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Alexandr e Honrado Uma argola no umbigo Ilustrações Rui Ricardo

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Alexandre Honrado

Uma argola no umbigo

IlustraçõesRui Ricardo

Planeta ManuscritoRua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito

1200 -242 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor

© 2012, Alexandre Honrado© 2012, Planeta Manuscrito

Revisão: Fernanda Fonseca

Paginação: Guidesign

3.ª edição (1.ª na Planeta): Abril de 2012

Depósito legal n.º 341 062/12

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráfi cas

ISBN: 978-989-657-278-5

www.planeta.pt

Capítulo 1

UMA ARGOLA NO UMBIGO 7

A minha mãe entrou no meu quarto e, em vez de me acor-

dar – que eu já estava acordada, espantada a olhar para o

despertador como se ele fosse um Pavarotti redondo e de

goelas abertas, um cantor de ópera gordo e incompetente

que falhara a sua missão, pois eu esquecera -me de dar -lhe

corda e ele estava parado à espera de ordens –, em vez de

me dar os bons -dias, em vez de me dizer minha querida hoje

é feriado, a escola fechou, o mundo reclama férias, não há

guerra no planeta e ninguém passa fome, deixou de haver

ricos e pobres, feios e bonitos, rapazes com borbulhas e rapa-

rigas sem graça, a minha mãe atacou -me e apanhei um pon-

tapé em cheio na minha boa disposição, que já nem era muita:

– Não te esqueças; hoje vem cá a Rosarinho!

A Rosarinho? Eu nunca mais vira a Rosarinho depois…

daquilo. Toda a família falara com a Rosarinho, só eu me

mantivera no mundo à parte em que me colocam sempre

que há chatice. E agora ela vinha aí e ia falar daquilo e eu –

não sabia o que dizer -lhe.

– Vai tomar um duche, depressa que estás atrasada.

E fui.

A minha vida parece um daqueles jogos de computador

que se jogam usando uma consola, coisa inventada por um

japonezito lingrinhas e cheio de imaginação electrónica, ou

por algum americano gordo e corado, que come hambúrgue-

res a escorrer molho de tomate enquanto inventa um jogo de

8 ALEXANDRE HONRADO

combate, onde no fi m morrem todos, até quem joga, triste e

irremediavelmente assassinado pela falta de paciência, pela

perda de tempo, tanta extraordinária vida para usar que foi

inutilmente desperdiçada.

A diferença é que, por mais interactiva que seja, a consola

doméstica não está nas minhas mãos.

Acordara um poucochinho depois da hora, é verdade; a

hora é sempre violenta e diferente daquela que o meu corpo

reclama. Para complicar a minha vida complicada, a somar -se

ao atraso evidente, a água do duche estava fria, furou -me a

cabeça como um picador de gelo, bico de pinguim no pólo

sul, garra de urso branco no Zoo, icebergue nas costas da

Gronelândia, paixão de artista na capa da revista – daquelas

do tipo: este é o namorado que quero mostrar esta semana,

não gosto dele, mas é o que se pode mostrar por enquanto,

é claro que sou fria, se fosse sentimental como é que me

livrava dele e arranjava outro mais bem -parecido?

E, para cúmulo, não tinha nada giro para vestir, o que me

atrasou ainda mais, porque a roupa que escolhera na véspera

me pareceu com duzentos anos, cheia de mofo, bolor, uso

excessivo e marcas impossíveis de remover, pegadas de anti-

guidade, fósseis de velharia indiscutível…

Pior do que tudo: eu não conseguia deixar de pensar

naquilo! E a Rosarinho vinha para visitar -nos e ia julgar que

eu era a rainha das retardadas.

UMA ARGOLA NO UMBIGO 9

Puxei pela cabeça. Eu percebo muito pouco daquilo. E che-

gar a essa conclusão não me ajudava nada.

O pequeno -almoço só estava quente pelas conversas que

nele se travaram; o ambiente tenso não ajudou.

Saí de casa muito atrasada, a pensar que as ideias da

minha família parecem meias rotas: velhas ideias esbura-

cadas, mais rasgadas que imprestáveis.

Toda a minha família nasceu no século passado, não há

nada a fazer, a não ser levá -la a passear de vez em quando

para arejar, livrá -la do pó e das teias de aranha, ajudá -la…

Vinha pela rua às voltas com um guarda -chuva cuja fer-

rugem era mais velha do que eu e a minha família juntas e

escrava de uma pasta de escola onde os cadernos e os livros

pesavam mais que dois elefantes fêmea à espera de gémeos.

É verdade, adivinhaste, parabéns, podes vir buscar o pré-

mio: ando a pensar de mais em família, gravidezes, coisas

graves, afl ições…

Para que a catástrofe fosse total, o tal pontapé em cheio

foi reforçado por uma presença detestável, ali mesmo, na

«minha» paragem de autocarro, com cara de iogurte com

pedaços, uma cara cheia de altos e baixos, borbulhas que

lembram a paisagem rugosa e pedregosa, árida e fria, da

superfície de Marte, gigantescas crateras com 24 metros

de diâmetro, resultantes do impacte de um meteorito, há

23 milhões de anos, montanhas de acne com 48 metros de

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altura, o ar mais imbecil da Via Láctea, o rapaz mais par-

valhão, aborrecido, incómodo e feio da escola: o Falinhas

Mansas. Estava lá, mas não devia – ele usa habitualmente a

paragem do autocarro do bairro dele que, felizmente, fi ca

a mais de dez minutos de distância, e usa -a por mero bom

senso, já que passa à porta de casa dele e pára à porta da

escola. Deve ter acordado antes do mundo nascer para estar

ali àquela hora – e, mal me viu, saiu de transe ou acordou,

sacudiu as borbulhas, arrastou o esqueleto, avançou dois

passinhos, pôs -me a mão no ombro, repelente, só não pare-

cia uma cobra por que as cobras não têm mãos.

Notei que ao falar deixava sair pela boca um cheiro esqui-

sito, fl ocos de aveia australianos, leite gordo holandês, talvez

uma fatia de pão com manteiga açoriana e pasta de den-

tes com hortelã serrana, à mistura com uma coisa qualquer,

pastilha elástica ou isso, americana ou dessas que não têm

marca nem origem, mas que eu acho que são feitas numa

terra chamada Formosa, ou na China, por operários que tra-

balham a troco de pouco salário e muito sofrimento, que

usam os restos das bolas de basquete e das solas dos ténis

de boa marca, que também fazem.

Dei dois passos atrás, com pavor, e ele deu três passos à

frente, com descaramento e determinação e eu gritei: «Este

rapaz quer passar à frente. Está a furar a fi la!»

12 ALEXANDRE HONRADO

Foi remédio santo, logo uma senhora gorda começou a

protestar, um homem magro deu -lhe um abanão, uma mulher

carregada com malas e sacos pregou um tabefe ao Falinhas

Mansas, que, com falinhas mansas, se explicou, desfazendo-

-se em sorrisos e saltitando ora num ora noutro pé, como se

estivesse afl ito para ir a casa de banho ou atrás da árvore

mais próxima, sanitário público de muitos rapazes como ele:

– Sou colega dela, andamos na mesma escola, quero ape-

nas perguntar -lhe se pode emprestar -me um livro, os meus

pais são pobres e ainda não conseguiram comprar -me um

exemplar, desculpem, façam favor, perdão se incomodei.

Que lata, que descaramento, que ser ignóbil, peçonhento,

repugnante e asqueroso!

– Que querido, coitadinho. – Na fi la para o autocarro

ouviram -se exclamações de aprovação, a senhora gorda

deixou de protestar e começou a elogiar, afi nal ainda havia

crianças responsáveis, educadas, carenciadas, dignas de

uma grande acção colectiva de caridade – com anúncios na

televisão, conta bancária à disposição dos dadores, reunião

de boa vontade, sei lá, um boneco de peluche à venda nas

esquinas da rua e nos pontos de venda habituais, dêem uma

esmola para o Sarampo Mágico, o Borbulha Ambulante, o

Estupor Implacável, alguém escreveria uma letra caridosa,

outro alguém encheria a letra com uma música maviosa de

tão gratuita, goelas de boa vontade fariam coro. A senhora

UMA ARGOLA NO UMBIGO 13

gorda louvava, entusiasmada, as crianças marginalizadas e

perdidas que mereciam subir na vida, até ao topo, como

os balões que se nos escapam das mãos, ocos, cheios de

hélio e presunção a singrarem rumo ao patamar mais alto da

sociedade. Foi o que ela disse, e garanto que, se não usou

tudo isto, pelo menos usou – mesmo! – o termo crianças,

o que, no caso do Falinhas Mansas é um abuso, acho, tenho

a certeza e não me incomodo nada de reunir provas para

demonstrá -lo sem dó nem piedade, que ele nunca foi criança

e nasceu logo com metro e meio de altura, cinquenta quilos

e uma cara de parvo de afugentar moscas delirantes.

O homem magro deu um abraço ao Falinhas, a mulher

carregada de sacos e malas fez uma festa no cabelo espi-

gado do Falinhas – que perdeu as falinhas, pois nem falou,

deixou -se afagar e cumprimentar e elogiar, com um sorri-

sinho anormal, do tipo usem o meu dentífrico que resulta

mesmo, remove o sujo entranhado, destrói o tártaro, esculpe

a pedra, mistura o cimento, dá polimento ao esmalte, assim

parecendo boa pessoa e infi nitamente grato, duas coisas

que não é, nem há -de ser, o grande ingrato horroroso.

Eu afastei -me, mas o Falinhas Mansas, que tinha conquis-

tado o respeito e a estima de todos os presentes, aplaudido

por uma maioria absoluta, mimado por todos, veio atrás de

mim sem qualquer oposição, voltou a pousar a mão no meu

ombro e atirou -me para cima com o seu hálito insuportável:

14 ALEXANDRE HONRADO

– Tens pensado naquilo que te disse?

Bolas, se tenho! Dia e noite, como um condenado à cadeira

eléctrica. Tudo o que o Falinhas me diz é inesquecível!

Não respondi, em nome da boa educação, e a criatura

fi cou a sorrir e à espera, parecia o arrumador de carros que

pede euros ao pé da minha casa, com a diferença que, sujo,

barbudo, malcheiroso e de roupas velhas e estragadas,

o arrumador tem muito melhor aspecto do que o Falinhas

Mansas.

O Sol ainda está bêbado de sono, tem umas remelas

agarradas aos olhos amarelos, a manhã tem um tom lilás, o

ar cheira a leite azedo, como cheira tantas vezes na cidade,

misturando o lixo, que a noite deixou, com a poluição que se

entranha em nós e nos amarga – e amargura – a vida. E, para

piorar, era Inverno e chuviscava, e para tornar tudo ainda

mais desagradável a minha mãe tinha começado a manhã a

falar da minha prima Rosarinho – encheram -se -lhe os olhos

de lágrimas, o meu pai até disse não chores para dentro

da chávena do café, que já bem basta ter de tomá -lo sem

açúcar!

Os meus pais quando agora falam da Rosarinho preferem

que eu saia da sala, vestem luto carregado, vão -se abaixo,

coitados…

Naquela manhã, discutiram o terrível drama que apa-

nhou a família desprevenida e, acho eu, a prima Rosarinho

UMA ARGOLA NO UMBIGO 15

ainda mais surpreendida. E, para estragar de vez a manhã

estragada, o Falinhas Mansas estava armado em parvo, de

mãos esticadas, hálito de estação de tratamento de águas

residuais.

– Podíamos ir ao cinema… Logo à tarde.

– Contigo, era capaz de ir até ao fi m do mundo.

– Eras?

– Para deixar -te lá, atado a um cacto cheio de espinhos;

lambuzava -te o corpo com mel de abelha venenosa e as

formigas carnívoras reuniam -se para fazerem de ti um ban-

quete, só te deixavam os ossos esbranquiçados a tostarem

ao sol até se pulverizarem em pó fi ninho e irrecuperável.

O Falinhas Mansas fez uma careta. Sorriso ou paralisia

facial?

– Então?

– Então vai ver se me encontras debaixo do que aquele

cão acaba de fazer.

– I love you, baby!

– Baby é a tua avozinha! Larga -me da mão!y

O Falinhas abriu a mochila, pôs -se à procura, talvez de

uma pistola para acabar comigo para sempre, é assim

mesmo uma grande paixão, quem ama de verdade não está

com meias -medidas, e afi nal tirou da mochila uma fl or muito

murcha e disse:

– I love you, baby. Isto é pra ti.

16 ALEXANDRE HONRADO

O dia está estragado, a semana vai desfazer -se em lama,

o mês vai ser engolido pelo caudal do esgoto, este ano vai

acabar mal!

O Falinhas Mansas acaba de declarar -se -me, em inglês,

língua simples e expressiva, boa para marcas de refrigerante

com gás e letras de canção romântica – como se dirá pimba

na velha língua dos britânicos? – e só não avançou mais por-

que lhe preguei um simpático e suave murro no estômago

que, por acaso, lhe tirou não só o ar como a vontade de dizer

mais coisas. A fl or murcha encolheu -se e caiu.

– Queres… casar comigo?

– Quê?

– Pode não ser já… Quando eu tiver 15 anos, ou assim…

O Falinhas Mansas é mais resistente do que eu pensava,

recuperou muito depressa não só o fôlego como a parvoíce.

Dei -lhe uma biqueirada num joelho, ele soltou um palavrão

dos pequenos, mesmo assim uma velhota que acabara de

chegar à fi la para o autocarro ouviu e soltou, por sua vez,

outro palavrão, esse maior, de indignada, a juventude está

perdida, havia de ser no meu tempo, isto é uma desgraça.

O autocarro chegou e todos os presentes se acotovelaram

e esmagaram para entrarem primeiro do que os outros, e o

Falinhas Mansas a seguir -me e eu a tirar -lhe a mochila e eu

a atirar a mochila para o passeio e ele a descer e a implorar

Ó senhor condutor é só um bocadinho, e o condutor que

UMA ARGOLA NO UMBIGO 17

anda a conduzir para ganhar o ordenado e cumprir os horá-

rios disse Tenho lá tempo para esperar pelas pessoas e arran-

cou deixando o Falinhas Mansas no passeio, ao pé da velhota

que tropeçara nele e na mochila e atirava ao ar uma colecção

tão boa de palavrões que nem eu os conhecia e tive pena de

não poder fi car para tomar nota, pelo menos dos mais sensa-

cionais, originais e espectaculares.