alfabetização e clinica

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A ABORDAGEM DO ERRO NA FALA E NA ESCRITA: AQUISIÇÃO, ALFABETIZAÇÃO E CLÍNICA. Maria Francisca LIER-DEVITTO LAEL-Derdic/PUCSP [email protected] Lourdes ANDRADE Derdic/PUCSP [email protected] Resumo: Este trabalho focaliza aspectos essenciais implicados na abordagem de erros em falas e escritas de crianças em processos - bem sucedidos ou não - de aquisição ou de alfabetização. Debate-se, a partir do desenvolvimento dessa discussão, a divisão clássica entre as áreas de Aquisição e de Patologias da Linguagem. Sustenta-se que, nessa partição/repartição de campos, a Patologia tem ficado numa posição subordinada, como se nada se tivesse a aprender face às falas sintomáticas de crianças. O Interacionismo em Aquisição de Linguagem, introduzido por De Lemos na década de 1980, é apontado como saída para a suspensão dessa divisão. Isto porque o erro é, ali, “dado de eleição” cujo tratamento permitiu desdobramentos teóricos e metodológicos para os campos da clínica e da escola. Produções de fala e de escrita são trazidas para a discussão. Palavras-chave: erro; aquisição da linguagem; alfabetização; clínica com crianças; relação criança-linguagem Este artigo pretende abordar caminhos e descaminhos do tratamento descritivo e explicativo dado a erros, tanto em falas/escritas sintomáticas, quanto em produções de crianças em processo de aquisição da linguagem ou de alfabetização. O que pretendemos, ao eleger esse título, foi iluminar a natureza da reflexão que se espera desenvolver, aqui, sobre a separação clássica entre as áreas de Aquisição e de Patologias da Linguagem. Mais particularmente, o objetivo deste trabalho é o levantamento de questões sobre a configuração estabelecida entre esses dois campos. Nessa partição/repartição de campos, a Patologia tem ficado numa posição subordinada, uma vez que, tradicionalmente, ela é instruída pelas conquistas teórico-descritivas da área da Aquisição da Linguagem, como se nada se tivesse a aprender face às falas sintomáticas de crianças. De fato, é marcante a simpatia pela aplicação, que é consequente ao afrouxamento do compromisso com a especificidade do erro sintomático. Questionamos, portanto, a direção de mão única que se estabeleceu entre Aquisição e Patologias da Linguagem – o que se vai explorar é a possibilidade de suspensão da divisão entre os campos, uma vez que nem a aquisição é um caminho sem tropeços, nem a patologia é desordem sem lei. A área de Aquisição da Linguagem se estrutura a partir da idealização de que o infante se tornará falante, contudo: [...] a generalidade suposta em “a fala da criança” encobre sua heterogeneidade e a de seus efeitos sobre o outro [...] há aquele efeito maior que institui uma diferença fundamental; um corte que separa, na generalidade imaginada em “a fala da criança”, as categorias “normal” e “patológico” [...]. Isso nos leva a admitir que “a fala a criança” pode provocar a partição normal e patológico - trata-se de algo diferente da Anais do SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.

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PSICANÁLISE

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  • A ABORDAGEM DO ERRO NA FALA E NA ESCRITA: AQUISIO,

    ALFABETIZAO E CLNICA.

    Maria Francisca LIER-DEVITTO LAEL-Derdic/PUCSP

    [email protected] Lourdes ANDRADE

    Derdic/PUCSP [email protected]

    Resumo: Este trabalho focaliza aspectos essenciais implicados na abordagem de erros em falas e escritas de crianas em processos - bem sucedidos ou no - de aquisio ou de alfabetizao. Debate-se, a partir do desenvolvimento dessa discusso, a diviso clssica entre as reas de Aquisio e de Patologias da Linguagem. Sustenta-se que, nessa partio/repartio de campos, a Patologia tem ficado numa posio subordinada, como se nada se tivesse a aprender face s falas sintomticas de crianas. O Interacionismo em Aquisio de Linguagem, introduzido por De Lemos na dcada de 1980, apontado como sada para a suspenso dessa diviso. Isto porque o erro , ali, dado de eleio cujo tratamento permitiu desdobramentos tericos e metodolgicos para os campos da clnica e da escola. Produes de fala e de escrita so trazidas para a discusso. Palavras-chave: erro; aquisio da linguagem; alfabetizao; clnica com crianas; relao criana-linguagem

    Este artigo pretende abordar caminhos e descaminhos do tratamento descritivo e explicativo dado a erros, tanto em falas/escritas sintomticas, quanto em produes de crianas em processo de aquisio da linguagem ou de alfabetizao. O que pretendemos, ao eleger esse ttulo, foi iluminar a natureza da reflexo que se espera desenvolver, aqui, sobre a separao clssica entre as reas de Aquisio e de Patologias da Linguagem. Mais particularmente, o objetivo deste trabalho o levantamento de questes sobre a configurao estabelecida entre esses dois campos. Nessa partio/repartio de campos, a Patologia tem ficado numa posio subordinada, uma vez que, tradicionalmente, ela instruda pelas conquistas terico-descritivas da rea da Aquisio da Linguagem, como se nada se tivesse a aprender face s falas sintomticas de crianas. De fato, marcante a simpatia pela aplicao, que consequente ao afrouxamento do compromisso com a especificidade do erro sintomtico. Questionamos, portanto, a direo de mo nica que se estabeleceu entre Aquisio e Patologias da Linguagem o que se vai explorar a possibilidade de suspenso da diviso entre os campos, uma vez que nem a aquisio um caminho sem tropeos, nem a patologia desordem sem lei.

    A rea de Aquisio da Linguagem se estrutura a partir da idealizao de que o infante se tornar falante, contudo:

    [...] a generalidade suposta em a fala da criana encobre sua heterogeneidade e a de seus efeitos sobre o outro [...] h aquele efeito maior que institui uma diferena fundamental; um corte que separa, na generalidade imaginada em a fala da criana, as categorias normal e patolgico [...]. Isso nos leva a admitir que a fala a criana pode provocar a partio normal e patolgico - trata-se de algo diferente da

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

  • distino correto vs. incorreto, certo vs. errado. (Lier-DeVitto & Arantes, 1998)

    Importa admitir, frente heterogeneidade de falas de crianas e idealizao acima

    mencionada, que, se a criana e o processo de aquisio so idealizados, a posio do investigador do campo da Aquisio de Linguagem fica definida: seu olhar fica direcionado exclusivamente para os sucessos do processo de aquisio, referidos internalizao de um alegado conhecimento sobre a linguagem.

    Tendo em vista ser o programa da rea de Aquisio assim configurado, esclarecedor o que diz, sobre ele, Maria Teresa Lemos (2006):

    a anlise da fala de crianas capaz de por em ato e sustentar por si mesma o empreendimento [da rea de Aquisio da Linguagem] [...] e a pergunta pelo sujeito advm de modo secundrio e, ainda assim, [apenas] em pesquisas de inspirao interacionista ou sociointeracionista, vertentes que so mais sensveis questo do sujeito. (LEMOS, M.T., 2006: 57)

    Seguindo essa leitura, pode-se dizer que a rea de Aquisio da Linguagem privilegia

    a trajetria certeira e inequvoca de crianas na linguagem, circunscrevendo, assim, o escopo de questes relevantes para investigao. Importa assinalar que desse escopo no esto excludas consideraes sobre caminhos particulares da criana na aquisio da linguagem - as chamadas diferenas individuais, cuja maleabilidade , contudo, restringida pela idealizao que funda o campo. Em outras palavras, a maleabilidade implicada nessas diferenas individuais diz respeito a caminhos particulares, que se realizam em tempos eventualmente diferentes, mas que so, sempre, caminhos bem sucedidos, que acabam por realizar o ideal da rea.

    Desse modo, os percursos que envolvem fracassos so ignorados ou afastados porque no chegam a interrogar o investigador identificado com o ideal do campo da Aquisio da Linguagem. As falas sintomticas no so, por isso, institudas como solo emprico para elaboraes tericas1

    Lembremos Milner, J-C (1989). Ele afirma que cada programa cientfico circunscreve questes que ele toma como pertinentes ou relevantes e que, no mesmo gesto de constituio, outros problemas so entendidos como irrelevantes. Vejamos esta citao do autor:

    . Entende-se, assim, porque, de um lado, fica o campo da Aquisio e, de outro lado, o das Patologias da Linguagem justamente esta diviso que gostaramos de suspender neste trabalho. Cabe esclarecer que, ao tomarmos essa direo, no deixamos de reconhecer a legitimidade do empreendimento e das conquistas da rea de Aquisio. O argumento que pretendemos desenvolver o de que quando se constri outra empiria, outro rol de questes relevantes delineado e, com ele, outro espao de operao terico-metodolgica pode ser institudo.

    A relao de restrio entre conceitos e problemas acessveis pode ser descrita em termos de programa. Ela delimita de antemo o conjunto de proposies problemticas que lhe sero acessveis ou inacessveis. A cincia prediz que os problemas que so inacessveis so desprovidos de significao, de interesse [para aquele programa cientfico] (MILNER, J-C, 1989: 29) (nfase nossa)

    1 Este argumento perpassa os trabalhos do Grupo de Pesquisa Aquisio, patologias e clnica de linguagem.

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

  • Em suma, no campo da Aquisio da Linguagem, descaminhos sintomticos (patolgicos) no esto includos nas proposies problemticas eles ficam reduzidos a um lugar secundrio, entendidos como desviantes: no do direo teorizao da rea. no interior do campo da Aquisio, assim configurado, no entanto, que surge a teorizao que nos interessa particularmente discutir aqui: trata-se do Interacionismo, conforme proposto por Cludia Lemos. Desde o incio dos anos 80, a partir do encontro desta linguista com falas de crianas, ela e outros pesquisadores envolvidos com a proposta constroem outra empiria: erros, repeties da fala do outro e a marcante heterogeneidade da fala de crianas ganham estatuto de material emprico privilegiado. Uma posio diferente para o investigador criada a partir da e uma teorizao consistente passa a ser desenvolvida com base neste outro recorte emprico2

    Os esforos tericos, empreendidos na direo de dar aos erros, repeties e produes paradoxais a dignidade de proposies problemticas, acaba alojando a teoria Interacionista numa zona fronteiria: ela fica entre estar dentro e fora da rea de Aquisio da Linguagem. Pode-se dizer que a sustentao da tenso inerente a essa posio fronteiria o que permite dar extenso reflexo desenvolvida sobre falas de crianas em processo de aquisio da linguagem a falas sintomticas de crianas. Esse passo foi dado, primeiramente, por Lier-DeVitto, na PUCSP, ao instituir o Projeto Aquisio, patologias e clnica de linguagem

    .

    3

    Nosso objetivo , portanto, interrogar essa separao uma discusso que no passa, neste trabalho, pela discusso de aproximaes, diferenas ou divergncias entre as diversas propostas dos campos em questo

    . Pretendemos encaminhar, do interior da discusso desenvolvida neste projeto e da forte relao que ele entretm com a proposta interacionista, uma abordagem da fala de crianas que possa abalar o dualismo entre Aquisio e Patologias da Linguagem.

    4. Para que este passo seja dado preciso, inicialmente, elucidar algumas proposies da proposta interacionista e situar argumentos que puderam impulsionar o encaminhamento de nossa questo. Elegemos dar destaque aos argumentos empricos e tericos que sustentam a proposta de De Lemos (2002)5. No que diz respeito aos primeiros, aos argumentos empricos, eles nos remetem aos efeitos produzidos na relao do investigador com a fala da criana6

    . A autora destaca trs fenmenos de corpora de falas de crianas:

    (1) a incorporao de fragmentos da fala do outro, (2) a natureza dos erros e (3) a surpreendente heterogeneidade das produes da criana.

    O primeiro acontecimento incorporao de fragmentos - exigiu o reconhecimento da

    funo do outro e daquilo que a repetio, pela criana, de fragmentos do enunciado do adulto indiciava, nomeadamente, sua condio de alienao fala como momento inaugural da

    2 Em artigo de 1982, a autora sustenta a necessidade de construir uma metalinguagem alternativa, com condio para abordar a fala de crianas por um ngulo que confere valor ao erro, aos fragmentos, aos enunciados inslitos. 3 A pesquisadora articula, neste empreendimento que teve apoio do CNPq (n 522002/97-8), duas unidades da PUCSP: a Diviso de Educao e Reabilitao dos Distrbios da Comunicao (Derdic) e o Programa de Ps-Graduao em Lingustica Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL). 4 Esta explorao tem sido feita, de forma extensa e criteriosa, em dissertaes de mestrado e doutorado defendidas no interior do Grupo de Pesquisa, acima mencionado. 5 Neste artigo, privilegiaremos os textos de De Lemos. Essa opo deve-se ao fato de que exploramos, aqui, aspectos ligados aos fundamentos desta proposta terica. Reconhecemos, porm, a importante participao dos pesquisadores da UNICAMP, da UFPE e da PUCSP, na construo do arcabouo terico do Interacionismo. 6 Glria Carvalho tem refletido sobre a relao do investigador com materiais de crianas. Remetemos, portanto, o leitor aos trabalhos da autora (CARVALHO 1995 e 2006)..

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

  • entrada na linguagem. A condio de alienao erigida como contra-argumento idia de que a trajetria da criana na linguagem seja pautada por apreenses cognitivas da linguagem.

    Os erros, por sua vez, so manifestaes que afastam, igualmente, interpretaes cognitivistas7

    A heterogeneidade, que remete a produes paradoxais (flutuao entre erros e acertos), elevada, por de Lemos (1982), ao estatuto de contra-argumento idia de desenvolvimento, ou seja, idia de que a aquisio possa ser vista como um processo de apreenses parciais e ordenadas do objeto-linguagem (De Lemos, 1995, 2006).

    . Eles so, alm disso, ndices legtimos de distanciamento e resistncia fala do outro. Erros so interpretados como efeitos de cruzamentos entre cadeias, cruzamentos, esses, que so impulsionados por operaes da lngua na fala da criana.

    Passa-se do reconhecimento dessas ocorrncias na fala de crianas sua enunciao como argumentos empricos em favor desta proposta terica. Todos e cada um desses argumentos empricos - (1) incorporao alienao fala do outro; (2) erros resistncia fala do outro e (3) heterogeneidade - conduziram sustentao dos enunciados crticos essenciais do Interacionismo, quais sejam:

    (1) a fala de crianas no instanciao de conhecimento sobre a lngua - erros, heterogeneidade, repetio, por certo, no so manifestaes de conhecimento sobre a linguagem ao contrrio, eles so expresses de falta de conhecimento.

    (2) a aquisio no um processo de desenvolvimento h intermitncia entre erros e acertos, ao longo de todo o processo de aquisio, que impede a determinao da natureza do conhecimento lingustico da criana.

    (3) a lngua no objeto de conhecimento ela no acessvel ao aparato perceptual-cognitivo (ver DE LEMOS, 2002).

    Chamamos a ateno para o fato de que tais argumentos, primeiramente enunciados

    sob a forma de negao, levantam questes sobre a criana e sobre a relao da rea da Aquisio com o saber da Lingustica; mais particularmente sobre a projeo desse saber sobre a fala da criana. Nesse sentido, a direo terica indicada obriga redefinio do que se denomina fala de crianas e, consequentemente, dos dois termos que compem essa expresso: fala e criana. O Interacionismo, ao problematizar esses termos, coloca-se em desconforto no campo da Aquisio da Linguagem e parte em busca de uma metalinguagem alternativa (De Lemos, 1982) para abordar a fala da criana. O desconforto que acabamos de mencionar no se traduziu, entretanto, num afastamento da Lingustica muito pelo contrrio, teve como resultado um estreitamento de laos com esse campo, ou melhor: houve aproximao com uma Lingustica capaz de abrir a possibilidade de uma abordagem explicativa e teoricamente consistente da empiria construda8

    De fato, o encontro com o erro, a heterogeneidade e a repetio da fala do outro imprimiram uma direo terica marcada pelo retorno a Saussure e pelo movimento na direo da Psicanlise. O que se valoriza em Saussure (1916) uma alternativa para a prtica de descrio da fala da criana pela via da gramtica (De LEMOS, et alli, 2001-4). Investe-se, desse modo, na possibilidade de implicar o funcionamento de la langue, da Lngua, na fala, ou seja, de implicar na fala de crianas, as leis de composio interna da linguagem (MILNER, 1987), postuladas pelo estruturalismo europeu.

    .

    A aproximao a Saussure no foi, de modo algum, aleatria. Afinal, Saussure, em seu 7 Para uma discusso aprofundada sobre a relao do campo da Aquisio com a Psicologia, ver Pereira de Castro (1992) e Lier-DeVitto (1998). Quanto adeso da Fonoaudiologia ao cognitivismo, ver Andrade (2003). 8 Empiria que, como vimos, tem o erro como dado de eleio (Figueira, R., 2001)

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

  • gesto fundador da cincia Lingustica, afasta-se das descries para buscar explicaes e indagar sobre a natureza mesma da linguagem (SILVEIRA, 2007). Essa aproximao Saussure d proposta interacionista uma posio no mbito da Lingustica, uma vez que processos lingusticos operaes metafricas e metonmicas - so mobilizados e implementados na abordagem da fala da criana. Por outro lado, a questo do sujeito persistia como problema para o Interacionismo. Isso porque, se h em Saussure o afastamento do sujeito psicolgico - sujeito esse no compatvel com a proposta - no h, em sua obra, uma teorizao alternativa sobre uma noo de sujeito que pudesse ser compatvel com a noo de Lngua por ele postulada. Essa compatibilidade ser atingida, pelo Interacionismo, em sua aproximao Psicanlise. No se deve esquecer, a esse propsito, a pergunta sobre quem a criana na empiria privilegiada por esta abordagem. Como vimos, no a criana ideal que funda a Aquisio da Linguagem e d sustentao distino/separao entre Aquisio e Patologia.

    Cludia Lemos diz ter encontrado, na Psicanlise, o lugar onde colocar esse impossvel, onde dar um estatuto a esse impossvel, a essa criana e sua fala (de LEMOS, 2002). Os argumentos tericos sobre linguagem e sujeito decorrem (e so restringidos), como se v, do compromisso do no recobrimento dos fenmenos empricos que foram inicialmente interrogantes. Procurou-se caminhar, assim, na direo do estabelecimento de consistncia terica com o que se construiu como empiria representativa de falas de crianas. Os argumentos, antes enunciados sob a forma de negaes, ganham, a partir do encontro com a Lingustica e com a Psicanlise, uma formulao positiva:

    (1) a fala de crianas efeito de relaes entre criana e linguagem criana-fala do outro; criana-Lngua; criana e a prpria fala.

    (2) a aquisio um processo de mudanas estruturais - mudanas de posio da criana frente fala do outro, Lngua e prpria fala.

    (3) a Lngua tem um funcionamento estrutural, que tem anterioridade lgica em relao ao sujeito a criana , portanto, por ela capturada.

    Esses argumentos tericos contemplam falas de crianas, sejam elas reconhecidas

    como patolgicas ou no. A expresso fala de crianas ganha, portanto, extenso e passa a acolher as imbricaes plurais e complexas de caminhos/descaminhos, que caracterizam a trajetria de subjetivao da criana na e pela linguagem. No pretendemos, com essa afirmao, dissolver diferenas. Nossa discusso no tende diluio de peculiaridades que distinguem falas sintomticas e falas da aquisio (elas, efetivamente, so irredutveis uma outra em seus efeitos), mas, sim, diluio dos limites entre campos.

    Falas de crianas partilham as mesmas caractersticas fundamentais: so faltosas, imprevisveis e altamente heterogneas. H, no entanto, um ponto em que falas de crianas em aquisio e falas sintomticas podem ser distinguidas: falas sintomticas colocam em evidncia a priso do sujeito numa falta ou falha, uma cristalizao que o impede de passar a outra coisa (ALLOUCH, 1990). Nisso, sintoma difere de erro: ele manifestao de um impacto no processo de captura pela linguagem, impacto que deixa sua marca impressa na relao criana-lngua. No espao terico aqui proposto, a expresso fala de crianas inclui falas sintomticas. Enquanto manifestao, as diferenas inscritas em falas sintomticas de crianas so inequvocas, mas elas devem poder ser abarcadas por um mesmo quadro terico.

    A elaborao terica mais recente no Interacionismo aquela que prope trs momentos no processo de aquisio da linguagem, que so enunciados em termos de posies:

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

  • [...] na primeira posio, pela dominncia da fala do outro [incorporao de fragmentos], na segunda posio, pela dominncia do funcionamento da lngua [presena de erros] e, na terceira posio, pela dominncia da relao do sujeito com sua prpria fala [reformulaes-autocorrees]. na terceira posio que a criana, enquanto sujeito falante, se divide entre aquele que fala e aquele que escuta sua prpria fala ela dividida entre a instncia subjetiva que fala e a instncia subjetiva que escuta (DE LEMOS, 2002, p.46)

    De forma esquemtica, temos: (1) Primeira posio - a criana fala a fala do outro, como em:

    Segmento 1 (Me=M // Criana= C.) M: Quer descer? C: qu. M: Voc quer descer? C.: desc (DE LEMOS, 1982)

    (2) Segunda posio - o movimento da Lngua na fala no restringido pela escuta da criana. Temos, ento, erros e composies inslitas. Note-se, nos segmentos abaixo, a sustentao que a fala da criana tem em estrutura paralelsticas:

    Segmento 2 (desenhando um avio) o avio que a Cuca vai compr chapu pra mim o avio que o Michel vai compr chapu pra Cuca o avio que a Cuca vai compr chapu pro Michel vai compr casinha pr ns mor (Michel 2; 7.15)

    Segmento 3 Num fala nu meu nome Num fala nu teu nome Num fala midanoni Num fala mianoni Num faa midadoni Num fala nu nomi (LIER-DEVITTO, 1998)

    (3) Terceira posio - a escuta da criana afetada pela prpria fala h reformulaes e autocorrees... ainda que [ela] no chegue forma correta (De Lemos, 2002, p. 62).

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

  • Segmento 4

    C: Joo Pilanta segou at l da escola...ento... M: Hum C. foi estevendo, escrevendo estevendo, estevendo estevendo, escrevendo

    (DE LEMOS, 2006)

    Considerando essas posies estruturais, cabe a ressalva de que no h, entre elas, ordenao temporal, mesmo porque, como diz Saussure, em matria de linguagem [...] uma idia bastante falsa crer que [...] o problema da origem difira do das condies permanentes (SAUSSURE, 1916:16):

    A cada instante, a linguagem implica ao mesmo tempo um sistema estabelecido e uma evoluo: a cada instante ela uma instituio atual e um produto do passado. Parece fcil, primeira vista, distinguir entre esse sistema e sua histria, entre aquilo que ele e aquilo que ele foi; na realidade, a relao que une ambas as coisas to ntima que se faz difcil separ-las. Seria a questo mais simples se se considerasse o fenmeno lingustico em suas origens: se, por exemplo, comessemos por estudar a linguagem das crianas? No, pois uma ideia bastante falsa crer que, em matria de linguagem, o problema da origem difira do das condies permanentes [...]. (SAUSSURE, 1916, 15-6) (nfases nossas)

    De maneira bastante resumida, poderamos dizer ser impossvel, nos termos de

    Saussure, eliminar da condio nascente (a entrada da criana na linguagem), a condio permanente (uma lngua em funcionamento).

    A entrada em questo das patologias de linguagem no espao anteriormente voltado para a aquisio promove perturbaes que podemos considerar produtivas para a reflexo sobre falas de crianas. Vale a pena lembrar um assinalamento de Cludia Lemos (2002): a autora pergunta-se sobre o destino que dar reflexo sobre as trs posies. Isso porque, tendo sido pensadas como alternativa terica para elucidar o processo de aquisio, elas foram questionadas por ocorrncias sintomticas porque elas no so, a, constitutivas: h, como diz, Cludia Lemos crianas que sucumbem nessa trajetria, h processos frustrados. A fixao na primeira posio pode, por exemplo, explicar quadros clnicos em que a fala permanece presa fala do outro, como em manifestaes ecollicas (ARANTES, 2001). H aquelas crianas que permanecem fixadas num embate paralisador em torno da marcao de gnero e que, diferentemente daquelas que podem, como mostrou Figueira (2001), produzir humor, sofrem (ANDRADE, 2006).

    No diferente o que se observa na escrita: as mesmas operaes comandam trajetrias de alfabetizao bastante heterogneas. Ou seja, nem operaes lingusticas stricto sensu, nem a designao de posies estruturais como as propostas por De Lemos so suficientes para captar a singularidade das incidncias subjetivas implicadas na relao criana-linguagem (criana-fala ou criana-escrita), como j discutido anteriormente por Ler-

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

  • DeVitto e Andrade (2008). Esse ponto merece aprofundamento argumentativo em trabalho voltado especificamente para o tema. Cabe, no entanto, no escopo deste trabalho, ilustrar, com material escrito, o que dissemos acima. Os episdios envolvem duas crianas com trajetrias diferentes no processo de alfabetizao. Nosso objetivo chamar a ateno para o fato de que operaes implicadas numa mesma posio estrutural esto envolvidas em ambos os casos. Destacamos dados referentes implicao das letras do nome prprio como matriz significante essencial nas produes iniciais da criana. Para tanto, acompanhamos Santos (2008) que, em sua dissertao, apresenta a reflexo de Bosco (2009) e Borges (2006) e destaca este acontecimento ao apresentar o percurso de uma criana (G L) na escrita. Em foco est a assinatura que pode ser apreendida em meio ao emaranhado de rabiscos feitos pela criana. Bosco chama a ateno para a presena de E e L no texto abaixo:

    (BOSCO, 2009)

    De incio, a assinatura toma todo o espao da folha. Bosco assinala a a instabilidade das marcas e a mescla entre desenho e letra nas escritas iniciais. J, no texto abaixo, temos exclusivamente letras (desenhos desaparecem) e os segmentos ficam melhor definidos:

    (BOSCO, 2009)

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

  • No prximo segmento, as letras fazem o desenho:

    (BOSCO, 2009)

    Frente indeterminao do traado, a professora escreve o nome da criana para futura identificao dessa escrita. Portanto, a escrita do outro que funciona como uma espcie de abertura para a escrita da criana:

    podemos (...) afirmar que so os escritos do outro, de incio, [que] funcionam como um espelho, no qual as manifestaes grficas infantis vo se refletir e refratar, remetendo a uma leitura que se apresenta como efeito de relao entre significantes. (BOSCO, 2010).

    Assim, vemos operar, tambm na escrita, a instncia da alienao ao outro, tpica da primeira posio, como porta de entrada. Na trajetria de Guilherme, a escrita se transforma no espelho: letras do nome comeam a ser grafadas e a se articular em outros espaos. No o que acontece com Marcos Paulo. As letras do seu nome, embora intensamente repetidas, no adquirem propriamente estatuto de significantes - comparecem congeladas, sem segmentao, cobrindo todo o espao do papel. Este menino escreve, mas aquilo que produz no adquire sequer semblante de texto. Vejamos as produes deste menino rascunho e verso final de redao solicitada em situao de prova escolar:

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

  • (SANTOS, 2010)

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

  • (SANTOS, 2010)

    Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.

  • Note-se que, no rascunho, ear d incio escrita. Na redao final, como mostra Santos (2008), esse bloco grafado sobre uma rasura, o que lhe confere ares de significante, uma vez que h rasura. O estatuto desse acontecimento, entretanto, interrogado. A rasura geralmente interpretada como ndice da terceira posio (De Lemos, 2002) - aquele que escreve seria afetado por aquilo que escreve, j que a rasura implica reformulao e, necessariamente, diviso entre aquele que escreve e aquele que l. Esse movimento, no entanto, no parece estar em causa no texto de Marcos Paulo. Seu traado ocupa todo o espao da folha de papel cessa no limite desse espao. Parece possvel afirmar que, embora letras possam ser reconhecidas a e letras do prprio nome apaream com frequncia ao contrrio do que ocorre nas produes iniciais de outro menino, essas letras no funcionam como matriz significante que se abre possibilidade de outras combinatrias. Nesse sentido, elas comparecem mais como desenho e no como significantes. Enfim, so vrios e imprevisveis os caminhos da criana na linguagem e muito h que ser investigado e teorizado sobre falas de crianas: um passo na direo aqui proposta pode ser dado a partir de um aprofundamento de questes relacionadas s posies. Interessa refletir sobre como as mesmas operaes implicadas na relao criana-linguagem podem explicar tanto como certas crianas chegam a falar como se fala, quanto eventuais fracassos. O ponto central deste artigo foi sugerir a viabilidade da construo de uma teoria fortemente interrogada pelos embaraos da patologia. Afinal, as patologias permitem refletir sobre conflitos envolvidos no processo de aquisio (muitas vezes superados) elas podem dar suporte emprico e terico para a recusa da idealizao de que, na trajetria da criana na linguagem, s haja uma direo a do sucesso.

    Referncias

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