogando o chapéude palha xadrez na cama vazia no canto.

Skye quase avisou a ela que colocar chapéu na cama dava azar,

mas, ahmeudeus , ela realmente precisava morar com outra dançarina?

Talvez se o chapéu ficasse ali, Tríplice quebraria uma perna e viraria uma

ameaça dupla.

A recém-chegada se deixou cair na cama do lado de Skye e cobriu os

olhos com as costas da mão. Um segundo depois, levantou e suspirou.

— Eu passei por tanta coisa recentemente... leucemia, rehab , bulimia, um

incêndio em que salvei três bebês e cinco gatos, mas que me fez acabar no

pronto-socorro respirando com a ajuda de aparelhos... — Ela suspirou de

novo, com as lembranças. — Mas eu não mudaria nem um segundo de

nada disso. Porque me trouxe até aqui. Com vocês todas. — Ela virou para

a janela lentamente e sua cabeça foi para longe.

Skye ficou com inveja na mesma hora. Não seria incrível ter um passado

sombrio e bizarro? A imprensa adorava essas coisas. Afinal de contas, a sua

mãe tinha dado a maioria das suas entrevistas depois do acidente. Sem

isso, ela seria só mais uma dançarina supertalentosa de quem ninguém

tinha ouvido falar. Enquanto a pior coisa que tinha acontecido com Skye

tinha sido mergulhar numa piscina de gelatina — uma história que só daria

primeira página do jornalzinho da escola, e isso se ela tivesse sorte.



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Allie J apertou com o polegar o botão ALFA ID e apontou para a garota.

Skye rapidamente fez a mesma coisa e leu a tela na sua frente.

NOME ARTÍSTICO: RENEE FORADAY.

NOME VERDADEIRO: RACHAEL MARTIN-MELON. INTERPRETOU

RAYNE STORM NA EXTENSA NOVELA DA ABC TEMPESTADE

PERFEITA DESDE QUE NASCEU. DEPOIS DE SER SELECIONADA

PARA A ACADEMIA ALFA, LARGOU O PROGRAMA E PINTOU O

CABELO DE ROSA PARA MOSTRAR A SUA INDEPENDÊNCIA. O

EPISÓDIO EM QUE SEU PERSONAGEM MORRE NUM PASSEIO DE

MONTANHA-RUSSA SERÁ EXIBIDO DURANTE A SEMANA DE FINAISDE TEMPORADA; AS CENAS SERÃO FILMADAS USANDO UMA

DUBLÊ. ELA REGISTROU MAIS DIAS ATUANDO DO QUE QUALQUER

OUTRA PESSOA NO MERCADO E TEM DOZE DAYTIME EMMYS QUE

ELA GUARDA NO FREEZER DA CASA DOS PAIS EM CASO DE

INCÊNDIO.

— Espera aí! — Allie J falou, esfuziante. — Você é Rayne Storm? Eu não

percebi por causa dos olhos e do cabelo, sabe, porque você normalmente

está superbronzeada e com cabelo escuro no programa. Eu amo essa

novela! Eu nunca perdi nem um ep...

— Sério? — As sobrancelhas de Skye foram lá pro alto. — Você gosta de

novelas? Eu pensei que você era toda anti-TV.

— Eu sou. — A compositora ficou tensa e vermelha. — Mas, hum, a

produção queria que eu reescrevesse a música de abertura, e então me

mandou algumas temporadas em DVD para que eu entendesse o clima do

programa.

— Então você conhece Bethany Condon? — Renee bateu com a mão cheia

de anéis sobre o coração. — Ela sempre foi como uma segunda mãe para

mim.

— É. — Allie J corou de novo. — Eu disse que ele me mandou umas fitas?

— A-hã. — Tríplice levantou uma das sobrancelhas ultra-depiladas.



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— Quer dizer, ela — Allie J corrigiu. — Às vezes eu engulo o a..., sabe,

para conservar energia.

Skye olhou pra cama vazia. Quem seria a próxima? A garota responsável

pela Internet? Uma oficial das Forças de Operações Especiais Norte-

Americanas aos quatorze anos? Hermione? Essas meninas eram melhores

do que a Vogue de setembro, e Skye se sentiu como num primeiro de abril,

por pensar que seria mais fabulosa do que elas só em aparecer. Skye

mentalmente escreveu seu próximo Desejo E Aspiração.

DEA Nº 2: Sobreviver.



53

5

ACADEMIA ALFA

ANTIGA SUÍTE DE BEE


13:13

— Isso é Nutella com bacon? — Charlie fingiu estar com nojo para o

Darwin do vídeo, naquela que seria a última sessão de Skype deles. Ela

sabia que terminar o namoro virtualmente era o fim, e que a relação deles

merecia muito mais respeito. Mas se ela pudesse tocar naqueles olhos

castanhos amendoados, naquele cabelo cheio de luzes naturais, naquelas

sardas acima do lábio, ou sentir o cheiro daqueles palitos de dente com

aroma de canela que ele adorava pendurar na boca, nunca iria até o fim.

— Esse banquete era pra ser surpresa, mas considere como um

incentivo. — O foco da câmera de Darwin se voltava para cobrir todo o

arranjo, o qual Charlie sabia que ele tinha passado a manhã toda fazendo.Apesar de ter uma equipe à sua disposição, Darwin sempre preparava os

seus presentes ele mesmo.

A camisa polo listrada, preta e branca, de Darwin voltou, enchendo a

tela. Ele apertou um botão no seu telefone e um dedilhar de violão inundou

o ouvido de Charlie e lhe causou um aperto no coração. Engraçado como

ela de repente amava uma música que passou a vida inteira odiando.

— Allie J? — Charlie perguntou, rolando os olhos.



54

— Você sabe que você adora isso — Darwin provocou, tentando

sorrir, mas sem conseguir de verdade. Há meses eles lamentavam o dia em

que Charlie ia voltar para Nova Jersey. Agora ele estava tentando ser forte

por ela. Logo mais, ele ia ter que ser forte por ele mesmo, mais forte do que

tinha previsto. Era como se Charlie estivesse segurando uma arma

escondida atrás de suas costas, se preparando pra atirar nele a sangue-frio.

Ela forçou uma cara feliz, igualmente tensa.

— Não, você que adora. Eu sempre preferi Lady Gaga à Mãe Terra, e

você sabe disso.

— Tanto faz. — Darwin passou a mão na sua franja dividida de lado,

uma coisa que ele sempre fazia quando estava cansado de conversa mole. — Você pode vir logo pra cá? — Ele estava no lugar favorito deles em toda a

ilha. A última extensão de praia no noroeste. Areia rosa, água transparente,

nem traço da arquitetura de Shira. Seu All Star azul se firmava sobre as

pontas do cobertor no lugar, no caso de uma rajada de vento resolver

soprar de repente.

Charlie engoliu seco.

— Eu tenho uma notícia incrível e uma notícia des-incrível. — Ela

apertou as pulseiras, sentindo a ausência da foto dele através da prata fria.

— Des-incrível primeiro — ele pediu. Assim como ela, ele preferia

puxar o band-aid, de uma vez só e depois tomar um sorvete pra aliviar. Ela

balançou a cabeça, egoisticamente ignorando o pedido dele para poder

aproveitar seus últimos segundos como namorada de Darwin Brazille.

— A notícia incrível é que a sua mãe me deixou ficar.

— Mentira! — Listras pretas e brancas encheram a tela enquanto ele

equilibrava o laptop em um abraço. — Eu sabia que as vinte e sete cartas

escritas à mão, as ameaças de me alistar no exército e a greve de silêncio

iam acabar convencendo-a.

Charlie sentiu como se tivesse engolido um punhado de areia rosa.

Brotaram lágrimas nos seus olhos e o seu coração passou a bombear

punhais em vez de sangue.

— Bom, não se empolgue tanto.



55

O sorriso dele se manteve, enquanto os seus olhos perderam o brilho.

— Quê que cê quer dizer?

Arranque o band-aid.

— Darwin, eu... a gente... — Arranque! Seu peito se espremia como

se ela estivesse usando um corpete apertado pela culpa. — A gente precisa

terminar isso.

— O Skype? — Darwin tentou, começando a perceber os homens da

mudança ao fundo, enchendo caixas e removendo todos os traços de Bee.

— O que é que está acontecendo aí?

Charlie respirou fundo.

— Minha mãe está indo embora. De volta pra Manchester. Eu vouficar para estudar aqui. E vou precisar ficar sozinha por um tempo. Para

me concentrar nessa oportunidade maravilhosa. Sem distrações. Não é

você, sou eu — ela deu as falas com aspereza, esperando que ele pudesse

ler nas entrelinhas e entender por que ela estava fazendo isso.

— Você está brincando, né? — Darwin deu um soco em um prato

de muffins em forma de coração. — Você tem que estar. Você não faria isso!

— Faria — Charlie falou para as suas mãos trêmulas. — Eu preciso

fazer. Você sabe, é pelos meus estudos.

A feição de Darwin endureceu. Ele apertou os olhos e cerrou a

mandíbula.

Charlie conhecia todas as caras que ele fazia, mas nunca tinha visto

essa. Essa não era a sobrancelha franzida de derrubei-a-pizza-com-o-lado-

do-queijo-para-baixo, ou o bico de quando eles se despediam à noite, ou o

lábio inferior levemente pra frente que rolava quando ele estava perdendo

uma partida de tênis. Essa era nova. Lembrava aquele quadro O grito que

ela tinha visto no Museu Munch, em Oslo, na Noruega. Fazia ela se sentir

horrorizada e magoada, e ela tinha sido a artista que tinha feito aquilo.

Charlie abriu a boca querendo gritar, Deixa eu explicar! Mas com que

finalidade? Ela não podia contar a verdade para ele. E qualquer outra coisa

só iria aumentar a ferida.



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— Então é isso? — Darwin perguntou, com um último fiozinho de

esperança ainda brilhando nos olhos. — Mesmo? Você pensou sobre isso?

Charlie fez o brilho apagar, ao assentir que sim.

— Certo. Bom, então tchau. Boa sorte com sua oportunidade

maravilhosa .

A tela de Charlie escureceu.

Ele tinha ido embora.

Bolhas de coriza saíram da narina esquerda de Charlie, quando ela

explodiu em lágrimas. Parecia que sua alma estava sendo sugada para fora

do corpo e os lábios em volta do canudo pertenciam a Shira.

— Ugghhhhhh! — Ela queria sair correndo. Correr para Darwin,apertar o botão de reset . Ligar para a mãe e fazer o seu jato dar meia-volta.

Voltar para Hoboken onde ela e Darwin ainda estariam juntos (mesmo que

não fosse pessoalmente). Mas aí tinha sua mãe, e tudo o que ela tinha

sacrificado para que Charlie pudesse estar ali. Para que ela pudesse

estudar na melhor escola do mundo. Para que ela pudesse fazer uma coisa

melhor com a sua vida do que a mãe tinha feito. A bússola moral de Charlie

deu várias voltas até apontar para o norte de novo.

Os homens da mudança entenderam isso como um sinal verde para

embalar os objetos da escrivaninha de Bee, a única coisa que ainda estava

intacta. Entre um soluço e outro, Charlie pegou o grampeador eletrônico e

começou a desparafusar a parte de baixo. Desmontar coisas e depois

remontá-las era a sua especialidade.

Só esperava que pudesse fazer a mesma coisa com o seu namoro.

Charlie ficou parada ao pé da escada de vidro da Jackie O, tomando

coragem para subir. As vozes lá em cima estavam falando alguma coisa

sobre ser destinada à grandeza. As vozes na sua cabeça estavam dizendo

“Dê meia-volta e corra! ”.

O que estava pensando ao aparecer ali com olhos vermelhos e

inchados, nariz entupido e um bolso cheio de lencinhos molhados? Esse era

um momento em que era muito importante causar uma boa primeira



57

impressão. Era o primeiro dia do resto da vida dela. A razão pela qual tinha

acabado de se despedir das duas únicas pessoas que importavam. Ela

deveria estar bombando. Supermotivada! Pronta pra mostrar para Shira

quem ela era. E mesmo assim, Charlie não conseguia dar o primeiro passo.

— Ah, oi. — Uma mulher alta com uma túnica amarela,

provavelmente uma das musas que a sua mãe tinha contratado, a

cumprimentou. — Eu achei que tinha ouvido alguém respirando aqui

embaixo. — Cinco mantos metálicos estavam pendurados sobre o seu

braço. — Eu sou Thalia. Você deve ser Charlie.

— Infelizmente.

A musa fez um biquinho. — Buda disse: “Você mesmo, tanto quanto qualquer pessoa em todo

o universo, merece o seu amor e afeição”, e acontece que eu concordo com

ele.

— Ah, bom, Buda não me conhecia — Charlie disse secamente.

— Bom, eu acabei de conhecer e acho que você tem um potencial

incrível. — Thalia pousou a mão no ombro de Charlie com uma força

surpreendente. — Vamos lá conhecer as outras.

Charlie respirou fundo, obrigando-se a tentar tirar o melhor possível

da situação. Porque se não o fizesse, seu sacrifício seria em vão, e isso era

uma coisa que ela não ia aguentar.

— Eu encontrei a quinta! — Thalia cantarolou assim que alcançou o

topo. — Nosso círculo está completo. Vocês estão sentindo o poder? — Ela

cerrou os punhos. — Eu estou.

— Oi, eu sou a Charlie.

Quatro garotas, uma mais arrebatadora do que a outra, apontaram

os seus aPods para ela, e depois olharam suas telas.

— Então, Charlotte “Charlie” Deery, você foi educada em casa? —

perguntou Cabelo Rosa.

— Fui.

— E você já deu a volta ao mundo mais de três vezes? — perguntou

Pinta.



58

— Aham.

— E sua mãe mora em Manchester? — perguntou Mangas.

— É, bom, tipo isso. Ela está a caminho.

— Então, qual é a sua parada? — perguntou Top model.

— Minha parada?

— É, o que te trouxe aqui? — A Top model pressionou.

Uma mulher controladora que queria fazer de tudo para me deixar

longe do filho dela?

Charlie deu de ombros. Invenção podia ser “uma parada”? Shira

costumava tratar como se fosse um hobby infantil com uma finalidade

destrutiva, não uma coisa para se gabar. — Eu não sei, eu sou bem boa com tecnologia. E vocês?

— Skye, dançarina.

— Renee, atriz aclamada.

— Ameaça Tríplice, modelo, atriz, dançarina.

— Maneiro — Charlie sorriu, tentando não aparentar inveja. — Como

é o seu nome?

— Ameaça Tríplice — as outras três falaram juntas.

— Ah, desculpa — Charlie teve vontade de chorar tudo de novo.

— E eu sou Allie — disse Pinta. — J. Quer dizer, Allie J. — Ela riu.

Charlie engasgou.

— A compositora ?

— Yup — as outras três falaram juntas.

— Mentira. — Shira realmente odiava Charlie tanto assim a ponto de

recrutar a cantora favorita de Darwin? O seu plano era esse? Fazer eles

terminarem para Darwin poder se apaixonar por Allie J? Um partido

melhor? Uma menina que a sua mãe aprovava? Lágrimas incontroláveis

começaram a jorrar dos olhos de Charlie. Ela não tinha chance. Até os pés

descalços de Allie J eram bonitos.

— Ah, olha que fofo, Allie — Renee falou com doçura. — Seu poder de

estrela está fazendo ela chorar. Isso sempre acontece comigo. É tão

lisonjeiro.



59

— Você é minha fã? — Allie J perguntou.

Charlie riu e fungou ao mesmo tempo, depois secou os olhos.

— Eu ouvi uma música sua hoje — Com o meu ex-namorado, Darwin.

Tenho certeza de que você vai conhecê-lo em breve , ela acrescentou

silenciosamente.

A musa deu um passo à frente e olhou cheia de compaixão para

Charlie.

— Por que você não fica com a cama da ponta, ao lado de Allie J?

— Ok. — Charlie colocou uma mão no seu edredom, desejando poder

se esgueirar lá pra dentro e chorar o resto da tristeza para fora dos seus

olhos. — Agora que vocês estão todas aqui, é hora de escolherem os seus

uniformes — Thalia colocou um manto metálico em cada cama. Era feito de

um chenille macio apesar da superfície brilhosa. O logotipo vermelho da

Academia Alfa estava costurado no bolso esquerdo. — Todas as alfas

precisam usar o uniforme standard para todas as aulas acadêmicas. —

Hologramas das cinco meninas vestindo a blusa cor de champanhe, a

gravata prateada, a minissaia de pregas combinando com a gravata e

sandálias gladiador transparentes apareceram na frente delas.

— Oooooooh!

— Uau!

— Incrível!

— Eu estou linda!

Todo mundo gritou de animação, menos Charlie. Nada daquilo era

novidade para ela.

— Mas para coisas especiais como dança, teatro, natação, spa , esqui,

ginástica, patinação no gelo, esportes, dormir e estudar, vocês terão estas

opções.

Os hologramas vieram fazendo acrobacias em maiôs metálicos,

esquiando em roupas térmicas douradas, nadando em biquínis cor de cobre

e dançando em tutus de tule com glitter .



60

— Como a gente consegue essas coisas todas? — Skye bateu

palminhas bem rápido, como um macaquinho de corda tocando pratos.

— Aponte e clique — cantou Thalia. — Tudo o que você escolher vai

direto para o seu armário.

— E onde eles ficam? — Renee perguntou.

— Aqui. — Charlie deu um pulo para fora da cama e apertou um

botão em um nicho na parede. Cinco portas apareceram, cada uma com um

nome de uma garota diferente. Charlie abriu o dela, revelando

um closet gigante.

— Ei, como você sabia disso? — Ameaça Tríplice perguntou.

— Um, eu... — Ela deve ter lido o manual do usuário — Thalia interrompeu. —

Uma coisa que eu peço que todas vocês façam o mais rápido possível. Vocês

vão ficar impressionadas com o que esse campus tem para oferecer.

— Isso ? — Renee mostrou um livro da espessura da Bíblia. — Vai

levar meses. — Ela passou as páginas e depois colocou ele de lado.

— Nada de mais. — Tríplice deu de ombros. — Eu já tive roteiros

duas vezes maior que isso.

— Nos seus sonhos! — Allie J riu.

Skye e Renee explodiam em gargalhadas enquanto Charlie se

afundava ainda mais no mar invisível da depressão. Ela precisava ser

engraçada também ?

— Como Vince Lombardi disse uma vez: “O dicionário é o único lugar

em que sucesso vem antes de trabalho ”.

Com isso, as meninas voltaram o foco para o desfile de moda dos

hologramas, apontando e clicando como Annie Leibovitz. Charlie, já tendo

visto as opções, rapidamente selecionou alguns pijamas, moletons e

macacões de zíper, para o caso de ela conseguir voltar para o laboratório.

Depois, voltou suas atenções para o que realmente importava.

— Então, quando foi que você se inscreveu para a Alfa? — ela

perguntou para Allie J.



61

— Hummm, um tempo atrás — ela respondeu, com os olhos fixos

nos hologramas, vestidos e biquínis.

— Sobre o que foi a sua redação? — Charlie olhava pra frente, para

não aparentar interesse demais.

— Ah, você sabe, meio ambiente, música, poesia — ela disse olhando

para os botões do seu aPod.

— Você tem namorado?

Allie J largou o aPod com força e pegou o seu álcool gel. Ela bombeou

duas vezes e esfregou as mãos com força.

— Qual é a do interrogatório?

— Desculpa. — Charlie esfregou a testa úmida, arrependida. — Eu só estava puxando conversa.

— Tudo bem. — Allie J amoleceu. — É que eu estou tentando fazer

compras. E você sabe, eu só gosto de usar branco, então isso é um pouco

difícil para mim.

— Saquei. — Charlie revirou os olhos, se detestando por ter pegado

tão pesado. Elas passaram o resto do show de moda em um silêncio tenso

enquanto as outras três compravam enlouquecidamente.

Assim que acabou, Thalia voltou para o seu lugar no meio do U.

— Os uniformes de Shira são cintilantes porque ela quer que cada

uma de vocês se lembre de brilhar a cada dia. Até durante o sono.

As meninas fizeram que sim, como se fosse óbvio.

— Pena que não tem uns meninos para a gente desfilar nossos

guarda-roupas para eles. — Skye alisou suas mangas de dança turquesa.

— E os irmãos Brazille? — Allie J perguntou radiante.

Não!

— Eles estudam aqui? — Renee soltou seu cabelo rosa e balançou

até cair no ombro.

— Aham — Allie J fez que sim. — Eu vi um deles caminhando de

volta da praia carregando uma cesta de piquenique bem grande. Tipo,

honestamente? Um supergato.

Não! Deixa ele em paz! Charlie queria gritar.



62

— Ahmeudeus. — Skye se alongou tocando os pés. — Eles são cinco

e nós somos cinco! Perfeito!

O coração de Charlie bateu forte dentro do peito, dos seus ouvidos e

da sua gengiva. Ela estava pulsando com um mix perigoso de emoções, mas

não podia revelar que conhecia os IB. Não agora.

E talvez nunca.

Charlie ficou de pé e pediu licença. Mas quando saiu, uma coisa

dentro do bolso dela cutucou o seu quadril. Ela puxou para fora e correu

direto para o banheiro.

Era a borboleta que ela tinha feito para Darwin, e suas asas em

forma de coração tinham se partido.



63

6

O PAVILHÃO

SALÃO DE REFEIÇÕES AMBRÓSIA


18:30

A porta para o salão de refeições deslizou e se abriu. Noventa e cinco

garotas vestidas em roupas metálicas combinando procuravam as suas

mesas dentro do restaurante em forma de cúpula. As paredes eram feitas

inteiramente de vidro e forneciam uma vista de 360 graus das constelações

lá em cima.

— Ahmeudeus — Skye murmurou. Aquilo parecia mais uma

espaçonave do que um refeitório. Ela apertou seu pé dentro da sola da sua

gladiador transparente e alongou nervosamente as panturrilhas.

— Isso não é nada — Thalia irradiava alegria. — Sigam-me.

Vinte mesas em formato de trevo, uma por casa, estavam viradaspara um palco circular no meio do salão. A cada vez que as Jackie Os

passavam por uma, um coro de bips que soavam como Wall*E apitava por

todo o silencioso refeitório.

— O que está acontecendo? — Os olhos violeta de Renee se moviam

freneticamente, enquanto as meninas apontavam os seus aPods para as

recém-chegadas.

— Elas estão checando os nossos perfis — Charlie sussurrou com o

canto da boca.



64

Renee girou um pouquinho o seu rosto.

— Meu lado esquerdo é bem melhor — ela murmurou para Skye.

— Não esse perfil. — Allie J riu.

Thalia parou na mesa vazia entre a casa Michelle Obama e a J. K.

Rowling.

— Por favor, sentem-se — ela anunciou da cabeceira.

A parte de cima do trevo de seis folhas era uma tela de LED em que

estava escrito o nome de cada garota e sua refeição com as informações

nutricionais completas. Estava claro que o menu tinha sido feito sob

medida para as especialidades de cada garota alfa e planejado para ajudá-

las a alcançar todo o seu potencial físico. Por que outra razão Skye jantariacarne vegetal com crosta de gergelim e proteína extra? Com certeza não era

pelo gosto.

Tríplice olhou em volta e suspirou.

— Se uma menina tem uma escova absolutamente perfeita em um

refeitório sem meninos, ela chama a atenção mesmo assim? — ela pensou

alto, alisando o cabelo caramelo que ia até a cintura.

Skye tocou os seus cachos cuidadosamente espiralados sem

mencionar o fato de que ela também estava sentindo os sintomas iniciais de

uma crise de abstinência de garotos. Ela mordeu os lábios rosa cor de

iogurte. Será que lábios sentiam solidão? Porque os dela sentiam.

— Uma mulher precisa querer estar bonita para ela mesma, não para

os homens — Allie J respondeu automaticamente. O canto da sua boca,

embaixo da pinta, repuxou como se aquelas palavras de alguma maneira

doessem nela.

— Nem eu teria dito melhor. — Thalia se debruçou e segurou na mão

de Allie J.

— Ah, teria sim. — Renee revirou os olhos. — Isso não foi nada

convincente.

— Quê que cê quer dizer? — Allie J ruborizou.



65

— O timbre da sua voz estava baixo e oscilante. — Renee colocou

uma mecha rosa de cabelo atrás da sua orelha com um brinco de brilhante

pesado. — Você claramente não acreditava no que estava dizendo.

— Os ombros é que entregaram. — Ameaça Tríplice baixando o seu

terceiro suco em um gole. — Arredondados só funcionam se você estiver

bancando a sem-teto ou a anoréxica.

— Olha! — Allie J levantou o braço, feliz de poder mudar de assunto.

Uma borboleta laranja de origami pousou no seu pulso e bateu as asas. —

É de papel?

— Alumínio reciclado. — Charlie sorriu com orgulho, como se ela

mesma tivesse feito aquilo. Até parece. — Hummm, com licença — gritou uma ruiva de pele semi-

transparente. Ela cheirava remotamente a coq au vin . — Allie J, você pode

autografar a minha faca de descascar? — A menina abriu uma caixa de

madeira e puxou uma lâmina de oito centímetros do seu casulo de veludo

azul, e depois entregou uma caneta Sharpie para a sua musa.

As cinco Jackie Os a escanearam imediatamente.

NOME: SADIE SHMOLHOLTZ. PROPRIETÁRIA/CHEFE DO

UNICORN CHOWDER, O RESTAURANTE MAIS BADALADO DE NOVA

ORLEANS. PROFESSORA MAIS JOVEM DO INSTITUTO DE CULINÁRIA

FRANCESA. AUTORA DE DEZENOVE LIVROS DE RECEITAS E SETE

DVDS. FOI CHEF PARTICULAR DE DEMI E ASHTON COM A IDADE DE

ONZE ANOS. HOBBIES: DANÇA MODERNA, JAZZ, BALÉ, SAPATEADO,

GINÁSTICA RÍTMICA.

A inveja borbulhou dentro de Skye como água fervendo. Por que

ninguém nunca tinha ouvido falar dela?

Mas pensando um pouquinho melhor, Skye decidiu que assim era

melhor. Sadie iria mais cedo ou mais tarde precisar das músicas de Allie J

para se consolar depois de ser largada por ter fermentado

um muffin gigante dentro da calça. Não que ela tivesse um ainda. A



66

dançarina wannabe era mais magra do que peito de frango cozido sem pele.

Mas com um pouco de sorte, ela iria inchar logo logo.

O sol se pôs abruptamente e a escuridão encheu o refeitório como se

tivessem baixado a luz com um dimmer . As constelações se acenderam,

lançando um brilho prateado sobre as meninas, enquanto uma música

celestial girava em volta delas enfeitiçando a todas com muita competência.

Sadie instantaneamente correu de volta para a mesa Tyra.

Shira apareceu no centro do palco com um vestido coluna preto e

óculos escuros, cabelos vermelhos voando, vestido completamente parado.

Embaixo dos seus pés estava um disco flutuante dourado, que a fazia

levitar a uns trinta centímetros do chão.Um suspiro de encantamento coletivo ecoou nas paredes de vidro.

— Bom dia — O sotaque australiano de Shira soou alegremente pela

enorme sala. — Bem-vindas ao primeiro dia do melhor da vida de vocês.

As alfas aplaudiram, ignorando os gestos frenéticos e os pedidos de

silêncio de suas musas.

— Vocês estão aqui porque são especiais — Shira continuou, o seu

disco flutuava de um lado do palco redondo para o outro. Seu vestido preto

rodopiava em volta dos seus calcanhares. — Cada uma de vocês tem a

habilidade de ser a melhor na sua área e alavancar o genoma feminino para

as gerações futuras. Fazer qualquer coisa menor do que isso seria um tapa

na cara da Toda-Poderosa que criou vocês. E um tapa nela é um tapa em

mim. Porque eu estou aqui para terminar o trabalho dela e fazer de vocês

tudo o que Ela queria que vocês fossem.

Aplausos irromperam. Parecia uma tempestade.

— Os gregos juntaram os melhores arquitetos do seu tempo e

criaram uma coisa que nunca havia existido antes: uma alta sociedade com

um novo patamar de qualidade. Suas ilhas foram projetadas para

homenagear a alfa original, Atena, deusa da sabedoria e da guerra — Shira

declarou. — Esta ilha foi projetada para homenagear vocês, as alfas dos

dias de hoje, deusas da sabedoria e muito mais.



67

A atenção de Skye se desviou para uma escada de vidro em forma de

saca-rolhas atrás do palco. Ela levava a uma varanda com uma única mesa

que tinha vista para todo o salão. Era uma mesa para seis pessoas, como

todas as outras. Mas alguma coisa a diferenciava. Talvez porque as pessoas

lá não estivessem usando roupas metálicas. Talvez porque falassem entre

si, em vez de ouvir o que Shira dizia. Talvez porque fossem...

— Ahmeudeus, estou vendo garotos! — Skye cochichou, gritou e

cutucou Allie J.

Allie J ficou sem ar. Tríplice e Renee viraram a cabeça sutilmente. O

olhar de Charlie continuou fixo em Shira como uma bússola apontando

para... “perdedora”.Skye apertou os olhos e contou não um, não dois, não três, mas

cinco lindos garotos Brazille. O coração de Skye deu um grand jeté e ela

dividiu um olhar de cumplicidade com suas companheiras alfas. Seus dias

de fome de garotos tinham acabado. “Eu acho que eu vi um gatinho!”, ela

digitou no seu aPod e mandou a mensagem para as suas colegas de casa.

Os Bilionários Garotos Brazille, como eles eram chamados na US

Weekly , eram partidões internacionais. Darwin fazia o tipo bonitinho, mais

artista. Taz era um beijador em série, pulando dos lábios de uma menina

para outra. O seu gêmeo Dingo era conhecido por suas pegadinhas.

Melbourne era uma escultura, um gato do tipo modelo. E o inteligente

Sydney escondia sua beleza atrás de uns óculos nerd-chic .

A maioria dos irmãos vestia blazers marinho com camisas

superbrancas, jeans escuros e All Stars cinza. Taz tinha transformado o

seu blazer em um colete, cortando suas mangas, e o tinha vestido por cima

de uma camiseta preta amassada e jeans rasgados. Não dava pra ter

certeza, vendo do outro lado do salão, mas parecia que ele estava usando

um chinelo preto. Skye passou a mão com carinho por cima das suas

mangas de dança. Ele parecia o tipo de cara que ia gostar delas.

Shira ainda estava falando sobre suas expectativas quando o aPod de

Skye tocou.



68

Renee: Eles estão olhando para a gente!

Ameaça Tríplice: E daí? Eles parecem novinhos. Eu gosto de caras

mais velhos.

Allie J: Nos seus sonhos!

Skye: Olha isso.

Jogando no universo a sua vibe telepática expressando olha para

mim , Skye fez extremo contato visual com Taz. Um sorriso

instantaneamente apareceu no canto da sua boca ai-tão-beijável. Ela dava

os créditos à dança por ter ensinado para ela a arte de falar sem dizer

nenhuma palavra. Como se estivesse se preparando para um lift com umparceiro, Skye queria que ele soubesse que ela estaria pronta quando ele

estivesse.

Allie J: Ele está olhando bem para você!

Ela jogou os cabelos como se tentando roubar a atenção. Mas o olhar

de Taz continuava fixo em Skye.

Skye: Consegui contato visual.

Renee: Bom, eu consegui contato virtual.

Renee mostrou seu aPod. Balões de conversa dourados enchiam a

sua tela. Ela e Taz já tinham trocado “ois”.

Allie J: Como você faz isso?

Ela chegou sua cadeira um pouquinho mais para perto de Renee.

Renee: Nona temporada, quando Rayne Storm estava querendo

descobrir o assassino de Cora (antes de perceber que ela mesma tinha

matado Cora durante uma bebedeira), ela conseguiu um emprego em



69

desenvolvimento de software para poder ficar de olho em Gavin, suspeito no

1. Resumindo, eu fiz um curso de seis semanas na DeVry para me

preparar.

Ameaça Tríplice: Eu fiz nove semanas em um matadouro no Texas

para a minha participação em The Butcher Block .

Skye pegou um guardanapo, mergulhou seu garfo em um purê de

tomate e escreveu:

DEA Nº 3: Esmagar Renee e Tríplice como nozes num quebra-

nozes. Ela escondeu o guardanapo na parte de trás da saia. Se a sapatilha

de balé da sua mãe honrasse a sua fama, a carreira delas chegaria ao ápiceem O aprendiz — Celebridades .

Renee: Não tenho certeza se isso vai nos ajudar a pegar os meninos,

mas obrigada pelo excesso de informação.

Allie J: R, escreve outra coisa.

Renee moveu os dedos como se os estivesse preparando para uma

cena.

Renee: Jackie O manda um “yo”9!

Allie J: Nos seus sonhos!

Elas disfarçaram o riso.

Na varanda, os meninos estavam amontoados sobre o aPod do Taz

como se fosse a última Sports Illustrated — edição especial — trajes de

banho femininos .

No palco, Shira pigarreou.

— E agora, uma palavrinha sobre os meus filhos.

9 Cumprimento tradicional da cultura hip hop (N.E.).



70

Os meninos se arrumaram instantaneamente. As alfas gritaram e

assoviaram como presos arruaceiros. Uma brisa gelada atravessou o salão,

distraindo-as até que fizessem silêncio.

— Permitam-me evocar o mito de Ícaro. — Shira deu uma pausa,

dando tempo para as suas palavras circularem. — Dédalo fabricou asas

com cera e penas para ajudar seu filho Ícaro a escapar da prisão. Antes de

ele decolar, Dédalo avisou ao filho para não voar muito perto do Sol.

Dominado pela excitação de voar, Ícaro subiu às alturas cheio de

curiosidade, e no processo ignorou as instruções do pai, se aproximando

demais do Sol, que derreteu a cera e soltou as suas penas. Ícaro continuou

batendo as asas, mas logo percebeu que só estava batendo os seus braçosnus. E logo caiu no mar e se afogou. — Shira lançou seu olhar de óculos

escuros sobre o grupo.

— Zzzzzzzz — Skye fingiu roncar. — Por que ela está falando pra

gente sobre cera e penas?

— Ela está falando pra gente sobre o mito grego da tentação — disse

Renee, a viciada em teatro.

— Ela está falando pra gente não ficar muito confiante — gracejou

Tríplice.

— Ela está falando pra gente não comer aves — Allie J arriscou.

— Ela está falando pra gente não namorar os filhos dela — Charlie

disse secamente.

A pele de Skye formigava com aquela condenação. Ou eram as suas

células de paquera procurando uma casa nova?

Shira olhou severamente para a turma.

— Homens são distrações e podem mudar o rumo da vida de uma

garota em segundos. Então, de agora em diante, os meus meninos são zona

100% proibida.

Todo o ar foi sugado da sala enquanto Skye se juntava às noventa e

oito alfas — por alguma razão Charlie continuava muda — em um suspiro.

Sem os meninos Brazille? Era como ir à Fábrica de Chocolate do Willy

Wonka e não poder provar nada.



71

— Os meus filhos vão ter aula com vocês. Mas qualquer outra

interação é proibida. Não podem trocar mensagem de texto, nem paquerar,

nem estudar juntos. As que desobedecerem vão se ver caindo muito mais

longe do que Ícaro.

Algumas meninas deram risinhos nervosos, sem ter certeza se Shira

estava brincando sobre a última parte.

— Eu não disse? — Charlie sussurrou sorrindo maliciosamente.

Renee pegou o seu aPod e balançou.

Renee: Não está funcionando. Está com um firewall .

Ameaça Tríplice: Paquera bloqueada.

— Mas sigam as minhas regras e vocês vão voar alto. Literalmente. —

Shira deu um sorriso para as musas, que ainda estavam no palco. — Toda

garota que apresente uma excepcional atitude alfa vai ganhar aulas de voo

e, um dia, as chaves para o seu próprio Avião Particular Alfa.

Todas as meninas gritaram e fizeram algazarra. Skye digitou.

Skye: Charlie, você é boa com tecnologia, não é? Desbloqueia essa

parada desse firewall .

Ela mandou o texto e depois entregou o seu aPod para Charlie.

Charlie balançou a cabeça negativamente.

— Eu quero dizer para eles pararem de contatar a gente — insistiu

Skye.

— Oh — Charlie sorriu pacificamente. Seu rosto era bonito como

água é saborosa. Dava conta do recado, mas faltava brilho. Todos os seus

traços estavam exatamente onde deviam estar. Seu cabelo castanho médio

Pantene ia

até a cintura, e o seu corpo era magro e proporcional. Mas faltava

alguma coisa. Provavelmente nada que Visine e um sorriso não pudessem

resolver.



72

Depois de uma ginástica de dedo impressionante, Charlie devolveu o

aPod. Skye piscou agradecendo e começou a escrever para Taz.

Skye: Ícaro devia ter voado de noite. Não tem sol!!! Até breve.

Taz não escreveu de volta. Nem precisava. O seu sorriso dizia tudo.



73

7

EM ALGUM LUGAR NA ILHA ALFA

ESTRADA PARA ADONISVILLE


23:45

As lanternas dos aPods das meninas ricocheteavam no escuro como

um show de laser inesperado. Allie não tinha ideia de para onde elas

estavam indo, mas tinha certeza de que seus pés descalços estariam em

frangalhos quando chegassem. Mesmo assim, correr fazia ela se sentir bem.

Pelo menos alguma parte dela estava indo para a frente.

A respiração pesada e ocasionais risadinhas nervosas eram os únicos

sons que elas fizeram até se afastarem das casas alfa. Charlie tinha se

negado a ir com elas, justificando não querer quebrar as regras já na

primeira noite. Agora Allie, Skye, Renee e Tríplice estavam correndo através

da noite escura. Parecia que todos tinham se rendido ao sono na ilha — atémesmo a luz da lua.

— Vamos parar — disse Renee, ofegante, procurando abrigo embaixo

da copa de uma acácia.

— Aqui não — Allie J suplicou com um sussurro. — Ainda estamos

muito perto.

Skye correu os olhos pelo perímetro, seus olhos turquesa indo de um

lado para o outro.



74

— Por que você acha que a Charlie não quis vir? — Skye puxou os

dedos, estalando as articulações.

— Ela provavelmente já sabe que os BGBs têm zero interesse por ela

— Renee disse, enquanto corria atrás de abrigo, de um cacto até o outro. —

Além do mais, ela já estava apagada de sono quando a gente saiu.

— Ela podia estar fingindo. Você não é a única que sabe atuar,

sabia? — Tríplice retrucou.

— Na verdade — Renee arregaçou as mangas da sua camisola

cintilante prateada — , sou sim.

— Vamos continuar antes que alguém nos escute. — Allie trocava de

um pé para o outro pra impedir as bactérias do chão de grudarem nela. — De acordo com esse negócio, os meninos moram mais para o sul,

onde a parada do círculo conecta com o fim do a — Renee avisou,

estudando o mapa em forma de @ no seu aPod.

— Como você tem certeza? — Skye estalou outro dedo.

— Porque pisca “área proibida” toda vez que eu tento pedir a direção.

— Shhhhhhh — Allie reprovou, com medo do pior: uma bronca no

escritório de Shira. Com esse tipo de proximidade, Shira com certeza

perceberia que sua pinta era lápis. Seu disfarce seria desmascarado e ela

seria mandada para a prisão por roubo de identidade. Fletcher e Trina

iriam ficar famosos como as pessoas que a levaram a essa vida de trapaças.

E eles venderiam sua história de amor para a Lifetime por milhões de...

— Se você está tão preocupada em ser pega, deveria ter ficado —

Renee vociferou.

— Nos seus sonhos! — Tríplice acrescentou, zoando o bordão favorito

de Allie.

— Eu preciso de inspiração. E o perigo me dá isso, tá? É parte do

meu processo — Allie justificou, deixando para lá a parte sobre substituir a

sua paixão antiga por uma nova para tentar sua chance de felicidade. —

Além do mais, tentar a chance no romance é um grande lance. É arriscado,

mas animado. Dê um passo além e você vai se dar bem. — Ela sorriu,



75

aliviada por ter lembrado a letra da música “À flor da pele”, de Allie J, sob

tanta pressão.

— Eu voto para seguirmos a rota do trem de bolhas. — Renee

apontou o seu aPod para o chão, usando o brilho azul da tela para guiá-las.

Uma brisa tropical despertou um cheiro doce de gardênias,

lembrando Allie da vez em que Fletcher tinha borrifado Hawaiian Blossom

na Sephora. Ele disse que um dia, quando eles fossem mais velhos, iam

viajar para o sul do Pacífico e sentir aquele cheiro pessoalmente.

Infelizmente, aquele sonho tinha evaporado mais rapidamente do que as

gotinhas de perfume.

— Mudança de planos — Skye anunciou. — Nós vamos para a praia. — Shira acabou de chegar em casa — Renee anunciou ainda mais

alto.

— Como você sabe? — Tríplice perguntou.

— Você acha que o Taz só manda mensagens para você? — Renee

sacudiu o seu aPod na frente dos lábios carnudos de Skye. — Eu também

recebi.

Skye virou para Allie com uma olhar de dá para acreditar que ela é

tão irritante? Allie respondeu encolhendo os ombros em um o que é que se

pode fazer?

— Eles disseram para Shira que iam procurar Darwin, o irmão deles.

— Renee apontou para a tela do aPod. — Aparentemente ele está

deprimido.

— E quem não está? — Allie murmurou para a escuridão.

— Eles acenderam uma fogueira. A gente vai ter de procurar a...

— Fumaça! — Tríplice apontou para a ponta norte da ilha.

— Vamos. — Renee disparou, não deixando nenhuma alternativa

para as outras a não ser segui-la.

Sem sapatos, correndo por um caminho sujo, vestindo apenas uma

camisola prateada e várias camadas de bálsamo da Burt’s Bees, Allie se

sentia mais como uma paciente em fuga do hospício do que uma sedutora.



76

Ela mordiscava nervosamente o seu lábio inferior. Tinha gosto de cera, mel

e loucura.

Elas finalmente chegaram à praia. A areia rosada estava fria, quase

mentolada, oferecendo um descanso necessitado para os pés arranhados e

potencialmente infectados de Allie.

— Eles estão ali! — Skye fez uma mímica de aplauso para o fogo

distante e sem chama.

— Vamos lá! — Renee descalçou sua sapatilha prateada e aumentou

o passo.

— Espera! — Skye chamou, desafivelando sua sandália gladiador

transparente. Havia dúzias de garras subindo pela sua panturrilhabronzeada.

— Eu disse para você não usar isso — Renee bufou

impacientemente.

— Por quê? — Skye se debatia com uma tira. — Por que elas

chamam a atenção para as minhas pernas bem torneadas e você fica com

inveja?

— Parem! — Allie se ouviu gritar. — Por que vocês estão

brigando? Um garoto/ É para se divertir/ Não pra causar tensão/ Nem

divergências — ela citou o coro de “Boicote”.

— Ela tem razão. — Skye chutou as sandálias para longe e

mergulhou seus pés com a manicure perfeita dentro da água. A lambida

suave de uma onda os deixou limpos. — A gente não devia deixar meninos

nos afastarem.

— Nos seus sonhos! — Renee deixou escapar e riu.

E então todas caíram na gargalhada. Allie tinha esquecido como era

bom dar uma risada de verdade.

— Escutem. — Tríplice colocou a mão em volta do ouvido para tentar

ouvir.

A risada parou.

— Queima! Queima! Queima!

— Venham! — Skye gritou.



77

As meninas correram na direção das vozes masculinas, o medo e a

excitação eram combustível para o coração delas bater agitado.

Parando perto da luz bruxuleante laranja, Allie, Renee, Tríplice e

Skye examinaram os perfis em silhuetas dos irmãos. Melbourne, de

dezesseis anos, Sydney, de quinze anos, Darwin, de quatorze anos e os

gêmeos Taz e Dingo, de treze cada um, vestindo um casaco com capuz de

uma cor de lápis de cera em volta do fogo vacilante.

— Queima! Queima! Queima! — eles gritavam para Darwin.

Ele estava abraçado a um suéter branco, que ele ninava como se

fosse seu ursinho de pelúcia recém-nascido.

Allie enrolou seu cabelo preto brilhoso sobre um dos ombros. Seráque elas estavam interrompendo algum ritual bizarro de um culto de

meninos?

— Vamos lá, Dar, você consegue — Taz disse seca, mas gentilmente.

Mas Darwin apenas balançou a cabeça e tentou se afastar. Os outros

irmãos se viraram para segurá-lo, e perceberam imediatamente que tinham

uma plateia.

— Oi, garotos — Skye cantarolou.

Em meio segundo, os BGBs se transformaram de meninos em

homens. Eles se arrumaram e caminharam até lá, cada um oferecendo uma

variação do clássico cumprimento com a cabeça e aí? Enquanto suas

amigas jogavam o cabelo e sorriam, Allie sentiu uma onda repentina de

leveza que não tinha nada a ver com o seu estômago privado de carne. Se

Fletcher pudesse vê-la agora...

Taz deu um passo à frente, com um sorriso que se aprofundava em

uma covinha na sua bochecha direita.

— A gente só estava ajudando nosso irmão.

Melbourne abaixou o seu capuz.

— A namorada deu um chute na bunda dele. Pelo Skype. Cruel.

Sydney fungou. Será que ele estava chorando por causa do fim do

namoro do irmão?

Renee beliscou suas bochechas para dar uma corzinha.



78

— Qual você quer, Allie J? — ela sussurrou.

Fletcher , ela respondeu dentro da sua cabeça.

— Você sabia que o seu pijama é como um espelho? — Melbourne

falou para o seu próprio reflexo, que calhava de estar bem em cima dos

peitos de Allie. — Eu totalmente posso me ver.

— Não liga. Ele está apaixonado por si mesmo. — Dingo estendeu o

seu braço direito.

— Allie. — Ela estendeu a mão também e apertou. — J.

— Ai — Ele se assustou. — Aperto forte.

— Sério? — Allie mergulhou nos seus olhos verdes como grama e

rolou como um cachorrinho feliz. Até que ouviu um estalo. — Ahhhhhhh! — Dingo gritou.

— Ahhhh! — Allie gritou de volta, quando o braço dele caiu da manga

e aterrissou com um golpe surdo na areia. Sangue jorrou como spray de

água Evian. — Ahhhhhhhhhhhhhhh!

Todo mundo explodiu em gargalhadas. Menos Allie, que limpou as

bactérias da mão de mentira na lateral da camisola, se amaldiçoando por

ter esquecido o álcool gel.

— Eu sempre quis aprender a fazer isso. — Tríplice bateu de leve na

manga de Melbourne.

— O quê? — ele perguntou.

— Ficar tão bem assim de casaco com capuz. — Ela sorriu.

— Aposto que você fica. — Ele abriu o zíper e entregou seu casaco

para ela. — Experimenta.

— Aaaah, que cheiro boooom — Tríplice ronronou, vestindo o casaco.

Allie revirou seu olhos verde-de-mentira e arrastou os pés na direção

da quentura do fogo. Skye já tinha formado um casal com Taz, e Renee

estava discutindo o arco emocional do seu personagem com Sydney. A

última coisa de que o seu coração partido precisava assistir era romance

aflorando. Dava mais náuseas que óleo de fígado de bacalhau. Pesada com

a falta de esperança, Allie se sentou de frente para Darwin. Com a



79

sobrancelha tristonha, ombros curvados e suspiros profundos e ofegantes,

o exterior dele combinava com o interior dela.

Sem se dar nem um pouco conta da chegada dela, ele pressionou

seus fones mais ainda para dentro do ouvido e pegou o violão que estava

encostado perto dele.

O quê?

Mais do que tudo, Allie estava envergonhada pela falta de interesse

dele. E se as outras meninas vissem os dois sentados como dois monges? E

se a fofoca de que Allie não conseguia pegar ninguém se espalhasse? E se

Fletcher ficasse sabendo? Ele nunca ia querê-la de volta.

Allie nunca tinha dado o primeiro passo. Nunca precisou. Allie J, noentanto, era outra história. Allie J não era bonita como Allie. Ela nem era

loura!

Sem mais hesitação, Allie puxou os fones do ouvido dele e sorriu.

— Sabia que não importa quanto tempo você namore alguém, você

vai demorar metade desse tempo para esquecer a pessoa?

Darwin enfiou um palito de dentes na boca. Tinha cheiro de canela.

— Então eu vou ficar bem em uns seis anos, dez dias, doze horas e

trinta e oito minutos.

Olhos castanhos. Franja de lado. Uma pinta acima da boca.

Presumivelmente de verdade.

— Onde você ouviu isso? — Darwin perguntou com um risinho

cético.

— Um, meus pais são cientistas. De mente, e essas paradas. — Allie

deu de ombros. Na verdade ela tinha lido sobre a relação “coração partido x

tempo” na revista Seventeen , mas ele não precisava saber disso.

Ela chegou um tantinho mais perto, se colocando dentro da distância

perfeita para um roçar de joelhos acidental.

Ele se virou para ela e ela respirou o cheiro cítrico de colônia

Burberry. Isso fez seus olhos encherem de água. Fletcher também usava

colônia.

— Eu sou Darwin. — Ele deu um sorriso ao olhar para o sinal dela.



80

Allie instantaneamente o cobriu com a mão.

— Allie. Quer dizer, Allie J.

Os olhos castanhos dele pareciam iluminar de dentro para fora.

— A cantora-compositora-poeta?

Ela concordou.

— Eu estava literalmente ouvindo você agora. “Regra dos três

segundos para o seu coração/ Pegue rápido do chão/ E veja ele ressuscitar .”

— Ele mostrou o fone para ela como prova. — Viu?

Dava para ouvir a música baixinho pelos fones.

Ela mudou de assunto apontando para o pequeno suéter no colo

dele. — Encolheu?

— Não, é da minha ex. — Seus lábios se curvaram em uma careta

dolorosa. — Meus irmãos queriam que eu jogasse na fogueira. Mas eu não

consigo.

— Ah — Allie compreendeu. — Eu também acabei de passar por um

fim de namoro. — Ela puxou uma mecha escura de cabelo e ficou

inspecionando. — E eu me livrei de todas as coisas. — Inclusive de mim

mesma.

— Com aquele cantor?

Allie suspirou. Maldita US Weekly .

— Não. Aquilo era fofoca. Meu ex me traiu. Um dia eu encontrei ele

com a Trin... — Ops ! Allie inspirou rapidamente. — Quer dizer, com um

burrito com três porções de carne.

Darwin explodiu numa gargalhada. Era uma risada boa — baixa e

retumbante, mas verdadeira.

— Você largou o seu namorado porque ele traiu você com um

burrito?

Até a pinta de lápis de Allie ficou vermelha.

— Bom, ele mentiu para mim, hum, que era vegetariano. Ele perdeu

a minha confiança, na verdade. Se ele comia carne, o que mais ele não

estava me contando?



81

Darwin balançou a cabeça como se tivesse entendido a parte de

perder a confiança.

Allie corajosamente roubou o suéter das mãos de Darwin.

— Quem se importa com o como ou o porquê. Eu já dei adeus para

você. — Ela balançou o casaco na frente do fogo.

— “Amor num monte de esterco”! Ótima música. — Ele olhou para as

lentes coloridas dela. Ela teve vontade de desviar o olhar para proteger a

sua identidade. Mas não conseguia. Ele era como um ímã. Ela era uma

geladeira.

— Quer saber, você está certa. — Com um movimento arisco, ele

roubou o suéter das mãos de Allie e o arremessou no fogo.Eles ficaram olhando enquanto as fibras sintéticas estalavam e

derretiam, virando uma coisa do passado.

— Aêeeeeeeee! — os irmãos comemoraram por ele.

Darwin os saudou com um sorrisinho malicioso e depois se virou

para Allie.

Havia chamas refletindo dentro dos seus olhos, mas ele ainda parecia

amável.

De repente, os aPods começaram a apitar em som surround .

— O que está acontecendo? — Allie perguntou.

— Ela sabe de algum coisa — Darwin murmurou.

O estômago de Allie revirou.

— O que a gente faz?

Darwin e seus irmãos correram ao redor da praia, apagando o fogo e

lavando todos os traços de perfume do corpo.

— Desliguem os seus aPods! Talvez a gente consiga impedi-la de fazer

a triangulação! — Darwin gritou.

Allie J não fazia ideia do que queria dizer triangulação, mas isso só

aumentou o status dele de rebote para paixão.

— A gente precisa ir — vociferou Renee. — Agora. Andem!



82

Skye deu um beijinho na bochecha de Taz. Melbourne tentou puxar

Tríplice para mais perto, mas ela correu antes que ele pudesse dar um na

boca dela.

Allie se levantou num pulo, com seus pés descalços.

— Espera. — Darwin deu um passo com o seu All Star cinza. —

Quem sabe você não podia...

— Sim! — Ela corou e de repente sentiu muita falta da escuridão.

— ...me ajudar a compor uma música? — Foi a vez de ele corar.

— Quando quiser! — Allie começou a correr de costas, tentando

decorar o rosto perfeito dele.

— Allie J! — Renee chamou, correndo. — Estou indo! — Ela sorriu e deu adeus, e depois virou e disparou.

Allie não fazia ideia de como se escrevia uma música. Não fazia ideia

se estava prestes a ser desmascarada. Não fazia ideia se algum dia veria

Darwin de novo. Tudo o que ela sabia é que já fazia um minuto inteirinho

que Fletcher não tinha lhe vindo à cabeça, o que tinha feito esse passeio

ilegal valer totalmente a pena, não importa o que acontecesse em seguida.



83

8

JACKIE O

CAMA DE CHARLIE

SEGUNDA, 6 DE SETEMBRO

5:47

Charlie estava deitada de barriga para cima, amaldiçoando os raios

da manhã que irradiavam faixas amarelas alegres por todo o seu lençol. Ela

apertou as pálpebras fechando os olhos numa tentativa fútil de deixar a luz

lá fora e o sono lá dentro. Mas não era culpa do sol ela não ter dormido

praticamente nada. Em vez de contar carneirinhos, ela passou metade da

noite contando as coisas de que sentia falta em Darwin:

Uma: o cheiro de canela. Dois: sua paixão por todas as coisas. Três: o

jeito como ele a entendia, mesmo quando ela mesma não se entendia.

Quatro: o repertório interminável de piadas internas deles. Cinco: a

lealdade dele. Seis: a briga interminável sobre quem tinha o melhor gostomusical. Sete: Ai, meu deus: Música! Ele amava Allie J! Oito: Ela fugiu pra

ir vê-lo! Nove: E se ela tivesse conseguido? Dez: E se eles tivessem ficado

juntos? Onze: E se ele começasse a se apaixonar por mais do que só as

letras das músicas dela?

Esses pensamentos a deixaram acordada a noite inteira,

especialmente das sete às onze. Como ela ia deixar passar o fato de que a

artista feminina favorita de Darwin estava prestes a fazer uma participação

especial na casa dele!?



84

Quando suas colegas de quarto chegaram em casa, Charlie fingiu

estar dormindo, enquanto todo o tempo ficou se esforçando para ouvir

qualquer menção a Darwin. Fora alguns cochichos curtos e umas risadas

ocasionais, as meninas foram para a cama silenciosamente. Charlie

tranquilizou seu coração acelerado e o seu estômago revirado de que Dar

tinha provavelmente passado o tempo todo de mau humor, tocando violão e

imaginando onde tudo tinha dado errado. Mas aquele era o Darwin que ela

conhecia. Em quem ele tinha se transformado nessas horas em que tinham

estado longe?

De repente, o aPod de Charlie vibrou. Suas pálpebras se abriram com

excitação.Ele também estava sentindo a falta dela!

Ela pegou ansiosamente o telefone na sua mesinha de cabeceira e

piscou para focar melhor. Piscando de volta para ela, tinha uma mensagem

de Shira.

SHIRA: MEU ESCRITÓRIO. AGORA. NÃO ACORDE AS OUTRAS.

Até a fonte parecia brava.

O que raios ela podia estar querendo? Charlie tinha ficado sem mães

e namorados para sacrificar.

Reunindo toda a coragem que tinha, Charlie se jogou para fora da

cama, as pernas primeiro. Mas em vez de pousar nas suas pantufas de

pelúcia prateadas, ela tocou em uma coisa mole e morna. Espuma do mar?

Cocô de animal? Sua vida amorosa?

Olhando de cima dos joelhos com medo e apreensão, ela conferiu o

chão. “Charlie Brown-nose” estava escrito no chão em um creme de barbear

desintegrando ao longo da cama dela. O seu coração cambaleou. Seus olhos

arderam. Seu estômago travou. Ela inspecionou o quarto rapidamente para

ver se Tríplice também tinha uma pichação do lado.

Não tinha.



85

Quatro grupos de braços e pernas largados estavam espalhados pelas

camas, como se prontos para serem preenchidos na oficina construa-uma-

alfa.

Lágrimas ardiam nos olhos cansados de Charlie como rímel vencido.

Por que ela estava fazendo isso mesmo? Sem amigos, sem família e sem

namorado, o motivo estava começando a lhe escapar. Durante todo o verão,

ela tinha fantasiado sobre ir para a Academia Alfa, cercada por meninas

inteligentes, que trabalhavam duro e que queriam ser as melhores — como

ela. Ela finalmente ia se entrosar com alguém além de Darwin. Finalmente

ela seria conhecida por outra coisa além de ser a filha da assistente de

Shira. Nunca lhe tinha ocorrido que ela continuaria uma estranha lá dentrotambém.

Charlie limpou os pés no tapete do lado da cama de Renee. Levando

em consideração que Rayne tinha tido uma vez uma briga de creme de

barbear com o ex dela, Lance Firerock, em Perfect Storm , Charlie estava

apostando seus alfa dólares nela.

Seu aPod vibrou de novo.

SHIRA: POR QUE VOCÊ NÃO ESTÁ AQUI?

Colocando um robe platinado curto por cima do seu baby-

doll prateado, Charlie correu manhã afora. O sol estava alto, como se

tivesse saído há horas. Ainda assim, nuvens cor de berinjela se juntavam

com força em cima da mansão de Shira.

Na hora em que seus pés de chinelo tocaram o caminho de tijolos,

um trem bolha encostou do lado dela. Enquanto passava rapidamente pela

praia de areia rosada, Charlie tentava se convencer de que as Jackie Os não

valiam seu tempo nem sua energia. Que ela não estava lá pra fazer MAPS.

Mas depois de uma vida inteira de voltas ao mundo e estudo em casa,

“amiga” era uma coisa que ela estava louca para experimentar.

O bonde parou subitamente na sala de espera do lado de fora do

escritório de Shira.



86

— Bom dia, Charlie — Fiona, a antiga no 2 de Shira, que Charlie

imaginava ser agora a no 1, a cumprimentou. Seu olhos marrons cor de

lama e seu cabelo descuidado com ondas cor strawberry blond faziam ela

parecer um Cavalier King Charles Spaniel10. Ela estava usando o mesmo

fone bluetooth e a expressão hiperalerta que a mãe de Charlie tinha usado

pelos últimos doze anos.

— Oi, Fiona. — Charlie desceu do bonde e sentiu o cheiro familiar de

café espresso, gardênias e limpa-vidros com aroma de goiaba. Antes isso

era o cheiro de casa. Agora só fazia ela se lembrar do que tinha antes — ou

melhor, do que tinha perdido.

As notícias da Academia Alfa passavam rolando pelas janelas do chãoaté o teto como as manchetes na CNN. Samantha Hays, Havilland Marie e

Cindy Shure foram pegas no laboratório de química fazendo maquiagem. As

fórmulas eram perfeitas, mas o blush comestível tinha sido confiscado ... A

repórter do Discovery Channel moradora da casa Oprah foi pega tentando

lutar com um leão depois de alguém dizer que ela não era nenhuma Bindi

Irwin... A camiseta prateada com short combinando vendeu 30% a mais do

que qualquer outra opção de pijama...

Charlie olhava fixo, esperando a notícia sobre Allie J e Darwin, mas

graças a Deus nada apareceu.

Ainda.

— Café italiano? — Fiona colocou uma xícara branca na frente de

Charlie. O teto fez um xixi marrom em jato, enchendo a xícara até a borda.

— Obrigada. — Charlie deu um gole relutantemente, com um olho

colado nas notícias. O líquido amargo lavava sua língua. Não era nada

como o da sua mãe, que acordava todas as suas papilas gustativas e

neurônios com um alô quente e forte. Charlie deu outro gole. Shira não

sabia que o seu café de grãos verdes importado especialmente da

Guatemala nunca era usado por Bee Deery. No lugar dele, a dose de hora

em hora de Shira consistia em um café instantâneo com um toque de

pimenta de caiena e xarope de bordo.

10 Raça de cães pequenos e dóceis (N.E).



87

— O que você acha? Está pelo menos próximo do da Bee? Eu já

tentei de tudo, mas Shira não está feliz. — Fiona ajustou seu bluetooth . —

Estou pensando em mandar a máquina de cappuccino para o conserto.

— Foi para isso que eu vim aqui? — Charlie colocou a xícara na

mesa. Pelo menos Shira estava sofrendo de alguma pequena maneira. —

Por causa do café?

— Não exatamente — Fiona apertou rapidamente um botão do seu

aPod. Cortinas de platina se ergueram do chão e esconderam o feed de

notícias da academia e também qualquer pista sobre por que Charlie tinha

sido intimada. Para compensar a escuridão repentina, o chão se iluminou,

irradiando um brilho demoníaco através da decoração futurística.Fiona tocou seu fone e aquiesceu.

— Sim, Shira. — Ela virou para Charlie. — Você pode entrar agora.

Um painel na parede deslizou se abrindo. O cabelo ruivo e fino de

Shira estava preso em um rabo de cavalo alto, e seu corpo magro mas

musculoso estava coberto com um moletom azul-marinho. Charlie ficou

pensando se existia aula de spinning no inferno onde ela nasceu. De frente

para Shira, Charlie podia se ver refletida nas lentes escuras da magnata.

Com os ombros pendurados pesadamente, ela já parecia derrotada.

De trás da sua escrivaninha Lucite com formato do mapa da

Austrália, Shira estava girando o seu globo preto e branco. Pontinhos

vermelhos de luz mostravam os lugares onde a Brazille Enterprises tinha

fundado empresas ou sedes. Quando era criança, Charlie pensava em Shira

como uma fada madrinha. Ela olhava maravilhada quando Shira girava o

globo, com os olhos fechados, deixando uma unha feita tocar a orbe. Puf!

Elas eram transportadas para o lugar onde seu dedo tinha encostado.

Charlie zombou da lembrança.

Com o dedo parado no ar, Shira tocou na Itália.

— Ah, vocês crianças adoraram Florença. — Ela enrolou seu rabo de

cavalo vermelho. — Poucas crianças de doze anos gostam.

Charlie cerrou os dentes, impedindo sua boca de falar o que pensava.

Ela sabia que essa conversa mole era uma tática para fazer Charlie suar.



88

Suar até se transformar em uma massa estúpida maleável e sentimental

que pudesse ser moldada até ficar inteiramente complacente. Mas

complacente com o quê?

— Os outros meninos levaram seus skates para a Galeria dos Ofícios,

mas você e Darwin ficaram parados na frente do Nascimento da Vênus de

Botticelli por horas. — Shira empurrou sua xícara cheia para o lado. — Ele

amava aquele quadro!

Correção! Dar amava a mim — não ao quadro!

— Você provou o café italiano? Está horrível.

— Eu prefiro o da minha mãe — Charlie afirmou sem entonação,

pronta para acabar logo com o que quer que fosse. — Eu tenho ficado longede Darwin, se é com isso que você está preocupada.

Shira forçou mais um gole e se arrepiou com desdém. — Muito fraco.

— Ela deixou o café para lá e Charlie tinha quase certeza de que não era só

isso que ela estava deixando para lá.

Risadinhas de meninas encheram o escritório repentinamente. Shira

olhou por cima do ombro de Charlie e balançou a cabeça em sinal de

desaprovação. Charlie girou no eixo e deu de cara com um vídeo de suas

colegas de casa, com os aPods na mão, correndo pela praia. Uma onda de

alívio tomou o coração de Charlie. Talvez elas não tivessem ido encontrar

Darwin no fim das contas!

— O que é que violar os direitos civis das minhas colegas de quarto

tem a ver comigo?

— Existem algumas coisas que as câmeras de segurança não

conseguem capturar. Eu imagino que Renee tenha desarmado o Sistema

Alfa de Posicionamento. Ela é tão metódica. Mas eu preciso saber quem foi

a líder dessa pequena excursão.

Charlie começou a entender. Então era por isso que ela estava aqui.

Bem quando pensava que não existia mais nada que Shira pudesse fazer

para rebaixá-la, ela achava uma última maneira. Era como um vampiro lhe

pedindo um guardanapo depois de sugar todo o seu sangue.

— Você quer que eu as dedure?



89

Shira se reclinou na sua cadeira elétrica preta, que chiou e depois

cedeu.

— Dedurar é uma palavra tão infantil. Eu estou pedindo para você

me educar. — Ela deu uma pausa e um sorriso. — Do mesmo jeito que eu

me ofereci para educar você.

— Ofereceu ? — Charlie balançou a cabeça incrédula, a imagem foi

ficando clara e em HD. Se Darwin e Bee foram o preço da matrícula, essa

era a primeira mensalidade.

— Vamos lá, Charlie Brown-nose. Essas meninas não são suas

amigas. Você sabe disso.

O rosto de Charlie ardia de vergonha. — Se você sabe de tudo isso, para que você precisa de mim?

— Existem alguns pontos cegos — Shira explicou, desligando o vídeo.

— E eu preciso de alguém em quem eu possa confiar.

— Você prometeu me tratar como as outras meninas.

— Eu prometi deixar você entrar para a Academia Alfa. Nada mais. —

Shira deu um olhar de pena que você não leu as entrelinhas .

Bilhões de pessoas confiavam em Shira. Ela conduzia os Workshops

de Empoderamento Feminino, criou bolsas de estudo para meninas, apoiou

empresas criadas por mulheres que estavam começando. Mas apesar de

todo o seu sucesso e generosidade, Shira não tinha nenhuma amiga de

verdade. Ela sempre disse que amizade era o único luxo que ela não podia

se dar. Mas só porque uma coisa estava acima do preço que Shira podia

pagar, não tinha que estar para Charlie. E assim ela sentiu a maré de raiva

baixar e seu senso de poder fluir. Shira precisava dela.

— Eu não vou fazer isso. Uma verdadeira alfa não pisa nas outras

quando está subindo para o topo. Porque não precisa fazer isso. — Charlie

apontou com o queixo para a cópia de Audácia: A História de Shira

Brazille na prateleira flutuante atrás da escrivaninha. — Página quinhentos

e vinte e sete.

Shira piscou. Uma, duas, três vezes. Depois uma voz com um

sotaque britânico ecoou através do campus.



90

— A primeira aula começa em trinta minutos. — Charlie lutou contra

uma onda de saudade. Era a voz da sua mãe.

Shira pigarreou.

— Melhor ir vestir seu uniforme. — Ela pegou um bastão dourado de

cima da escrivaninha e começou a girá-lo ao redor dos dedos. A chave-

mestra destrancava todas as portas do campus, incluindo passagens

subterrâneas, que providenciavam uma maneira furtiva para Shira

atravessar o campus. Se ao menos Charlie soubesse um jeito de trancá-la

lá de vez...

Charlie ficou parada, levemente tonta.

— Desculpa. Eu queria poder ajudar — tentou, sem querer queimar aúnica ponte que a ligava a Darwin. Ela recuou na direção da porta.

— Mas você pode. — Shira bateu a chave na escrivaninha, em algum

lugar entre Brisbane e Barossa Valley. — Você tem até hoje ao meio-dia

para me dar um nome.

— E se eu não puder? — Charlie perguntou, com as palmas das

mãos segurando na moldura da porta.

— Não existe não posso em “alfa”. — Shira deu um sorriso malicioso.

— Página quarenta e nove. — Ela apertou um botão perto da Grande

Barreira de Corais e a porta começou a baixar. — Bom dia.

Charlie conseguiu escapulir para fora bem a tempo de escapar de ter

sua cabeça decepada. Pena que ela não podia dizer isso de Shira.



91

9

JACKIE O

BANHEIRO


7:00

Allie encarava um dos cinco espelhos pendentes no banheiro Jackie

O. Antes, a única coisa que ela queria costumava ser que não existisse

ninguém mais bonito do que ela. Mas ter ficado a noite inteira acordada

tentando escrever uma música para Darwin tinha feito ela querer trocar um

pouquinho daquela beleza pelo talento que Allie J tinha. Ela não tinha nem

conseguido chegar até o refrão antes de ficar sem palavras que rimassem

com Brazille.

Se aproximou do espelho e checou as raízes do seu cabelo. Ela tinha

desbotado um pouquinho de Allie J no chuveiro nessa manhã, mas seu

personagem ainda estava intacto. Embaixo do espelho, a pia de vidro estavacheia de produtos de beleza para o seu personagem cobertos com uma

toalha.

— A primeira aula começa em trinta minutos — anunciou uma voz

britânica de mulher.

Um coro de gemidos sonolentos veio do quarto.

— O futuro começa quando a gente acorda de manhã — Thalia disse

alegremente. — Alguém sabe quem disse isso?



92

— Você? — murmurou Skye, com os olhos provavelmente ainda

fechados.

As outras meninas riram preguiçosamente.

— Miles Davis — Thalia anunciou energicamente.

Allie acelerou o resto da sua rotina de transformação antes que as

meninas invadissem o lugar.

Pinta? Feito. Lentes verdes? Feito. Cobrir as raízes louras? Feito. Pés

descalços? Infelizmente, feito.

As meninas entraram correndo, enroladas em robes combinando e

apresentando vários estágios de trauma com o cabelo. Os cachos louros de

Skye tinham virado dreads , e o penteado de Renee era um despenteado.O megahair longo e liso de Tríplice ainda estava perfeitamente intacto,

assim como o resto dela.

— Onde está Charlie? — Allie perguntou, apavorada de repente com

a possibilidade de ela estar escondida em uma das cabines, vendo as sua

transformação. Ela tinha parecido suspeitar de alguma coisa.

— Nem ideia. — Skye jogou água no rosto. — Ela já tinha saído

quando a gente acordou.

— Talvez ela tenha tido um acidente infeliz com um creme de

barbear. — Renee levantou uma sobrancelha e bateu com o dedo no queixo,

fazendo a vilã.

Skye riu. Allie J quis rir. Mas ela estava muito paranoica. Será que a

Charlie tinha ouvido ela tomando banho às seis e quinze? Tinha sentido o

cheiro tóxico de tinta preta de cabelo? Tinha percebido que a lente esquerda

tinha sumido no chão por pelo menos seis minutos?

Tríplice chutou a porta de uma por uma das cinco cabines, com a

ponta dos pés e as pernas estiradas.

— Não. Aqui não. Será que ela está entregando a gente?

Skye, Renee e Allie trocaram olhares apavorados. Mas até então não

tinha havido nenhuma palavra sobre a fuga para a praia. E se tudo

continuasse assim, elas poderiam ir para o segundo round naquela mesma

noite.



93

— Ei, Tríplice, há quanto tempo você tem problema de coluna? —

Skye perguntou com a boca cheia de pasta de dente.

— Eu não tenho problema na coluna. — Tríplice saracoteou pela sua

pia.

— Ah. — Skye cuspiu. — Eu pensei, sabe, porque a sua postura está

um pouco esquisita. Desculpa. — Ela cuspiu de novo. — Foi mal.

De repente, o rosto de Shira apareceu nos seus espelhos. Seu cabelo

avermelhado estava preso em um elegante rabo de cavalo e seus óculos

pretos firmes na posição.

— Ahhhhhhh! — todas gritaram.

— Bom dia — ela riu em silêncio. — Não precisam entrar em pânico.Allie acenou na frente do espelho, curiosa para saber se Shira podia

realmente vê-las. Mas Shira não acenou de volta. Em vez disso, pigarreou e

continuou.

— William Shakespeare disse uma vez: “Nós sabemos o que somos,

mas não sabemos o que podemos ser”. Bom, o que vocês podem ser começa

hoje.

— Ela está vendo a gente? — Skye perguntou, penteando o cabelo

com os dedos.

— Duvido — Allie zombou, fingindo que não tinha acabado de pensar

a mesma coisa.

— Seus horários, assim como suas refeições, foram planejados para

maximizar o potencial de vocês. Na Alfas, eu espero que vocês afiem seus

talentos, mas que também estendam de maneiras que vocês nunca

imaginaram.

— Nenhum problema com isso — Tríplice resmungou, levantando a

perna acima da cabeça.

Skye revirou seus olhos turquesa.

— Não haverá transferências, nem acréscimos, nem desistência nem

exceções. Boa sorte e bom dia. — Shira tinha ido embora e os espelhos

voltaram para as suas sessões marcadas habituais de maquiagem.



94

Os aPods das meninas apitaram, e elas correram para buscá-los no

quarto. Allie pegou o dela em cima da pia, depois que todo mundo tinha

saído.

Na tela, um envelope cor de bronze com um selo A se abriu, e uma

tabela de horários virtual escorregou para fora. Cada hora do seu dia

escolar estava mapeada em uma grade.

Tipo, séeerio? Tudo isso em um dia só? Estudar Allie J já não era por

si só matéria para um curso inteiro?

As Jackie Os entraram correndo de volta, vestindo seus uniformes e

comparando as grades de horários. Elas fizeram chapinha, passaram lápis

de olho e borrifaram perfume em tempo recorde.

— Allie J, vamos lá! — Skye fechou o zíper da sua nécessaire de

maquiagens. — Você ainda nem está vestida.



95

Allie colocou a mão para proteger as coisas escondidas pela toalha.

— Vão indo sem mim. Eu alcanço vocês.

Assim que as meninas se foram, Allie escondeu suas coisas

rapidamente, se vestiu e olhou no espelho uma última vez. Uma garota de

olhos verdes, cabelo preto e uniforme prateado e uma pinta na bochecha

olhava de volta para ela. Allie cobriu sua boca e sufocou o riso. Ela

realmente estava fazendo isso?

Essa piada interna era muito mais deliciosa do que qualquer coisa

que ela tinha dividido com Trina...

... fora Fletcher.

Uma onda fresquinha de mágoa deu um soco bem no estômago deAllie. Ela detestava o fato de que eles podiam machucá-la mesmo a

centenas de quilômetros de distância. Se ao menos ele pudesse ver como as

pernas dela tinham ficado lindas naquela minissaia de pregas. Ou a

façanha maluca que ela estava aprontando. Ou como a pele de Trina ficava

horrível quando ela estava na TPM. Ah meu Deus! E se ele soubesse e já

não gostasse mais dela? E se ele já tivesse terminado o namoro? E se ele

estivesse tentando entrar em contato...

Magicamente, como se convocada pelo além, a letra de “Regra dos

três segundos” surgiu na sua cabeça, implorando para ela partir para

outra.

Regra dos três segundos para o coração

Você me levantou, me tirou da escuridão.

Tive uma segunda chance e coisas novas para viver,

Numa vida que, quem sabe, podia incluir você.

Será que Allie J estava realmente vivendo dentro dela? Ou aquela

música estava realmente tocando?

Confusa, ela chutou os chinelos e seguiu a música lá para fora. Deu

a volta pelo lado da casa, onde um pedaço de grama verde estava cercado

de arbustos de rosas. Os seus movimentos eram lentos e cuidadosos, como

uma baby-sitter investigando um barulho misterioso em um filme de terror.



96

Allie suspirou, cobrindo a boca, surpresa. Lá, embaixo dos botões cor

de cereja, estava...

— Darwin! — ela deixou escapar.

— Oi. — Ele levantou os olhos, mas continuou tocando o seu violão.

As plantas balançavam como se estivessem apontando celulares invisíveis

para o show .

— O que você está fazendo aqui? — ela perguntou, sem conseguir

esconder o sorriso radiante.

Ele estava vestindo uniforme, a camisa metade para dentro da calça,

o cabelo dourado de sol jogado de lado, cercado por um piquenique de café

da manhã. Allie estudou seus olhos estonteantes à procura de sinaisresiduais de paixonite. Mas não tinha nada de abatido no seu sorriso

galanteador. Os olhos de Allie ardiam por trás das lentes verdes. Ninguém

nunca tinha feito nada assim para ela. A ideia de Fletcher de romance era

uma mensagem de texto “ei, baixinha” ou dividir um Yogoberry quando os

dois estavam fazendo a dieta do Sugar Busters.

— Você disse que ia me ajudar a compor uma música, ó, grande

talento. — Ele estendeu o violão para ela e baixou a cabeça em reverência.

Allie riu nervosamente.

— Eu não posso te ensinar agora — ela manobrou, torcendo que ele

abaixasse aquele complicado instrumento. — Eu preciso tomar café da

manhã.

— Por quê? — Darwin segurou um croissant. — Aqui tem tudo o que

você poderia querer.

Ele tinha um argumento.

— Onde você conseguiu essas coisas? — Allie estava maravilhada

com a pilha de panquecas, a seleção de queijos, frutas, caldas e o que

parecia ser um tipo de carne de trigo vegetariana.

— Eu fiz. — Ele sorriu radiante.

— Jura? — Allie apertou os olhos como se estivesse tentando ter

certeza de que não era miragem. Que tipo de idiota largava Darwin Brazille?



97

— É. — Ele jogou uma uva gigante na boca e mastigou. A pinta dele

montava em cima do seu lábio como um jóquei. — Por que é tão difícil

acreditar?

— Eu não sei. — Hummm, porque a única coisa que o Fletcher me deu

foi uma depressão!

— Senta aqui. — Ele colocou o violão de lado e alisou o cobertor

vermelho.

Allie olhou em volta procurando espiões, mas a rua estava vazia.

— Ok, por que não?

— Então. — Ele passou um prato para ela. — Você teve alguma

encrenca ontem à noite?Allie balançou a cabeça negativamente, se perguntando o que ele

acharia do seu cabelo louro natural. — E você?

— Nada. — Ele encolheu os ombros. — Provavelmente aquilo foi só

mais uma piada idiota do Dingo.

— Acho que isso quer dizer que podemos fazer de novo. — Allie pegou

uma panqueca, rasgou um pedaço e enfiou na boca. Ela não imaginava a

Senhorita Pés Descalços tendo boas maneiras.

— Por que a outra menina da sua casa não foi? — Aparentemente

perdido em seus pensamentos, ele passou o dedo no cadarço do seu All

Star.

Tipo, séeerio? Ele fazia ideia de quantas bactérias tinham ali?

— Charlie Brown-nose não quis quebrar as regras. — Allie deu uma

pausa e uma onda irritante de calor atravessou o seu corpo. — Por quê?

Não fomos boas o suficiente para você?

— Não! — Ele voltou para a realidade. — Não foi isso o que eu quis

dizer mesmo. Eu só estava, sabe, torcendo para ela não delatá-las.

— O café da manhã vai começar em cinco minutos, seguido pela

primeira aula do dia — anunciou a mulher britânica.

A voz pareceu levá-lo ele de volta para aquele lugar distante, mas só

por um segundo.



98

Um alvoroço no seu coração insistia para que ela corresse para lá.

Mas, verdade seja dita, ela não tinha se inscrito na Academia Alfa para

aprender italiano. Aliás, ela nem tinha se inscrito. Ela estava lá sob falsos

pretextos. Especificamente para conseguir um ASE. E se para se

transformar em uma Alfa-Superadora-de-Ex ela precisasse de uma

suspensão ou outra no processo, paciência.

— E quanto à música? — Darwin pegou seu violão. — Posso tocar o

que eu já tenho?

— Claro. — Allie educadamente se serviu de um pedaço de trigo. Era

realmente para ser cinza?

Ele batucou com a mão no seu jeans lavado e começou a cantarolar.As batidas do seu coração seguiam o compasso como um metrônomo.

Quando conheci você, eu estava arrasado,

A vida de pernas pro ar, o coração revirado

Mas você me escutou e tudo ficou tão bom,

Você me cobriu com uma camada de Teflon.

Ele parou e olhou para ela cheio de expectativa.

Allie disfarçadamente arremessou a carne para dentro do arbusto e

aplaudiu. — Incrível. Quando você compôs?

— Ontem à noite. — Ele abaixou os olhos, tímido. — Depois que você

foi embora.

O estômago de Allie revirou e seus lábios formigaram. Ou as

bactérias no seu pé estavam penetrando na sua corrente sanguínea ou sua

paixão estava aumentando.

— O que você achou do andamento? — ele perguntou. — Será que eu

devia partir para uma coisa mais rápida?

— Hummm, você poderia — Allie arriscou. — Mas, sabe, é para esse

lado que você quer partir?



99

Darwin olhou fixamente para ela, estudando o seu rosto. Será que ele

tinha ficado impressionado com o comentário dela? Que ele estava se

apaixonando? Imaginando como seriam os filhos deles?

— Hummpf — ele resmungou, mantendo firme o olhar.

Era isso. O momento eu nunca imaginei que eu sentiria isso por

alguém até o dia em que te conheci .

— O quê? — Allie colocou o cabelo atrás da orelha e piscou seus

cílios enormes para ele. — Por que você está me olhando desse jeito?

A boca dele se curvou e ele franziu as sobrancelhas.

— Eu sempre achei que a sua pinta fosse do lado esquerdo.

Allie sentiu o gosto de um pouco de panqueca no fundo da suagarganta. Ela realmente tinha sido burra a esse ponto? Levantou uma faca

de prata e olhou o seu reflexo. Ele estava certo. E a pinta, do lado direito!

Allie esfregou apagando o lápis de olho.

— Você está falando disso aqui? — Ela mostrou o seu dedo.

Ele aquiesceu, aparentando estar adoravelmente confuso.

— Ah, isso é só uma mancha de maquiagem. Eu estava ajudando as

meninas a se arrumarem hoje de manhã. — Seus ouvidos estavam

zumbindo tanto que ela mal podia escutar a própria mentira.

— E onde está a sua pinta?

— Ah, eu hum, passei corretivo nela. — Ela levantou os cotovelos

para refrescar as axilas. Mas a umidade estava aumentando a cada

segundo. O único vento vinha da sua boca.

— Por quê?

— Eu não queria que as pessoas soubessem que eu sou, sabe, na

sala de aula. Eu quero ser tratada com justiça. Julgada como os outros

alunos.

Ele balançou a cabeça, analisando tudo aquilo. Ela quase podia ouvir

a grama crescendo sob seus pés enquanto aguardava a reação de Darwin.

Ela arrancava as pontas esponjosas das folhinhas nervosamente. E se ele

não acreditasse? E se ele percebesse que não era só a pinta que era fake ,

mas que ela também era?



100

— Admirável, mas desnecessário — ele finalmente disse para ela. —

Todo mundo aqui é bem incrível no que faz. Você devia se orgulhar de quem

você é. Sem se esconder.

Allie abriu um sorriso largo. Se ele soubesse o quanto estava certo.

— É, acho que faz sentido.

Ele colocou um palito de dentes com cheiro de canela na boca e

voltou às suas cordas.

— Então, voltando ao andamento, você estava dizendo que é melhor

deixar? — Ele bateu nas cordas com mais força do que antes.

— Darwin, shhhh — Allie implorou. — Alguém pode ouvir você.

— Quem? Todo mundo está no café da manhã.Ouviu-se um farfalhar nos arbustos e depois o som de passos vindo

na direção deles.

— Nem todo mundo — disse uma voz familiar.

Allie ficou boquiaberta.

Mas por alguma razão estranha, Darwin ficou ainda mais.



101

10ACADEMIA ALFA

JACKIE O


7:23

Charlie abriu a porta da frente da Jackie O e a deixou bater atrás

dela. Por que havia hesitado lá no escritório de Shira? Suas colegas dequarto a tratavam como se fosse mais invisível do que uma figurante

em Perfect Storm . Quem ela estava tentando proteger?

Quando começou a subir pela escada circular de vidro, o aPod de

Charlie tocou dentro do seu bolso. Quatro mensagens de texto em balões

dourados estavam olhando para ela.

Taz: quebrei o braço hoje de manhã, mas pelo menos não parti o

coração do meu irmão.

Melbourne: Os filhos de vocês teriam sido quase tão bonitos quanto

eu.

Sydney: Como você pôde fazer isso com a gente?

Dingo: Você foi dingada pela última vez!

Charlie choramingou e escolheu um uniforme novo no seu closet .

Houve uma época em que ela daria tudo para nunca mais ser dingada. As



102

piadas dele tinham ficado cada vez mais ambiciosas, mais elaboradas, mais

perigosas. Mas agora ela sentia falta dos meninos como um soldado sente

falta do seu pé gangrenado.

Charlie se abaixou e afivelou sua sandália gladiador transparente.

Ela tinha acabado de prender a última tira quando uma música que Darwin

vinha compondo surgiu na sua cabeça. Cantando junto com a memória,

pensou que queria que ele soubesse o quanto sentia saudade. Queria que

ele soubesse que tinha feito isso por eles, pelo futuro deles. Esperava poder

provar para Shira quem ela era em breve, e assim poder contar tudo para

ele.

Ela cantarolou por mais um momento até perceber que a melodianão estava na cabeça dela. Estava do lado de fora da casa. E aquilo só

podia ter um significado: Darwin estava querendo reconquistá-la!

Charlie desceu correndo pela escada de saca-rolhas e voou para a

porta. Tecnicamente, ela não podia contar a verdade para Darwin. Mas

talvez ela pudesse explicar tudo escrevendo com gravetos e folhas. Ou falar

por toques como os Bushmen de quem ficaram amigos na Tanzânia. Se

Shira ia jogar sujo, ela também podia.

Saindo explosivamente, Charlie percebeu que suas pernas estavam

indo mais rápido que a sua sensatez. Ela seguiu a música pelo lado da casa

e quando não podia mais se conter, deixou escapar:

— Darwin, eu estou tão fe...

Sua voz sumiu assim que viu que uma garota estava sentada atrás

dele no cobertor. Ele não estava cantando para voltar para Charlie. Ele a

estava substituindo... no seu próprio piquenique.

— Darwin, shhhh — Allie implorou. — Alguém pode ouvir você.

— Quem? Todo mundo está no café da manhã.

— Nem todo mundo — disse Charlie secamente.

Darwin engoliu seco, e seu rosto atravessou mágoa, confusão e culpa

antes de aterrissar em triunfo. Ele já tinha partido para outra.

Por um momento, o único som no jardim era o copo efervescente de

champanhe e extrato de romã em cima do cobertor, a mistura favorita de



103

Darwin para o café da manhã. O silêncio doía mais do que uma espinha,

mas Charlie não conseguia criar coragem de espremê-lo.

Os olhos de Allie J passavam rapidamente de um para o outro, como

se tentando decifrar uma daquelas imagens de ilusão de ótica que, depois

de você olhar por muito tempo, revelam uma imagem escondida. Ou, nesse

caso, uma imagem clara.

— O que você está fazendo aqui? — Darwin abraçou seu violão como

se fosse seu melhor e único amigo.

— Eu moro aqui — Charlie retrucou. Ela nunca achou que ele fosse o

tipo de homem que iria tentar deixá-la com ciúmes.

— Vocês se conhecem? — Allie J perguntou. A pinta dela parecia tersumido, mas Charlie não tinha certeza. A ansiedade normalmente

embaraçava a sua vista.

— Essa é a ex — Darwin explicou, com um traço de vergonha na voz.

Ouvi-lo dizer aquelas palavras fez o fim dolorosamente real, de um

jeito não-tem-mais-volta. Ela nem mesmo era mais a ex dele. Era só a ex ,

esvaziada de qualquer significado pessoal.

— Brown-nose? — Allie J pareceu verdadeiramente chocada. —

Darwin, era por ela que você estava tão tris... Ela parou e mudou de rumo.

— Você namorou com ela ?

— Por que isso é tão surpreendente? — Charlie perguntou

asperamente.

— E daí? — Darwin começou a embalar as coisas não comidas. —

Acabou.

— Claramente — a voz de Charlie tremeu.

— O que você queria que ele fizesse? — Allie J se intrometeu. —

Sofresse? Ficasse sentado lamentando enquanto você segue com a sua

vida? — Sua voz começou a tremer também, como se uma ferida recente

estivesse falando com ela.

Queria! Charlie queria responder. Darwin deveria estar de luto, do

mesmo jeito que ela estava, com o coração criogenicamente congelado no

momento em que se partiu, esperando Charlie voltar para poder derreter.



104

Claro que ele não fazia ideia de que ela tinha feito aquilo para, no fim das

contas, mantê-los juntos. Mas a história deles não deveria assegurar um

futuro, mesmo se o presente fosse uma droga? Sentimento não se liga e

desliga como se fosse um aPod, nem se transfere como milhas de cartão de

fidelidade de empresa aérea — nem mesmo quando o upgrade para

primeira classe vem na forma de Allie J.

— Ela está certa. — Darwin ficou do lado de Allie J. — Você que me

largou. Por Skype!

— Talvez ela não estivesse tão a fim de você? — Allie J brincou.

Ninguém riu.

Duas codornas correram pelo jardim, como um casal atordoado noprimeiro encontro. Charlie queria que Darwin juntasse as peças. A súbita

saída da sua mãe. A proibição dos meninos. Sua matrícula repentina. Mas

ele só ficou parado lá, olhando para Allie J como se ela fosse um filtro Brita

— que pega as coisas negativas e despeja pureza e arco-íris.

— Melhor eu ir para a aula. — Darwin se levantou.

— Eu também. — Os olhos de Charlie se encheram de nuvens com

100 por cento de chance de chuva. Ela deu as costas e correu para dentro

da Jackie O sem mais uma palavra.

Só restava uma coisa a dizer. Mas não para Allie J ou Darwin.

Para Shira.

Depois que a primeira lágrima caiu, Charlie pegou seu aPod e digitou

um nome. No fim das contas, delatar era mais fácil do que ela tinha

imaginado.



105

11 TEATRO DE DIONÍSIO

AFIANDO: PARA DANÇARINAS


10:11

Skye alongava os tendões da perna enquanto olhava para a sublime

caixa de vidro na sua frente. O estúdio de dança tinha janelas onde devia

ter espelhos e um piso de vidro em vez de cerejeira brilhante. Uma menina

com cabelo ondulado strawberry blond caminhava passo a passo com Skye

e se encaminhou energicamente para o elevador, mas Skye ficou parada lá

fora por mais um momento. Arrumando suas mangas arrastão lilás, ela

girou seu rosto na direção do sol. O ar cheirava a madressilva e a grandes

promessas.

— Me espera! — uma garota com duas tranças grossas entrelaçadas

com fita dourada chamou por trás de Skye. Skye lembrou ter feito pouco

daquele acessório quando estava fazendo compras virtualmente. Grande

erro. Aquelas fitas tinham potencial!

— Gostei das suas mangas — falou Fita dourada quando elas

entraram no elevador de vidro. Seu sorriso branco esculpia covinhas nas

suas bochechas.

— Obrigada. — Skye sorriu radiante, esquecendo totalmente a sua

inveja do acessório dela. — Elas são meio que a minha assinatura.



106

— Muito inspirado. — A garota passou o dedo bronzeado na costura

como se estivesse fazendo carinho em uma lagarta peluda. — Eu sou

Ophelia. Eu moro na Angelina Jolie.

Skye se apresentou enquanto o elevador, com um pequeno

solavanco, disparou com elas para o último andar. Elas riam nervosamente

enquanto o campus ficava cada vez menor lá embaixo. Lá de cima, Skye

podia ver o contorno da ilha em forma de @, os trilhos de bonde que a

cercavam, os edifícios de vidro e aço que cresciam no meio da folhagem

tropical lá embaixo e o Deserto de Mojave ao longe.

Quando chegaram lá em cima, cinco outras garotas em várias

interpretações do uniforme, todas sem graça nenhuma, estavamespalhadas pelo estúdio de vidro. Skye deu um sorriso. Pessoas que se

vestiam de maneira simples eram pessoas simples. E pessoas simples não

tinham paixões. E dançarinas sem paixão eram como escritores sem ideia

ou atores sem questionamentos.

Ameaça Tríplice se alongava na barra.

— Teve notícia dos garotos? — ela cochichou.

— Tive — Skye respondeu com falsa modéstia, puxando seu

tornozelo na direção do bumbum. Não que ela precisasse de aquecimento.

Ela tinha nascido quente.

Tríplice aprovou balançando a cabeça.

— Mel me mandou uma mensagem, mas Renee disse que eu devia

esperar pelo menos cento e trinta e nove minutos antes de responder.

— Cento e trinta e nove minutos? — Skye repetiu.

— É quanto duram três episódios — Tríplice explicou, re-amarrando

sua sapatilha. — Tem a ver com suspense e drama. Aparentemente arcos

de três episódios sempre deixam as pessoas querendo mais.

Uma onda de mau humor percorreu a espinha de Skye. Quem tinha

morrido e elegido Renee a encantadora de garotos?

Ameaça Tríplice se deixou cair graciosamente sobre suas pernas.

— Sorte sua que Mimi ainda não está aqui.



107

— Ela se inclinou para o lado e segurou seu calcanhar. — Você está

atrasada.

— E você é uma chata — Skye revidou apressadamente, apesar de a

réplica não ter sido das suas melhores.

— Você só vai ficar aí parada arrumando suas mangas? — Tríplice

projetou o quadril.

As outras, iluminadas em contraluz pelo sol resplandecente, riram

com várias partes do corpo.

— Você só vai ficar aí parada arrumando brigas? — Skye contra-

atacou.

— Silêncio! — uma mulher majestosa repreendeu. Sua pele cor decaramelo era tão perfeita que parecia pintada com aerógrafo. Com uma

graça felina ela caminhou para a frente do estúdio, o resultado bem

torneado de décadas de dança ondulava embaixo do seu vestido de Lycra

cor de bronze. — Se vocês quiserem brigar na minha aula, eu sou

totalmente a favor. Mas usem seus corpos, não suas bocas. Eu nunca mais

quero ouvir o que vocês têm a dizer. Eu só quero ver.

Tríplice abaixou a perna da barra e fez um plié em respeito.

Skye ficou parada com a coluna ainda mais ereta. Um momento de

autodesprezo apertou que nem uma sapatilha de ponta. Aquela lenda sem

sobrenome tinha sido o ídolo da sua mãe por anos.

— Tenho certeza de que vocês perceberam que aqui não é um estúdio

de dança qualquer. — Todo mundo balançou a cabeça de acordo. — Vocês

podem ser vistas de todo o campus. — Ela gesticulou para as paredes-

janelas. — Se você errar um passo, todo mundo vê. Como no palco.

Entenderam? — Ela levantou a palma da mão e a sacudiu.

As garotas adotaram a primeira posição.

— Agora me mostrem por que Shira escolheu vocês. Música! — Mimi

ordenou. — Instrumental. Tom menor. Com uma linha de baixo forte. — As

caixas de som escondidas da sala responderam ao seu comando de voz.

Uma batida de hiphop ressoava vindo do chão. — Primeiro observem. Ah-

cinco-ah-seis-ah-sete... oito. — Mimi desabrochou como uma flor



108

demonstrando a intrincada coreografia feita de soutenus , stag leaps ,

e pencil turns . Skye decorou todos os passos, deixando espaço para alguns

dos seus próprios truques. Desafio? Sim. Desafio demais? Nunca.

— Sem mim desta vez — ela falou com a voz ofegante. — Voltar

música para a deixa! Ah-cinco-ah-seis-ah-sete... oito.

Skye se esqueceu das outras e reproduziu todos os soutenus , stag

leaps , e pencil turns com uma precisão admirável. Depois ela acrescentou

alguns temperos, uns movimentos de snap e outras variações. Ela não

precisava de espelho para saber que estava mandando muito bem. A

multidão que se juntava atrás do estúdio era toda a reafirmação de que

precisava.Mimi caminhou por entre as dançarinas e parou do lado de Skye, que

estendeu seus braços mais ainda, pronta para receber os elogios da

instrutora.

— Corta a música! — Mimi gritou, retomando o seu lugar na frente

do estúdio. — Playback de Skye.

Ao comando de Mimi, o holograma de Skye apareceu, com seu

sorriso de confiança digital. Todas as garotas soltaram uaus, perplexas com

a projeção. Skye colocou seus pés na primeira posição. Era um pouquinho

cedo para ser escalada como o exemplo a seguir, mas não era nem um

pouquinho surpreendente. Olhares de inveja a esquentaram como se

fossem um canhão refletor.

— Música. Dança. — A falsa Skye se lançou na coreografia e os olhos

da Skye de verdade se arregalaram estupefatos. Então era por isso que não

havia espelhos. Por que se contentar com 2-D quando você podia assistir a

seu holograma executar um piqué perfeito em todas as dimensões possíveis?

Skye deu um gritinho de alegria. Sua coreografia tinha sido ainda

mais impressionante do que ela tinha pensado. Terminar seu drop-and-

recover com um head snap foi brilhante. Engraçado como o dramático

podia ficar primoroso com umas simples mexidinhas.



109

Quando a Skye virtual desapareceu, Mimi cruzou seus braços ágeis

por sobre seu peito espigado como o de um pombo. — Opiniões? Ophelia,

por favor comece.

— Um bom turnout ? — Ela puxava nervosamente uma das suas

tranças.

— Sim. No geral, a forma dela é decente.

Decente? Decente era como o seu pai descrevia a milhagem do seu

novo Audi.

— E que tal seu estilo? — Mimi encarou suas alunas. — Andrea?

Tríplice se arrepiou ao ouvir seu nome real. — Barato.

Algumas das garotas riram. — Eu estava me referindo ao seu estilo de dançar .

Mais risos.

— Que é maravilhoso...

Skye sorriu radiante.

— ...se ela estiver dançando para uma multidão de turistas na

estação de metrô da Times Square, ou talvez para moradores altamente

empolgáveis de um asilo de idosos. Mas extremamente inapropriado para

uma profissional contratada para executar uma coreografia com perfeição.

A humilhação formigava queimando a pele de Skye, e ninguém ousou

rir desta vez. — Eu só estava tentando ...

— O quê? — Mimi berrou, deixando escapar um leve traço do seu

sotaque de leste europeu. — Nos distrair com suas polainas de pulso

chamativas?

— Distrair? — Skye começou a sentir os ouvidos zumbirem. Ela se

sentiu como se estivesse encolhendo mais do que seu holograma que

desaparecia. Se ao menos...

— Você está aqui para dançar, não para brincar de se fantasiar,

então tire essas mangas. — A voz de Mimi assumiu um tom áspero. — Além

disso, elas são uma violação do código de uniformes.



110

Tirar as mangas! As palavras ricochetearam pelo corpo de Skye e

apunhalaram seu coração. Lutando contra as lágrimas, ela as despiu

lentamente. Sentia seus braços nus e expostos. Sua identidade roubada.

Mimi estendeu a mão como um professor que odeia chicletes na sala.

Skye largou as mangas com muita tristeza.

— Vamos de novo. Sigam a coreografia, não os seus impulsos.

Música! Ah-cinco-ah-seis-ah-sete... oito.

Skye começou, mas ela conseguia se sentir uma fração de segundo

atrás de todas as outras. Uma imagem de Rorschach feita de suor se

espalhou embaixo dos seus braços.

Com um suspiro exasperado, Mimi parou a música de novo. — Achoque não eram as mangas que estavam atrapalhando.

Os lábios de Skye começaram a repuxar. Por que Mimi estava

pegando no pé dela ?

— Sem mau humor. Não pensem. Siiiiiiintam. Continuem

dançando... Andrea, linhas promissoras. Suavize o rosto... Prue, mais

quadril, menos boca... Ophelia, coluna neutra... Menos bun-da, Lacey! Na

verdade, todas vocês se beneficiariam com menos bunda. Não consigo ver

os músculos de vocês com tanta carne. — Mimi fez uma reverência,

arremessou uma bolsa dourada sobre o ombro, e saiu sem dizer nada. —

Pratiquem por conta de vocês, garotas. Se vocês precisarem trabalhar

durante o almoço, que seja.

Pelos primeiros poucos segundos, ninguém falou. Uma professora de

dança explosiva, nada de almoço, e a possibilidade de serem gordas era

coisa demais para processar.

Finalmente, Ophelia quebrou o silêncio. Ela pegou uma polaina,

mostrou para Skye, e cochichou:

— Podia ter sido eu.

Skye sorriu agradecida e depois percebeu suas mangas penduradas

em cima da barra. Sem vida e vazias, elas pareciam macacos de meia

anoréxicos.



111

— O almoço vai começar em cinco minutos — a britânica anunciou

nas caixas de som no teto.

— Melhor a gente ir, Tríplice — Skye disse olhando para o campus lá

embaixo, cheio de alfas a caminho do Pavilhão.

— Ir para onde? — Tríplice soltou seu coque. Seu cabelo caiu como

uma cortina de veludo.

— Para o spa — Skye falou num tom de dãaaaaa. — As Jackie Os

estão marcadas para fazer tratamentos de boas-vindas hoje ao meio-dia,

alôoooooo? — Ela se inclinou para a frente e sussurrou: — Nosso almoço

vai ser servido lá, lembra? — Skye piscou, feliz com a sorte delas, mas

Tríplice ainda parecia confusa. — Thalia contou para a gente sobre essamudança no café da manhã.

— Ah, foi. — Os olhos castanho-claros de Tríplice oscilaram como

uma lâmpada com mau contato. Depois ela deu de ombros. — Bom.

— Quê que cê quer dizer?

— A gente obviamente não pode ir. — Ela jogou os braços de lado

como se estivesse prestes a dar um plié . — Olha em volta. Está todo mundo

ensaiando. — Tríplice colocou a mão de volta no quadril. — E parece que

você precisa de todo ensaio que você conseguir.

— Ao contrário. Eu dei até mais do que o necessário. — Skye apertou

seus olhos turquesa.

— Você pode liderar a coreografia, Ameaça Tríplice? — Prue pediu lá

do outro lado da sala. As garotas estavam formando uma linha. Tudo o que

precisavam era de uma líder. As outras aprovaram balançando as cabeças.

Toda essa aprovação era familiar. Costumava pertencer a Skye.

Aquilo era mais doloroso do que tendinite.

— Eu vou nessa. — Skye girou sobre seu calcanhar.

— Para onde você vai? — Ophelia chamou do seu lugar na fila.

— Para o spa .

— E o ensaio? — perguntou Lacey, com sua cabeça gigante e seu

corpinho pequeno ela lembrava o Piu-Piu.



112

— Eu vou relaxar no spa , em vez de ensaiar. A gente provavelmente

ainda está um pouco entrevada por causa dos voos de ontem.

Ophelia, Lacey e Sadie trocaram olhares.

Skye olhou de soslaio e percebeu o potencial interesse delas. —

Querem vir comigo?

— Elas não podem! — Tríplice gritou.

— Por quê? — Skye manteve a tranquilidade. — Ninguém vai ficar

sabendo que elas foram.

As garotas balançaram as cabeças entusiasticamente.

— Mimi vai! — Prue assegurou.

— Você vai contar para ela? — Ophelia se intrometeu. — Não. Eu não faria isso. Mas ela vai descobrir.

— Ei. — Piu-Piu deu um salto no ar. — A gente não deveria estar

brigando com o nosso corpo?

Skye e Ophelia caíram na gargalhada.

— Eu tô dentro — Ophelia anunciou.

— Eu também — piou Piu-Piu, aterrissando.

— Vocês estão arriscando muito — Tríplice avisou.

— Você dança e a gente arrisca. — Skye sorriu maliciosamente.

Ophelia e Piu-Piu pegaram suas bolsas e seguiram Skye para fora do

estúdio. Elas ainda não estavam copiando os movimentos dela — mas pelo

menos já estavam seguindo.



113

12

COSTA NORTE

NARCISO DAY SPA


11:47

— Todos os aPods precisam ser desligados durante sua estadia

no spa . Namastê — uma gravação da voz de Bee falou quando sua filha

entrou na sala de espera. Como sempre, Charlie fez o que a sua mãe pediu

e desligou.

— Obrigada — a gravação disse.

Esperando pelas outras, Charlie sentou no meio de uma réplica da

Grande Barreira de Corais australiana, se sentindo mais por baixo do que

as camadas de corais embaixo das suas sandálias gladiador.

Nudibrânquios, anêmonas-do-mar, peixes palhaço, tartarugas marinhas e

centenas de outras criaturas de cores psicodélicas moravam embaixo dochão de vidro e por trás das paredes. O som das ondas marulhando em

volta de Charlie a deixava enjoada. O ar com cheiro de coco também não

ajudava a assentar o seu estômago irritado. Ela não conseguia se livrar das

velhas lembranças de Darwin na praia que se misturavam às novas dele

com Allie J. Amnésia era a única cura.

De repente seu aPod tocou. Estranho. Ela jurava que tinha desligado.

SHIRA: TIC... TAC... TIC... É QUASE MEIO-DIA!



114

Charlie relembrou o momento em que digitou o nome de Allie J no

seu aPod naquela manhã mais cedo, mas não apertou o send . Ela se

perguntava por quê, mas sabia que não tinha nada que ver com ética. E daí

que ela ia delatar um pouquinho. Grande coisa. Se isso significava ajudar

Shira a acabar o namoro de Darwin e Allie J, valeria totalmente a pena.

Mas e se não fosse? E se Shira estivesse contente com o fato de eles

formarem um casal? E se ela aprovasse? Isso ia arder mais do que a água-

viva do outro lado do vidro.

E Charlie já estava sofrendo suficiente.

Segurando suas pulseiras, ela abaixou a cabeça entre as pernas e

suspirou. Como ele podia substituí-la tão rapidamente? Um caranguejo corde areia fixou seus olhos pretos e lustrosos nela, como se para dizer que

tinha entendido. Shira provavelmente também o tinha separado de alguém

especial.


no spa . Namastê. — A voz de Bee soou de novo.

— Ah, olha quem está aqui....

Charlie não teve que desviar do chão de mar e olhar para cima para

saber que a voz pertencia a Allie J.

— Se você está fazendo teste para o personagem Garota Malvada

Número Um, você conseguiu o papel — Charlie disse, encontrando os olhos

de Allie J. A pele dourada de sol de Allie J brilhava ainda mais do que o

normal.

Aquele era o brilho provocado por Darwin em Charlie .

— E você parece ter agarrado o papel de Grande Mentirosa — Allie J

atirou de volta. — Por que você mentiria sobre conhecer os garotos Brazille?

— ela perguntou, com uma combinação de raiva e admiração na sua voz.

Mas antes que Charlie pudesse responder, a voz de Bee se infiltrou

nas caixas de som invisíveis.


no spa . Namastê.



115

— Ahmeudeus! — alguém falou do lado de fora do spa . — A gente

está mesmo embaixo da água?

Risinhos cheios de admiração seguiram, e então Skye entrou com

duas garotas — claramente dançarinas. Quem mais ia andar igual a um

pato com dor nas costas?


no spa . Namastê. — Até a gravação de Bee estava começando a parecer

cansada quando repetiu aquilo pela quarta vez.

Renee apareceu em seguida, com seu cabelo rosa penteado em

proporções novelescas.

Depois de uma rodada de apresentações e um monte de “Eu amosuas músicas”, as garotas olharam em volta do spa com ohhhhs e ahhhs.

Charlie se sentia em uma bolha de satisfação por já ter visto antes o que as

outras estavam experimentando agora. Mas um segundo olhar para as

garotas vendo o spa pela primeira vez causou nela uma pontada de inveja

por não poder compartilhar aquele momento. Aquilo era mais uma coisa

que a separava das outras.

— Esse lugar não é incrível? — Ophelia tocou na parede, assustando

um espinhento peixe leão em um meia-volta-volver frenético.

— É como se a gente estivesse dentro de um aquário.

— Na verdade, é a Grande Barreira de Corais — Charlie murmurou

sem entonação.

— Conheçam Charlie Brown-nose. — Skye mudou seus pés da

primeira para a terceira posição. — Ela decorou o guia da Academia Alfa.

— Essa não é a única razão para ela saber de tudo. — Allie J pegou

uma porção de bolinhas de proteína do bar do spa e jogou na sua boca.

Charlie ficou dura. Não conta para elas... não conta para elas... não

conta para elas....

— A-ha! — Renee apontou para Charlie como um detetive de TV que

pegou seu criminoso no flagra. — Eu sabia que tinha mais coisa aí.

O som das ondas ficou mais forte.



116

— Por favor, retirem seus uniformes e se preparem para entrar nas

suas cadeiras de spa — disse a voz de Bee.

Então, tubos de lona brancos se abaixaram do teto e cobriram cada

garota, enquanto elas se despiam. O timing era perfeito. A cobertura deu

uma chance para as lágrimas de Charlie caírem sem serem detectadas. De

repente a frente do tubo se abriu, deixando cada garota embarcar na mesa

transportadora com privacidade.

— Deite-se de barriga para baixo com o rosto no suporte — Bee

explicou — , e se prepare para ser renovada dos pés à cabeça.

— Estou com saudade, mãe — Charlie sussurrou enquanto se

agitava embaixo dos cobertores aquecidos e se instalava na mesaacolchoada. Os tubos foram levantados, revelando uma esteira rolante que

rebocava as mesas de massagem como vagões de trem. As luzes

diminuíram, os peixes brilharam e as garotas começaram a se mover

através dos arrecifes.

— Então, adivinha quem era a namorada do Darwin? — Allie J

resmungou gritando através do buraco onde seu rosto se encaixava.

— Allie J, para! — Charlie levantou sua cabeça, mas uma macia mão

eletrônica a empurrou para baixo de novo e começou a massagear seus

ombros. O que normalmente seria relaxante, virou uma camisa de força

com cheiro de lavanda.

— Quem? — Skye perguntou lá de trás do trem da massagem.

— Brown-nose! — Allie J conseguiu falar apesar das pedras quentes

em brasa que estavam sendo colocadas na sua espinha.

— A-ha! — Renee pulou, derrubando uma pedra no chão. — Isso

explica tudo !

— O quê? — Charlie berrou, se sentindo na defensiva. — O que é que

isso explica?

— Explica como você entrou para a Academia — Allie J insistiu.

Charlie sentiu um desamparo por dentro ao ver seu segredo vazar

que nem o jato pulsante de óleo quente batendo nas costas delas.



117

— Isso explica por que Darwin está tão feliz em estar solteiro — Skye

gritou por cima da vibração do massageador de cabeças.

— E-e-el-le dis-s-s-e isso? — Charlie perguntou rispidamente, com a

voz tremendo por causa do massageador na cabeça. Ou por causa da

notícia?

— Ele nem precisou — Skye insistiu. — Era óbvio pelo jeito que ele

olhava para Allie J.

Subitamente as cadeiras viraram ao contrário. Jatos de vapor abriam

os poros dos rostos das garotas enquanto uma esponja vegetal esfoliava

seus corpos.

— Ahhhhhhh! — as garotas gritaram, meio que rindo.Allie J deu uma gargalhada quando o esfoliador foi até os pés delas.

— Aiiiii, isso faz cócegas. — Ela riu um pouco mais. — Você acha que isso é

higiênico?

— Vocês estão todas erradas — Renee afirmou quando o esfoliador

parou para mudar de lado. — Isso explica por que quase fomos pegas

visitando os garotos ontem à noite!

— Vocês visitaram os garotos? — Ophelia gritou lá de trás.

— Os garotos Brazille? — Lacey ecoou.

— Como é que eu e Darwin tem alguma coisa a ver com vocês quase

serem pegas? — Charlie pressionou.

O esfoliador abaixou de novo, esfregando e retirando suas peles

mortas. Os risos e gritinhos recomeçaram quando as esponjas

zzzzzzzzzzzzzuniam sobre seus corpos.

— Porque você contou para Shira que a gente fugiu. Foi por isso que

ela mandou o aviso! — Renee declarou em voz alta. — Eu já fiz tramas de

espionagem o suficiente para reconhecer um traidor.

Como um saquinho de chá na água quente, a acusação levou um

minuto para ganhar seu sabor. Mas em vez de sentir a dor aguda das

lágrimas, ela sentiu uma onda de poder.

De dentro da segurança do seu tubo branco de vestir, ela alcançou

seu aPod e mandou o nome para Shira. Sua escolha era clara.



118

SHIRA: NÃO FOI TÃO DIFÍCIL, FOI?

Charlie: De jeito nenhum.

SHIRA: DA PRÓXIMA VEZ, NÃO ATRASE.

Charlie quase derrubou seu aPod. Próxima vez?



119

13

COSTA NORTE

A FLORESTA


14:15

Allie andou na ponta dos pés através do caminho sujo (eca!) e parou

do lado da árvore monstruosa no final. Ali no lado norte da ilha o ar era

espesso e úmido e cheirava a terra, folhas e casca de árvore. Lembranças

do Rainforest Cafe — ou melhor, do hambúrguer, da batata frita e da

sobremesa chamada vulcão flamejante — fizeram seu estômago roncar.

Lembranças de Fletcher pedindo duas colheres para o garçom fizeram seu

coração doer.

Da base da árvore com o tronco grosso, Allie checou sua grade de

horários pela terceira vez. Nada tinha mudado. Afiando: Para Escritores

acontecia na Fuselagem. E o Alfa Positioning System, também conhecidocomo APS, do seu aPod estava piscando. Aparentemente ela estava lá.

Sem ver outra opção, Allie começou a subir a escada em espiral que

tinha sido esculpida no tronco da árvore, rezando a cada passo para os

fungos não se hipermultiplicarem na umidade e se enraizarem entre os

dedos dos seus pés.

Quando ela chegou perto do topo, começou a ouvir vozes. Parou no

que parecia ser o octogésimo degrau e rapidamente esterilizou seus pés

com álcool gel. A pedicure-robô, com toda aquela esfoliação e raspagem,



120

tinha removido todos os escudos antibactéria que ela tinha formado,

deixando-a mais vulnerável do que nunca. E ela estava farta de se sentir

vulnerável.

A escada terminava em um deck tipo casa na árvore com uma rede,

um telescópio e vários sofás verde-esmeralda. Presa ao deck havia uma

fuselagem — um Boeing 747 prateado que tinha sido convertido em uma

sala de aula moderna. VOE ALTO estava escrito em uma letra de purpurina

prateada.

Oito assentos de aviões tinham sido arrumados em um círculo no

centro da cabine de passageiros. Três deles estavam desocupados; garotas

puxando mesinhas de bandejas preenchiam os outros. Depois que foramdesdobradas, Allie percebeu que as “mesinhas para bandeja” eram na

verdade tablets digitalizadores futurísticos, com suas telas cinza esperando

avidamente por toques de gênios. O chão era coberto de grama, e as janelas

tinham sido removidas para permitir uma brisa quentinha circular como

cochicho de fofoca.

— Que lugar é esse?

— Maneiro, não é? — respondeu uma garota de voz rouca. Ela tinha

cabelo escuro, unhas escuras, um piercing de safira no nariz e uma boca

carnuda confeitada com batom vermelho fosco.

Alguma coisa piscou no canto do seu olho. Allie rapidamente

reivindicou o assento vazio do lado de Voz Rouca, temendo uma decolagem

espontânea.

Uma cena 3-D de uma floresta no inverno preencheu a cabine.

Todo mundo soltou ooooohs de admiração.

Depois, a imagem se transformou em uma festa do chá colorida com

um bolinho que dizia me coma . Allie ficou tentada a realmente fazer isso, já

que tinha metabolizado seu almoço vegetariano durante a subida na árvore.

Estendeu a mão para pegá-lo, mas um refeitório resplandecente com

candelabros flutuantes substituíram o carboidrato virtual, que rapidamente

virou uma porta de armário que abriu para um campo.

— Genial! — Rouca aplaudiu. Ela tinha cheiro de café preto.



121

— O que foi isso? — Allie perguntou, desejando ter alguma coisa

mais significativa para acrescentar.

— A Floresta de Sherwood, de Robin Hood . A festa do chá, de Alice no

País das Maravilhas . O salão principal de Hogwarts. O armário de Nárnia...

— Ah, sim — Allie disse vagamente. — Amei esses filmes.

— Filmes? — A garota se reclinou na cadeira com menosprezo. — Por

favor me diga que você está brincando.

— Por que eu estaria brincando? — Allie perguntou. — São ótimos.

Outro dia mesmo eu assisti...

— Assistiu ? — gritou. Sua voz soou como um zíper se abrindo. —

Essas cenas são de romances. — Ela suspirou rispidamente. — Não foramfeitas para serem assistidas. Por que não pedir para Hollywood mastigar a

sua comida para você também? Ou bombear seu sangue? Ou escalar seus

amigos como em um reality da MTV...

— Chega, Hannah — uma mulher com uma franja curta e desigual e

um penteado repicado na altura do queixo disse com firmeza. Seus olhos

azuis apertados não tinham maquiagem, mas eram cheios de fogo. — Você

pode criticar o que ela escreve, mas não seu estilo de vida. A inspiração

está em todos os lugares a nossa volta. Não deixe o cérebro limitar a mente.

— Desculpa — falou Hannah para a professora e depois estendeu

sua mão rechonchuda para Allie. — Eu sou Hannah.

— Ei. — Allie apertou a mão dela e imediatamente esterilizou a sua

com álcool gel.

— Melhor. E eu sou Keifer Lutz. — Keifer colocou um dedal em forma

de unha no seu dedo indicador e rabiscou no ar. Seu nome apareceu em

letras 3-D no quadro-negro gigante de LCD na frente da cabine. — Eu estou

aqui para tirar a poeira dos seus talentos e fazer vocês brilharem. — Ela

começou a distribuir dedais. — E vocês estão aqui para mergulharem

dentro dos seus corações e revelarem seu verdadeiro “eu”. É como colocar

uma meia que está do avesso, você precisa cavar fundo e puxar lá de

dentro.



122

Allie sentiu um frio no estômago. Ela se sentia como uma meia, era

verdade — suja, pisada e cheia de buracos. Ela imediatamente pegou seu

aPod e escaneou a professora.

NOME: KEIFER LUTZ. SE TORNOU UM FENÔMENO DO

MERCADO EDITORIAL COM VINTE E POUCOS ANOS COM SEU

PRIMEIRO ROMANCE, . SENDO COMPARADA A J. D. SALINGER,

HARPER LEE, E TRUMAN CAPOTE, ELA PROVOU QUE UMA

LITERATURA JOVEM PODE SER RELEVANTE, SURPREENDENTE E

BELA. PASSOU OS ÚLTIMOS NOVE ANOS EM PARIS ESCREVENDO

DEZENOVE INTERNACIONAIS E OS TRADUZINDO ELA MESMA PARASEIS LÍNGUAS. PLANEJA APRENDER SÂNSCRITO, HEBRAICO E

CANTONÊS DURANTE A SUA ESTADIA NA ACADEMIA. NO MOMENTO

ESTÁ TRABALHANDO EM UM LIVRO SOBRE LÍDERES POLÍTICOS

QUE FRACASSARAM E AS MULHERES QUE OS AMAVAM.

Até agora, representar Allie J tinha sido fácil. Era só citar uma ou

outra letra de música, disfarçar sua beleza natural e sobreviver sem

sapatos. Mas com certeza uma escritora de verdade seria capaz de

ver impostor escrito em letras garrafais nas entrelinhas da sua primeira

redação. E quando Keifer descobrisse que Allie não fazia ideia de como

escrever em um idioma, imagina seis, ela ia ser desmascarada!

Charlie entrou se arrastando na sala de aula e pegou o último

assento. A suas bochechas ainda estavam vermelhas por causa do spa . Ela

se sentou na frente de Allie e deu um sorriso forçado.

— O que é que você esta fazendo aqui? — Allie sussurrou enquanto

Keifer ajudava uma garota de cachinhos que lutava para tirar seu tablet de

dentro do braço da poltrona.

Charlie deu de ombros.

— Está na minha grade de horários. Eu ainda não tenho uma

especialidade.



123

— Tem, sim — ela sussurrou alto o suficiente para Hannah ouvir. —

Encher minha paciência.

Hannah revirou seus olhos sem nenhum senso de humor. Charlie

baixou a cabeça, sua franja longa escondendo sua tristeza como um toldo.

Allie imaginou seu paquera alfa — cabelo dourado do sol, olhos

castanhos, a pinta em cima da boca... Como Charlie tinha conseguido ficou

com ele? Do mesmo jeito que Trina conseguiu ficar com Fletcher? Foi por

causa de... talento? Hummm. Talvez, assim como cegos afiavam seus

outros quatro sentidos para sobreviver, as meninas sem graça

desenvolvessem outras habilidades não relacionadas a beleza para atrair

garotos. Mas qual seria a de Charlie?Allie pegou uma mecha de cabelos por cima do ombro pra checar

pontas duplas (nenhuma) e percorreu os dedos pela pele lisinha do seu

rosto procurando espinhas (também nenhuma), se fazendo lembrar que

vivendo como Allie J, ela era o pacote completo — beleza e cérebro. Seus

dias de ser pisada por qualquer idiota já eram.

Um garoto de ombros largos eclipsou a larga faixa de luz que jorrava

pela porta. Seu rosto estava em silhueta, mas era inconfundível.

— Darwin? — Allie J se ouviu dizer.

Charlie seguiu o olhar de Allie até a porta. Ela engoliu seco, como se

forçando de volta aquela vontade de vomitar que dá quando seu ex-

namorado aparece sem você esperar.

— Bem-vindo — Keifer disse, ignorando os barulhos que as garotas

faziam nas cadeiras de avião ao se remexer nervosamente nos seus

poleiros. — Por favor, coloque a camisa para dentro e depois sente-se ao

lado de Allie J.

Allie estava radiante como quem ganhou uma rifa.

— Você é Allie J ? — Hannah sussurrou. — Uau! Ei, eu não quis ser

chata com aquela coisa toda sobre os filmes. Escrever músicas e escrever

romances são coisas totalmente diferentes e...

— Tranquilo. Sem problemas — Allie resmungou enquanto Darwin

passava pela cadeira de Charlie. Ele passou um pouquinho só mais



124

devagar, como se puxado por um campo de força invisível. Allie rezava para

essa força ser alimentada por aquele tipo de sentimento que faz você nunca

mais querer voltar com aquela pessoa.

Finalmente Darwin se instalou no assento vago do lado de Allie. Os

olhos dele se espremeram em um olá.

— Todo mundo está aqui, então vamos começar. — Keifer se colocou

no centro do círculo, com a franja mais torta do que os peitos da Tori

Spelling. — Duas regras. Primeira: ninguém levanta a mão na minha aula.

Ou eu chamo você ou você fala diretamente. Regra número dois: me

chamem de Keifer. Regra número três: sem paquera.

Mais garotas riram sem graça. Charlie olhou fixamente para o chãode grama.

— Parece ótimo, Keifer — Hannah falou sem pensar muito.

Allie e Darwin trocaram olhares. Ela sentiu uma descarga elétrica de

cima até seus pés enlameados.

Keifer sorriu para a sua nova favorita e depois apertou um botão no

seu aPod. O teto recolheu, abrindo espaço para o céu claro riscado de

nuvens:

— A Fuselagem é um símbolo da jornada que está por vir: Não há

limite para onde sua imaginação pode voar.

As garotas levantaram os olhos e observaram as infinitas

possibilidades. Allie viu principalmente um monte de céu azul.

— Faulkner, Dickens, Angelou, Rowling, eu... Vocês têm o potencial

para serem tão boas quanto esses mestres. E sabem por quê?

Hannah levantou a mão. Keifer balançou sua cabeça em

desaprovação.

— Porque vocês estão partindo do mesmo lugar. — Ela tocou no

coração com uma mão e apontou para os tablets com a outra. — A

necessidade de se expressar e uma página em branco.

De repente, Allie foi sobrecarregada de inspiração. Ela tinha sofrido

mais do que qualquer um desses pseudoescritores e tinha vivido mais

tristeza no último mês do que eles fizeram na vida inteira. Por que então



125

não dividia isso com o mundo? Dando para as pessoas coisas reais com as

quais elas pudessem se identificar. Alguém além da Oprah. As vísceras de

Allie deram um pulo. Sua alma estava encarando o desafio.

— Esta página é uma máquina do tempo, uma máquina de

teletransporte, uma varinha mágica. Com ela você pode criar o mundo. Dar

a vida. Tirar a vida. E ressuscitar. Mas só funciona com honestidade e

especificidade, e tudo começa aqui. — Ela sacudiu o dedo que usava o

dedal.

— Vocês têm quinze minutos. Escrevam um parágrafo sobre o que

vocês estão sentindo agora. Um aviso: não pensem demais. Ou melhor, não

pensem. Deixem seu coração escrever. Comecem.Allie gelou, a inspiração que sacudiu sua alma endurecendo que nem

molho doce e azedo velho.

Darwin abaixou a cabeça e começou a escrever. Allie tentou espiar

mas a parte de cima do seu corpo estava torcida como uma lua crescente

sobre o tablet .

Allie convocou sua tristeza. Fletcher, Trina, roubo de identidade — as

emoções voltaram a aparecer, mas pararam assim que chegaram ao seu

dedal. Elas eram sentimentos, não eram frases. Era dor, não era palavra.

Era uma carta sobre o inferno, não uma leitura de praia.

Mas espera aí! Esse parágrafo não era sobre ela. Era sobre Allie J. A

garota que se recuperava de términos como uma bola de pinball . Então

tudo o que Allie A tinha de fazer era afunilar suas palavras pelo coração de

força industrial de Allie J e...

— Abaixem os dedos.

— Tipo, séeerio? Isso foi quinze minutos? — Allie olhou em volta, mas

ninguém mais pareceu surpreso.

— Com certeza — disse Hannah radiante.

— Hannah, por que você não começa? — Keifer colocou uma camada

repicada por trás da sua orelha cheia de brincos.



126

— Claro. — Ela pigarreou e olhou em volta expressivamente para

cada um de seus colegas de sala. — Eu estou aqui porque matei uma

Menina Americana.

A classe inteira engoliu seco. A boca de Hannah se curvou em um

sorriso satisfeito e começou a ler:

— “Quando eu tinha cinco anos, eu matei minha boneca Menina

Americana”.

Todo mundo riu aliviado, menos Darwin, pois seus cromossomos Y

não permitiam que ele entendesse a santidade dos tesouros de plástico da

infância.

— “Ela veio com a história pré-fabricada de como ela tinhasobrevivido à Depressão. Eu, no entanto, achei a ideia das filas de pão

muito chata e escrevi a minha própria. Ela era a estrela da minha primeira

peça: O caso do assassinato da boneca . No fim, Barney, o dinossauro,

interpretado pelo meu relutante irmão mais novo, foi levado como culpado.

Milagrosamente, a boneca foi reavivada depois de uma cirurgia póstuma

por um médico dos Comandos em Ação. Mas o mal era irreversível. Eu

tinha sido mordida pelo mosquito da literatura e nunca mais me recuperei”.

Keifer deu um sorriso de apreciação, que deu para o resto da classe a

permissão para aplaudir.

— O momento de reconhecimento para uma jovem escritora.

Fascinante. Agora vamos assisti-la.

As imagens 3-D voltaram à parede. Desta vez elas continham os

contornos de um dinossauro, um soldado e uma boneca de cabeça grande.

— Shira criou o software Dando-Vida-Às-Palavras — Keifer explicou.

— Este programa nos permite assistir às suas histórias e ajudar a ver onde

vocês precisam de mais detalhe.

— Agora, me diga o que tem de errado nesta imagem.

Os lábios de Hannah ressaltaram e tremeram um pouco.

Uma garota com um cabelo curto e peitos enormes falou.

Allie a escaneou a rapidamente.



127

NOME: YARA NEGRON, CASA MICHELLE OBAMA. GOSTA:

SHAKESPEARE, GÍRIAS BRITÂNICAS E ESCREVER MUSICAIS. NÃO

GOSTA: LHAMAS, ANGLÓFILOS E LAMBER ENVELOPES.

— Hannah não nos mostrou a cena — Yara falou. — Ela só contou

para a gente. Eu não senti como se estivesse vivendo junto com ela. Então

eu não tive nenhuma conexão com a história.

— Bridgette Wu da Heidi Klum — disse outra garota, jogando uma

trança de cabelos pretos brilhosos sobre seu ombro. — Ela esperava que a

gente trouxesse a nossa própria visão para criar o drama. Eu acho isso

irado. Muito minimalista. Lembra Dingo. — Seu irmão também é escritor? — Allie cochichou para Darwin.

Darwin riu como se ela estivesse brincando.

— Discordo — Cachinhos, também conhecida como Tatiana, disse

secamente. — Keifer queria que a gente criasse uma história. E isso não é

tarefa nossa como leitores. É tarefa dela como escritora.

— Preguiçosa! — tossiu Yara.

Tatiana riu.

Hannah baixou a cabeça.

— Concordo — Keifer anuiu. — É preguiçoso. Mas levante a cabeça,

Hannah. Você é muito boa em trazer ideias ótimas. Você não teria criado

três franquias de romances de sucesso se não fosse. É para isso que

estamos aqui. Para aprender a escrever visualmente. Você deu o esqueleto

para as pessoas. Agora é hora de enchê-las de carne e trazê-las para a vida.

Hannah rabiscou anotações “preguiçoso... levantar a cabeça...

esqueleto... carne” no seu tablet . Elas apareceram em fonte Times New

Roman. Ela reduziu o tamanho para 8 no segundo em que pegou Allie

espiando.

— Charlie, você é a próxima.

Por favor, faça ela ser um lixo, por favor, faça ela ser um lixo, por

favor, faça ela ser um lixo, Allie implorou para as nuvens lá em cima.

Paradas e serenas, elas não ofereceram garantias.



128

— “Pela primeira vez na minha vida, eu estou sozinha”. — Sua voz

estava baixa e trêmula. — “Eu ando em volta desse palácio de vidro que,

desafiando a gravidade e as legislações de uso e ocupação de solo, se ergue

e perfura o céu. A tecnologia dos barcos flutuantes, os hologramas que

parecem amigos, mas desbotam como jeans, parecem uma coisa que

inventei nos meus sonhos”. — Sua voz ficou mais forte, mais confiante. —

“Mas é tudo real, e eu estou aqui para passar por isso — sozinha. Eu estou

caminhando por um tapete vermelho sem par, cantando preces ao vento e

escrevendo uma história que ninguém vai ler. Enquanto eu ando e falo e

sento e respiro, eu quero você comigo, e os seus braços dados aos meus...”

Allie apertou seus dedos em volta do álcool gel. Será que Charlieestava querendo reatar com Darwin na frente de todas essas pessoas? Será

que ele estava caindo nessa? Ela nem ousou olhar. Ela não queria saber.

— “Mas é hora de eu fazer as coisas sozinha. A sua ausência foi o

preço dessa matrícula. Mas mesmo assim, sinto a sua falta...” — Sua voz foi

diminuindo como um carro que passa. Ela engoliu seco como se estivesse

apoiando a si mesma. — “Sinto sua falta, mãe” — Charlie terminou.

Allie suspirou. Darwin passou a mão no cabelo e se encolheu.

— Muito evocativo, Charlie — Keifer falou. — Agora vamos assistir.

As paredes ficaram em branco. Uma garota sem rosto caminhava

sozinha por um espaço nebuloso. Edifícios futurísticos se erguiam à sua

volta, fazendo-a parecer cada vez menor enquanto sua jornada continuava.

Uma figura borrada apareceu e a garota sem rosto correu atrás dela. Ela

ficou um pouco mais em foco e depois desapareceu, deixando a garota

sozinha na neblina para sempre.

— Opiniões sobre o conto de Charlotte? — Keifer sugeriu.

Allie podia sentir Darwin ficar cada vez mais tenso ao seu lado.

— Ela nos deu uma amostra do que é ser alfa, que muitas vezes

significa sacrifício — palpitou uma garota de pele bronzeada e sobrancelhas

louras.

Tatiana falou em seguida.



129

— Hum, sabe, no começo, sabendo que isso ia ser postado na tela, eu

senti que o conto ia sofrer com a falta de descrição. Mas em vez de pintar

um quadro dos seu arredores, ela pintou seus sentimentos. E isso

apareceu. Pareceu sincero. Eu realmente pude sentir a saudade dela.

Darwin olhou para Charlie por um momento tenso e depois se

empertigou na cadeira. — Eu achei que foi confuso. Não, enganoso. — Ele

fez uma pausa, como se para dar tempo de suas palavras assentarem em

um ferroada com efeito completo. — Pareceu uma das aquelas histórias

idiotas que terminam com um sonho.

— Hã, você está dizendo que O mágico de Oz é idiota? — Tatiana

girou a argola no seu nariz, vitoriosa. — Porque acaba com um sonho, masacontece também que é um clássico da literatura americana.

Charlie deu um sorriso de agradecimento.

— Não, nada disso — Darwin replicou. — Mais como se o escritor

quisesse que você acreditasse numa coisa e depois tornasse tudo sem

sentido dizendo que era uma outra coisa completamente diferente.

— O que é que você acreditou que fosse? — Keifer perguntou,

cruzando os braços na frente da sua bata branca e levantando a cabeça.

— Eu não sei. — Darwin levantou os ombros. — Eu só pensei que era

sobre outra pessoa.

— Eu concordo com Tatiana. — Keifer piscou. — Charlie, excelente

trabalho. Bailey e Tatiana, boas críticas. Darwin, você precisa abrir sua

cabeça e se abrir para as diferentes maneiras de contar uma história.

Charlie deu um sorriso malicioso.

— Darwin, por que você não fala em seguida?

— Tudo bem. — Ele pigarreou. — “Era o dia seguinte ao meu

apocalipse. Meus irmãos estavam comigo no abrigo nuclear. Cada um com

uma tática diferente. Melbourne era um mercenário. Sydney estava

sensível. Dingo estava pronto para se vingar com uma travessura. E Taz

estava pronto para escalar o Pavilhão e gritar com toda a força dos seus

pulmões. Meus irmãos insistiam que o amanhecer viria... um amanhecer



131

olhou para cima. Todo mundo estava prestando atenção nela. A boca dela

secou. — Bom, então, onde é que eu estava? Ah sim. Isósceles, equilátero,

escaleno. Qual é o seu ângulo? Amoroso triângulo. — Ela riu com orgulho

da sua rima acidental mas fabulosa. — Não posso deixar ela ganhar.

Triângulo amoroso. Obtuso, agudo, onde eu me encaixo? Geometria do

amor. Não importa, eu escolho a mim. O coração.

Havia apenas silêncio quando Allie olhou para cima, indicando que

tinha acabado. Será que ela tinha deixado todo mundo sem palavras?

— Comentários? — Keifer finalmente perguntou à sala.

As sobrancelhas de Hannah se ergueram embaixo da confusão de

cabelo escuro. Charlie mordiscou sua boca sem gloss . Yara mexeu o narizcomo se estivesse tentando conter um espirro — ou uma risada. Darwin se

remexia na cadeira. Allie inclinou a cabeça para trás, desejando que o

sangue descesse do seu rosto e ele voltasse ao seu estado naturalmente não

vermelho.

— Ok, então, vamos assistir.

Allie assistiu com horror quando uma linha fina azul desenhou um

triângulo isósceles. Depois um equilátero e um escaleno. E depois um

coração.

Risos de escárnio salpicavam em meio à tensão reinante.

Darwin lançou para Allie um olhar piedoso de o que aconteceu ? De

alguma maneira ela conseguiu dar de ombros, se perguntando se ele

acreditaria se ela dissesse que foi Medo do Palco.

— O refrão pega — Keifer disse finalmente depois de uma dolorosa e

longa pausa — , mas eu não queria uma coisa para eu dançar. Nem para

contornar, aliás. — Ela pigarreou. — Eu quero uma coisa que eu possa

sentiiiiiiiiir. — Allie arrastou a sua cadeira enquanto Keifer continuava,

desejando poder ligar aquele jato e voar para longe dos olhares acusadores

dos seus colegas de sala. — Isso é um poema, não é um parágrafo. Eu diria

que você tem um dicionário de rimas onde devia ter um coração. E não um

daqueles corações bonitinhos. Você precisa de um coração sangrento que

bombeie vida pelo seu corpo todos os dias.



132

— A aula terminou — anunciou a voz britânica por todo o campus.

Allie não fazia ideia de quem era aquela voz, mas ela queria mandar para

ela uma dúzia de rosas e uma caixa de chocolates de agradecimento.

Keifer bateu palmas.

— Classe, eu quero que vocês terminem o que começamos aqui hoje.

Acrescentem cem palavras e mais descrições.

Todo mundo ficou de pé.

— Allie J, fique — Keifer pediu. Allie fez um sinal com a cabeça para

Darwin prosseguir, esperando que ele não pudesse ouvir seu coração

batendo três vezes mais rápido.

Quando todo mundo saiu, Keifer pigarreou e entregou um pedaço depapel para Allie. — Assine aqui. — Ah, meu Deus. Será que ela seria

obrigada a largar a aula, deixando Charlie e Darwin juntos sem ela? — Eu

queria o seu autógrafo.

O alívio varreu Allie como um tsunami. Então seus triângulos não

eram tão ruins! Talvez fossem até geniais em sua simplicidade —

como post-its ou manteiga de amendoim.

Keifer provavelmente só tinha sido um pouco dura com ela para os

outros não se sentirem mal por não serem tão brilhantes.

— Claro — Allie disse com um sorriso. — Pra quem eu devo dedicar?

— Só assine — Keifer mandou, entregando uma caneta para ela.

Allie executou sua assinatura de Allie J perfeitamente ensaiada, onde

o pontinho do J era um símbolo da paz meio bagunçado.

Keifer pegou o pedaço de papel assinado, amassou e depois jogou na

lixeira.

— Agora que jogamos a grande estrela no lixo, podemos chegar à

Allie J de verdade. Eu quero saber o que existe por trás desses olhos

verdes. Em algum lugar dentro de você existe uma menina talentosa com

alguma coisa a dizer. Suas músicas são a prova disso. E é essa menina que

eu quero na minha aula.

Os galhos em cima da Fuselagem balançavam com a brisa leve e o

sol batia direto na risca de cabelo de Allie. Ela aquiesceu, com sua



133

esperança desbotando como a raiz dos seus cabelos. Porque por trás

daquela pinta, Allie era só um coração partido louro que não tinha a menor

ideia do que dizer.



134

14

MENSAGEM DE aPOD

PARA TODAS AS ALUNAS E CORPO DOCENTE


18:19

POR FAVOR PERMANEÇAM SENTADOS DEPOIS DO JANTAR PARA O DISCURSO DE

BOM DIA. A PRESENÇA É OBRIGATÓRIA.

— SHIRA



135

15

O PAVILHÃO



19:02

O Pavilhão estava cheio de vida com o som das fofocas, enquanto

cem garotas sentadas em volta das mesas vazias tentavam adivinhar o

assunto da palestra de Shira. Os rumores variavam desde “Ela está abrindo

uma academia para garotos” a “Shira é na verdade um apresentador

famoso de game show australiano travestido”. Cansada de teorias inúteis,

Skye estava pronta para concentrar a sua energia em uma coisa mais

produtiva. Como, por exemplo, por que os garotos não estavam no jantar?

Por que ela não tinha tido notícias do Taz? Por que...

Seu aPod vibrou.

— Isso! — ela deixou escapar, e depois rapidamente baixou seu tomde voz e se virou para Renee. — Taz acabou de mandar uma mensagem! —

ela sussurrou. Thalia estava na mesa com elas, mas Charlie Brown-nose a

preocupava mais. Renee vinha chamando Charlie de espiã a tarde toda. E

apesar de Skye acreditar que Renee tinha SN (Síndrome de Novela: ela

confundia onde as tramas das novelas terminavam e a realidade começava),

por que arriscar?

— O que ele disse?



136

— Ele quer saber quando a gente pode fugir de novo. — Ela acenou

com seu aPod como prova. — E eu acho que quanto antes melhor. Antes

que o nosso brilho do spa desapareça. — Skye passou a mão na bochecha,

maravilhada com como ela estava macia. — Para que serve beleza que não

pode ser admirada por garotos? É como cortar fora a etiqueta de um vestido

Chanel.

— Ou casar com Spencer sem as câmeras da MTV — Renee

acrescentou.

— Exatamente. — Skye jogou o cabelo. — Por que alguém faria isso?

— Sem mais hesitação, ela respondeu.

Skye: Esteja lá na hora que nossa musa pegar no sono.

Ela estava prestes a apertar send quando Renee lhe deu um tapa.

Seu aPod voou para baixo da mesa.

— Tá louca? — Skye apertou seus olhos turquesa.

— Relaxa — Renee insistiu. — Eu sei o que eu estou fazendo. Você

não pode mandar essa mensagem.

— Por quê? — Skye examinou o refeitório. Todo mundo ainda estava

sentado nas suas mesas de trevo de seis folhas, batendo papo. Tríplice

estava alongando o pescoço, deixando claro que não se importava com o

que estavam falando. E Charlie estava falando com Thalia sobre uma

mulher que elas conheciam chamada Bee. — Ninguém está vendo.

— O que está acontecendo? — Allie J se debruçou

esperançosamente.

— Eu recebi outra mensagem. Eles querem saber quando a gente

pode ir — Skye sussurrou.

— Você precisa esperar cento e trinta e nove minutos — Renee disse.

— Nos seus sonhos! — Allie J deu uma gargalhada.

Renee revirou os olhos. — É meio confuso, mas confie em mim, eu

sei. Não responda ainda.



137

— Tríplice já me contou da sua teoria. — Skye melhorou um pouco a

postura. — Mas eu sou melhor ainda com garotos do que eu sou com

dança. Então não venha me dizer como paquerar que eu não te digo como

atuar.

— Você já assistiu Rayne Storm? — Tríplice se intrometeu na

conversa com um sorriso provocador. — Talvez você devesse dizer para ela

como atuar.

Skye perdoou Tríplice instantaneamente pela sua deslealdade

no spa .

Os olhos violeta de Renee escureceram de raiva.

— Talvez você devesse dizer para você mesma para calar... — Olá! — O sotaque forte de Shira cortou o fim da conversa delas. A

cúpula de vidro ficou em silêncio.

Ela estava subindo de um lugar misterioso no palco, vestindo um

tubinho preto justo e um sorriso amarelo.

— Parabéns. Todas vocês sobreviveram ao primeiro dia. — Ela deu

um sorriso fazendo uma pausa para aplausos, e depois levantou o queixo,

como que cutucando as meninas de volta ao silêncio. O estômago de Skye

deu uma cambalhota. — Vocês todas vieram para a ilha para um ano de

treinamento intensivo nas suas especialidades. Mas eu quero dar a vocês

mais do que isso.

Algumas garotas aplaudiram. Shira levantou a mão e elas pararam

com a velocidade em que se aperta um botão “mute ”.

— Eu não tenho dúvida de que vocês passaram várias noites em

claro se imaginando dançar nos melhores palcos, cozinhar para reis e

rainhas, receber Oscar e construir um futuro melhor. Eu sei disso porque

eu fazia a mesma coisa. E desde então eu realizei essas coisas. — Shira

deslizou para a beira do palco, para garantir que se conectaria com cada

garota tanto quanto era possível para alguém de óculos escuros.

— Então, acreditem em mim quando eu digo que estou aqui para

fazer seu sonho virar realidade. Não apenas enquanto você está na minha

ilha, mas enquanto você está no meu planeta. Quando vocês se formarem,



138

eu vou colocar todos os meus recursos, que são muitos, à disposição de

vocês. O meu poder somado ao talento de vocês vão assegurar que vocês

sejam as maiores contribuintes no campo de vocês pelo resto da vida. Vocês

têm minha palavra.

Todas as meninas pularam dos seus assentos, a animação delas

explodia pelas paredes de vidro do Pavilhão como fogos de artifício. O futuro

delas estava decidido. Seus desejos, realizados. Fama e fortuna garantidas.

No meio do caos, Skye se abaixou para pegar o seu aPod de baixo da

mesa. Taz tinha mandado outra mensagem.

Taz: 11h30 no observatorio tah blz. A gnt pode escalar a cúpula edescer escorregando. Superadrenalina!

— Hã? — Skye disse para a tela. — Quem falou em observatório?

— Eu — Renee se gabou enquanto elas sentavam. — Não é uma ideia

ótima? Totalmente romântico.

— Isso foi ideia sua? — Skye apertou seus olhos turquesa, confusa.

— Aham. Eu acabei de mandar e ele respondeu em tipo meio

segundo. Assim, Sydney é bonitinho e tal, mas Taz é tão divertido...

Renee enrolou uma mecha de cabelo rosa no seu dedo. — Parece

que, no fim das contas, eu entendo alguma coisa de garotos.

O coração de Skye bateu acelerado no seu peito. As suas costelas

seguravam ele no lugar como a parede de um pula-pula.

— E a sua regra dos cento e trinta e nove minutos?

— Com certeza já tinha passado esse tempo para mim. — Renee

piscou. Te peguei .

— Ahmeudeus, você é uma...

— Shhhhhhhh. — Thalia pediu silêncio lá do lado oposto da mesa

com um dedo cor de manteiga na frente dos lábios.

— Mas como sei que todas vocês já sabem... — continuou Shira do

seu poleiro no palco. As últimas pessoas em pé se sentaram. — Só pode

haver uma alfa.



139

Os sorrisos murcharam. Murmúrios surgiram e se transformaram

em resmungos. Skye ficou tensa, esperando uma explicação adicional. Mas

tudo o que ouviu foi o sangue bombeando dentro do seu ouvido.

— Renee Foraday, pode se levantar por favor? — Shira juntou uma

mão contra a outra como se estivesse rezando e as encostou nos lábios.

— Eu? — Renee se entusiasmou, obviamente relembrando um

agradecimento antigo do Emmy. — Você me escolheu?

Shira fez que sim.

— Eu escolhi você.

Desta vez o aplauso foi esparso, como os últimos estalos de pipoca no

micro-ondas.Os olhos marejados cor de violeta de Renee cruzaram com os olhos

turquesa de quando ela levantou. Ela abriu os braços para um abraço, mas

Skye continuou sentada, com o peso de um milhão de perguntas. A maior

parte delas começando com, E eu ?

Allie J sorriu com espírito esportivo. Ameaça Tríplice começou a

gritar com Thalia sobre a vantagem injusta que as celebridades levam sobre

as pessoas com talento de verdade. Charlie baixou a cabeça entre as mãos.

Skye se sentia desconfortável, como se estivesse tentando caber num

sapato três números menor.

Quando Renee subiu no palco, o telhado se abriu apenas o suficiente

para deixar a luz da lua iluminá-la. A garantia de Shira e um beijo do

universo — o que viria em seguida? Sua própria linha de bolsas?

Renee parou ao lado de Shira e depois acenou para as noventa e nove

meninas sem sorte, sem nenhuma consideração por seus sonhos

aniquilados. Sem nenhuma ideia de como elas se sentiam traídas. Sem

nenhuma ideia de como elas queriam arrancar os próprios olhos.

— Renee, você é um exemplo incrível de hubris — Shira começou.

— Obrigada — Renee falou, abaixando a cabeça em agradecimento.

Shira franziu a boca.



140

— A palavra grega hubris se refere ao excesso de ego e orgulho que

normalmente leva um herói à sua derrocada. O hubris era o maior pecado

nos tempos antigos. — Sua voz ficou mais dura.

Todos os olhares na sala estavam fixados na alfa. Havia silêncio

suficiente para se ouvir um alfinete cair no chão. O sorriso de Renee

começou a se apagar. Ou era a lua que estava perdendo o interesse?

— E assim como Hera e Athena puniam os gregos que ficavam com

os egos inflados demais, eu também não tolerarei hubris .

A lua desapareceu ainda mais.

— O que eu fiz? — Renee implorou, com seu corpo repentinamente

envolto na escuridão. — Você foi ver os meus meninos.

Os pés de Skye formigaram. Ahmeudeus, será que ela seria a

próxima?

— E, como eu havia declarado antes, isto é contra as regras. — Uma

brisa gelada entrou rapidamente pelo teto aberto, transformando a

respiração de Shira em uma nuvem de raiva. — Você não é mais bem-vinda

na Academia Alfa. A sua musa está com a sua bagagem. Saia agora — ela

trovejou.

Thalia apareceu no palco com duas malas de rodinhas — Skye nem

tinha percebido que ela tinha saído da mesa — e a guiou até a saída. Renee

lutou para escapar das garras de Thalia, mas a musa alta, cor de manteiga,

segurou firme.

— Eu disse que Charlie era uma espiã! — Renee conseguiu gritar

antes de um último empurrão de Thalia levá-la pela porta. Os olhos cor de

violeta de Renee empoçaram e dois rios com uma infusão de rímel correram

por suas bochechas. — Eu disse pra vocêeees!

O momento passou, Shira continuou.

— De agora em diante, eu vou expulsar alunas quando achar

apropriado. Existem incontáveis tentações neste mundo e elas aparecem de

diversas maneiras. Fique firme. Siga seus sonhos. Obedeça minhas regras.

E você pode ser a grande vencedora. Boa sorte.



141

Shira afundou de novo pela abertura no palco, deixando noventa e

nove garotas em completo estado de choque. Por alguns momentos todas as

meninas ficaram paradas, como se tivessem sido coladas às suas cadeiras

Lucite. Depois a musa da Oprah se levantou e guiou as garotas até a saída.

O feitiço foi quebrado e todo mundo saiu do Pavilhão em silêncio.

Skye cuidadosamente colocou um pé com sandália gladiador na

frente de outro, andando dois passos atrás das suas colegas de casa

remanescentes. Ela sempre havia forçado os limites lá em Westchester —

tinham tido salas secretas para espionar os garotos, invasões ao country

club , e uma festa preto e branco no telhado com todos os times masculinos

de esportes e apenas suas quatro MAPS. Mas expulsão não era uma coisaque acontecia com garotas como ela. Isso acontecia com garotos que

fumavam e faziam desenhos anatomicamente corretos dos professores. E se

acontecesse com ela, ela teria de voltar para casa em desonra, com toda

Westchester sabendo que ela não era uma alfa de verdade. Uma descoberta

bateu nela com a força de um carro acelerado: esse lugar ia acabar em

tragédia para todo mundo menos uma garota.

E tinha que ser Skye. Ela queria — e a sua mãe esperava por isso.

No segundo em que ela chegou de volta à Jackie O, Skye correu lá

para cima para enterrar seu sentimentos no único lugar que ninguém

jamais iria pensar em procurar: sua sapatilha lilás.

DEA Nº 4: Cair nas graças de Charlie.

DEA Nº 5: Herdar o armário de Renee.

DEA Nº 6: Ser a alfa.



142

16

JACKIE O

QUARTO


22:13

Mais tarde naquela noite, Charlie enfiou sua camisola por cima da

cabeça — uma camiseta prateada extra-longa que crescia ou perdia suasmangas baseada na sua temperatura corporal — e se observou em um dos

espelhos flutuantes do banheiro. Os mesmos olhos castanho médio

olhavam de volta para ela, mas ela não se sentia mais a mesma. Em quatro

curtas horas ela foi de informante a assassina. E graças a um palpite

acertado de Renee, todo mundo sabia. Ontem ela estava desesperada por

amigas. Hoje à noite ela estava satisfeita com contato visual.

Ela sentiu um nó com gosto de menta na garganta. Gosto de pasta de

dente e culpa. Ela não ia sentir falta de Renee — nem do nome Charlie

Brown-nose. Mas se soubesse que dar nome aos bois resultaria numa

expulsão pública, será que ela teria escolhido outra coisa — ou mesmo

alguma coisa?

Naquele instante, seu ressentimento com Shira quadruplicou. Ela

tinha aberto mão das pessoas que amava pela oportunidade de estar ali. E

para quê?



143

Da segurança de uma cabine do banheiro, Charlie driblou o firewall e

mandou uma mensagem de texto para a sua mãe pela quarta vez naquele

dia.

Charlie: Ela expulsou Renee. Tudo culpa minha. Se eu soubesse que

era para isso que ela me queria, eu nunca teria aceitado. Você ainda estaria

aqui. Eu ainda estaria com Darwin.

Bee: E você estaria em Nova Jersey, sem estar vivendo todo o seu

potencial.

Charlie: Como espiã?

Bee: Como alfa.

Charlie ficou com lágrimas nos olhos. Parecia uma vida desde que

alguém tinha dito alguma coisa legal para ela.

Bee: Eu pensei que você fosse entregar a compositora.

Charlie: Mudei de ideia. Longa história.

Como ela podia explicar que amava Darwin demais para se livrar da

nova namorada dele? Parecia loucura. Mas ela não podia fazer ele sofrer

mais do que já tinha feito. Não importava o quanto doía vê-lo com Allie J.

Além disso, Renee tinha pego ela com a coisa de espiã. E Charlie queria se

certificar de que ela ficasse quieta antes de espalhar isso. E olha só no que

deu.

Bee: Eu tenho tempo.

Mais do que qualquer coisa, Charlie queria perguntar em primeiro

lugar à mãe por que Shira a tinha colocado na aula de redação. Será que

era simplesmente uma tentativa de girar o punhal que já tinha espetado no

seu coração? Para puni-la por uma vida inteira de adoração a Darwin ao

forçá-la a vê-lo com sua nova paquera? Bee era a única pessoa que



144

entendia a cabeça de Shira. Mas Charlie não queria ir por aí. Por que fazer

Bee se preocupar com a felicidade da filha? Ela já tinha se sacrificado

demais.

Charlie: Está tudo bem. Como você está?

Bee: Ótima! Consegui um trabalho de produtora no Channel 411.

Shira escreveu uma carta de recomendação fantástica. Mandei pra ela a

receita do café como agradecimento.

Charlie: Parabéns, mãe! Você merece. Você vinha produzindo a vida

de Shira há anos.Bee: Tudo por você.

Charlie: Eu ouço a sua voz todo dia nos avisos. Faz eu sentir mais

saudade ainda!

Bee: Estou com saudades também! Boa noite. Não deixe as alfas te

morderem.

Assim que ela desconectou, Charlie começou a soluçar. Apesar de ter

passado a maior parte da sua vida viajando para lugares estranhos e não

familiares, ela nunca tinha se sentido tão perdida. Mais confusa sobre o

seu papel no universo e menos motivada para descobri-lo. Por que se dar ao

trabalho? Sem ninguém com quem dividi-lo, sucesso seria só mais um

lembrete de que ela estava sozinha.Depois de restabelecer o firewall e lavar o rosto, Charlie apoiou sua

testa contra a parede de vidro fosco do banheiro. Um dia na Academia Alfa

estava começando a parecer uma temporada de 24 Horas — como tanta

coisa podia acontecer em tão pouco tempo?

Lá no quarto, as garotas estavam dividindo o hidratante e jogando

Sobrevivente: Edição Ilha Alfa Celebridades, um jogo para decidir que

mulheres famosas seriam selecionadas por Shira. Elas estavam claramente

11 Canal de TV britânico (N.E.).



145

com muito medo de que o tópico sobre o qual realmente queriam conversar

— a expulsão de Renee — pudesse fazê-las serem expulsas também.

— Tyra? — Tríplice sugeriu, esfregando um creme com perfume de

sálvia nos seus cotovelos ossudos.

— Alfa — Allie J determinou.

— Lauren Conrad? — Skye perguntou, enrolando seu cabelo

ondulado louro em um coque alto.

Allie J bateu no seu travesseiro como se fosse uma campainha.

— Alfa!

— Você assiste a The Hills ? — Tríplice levantou suas sobrancelhas

arqueadas em sinal de surpresa. — Hummm, só porque eles queriam usar uma das minhas músicas

para a abertura. Mas eu não aceitei. Muito superficial.

— Você precisa aprender história, Allie J! — Skye censurou. — Você

não via Laguna Beach ? Uma vez beta, sempre beta. Vanessa Hudgens?

— Não é alfa — disse Tríplice firmemente.

— Como você pode dizer isso? — Allie J perguntou veementemente.

— Contrato com uma gravadora. Bilheteria gigante. E Zac?

— Você não pode ser alfa se o seu namorado é mais famoso do que

você — Tríplice falou em som de dãaa e bateu a tampa do hidratante como

se a sua palavra fosse a última.

Allie J se virou para Charlie e deu um sorriso malicioso:

— Isso é verdade.

Uma mão invisível agarrou o coração de Charlie e apertou.

— Está vendo alguma coisa que queira relatar? — Allie J falou

rispidamente.

Charlie deitou na sua cama e olhou para a claraboia em forma de

cúpula lá em cima. Só havia um pedaço de lua, em forma de sorriso, e uma

estrela solitária brilhava do seu lado. Ela pensou na boca de Darwin e na

pinta que tinha beijado tantas vezes.

Allie J apontou para o seu pulso, onde deveria haver um relógio.

— A gente precisa ir.



146

— De jeito nenhum. Missão cancelada. — Tríplice passou o resto do

hidratante nas suas pontas duplas inexistentes.

— Por quê? — Allie J sussurrou através dos dentes cerrados como se

fosse uma ventríloqua amadora. Ela estava customizando seu conjunto de

dormir de regata e short com um cachecol fino de algodão. Ela estava

meio rollergirl , meio hipster .

— Você não estava lá quando a Renee foi cortada? — Skye se

aconchegou com as costas nos travesseiros e olhou para Charlie com um

misto de agradecimento e respeito. Ela acariciou a sapatilha lilás que

estava pendurada no seu abajur. Por um momento pareceu que ela também

estava com saudades de casa.Charlie sorriu timidamente de volta.

— Veja o quadro geral, Allie J. — Skye estendeu seus braços

graciosos com as palmas das mãos para cima. — Garoto que você conheceu

ontem. — Ela levantou sua mão esquerda na altura do ombro. — Ou o

sonho que você tem desde que estava in vitro .

Charlie riu em silêncio. Você quer dizer no útero , ela teve vontade de

falar, mas não ousou. Além disso, ela respeitava Skye e suas prioridades

recém-descobertas. Charlie nunca imaginou que uma menina que usava a

boca dos garotos para espalhar seugloss iria liderar a renúncia a eles. Mas

aqui estava ela, segurando Allie J que nem um sutiã esportivo.

— Por que não podemos ter ambos? — Allie J retrucou.

Uma onda nauseante de déjà vu inundou Charlie e ela se jogou no

edredom. Afinal, ela tinha sido confrontada com a mesma escolha ontem e

tinha se arrependido da sua decisão desde então.

— Porque ambos não é uma opção agora, certo? — Skye disse com

rispidez. — Nós todas precisamos fazer sacrifícios para ter as coisas que a

gente mais quer. Eu também não acho bom, acredite. — Ela desligou sua

luz e virou para o outro lado.

Alguma coisa do que Skye disse deve ter repercutido em Allie J

também, porque ela soltou um suspiro de derrota e subiu na sua cama.

— Deve ser.



147

— Escolha inteligente — Thalia falou lá de baixo. Charlie tinha se

esquecido da sua audição extraordinária. — Como disse o Dalai Lama,

“Dormir é a melhor meditação”. — E com isso, as luzes do teto foram

desligadas.

Charlie suspirou aliviada e se enfiou embaixo dos cobertores. Uma

por uma, a respiração das garotas diminuiu e criou um ritmo. Skye

roncava-ronronava e Tríplice se cobriu até as sobrancelhas com o edredom.

Charlie virou de lado e viu dois olhos verdes de gato a encarando na

escuridão.

— Eu estou de olho em você — Allie J sussurrou. E depois rolou para

o outro lado.Charlie começou a suar e sua camisola se ajustou enrolando e

encurtando automaticamente as mangas. A camiseta que encolhia fez ela

pensar na maneira como ela se comportava quando estava perto de Shira,

se diminuindo sempre para não incomodar.

Bom, era hora de tudo isso mudar. Hora de mostrar Shira que ela era

mais do que uma espiã de aluguel. Hora de mostrar para suas colegas de

quarto que ela era confiável. E hora de mostrar a Darwin que ela estava

fazendo aquilo tudo por ele.



148

17

PAVILHÃO


TERÇA, 7 DE SETEMBRO

7:37

A atmosfera no café da manhã estava mais fúnebre do que um

cemitério quando o aPod de Allie vibrou.

Darwin!

Já tinha passado mais de dez horas desde a última correspondência

entre eles e ela estava começando a se perguntar se ter tido sua licença

poética suspensa por Keifer o tinha afastado. Virando para longe de Thalia

e seus sentidos sobre-humanos, ela clicou para ler. Mas era só mais uma

piada de espião enviada por “anônimo”. Justo como as outras antes dessa.

P: Por que Shira usa óculos escuros?R: Ela tem Charlie como olhos.

Um coro de risos abafados se seguiu. Mas Allie foi a única que ousou

olhar a reação de Charlie. Todas as outras estavam com medo de serem

Reneeadas.

Allie esperou para ver se Charlie iria mesmo engolir seus ovos com

bacon, como um daqueles personagens sem remorso do The Sopranos ,

cujos apetites não eram afetados pelos seus crimes. Em vez disso, ela



149

desenhou uma carinha triste no molhohollandaise com baixa gordura e

enriquecido com proteínas que fazia uma piscina no seu prato e depois deu

uma de Jackson Pollock com os dentes do garfo.

Allie suspirou. Shira não estava pessoalmente no refeitório, mas

estava lá em forma de clima. Enormes pingos de chuva bombardeavam a

cúpula de vidro, cada respingo soava como a lâmina de uma guilhotina

caindo e decepando a cabeça de alguém.

Prue, a dançarina ruiva da casa Chanel, se aproximou da mesa com

uma garota chamada Soofie, que era famosa por ter inventado um processo

de alisamento novo, que não estragava o cabelo e que ela tinha registrado

com o nome de Soofer Smooth. — Sentimos muito por Renee — Prue disse num sussurro, como se

Renee tivesse morrido. Estava havendo um fluxo constante de garotas

passando por lá para honrar a memória de Renee e cumprimentar as

Jackie Os.

Tríplice deu de ombros e mexeu seu chá Dancer Detox.

— Ela vai ficar bem. Ouvi falar que Dançando com a D-List vai voltar

para mais uma temporada.

Prue riu com os ombros.

— De qualquer maneira. — Soofer se inclinou para um pouco mais

perto de Charlie. — Eu tenho certeza de que quem quer que a tenha

entregado tinha uma razão perfeitamente boa pra isso.

Allie sentiu um frio na barriga em nome da atriz expulsa. Claro que

ela ia sentir falta da sua parceira de paquera-crime, mas verdade seja dita,

elas só se conheciam havia um dia. A questão maior era o que poderia ter

acontecido. Ou melhor, o que deveria ter acontecido. Qualquer garota

normal com o poder de mandar alguém embora da ilha não teria escolhido

a nova parceira de piquenique do seu ex? Por que Allie ainda estava ali?

Seus aPods vibraram de novo. Desta vez Allie sabia que não devia

ficar esperançosa. Mas mesmo assim, ficou. E, mais uma vez, outra aPiada

anônima surgiu na sua tela onde a última mensagem de Darwin deveria

estar.



150

P: Já ouviram falar na nova linha de roupas da Charlie?

R: Se chama Spyware.

— Superimaturo. — Prue sorriu para Charlie, claramente tentando

cair nas suas graças.

Charlie empurrou seu prato para o lado, obviamente farta de mais do

que café da manhã e Allie lavou mais uma mordida de gosma de cogumelo

com um gole de refresco de limão, refletindo sobre como a vida ali tinha

mudado rapidamente. Ainda ontem, todo mundo estava brigando por

superioridade. Hoje era por sobrevivência. — Onde estão os garotos? — Allie perguntou, depois de Prue

finalmente ir embora.

— Sydney disse que eles estão presos comendo com Shira — Skye

contou.

— Desde quando Sydney te manda mensagem? — Tríplice

casualmente arrancou um pedaço do seu croissant . — Eu pensei que ele

gostava da Renee.

— É uma mensagem, não é um pedido de casamento — Skye se

defendeu levemente.

Allie sentiu os ovos de mentira voltarem na sua garganta. Se Sydney

tinha esquecido Renee em coisa de horas, o que isso queria dizer entre ela e

Darwin? Ela não sabia se ia aguentar outra rejeição — ou outra mudança

de identidade. Ela sabia que o cabelo dela não aguentava. Um pouquinho

mais de tinta e ele ia se partir na raiz.

Allie levantou sua colher, e viu seu reflexo na superfície convexa

prateada como numa Casa dos Espelhos. Ela se reconfortou ao ver sua

beleza, da mesma maneira que imaginava que uma cantora ficava feliz ao

ouvir a própria voz depois de um surto de laringite — feliz de ver que seu

dom ainda estava ali, mesmo nas horas de crise. Mas por que não era

suficiente para fazer Darwin ligar para ela?



151

— Bom dia, Becca Nash aqui da Casa Serena/Venus. — Uma garota

com cabelo preto penteado para trás apertou a mão de todo mundo menos

de Allie, que conseguiu pegar uma garfada bem a tempo. Álcool gel era

coisa rara na Ilha Alfa. Melhor ser grossa do que ser eca.

— Eu estou me especializando em jornalismo e vou dizer uma coisa,

você não sabe o que é vento até você tentar segurar o microfone no

simulador de tornado que Shira construiu para a gente. — Ela segurou o

sorriso e depois virou para Charlie. — Não que eu esteja reclamando. Quer

dizer, eu amei. Soprou até minhas espinhas para longe. E a experiência foi

inestimável. Eu espero fazer isso muito mais vezes esse ano. — Ela sorriu

de novo. — Muito mesmo.Charlie tentou devolver o sorriso. Mas parecia mais que ela estava

tentando segurar um arroto.

— Posso fazer umas perguntas?

As garotas se olharam, confusas.

— “É melhor conhecer algumas perguntas do que todas as

respostas”. — Thalia se intrometeu. — James Thurber.

— Manda ver — Tríplice disse finalmente, juntando seu cabelo liso

sobre um ombro e girando seu corpo um pouco para a esquerda.

— Maneiro. — Becca levantou uma câmera de vídeo do tamanho de

um pincel de rímel; a luz vermelha de gravando já estava acesa. De repente,

as garotas apareceram ao vivo na tela gigante de plasma do Pavilhão.

Becca lambeu seus dentes clareados e começou.

— Skye Hamilton, enquanto colega de quarto tanto da recém-expulsa

Renee Foraday quanto de Charlotte Deery, que foi indiciada por espionagem

na corte da opinião pública, o que você pode contar para a gente?

A atenção de todo mundo estava fixa na transmissão, os pedaços

de muffins e os sucos de energia esquecidos em cima das mesas. O Pavilhão

estava totalmente em silêncio. Nem um único utensílio estalava.

Charlie baixou a cabeça entre as mãos.

Skye sorriu para a câmera e pigarreou.

— Sem comentários.



152

— Então, você acha que Charlie deveria continuar na Academia Alfa?

— Becca pressionou.

— Eu não sou espiã, ok! — Charlie praticamente gritou.

Todo mundo se surpreendeu. Becca girou sua câmera-rímel para ela.

— Eu acredito em você. — Skye tocou a mão dela gentilmente e

depois checou pra ter certeza de que estava em quadro. — Mas você tem

como provar?

Charlie empacou.

— O quê? Como é que eu poderia...

— Eu acho que ia realmente deixar as pessoas mais confortáveis e

ajudar a limpar o seu nome se você... — Jure pela vida de Darwin — Allie interrompeu. Charlie não tinha o

dom nem o talento e muito menos força de vontade. A única coisa alfa nela

era o seu acesso a Shira Brazille. E Skye estava tão claramente com medo

de ser a próxima que encobria a verdadeira identidade de Charlie feito

maquiagem.

— Isso é idiota — Charlie reprovou.

— Faça isso! Jure pela vida de Darwin que você não é espiã de Shira

e nós vamos acreditar em você.

— Eu não posso, isso é loucura. A gente não tem três anos de idade.

— Charlie empurrou a mesa e com um rangido da cadeira correu para a

saída.

Skye arqueou uma sobrancelha loura diretamente para a câmera.

— Bom, acho que isso responde à pergunta — Tríplice interveio.

Esticando o braço, a repórter virou a câmera para si mesma.

— Aqui é Becca Nash com uma notícia produzida por mim mesma.

Porque reportagem é a minha paixão e não ter notícias não tem graça.

Finalmente livre para reagir, o Pavilhão irrompeu em um turbilhão de

comentários.

Por sobre a barulheira, Thalia chamou:

— Charlie, sair antes de ser dispensada é contra as regras. — Mas

Charlie continuou correndo, forçando a musa a correr atrás dela.



153

— Talvez ela tenha que se autoexpulsar — gracejou Tríplice,

alongando o cotovelo.

Allie concordou severamente e pegou seu telefone. Se Charlie era a

espiã, então seu tempo aqui era limitado. Ela não sabia ao certo por que

não tinha sido a primeira a ir embora, mas com certeza seria a próxima. E

não ia passar outra noite perdendo uma chance única na sua vida. Ela

posicionou seus dedos sobre o aPod.

Allie J: Comecei uma música nova: Ninguém conseguiu separar

Julieta do seu Romeu/ E se eles terminassem felizes, mudando o que a gente

leu? Se você quiser ouvir o resto, me encontre hoje à noite.

Ela apertou send e imaginou a mensagem navegando até Darwin nas

asas de um beijo soprado. Quase imediatamente, seu aPod vibrou na sua

mão.

Darwin: Mal posso esperar pra ouvir. Vejo vc às l8h.

E aí aconteceu, seu primeiro choque de inspiração. O título das suas

memórias ia ser Carpe Darwin: A historia de uma garota que arriscou tudo

por amor .

Tudo o que ela precisava agora era de um final feliz.



154

18

TEATRO DE DIONÍSIO



10:37

Skye dançava no meio de um círculo de tambores, seus pés

capturavam a batida pelo chão todo de vidro e a redistribuíam para o resto

do seu corpo. A vida pulsava de um jeito primitivo, transformando-a de

uma dançarina talentosa em uma criatura selvagem de expressão.

Tríplice, Prue e os outros coques bem apertados se alongavam nas

laterais da sala.

— Skye, você pode parar de dançar — Mimi falou. — Bom trabalho.

Caminhando até a barra, Skye se espremeu do lado das outras

dançarinas e começou a soltar as suas articulações.

— Um pouquinho mais rápido e você teria viajado no tempo — Tríplice zombou, levantando a perna até o ouvido como se fosse um telefone

celular.

Os coques apertados gargalharam.

— Um pouquinho mais magra e você ia escorregar — Skye rebateu,

sem ter certeza de que o que tinha dito fazia sentido. Não que se

importasse. Ela se sentia como uma bateria recarregada. Toda aquela

movimentação e a liberdade física era o que precisava para chacoalhar



155

o stress dos últimos dias. Ela se sentia limpa. Límpida. E pronta para

mostrar a Mimi o que Westchester já sabia.

Que Skye era uma estrela.

— Hoje nós vamos aprender como fazer um tour en attitude — Mimi

anunciou, a saia no seu collant de Lycra cor de bronze balançava com o

mesmo suingue sensual ardente que os seus quadris.

Skye franziu o nariz. Tours en attitude eram tão básicos.

— Eu sei que vocês acham que sabem fazer essa pirueta

perfeitamente há anos — Mimi respondeu ao nariz de Skye. — Mas hoje eu

vou mostrar como fazer direito. — Ela deu duas palmas. — Andrea e

Mangas, vocês primeiro.Ninguém se mexeu.

— Andrea! — Mimi berrou para Tríplice.

— Oh — Tríplice bateu no seu peito de pombo fingindo estar

horrorizada.

— Desculpa, eu estou tão acostumada com todo mundo me

chamando de Tr...

— E Mangas — Mimi estalou seus dedos para Skye. — Para o centro.

— Pronto. — Skye fez passos de jazz até o meio da sala e depois

alongou seus ombros para trás. Em pé ao lado da modelo-dançarina-atriz

parecia que ela estava descansando embaixo de uma árvore; Tríplice era

alta, esbelta e roubava as atenções. Mas será que ela tinha atitude?

— Música! — Mimi gritou.

Os tambores tribais recomeçaram. Era uma escolha estranha de

música para um passo de jazz, e Skye amava isso. Quanto menos

convencional, melhor.

— Eu quero o melhor tour en attitude de vocês. Se movimentem

numa contagem de quatro apesar de os tambores estarem batendo em oito.

O que importa aqui é controle e graça. É se conectar com o ambiente, sentir

a coreografia e honrar a sua integridade.

Skye deu uma olhadela para Piu-Piu e Ophelia. Elas pareciam tão

confusas quanto ela se sentia. Isso beirava a insanidade.



156

Qual era o sentido de dançar na batida errada? Ninguém pediria para

ela fazer isso na vida re...

— Cinco, seis sete, oito! — Mimi berrou. Os tambores batiam uma

versão frenética do que parecia ser a música “That’s Not My Name”, do Ting

Tings.

Skye cruzou sua perna, fez um plié na quarta posição como se fosse

fazer uma pirueta e parou. Ela se sentia jogando um jogo infantil de

esfregar a barriga e bater na cabeça ao mesmo tempo. A música estava

superconfundindo-a.

— Mangas, silencie sua mente e continue — Mimi berrou.

Skye tentou se desligar da música intensa e se concentrar na suacontagem de quatro. Cruza um dois três quatro... plié cinco seis sete oito...

contrai bunda dois três quatro... levanta perna...

— Bom, Andrea, continue assim.

De repente, Skye perdeu a conta. Por que Mimi gostava tanto de

Tríplice? A garota era um robô. Desprovida de paixão e — ops...

Skye fez a volta, mas aterrissou rápido demais. Ela lembrou da vez

em que Robert Noble tentou dar um beijo nela e errou o alvo. A boca dele foi

parar no queixo dela e dali pra frente foi só ladeira abaixo.

— Música diminui para quatro! — Mimi ordenou. — Garotas, façam

o attitude no dobro do tempo.

Skye pegou o ritmo. Ela estava começando a sentir agora... Cruza

perna... plié na quarta posição... contrai a bunda... levanta perna... e traz

para o attitude. Cruza perna... plié na quarta posição... contrai a bunda...

levanta perna... e traz para o attitude.

— Melhor, Mangas — Mimi falou. Suas palavras foram como

desfibriladores, mandando impulsos elétricos para o coração de Skye.

Cruza perna... plié na quarta posição... contrai a bunda... levanta

perna... e traz para o attitude.

— Boa energia!



157

Cruza perna- plié na quarta posição... contrai a bunda-levanta perna...

e traz para-o- attitude. Cruza perna- plié na quarta posição... contrai a bunda-

levanta perna... e traz para-o- attitude.

— Mais uns assim, Mangas — Mimi insistiu.

O coração de Skye estava chocado em euforia. Tríplice tinha recebido

um incentivo. Ela tinha três. Cruza-perna- plié-na-quarta-posição-contrai-a-

bunda-levanta-perna-e-traz-para-o -attitude. Ela tinha pego o ritmo. Cruza-

perna- plié-na-quarta-posição-contrai-a-bunda-levanta-perna-e-traz-para-o-

attitude. Mimi tinha finalmente percebido o seu talento. Cruza-perna- plié-

na-quarta-posição-contrai-a-bunda-levanta-perna-e-traz-para-o- attitude. A

excitação com aquilo tudo a fez girar cada vez mais rápido. Cruza-perna- plié-na-quarta-posição-contrai-a-bunda-levanta-perna-e-traz-para-o- attitude.

Skye deu uma espiadela para Tríplice, que estava um tempo e meio

atrasada. Mimi estava prestes a eleger Skye como favorita agora. Talvez ela

até apoiasse um linha de mangas de dança nomeadas em homenagem a

sua aluna favorita que — Cruza-perna- plié-na-quarta-posição-contrai-a-

bunda-levanta-perna-e ... De repente, o joelho de Skye cedeu.

— Ahmeudeus!

Skye rolou por cima do tornozelo, bateu na parede de vidro como um

inseto no para-brisa e escorregou para a escuridão.

— Skye?

Skye abriu um olho turquesa. Ela estava deitada em uma nuvem

branca, o cheiro de chá de camomila fazendo cócegas no seu nariz

pulsante.

— É aqui que eu estou? — ela murmurou. — No céu?

— Sou eu, Thalia — disse a musa gentilmente. — Como está o seu

tornozelo?

Skye deu uma olhada no seu tornozelo. Estava mumificado com

várias camadas de gaze e ataduras da cor de meia-calça de farmácia. Ela

estava tendo uma alucinação ou ele estava realmente maior que a sua

coxa? Seus olhos se encheram de lágrimas.



158

— Está doendo — ela choramingou. Sua boca estava com gosto

de collant suado. — Por que está doendo tanto?

— “Se você não tivesse sofrido como sofreu, não haveria nenhuma

profundidade em você, nem humildade, nem compaixão”. — Thalia sorriu

da ponta da sua cama. — Eckhart Tolle disse isso.

— Ele também morreu?

— Descanse. — Thalia tirou o chá e gentilmente cobriu o tornozelo de

elefante de Skye com o edredom. Ela saiu na ponta dos pés, deixando Skye

pra trás como se fosse um cavalo de corrida com a perna quebrada.

Skye revisou o fragmento de memória da aula de dança várias e

várias vezes, tentando entender tudo... e finalmente chegou à únicaconclusão lógica. Ela estava dançando bem, muito bem, e Tríplice tinha

ficado com ciúme porque não estava recebendo o amor de Mimi e a fez

tropeçar. Tinha que ser isso! Não era como se Skye tivesse caído sozinha

como uma amadora.

— Ok, Skye. Ah-um-ah-dois — ela murmurou. Reunindo todas as

suas forças, levantou suas mãos trêmulas acima da cabeça e bateu na

sapatilha da mãe como se fosse um gatinho tentando pegar uma bola de lã,

até ela cair no seu colo. Com os dedos fracos, ela começou DEA Nº 7:

Destruir Tríplice...

Mas antes que ela pudesse terminar, seu tornozelo começou a latejar,

sua cabeça girou e a escuridão a levou mais uma vez.

O sol tinha se posto e alguma coisa dura — uma caneta? Uma

escova? O tridente do diabo? — estava cutucando a espinha de Skye.

— Au — ela gemeu. Soou mais como — Arughoi.

Ela rolou para o lado com a graça de alguém de oitenta anos de idade

e procurou atrás das costas. Sua dor de cabeça latejava em protesto

quando ela sentiu o cetim duro... Ahmeudeus!

Skye sentou-se num pulo.

— Ahhhhhh — ela gemeu com a repercussão da dor por todo o corpo,

como uma heroína de Hollywood desalojando uma faca das próprias costas.



159

Mas isso era muito pior do que uma faca. Era a sapatilha dos DEAs. E

estava vazia!

Jogados em volta da sua cama estavam sete DEAs, como pedacinhos

de papéis de biscoitos da sorte. A sensação era como se Savion Glover

estivesse sapateando em cima do seu tornozelo, e seus olhos não estavam

conseguindo focar. Talvez isso fosse só um sonho. Ou...

— Bem-vinda ao inferno — Ameaça Tríplice rosnou. — Seu maior

pesadelo.

Allie J estava em pé atrás de Tríplice, com as mãos na cintura como

um pai decepcionado. Um buquê de peônias rosa chá pendia da sua mão.

— Ei — Skye articulou com uma tonteira exagerada tipo tenham pena de mim . Ela puxou o seu tornozelo inchado para fora do cobertor para

um impacto adicional.

— A gente veio ver como você estava. — Os olhos castanho-claros de

Tríplice cravados nos seus. Ela bateu na sapatilha de ponta e pigarreou. —

Mas agora eu posso ver que você não precisa da minha ajuda.

Ela levantou o papel onde estava escrito DEA Nº 7: Destruir Tríplice .

— Na verdade, eu posso ver que você não me quer por aqui de jeito

nenhum.

— Não. — Skye tentou sentar. Ai! — Não é assim.

— É assim? — Allie J segurou um guardanapo. DEA Nº 3: Esmagar

Renee e Tríplice como nozes num quebra-nozes.

— Você não entendeu! — Skye insistiu, sua cabeça girava, a boca

seca.

— Ah, entendi — Allie J insistiu. — Você é a espiã.

— Espera aí, o quê? — De repente o mundo ficou nitidamente em

foco. — Você acha que eu sou a espiã? — Skye gritou horrorizada. —

Charlie é a espiã... você mesma disse isso!

Tríplice abanou o papel amassado como uma bandeira de vitória.

— É, mas não foi ela que escreveu “esmagar Renee” e tornou

realidade. — Ela suspirou. — Então, imagino que eu seja a próxima, hein?

Não aguenta a competição?



160

A mão de Skye se fechou em volta da sapatilha da mãe, como se ela

pudesse transportá-la para uma terra encantada da dança onde doces

fadinhas enchiam garotas chamadas Ameaça Tríplice de pancada.

— Isso é coincidência, não evidência. — Um tom de urgência tinha

tomado a sua voz, e ferroadas quentes e familiares de lágrimas batiam no

fundo dos seus olhos, tentando escapar. Ela inclinou a cabeça para cima,

com esperança de mandá-las de volta para o lugar de onde vieram.

— E o que quer dizer DEA, inclusive? “Desejos Escrotos Alfa? —

Tríplice perguntou, cruzando os braços sobre o peito. O céu sem estrelas

tinha reduzido ela a uma silhueta negra, mas sua raiva era inconfundível.

— Desejos E Aspirações — Skye murmurou suavemente, como se ummovimento repentino pudesse desencadear uma avalanche de lágrimas.

— Você deseja e aspira esmagar as suas amigas? — Allie J derrubou

o buquê no chão.

— Por favor, A. J. — Skye pediu, esperando que um apelido

espontâneo pudesse enternecer a escritora. — Como eu posso ter entregado

vocês para Shira se eu sou igualmente culpada?

Allie J considerou isso.

— Bom, você obviamente queria se livrar de mim — Tríplice retrucou.

— Eu posso querer me livrar de você, mas eu nunca faria nada para

isso — Skye deixou escapar.

Allie J deu uma risada.

Skye riu também.

— Vocês entenderam errado. Quer dizer, esses DEAs são como um

diário para mim. É só isso. Eu escrevo os meus pensamentos e depois sigo

com a minha vida. Eu não estava falando sério.

— “Diário Escroto Alfa”. — Tríplice jogou seu megahair sobre o ombro

com superioridade.

A briga sugou as energias de Skye. Ela se sentia como a vítima no

balé Giselle que foi forçada a dançar até morrer.

— Eu admito, tá. Eu fico com inveja, às vezes. Eu era a melhor

dançarina na minha cidade e agora...



161

— Não é — Tríplice disse secamente.

— Eu não sou a espiã, certo? Ninguém tinha visto esses DEAs até

agora. Eu juro.

Tríplice e Allie J trocaram um olhar de por favor . A frustração

borbulhava nas veias de Skye como os sais de banho All That Jasmine Bath

Bomb, da Lush.

Allie J suspirou.

— Eu na verdade estou me sentindo mal pela Charlie.

— Totalmente. — Tríplice colocou os pés na primeira posição. —

Acho que está na hora de mandar um update .

Tríplice segurou o aPod na sua frente, falando enquanto digitava. — Cuidado com Espia-Hamilton.

— Não. Por favor — Skye implorou. Seu coração doía mais do que o

seu tornozelo. — Não é verdade!

Ignorando seus apelos, Tríplice e Allie J desceram a escada de vidro a

galope. Por um momento, Skye ficou sentada pasma, em silêncio.

Então a cabeça de Tríplice ressurgiu na plataforma, com um sorriso

no rosto.

— Mais uma coisa.

Skye se animou. Será que Tríplice tinha ficado com pena dela, no fim

das contas?

— Um recado da Mimi.

— Ela perguntou por mim?

— É. Ela queria saber como você conseguiu entrar aqui. — Tríplice

riu da própria piada e depois correu escada abaixo.

Skye se afundou nos seus travesseiros, se sentindo mais esvaziada

do que um sutiã de água furado. Ela queria dançar para esquecer aquela

conversa. Dançar para esquecer seus DEAs descobertos. Dançar para

esquecer a falta de amigas. E mais do que tudo, dançar para esquecer a

decepção que com certeza ia enrugar o rosto de botox da sua mãe quando

ela fosse mandada para casa.

Mas dançar não era mais uma opção.



162

19ACADEMIA ALFA

ESCRITÓRIO DE SHIRA


20:08

Charlie esmagou o pequeno pen-drive na sua mão enquanto lia as

notícias que deslizavam pelas janelas do lado de fora do escritório de Shira.Skye Hamilton está se recuperando de uma queda na aula de dança

de Mimi. Ela vai sobreviver, mas será que sua reputação também vai?...

LoChang está escolhendo uma terceira especialidade. Além de engenharia e

escultura, ela adicionou instrumentos de corda... O fenômeno da cirurgia

plástica em animais Kutya Slavin fez lindas plásticas de nariz e barriga em

Poncho o Chihuahua. Os resultados são inspiradores....

Era difícil se concentrar no Updates da Ilha quando a chave para o

seu futuro estava na palma da sua mão suada. Tinha lhe tomado a noite

inteira e a maior parte do dia, mas finalmente era hora de mostrar para

Shira como ela podia contribuir — ou melhor, como ela tinha contribuído

para construir a valiosa academia Brazillionária. E daí se a sua mãe dizia

que contar vantagem era cafona? Charlie era tão qualificada quanto as

garotas que tinham realmente se inscrito. E a sua inscrição, redação,

plantas de design, especificações técnicas e educação internacional iriam

provar sem nenhuma sombra de dúvida.



163

Fiona colocou uma xícara branca na mesa de bloco de gelo. Um jato

de café choveu lá de cima.

— Não, obrigada. — Charlie sorriu graciosamente para a assistente.

É que a falta de sono e de comida e a agitação da ansiedade já a tinham

deixado ligada demais.

— Experimenta — Fiona insistiu, seus olhos marrom-lama tinham

um ar confiante. — Confia em mim.

Se inclinando para a frente na cadeira, Charlie, educadamente, levou

a xícara até a boca. Tinha o cheiro de Bee.

— Você conseguiu a receita. — Ela deu um gole.

— Milagres acontecem, sabe. — Fiona sorriu, parecendo mais umafreira do que uma assistente rebote exausta.

— Acho que sim. — Charlie suspirou, lembrando que a sua mãe

tinha mandado a receita pra Shira como agradecimento.

Uma luz verde se acendeu em cima da porta de Shira.

— Ela vai ver você agora — Fiona disse.

— Obrigada. — Charlie colocou a xícara vazia na mesa e depois

apertou suas mãos suadas contra o gelo. A queimação fria acalmava os

seus nervos.

— Boa sorte. — Fiona acenou.

Como Dorothy se aproximando do Mágico de Oz, Charlie se

aproximou com cuidado da porta aberta da alfa.

— Beyoncé, não é que a gente não agradeça a sua oferta, amada, é só

que eu não estou aceitando palestrantes de fora da ilha no momento. É

regra da Ilha, fofura. Não é nada pessoal. — Shira acenou para Charlie

entrar e sentar enquanto ela finalizava sua ligação. Como sempre, ela usava

óculos pretos, um maxidress combinando e um ar de superioridade.

Atrás da sua mesa Lucite, no formato da Austrália, cinco novas

fotografias dos seus filhos estavam expostas na prateleira flutuante. O

cabelo castanho de Darwin estava todo para cima, como se ele tivesse

acabado de passar a mão nele. Ela observou seu rosto, sua pinta e seus

olhos castanhos sem ficar com vergonha, como se ele fosse uma obra de



164

arte pendurada para ela admirar. Não havia traço de culpa, saudade nem

dor dentro dela. Só admiração. Pela primeira vez em dias, só admiração. Ele

era perfeito.

De repente, Darwin piscou e Charlie engasgou. Ela acenou no caso

do live feed funcionar para os dois lados, mas Darwin não respondeu.

— Eu sei, e agradeço seu entusiasmo — Shira falou para o

seu bluetooth , soando entediada.

Do lado do porta-retrato de Darwin, Dingo estava curvado sobre um

caderno, certamente planejando sua próxima travessura elaborada. Taz

estava pendurado em um ventilador de teto. Sydney estava secando seus

olhos na manga do seu blazer . E Melbourne estava completamente parado,provavelmente trabalhando nas suas poses de modelo e manequim.

— Você está no topo da minha lista, se a proibição das influências

externas acabar, ok? Um beijo para o Jay. Até. — Shira apertou um botão

escondido na sua mesa Lucite e a ligação foi encerrada.

— Celebridades. São mais ferozes do que dragões de Komodo. —

Shira girou na direção da sua convidada. — Tim Tam? — Ela gesticulou

para a bandeja de cookies australianos importados.

Charlie jogou um na boca e se deleitou com aquela gostosura

derretida de chocolate. Shira pegou um cookie também e elas mastigaram

em um silêncio confortável. Por um segundo, Charlie esqueceu tudo sobre o

recente drama — ou trauma, na verdade — e se aconchegou na alegria de

dividir um lanche delicioso com uma mulher que ela conhecia desde que

nasceu. Era legal só ficar sentada ali e — espera aí! Charlie engoliu seco e

depois empurrou o prato de lado. Isso não era companheirismo. Era

síndrome de Estocolmo; uma situação em que vítimas de sequestros viram

MAPS dos seus raptores. Parecia altamente improvável que Charlie pudesse

sentir prazer na presença desse algoz em particular. Mas no estado

vulnerável em que se encontrava — sem amigas, sem namorado, sem mãe,

sem dormir e com aqueles Tim Tams — ela sentia. E então lembrou que

aquela pequena gentileza de Shira não era gentileza de verdade — só uma

extravagância para encorajar o bom comportamento.



165

Charlie bateu o pen-drive em cima da mesa de Shira.

— O que é isso? — Shira olhou, mas não encostou.

— Minha inscrição para a Academia Alfa. A redação, os históricos

escolares, tudo o que eu teria precisado para entrar por minha própria

conta — ela disse, as palavras assertivas saindo com mais sofrimento do

que um cálculo renal. — Espero que você veja que eu pertenço a esse lugar

e retire as condições colocadas no momento da minha admissão, a saber, o

término do meu namoro com Darwin e a demissão compulsória de Bee

Deery.

Charlie permaneceu sentada, esperando ouvir o retumbar do trovão

que Shira certamente faria cair em cima dela. Mas tudo o que ouvia era oseu próprio coração batendo dentro do seus ouvidos.

Shira bateu suas unhas longas na mesa Lucite e depois empurrou

o pen-drive de volta para Charlie.

— Rejeitada.

— Você não vai nem olhar? — Charlie perguntou, pasma. Ela tinha

imaginado que Shira iria ao menos ficar curiosa.

— Eu não preciso. Eu conheço você há quatorze anos, fofura.

— Então você deveria saber que eu não quero ser sua espiã.

Shira calmamente empurrou seus óculos escuros para cima do seu

nariz.

— Ah, minha querida. Espiã? Que coisa Disney! Deixa eu sugerir um

apelido mais sofisticado. Quem sabe VCA: Vigilante de Comportamentos

Alfa.

Charlie pensou na última vez que tinha feito ovos para Darwin. Eles

tinham ficado sozinhos em uma Villa na Toscana com uma geladeira que

não tinha nada além de ovos e condimentos. Ela queimou as omeletes, que

viraram uma gosma deprimente com consistência de plástico e rapidamente

os cobriu com ketchup, e rebatizou o prato de Ovos Marinara. Mas não

importava que nome tinha, deixou um gosto ruim na boca dela de qualquer

maneira.

— Eu não posso fazer isso.



166

Shira cruzou seus braços sobre o peito e se inclinou para trás.

— Se você tiver metade da inteligência que diz ter, você entenderá os

benefícios extraordinários dessa oferta.

Charlie ergueu a sobrancelha sinalizando que não fazia ideia do que

Shira estava falando.

— Você está na posição privilegiada de ser a única garota com a

garantia de chegar entre as duas últimas finalistas.

— E isso é um benefício? Ser sua espiã até a alfa de verdade ser

revelada?

— VCA.

— Certo, como você quiser chamar. Mas para que ficar se eu nãotenho uma chance justa? — Charlie riu amargamente ao perceber que não

tinha percebido que não havia conjuntura, nem agora nem nunca, em que

Shira iria olhar para ela como uma competidora de verdade. Ela se

detestava por ter alguma vez considerado outra coisa.

— O segundo lugar também é motivo de se orgulhar — Shira baixou

a sua voz — , para a maioria das pessoas. — Ela olhou para o vão da

entrada onde Fiona pairava, bem como Bee fazia.

Shira empurrou a mesa e ficou de pé, desamassando seu vestido

preto fluido.

— Com licença, eu preciso aprovar a nova fonte para o Updates da

Ilha — ela disse, seguindo Fiona porta afora. — A antiga era tão... comum,

você não acha? — Ela piscou para Charlie, e depois escapuliu lá para fora.

Charlie fechou as mãos em punhos raivosos. Ela odiava Shira mais

do que dor de barriga. Mais do que garotas que a chamavam de Charlie

Brown-nose. Mais do que...

Charlie piscou. A imagem de Dingo estava se movendo. Ele estava

atravessando sorrateiramente o quarto na direção do retrato em tamanho

real do seu pai. Depois de alguns apitos, o quadro se abriu e Dingo

desapareceu lá dentro.

— Ah, meu Deus. — Charlie se empertigou na cadeira.



167

Como um fósforo acendendo uma vela, os seus neurônios brilharam

com uma ideia genial.

Na última semana antes de a escola ser inaugurada, ela tinha

inventado uma última preciosidade para a sua mãe. Com tantos edifícios e

túneis e tanta tecnologia para dar conta, Bee e Shira teriam que ficar com

cem chaves em suas mãos o tempo inteiro. Então, Charlie havia criado uma

chave-mestra dourada que cancelava todos os sistemas de segurança da

ilha. Outro dia mesmo, Shira estava com ela nas mãos...

Se ela conseguisse pegá-la de alguma maneira e entregar para as

Jackie Os, elas poderiam encontrar os garotos nos túneis, sem serem

detectadas. E saberiam que Charlie estava do lado delas, mesmo sendo aVCA. Elas seriam amigas de confiança em pouco tempo. Irmãs de braços

dados. O único furo, além de uma vida na prisão se fosse pega, era que ela

estaria ajudando Allie J e Darwin se apaixonarem.

Sentiu o gosto amargo dos Tim Tams parcialmente digeridos na

garganta. Isso era a última coisa que ela queria. Mas se ela quisesse ficar

na academia, ela precisava ser uma VCA. E ela queria ficar. Ver Darwin

com alguém era melhor do que não vê-lo de maneira nenhuma.

Charlie suspirou e olhou em volta do escritório. Da última vez, o

dispositivo dourado estava na mesa de Shira. Mas hoje não. Tudo o que ela

via era a estante de livros, os porta-retratos, o globo preto e branco, o livro

gigante sobre a vida de Shira, o... — espera aí, volta lá... o globo preto e

branco !

Se ela tinha aprendido alguma coisa no tempo que passou com

Darwin era onde Shira escondia as suas chaves.

Sem pensar mais, ela tocou na “senha” que destravava o globo (a

cidade natal de Shira, Adelaide, onde ela tinha conhecido o falecido

marido). E, realmente, lá estava a chave reserva, piscando para ela como

um cãozinho na pet shop , implorando pra ela levá-lo para casa.

Rapidamente, ela deslizou a chave para o bolso da sua saia e fechou

o globo bem quando a porta do escritório se abriu novamente. Ela se virou,

com o coração batendo forte.



168

— Fonte aprovada. Agora, onde a gente estava?

— Eu já estava de saída — Charlie falou abruptamente, se

aproximando da porta.

— Não tão rápido. — A rispidez de Shira a fez parar imediatamente.

Charlie girou nos calcanhares das suas gladiadores transparentes,

com o pulso acelerado.

— Sim? — Ela ordenou para sua voz não tremer.

— Temos um trato? — Shira piscou inocentemente.

— Ah sim. — Charlie sorriu realmente aliviada. — Eu pensei a

respeito e você tem razão. VCA é uma boa oferta para uma garota como eu.

Ela andou de costas até o átrio de vidro da entrada e se forçou a irembora caminhando lentamente.

Mas no segundo em que chegou lá fora, começou a correr.

O ar da noite tinha cheiro de flor de laranjeira e esperança. Se Bee

pudesse vê-la agora, teria feito Charlie marchar de volta lá para dentro para

devolver a chave. Mas Charlie não se importava. Shira tinha tirado tantas

coisas dela que era justo que ela tirasse alguma coisa de Shira. E tudo o

que queria em troco eram algumas amigas.

E vingança.



169

20

ILHA ALFA

PRAIA DA AREIA ROSA


23:19

Allie J: D, to aqui

Allie J: Vc tah escondido?

Allie J: Super escuro. Tô com frio.

Allie J: Hummm, vc ouviu isso? Tem lobos na ilha?

Allie J: Vou voltar antes q seja atacada.

Allie J: Espero que n tenham pego vc.

Allie J: Tchau.



170

21

PRAIA AFRODITE

JARDIM DE ESCULTURAS EROS

QUARTA, 8 DE SETEMBRO

11:19

Allie seguiu o APS no seu aPod em direção à locação não revelada da

aula de redação de hoje. Apesar do canto dos pássaros e do sol radiante, ela

se sentia como uma morta-viva, a caminho do próprio funeral.

Ficar mandando mensagem sozinha no escuro na noite anterior,

cercada por feras noturnas, enquanto esperava um paquera que nunca

apareceu tinha sido mais doloroso do que uma depilação com linha no

rosto inteiro. Será que Charlie o tinha roubado de volta? Será que ele tinha

conhecido outra pessoa? Será que estava se afastando depois do incidente

vergonhoso do poema do triângulo? Talvez ele tivesse descoberto a arte de

Trina e estivesse indo para o continente para pedi-la em casamento. Nãoque importasse. O estrago já tinha sido feito. O coração de Allie estava mais

despedaçado do que a sola do seu pé, e a sua autoconfiança estava

reduzida ao tamanho da sua pinta de lápis de olho.

— Continuem para o oeste. O Jardim de Esculturas Eros vai

aparecer em aproximadamente noventa e sete passos... — a voz britânica

no seu aPod ensinou. — Cinco passos até você chegar à praia...

Seus pés descalços doloridos suspiraram de alívio ao afundar no

caminho coberto de areia rosa que levava ao Jardim Eros. Coqueiros



171

cercavam a passarela e uma brisa suave que cheirava a café farfalhava o

cabelo de Allie.

— Allie J! — alguém respirou atrás do seu pescoço.

— Ah! — Allie soltou um grito sufocado. Ela se virou e viu Hannah

em pé atrás dela.

— Finalmente — Hannah falou ofegante. — Eu estava te chamando.

Com quem você estava falando?

Allie ficou vermelha. Às vezes, nos momentos de extremo stress , ela

falava sozinha.

— Percebeu alguma coisa diferente? — Hannah fez uma pose. Estava

mais para espantalho do que para top model , e Allie teve que rir.Ela encostou seu dedo sedento por álcool gel nos lábios.

— Sua pele não está tão cadavérica, seu cabelo não está tão preto

como o de uma bruxa e você não está engessada em maquiagem gótica. —

A única coisa que continuava igual era o brinco de safira que brilhava na

narina esquerda de Hannah. E com todas as outras mudanças, ficava

quase maneiro.

— Bom, Keifer é toda a favor de você ser você mesma — Hannah

explicou, continuando pelo caminho. — E aí, por que não ficar mais

natural? Sabe, para honrar a verdadeira essência da escrita. E, claro, a

minha verdadeira essência também.

A inveja ardeu em Allie como uma rajada de desodorante em axilas

recém-depiladas. Se ao menos ela pudesse arrancar o seu disfarce e honrar

a sua verdadeira essência. Mas o que exatamente era isso? Uma modelo

de shopping sem talento, com um jeitinho para ter seu coração partido?

Ultimamente ela se sentia tão natural quanto um pacotinho azul de Equal.

O aPod de Allie piscou como se ela tivesse ganho na loteria.

— Bem-vinda ao Jardim de Esculturas Eros! — a inglesa falou de um

jeito afetado.

Piscinas de água em forma de língua lambiam a costa, que era feita

de areia rosa e cravejada com uma dúzia de famosos apaixonados

esculpidos em pedra: Adão e Eva, Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Cupido



172

e Psique, Krishna e Radha, Patrick Dempsey e a infame da mulher dele. As

outras alunas se esvaíram para a praia. Em volta das estátuas, elas

estendiam as mãos delicadamente e cutucavam temerosas, como se as

estátuas pudessem criar vida a qualquer momento.

Aqueles amantes, lado a lado por toda a eternidade, significavam ao

menos seis relacionamentos que haviam aguentado o teste do tempo. Houve

um tempo em que Allie pensou que ela seria o número sete. Agora não

mais.

Pombas de asas brancas voavam no céu. Elas arrulhavam haicais de

amor, enquanto casais de borboletas descansavam nos ombros de pedra

dos eternos amantes, se aconchegando no calor da união deles. Asfolhagens das palmeiras se enroscavam rapidamente toda vez que soprava

uma brisa, como namorados secretos desesperados para se tocar quando

ninguém está olhando.

Tipo, séeerio? Existia alguma coisa mais deprimente do que estar em

um jardim do amor com o coração duas vezes partido e uma escritora

pretensiosa com hálito de café?

Hummm, não.

— Por que Shira criaria um jardim do amor se ela é tão contra

garotos? — Allie perguntou, para evitar o choro.

— Você sabe o que dizem. — Hannah se inclinou mais para perto. —

Quem não sabe fazer, ensina.

— Olha! — Allie apontou com um grito, escapando do hálito de café

de Hannah antes que suas lentes embaçassem. Depois galopou na direção

da estátua mais fascinante de todas. Debruçado sobre a água, olhava o seu

próprio reflexo com enorme intensidade. Como ela, ele teve o infeliz destino

de estar solteiro no jardim do amor.

Enquanto ela procurava por uma placa de explicação ou alguma

coisa que pudesse explicar aquele infeliz estado civil, um traço de jasmim

indicou que não estava mais sozinha.



173

— Fascinante, não é? — Keifer esfregou as costas da estátua

afetuosamente. Sua franja preta picotada estava presa para o lado,

deixando o seu batom vermelho intenso ser a estrela.

— Narciso era tão vaidoso que se apaixonou pelo próprio reflexo e se

afogou. — Ela dirigiu seu olhar para Allie. — O que você acha disso?

Hã, eu sei como é a parte de se afogar , ela queria dizer. Mas em vez

disso, buscou dentro da sua alma e falou:

— Os pais dele devem ter ficado superchateados.

— Eu acho que é uma metáfora para pessoas que usam o amor como

um espelho. Em vez de ver a outra pessoa, elas veem a si mesmas. Sempre

elas mesmas. E como aquelas pessoas as afetam. Triste, não é? — Comisso, Keifer deu meia-volta e se afastou sem mais palavras.

Ela estava mais para confusa. Será que Keifer estava tentando dizer

alguma coisa para ela? Não era como se Allie estivesse apaixonada por si

mesma. Ela odiava seu cabelo preto. Além disso ela gostava muito de

Darwin. E estava de coração-partido por causa de Fletcher. E além do mais

acontece que ela era uma excelente nadadora.

Então Darwin apareceu na praia e o mundo ficou em câmera lenta.

Seu cabelo cor de caramelo flutuava em volta do seu rosto, cada fio perfeito

brilhava na luz do sol.

Ele andou até as estátuas de Adão e Eva. Seus passos largos e

tranquilos não pareciam exigir nenhum esforço comparado ao andar

afetado e ensaiado de Fletch. A cada passo, a areia formava ondas em volta

dele, como se cada grão estivesse pulando para beijar suas pernas

bronzeadas. Charlie deu uma olhada para ele e sorriu sem jeito. Darwin

baixou a cabeça, mas ficou perto das estátuas — e de Charlie. Descalços,

seus dedos pareciam felizes em se encontrar. Suas bocas, não.

Allie se sentiu como se estivesse vendo uma comédia romântica com

o som desligado — o tipo que a deixava afundada em lágrimas antes mesmo

de o primeiro ato acabar.

Keifer assoviou estridentemente e todo mundo se juntou ao redor

dela. A areia seca empanou os pés molhados de Allie e se abrigou entre os



175

escapar entre seus dedos como numa ampulheta. — Vocês têm dez

minutos.

Todo mundo abriu os olhos e correu para começar.

Allie rapidamente deu uma esguichada de álcool gel e esfregou

vigorosamente. Mas pela primeira vez na vida suas mãos não queriam se

esterilizar — queriam escrever. Ela se encostou no quadril de Narciso e

tentou ignorar o fato de que Darwin a estava ignorando. E depois se deixou

ir.

Ela só deixou seus globos oculares passearem uma vez — Darwin

fazia uma careta adorável com os lábios e escrevia no tablet com convicção.

Hannah girava o brinco do seu nariz, pensativa. E a ponta da língua deCharlie despontava para fora da sua boca enquanto ela procurava a palavra

perfeita pelo céu sem nuvens.

— Tempo — disse Keifer, com os dedos esvaziados de areia.

Allie abaixou seu tablet , se sentindo mais leve — como na primeira

vez em que depilou as pernas.

Ela olhou fixamente para a água, se perguntando se talvez Narciso

não teria tido a ideia certa se apaixonando por si mesmo. Ela nunca

trocaria ela mesma por Charlie. Ou Trina.

— Allie J, esse vai ser perfeito para você — a voz de Keifer

interrompeu sua fantasia. — As suas músicas sempre terminam num tom

positivo. Por que você não começa hoje?

O sol batia forte atrás do seu pescoço, mas foram os sete pares de

olhos fixos nela que a fizeram suar. Os olhos castanhos de Darwin

penetraram nos seus, e não pôde deixar de pensar que ele estava

implorando que ela ficasse longe de triângulos.

Baixando o olhar para a sua tela, bloqueou tudo e todo mundo. Ela

conseguiria fazer isso....

— Tudo aqui é radiante e alegre como uma risada da Crest

Whitestrip. Você poderia tirar uma foto com seus olhos fechados e mesmo

assim conseguir uma foto perfeita como um cartão-postal. Cada centímetro



177

onda de ansiedade se abateu sobre Allie e ela não aguentou mais. Jogou

seu tablet na areia, ficou de pé e começou a correr.

— Allie J! — Keifer chamou. — Pare!

Mas Allie não podia. Correu tão rápido quanto podia com os pés

descalços, como se estivesse tentando correr mais rápido do que ela

mesma, tentando arrancar sua pele impecável e as expectativas que vinham

com ela.

Alcançou as árvores e voltou para o bosque sem olhar para trás.

— Allie J! — Keifer tentou mais uma vez.

Mas Allie J não era o nome dela, e ela não iria responder a ele. Não

mais.



178

22

TEATRO DE DIONÍSIO



14:44

Skye estava sentada no canto do estúdio de dança, elevando seu

tornozelo inchado em uma Cadeira de Recuperação, uma poltrona La-Z-Boy

recheada de gel e que alternava de quente para frio a cada vinte minutos

para prevenir que os machucados virassem cirurgias. Também funcionava

uma maravilha para cabeças inchadas. Mais uma aula sentada na lateral

da sala e o ego de Skye ficaria do tamanho de um poro maquiado com

aerógrafo.

Mimi caminhava afetadamente enquanto demonstrava um cabriolé.

Ela aterrissou a um metro do pé de Skye, ofegante:

— Pausa na música! — Todas as dançarinas pararam junto com amúsica e Mimi foi até a Cadeira de Recuperação. Ela colocou as mãos os

quadris. — Mangas, você desistiu completamente?

— Não, claro que não. — A espinha com calafrios de Skye se retesou.

Do que Mimi estava falando? Ela tinha passado a maior parte do

tempo decorando cada passo; será que ela não via os olhos de Skye

trabalhando hora extra? Os pés da sua cabeça se moviam com a coreografia

de Mimi, seu tornozelo latejando no ritmo do jazz . Aplicada, assistia às



179

garotas incorporando árvores, enquanto se sentia uma sequoia derrubada

criando limo.

— O que é isso? — Mimi perguntou olhando para a sapatilha de

Skye. O cetim dourado estava arruinado com uma crosta que parecia pasta

de dente.

Tríplice riu maliciosamente, como se quisesse que a sala toda

soubesse que ela era parcialmente responsável.

— Eu não sei — Skye mentiu. Mas, fala sério, o que é que ela podia

dizer? Minhas colegas de quarto escreveram Spy Hamilton com creme de

barbear e eu pisei no meu caminho para o banheiro? É um caso de erro de

identidade de espiã? Por favor não me mande para casa? Mimi balançou a sua cabeça.

— Uma verdadeira dançarina sempre sabe o que está nas suas

sapatilhas. — Dito isso, ela pavoneou de volta para a frente da sala,

prestando atenção onde os seus pés segurados estavam pisando.

As outras viraram as costas para Skye, como se o seu tornozelo

inchado fosse mais contagioso do que gripe suína. Até Piu-Piu e Ophelia

pareciam desinteressadas, numa onda de você só é tão boa quanto o seu

último soutenu. E elas meio que tinham razão. Para que servia uma garota

que não tinha amigas nem o que mostrar? A não ser que elas pretendessem

sacrificá-la para os deuses alfa ou doar seus órgãos para estudantes de

ciência, Skye estaria embarcando em um APA até o sol se pôr.

Mimi bateu uma palma com força.

— Mesmo as menores falhas podem sabotar uma performance. E a

maior parte dessas falhas são hábitos que vocês pegaram quando estavam

começando. — Um cacho preto em forma de saca-rolha escapou do seu

coque e quicava do lado da sua bochecha. Skye invejou a sua impertinência

brincalhona e seu brilho natural, duas qualidades que ela não possuía

mais.

Mimi arrancou seu aPod da pochete no seu quadril e apertou alguns

botões. Seis hologramas piscaram e ganharam vida.

— Uau!



180

— Incrível!

— Essa sou eu?

— Ahmeudeus!

Olhando fixamente para Skye, do outro lado da Cadeira de

Recuperação, havia uma garotinha vestida com um tutu. Uma trança de

raiz prendia o seu cabelo louro ondulado bem apertado como uma touca de

natação. Estavam faltando dois dentes do seu sorriso largo e as

sobrancelhas louras quase brancas se assentavam como laços de seda

branco em cima das caixas da Tiffany azul que eram os seus olhos.

— Garotas, conheçam vocês mesmas mais novas — Mimi anunciou

com um sorriso alucinado de cientista louco. Seus olhos castanhosamendoados estavam radiantes de orgulho. — Nós criamos uma

composição no computador baseada nas fitas de apresentações que vocês

mandaram junto com as suas inscrições. Eu localizei o momento exato em

que vocês se desviaram da perfeição e queria que vocês também

descobrissem. Precisamos localizar e compreender o problema para que

possamos corrigi-lo.

Tríplice levantou a sua mão e falou.

— Hum, com licença, Mimi, mas, hum, e se a gente não tiver

nenhum problema?

— É — algumas outras fizeram eco.

As costelas da professora se encheram de ar contra o seu body cor de

bronze e depois recuaram, como um cachorro raivoso acorrentado a uma

cerca.

— Ah, você tem defeitos, Andrea, pode acreditar. Começando pela

sua necessidade de se chamar por um apelido para todo mundo saber que

você tem talento. Mas isso é assunto para o departamento de psicologia. Eu

estou aqui para me concentrar nas falhas físicas, e você tem várias. Todas

vocês têm.

Skye alongou seus pulsos nervosamente, rezando para Mimi evitar

envergonhá-las em público.



181

— Por exemplo — Mimi passeou pela fileira de cinco. — Andrea, você

é bastante precisa, mas lhe falta paixão. Eu assisto você dançar e lembro

de quando eu praticava beijo com um espelho. Eu conseguia fazer, mas não

sentia nada.

Piu-Piu deu um risinho.

— Eu não sei do que você está rindo, Lacey. — Mimi rodeou a garota

com a cabeça balançando. — Você parece um pirulito. Se quiser melhorar,

coloque mais energia do pescoço para baixo, ou o seu crânio vai sempre

brilhar mais do que você.

A temperatura na Cadeira de Recuperação mudou para gelada. Mas

Skye não conseguia parar de suar enquanto Mimi fazia sua ronda. — Sadie, deixe para picotar nas suas aulas de culinária. Aqui eu

quero transições suaves. Ophelia, eu vou arrancar a sua trança se você não

transformá-la em um coque. Está tirando o seu equilíbrio. A gente dança

com o coração, não com o cabelo. Prue, você está muito presa.

Prue sorriu aliviada.

— Só coma cereais por três dias seguidos. Se isso não resolver o seu

bloqueio, considere uma carreira de manequim. E Mangas... — Mimi fez

uma pausa para recolocar o cacho errante de volta à submissão. — Pare de

procurar amor no estúdio. Encontre dentro de você. Se você não encontrar,

vai dar com a cara nas paredes pelo resto da vida. A sua improvisação não

fascina, distrai. Aperfeiçoe os movimentos e só depois acrescente as firulas.

As garotas ficaram paradas em um silêncio de pavor. Depois de uma

vida inteira ouvindo que eram a melhor entre as melhores, elas tinham sido

reduzidas a poças de suor — Skye inclusive. Só que o seu suor tinha

congelado e virado uma camada de gelo salgado, graças à Cadeira de

Recuperação.

Será que Mimi estava certa sobre ela? Talvez. Afinal, ela estava certa

sobre as outras. Mas ao repensar as palavras da sua professora, Skye

sentiu seu espírito congelado criogenicamente se animar. A crítica de Mimi

foi sobre a sua personalidade, não sobre a sua desenvoltura. Talvez ela

tivesse realmente que se despir de toda aquela autoconfiança e abrir a



182

cabeça. Ouvir os seus professores e reconstruir sua base. Tipo como se

Ícaro colocasse um novo casaco de cera nas suas asas derretidas e

prometesse não voar tão alto da próxima vez. Claro que Ícaro estava morto,

mas Skye só estava machucada. Ainda havia tempo. Ela ainda tinha uma

chance.

— Eu quero que vocês passem o resto da aula estudando suas

versões mais novas para ver se vocês conseguem apontar o momento em

que as suas habilidades azedaram. Mimi bateu uma palma. — Música!

Dançarinas, comecem.

As garotas observavam abismadas enquanto suas “mini me ”

dançavam pelo estúdio, apresentando coreografias que elas não viam haviaanos.

A mini Skye sentou no braço da Cadeira de Recuperação, indiferente

ao frio.

— Dance — Skye ordenou, se sentindo meio maluca de falar com o

fantasma do seu passado.

A garota olhou para Mimi e depois para as outras dançarinas e

balançou a cabeça.

— Por que não? — Skye pressionou.

— Ninguém está olhando. Eu vou esperar até elas estarem prestando

atenção em mim. Aí sim, eu danço.

Problema identificado.

Skye tinha passado a vida dançando para os outros: Natasha,

Madame P, suas amigas, seus paqueras...

O que amava: dançar ou se apresentar? Era uma pergunta difícil de

responder. Ninguém a tinha feito pensar sobre isso até agora. Ela se

lembrava de uma época em que dançar era a única coisa que importava.

Antes de ela ser boa o suficiente para chamar a atenção. Antes de ficar

viciada em aplausos. Antes de isso ser o que a fazia ser especial.

— Desculpa — Skye se ouviu dizer para a menina que piscava.

— Por quê?



183

— Por tudo — Skye murmurou, pensando em como foi que ir pra

o spa com garotas que nem estavam falando com ela tinha ficado

parecendo mais importante do que ensaiar. Como paquerar com Taz

poderia ter feito ela ser expulsa. Como tentar dançar melhor do que Tríplice

tinha deixado ela em uma cadeira que esquentava e esfriava mais vezes do

que o namoro de Blair e Nate.

Levantando a bunda da cadeira, Skye sorriu para ela mesma mais

nova.

— Quem se importa com quem está olhando? Vamos dançar! Eu vou

assistir.

A pequena Skye pulou de animação e começou a sequência da suaprimeira apresentação de jazz , quando tinha cinco anos.

Skye testou seu tornozelo fazendo um simples barrel turn . Ai! Uma

agonia reverberava pelo seu corpo como um daqueles garfos para checar

afinação. Na escala de dor — um sendo se cortar com um papel e dez sendo

um picador de madeira — era um seis.

Ela tentou de novo.

— Ophf! — O movimento elevou sua dor para nove e ela caiu de

joelhos. Por sorte, Mimi estava muito ocupada dando tapinhas nas costas

de Tríplice para perceber.

— Corta a Música! — gritou Mimi e Skye rastejou de volta para a

poltrona. Um tom novo, violeta escuro estampou no seu tornozelo dolorido.

— Hora de dizer adeus para o passado de vocês — Mimi anunciou. —

Para sempre.

Um coro de “adeus” ecoou pelo estúdio de vidro. Skye abraçou a

versão mais jovem dela mesma até estar segurando apenas o ar.

— Vocês não são mais as seis dançarinas fenômeno escolhidas a mão

por Shira. Vocês são uma massa inerte de argila aguardando receber uma

forma pelas minhas mãos, e só pelas minhas mãos. — Mimi encarou Skye

quando disse inerte . — Esta noite eu quero que vocês trabalhem para

exorcizar seus demônios. Dancem a coreografia de hoje até as falhas de

vocês descascarem como uma pele velha e vocês poderem lavá-las ralo



184

abaixo. Eu vou dar notas para o progresso de vocês amanhã. — Ela jogou

sua bolsa de dança preta sobre o ombro e deslizou para fora sem dizer mais

nada.

Prue fez uma careta ao libertar seus pés das sapatilhas. Seus dedos

estavam sangrando. Ophelia balançou e soltou seu cabelo. Piu-Piu

massageou seu pescoço. E Mercedes se jogou no chão como uma estrela-

do-mar.

— Vamos lá! Temos trabalho a fazer. — Tríplice foi em direção à sua

bolsa, acenando com a cabeça para as outras garotas se juntarem a ela.

Mas elas fizeram uma pausa coletiva, não inteiramente prontas para

voltarem a se unir à estrela que as tinha superado mais uma vez. — Eu não consigo me mexer — Prue reclamou.

— Para quê? — Ophelia perguntou. — Eu não posso mudar dez anos

de hábitos de dança da noite para o dia.

— Eu acho que eu vou me concentrar na culinária e deixar a dança

apenas como um hobby — suspirou a ruiva.

Skye chamou a atenção das garotas com uma palma.

— Não desiste, Mercedes!

— É Sadie — a ruiva corrigiu.

— Ops.

— Olha quem está falando. — Prue esfregou seus dedos dos pés. —

Você já desistiu há dias.

— Desde quando se machucar é desistir? — Skye retrucou, mudando

o peso para o tornozelo sadio. — Tudo bem que eu estava sentada na lateral

da sala, mas eu estava prestando atenção. E eu sei essa coreografia melhor

do que qualquer uma de vocês. E acontece que eu concordo com Mimi.

Todas nós temos o que melhorar. E como eu não posso fazer, eu instruo

vocês — falou Skye sem pensar. — Se alguém se interessar.

— O que você ganha com isso? — Sadie sentou e se alongou

tentando tocar as pontas dos pés. — O direito de se gabar?

— Eu nem vou mencionar isso para Mimi. Eu só quero voltar para a

dança. E essa é a única maneira... por enquanto. — Ela vestiu suas



185

mangas de renda preta, se sentindo como o Super-Homem depois de ter

ficado restringido a Clark Kent por tempo demais.

O coração de Skye batia loucamente enquanto elas consideravam a

sua proposta impulsiva.

— Eu quero saber o que Mimi vai achar de você modelar as massas

dela. — Tríplice se encostou na barra, com uma expressão divertida no

rosto.

— De onde eu venho, os profissionais não se importam de onde vêm

as boas ideias, desde que elas venham. E Sadie, quem sabe? Talvez o Robô

faça um retorno. Mas eu duvido. — E com isso, Skye mancou até a porta,

gastando bastante tempo. — Skye, espera! — Ophelia chamou. — Você pode encontrar a gente

aqui depois do jantar?

— Eu já estava planejando isso. — Skye sorriu para si mesma e

continuou a mancar.

Ensinar não era muito a sua. Em casa ela tinha feito isso para elevar

a qualidade da marca CVED e ajudar suas MAPS. Essas garotas não eram

exatamente suas MA, mas talvez o ponto fosse esse. Ela estaria fazendo

aquilo estritamente por amor à arte — não pelas palmas que vinham junto

com ela. Seria a sua oportunidade de ensinar à Pequena Skye o verdadeiro

significado de dedicação — e talvez até fazer umas amigas para a Skye

Grande no processo.



186

23 JACKIE O

CHUVEIRO


15:07

— RE-JEI-TA-DA!

— Droga! — Charlie esmurrava de frustração a parede do chuveiro,toda ladrilhada com moedas. — Ai, ai, ai! — Ela apertou os lábios contra a

sua mão que latejava, induzindo ambos ao silêncio. O aPod dela continuava

apitando, sinalizando que ela deveria estar no seminário DMA (Dominando

Machos Alfa), mas em vez disso estava escondida no boxe decorado de

moedas internacionais, agachada entre sete chuveiros jorrando água com

infusão de lavanda.

Em função da expectativa de privacidade que existia em se tratando

de um banheiro, Shira não pôde instalar câmeras ali sem violar a lei.

Então, apesar da nuvem de vapor e da umidade que enrolava o seu cabelo,

aquele era o lugar perfeito para descobrir a combinação da chave-mestra.

Infelizmente, a única coisa que tinha aberto até agora eram os seus

poros.

— Ok, Shira. Vamos tentar o seu CEP. — Charlie digitou

vigorosamente “6-6-6” com uma risada marota.

— RE-JEI-TA-DA! — a voz robótica da chave respondeu.



187

Um pingo de água pousou na sua bochecha como uma lágrima

quente. Ela limpou impacientemente.

Ela tentou a data de fundação da Alfa Girl International: 9-1-9-1-9-9-

0.

— RE-JEI-TA-DA!

3-5. A idade de Shira para a imprensa.

4-3. Sua idade real.

— RE-JEI-TA-DA! RE-JEI-TA-DA!

4-2. O aniversário de Darwin.

5-2-4. O aniversário de Melbourne.

9-1-9. O aniversário de Sydney.8-9. O aniversário de Taz e Dingo.

2-2-6-3-9. Bandy, o nome do falecido marido de Shira, soletrado no

teclado.

3-5-8-3-3-9. Fluffy, o nome da chinchila que ela teve na infância.

5-4-5-5-3-7. Killer, o nome de seu gato recentemente falecido.

7-2-8-2. Satã, o pai de Shira. Brincadeira!

2-5-7-4-2. Alfa.

1-7-8-3. O número de escritórios que Shira tinha pelo mundo.

6-7-9-1. O número de assistentes que Shira havia contratado.

6-7-9-0. O número de assistentes que Shira havia demitido.

(Tecnicamente, Bee tinha se demitido.)

1. O número favorito de Shira.

9-5. O dia que Shira conseguiu terminar o namoro de Charlie e

Darwin.

— RE-JEI-TA-DA! RE-JEI-TA-DA! RE-JEI-TA-DA! RE-JEI-TA-DA! RE-

JEI-TA-DA! RE-JEI-TA-DA! RE-JEI-TA-DA! RE-JEI-TA-DA! RE-JEI-TA-DA!

RE-JEI-TA-DA! RE-JEI-TA-DA! RE-JEI-TA-DA!

— ARGGGG! — Charlie bateu a cabeça contra uns pesos. Até uma

chave a estava rejeitando. O vapor, a frustração e a ansiedade estavam

transformando respirar em uma coisa impossível.

Pense, Charlie. PENSE!



188

Não tinha chance de Shira ter escolhido uma coisa aleatória. Uma

mulher que controlava o tempo não ia deixar nada nas mãos do acaso.

Charlie entrelaçou as suas pulseiras de camafeu no pulso. Enrolou

com tanta força que um dos camafeus se abriu e a foto da sua mãe sorriu

para ela.

Óbvio!

Não admira que não estivesse conseguindo descobrir o código Brazille

— não tinha sido Shira que tinha criado. Bee é que tinha. Bee planejava

tudo para Shira — por que não isso também?

E Charlie sabia sem hesitar o que era importante para a sua mãe.

2-4-2-7-5-4-3. Charlie. — A-CES-SO CON-CE-DI-DO.

— Há! — Charlie riu, chutando os jatos de água com os pés. —

Consegui!

Em poucas horas ela levaria as Jackie Os para os túneis, onde Dingo

tinha desaparecido, quando tinha fugido por trás do retrato de Bandy.

Aquele era o único lugar, fora os banheiros, em que o exército digital de

Shira não conseguiria encontrá-las. Mas além de fazer amigas, ela estaria

entregando Allie J para Darwin, de mão beijada. Subitamente as palmas

das mãos de Charlie começaram a suar e ela achou difícil respirar. Era

como levar um coiote para brincar com o seu cachorrinho. Mas ela tinha

partido o coração de Darwin, e o mínimo que podia fazer era ajudar a

remendá-lo. E se tudo saísse de acordo com o plano, ela teria uma casa

cheia de novas MAPS remendando o seu.

Agora tudo o que Charlie tinha a fazer era permanecer seca e

esperar....

Finalmente a porta do banheiro se abriu. Pés descalços correram

contra o mármore aquecido.

— Allie J? Vem cá — Charlie sussurrou do chuveiro. — E traz creme

de barbear.

— Eca, de jeito nenhum!



189

Charlie riu para si mesma, pensando em como aquilo tinha soado.

— Confia em mim, não é nada bizarro, eu juro.

— Por que eu confiaria em você? — Allie J gritou o seu sussurro.

Charlie encostou a boca na fresta da porta do boxe.

— Porque eu tenho uma coisa para você.

— Duas vezes eca! — Allie J soava enjoada. — Eu gosto de garotos,

tá?

Charlie virou os olhos.

— Eu sei. É isso o que eu tenho para você.

Allie J deu uma pausa.

— Hã?Charlie inspirou fundo, buscando forças, ou, melhor dizendo, se

forçando a dizer a próxima palavra.

— Do que é que você está falando? — Allie perguntou rispidamente.

— Darwin. — Charlie engoliu com dificuldade o gosto amargo do

sacrifício. Sua cabeça ficou tonta. Ela tinha falado. Não tinha volta.

Allie J abriu o boxe com cautela, com uma lata de Pure Silk na mão.

— Se isso é uma manobra para me fazer te ajudar a raspar alguma

área de difícil acesso, eu não...

Charlie revirou os olhos e puxou Allie J para dentro do chuveiro.

— Ahhhhhh! — A água salpicou sobre todo o seu corpo. — Meu

cabelo!

Na hora do pânico, ela enfiou seu cabelo preto dentro da sua blusa

cor de champanhe de maneira um pouco exagerada; um comportamento

estranho para alguém que atravessava banheiros comunitários descalça.

— Shhhhh! — Charlie apanhou a lata de creme de barbear e

escreveu SOU ESPIÃ na sua perna direita, para o caso de os ouvidos sobre-

humanos de Thalia estarem na área de alcance. A confissão tinha cheiro de

óleo de bebê e alívio.

— Eu sabia! — Allie J exclamou, ainda enchendo a blusa em pânico.

— Espera. Por que você está me contando?



190

AGENTE DUPLO Charlie escreveu na sua coxa esquerda, e depois

colocou a lata no chão.

— Por que você...

Charlie cobriu a boca de Allie J.

Allie J agarrou a lata e escreveu nos espaços entre as tiras da sua

gladiador.

POR QUE VC ESTÁ ME CONTANDO?

QUERO AMIGAS, Charlie escreveu no seu braço. Ela detestava

quanto isso soava patético, mas decidiu não ligar. Era a verdade.

— Por que eu confiaria em você? — Allie J perguntou alto.

Charlie mostrou a chave dourada e depois escreveu: ROUBEI DE S.ABRE TÚNEIS PARA PODERMOS ENCONTRAR GAROTOS.

Os olhos verdes de Allie J piscaram em uma surpresa genuína.

Depois ficaram duros como esmeraldas.

— Ah, entendi. Você está aprontando para mim para eu ser mandada

embora e você poder ficar com Darwin só para você.

Charlie balançou a cabeça. Por um momento ela não pôde acreditar

que estava realmente tentando empurrar o amor da sua vida para uma

solteira superpegável.

— Ele não me quer mais — ela conseguiu dizer. — Ele gosta de você.

Allie J espremeu os olhos como se estivesse tentando enxergar

Charlie a distância.

— “Garotos vêm e vão, mas eu vejo no final que são meus amigos que

me completam...” — disse ela, citando o refrão de “Eu gosto dos meus

garotos como o molho da salada à parte”.

— Hã? — Allie J piscou, confusa.

— Você pelo menos acredita na sua própria letra? — Um jato de água

atingiu a boca de Charlie. Ela cuspiu.

Uma expressão de pânico atravessou o belo rosto de Allie J.

— Não, eu-eu acredito — ela gaguejou. — Claro que acredito.



191

— Então você entende como eu me sinto. Darwin era a minha vida. E

agora que a gente acabou, eu não tenho nada. Eu quero seguir com a

minha vida. Eu quero amigos.

— Tudo bem — disse Allie J. — Mas a gente precisa incluir Skye. Ela

está deprimida por causa do tornozelo e... — Sua voz fraquejou por um

segundo. — E o fato de que a gente meio que a acusou de ser a espiã.

— Tudo bem — Charlie concordou.

— Mas sem Tríplice — Allie J acrescentou rapidamente. — Ela pode

contar.

Charlie sorriu.

— Combinado.Allie mandou uma mensagem de texto para Skye e, em apenas

alguns minutos, Skye mancou pela porta do banheiro, com seu cabelo

ondulado saltitando em volta dos seus ombros.

— Hum, toc toc — Skye bateu animadamente na porta do box. — O

que vocês duas estão fazendo no chuveiro? Juntas?

— Entra! — Allie J puxou Skye para o recinto cheio de vapor e depois

contou a novidade de que C. É A ESPIÃ via creme de barbear.

Skye enfiou seu pé em uma poça com cheiro de lavanda.

— Eu disse que não era eu! — Ela parecia mais aliviada do que

surpresa. — Então quem vai ser a próxima que você vai entregar? Meu

tornozelo está muito melhor, aliás. Eu posso te mostrar.

— Não se preocupe. — Allie J aumentou a pressão do chuveiro para

que ele soltasse um chhhhhhhhhhhiado alto e se inclinou para mais perto.

— Essa é a questão. Ela está do nosso lado. E vai ajudar a gente a

encontrar os meninos.

— Por que ela faria isso? — Skye perguntou para Allie J, como se

Charlie não estivesse sentada ali.

— Porque ela não é tão má quanto achávamos — Allie J explicou.

O corpo de Charlie se aqueceu e não era por causa da fumaça do

chuveiro.



192

Skye sentou no banco do boxe, aliviando seu olhar de assassina para

curiosa.

— Por que a gente está conversando sobre isso no chuveiro?

Allie J deu um olhar de aquiescência para Charlie. Charlie mostrou a

chave-mestra dourada e piscou para ela.

— O que é isso? — Skye perguntou.

— Shhhhhhh — Allie J e Charlie sopraram ao mesmo tempo.

Charlie pegou a lata. Estava quase vazia. Ela sacudiu duas vezes e

conseguiu com muita dificuldade arrancar espuma suficiente para escrever:

GAROTOS TÚNEL.

As sobrancelhas louras quase brancas de Skye se juntaram deespanto.

— Ahmeudeus, do que vocês estão falando?

— Confie em nós, é uma coisa boa — Allie J explicou, e depois moveu

os lábios para que ela lesse “Taz”. As sobrancelhas de Skye voltaram para o

lugar.

— Por que você está fazendo isso? — Assim como Allie, Skye fez a

pergunta inevitável. Charlie não podia culpar nenhuma das duas.

— Porque é como se a gente estivesse vivendo em um tipo de reality

show — Charlie disse calmamente. — Eu estou cansada de ser observada e

forçada a competir com pessoas que podiam ser minhas amigas. Não foi

para essa competição ridícula que todo mundo se inscreveu e eu quero

fazer alguma coisa a respeito. Eu quero ir para um lugar onde a gente

possa só relaxar e ser normal. Diminuir o drama e...

— Se pegar — Allie J falou sem pensar, e depois reajustou seu

entusiasmo. — Desculpa — ela disse para Charlie.

— Está tudo bem, eu te falei. A gente já era. — Por agora, pelo menos.

Skye sorriu radiante.

— Colocando dessa maneira... Estou dentro.

— Vocês precisam concordar com algumas coisas primeiro. —

Charlie ajeitou o frizz antes conhecido como seu cabelo. — Primeiro, chega

de Charlie Brown-nose.



193

As garotas sacudiram a cabeça, de acordo.

— Segundo, confiar umas nas outras completamente.

Allie J tentou fazer um sinal de ok na parede mas uma linha

levemente inclinada de espuma era tudo o que a lata ainda tinha para

oferecer.

— E terceiro, contar tudo sem esconder nada — Charlie acrescentou,

sabendo que ela ainda estava escondendo mais um segredo: o porquê de ela

ter realmente terminado com Darwin. Ou, ainda, como ela esperava que um

dia, no futuro, quando ele tivesse enjoado de Allie J, eles ainda terminariam

juntos. Mas isso ela guardaria para si.

— Combinado? — Combinado — as garotas responderam.

— Então quando é que a gente vai fazer aquilo com você sabe quem?

— Skye podia ser tão bonita quanto uma Bond girl , mas definitivamente

não sabia falar espião.

— Hoje à noite — Charlie prometeu.

Um sorriso começou a se espalhar pelo rosto de Skye, mas parou em

uma careta.

— Uh-oh.

— O quê? — Allie J perguntou. Seus olhos estavam tão redondos

quanto os pesos na parede, como se estivesse prevendo uma

superdecepção.

— Dever antes do lazer — Skye fez um bico. — Eu fiquei de dar aulas

particulares para umas dançarinas.

— Então encontra a gente depois — Charlie sugeriu.

— Obrigada. — Skye sorriu alegremente.

— Nada. — Charlie podia sentir os seus pés se expandirem com o

calor, e se ela não estava enganada, o seu coração tinha ganhado um pouco

mais de volume também. Então era assim que a gente se sentia quando

tinha amigos? — Vamos fazer um pacto. O que a gente está fazendo é

perigoso, e a gente precisa tomar conta umas das outras. Temos de nos

proteger e ao nosso segredo. Até o túmulo!



194

— Até o túmulo! — Allie J e Skye concordaram.

Charlie não se importou de esconder seu sorriso. Em um

campus onde tudo era ilusão, ela finalmente tinha encontrado uma coisa de

verdade.



195

24 TEATRO DE DIONÍSIO

ESTÚDIO DE DANÇA

QUARTA 8 DE SETEMBRO

20:03

Skye estava com seu tornozelo inchado elevado sobre a barra pelos

últimos vinte e oito minutos. Era o maior tempo em que ela já tinha ficadona posição flamingo, e ela imaginou que seus músculos deveriam estar

doendo bastante. Mas ela não sentia nada. Como sempre, a dor desaparecia

contra o fundo como um amigo tímido, quando ela estava fazendo o que

amava.

— Leve o corpo com o torso, Piu-Piu! — Skye gritou por cima da

música de jazz . — Não com a cabeça.

Piu-Piu balançou a cabeça como se tivesse entendido, e depois

comprovou.

— Perfeito! — Skye gritou. — Sentiu a diferença?

— Totalmente! — Piu-Piu chilreou alegremente. — Obrigada!

— E eu? — Ophelia perguntou, no meio de um pivô.

— Desde que a gente enrolou seu cabelo nesse penteado Princesa

Leia, seu equilíbrio ficou muito melhor — Skye berrou. — Você conseguiu!

— Agora eu — Sadie perguntou ofegante. Como se tivesse passado

óleo nas juntas, seus movimentos robóticos estavam muito mais suaves.



196

— Continue como se estivesse cortando manteiga e Mimi vai amar.

Com cada crítica, Skye sentia sua alfa interior retornando. Até a cor

do seu tornozelo estava clareando de roxo para marrom-amarelado-banana-

podre.

— Prue, o que você está mastigando? — Skye estranhou.

Prue engoliu, corando.

— Uma barra de cereal.

— Por quê? — Skye perguntou e depois se lembrou da sugestão de

Mimi. — Eu não acho que ela quis dizer literalmente para você “se soltar”.

Ela provavelmente queria ver mais quadril e menos coluna. Você pode

experimentar isso?Prue balançou como a Shakira, praticamente derrubando uma janela

com seu osso ilíaco afiado. Era óbvio que o prodígio do balé estava sofrendo

para se adaptar ao ritmo solto do jazz .

— Ok. — Skye respirou fundo pacientemente. — Imagine que os seus

quadris são uma panela cheia de água — ela arriscou. — O que você

precisa tentar é sacudir a água de um lado para o outro sem derramar.

Tenta de novo.

Prue tentou e derramou.

— De novo.

Splash ! Prue derramou.

— De novo.

Prue espirrou e oscilou e derramou...

... e aí conseguiu.

Todo mundo explodiu em aplausos.

— Isso! — Skye gritou, lágrimas de alegria ardiam no fundo dos seus

olhos. Ela queria dançar de tanta felicidade, mas se contentou com uma

série de agachamentos com uma perna só. — Aumenta a música! — ela

ordenou. — Vamos continuar.

Sadie se lançou em um tour jeté-pirouette seguido de um donkey kick .

— Domina o ritmo, Sadie, não se contenta em só acertar!

Sadie sorriu agradecendo.



197

De repente, uma série de vibrações deu choques na perna de

Skye. Ahmeudeus ! Será que seus membros estavam cedendo? Será que ela

já tinha cumprido o seu destino? Era a hora de morrer? Ela se forçou a

fazer contato visual com o lugar onde a perna tremia, esperando o pior

sobre o que ia encontrar ali.

Em vez de uma coxa gangrenada, Skye viu o aPod na sua pochete,

piscando em modo de emergência. Ela tinha cinco mensagens urgentes.

Todas eram de Charlie. A maioria delas dizia ONDE VC TAH???? As outras

duas eram alguma coisa a respeito de um mapa.

A testa de Skye pulsava. Como ela tinha esquecido? Já eram quase

9:00 da noite. Ela tinha ficado tão envolvida na sessão que perdeucompletamente a noção do tempo. Mas espera aí — ela não tinha acabado

de fazer um compromisso consigo mesma? Dever antes do lazer? Agora aqui

estava ela, terminando a aula mais cedo para fugir para encontrar Taz. Mas

era mais do que Taz. O motivo era o novo pacto que tinha feito com Charlie

e Allie J.

Ou pelo menos foi isso o que ela disse para si mesma.

— Corta a música! — Skye bateu uma palma com força. — Ok,

acabamos. Mimi vai ficar impressionada.

— Espera! — Ophelia gritou. — O meu turnout ainda não está

totalmente certo.

— É, e os meus saltos ainda estão adiantados — Sadie reclamou.

O tornozelo de Skye começou a latejar. Ela se sentiu mais dilacerada

do que meia-calça barata.

— Eu realmente preciso ir.

— Aonde? — Prue endureceu. — O seu alarme de espiã tocou?

— Hã? — Skye apertou os olhos como se não tivesse escutado bem.

— A gente soube que você é a espiã. — Ophelia soltou seus coques

laterais. — E meio que faz sentido. Você não serve para nada com o

tornozelo desse jeito, e mesmo assim você ainda está aqui. É só juntar as

coisas. Por que outra razão Shira iria manter você? — Ela balançou seu

cabelo preto grosso. — Sem querer ofender.



198

— Hummm, dar aulas para vocês é não servir para nada? — Skye

conseguiu dizer, apesar de sentir como se tivesse uma polaina atravessada

na garganta. — Porque daqui de onde eu estou mancando, vocês

precisavam mais de salvação do que as baleias brancas.

— Então por que você está indo embora? — Sadie fechou o zíper do

seu suéter prateado e puxou o capuz metálico sobre sua cabeça.

— Eu tenho uma coisa para fazer, tá? — Os olhos de Skye arderam

de novo, mas dessa vez era com lágrimas de tristeza. As garotas que

estavam ainda há pouco prestando atenção a tudo que ela dizia, agora a

tinham abandonado. Doía como abrirspacatto usando jeans skinny .

— O quê? — Piu-Piu perguntou, levantando a sua enorme cabeça emum desafio. — Tipo espionar?

Por uma fração de segundo Skye considerou entregar o nome de

Charlie para limpar o seu. Mas elas tinham feito um pacto. Tinha de ter

outra maneira.

— Eu não sou a espiã, ok? — Ela choramingou.

— Ah, chega de drama — Prue desafiou. — Prove!

— Tudo bem! — Skye disse bruscamente, alcançando seu aPod. —

Eu vou provar.

Skye: Estarei lá em 5!

Seu dedo ficou branco ao apertar com raiva o botão de send .

— Vamos lá!

Skye coxeou estúdio afora com quatro dançarinas seguindo sua

liderança, possivelmente pela última vez.



199

25 ACADEMIA ALFA

ESCURO


20:28

O ar da noite cheirava a tempestade mesmo tendo feito sol o dia

inteiro. — Então como você sabe tanto sobre esse lugar? — Allie se apressou

para acompanhar Charlie enquanto elas corriam através do campus escuro.

De alguma maneira Charlie tinha orquestrado um apagão por todo o

campus para impedir que as câmeras de segurança as vissem. Até a lua

estava cooperando.

Charlie parou e olhou honestamente para os olhos verdes de Allie.

— De verdade?

Allie aquiesceu sinceramente, como se verdade fosse uma coisa que

ela praticasse todos os dias. Há!

— Eu inventei grande parte dessa ilha.

— Mentirosa! — Allie deixou escapar. — Impossível! Eu pensava que

Shira tinha trazido uns inventores do futuro.

— Nada. — Uma tristeza profunda pesou sobre as pálpebras de

Charlie, forçando-as para baixo. — Está mais para alguém do passado dela.



200

Ela engoliu seco. — Mas Shira não pode saber. Ela pensa que foi a

equipe dela de pesquisa e desenvolvimento. Se ela descobrisse que eu usei

o laboratório dela... — Charlie fez com o dedo um gesto de degolar o

pescoço. — As pessoas que precisam saber das minhas... habilidades...

sabem. E isso é suficiente para mim. — Ela piscou como se estivesse

mentindo para si mesma. Claro que ela queria que Shira soubesse. Quem

não quereria?

Allie estudou o rosto de Charlie pela primeira vez. Era perfeitamente

simétrico. Sua pele era boa. Seus olhos escuros eram suaves. Seus lábios

era cheios (o suficiente). Ela era como o rascunho de um rosto de mulher

que Allie recebeu uma vez no balcão da MAC. A maquiadora tinhapincelado umas cores nas pálpebras, bochechas e lábios do rascunho para

demonstrar o jeito certo de aplicar as últimas paletas. Assim que ela

terminou, os traços sem graça do desenho tinham ganhado vida. No caso

de Charlie, não era maquiagem que iluminava o seu rosto — era habilidade.

E elevava a sua beleza ao tipo que as pessoas gostavam de olhar.

Exatamente como Trina com a sua arte.

— Tipo, séeerio — Allie exclamou. — Isso é incrível. Você é tão...

inteligente. Não consigo acreditar que Darwin terminou... Ela parou de falar

antes que falasse muita bobagem. Mas era tarde demais.

Charlie sorriu como alguém prestes a chorar e depois retomou o

passo.

— Eu não quis dizer isso. Quer dizer, eu quis, mas eu não tinha

intenção de menciona-lo. — Allie galopava atrás de Charlie como um

cãozinho feliz.

— Não é como se ele estivesse a fim de mim, de qualquer maneira —

ela ofegou, se arrependendo imediatamente da sua falta de sensibilidade.

Ela não podia esperar que Charlie, de todas as pessoas, massageasse o seu

ego. Não quando o assunto era Darwin. Mas ele era como uma panela

quente que Allie não conseguia deixar de tocar. Mesmo se isso significasse

parecer uma desesperada apaixonada auto-obcecada para sua nova amiga

que calhava de ser a ex dele.



201

Charlie destravou a cerca que protegia o jardim de vegetais orgânicos

das alfas obsessivas por saladas.

— Corre, entra aí.

Allie entrou discretamente, quase engasgando com o cheiro úmido e

enlameado de terra — um cheiro sempre associado a vermes pegajosos.

Vermes que estavam provavelmente se preparando para fazer cócegas nos

seus pés descalços e colocar ovos embaixo das unhas dos seus pés...

— E por que você acha que Darwin não gosta mais de você?

Charlie perguntou, fechando o portão atrás delas. Allie considerou

perguntar aonde elas estavam indo, mas não ousou mudar de assunto.

— Ele não olhou para mim na aula naquele dia. Nem uma vez. Enunca se deu ao trabalho de mandar mensagem depois que eu saí

correndo.

Charlie as conduziu através de duas filas de cebolas.

— O que deu em você?

Allie deu de ombros.

— Keifer odiou o que eu escrevi e eu fiquei envergonhada. Eu, hum,

costumava escrever sozinha no meio da selva. E isso parece speed-dating ,

só que de escrever, e não funciona para mim. Eu estou com um bloqueio.

Então fugi para me reconectar com a natureza.

A verdade era que a musa da Oprah tinha encontrado Allie soluçando

embaixo de um açaizeiro, e ela fingiu estar perdida. Ela vinha pensando em

como os pés de Darwin e Charlie pareceram quando se encontraram na

areia. E agora, à sombra da genialidade de Charlie, Allie sentiu vontade de

sair correndo de novo. Como ela poderia impressionar Darwin, se ele tinha

tido Charlie primeiro? Era como comprar maquiagem na Bath & Body

Works depois de uma vida inteira usando Chanel.

— Eu nem mesmo sei porque eu vim nessa missão secreta. Não é

como se ele quisesse me ver. — As lágrimas voltaram. Mas pelo menos

desta vez ela podia colocar a culpa nas cebolas.

Charlie se agachou do lado de uma plantação de alface.

— Do que é que você está falando?



202

— A gente devia ter se encontrado uma noite dessas mas ele nunca

apareceu. — Allie choramingou.

— Eu não me preocuparia com como Darwin está agindo. — Ela

arrancou uma folha de alface romana e usou para limpar um montinho de

terra. — Shira está seguindo os filhos com câmeras. O vídeo vai direto para

os porta-retratos digitais no escritório dela. Darwin sabia que estava sendo

vigiado e não quis ser pego, é só isso.

Uma brisa fresca serpenteou pela bochecha de Allie e seu coração se

ergueu no seu peito.

— Então talvez ele ainda goste de mim?

— Ele com certeza gosta. — Charlie não olhou para ela enquantolimpava outra concha de lama. Uma superfície prateada brilhava no meio

da sujeira marrom, e subitamente um alçapão apareceu. Charlie puxou a

alça.

— Oh — Allie suspirou, desejando ter um vocabulário melhor. Mas o

que mais uma pessoa pode dizer quando alguém levanta a porta de um

alçapão em um jardim de vegetais orgânicos que leva a uma escada em

espiral subterrânea aparentemente infinita?

Um novo propósito preencheu Allie. Ela não estava li só pelo passeio,

esperando ver pela última vez um garoto com uma pinta atraente no lábio.

Ela estava de volta na cadeira de motorista, acelerando em direção a uma

sessão de pegação com um menino que fazia Fletcher parecer Tofurkey12 —

um substituto menos apetitoso para a coisa real.

Mas não era só uma alegria por Darwin que estava fazendo ela saltar

os degraus em espiral, dois de cada vez. Era uma alegria por Charlie

também. Elas estavam ficando amigas, e fazia tempo desde que ela teve

uma.

— Siga-me. — Charlie deslizou para dentro. — Deixa o alçapão

levemente aberto para Skye.

Allie requebrou depois dela.

— Iiiiiiiiiiii — ela gritou.

12 Versão vegetariana do "peru", feito à base de tofu (N.T.).



204

nunca, e ela tinha que segurá-la. — E se Darwin receber a sua mensagem e

pensar que você veio para encontrá-lo? Será que ele vai achar que você quer

voltar? Será que ele vai ficar triste quando vir que sou eu e não você?

— Não se preocupe — Charlie disse com segurança enquanto

mandava a mensagem. Mas em vez de Mariah, mandou para ele “Meet Me

at Midnight”, de Allie J. Na linha de assunto dizia TÚNEL VEGETARIANO.

— Darwin é inteligente — ela disse. — Ele vai entender.

Charlie teclou vigorosamente uns números do lado da sua chave-

mestra e depois inseriu o lado em forma de A na fenda do lado direito da

porta. A fenda brilhou com um azul neon e a porta de cimento

imediatamente se abriu, revelando um grande vestíbulo e uma cadeira deteleférico esperando para se lançar na direção dos garotos.

— Tipo isso é realmente incrível — Allie falou efusivamente.

Elas estavam sabe-se lá quantos metros debaixo da terra. Dezenas de

túneis ramificavam em todas as direções como os trilhos de uma estação de

trem movimentada, só que estes eram esculpidos em vidro, e não concreto.

Uma luz azul sinistra oscilava em volta delas, e fazia a pálida Charlie

parecer um membro do Blue Man Group. Allie percebeu com um choque

que o brilho vinha das paredes — que eram, na verdade, paredes de um

aquário gigante. No teto lá em cima, nas paredes do lado dela e no vidro frio

sob seus pés nadavam milhares dos peixes mais coloridos e exóticos que

Allie podia imaginar.

Charlie checou seu aPod.

— Skye está muito atrasada. Você acha que aconteceu alguma coisa?

Allie não conseguiu responder. O esplendor daquele lugar era demais

para ela processar. Era mais romântico do que a Disneylândia à noite.

Foi então que um BAAAAMMMM muito alto ecoou através dos túneis.

Passos e sussurros se seguiram. Cardumes de peixes se espalharam. O

coração de Allie acelerou.

BAAAAMMM!

Charlie retirou a chave mestra do bolso. A porta abaixou e as luzes

se desligaram. Elas estavam presas lá dentro.



205

— Se esconde!

— Onde? — Allie ficou em pânico.

— Shhhhhhh — Charlie assoviou.

Allie encostou suas costas contra a parede do aquário mais próxima.

Será que o vidro era duplo? Será que os peixes estavam querendo

atravessar? Será que a água estava vazando do aquário para dentro dos

túneis, onde certamente ia inundar tudo e afogá-la? O ar estava espesso e

abafado e a cada respiração parecia que ela estava dando um gole num milk

shake . Ela não era mais parte de uma linda paisagem marítima. Ela estava

envolta em vidro, presa no caixão da Bela Adormecida.

E como em um conto de fadas, um beijo era inevitável. Mas ia ser doseu verdadeiro amor — ou o beijo da morte?

Bam! Bam!

Os passos estavam se aproximando. Ela teria em breve a sua

resposta.



206

26100 PÉS ABAIXO DO TÚNEL DA FAZENDA


22:07

Charlie apertava a mão de Allie J no escuro. Elas estavam

espremidas contra o aquário no túnel à esquerda do vestíbulo, e Allie Jcontinuava resmungando alguma coisa sobre milk shakes .

BAAAAAM!

Elas apertaram mais forte.

BAAAAAM!

E mais forte.

Se Shira flagrasse Allie J, ela iria voltar para os seus fãs e para a sua

carreira de sucesso. Grande coisa. Mas e Charlie? Ela estaria no próximo

APA em direção a algum internato em Nova Jersey sem nenhuma esperança

de ver Darwin outra vez.

— O que devemos fazer? — Allie J murmurou.

— Shhhhh — Charlie assoviou, mais frustrada com ela mesma do

que com a cantora. Ela normalmente tinha todas as respostas. E agora,

quando mais precisava, ela...

— Charlie? — um voz familiar chamou com um sussurro através da

porta de concreto.



207

— Skye? — Charlie e Allie J riram e suspiraram aliviadas.

— Deixa eu entrar!

Charlie recolocou a chave na fechadura. Ela piscou uma vez. As luzes

oscilaram e ligaram, e a porta começou a se erguer lentamente.

Um alvoroço de passos ressoou no vestíbulo lá fora. Ou um polvo

estava à solta, ou Skye não estava sozinha.

— Ótima explicação do caminho — ela mancou à frente.

— Oi, peixinho bonitinho. — Uma menina com um coque vermelho

dava batidinhas no vidro e desenhou um coração com os dedos em volta de

um nadador azul e amarelo.

— Uau. Esse lugar é incrível — disse a garota havaiana bonita.Charlie a reconheceu. Ela era a da cabeça grande que estava no spa . —

Parece que a gente está num vídeo game.

— Viu? Eu disse que eu não era a espiã. Uma espiã traria vocês

aqui? — Skye piscou deliberadamente para Charlie, como se o segredo

delas ainda estivesse seguro com ela.

HÁ!

— Você as trouxe aqui para provar que você não era a espiã? —

Charlie perguntou.

— Aham — Skye aquiesceu orgulhosamente e se ajoelhou para

examinar um pequeno baiacu embaixo do chão. — E agora elas acreditam

em mim, não é?

As cabeças com coques concordaram, ainda maravilhadas com o

ambiente em volta delas.

— Então, onde estão os garotos? — perguntou uma garota com uma

postura reta como um lápis.

Charlie baixou a temperatura do seu uniforme para não ferver. Ela

nunca tinha estado com tanta raiva na vida: nem quando Taz explodiu sua

réplica do Empire State Building de palito de pirulito; nem quando aquele

garotinho na Grécia roubou a sua mochila; nem quando Shira arrancou a

foto de Darwin da sua pulseira de camafeus. Porque aquelas pessoas não



208

tinham pego a sua confiança e sapateado em cima. Nunca tinham

garantido amizade. Nunca tinham prometido nada para ela. E Skye tinha.

— O que você está fazendo? — Charlie perguntou. — Isso era para

ser uma coisa secreta. A gente disse: “até o túmulo”. Lembra?

— Eu sei, desculpa. Mas elas não vão contar — Skye sorriu

inocentemente. — Elas prometeram.

— Do mesmo jeito que você? — Charlie retrucou.

— Você é tão fofa! — Ophelia, sem perceber a discussão, apertou

seus lábios contra o vidro e beijou uma estrela-do-mar rosa pérola.

— Viu? Elas não fazem mal a ninguém. — Skye olhou para Charlie

suplicando com seus grandes olhos turquesa.Charlie abriu a boca para gritar, mas não conseguiu. O que é que

tinha nas meninas bonitas que tornava impossível repreendê-las? Dava a

sensação de esmagar uma flor.

— Se a gente for pega, a culpa é sua — Charlie sussurrou.

— Não se preocupe. — Skye mancou até ela e tentou abraçá-la. — Eu

nunca sou pega.

Charlie não abraçou de volta. Uma enguia solitária serpenteava

embaixo dos pés delas. Talvez Shira tivesse razão. Talvez não existisse essa

coisa de amigos de verdade — só parentes e colegas. E se isso fosse

verdade, ela não tinha nada a ganhar em dividir os túneis.

— Missão cancelada! — Charlie vociferou.

— O quê? — a ruiva gritou.

Skye arregalou os olhos com a dor, como se Charlie tivesse lhe dado

um tapa.

— É muito arriscado. — Ela empurrou todo mundo de volta pela

porta até a escada, e depois ativou a chave-mestra.

As cabeças de coque começaram a resmungar, desapontadas.

— Eu já te disse, Charlie — Skye insistiu. — Eu nunca sou... Mas era

tarde demais. A porta começou a fechar. Pouco antes que ela batesse, elas

ouviram o whoooosh do teleférico acelerando para longe.

— U-huuuuuuu! — Allie J chamou. — Até jáaaaaaa!



209

— Allie J, não! — Charlie gritou. Mas a cantora de cabelo escuro já

tinha ido. Como ela não tinha percebido que Allie J tinha deixado o grupo?

— A gente precisa ir atrás dela — Skye disse com os olhos

arregalados de esperança. — E se ela tiver problemas e precisar da gente?

As meninas concordaram com a cabeça.

Charlie sabia que o apelo delas tinha muito mais a ver com ir atrás

dos garotos. Mas ao mesmo tempo, Skye tinha um bom argumento. Allie J

não deveria ficar lá embaixo sozinha.

Com um suspiro relutante, Charlie reinseriu a chave.

— RE-JEI-TA-DA!

— O quê? — ela engasgou. Sentiu todo o corpo virar uma geleia.Ela digitou o código de novo: 2-4-2-7-5-4-3

— RE-JEI-TA-DA!

2-4-2-7-5-4-3

— RE-JEI-TA-DA! — 2-4-2-7-5-4-3

— RE-JEI-TA-DA!

Charlie cobriu a boca, impedindo o vômito de pânico.

— Ah... Meu... Deus... Shira sabe...

Como se seguindo uma deixa, seus cinco aPods apitaram.

SHIRA: REUNIÃO EM 20 MINUTOS. APRESENTEM-SE NO

PAVILHÃO.

— Ahmeudeus!

— O que a gente faz?

— Corre!

Todo mundo correu para o alçapão.

Skye segurou o braço de Charlie freneticamente.

— E Allie J?

— A gente não pode ajudá-la agora — Charlie respondeu friamente.

Afinal, Darwin era ótimo nos momentos de crise. Ele cuidaria dela.

Mas, como sempre, Charlie estava por conta própria.



210

27PAVILHÃO

SALÃO DE REFEIÇÕES AMBROSIA

QUARTA, 8 DE SETEMBRO22:40

Skye não foi a única a encontrar Deus no Pavilhão.As bocas alfa estavam se mexendo num ritmo enlouquecido

enquanto as garotas restantes — menos Allie J, que ainda estava

desaparecida — rezavam por salvação entre os ocasionais estrondos de

trovão.

— Vai ser eu — Charlie roeu a unha. Todas as luzes no campus

estavam acesas de novo, cegando de tão fortes, como numa sala de

interrogação. — Fui eu que roubei a chave e trouxe todo mundo para lá.

— É, mas eu sou reincidente. — Skye alongou o tornozelo inchado. A

dor tinha diminuído para um três. — Além disso, eu nem posso dançar.

Para que é que eu sirvo?

— Você tem um bom argumento aí — Tríplice zombou, procurando

pontas duplas no seu megahair . A falta de ansiedade dela fazia Skye odiá-la

ainda mais. Ou era inveja? Se Skye tivesse metade da disciplina de Tríplice,

esse concurso já teria terminado.



211

Mas ela não tinha. Nem perto. E agora sua mãe e todo mundo em

Westchester ia saber que ela não tinha determinação para apoiar o seu

talento. Claro que Madame P ainda ia provavelmente usá-la como exemplo

na aula de dança — um exemplo de fracasso.

O trovão estava soando mais alto. Shira estava a caminho.

— Talvez seja Allie J — Skye sussurrou para Charlie. — Ela nem está

aqui.

Charlie nem se deu ao trabalho de virar a cabeça.

— Talvez.

Apesar de Skye ter pedido desculpas cinquenta vezes, Charlie ainda

estava irritada por causa das convidadas-surpresa. Tudo o que Skye podiafazer agora, era falar com Charlie como se estivesse tudo bem entre elas. E

ia acabar ficando. Essa era uma técnica que ela já tinha utilizado dezenas

de vezes com as suas amigas lá onde morava e sempre funcionava.

— Você acha que Shira vai perceber que Allie J não está aqui?

— Eu resolvi isso, certo? — Charlie sussurrou. Ela acenou com a

cabeça para uma cadeira lá no fundo. Uma garota com cabelo preto

azeviche e olhos verdes estava lendo seu aPod.

— Allie J! — Skye gritou.

— Shhhhh! — Charlie avisou. — É só um holograma.

— Que irado. — Skye tentou sorrir, mas teve a sensação de que saiu

mais como um olhar de reprovação. Se Allie J estava “ali”, Skye estava de

volta ao topo da lista negra.

Uma garota da banda passou correndo, carregando uma mala de

rodinhas.

Skye se encheu de esperança.

— Por que essa mala? — ela perguntou. — Está convencida de que

vai para casa?

— Não, isso é o meu clarinete. — A garota deu um sorriso nervoso. —

Tem tido muita sabotagem na seção de sopro. Não posso sair de casa sem

ele.



212

— Eu sei como é — Charlie concordou. — Não se pode confiar em

ninguém aqui. — Ela lançou um olhar penetrante para Skye.

O tornozelo de Skye latejou e ela lutou contra o impulso de revirar os

olhos. Não era uma questão de confiança. Ela não tinha tido intenção de

quebrar o pacto. Ela só queria ter tudo ao mesmo tempo — as dançarinas,

os garotos, as amizades e a aventura. Esse não era o jeito alfa de viver?

— Charlie, eu... — ela queria pedir desculpas de novo, mas suas

palavras soavam mais falsas e bregas do que queijo processado. Ela não

estava arrependida de ter trazido as dançarinas. Elas confiavam nela agora.

Ela apenas sentia muito que suas ações tinham deixado Charlie tão

irritada. E isso não era uma coisa fácil de explicar. — Alunas. — A voz de Shira estrondou pela sala, silenciando todo

mundo imediatamente.

Skye respeitosamente começou a aplaudir junto com as outras.

— Eu esperava mais. — O cabelo ruivo voou furiosamente em volta

dos seus ombros. Ela parecia um demônio prestes a se alimentar.

As pernas de Skye formigavam de medo. A ardência da adrenalina

avisava que havia perigo à frente. Seu corpo não podia fugir... mas a sua

mente podia. Ainda tinha tanta coisa que ela não tinha feito.

Eu nunca aprendi a voar em um APA.

Eu nunca fui ao zoológico para fazer carinho nos filhotes.

Eu nunca beijei Taz na boca.

Eu nunca pude mostrar para Mimi quem eu sou.

Eu nunca fui a estrela de uma apresentação de dança.

Eu nunca deixei a minha mãe com orgulho.

O último pensamento fez Skye sentir dor pelo corpo todo.

No palco, Shira pisoteava para lá e para cá.

— Eu comecei essa academia porque fiquei cansada de ver potenciais

alfas na TMZ, dançando em mesas e caindo de carros sem calcinha. Quem

elas estavam vestindo ou namorando ou bebendo era mais importante do

que o que elas realmente estavam fazendo de suas vidas. — O cabelo de

Shira se aquietou nos seus ombros como um passarinho pousando em um



213

poleiro. — Eu julgava vocês por padrões mais altos. Os meus padrões. E eu

exijo que vocês acompanhem seus talentos extraordinários com um bom-

senso extraordinário.

Skye massageou suas pernas inquietas. Fala de uma vez!

— Existe a hora para acasalar. Afinal de contas, o mundo precisa de

mais alfas. Mas a hora não é esta. — Shira encarou o grupo.

Um clarão de relâmpago cortou o ar, errando por pouco o APA

aterrissando lá fora.

— Quando vocês quebram uma regra, vocês quebram a minha

confiança. E se eu não puder confiar em vocês, vocês não pertencem a este

lugar. Tríplice concordou com a cabeça. Charlie enrolou suas pulseiras.

Skye estava assustada demais para se mexer.

Uma dor aguda atravessou seu tornozelo. Como o pulso com artrite

da sua avó podia prever o tempo, o machucado de Skye lhe dizia que

alguma coisa muito importante estava por vir.

Ela se inclinou para a frente na cadeira. Assim como fizeram Tríplice,

Charlie, o holograma de Allie J e todas as outras pessoas na sala.

Shira abriu a boca para falar.

BEEEEEEEEEEP!

Hã?

Shira tirou seu aPod do bolso do seu vestido preto esvoaçante. Fiona

correu para o palco e cochichou algo no seu ouvido. O rosto de Shira

escureceu, e as suas sobrancelhas se enrugaram atrás dos óculos. Trovões

retumbaram e relâmpagos clarearam.

— Ahhhh! — gritou a garota do clarinete, desesperando-se sob a

pressão.

Shira olhou para a plateia, como se estivesse se lembrando de que

elas estavam ali.

— Voltaremos a nos reunir amanhã de manhã às 7 em ponto.

Skye e as outras ficaram chocadas ao ver que Shira deixaria suas

noites em suspense. Todas as células no corpo de Skye estavam se



214

inflamando. Ela não tinha certeza se aguentaria mais um minuto sem saber

do seu destino.

— Aproveitem a noite, senhoritas — Shira disse enquanto saía do

palco. — Porque pode ser a sua última.

Meia hora depois, Skye estava deitada na cama, enrolando o seu

edredom macio e salpicado de estrelas nos seus punhos sua-dos. Ameaça

Tríplice estava ronronando em paz, sabendo que estava a salvo. Charlie

virava de um lado para o outro tentando ficar confortável. E o holograma de

Allie J dormia pesado.

Skye implorava uma explicação ao seu eu interior. Alguma coisa que

a ajudasse a entender por que ela tinha tanta dificuldade em seguir asregras. Por que ela não podia ser disciplinada como a sua mãe ou dedicada

como Tríplice. Fez uma bola com as suas mangas e arremessou através do

quarto. Por que se dar ao trabalho de expressar o seu “eu” quando se

expressar sempre a colocava em encrenca?

Olhando fixamente para a sapatilha lilás pendurada na sua

luminária, Skye não conseguia deixar de pensar que os seus desejos e

aspirações eram uma perda de tempo. A não ser...

A não ser que a reunião interrompida dessa noite fosse uma segunda

chance. Uma oportunidade para ela provar para si mesma e para o mundo

que ela podia desligar o seu botão de diversão e acionar a seriedade.

E se ela estava ganhando uma segunda chance, ela ia fazer direito.

Novo DEA Nº 1: Ficar na Academia Alfa.

Novo DEA Nº 2: Conseguir que Charlie me perdoe.

Novo DEA Nº 3: Me curar e dançar de manhã.

Novo DEA Nº 4: Banir garotos até me formar.

Novo DEA Nº 5: Ser o meu melhor.

Skye dobrou cada pedacinho de papel e deslizou para dentro do

compartimento não tão secreto do sapato, que depois o prendeu em volta

da luminária. Ele balançou para frente e para trás... um amargo lembrete

de que os seus desejos e aspirações estavam pendurados por um fio fino e

desgastado.



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28FAZENDA DE VEGETAIS

TÉRREO

QUARTA, 8 DE SETEMBRO23:10

Mais tarde naquela noite, Allie saiu pelo alçapão. Ela estava de voltaà lama infestada de vermes. Só que desta vez, não pensava em doenças.

Pensava no amor.

O ar da noite estava eletrificado — e Allie também. Ela estava

dormente desde os seus lábios recém-beijados até os seus dedos

desleixados. Queria gritar de alegria, mas o aPod fez isso primeiro. Ele

apitou com dezessete novas mensagens. Dezessete?

SHIRA: REUNIÃO EM 20 MINUTOS. APRESENTEM-SE NO

PAVILHÃO.

Charlie: Kd vc?

Skye: Vc tah bem?

Charlie: Deixei o alçapão aberto. Saia como entramos.

Skye: Como está o túnel?

Charlie: Pq vc não responde?

Skye: Taz taí?



216

Charlie: Darwin deve saber as saídas.

Skye: Corre! Shira vai mandar alguém embora!

Skye: Charlie fez um holograma de vc para Shira não perceber q vc

não tah

Skye: Beija o Darwin pq vc pode ser mandada embora.

Skye: Sério, kd vc?

Charlie: Allie J?! Kd vc?

Skye: Ninguém cortado ainda. Shira teve emergência. Achou a

pessoa que roubou seu senso de humor. J

Charlie: Acabei de colocar o seu holograma para dormir. Está

dormindo do lado de Tríplice.Skye: O seu holograma está roncando.

Charlie: O caminho está livre. Volte agora se puder.

O medo atravessou o seu corpo enquanto ela lia os textos urgentes,

seus batimentos cardíacos aumentando com cada um. Ela estava prestes a

entrar em pânico. E então mais uma chegou.

Darwin: VC TAH BEM?

Allie J: Nunca estive melhor.

Ela sorriu para si mesma, revendo os eventos da noite quadro a

quadro como num DVD:O teleférico correndo com ela pelos túneis do aquário.

Sabendo que devia gritar mas rindo, em vez disso. O que ela estava

fazendo era loucura, arriscado, perigoso e emocionante.

Como se sentindo a presença de outra pessoa, a cadeira desacelera. E

depois para. Darwin suavemente coloca o seu violão no chão de vidro, depois

oferece sua mão e a ajuda a descer.

A cadeira fica ali como um pai intrometido.

Darwin coloca um palito de dente com cheiro de canela entre os lábios .



217

A respiração de Allie falha no seu peito.

Darwin a convida para sentar. Ele admite que leva meses para

escrever músicas. Diz que entende porque ela desiste na sala.

Gostaria que não tivesse tanta pressão para realizar, diz pressão é

paixão é veneno.

Darwin toca a primeira música que ele escreveu em um dia, diz que

foi inspirado nela. A música se chama “Pressão é paixão é veneno”.

A letra tem alguma coisa a ver com uma garota bonita... olhos

verdes... cheia de paixão...

O resto da letra cai no vazio. Ela parou no “bonita”.

Ele dedilha uma última vez. O rosto de Fletcher invade a cabeça deAllie. Allie fecha os olhos para fazê-lo sumir. Um sopro de canela. Uma

sombra sobre seu rosto. Lábios quentes. Não são de Fletcher. São melhores

do que o de Fletcher! São... quem é Fletcher?

Allie está flutuando...

Ela flutua quando Darwin a coloca de volta na cadeira...

Flutua quando ele a beija de novo...

Flutua quando ele dá tapinhas na cadeira e pede que ela cuide

daquela garota tão especial...

Depois flutua escada de espiral acima...

E considera pedir a ele que chame ela só de Allie em vez de...

— Allie J?

Uma voz austera veio de trás dela e Allie aterrissou de novo na terra

lamacenta. Sentiu um aperto na garganta como se estivesse usando a blusa

de gola rolê de uma criança, virou lentamente... e ficou cara a cara com a

musa da Oprah; a mesma que a tinha encontrado chorando embaixo do

açaizeiro depois da aula.

— Perdida de novo? — A musa batia os pés impacientemente.

— Uh-h — Allie gaguejou, dando um passo para trás. Pense, pense,

pense . — Eu, hum, eu estou esperando uma encomenda da minha mãe.

Uns remédios. Para o meu problema. Eu estava procurando a sala de



218

correios, mas dá para esperar até amanhã, então vou voltar para a minha

casa e usar o resto que ainda tenho e...

— De jeito nenhum. — O olhar zangado da musa relaxou em um

sorriso. — Quando se trata de saúde, a gente não pode deixar as coisas ao

acaso.

— Então tá. — Allie começou a se afastar. — Obrigada. Eu vou

buscar, então. Boa noite.

— Você não vai conseguir ir andando daqui até o escritório de Shira.

— Escritório de Shira? — Os lábios com gosto de canela de Allie

secaram.

— Sim — disse a musa como se fosse óbvio. — Todas as encomendaspassam por ela. — Ela ligou seu disco flutuante. — Sobe aqui, eu te levo.

Antes que Allie pudesse recusar, ela estava flutuando de novo. Só

que dessa vez não era bom.



219

29ESCRITÓRIO DE SHIRA

SALA DE ESPERA


23:33

Allie se mexeu impacientemente na cadeira da sala de espera,tentando ficar confortável. Lá fora, o campus estava todo aceso e

relâmpagos iluminavam o céu. Lá dentro, seu coração estava acelerado.

Como ela ia conseguir explicar sua busca por remédios a essa hora? Shira

tinha todos os seus relatórios. Ela sabia que Allie J tinha a saúde perfeita.

A musa da Oprah caminhava do lado de fora da porta de Shira,

torcendo as mãos e lançando olhares mortais para Allie sempre que podia.

Ao contrário de Thalia, ela não oferecia esperança. Na verdade, seus

maneirismos sugeriam exatamente o contrário.

Tudo o que Allie podia fazer para não desmaiar era pensar no beijo

de Darwin e esperar que a mãe dele visse metade do encanto que ele via

nela.

Mas espera? Qual era o grande problema? Ela só iria casualmente

vaguear até o escritório e falar para Shira que estava tentando encontrar

inspiração para escrever.



220

E que às vezes quando fazia isso, caminhava a esmo sozinha à noite,

consumida pelo espírito dentro dela. Podia dizer que isso era uma coisa que

acontecia nos seus delírios criativos e que ela não se lembrava de coisa

nenhuma sobre remédios. Não podia ser muito difícil. Afinal, ela era uma

mentirosa bastante razoável. Só o fato de ela ainda estar lá, disfarçada de

uma cantora de sangue verde já era prova disso. Quem sabe? Talvez ela

acabasse criando um laço com Shira. Talvez elas virassem...

A porta do escritório de Shira se abriu.

Allie ficou de pé para cumprimentar sua nova mentora. Mas não foi

Shira quem saiu de lá. Foi uma menina.

A menina não era bonita, mas também não era feia. Seu cabelo pretoazeviche era brilhoso e partido no meio. Sua pele era pálida. Seus olhos

eram verdes. Seu vestido era branco. Seus pés estavam descalços. Sua

bochecha esquerda era marcada com uma única pinta...

Subitamente, as pernas de Allie ficaram bambas. Sua testa começou

a gotejar de suor. Sua língua inchou.

— Ei. — A garota olhou para ela de cima para baixo. — As chances

são muito remotas, mas você podia ser minha irmã gêmea.

Allie continuava imóvel. A sala começou a girar. Seus ouvidos

retumbavam.

— Allie A. Abbott — a musa da Oprah se virou para Allie com um

sorriso maldoso — , conheça Allie J. Abbott. Shira vai ver vocês agora.

Allie se virou para correr. Mas antes que ela conseguisse levantar o

pé do chão, o mundo ficou preto.



221

30

ESCRITÓRIO DE SHIRA


23:59

O cheiro envolvente de grãos de café e — aquilo era pimenta caiena e

xarope de bordo? — puxou Allie do redemoinho da escuridão. Suas

pálpebras estavam mais pesadas do que uma bolsa de quem vai dormir anoite fora. Sua língua parecia um caminho seco e sujo, seus dentes,

pequenas pedras chutadas para longe por aventureiros descuidados.

— Onde eu estou? — ela balbuciou.

— Quem é você, é uma pergunta melhor — uma mulher estava de pé

ali, levando o cheiro de café com ela.

— Hã?

— Não precisa responder agora. — Ela caminhou. — Você vai ter

muito tempo para isso, Allie Aaaaaaaaaaaaa. — Ela alongou o som do A.

— Hã? — O medo varreu o intestino de Allie como uma

colonoscopia. O que estava acontecendo? Por que ela estava aqui?

— Apesar de roubo de identidade ser ilegal, isso realmente prova que

você tem uma determinação mortal: uma qualidade crucial para uma Alfa.

Ela pegou um porta-retrato com uma foto de Darwin. A visão dele

encheu Allie com o calor de Vicky Pyrena líquido. Seus lábios formigavam e

seu coração balançava como um cachorrinho abanando o rabo.



222

— Meu instinto Shira me diz para mantê-la na Academia. Mas o

verdadeiro teste da sua... — Shira fez uma pausa para empurrar os óculos

escuros nariz acima — ...qualidade de alfa vai vir com o que você vai fazer

agora.

— O quê que cê quer dizer? — Allie perguntou, sem conseguir tirar o

olho da foto.

— O que eu quero dizer é que apenas uma verdadeira alfa

sobreviveria a contar a verdade para seus professores, suas amigas e... —

ela colocou a foto do seu filho de volta na prateleira — ...todas as outras

pessoas que podem ter acreditado que você era uma talentosa cantora-

compositora-ambientalista...Shira sorriu, como uma raposa terminando a última mordida de

carneiro.

— Então agora é a hora de Allie Aaaaaaaa fazer o que Allie Joooota

fez a sua vida inteira.

— O quê é? — Allie grasnou.

— Encarar a música. — Shira piscou.

Um punhal invisível esfaqueou o coração agitado de Allie. Como ela

podia pisar outra vez na Jackie O? O que será que suas colegas de quarto

iam dizer? Será que Darwin algum dia a perdoaria? Será que ele ainda iria

gostar dela?

E se Trina e Fletcher descobrissem?

Tudo estava voltando para ela agora.

Tudo menos a esperança.



223

alfas - as melhores entre as melhores

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