alexandre dumas - memórias de um médico 3 - Ângelo pitou 1(doc)(rev)

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    Memrias de um mdico:ngelo Pitou

    Volume I

    Alexandre Dumas

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    I

    Em que o leitor toma conhecimento com o heri desta histria e com aterra onde ele nasceu

    Na fronteira da Picardia e do Soissonnais, sobre a poro doterritrio francs, chamado a Ilha de Frana, que fazia parte do antigopatrimnio dos reis, no meio de um imenso semicrculo que, prolongando-se do nascente para o meio-dia, forma uma mata do comprimento decinco mil jeiras, ergue-se, perdendo-se na sombra de um grande parqueplantado nos reinados de Francisco I e Henrique II, a pequena cidade deVillers-Cotterets, notvel por ter ali nascido Carlos Alberto Demoustier,que, na poca em que comea esta histria, escrevia as suas Cartas aEmlia sobre a Mitologia, com satisfao dos jovens senhores daqueletempo, que as procuravam porfia, medida que eram publicadas.

    Para completar a reputao potica dessa pequena cidade, cujosdetractores, apesar do castelo real e dos seus dois mil e quatrocentoshabitantes, teimavam em chamar vila, ajuntemos que est situadadistante duas lguas da Lafert-Milon, onde nasceu Racine, e oito lguasde Chateau-Thierry, onde nasceu Lafontaine.

    Note-se mais, que a me do autor de Britannicus e deAthalie era deVillers-Cotterets.

    Voltemos porm ao castelo real e aos dois mil e quatrocentoshabitantes da pitoresca cidade.

    O castelo real, principiado no tempo de Francisco I, cujassalamandras ainda conserva, e acabado no tempo de Henrique II, de quem

    ainda tem a cifra enlaada com a de Catarina de Mdicis e circundadacom as trs meias-luas de Diana de Poitiers, depois de ter abrigado osamores do rei cavaleiro com a senhora de tampes, e os de Lus Filipe deOrleans com a bela senhora de Montesson, estava quase desabitadodesde a morte deste ltimo prncipe. O filho, Filipe de Orleans,cognominado depois Egalit, fizera-o descer da categoria de residnciaprincipesca de simples ponto de reunio em dias de caadas.

    geralmente sabido que o castelo e a mata de Villers-Cotteretsfaziam parte do apangio dado por Lus XIV a seu irmo mais velho,quando o filho segundo de Ana de ustria casou com a irm de Carlos II,Henriqueta de Inglaterra.

    Quanto aos dois mil e quatrocentos habitantes de que prometemosfalar, eram, como em todos os lugares em que se acham reunidos dois mile quatrocentos indivduos, um composto:

    1. De alguns nobres, que passavam o Vero nas quintascircunvizinhas e o Inverno em Paris, e que, por arremedar o prncipe, malse apeavam na cidade.

    2. De um bom nmero de burgueses que, fizesse o tempo quefizesse, se viam sair de casa com um guarda-chuva na mo, para irem daro passeio quotidiano depois do jantar, passeio que regularmente seestendia at um largo fosso, que separa o parque da mata, e que fica aum quarto de lgua da cidade. Do a este fosso o nome de Haha, porcausa da exclamao que soltam os que padecem de asma, quando fartosj de andar, chegam a v-lo.

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    3. De uma infinidade de artistas, que trabalham toda a semana, eque s ao domingo podem dar o passeio que os compatriotas, maisafortunados do que eles, gozam todos os dias.

    4. Finalmente, de alguns desgraados proletrios, para quem noh domingo na semana, e que, depois de terem trabalhado seis dias por

    conta dos nobres, dos burgueses ou dos artistas, no stimo se espalhampelas matas, para a apanharem pedaos de pau, que as tempestadesdestruidoras dos bosques, ante as quais os grandes carvalhos so comofracas espigas, fazem espalhar pela terra mida e sombria daquelasmatas, magnfico apangio do prncipe.

    Se Villers-Cotterets (Villerii ad Cottiam-Retice) tivesse tido adesgraa de ser uma cidade muito importante na histria para que osarquelogos se ocupassem dela e seguissem as suas sucessivastransies de aldeia para vila e de vila para cidade, ltimo ttulo que lhenegam, como j declarmos, teriam necessariamente apresentado o factodela ter comeado por duas fileiras de casas construdas nos dois lados daestrada, que de Paris vai para Soissons; depois, teriam acrescentado que,havendo a sua situao, na extremidade de uma bela floresta, atrado, apouco e pouco, um acrscimo de habitantes, outras ruas se ajuntaramdepois primeira, divergentes como os raios de uma estrela, tendendopara os pequenos lugarejos, com os quais lhe convinha conservarcomunicaes, e convergentes para um ponto, que se torna, por via deregra, o centro, isto , o que na provncia se chama a praa, lugar rodado qual se construram as mais belas casas da aldeia tornada vila, e nomeio da qual se ergue um chafariz, que hoje est ornado com um relgiode sol quadrangular; teriam finalmente fixado a data infalvel em que,

    perto da humilde igreja, primeira necessidade dos povos, se haviamassentado as primeiras pedras do grande castelo, ltimo capricho de umrei; castelo que, depois de ter sido alternativamente habitao de reis e deprncipes, se acha hoje reduzido a um triste e horrendo depsito demendicidade dependente da Prefeitura do Sena.

    Na poca em que comea esta histria, as propriedades reais, postoque estivessem j bem abaladas, ainda no tinham chegado ao estado deruna em que se acham actualmente, e o castelo no era j habitado porum prncipe, verdade, mas tambm ainda no o era por mendigos;estava desocupado, porque apenas tinha os comensais indispensveispara a sua conservao, entre os quais se contavam o porteiro, o jogador

    de pla e o capelo, e por isso se viam sempre fechadas as janelas doformidvel edifcio, tanto as que deitavam para o lado do parque, como asque davam para outra praa, que aristocraticamente se chamava Praa doCastelo, o que ainda mais aumentava a tristeza e solido dessa praa,numa das extremidades da qual se via uma casa, de que o leitor h-depermitir que lhe digamos alguma coisa.

    Era uma casinha, de que apenas se viam as costas. Contudo,segundo a opinio de certas pessoas, as costas daquela casa tinham oprivilgio de ser a parte mais brilhante da sua individualidade. E naverdade, na frontaria que deitava para a Rua de Soissons, uma dasprincipais da cidade, havia uma porta arqueada sem gosto, e queconstantemente se conservava fechada dezoito horas por dia, ao passoque o lado oposto se via animado e brilhante; mas era porque deste lado

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    existia o jardim, e que por cima dos seus muros se descobriam os topesdas cerejeiras, macieiras e ameixeiras, ao mesmo que dos lados de umaportinha, que dava sada para a praa e entrada para o jardim, havia duasaccias seculares, que na Primavera pareciam bracejar os ramos por cimado muro para juncar a terra de flores perfumadas em toda a circunferncia

    da sua folhagem.A casa pertencia ao capelo do castelo. Este sacerdote servia aomesmo tempo a igreja senhorial, onde, apesar da ausncia do dono, sedizia missa todos os domingos, e recebia uma pequena penso, a que, porfavor especial, se achavam anexos dois legados, um para a conservaodo colgio de Plessis e outro para a do seminrio de Soissons. Ora,convm dizer, que a famlia de Orleans era quem pagava os dois legados,fundadas, o do seminrio pelo filho do regente, e o do colgio pelo pai doprncipe, e que esses dois legados eram, por um lado, objecto da ambiodos parentes, e, por outro, o desespero dos discpulos, para quem eramorigem de extraordinrias composies, que tinham lugar nas quintas-feiras de cada semana.

    Ora, uma quinta-feira do ms de Julho de 1789, dia pesado esombrio, por causa de uma tempestade que se desenvolvera de oestepara leste, sob o rigor da qual as duas grandes accias, de que falmos,deixavam cair algumas folhas, amareladas pelos calores do Estio, oucomeando j a perder o brilho da verdura primaveril; depois de largosilncio, apenas interrompido pelo sussurro das folhas, queredemoinhavam na praa, e pelo canto do pardal monts que, passandojunto terra, perseguia as moscas, bateram onze horas no relgio daaguda e vermelha torre da cidade.

    Neste instante ouviu-se um hurra semelhante ao que soltaria todoum regimento de hulanos, acompanhado de um estrondo igual ao queproduziria uma avalancha de neve caindo de rochedo em rochedo; aporta, situada entre as duas accias, abriu-se, ou para melhor dizer foiarrombada, e deu passagem a uma multido de rapazes, que seespalharam pela praa, e que imediatamente se formaram em cinco, ouseis grupos alegres e ruidosos; uns, em roda de um crculo destinado aconter presos ou pees, outros diante de uma espcie de jogo traadocom giz, outros finalmente ao p de muitos buracos feitos comregularidade, e nos quais, caindo uma bola, fazia perder ou ganhar os quea atiravam.

    Ao mesmo tempo que os rapazes da escola, denominadosgarotagem pelos raros vizinhos que tinham janelas para a praa,brincavam, de ordinrio com as calas despedaadas nos joelhos e avstia rota nos cotovelos, outros, os chamados quietos, e que, segundo odizer das comadres, haviam de fazer a glria e o orgulho de seus pais,separavam-se dos colegas, com passo vagaroso, indicador da sua tristeza,atravessavam diversas ruas com um cesto na mo e dirigiam-se para acasa paterna, onde os aguardava a fatia de po com manteiga, ou osbolos, que lhes eram destinados em troca dos jogos que tinhamdesprezado. Estes apareciam geralmente vestidos com decncia, e nuncase apresentavam rotos; o que, junto ao to elogiado talento, os faziaobjecto do escrnio e do dio dos condiscpulos, menos bem vestidos, esobretudo muito menos morigerados. Alm destas duas classes, que

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    acabamos de apresentar com o nome de estudantes brincalhes, eestudantes quietos, havia mais uma terceira, que chamaremos a dosmandries, que nunca saam com os outros, nem para brincar na praa,nem para regressar casa paterna, porque quase sempre essa infelizclasse ficava detida por castigo, o que quer dizer, que enquanto os seus

    companheiros, depois de terem acabado de fazer as suas verses etemas, saam para ir jogar o pio, ou comer a sua fatia de po, estesficavam presos aos bancos, ou adiante das suas estantes, para fazer,durante as horas da recreao, os temas e verses, que no tinham feitonas horas da aula, e quando a culpa era mais grave, alm da priso,sofriam o castigo da chibata, da palmatria ou das disciplinas.

    Se nos dssemos ao trabalho de seguir em sentido oposto o mesmocaminho, que os estudantes acabavam de andar, depois de termostransposto uma comprida rua, que estendendo-se pelo jardim, acabavanum grande ptio, destinado s recreaes internas, ouviramos no alto daescada uma voz forte, e pesadamente acentuada, ao mesmo tempo queum estudante, que a nossa imparcialidade de historiador nos obriga acolocar na terceira classe, que era a dos mandries, descia rapidamenteos degraus da escada, fazendo com os ombros o mesmo movimento queos burros empregam para deitar fora os cavaleiros, e os rapazes queacabam de ser castigados com as disciplinas para se livrar da dor.

    - Anda, maroto! Anda, excomungado! Anda, serpente, retira-te, vai-te; vade! Vade! Lembra-te que te tenho aturado trs anos; mas h patifesque chegariam a cansar a pacincia ao prprio Padre Eterno. Agoraacabou-se, de todo. Leva os teus esquilos, as tuas rs, os teus lagartos, osteus bichos de seda, os teus besouros, e vai-te para casa da tua tia, ou do

    teu tio, se tens algum, ou finalmente vai para o diabo, contanto que eu teno veja mais! Vade! Vade!- Oh! Meu caro Sr. Portier, perdoe-me respondia sempre na escada

    a outra voz suplicante; - pois vale a pena que se encolerize porsemelhante maneira, e s por um miservel barbarismo e algunssolecismos, como o Sr. abade lhes chama?

    - Trs barbarismos num tema de vinte e cinco linhas! - replicouainda colrica a mesma voz.

    - Pois seja assim, Sr. abade. Convenho; a quinta-feira o meu diadesgraado; porm, se por acaso amanh o meu tema estiver bom, porcerto me perdoar a minha m sorte de hoje? Diga, meu caro Sr. abade.

    - H trs anos que em todos os dias da composio tu me repetes amesma coisa, ralao! Est marcado o dia primeiro de Novembro paraexame, e eu, que por pedido de tua tia Anglica tive a fraqueza de tepropor como candidato ao benefcio vago actualmente no seminrio deSoissons, passarei pela vergonha de ver o meu discpulo recusado, e deouvir por toda a parte proclamar que ngelo Pitou um asno, AngelusPitovius asinus est.

    Apressemo-nos a declarar, para que o benvolo leitor lhe prestedesde j a ateno que merece, que ngelo Pitou, de quem o nomeacabava de ser to pitorescamente latinizado pelo abade Fortier, o heridesta histria.

    - meu caro Sr. Fortier! meu caro mestre! continuava oestudante no maior desespero.

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    - Eu, teu mestre! - exclamava o abade fortemente humilhado pelonome que Pitou lhe dera. - Graas a Deus, j no sou teu mestre, nem tusers mais meu discpulo; renego-te, no te conheo nem desejava ter-teconhecido nunca, e probo-te que me tornes a falar; no quero sequer queme cumprimentes. Retro! Desgraado, retro!

    - Sr. abade - teimava o infeliz Pitou, que mostrava ter grandeinteresse em no se malquistar com o mestre - Sr. abade, no me prive dasua proteco, por causa do miservel tema estropiado; eu prometoestudar.

    - Ah! - exclamou o abade fora de si pelo ltimo pedido, e descendoos primeiros degraus da escada ao mesmo tempo que ngelo Pitou desciaos ltimos e saa para o ptio; - ah! Tu fazes raciocnios quando nemsequer podes fazer um tema! Tu calculas as foras da minha pacincia,quando no s capaz de distinguir o nominativo da orao?...

    - Sr. abade, visto que sempre tem sido to bom para comigo, sequisesse dizer alguma coisa ao Sr. bispo, que nos h-de examinar...

    - Eu, desgraado! Pois hei-de mentir minha conscincia? -interrogou o abade indignado.

    - Era para fazer uma boa aco, que Deus lhe perdoar.- Nunca! Nunca!- E depois, quem sabe? Talvez os examinadores no sejam mais

    severos comigo de que foram para com o Sebastio Gilberto, o meucolao, quando o ano passado foi ao concurso do benefcio de Paris. Eletambm cometia barbarismos, apesar de s ter treze anos, ao passo queeu tinha dezessete.

    - Olhem que estpido! - exclamou o abade acabando de descer a

    escada, e aparecendo com as disciplinas na mo, guardando Pitouprudentemente a conveniente distncia entre si e o seu mestre. - Sim,estpido! - continuou o abade cruzando os braos, e encarando comindignao o discpulo. - Trplice animal! Desse modo que te lembras doaxioma: Noti minora, loqui majoravalens? Mas foi justamente por Gilbertoser mais moo do que tu, que foram mais indulgentes com ele, porqueanda apenas nos catorze anos, o que no acontecer contigo, que s umasno de dezoito.

    - verdade, mas foi tambm por ele ser filho do Sr. HonrioGilberto, que tem dezoito mil libras, que lhe rendem as suas terras,situadas na plancie de Pleux - replicou com lstima o nosso lgico.

    O abade Fortier olhou para Pitou, estendendo os beios e franzindoas sobrancelhas, e depois de o ter considerado um instante em silncio,disse resmungando:

    - Isto agora de quem tem juzo... Species, nun autem corpus.- Oh! Se eu fosse filho de um homem que tivesse dez mil libras de

    renda - exclamou ngelo Pitou, que percebera que a sua resposta fizeraalguma impresso no professor.

    - Sim, mas no s. Em vez disso, s um ignoranto, como o velhacode que fala Juvenal; citao profana (o abade benzeu-se), mas que nempor isso menos justa.Arcadius Juvenis. Aposto que tu tambm no sabeso que quer dizerArcadius?

    - Ora essa! Arcadiano - respondeu ngelo Pitou endireitando-se coma superioridade do orgulho.

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    - Sim, e depois?- Depois o qu?- A Arcdia era o pas dos asnos, e tanto entre os antigos como entre

    os modernos, asinus, sinnimo de stultus.- Eu no queria entender a coisa dessa maneira - disse Pitou -

    porque estava longe de pensar que a austeridade do meu digno professorse pudesse abater at o ponto de satirizar.O abade considerou-o segunda vez com mais profunda ateno do

    que tinha feito da primeira.- f de quem sou! - exclamou um pouco mais brando pelo elogio

    do seu discpulo - h momentos em que juraria que o patife no to tolocomo parece.

    - Ora pois, Sr. abade - disse Pitou que, conquanto no tivesse ouvidoas palavras do professor, contudo divisava-lhe na expresso da fisionomia,que estava prxima a compaixo; - perdoe-me, e ver que bonito tema lheapresento amanh.

    - Pois bem, consinto - respondeu o abade, pendurando cintura asdisciplinas em sinal de trguas e aproximando-se de Pitou, que em vistadesta demonstrao de paz ficou parado.

    - Oh! Muito obrigado - exclamou ele.- Espera, no agradeas to depressa, perdoo-te, sim, mas com uma

    condio.Pitou abaixou a cabea, e como estava disposio do digno abade,

    esperou com toda a resignao.- Vem a ser, que me hs-de responder a uma pergunta, que te vou

    fazer.

    - Em latim? - perguntou Pitou sobressaltado.- Latina - respondeu o professor.Pitou suspirou.Depois disto houve um intervalo de silncio, durante o qual os

    alegres gritos dos estudantes, que jogavam na praa, chegaram aosouvidos de ngelo Pitou.

    E pela segunda vez suspirou, com maior nsia que da primeira.- Quid virtus? Quid religio? - perguntou ainda o abade.Estas palavras, pronunciadas com ar magistral, retiniram nos

    ouvidos do pobre Pitou, como a trombeta do Anjo no dia do juzo final.Uma nuvem lhe passou por diante dos olhos, e na sua inteligncia houve

    um tal choque, que ele acreditou um momento na possibilidade deendoidecer.

    Todavia, por muito forte que fosse o esforo da sua inteligncia, noproduziu resultado nenhum, e a pergunta continuava a ficar sem resposta.Ouviu-se o estrondo de uma pitada, que sorvia com toda a pachorra oterrvel interrogador.

    Pitou conheceu que era preciso responder.- Nescio - respondeu ele, julgando que seria perdoada a sua

    ignorncia, confessando-a em latim.- Pois tu no sabes o que a virtude! exclamou o abade sufocado

    de clera - tu no sabes o que religio!- Sei em francs - replicou ngelo Pitou - mas no em latim.- Ento vai-te para a Arcdia,juvenis, tudo est acabado entre ns!

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    Pitou ficou to aterrado que no deu um passo para fugir, apesar doabade ter tirado as disciplinas da cintura com tanta dignidade, como umgeneral tiraria a espada da bainha na ocasio do combate.

    - Porm, que ser de mim? - exclamou o pobre rapaz deixando cairos braos inertes; - que farei, se perco a esperana de entrar no

    seminrio?...- Faze o que puderes; isso -me indiferente.O abade estava to irado, que at chegava a praguejar.- Mas bem sabe, Sr. abade, que minha tia pensa que j sou abade.- Est bom, ela saber que nem para sacristo prestas.- Mas, Sr. Fortier...- J te disse que te vs, limina linguae.- Vamos! - exclamou Pitou como homem que toma uma resoluo

    dolorosa; - o Sr. abade d licena que eu v buscar a minha estante? -perguntou ele, esperando que enquanto durasse esta demora, o coraodo abade daria entrada a sentimentos mais piedosos.

    - Pois no; a tua estante e quanto ela contm.Pitou subiu a escada, porque a aula era no primeiro andar, e entrou

    na sala, onde, reunidos em roda de uma grande mesa, fingiam quetrabalhavam uns quarenta estudantes. Depois levantou com cuidado acortina da sua estante para ver se todos os hspedes que ela continhaestavam completos; pegou nela com uma cautela que mostrava bem ocuidado que tinha nos seus livros, e com passo vagaroso e pausado,tomou o caminho do corredor. No topo da escada, com o brao estendido,estava o abade, mostrando-lhe o caminho com o cabo das disciplinas.

    Portanto, era preciso passar por baixo das foras caudinas. ngelo

    Pitou encolheu-se o mais que pde; apesar disso, no evitou, ao passar,uma ltima despedida do instrumento, a que o abade devia os seusmelhores discpulos, e cujo emprego, posto que mais freqente eprolongado em ngelo Pitou do que em outro qualquer, tinha tido, comoacabamos de ver, medocre resultado.

    Enquanto Pitou, limpando as lgrimas, e levando a estante cabea,se dirigia para Pleux, stio da cidade onde habitava a tia, diremos algumacoisa a respeito do seu fsico e antecedentes.

    II

    Em que se mostra que uma tia nem sempre o mesmo que uma me

    Lus ngelo Pitou, na poca em que principia esta histria, tinhadezessete anos e meio, como ele mesmo confessara ao abade Fortier; eraalto e magro, de cabelo louro, corado e com olhos azuis. Fazia-se notarsobretudo o brilho da mocidade viosa e inocente na boca rasgada, cujosbeios grossos, que ele abria desmedidamente, deixavam ver duas ordenscompletas de dentes formidveis, principalmente para aqueles a quemestavam destinados a comer o jantar. Da extremidade dos compridos eossudos braos, pendiam-lhe as mos largas como umas ps; tinha aspernas bastante arqueadas, e os joelhos to grossos, que pareciamcabeas de criana, o que lhe fazia quase sempre estalar os calespretos; os ps eram desmedidos, mas apesar disso andavam vontade

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    nos sapatos, que por muito usados estavam j vermelhos: usava umaespcie de camisola de sarja escura, conservava o meio termo entre asotaina e a blusa; tal era pois o retrato exacto e imparcial do ex-discpulodo abade Fortier.

    Falta-nos agora admir-lo pelo lado moral.

    ngelo Pitou era rfo desde a idade de doze anos, poca em queteve a desgraa de perder a me, sendo filho nico. Ora, desde a morte dopai, que se deu antes dele ter uso da razo, foi sempre to estimado pelame, que quase fazia quanto queria, o que concorreu para lhe desenvolvera educao fsica, mas atrasou-lhe muito a moral. Nascido numa bonitavila, chamada Haramont, que est situada no meio de um bosque, e quedista da cidade uma lgua, os seus primeiros cuidados foram percorrer asflorestas, onde nascera, e perseguir os animais que as habitavam.

    Resultou, pois, desta aplicao dirigida para um s fim, ser ngeloPitou, na idade de dez anos, um ladro de caa muito distinto, e umpassarinheiro de primeira ordem; e isto quase sem trabalho nem ensino,unicamente levado pela fora do instinto, que a Natureza d ao homemnascido no meio dos campos, e que parece ser uma poro daquele, comque cria os animais. Por esta razo sabia de todas as passagens quefaziam as lebres e coelhos, e nem um s bebedouro que houvesse, trslguas em redondo, lhe escapara investigao, encontrando-se por todaa parte sinais do seu podo nas rvores mais prprias para a caa dereclamo.

    O resultado destes continuados exerccios foi Pitou adquirirextraordinria fora, em comparao da dos rapazes da sua idade.

    Com o auxlio dos compridos braos e dos grossos joelhos, podia

    abranger as rvores mais grossas, a que trepava para tirar os ninhos quese alcandoravam mais alto, com uma agilidade e certeza, que eram aadmirao dos companheiros, e se estivesse mais prximo do Equador,certamente lhe adquiriria a estima dos macacos. Nesta caa de reclamo,caa que chegou a ser o encanto de alguns personagens e na qual ocaador atrai os pssaros a uma rvore, que se acha guarnecida devarinhas enviscadas, imitando o grito do gaio ou da coruja, indivduos queso to odiados por toda a raa emplumada, que qualquer tentilho,melharuco ou pintassilgo, assim que os ouve corre com a esperana delhes arrancar uma pena, deixando, a maior parte das vezes, as suas; nestacaa, pois, os companheiros de Pitou costumavam servir-se de uma

    verdadeira coruja, ou de um gaio natural, ou enfim de uma erva particular,com o auxlio da qual imitavam, bem ou mal, o grito destes animais. Pitou,porm, desprezava todos esses preparativos e subterfgios. Era com osseus prprios recursos que combatia; com os seus meios naturais armavao lao, e com a boca atraa no s os animais, mas at os homens, quechegavam a enganar-se com o seu grito to bem imitado. Enquanto caa, acrescentamos que era para ele coisa trivialssima, e decerto a teriadesprezado por demasiado fcil, se no fosse entretenimento toprodutivo.

    No entanto, isto no impedia, que apesar do desprezo em que tinhaesta qualidade de caa to fcil, muitos dos seus companheiros maisespertos no se admirassem como ele cobria de feno os bebedourosexcessivamente grandes para serem cobertos; pois ningum sabia, como

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    Pitou, dar a conveniente inclinao s varas de visco, de maneira queficavam postas de tal forma que os pssaros mais manhosos no podiambeber por lado nenhum sem ficarem presos. S ele era capaz de calcularcom mo certa e bom olho, que pores de pez, azeite e visco eranecessrio empregar para que o visco no ficasse nem muito delgado,

    nem muito quebradio.Ora, como a importncia que se d a certos indivduos pelas suasqualidades devida ao lugar e s pessoas com quem vivem, Pitou, eramuito considerado na vila de Haramont pelos camponeses seus patrcios,gente habituada a procurar na prpria Natureza os recursos para asprecises da vida, e que como todos os rsticos, tinham por instinto dio civilizao. Portanto, Pitou, gozava de uma tal considerao, que faziacom que sua pobre me pensasse que ele trilhava o verdadeiro caminhoda honra, e que a educao que se d a qualquer homem custa degrandes despesas valia tanto como a que seu filho procurara por si mesmosem lhe custar nada.

    Porm, quando a pobre mulher caiu doente, conhecendo que estavaprximo o seu fim e que ia deixar o seu filho s e abandonado no mundo,foi que viu que se enganara, e que era preciso procurar um protector parao futuro rfo. Lembrou-se de um mancebo, que havia dez anos lhe forabater porta uma noite, trazendo-lhe uma criana recm-nascida edeixando-lhe ficar, para sua criao, uma quantia de dinheiro bastanteavultada, e alm disso tambm para ela outra quantia ainda maior empoder de um tabelio de Villers-Cotterets. A respeito deste mancebo nadamais pudera saber naquela ocasio seno que se chamava Gilberto.Porm, trs anos depois, vira-o aparecer novamente; mostrava ento ser

    homem de vinte e sete anos, apresentando-se com ar srio, falandodogmaticamente, e recebendo as pessoas com modo frio.Logo que tornou a ver o seu querido menino, essas maneiras tinham

    desaparecido para darem lugar alegria que sentia de o achar muitobonito, forte e risonho, isto , criado vontade da Natureza, e por issoapertara significativamente a mo pobre mulher dizendo-lhe s estaspalavras:

    - Em caso de preciso, conte comigo.Depois pegou no menino, informou-se de qual era o caminho para

    Ermenonville, fez com ele uma visita ao tmulo de Rousseau, e voltoupara Villers-Cotterets. A, encantado do ar da cidade, e pela informao

    que o tabelio lhe dera do colgio do abade Fortier, deixou o pequenoGilberto em casa deste digno homem, de quem logo primeira vista lheagradou o aspecto filosfico, porque j naquela poca era tal o poder dafilosofia, que at entre os prprios eclesisticos ela se tinha introduzido.

    Depois disto, partiu para Paris, deixando ao abade Portier adesignao da sua morada.

    A me de Pitou era sabedora de todos estes pormenores, e por issoas palavras: Em caso de preciso, conte comigo, vieram-lhe idiacomo uma inspirao. Sem dvida a Providncia determinara que istoassim acontecesse, para que o infeliz Pitou talvez viesse a achar mais doque perdia. Imediatamente fez chamar o cura, e como no sabia escrever,pediu-lhe que lhe escrevesse uma carta, que nesse mesmo dia foi levadaao abade Fortier, o qual logo lhe ps a morada de Gilberto, e a deitou no

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    correio.No havia que perder tempo, porque a pobre mulher morreu

    passados dois dias.Pitou era ainda muito moo para avaliar a falta que acabava de

    sofrer. Chorou a morte da me, no porque pudesse compreender o que

    era a separao do tmulo, mas porque vendo-a fria, plida e desfigurada,pressentia, como por instinto, que o seu anjo tutelar acabava dedesaparecer; sabendo, alm disso, que, da em diante, privado de suame, a casa ficava deserta e desamparada; porm, ainda no se tinhalembrado de qual seria o seu futuro; por isso, quando a me foi conduzidaao cemitrio, quando a terra, depois de cobrir o caixo, formou umaeminncia arredondada, assentou-se sobre a cova, e a todos que lhepediam que sasse do cemitrio, respondia, abanando a cabea, quenunca tinha abandonado sua me, e que por isso queria ficar onde elaestava.

    Ficou todo o dia e toda a noite sobre a cova.Foi a que o digno doutor (ns j diramos que o futuro protector de

    Pitou era mdico?) foi a que ele o encontrou, quando, tendo recebido acarta havia quarenta e oito horas e conhecendo toda a fora do dever aque se tinha obrigado pela sua promessa, acabava de chegar para acumprir.

    ngelo tinha poucos anos quando viu pela primeira vez o doutor,porm, como todos sabem, na infncia h impresses to profundas, quedeixam eternas recordaes, e alm disso a apario do moo misteriosoem sua casa deixara nela sinais para nunca ser esquecido. Com o depsitoque fizera da criana, de que j falmos, levara a prosperidade pobre

    gente, motivo por que todas as vezes que ele ouvia pronunciar a sua meo nome de Gilberto, era com uma espcie de adorao; depois, quandosucedeu tornar a v-lo, j homem feito, e com o grau de doutor, e quando,aos benefcios passados, acrescentou a promessa do futuro, Pitou julgou,recordando o modo reconhecido de sua me, que tambm devia mostrar-se reconhecido, e sem saber o que dizia, balbuciou as palavras delembrana eterna e agradecimento profundo que lhe ouvira.

    Logo que avistou o doutor atravs da porta de vidraa do cemitrio,conheceu-o; depois, quando viu que se aproximava, atravessando porentre as sepulturas cobertas de relva, e as cruzes quebradas, levantou-see foi-lhe ao encontro. A este no podia ele dizer que no, como fizera aos

    outros, porque acabava de ver com que prontido acudira ao chamamentode sua me moribunda, e por isso no ops resistncia alguma, e svoltou a cabea para trs, quando Gilberto, tomando-o pela mo, oconduziu chorando para fora do recinto morturio. porta achava-se umcabriole, em que ambos se meteram, abandonando por algum tempo acasa salvaguarda da boa f dos habitantes, e ao interesse que adesgraa inspira; e dirigindo-se para a cidade, foram apear-se porta dahospedaria do Delfim, que naquela poca era tida como a melhor. Logoque a chegaram, Gilberto mandou chamar um alfaiate, que, previamenteavisado, trouxe consigo andainas de fato completas. Foi escolhido paraPitou um fato, que tinha talvez em comprimento e largura mais duas outrs polegadas do que o necessrio, mas atendendo maneira como elecrescia, decerto essa superfluidade no duraria muito tempo. Concludo

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    isto, saram ambos em procura do bairro que j designamos com o nomede Pleux.

    medida que se aproximavam desse bairro, Pitou demorava opasso, porque sabia j que era levado a casa de sua tia Anglica; e apesarde terem sido poucas as vezes que ele vira a sua madrinha, porque fora a

    tia Anglica quem o dotara com o seu potico nome de baptismo,conservava desta sua respeitvel parenta uma viva recordao.E na verdade, a tia Anglica nada tinha de atractivo para um rapaz

    que estava costumado a todos os carinhos do amor maternal. Era poraquela poca uma solteirona de cinqenta e cinco a cinqenta e oito anos,embrutecida pelo excesso dos mais minuciosos exerccios da religio, e,levada por uma piedade mal entendida, cerrara o corao a todos ossentimentos para dar lugar a uma grande avidez, que de dia para diaaumentava mais pelo contnuo comrcio com as beatas da cidade. No sepodia dizer que vivesse de esmolas, porque, alm da venda do linho, quefiava na roca, e do aluguer das cadeiras na igreja, que lhe tinha sidoconcedido pelo cabido, recebia de tempos a tempos das pessoascaritativas algumas esmolas, que de moeda de cobre convertia em prata,e desta em luses de ouro, os quais desapareciam, sem que pessoaalguma os visse desaparecer, mas tambm, sem que ningum soubessemais da sua existncia, porque os ia esconder um por um na almofada dacadeira em que trabalhava, e uma vez metidos nesse esconderijo, aencontravam uma certa quantidade de companheiros, recolhidos comoeles a um e um, e tambm como eles destinados a serem da em dianteseqestrados circulao, at que um dia, pela morte da beata,passassem s mos do seu herdeiro.

    Foi, pois, para a morada desta digna parenta, que se dirigiu o Dr.Gilberto, conduzindo pela mo o grande Pitou.Dizemos o grande Pitou, porque trs meses depois do seu

    nascimento crescera ele mais do que era prprio da idade.A Sr. Rosa Anglica Pitou, na ocasio em que se abriu a porta para

    dar entrada a seu sobrinho e ao doutor, estava nos seus momentos debom humor. Enquanto na igreja de Haramont se rezava a missa dedefuntos por alma de sua cunhada, tinha havido casamentos e baptizadosna de Villers-Cotterets, de maneira que o rendimento das cadeiras num sdia tinha-se elevado a seis libras. A Sr. Anglica tinha pois naquele diaconvertido os seus soldos num grosso escudo, o qual, junto a outros, que

    em diferentes pocas haviam sido postos de reserva, perfaziam um lus deouro. Esse Lus acabava de se ir juntar a outros, e o dia em que tinha lugartal juno era de festa para a Sr. Anglica.

    Foi na ocasio em que, depois de ter fechado a porta, o que faziasempre durante a operao da reunio do dinheiro, examinava pela ltimavez a cadeira para se certificar de que nada denunciava o tesouro aliescondido, que o doutor e Pitou entraram.

    A cena poderia ter sido muito tocante, porm aos olhos de homemto recto observador, como era o doutor Gilberto, s foi grotesca. Assimque avistou o sobrinho, a velha beata entrou a falar da sua pobre equerida irm, que tanto estimava, e fingiu que limpava as lgrimas. Pelasua parte, o doutor queria, antes de tomar uma deciso, conhecer bem dontimo o corao daquela mulher. Principiou, pois, por fazer-lhe como que

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    um sermo sobre os deveres das tias para com os sobrinhos. proporoque o discurso se desenvolvia, e que as palavras fluentes saam dos lbiosdo doutor, as lgrimas, quase imperceptveis da velha beata, iam-se-lhesecando nos olhos, e todas as suas feies retomavam a aridez dopergaminho que parecia cobri-las. Por fim levantou a mo esquerda

    altura da barba, e com a direita entrou a calcular pelos descarnados dedosqual a quantia de soldos que o aluguer das cadeiras lhe rendiaaproximadamente cada ano; de tal forma que o acaso fez que o clculo seconclusse ao mesmo tempo que o discurso. Logo que este se acabou, elano mesmo instante respondeu que, sem embargo de ter estimado muitosua pobre irm e de ter muito d do seu querido sobrinho, infelizmente apequenez dos seus rendimentos era tal que apesar mesmo do duplo ttulode tia e de madrinha, nenhum aumento podia fazer na sua despesa.

    Isto j o doutor esperava, e por isso no o surpreendeu a recusa; eraum grande sectrio de idias modernas, e como se acabava de publicar oprimeiro tratado de Lavater, fizera j a aplicao da doutrina fisionmicado filsofo de Zurique s magras e amareladas feies da Sr. Anglica.

    Resultou deste exame conhecer pelos pequenos e brilhantes olhosda velha Anglica, pelo nariz comprido e pelos delgados beios, que nelaexistiam, reunidos numa s pessoa a cobia, o egosmo e a hipocrisia.

    J vimos que a resposta no lhe causou a mais pequena admirao;porm, como bom observador, quis experimentar at que ponto elapossua estas trs nfimas qualidades.

    - Mas, senhora, ngelo Pitou um pobre rfo, filho de sua irm, epor humanidade decerto no h-de abandonar o seu sobrinho caridadepblica.

    - Mas considere, Sr. Gilberto - respondeu a velha - que umaumento de seis soldos por dia; porque decerto este rapaz o menos quecome por dia um arrtel de po.

    Pitou, ao ouvir isto, fez uma careta; bem sabia ele que ao almoocostumava comer arrtel e meio.

    - Sem contar o que preciso gastar em sabo para lavagens -continuou a velha; - e ele ento, que tanto suja!

    Efectivamente, Pitou sujava muito a roupa, o que no era paraadmirar, considerando a vida em que se empregava; mas fazendo-lhe adevida justia, rasgava-a mais do que sujava.

    - Pois - continuou o doutor - a Sr. Anglica, que uma pessoa que

    tanto pratica a caridade crist, est agora ocupando-se em fazer taisclculos a respeito de um sobrinho seu e seu afilhado?

    - E ainda no contei o que preciso para conserto do fato! -exclamou com arrebatamento a beata, que bem se lembrava de ter vistosua irm Madalena coser bastantes canhes nas jalecas, e pr joelheirasnos cales de seu sobrinho.

    - Desta forma recusa absolutamente tomar seu sobrinho para casa?O pobre rfo, repelido por sua tia, ver-se- obrigado a mendigar pelasportas dos estranhos?

    A beata, por muito avarenta que fosse, conheceu que, recusandoreceber o sobrinho, este se veria reduzido ltima extremidade, e grandedio recairia sobre ela.

    - No recuso - respondeu ela; - encarrego-me dele.

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    - Ora muito bem! - exclamou o doutor, contente por ter encontradoainda um bom sentimento num corao, onde lhe parecia que j se tinhamextinguido todos.

    - Sim - continuou a beata - encarrego-me de o recomendar aosreligiosos Agostinhos de Bourg-Fontaine, para que o recebam no seu

    convento como leigo.O doutor, como j dissemos, era filsofo. Sabe-se muito bem o quevalia naquele tempo a palavra filsofo. Portanto, resolveu logo arrancaraos religiosos Agostinhos um nefito, e isto com o mesmo zelo que pelasua parte empregariam os Agostinhos para arrancarem um adepto aosfilsofos.

    - Est bom - continuou ele metendo a mo na algibeira - uma vezque est numa situao to precria, que se v obrigada, por falta demeios, a recomendar seu sobrinho caridade de outrem, procurareialgum que possa melhor do que a senhora empregar na manuteno dopobre rfo a soma que eu lhe tenho destinado. Preciso voltar Amrica,mas antes da minha partida, hei-de pr seu sobrinho em casa de algummarceneiro ou carpinteiro. Ele mesmo escolher, conforme a sua vocao.Enquanto eu estiver ausente, crescer, e minha volta j o hei-deencontrar sabendo o seu ofcio, e verei ento o que se poder fazer dele.Vamos, meu pobre rapaz, abraa tua tia e retiremo-nos.

    Ainda bem o doutor no tinha acabado de falar, j Pitou se dirigia,com os compridos braos estendidos para a muito digna mulher. Eefectivamente ele tinha bastante pressa de abraar sua tia, mas era coma condio de que este abrao seria o sinal entre ambos de umaseparao eterna.

    Mas a palavra soma, ao gesto do doutor metendo a mo naalgibeira, e ao som argentino, que a mo logo fizera ouvir, mexendo emuma poro de escudos, de que se podia calcular a quantia pelo volumeque faziam na casaca, a beata sentia afluir-lhe ao corao todo o fogo dacobia.

    - Ah! Meu caro Sr. doutor, no sabe decerto uma coisa - exclamouela.

    - Que ? - perguntou o doutor.- que ningum no mundo capaz de estimar tanto como eu este

    pobre rapaz!E entrelaando os compridos braos com os de Pitou, deu-lhe um

    beijo em cada face, que o fez estremecer das pontas dos ps raiz doscabelos.

    - Oh! Certamente - respondeu o doutor - eu bem sei isso. E duvidavato pouco da sua amizade para com ele, que lho trouxe directamente,como ao seu natural arrimo. Porm, o que me acaba de dizer, queridasenhora, convenceu-me ao mesmo tempo no s da sua boa vontade, mastambm da sua impossibilidade, e por isso vejo que muito pobre parapoder amparar outra pessoa ainda mais pobre.

    - Ah! Meu caro Sr. Gilberto, pois Deus est no cu, e de l mesmono sustenta todas as suas criaturas?

    - Isso verdade - respondeu Gilberto - mas se d o sustento aospssaros, no pe os rfos a aprender ofcios. Ora eis aqui o que preciso fazer a ngelo Pitou, e o que decerto senhora lhe h-de ser

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    muito custoso praticar, vistos os seus poucos meios.- Com tudo isso, se o Sr. doutor quisesse dar-me a tal quantia?...- Que quantia?- A de que me falou, e que tem na sua algibeira - respondeu a velha

    beata indicando com o seu dedo de ganso as abas da casaca cor de

    castanha, que o doutor trazia.- Dar-lha-ei certamente - respondeu este - mas j a previno, de queh-de ser com uma condio.

    - Qual?- De que o rapaz h-de ter um ofcio.- Dou-lhe a minha palavra, Sr. doutor, que h-de ter um - exclamou

    a devota com os olhos virados para a algibeira do doutor.- Promete?- Prometo.- Seriamente, no verdade?- Por Deus o juro, meu caro Sr. doutor.E a Sr. Anglica estendeu horizontalmente o descarnado brao.- Est bem - respondeu o doutor tirando da algibeira um saco, cujo

    bojo estava totalmente cheio - estou pronto a dar-lhe o dinheiro, como v;da sua parte est pronta a responder-me pelo rapaz?

    - Pela Virgem, Sr. Gilberto.- No jure tanto, senhora, e assine mais.- Assinarei, Sr. Gilberto, assinarei.- Diante do tabelio?- Diante do tabelio.- Ento vamos a casa do tio Niguet.

    O tio Niguet, a quem o doutor dava este amigvel ttulo porconhec-lo havia muito tempo, era, como j devem saber os nossosleitores a quem familiar o nosso livro Jos Blsamo, o tabelio de maiornomeada do lugar.

    A Sr. Anglica, de quem Niguet era tambm tabelio, nada teveque opor escolha feita pelo doutor, e portanto seguiu-o ao escritrioindicado, onde foi registrada pelo tabelio a promessa feita pela Sr.Anglica Pitou, de tomar sua conta, procurando-lhe uma profissohonrosa, Lus ngelo Pitou, seu sobrinho, recebendo ela cada ano aquantia de duzentas libras. Como o contrato fosse feito por cinco anos, odoutor depositou em poder do tabelio oitocentas libras, e duzentas foram

    pagas adiantadas.No dia seguinte o doutor deixou Villers-Cotterets, depois de ter

    regulado algumas contas com um dos rendeiros de que mais tardefalaremos. Pelo que respeita Sr. Pitou, caiu como um milhafre sobre asduzentas libras, que lhe tinham pago adiantadas, e foi encerrar napoltrona oito bonitos luses de ouro.

    Quanto s oito libras, resto que lhe ficava, foram postas num pires,por onde, desde trinta ou quarenta anos, tinham passado bastantesmoedas de diferentes espcies, esperando que a colheita de dois ou trsdomingos acabasse de completar a quantia de vinte e quatro libras, quetanto era necessrio para sofrerem, como j explicamos, a metamorfosedourada e passar ento do pires para a cadeira.

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    III

    ngelo Pitou em casa da tia

    J vimos o pouco gosto que ngelo Pitou tinha em habitar por muito

    tempo em casa da sua boa tia Anglica. O pobre rapaz, dotado de uminstinto igual, ou mesmo talvez superior ao dos animais que costumavaguerrear, adivinhara j quanto teria que sofrer naquela casa, no diremosde decepes, porque j sabemos que nem um s instante se haviaenganado, mas de tristeza, atribulaes e desgostos.

    Importa confessarmos que, depois da partida do doutor, o maiormotivo da indisposio de Pitou contra sua tia no era a questo de estalhe procurar um ofcio, porque ela nem sequer se tinha ocupado disso. Otabelio dissera alguma coisa a respeito desta formal conveno, mas aSr. Anglica respondera que seu sobrinho era ainda muito novo, e de umasade muito delicada para se empregar em trabalhos que excediam assuas foras. O tabelio, ouvindo esta observao, admirou o bom coraoda Sr. Pitou, e por conseguinte este negcio, apesar de urgente, ficoudemorado para o ano seguinte, e no se perdia tempo, porque eleacabava apenas de completar doze anos.

    Ora, visto que Pitou se achava em casa da tia, enquanto ela seocupava em excogitar qual seria o maior partido que pudesse tirar de seusobrinho, ele, pela sua parte, considerando-se na sua antiga floresta, oucom pouca diferena, tinha j tomado todas as suas disposiestopogrficas para levar em Villers-Cotterets a mesma vida que levava emHaramont.

    Com efeito, num passeio que deu pelos arredores, conheceu logoque os melhores bebedouros eram os que se achavam nas estradas deDampleux, de Compigne, e de Vivires, e que o stio mais povoado decaa era o de Bruyre-aux-Loups.

    Pitou, depois de fazer este reconhecimento, tomou as suasdisposies.

    A coisa era fcil de conseguir, visto que para obter o visco e asvarinhas no precisava de gastar dinheiro: a cortia do azevinho, pisadaem um gral e muita gua, produzia o visco; enquanto s varinhas, essashavia-as aos milheiros nos lamos das vizinhanas. Pitou, preparou pois,sem dizer a pessoa alguma, um milheiro de varinhas, e um pcaro com

    visco de primeira qualidade, e numa bela manh, depois de ter na vsperacomprado a um padeiro por conta de sua tia um po de quatro arrteis,partiu ao amanhecer, passou todo o dia por fora, e s voltou j noitefechada.

    Ele no tinha tomado semelhante resoluo, sem lhe calcular osresultados; portanto, j antevia uma grande tempestade. Sem ter asabedoria de Scrates, conhecia o gnio de sua tia to bem, como oilustre mestre de Alcibades conhecia o de sua mulher Xantipo.

    Na verdade, Pitou no se enganara no clculo, mas contava poderfazer face tempestade apresentando velha devota o produto do seudia. Somente o que no podia saber era o lugar, em que o raio oapanharia. A Sr. Anglica estava emboscada atrs da porta, para que seusobrinho no lhe escapasse ao entrar, de sorte que no momento em que

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    ele se aventurou a pr o p em casa, recebeu na nuca um murro, peloqual, sem precisar de outras informaes, reconheceu perfeitamente amo descarnada da velha beata.

    Felizmente, Pitou tinha a cabea dura, e posto que a pancadaapenas o tivesse abalado, para mover o d de sua tia, em que via

    aumentar a clera, em conseqncia do mal que fizera aos prprios dedoscom a formidvel pancada que lhe dera, fingiu que caa, indo a tropearpara outro lado do quarto. Depois, vendo que sua tia ainda ia sobre elecom a roca na mo, apressou-se a tirar da algibeira o talism com quecontava para alcanar o perdo da sua fuga.

    Eram duas dzias de pssaros, entre os quais havia uma dzia depintarroxos, e meia de tordos.

    A velha abriu os olhos muito espantados, continuou a ralhar, maspor formalidade, e mesmo a ralhar foi-se apoderando da caa do sobrinhoe aproximando-se da luz:

    - Que isto? - exclamou ela.- Bem v, minha tia Anglica, so pssaros.- E so bons para comer? - perguntou a velha, que apesar de ser

    muito beata era naturalmente gulosa.- Bons para comer! - exclamou Pitou - ora essa! Pois no v que so

    pintarroxos e tordos?- E onde furtaste esses animais, desgraadinho?- No os furtei, apanhei-os.- Como?- No bebedouro.- Que vem a ser o bebedouro?

    Pitou olhou espantado para sua tia; no podia conceber comohouvesse no mundo uma pessoa to falta de educao, que ignorasse oque era um bebedouro.

    - O bebedouro? - respondeu ele - o bebedouro.- Mas que eu, Sr. brejeiro, no sei o que um bebedouro.Ora, Pitou era cheio de compaixo para com os ignorantes, e por

    isso respondeu:- O bebedouro um pequeno charco; como este onde foi, haver

    uns trinta na floresta: pem-se varinhas em roda, e quando os pssarosvm beber, como no sabem disto, ficam presos.

    - A qu?

    - Ao visco.- Ah! Ah! J percebo - disse a tia Anglica: - mas quem te deu o

    dinheiro?- O dinheiro! - exclamou Pitou espantado de haver algum que

    pudesse acreditar que ele em tempo algum possusse um s real; - odinheiro, tia Anglica?

    - Sim; o dinheiro.- Ningum.- Mas ento com que compraste o visco?- O visco fao-o eu mesmo.- E as varinhas?- Tambm.- Dessa forma, estes pssaros...

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    - O que, tia?- No te custam nada?- O trabalho de me abaixar e de os apanhar.- Pode-se ir muitas vezes ao tal bebedouro?- Pode-se ir todos os dias.

    - Est bom.- Mas no preciso...- No preciso... O qu?- Ir todos os dias.- A razo?- Porque isso arruna.- Arruna o qu?- O bebedouro. No v, tia Anglica, que os pssaros que se

    apanham...- Sim, e ento!- Ento, j l faltam.- Dizes bem - respondeu a velha.Era esta a primeira vez que a tia Anglica achara razo ao sobrinho

    desde que ele estava com ela, e por isso esta aprovao fora de costumeencantou Pitou.

    - Mas - continuou ele - nos dias em que se no for ao bebedouro, vai-se a outra parte. Quando se no apanham pssaros, apanha-se outracoisa.

    - Que se apanha?- Apanham-se coelhos.- Coelhos?

    - Sim. Come-se-lhes a carne e vende-se a pele, e cada pele decoelho produz dois soldos.A tia Anglica olhou para o sobrinho maravilhada; ela que nunca

    tinha pensado que ele fosse to economista. Pitou acabava de se dar aconhecer.

    - Mas ho-de ser vendidas por mim as peles dos coelhos? - redargiuela.

    - Decerto - respondeu Pitou - como fazia a minha me.Nunca passou pela idia deste rapaz, que do produto da sua caa

    pudesse reclamar outra coisa, que no fosse a sua parte no consumo.- E quando vais tu apanhar os coelhos? - perguntou-lhe a tia

    Anglica.- Ora! Apenas eu tenha os laos respondeu Pitou.- Est bom! Pois ento faze os laos.Pitou abanou a cabea.- Tu fizeste o visco e as varinhas.- verdade que fiz o visco e as varinhas, mas no sei fazer o arame;

    isso compra-se.- E quanto custa?- Oh! Com quatro soldos - exclamou Pitou calculando pelos dedos -

    posso fazer duas dzias.- E quantos coelhos podes tu apanhar com duas dzias?- Isso conforme; quatro, cinco, e talvez seis! E depois os laos

    servem muitas vezes, quando o guarda os no acha.

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    - Toma, aqui tens quatro soldos - disse-lhe a tia Anglica; - compra oarame na loja do Sr. Dambrum, e vai amanh caa dos coelhos.

    - Irei amanh pr os laos - disse Pitou - e s depois de amanh que posso saber quantos esto apanhados.

    - Est bom, seja assim; mas vai sempre.

    O arame vendia-se mais barato na cidade do que no campo, pelarazo de que os mercados de Haramont se proviam dele em Villers-Cotterets. Por dois soldos teve Pitou vinte e quatro laos, o resto restituiu-o tia.

    Esta inesperada probidade do sobrinho quase que comoveu a velha,que por instantes lhe passou pela idia a inteno de o gratificar com ossoldos que se no tinham empregado. Mas, infelizmente para Pitou, eraum soldo que tinha sido estendido s marteladas, e que, ao anoitecer,podia passar por dois. Portanto, a Sr. Anglica conheceu que lhe noconvinha desapossar-se de uma moeda que lhe podia render meio pormeio, e meteu o soldo na algibeira.

    Pitou notara este movimento, mas no o analisara.Nunca ao pobre rapaz lhe poderia vir idia que sua tia lhe quisesse

    dar um soldo.Ps-se a preparar os laos.No dia seguinte pediu um saco tia.- Para qu? - lhe perguntou a velha, significando grande admirao.- Porque me preciso - respondeu Pitou, que era cheio de mistrios.A tia, sem replicar, deu-lhe o saco que ele pedia, e meteu no fundo a

    proviso de po e queijo, que havia de servir para o almoo e jantar dosobrinho, que partiu muito cedo para Bruyre-aux-Loups.

    Enquanto velha, essa principiou por depenar os doze pintarroxos,que destinava comer naquele dia; depois levou dois tordos ao abadePortier, e os outros quatro foi vend-los ao estalajadeiro da Bola de Ouro,que lhos pagou por trs soldos cada um.

    A velha perguntou ao estalajadeiro se lhe compraria todos que lhelevasse.

    O estalajadeiro prometeu-lhe que compraria pelo mesmo preotodos os pssaros que ela apresentasse.

    A tia Anglica entrou em casa radiante de alegria. A bno do cutinha entrado para casa com Pitou.

    - Ah! - exclamou ela enquanto comia os pintarroxos, que estavam

    gordos como os verdelhes, tenros como os papa-figos; - bem certoquando se diz, que um benefcio nunca fica sem recompensa.

    Quando ngelo voltou noite, trazia s costas o saco muito cheio.Desta vez no foi esperado pela tia Anglica atrs da porta, mas sim nolimiar; e, em lugar de ser recebido com um murro, foi acolhido com umacareta, que quase se assemelhava a um sorriso.

    - Eis-me aqui! - exclamou Pitou entrando em casa com o modo dequem tinha empregado bem o dia.

    - Tu, e o teu saco - disse a tia Anglica.- Eu, e o meu saco - respondeu Pitou.- E que trazes nele? - perguntou-lhe a tia, ao mesmo tempo que

    estendia a mo movida pela curiosidade.

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    - Trago faines1- respondeu Pitou.- Faines!- Sem dvida; a tia Anglica no sabe, que se o tio La Jeunesse, o

    guarda de La Bruyre-aux-Loups, me visse a rondar o seu campo sem osaco, perguntava-me: Que vens tu aqui fazer, vadio? E no digo que no

    desconfiasse de alguma coisa. Ao passo que, levando o saco, se meperguntar o que vou fazer: Aqui tem, lhe respondo eu, venho apanhadas faines; proibido apanhar faines? No. Muito bem; visto que no proibido, no tem nada que me dizer. E efectivamente, se dissessealguma coisa, o tio La Jeunesse diria alguma asneira.

    - Visto isso, passaste o dia a apanhar faines em vez de armar os teuslaos, preguioso? exclamou a tia Anglica, que no meio de todas asfinezas para com o sobrinho julgava j que se lhe escapavam os coelhos.

    - Ao contrrio, armei os laos apanhando sempre faines e de talmaneira que o tio La Jeunesse no foi capaz de me ver trabalhando.

    - E no te disse nada?- Sim, disse: Ouviste? D l saudades tia Pitou. Hem! Sempre

    bem bom homem, o pai La Jeunesse, no verdade?- Mas os coelhos? - replicou a tia Anglica, a quem nada podia fazer

    perder a idia principal.- Os coelhos? A lua nasce meia-noite, pois uma hora irei ver se

    eles caram.- Onde?- Ao bosque.- No tens medo?- Medo! De qu?

    A tia Anglica ficou to maravilhada do nimo de Pitou quanto oestava das suas especulaes.O facto era que Pitou, simples como um filho da Natureza, no

    conhecia nenhum dos perigos factcios, que experimentam os rapazes dascidades.

    Em vista disso, meia-noite, partiu costeando o muro do cemitrio,sem nunca olhar para trs. O rapaz inocente que nunca ofendera, aomenos em suas idias de independncia, nem a Deus nem aos homens,tinha tanto medo dos mortos como dos vivos.

    S temia uma nica pessoa: era o tio La Jeunesse; pelo que teve aprecauo de fazer um rodeio para lhe no passar junto da casa. Como as

    portas e as janelas estavam todas fechadas, e tudo em sossego no interiorda casa, Pitou, para se certificar de que o guarda se achava efectivamenterecolhido e no no seu posto, ps-se a fingir os latidos de um co, tanto aonatural, que Ronflot,o co de guarda do tio La Jeunesse, se enganou coma provocao, e respondeu ladrando pela sua parte de goelasescancaradas, vindo farejar por debaixo da porta.

    Desde este momento, Pitou ficou tranqilo. Estando Ronflot emcasa, era certo que tambm o estava o tio La Jeunesse. Ronflote o tio LaJeunesse eram inseparveis, e quando se via um podia-se estar certo deque no tardaria a aparecer o outro.

    1Faines o fruto das faias do Norte. Este fruto produz muito bom azeite, e ao mesmo tempo para os pobresuma espcie de man, que lhes cai do cu durante dois meses no ano.

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    Pitou, perfeitamente sossegado a este respeito, encaminhou-se poispara Bruyre-aux-Loups. Os laos tinham produzido a sua obra: estavamdois coelhos presos e estrangulados.

    Pitou meteu-os na ampla algibeira da sotaina extremamentecomprida, que dentro de um ano se devia tornar muito curta, e dirigiu-se

    para casa da tia.A santa mulher tinha-se deitado, mas a ambio conservava-a aindaacordada. Como Perrette, j fizera a conta do que lhe poderiam renderquatro boas peles de coelho por semana, e essa conta havia-a levado tolonge, que no pudera ainda pregar olho, por isso foi com um certoestremecimento nervoso que ela interrogou o sobrinho.

    - Um par, e assevero-lhe que no foi por minha culpa que no trouxemais; mas parece que tm o diabo no corpo os coelhos do tio La Jeunesse.

    As esperanas da tia Anglica estavam satisfeitas, e at excedidas.Pegou, cheia de alegria, nos dois pobres animais e examinou-lhes a pele,que se conservava intacta, e foi-os fechar na copa, que desde que existianunca tinha visto provises semelhantes s que recebera desde o dia emque Pitou fizera propsito de a guarnecer.

    Depois, com uma voz extremamente doce, disse a Pitou que sedeitasse, o que ele por muito fatigado fez imediatamente, sem sequerpedir de cear, com o que muito penhorada ficou a boa da tia.

    No dia seguinte, ngelo Pitou renovou a tentativa e desta vez aindafoi mais feliz do que da primeira; apanhou trs coelhos.

    Dois foram para a Bola de Ouro, e o terceiro para o presbitrio. A tiaAnglica tratava com muito cuidado o abade Portier, porque este arecomendava pelo seu lado s almas caridosas da freguesia.

    Assim correram as coisas durante trs meses. A tia Anglica estavaencantada, e Pitou achava o seu estado suportvel. Efectivamente, a noser o amor da me, que sempre lhe suavizara a existncia, Pitou levavaquase a mesma vida em Villers-Cotterets que em Haramont. Todavia, umcaso inesperado, que alis devia ser previsto, ps ponto nas delcias datia, interrompendo as expedies do sobrinho.

    Recebera-se uma carta do Dr. Gilberto, datada de Nova Iorque.Apesar de estar na Amrica, o filsofo viajante no se esquecera do seuprotegido. Escrevera ao tabelio Niguet para saber se as suas instruestinham sido seguidas, e reclamar a execuo do contrato se o notivessem sido, ou a resciso se no as quisessem seguir.

    O caso era grave: a responsabilidade do tabelio era sria, eportanto ele apresentou-se em casa da tia Pitou com a carta do doutor namo, reclamando-lhe o cumprimento da sua promessa.

    Em vista disto, no havia que alegar porque o pretexto de poucasade era desmentido pela presena de Pitou. Pitou era alto e magro, masos pinheiros da floresta eram tambm altos e delgados e nem por issodeixavam de vegetar perfeitamente.

    A Sr. Anglica pediu oito dias para se dispor de nimo, a fim deescolher o ofcio que o sobrinho devia abraar.

    Pitou estava to triste como a tia. O ofcio que exercia parecia-lhe detal modo excelente, que no desejava outro.

    Durante dois dias no se tratou do bebedouro nem de furtar caa,porque chegara o Inverno, e nessa estao os pssaros bebiam por toda a

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    parte; depois, dentro em pouco, viria a neve, e Pitou no se atreveria a irarmar laos. A neve conserva visveis as pegadas de quem transita, e osps de Pitou eram os mais seguros fiadores de que o tio La Jeunessesaberia dentro de vinte e quatro horas o nome do ladro que lhedespovoava a coutada.

    Durante oito dias as garras da santa mulher estiveram em descanso.Pitou tornara a encontrar a tia Anglica doutro tempo, aquela que tantomedo lhe metia, e a quem o interesse, mvel poderoso de toda a sua vida,por momentos encolhera as unhas.

    medida que se aproximava o prazo, as maneiras da tia Anglicatornavam-se cada vez mais desabridas. Chegara-se ao quinto dia e Pitoudesejava que sua tia se decidisse imediatamente por um ofcio qualquer,contanto que no fosse o de sofrer dores, como as que estava sofrendojunto da santa mulher.

    Todavia, uma idia sublime se lhe revolvia na mente agitada, e estaidia deu-lhe o sossego de que no gozava havia seis dias.

    Consistia em pedir ao abade Fortier que o recebesse na sua classesem retribuio alguma, e que lhe obtivesse o benefcio fundado noseminrio por Sua Alteza o duque de Orleans. Era uma aprendizagem, quenada custava tia Anglica, e o Sr. Fortier, sem contar os tordos, melros ecoelhos com que a velha devota o regalava havia seis meses, devia maisalguma considerao, do que a nenhum outro, ao sobrinho da alugadorade cadeiras da sua igreja. Assim subordinado ao toque da sineta, ngeloconformava-se com o presente e prometia muito para o futuro.

    ngelo Pitou foi com efeito recebido gratuitamente em casa doabade Fortier.

    O abade era bom homem, e muito desinteressado, dava a suacincia aos pobres de esprito, e o seu dinheiro aos pobres de corpo; nums ponto era intratvel; os solecismos punham-no fora de si, e osbarbarismos tornavam-no furioso. Neste caso, no conhecia amigos neminimigos, nem pobres nem ricos, nem alunos contribuintes, nem discpulosgratuitos; castigava a torto e a direito e com um estoicismo lacedemnio;e como os braos eram fortes, batia com firmeza. O seu sistema eraconhecido dos pais de famlia; e como lhes fosse livre o porem ou deixarde pr os filhos debaixo da direco do abade, exigia-lhes este que osrapazes fossem inteiramente entregues sua disposio, e por isso atodas as reclamaes maternais o abade respondia com este dizer, que

    mandara gravar na palmatria: Quem bem ama bem castiga.ngelo Pitou, recomendado pela tia, foi recebido entre os alunos do

    abade Fortier. A velha devota, altiva com aquela recepo, muito menosagradvel a Pitou, a quem interrompia a vida errante e independente,apresentou-se em casa do Sr. Niguet, e anunciou-lhe que no s seconformava com as intenes do doutor Gilberto, mas que at faria maisdo que isso. Efectivamente o doutor tinha exigido para ngelo Pitou umestado honroso, e ela dava-lhe mais do que isso, pois lhe dava umaeducao esmerada; e onde lha dava? No mesmo colgio onde SebastioGilberto recebera a sua pagando cinqenta francos.

    Em verdade, ngelo Pitou recebia a sua educao grtis; mas quenecessidade havia de fazer esta confidncia ao doutor Gilberto? No erabem conhecida a imparcialidade e desinteresse do abade Fortier? Ele

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    tambm, como seu sublime Mestre, abria os braos, dizendo: Deixaiaproximar de mim as crianas. Unicamente havia uma diferena, e eraque as mos paternais do abade estavam armadas, uma com osrudimentos, a outra com um molho de disciplinas; de sorte que as maisdas vezes, ao contrrio de Jesus, que recebia as crianas chorosas e as

    enviava consoladas, o abade Fortier via encaminharem-se para ele aspobres crianas amedrontadas e retirarem-se sempre chorando.O novo aluno fez a sua entrada na aula com a caixa de folha debaixo

    do brao, um tinteiro na mo, e dois ou trs troos de penas entaladas nasorelhas. A caixa era destinada a servir, bem ou mal, de estante; o tinteiroera presente do tendeiro, e os troos das penas tinham sido furtados pelaSr. Anglica ao Sr. Niguet, quando na vspera lhe fora fazer uma visita.

    ngelo Pitou foi recebido com a doce fraternidade, que nasce entreas crianas e que se perpetua entre os homens, isto , entre vaias eapupos. Toda a classe se ps a motejar-lhe do feitio. Foram presos doisalunos por causa do cabelo louro, e outros dois por causa dosmaravilhosos joelhos, de que j nos ocupmos. Os dois ltimos tinham ditoque as pernas de Pitou se pareciam com as cordas de um poo, em quetivessem dado alguns ns. A lembrana fora bem acolhida, andara deboca em boca, e excitara a hilaridade geral, e por conseqncia asusceptibilidade do abade Fortier.

    Desta sorte, feitas as contas, ao sair da aula ao meio-dia, isto ,depois de quatro horas de classe, Pitou, sem ter dirigido uma nicapalavra a pessoa alguma, e sem ter feito outra coisa mais do que bocejaratrs da caixa, contava j seis inimigos na classe, e seis inimigos tantomais encarniados contra ele quanto Pitou no lhes tinha dado motivo

    algum de queixa. Em vista do que, fizeram sobre o fogo, que na classerepresentava o altar da ptria, o juramento solene uns de lhe arrancaremo cabelo louro, outros de lhe machucarem os olhos gaios, e os outros delhe endireitarem as pernas cambaias.

    Pitou ignorava inteiramente estas disposies hostis. Ao sairperguntou a um dos vizinhos por que motivo seis condiscpulos ficavamenquanto os outros saam.

    O vizinho olhou para Pitou de revs; chamou-lhe perversochocalheiro, e afastou-se sem querer travar conversa com ele.

    Pitou perguntou a si mesmo como, no tendo dito uma palavrasequer durante toda a lio, podia ser um perverso chocalheiro. Porm,

    durante o decurso dessa mesma lio, ouvira dizer, uma vez aos alunos,outras ao abade Fortier, tantas coisas que no pudera perceber, quecolocou a acusao do vizinho no nmero das coisas extremamenteelevadas para a sua inteligncia.

    Vendo a tia Anglica voltar Pitou ao meio-dia, e empenhada arespeito de uma educao, para a qual diziam que fizera to grandessacrifcios, perguntou ao sobrinho o que aprendera.

    Pitou respondeu que tinha aprendido a calar; digna resposta de umpitagrico, com a diferena de que um pitagrico t-la-ia dado por umaceno.

    O novo aluno tornou de novo para a lio da uma hora, sem mostrara menor repugnncia. A lio da manh fora empregada pelos alunos emexaminarem o fsico de Pitou; a da tarde foi empregada pelo professor em

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    examinar-lhe o moral. Feito o exame, o abade Fortier ficou convencido deque Pitou teria toda a disposio para vir a ser um Robinson Cruso, masnenhuma tendncia para se assemelhar nem de longe a um Fontenelle oua um Bossuet.

    Durante toda esta lio, muito mais maadora para o futuro

    seminarista do que a da manh, os estudantes que tinham sido castigadospor causa dele, mostraram-lhe o punho por muitas vezes. Em todos ospases, civilizados ou no, esta demonstrao passa por um sinal deameaa; em conseqncia do que Pitou se apercebeu para o que desse eviesse.

    O nosso heri, efectivamente, no se enganara; ao sair, ou antes,tanto que saram das dependncias da casa colegial, foi dito a Pitou, pelosseis estudantes, que tinham sido presos, que ele lhes havia de pagar asduas horas de priso arbitrria que tinham sofrido com capital e juros.

    Pitou percebeu que se tratava de pugilato, e posto que estivessebem longe de ter estudado o sexto livro da Eneida, onde o jovem Dares eo velho Enteio se entregam a este exerccio, com grandes aplausos dostroianos fugitivos, conhecia este gnero de recreao, que no era de todoestranho aos habitantes da sua terra. Em vista disto, declarou que entrariana lia contra aquele dos seus adversrios que quisesse comear, e fariafrente sucessivamente aos seus inimigos.

    Esta declarao comeou logo por lhe valer grande considerao.As condies foram mantidas tal qual as propusera Pitou. Formou-se

    um crculo em roda da lia, e os campees depois de terem despido um asua jaleca e outro a sotaina, avanaram um para o outro.

    Ns j falmos das mos de Pitou: no eram gratas vista, pois

    muito menos o eram ao sentir. Pitou tinha os punhos extremamentegrossos, to grossos como cabeas de criana, e posto que o jogo demurro ainda no estivesse introduzido em Frana, e que por isso Pitou notivesse recebido nenhuns princpios elementares dessa arte, conseguiudescarregar sobre o olho do seu primeiro adversrio um murro toperfeitamente ajustado, que o rapaz ficou logo com ele rodeado de umcrculo negro to geometricamente desenhado como se o mais hbilmatemtico lhe tivesse tomado a medida com o compasso.

    Apresentou-se o segundo. Se Pitou tinha contra si a fadiga de umsegundo combate, tinha a seu favor ser o adversrio visivelmente menosforte de que o primeiro. O combate foi portanto mais breve. O tremendo

    punho desabou sobre o nariz do segundo antagonista, e as duas ventas,dilatando-se pela pujana do golpe, deixaram escapar dois jorros desangue.

    O terceiro ficou quite pela sua parte com um dente quebrado, eainda assim foi o menos maltratado de todos, os outros declararam-sesatisfeitos.

    Pitou fendeu a multido, que se abriu ante ele com o respeito devidoaos triunfadores, e retirou-se so e salvo para os seus lares, ou antes paraos de sua tia.

    No dia seguinte, quando os trs estudantes apareceram, um com oolho pisado, outro com o nariz esmurrado, e o terceiro com os beiosinchados, o abade Fortier procedeu logo a um inqurito. Mas os colegiaistambm tm alguma coisa boa; nenhum dos estudantes estropiados foi

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    indiscreto; e s foi por via indirecta, isto , por uma testemunha da rixa,inteiramente estranha ao colgio, que o abade Fortier soube no diaseguinte que fora Pitou quem fizera na cara dos seus discpulos o estragoque na vspera lhe excitara a solicitude.

    O abade Fortier era responsvel para com os parentes dos seus

    estudantes, tanto pelo moral como pelo fsico, em conseqncia do querecebeu a trplice queixa das trs famlias respectivas. Em vista disto, eraindispensvel uma reparao. Pitou foi condenado a trs dias de deteno:um dia pelo olho, outro pelo nariz e outro pelo dente.

    Estes trs dias de deteno sugeriram Sr. Anglica umaengenhosa idia: foi suprimir a Pitou o jantar cada vez que o abade Fortierlhe suprimisse a sada. Esta determinao devia necessariamente tornar-se em proveito da educao de Pitou, pois que o obrigava a tomar contaem si duas vezes antes de cometer qualquer falta, visto que ela trariaconsigo duplo castigo.

    O que unicamente Pitou nunca compreendeu foi o motivo por que oapodaram de chocalheiro, ele que nada dissera, e como havia sidocastigado por ter dado naqueles que lhe tinham querido bater; mas se elepercebesse logo tudo o que vai pelo mundo, seria o mesmo que perder umdos principais encantos da existncia, o mistrio e o imprevisto.

    Pitou passou os trs dias de deteno, contentando-se com almoar.Contentando-se, no o termo prprio, porque Pitou nunca se

    contentou tal; mas a nossa lngua to pobre e a acadmica to severa,que necessrio contentarmo-nos com o que temos.

    O castigo sofrido por Pitou, sem que ele denunciasse a agresso aque no fizera seno responder, granjeou-lhe a considerao geral.

    Verdade que os trs magistrais murros que lhe tinham visto descarregar,muito concorreram para essa considerao.A contar daquele dia, a maneira de viver de Pitou foi pouco mais ou

    menos a mesma que a dos outros estudantes, com a pequena diferenade que os outros rapazes davam conta mal ou bem das suas lies, aopasso que Pitou permanecia obstinadamente nas primeiras cinco ou seisfrases, e acumulava quase sempre enorme nmero de detenes, o dobrodas dos seus condiscpulos.

    Mas note-se, que uma coisa inata em Pitou, resultante da primeiraeducao que recebera, ou antes, que no recebera, uma coisa pela qualse devia contar pelo menos um tero das numerosas detenes que sofria,

    era a sua natural inclinao para os animais.A famosa caixa com que a tia Anglica o brindara com a alcunha de

    estante, tornara-se, graas sua amplitude e aos repartimentosnumerosos com que Pitou a enriquecera, uma espcie de arca de No,contendo casais de bichos trepadores, rasteiros e volteis. Havia lagartos,cobras, formigas, lees, escaravelhos e rs, animais que se tinhamtornado to queridos de Pitou, que por causa deles sofria castigos mais oumenos severos.

    De ordinrio, era nos passeios semanais que Pitou fazia a apanhapara a sua coleco. Desejara salamandras, muito vulgares em Villers-Cotterets, e que Francisco I tomara por braso de armas e fizera esculpirem todos os foges dos seus palcios, e tinha conseguindo alcan-las; suma coisa o preocupara fortemente, e tanto assim, que terminara por

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    coloc-la no nmero das que lhe ultrapassavam a inteligncia; era tersempre encontrado na gua estes rpteis, que, como pretendem ospoetas, vivem no fogo. Esta circunstncia infundira em Pitou, que eraesprito positivo, um profundo desprezo pelos poetas.

    Pitou, tendo-se tornado proprietrio de duas salamandras, tratou

    mais de procurar um camaleo; mas desta vez debalde fez as maiorespesquisas, nenhum resultado lhe coroou os trabalhos. Pitou terminou porconcluir destas tentativas infrutuosas que o camaleo no existia, ou, seexistia, era noutros pases.

    Tendo assentado nisto, no tratou mais de procurar camalees.Enquanto aos outros dois teros das detenes de Pitou, eram

    causados pelos chamados solecismos e malditos barbarismos, queinavam os temas de Pitou como o joio ina os campos de trigo.

    Quanto s quintas-feiras e domingos, dias de sueto, eram da mesmamaneira empregados em armar aos pssaros ou em furtar caa; adiferena estava em que, como Pitou ia crescendo, pois j tinha cinco pse quatro polegadas, com os seus dezesseis anos de idade, sobreveio umacircunstncia que o distraiu um tanto das suas ocupaes predilectas.

    No caminho de Bruyre-aux-Loups est situada a vila Pisseleux, amesma talvez que deu o nome bela Ana de Heilly, concubina deFrancisco I.

    Nessa vila erguia-se a herdade do tio Billot, e ao portal dessaherdade conservava-se, casualmente, quase todas as vezes que Pitou alipassava, uma rapariga de dezessete para dezoito anos, bela, esperta,jovial, que tinha por nome de baptismo Catarina, mas que era tratadaquase sempre por Billot, apelido do pai.

    Pitou comeou por cumprimentar Billot; depois, a pouco e pouco, foi-se animando e continuou cumprimentando e sorrindo; afinal, num belodia, depois de a ter cumprimentado, e depois de se ter sorrido, parou eabalanou-se, todo envergonhado, a soltar esta frase, que consideravacomo uma grande ousadia:

    - Bons dias, Sr. Catarina.Catarina era boa rapariga, e por isso recebeu Pitou como se fosse j

    um antigo conhecimento. E era efectivamente um conhecimento antigo,porque havia j dois ou trs anos que ela o via passar pela herdade, pelomenos uma vez por semana. A diferena estava em que Catarina viaPitou, mas este no via Catarina. Era porque, quando ngelo principiou a

    passar ali, Catarina tinha dezesseis anos e Pitou s catorze. J observamoso que aconteceu a Pitou logo que completou dezesseis anos.

    Portanto Catarina tinha podido ir apreciando os talentos de Pitou,porque Pitou lhe fazia participar deles, oferecendo-lhe os melhorespssaros, os coelhos mais gordos. Disto resultou que Catarina fez os seuscumprimentos a Pitou, e este, que era muito sensvel aos cumprimentos,que lhe acontecia raras vezes receber, deixava-se ir por gua abaixolevado pelos encantos da novidade, e em lugar de continuar, como faziaat ento, o seu caminho at Bruyre-aux-Loups, demorava-se a meiodele, e em vez de se ocupar durante o dia a apanhar faines e a armar aospssaros, perdia o tempo em volta da herdade do tio Billot, com a suaveesperana de ver Catarina.

    Disto resultou uma diminuio sensvel no produto das peles de

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    coelho, e uma falta de pintarroxos e tordos no oramento da tia Anglica.Queixou-se ela disto amargamente. Pitou respondeu-lhe que os coelhos setinham tornado ariscos, e os pssaros tinham dado pelo visco e bebiam jnos cncavos das folhas e dos troncos das rvores.

    No meio de tudo isto uma coisa consolava a tia Anglica da

    inteligncia intempestiva dos coelhos e da finura dos pssaros, que elaatribua ao progresso da filosofia, era que seu sobrinho obteria o benefcio,entraria no seminrio e ali passaria trs anos, saindo depois abade. Oraser ama de um abade era a eterna ambio da Sr. Anglica.

    E essa ambio no devia deixar de se realizar, porque ngelo Pitou,logo que fosse abade, tomaria imediatamente a tia por ama, sobretudodepois do que ela por ele fizera.

    A nica coisa que perturbava os dourados sonhos da pobre mulherfoi, assim que falou das suas esperanas ao abade Fortier, ter-lherespondido este, abanando a cabea:

    - Minha cara Sr. Pitou, para vir a ser abade, era necessrio que oseu sobrinho se entregasse menos histria natural, e mais ao De virisillustribus, ou s Selectae e profanis scrptoribus.

    - E que quer isso dizer? - perguntou a Sr. Anglica.- Que ele diz muitos barbarismos e infinitos solecismos - replicou o

    abade Fortier.A tia Anglica no percebeu a resposta, mas ficou muito pesarosa.

    IV

    Da influncia que podem ter na vida de um homem um barbarismo e sete

    solecismos

    Os pormenores de que nos temos ocupado at agora eramindispensveis ao leitor, qualquer que seja o grau de inteligncia que lhesuponhamos, para que pudesse perceber bem todo o horror da posioem que se achava Pitou, vendo-se expulso da escola.

    Com um brao pendente, e o outro segurando a caixa em equilbriosobre a cabea, retinindo-lhe ainda nos ouvidos as interjeies furiosas doabade Fortier, encaminhou-se para Pleux, com uma tal concentrao deesprito, que no era mais que o torpor levado ao mais alto grau.

    Enfim, uma idia lhe assomou mente, e trs palavras, que cifraram

    todo o seu pensamento, lhe escaparam dos lbios:- Jesus! E minha tia!E efectivamente, que diria a Sr. Anglica Pitou daquela aniquilao

    de todas as suas esperanas?Contudo, ngelo s conhecia os projectos da tia como os ces fiis e

    inteligentes conhecem as intenes do dono, isto , pelo exame dafisionomia. O instinto um guia precioso, que nunca nos engana; ao passoque o raciocnio pode ser falseado pela imaginao.

    O que originou as reflexes de ngelo Pitou, e o que lhe fez brotardos lbios a lamentosa exclamao que mencionmos, foi antever qualseria o desapontamento da tia, quando soubesse da fatal nova. Ora eleconhecia, por experincia, qual era o resultado de qualquer pesar da Sr.Anglica; desta vez, porm, havia a diferena de que o motivo da zanga

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    era de um poder incalculvel, e os resultados deviam corresponder-lhe.E a est sob que medonha impresso Pitou entrou em Pleux.

    Gastara perto de um quarto de hora no caminho que vai da porta principaldo abade Fortier entrada da vila, quando a distncia no chegaria atrezentos passos.

    Nisto o relgio da igreja deu uma hora.Percebeu ento que o seu dilogo supremo com o abade, e o vagarcom que caminhara, o haviam retardado sessenta minutos, e que porconseqncia, uma vez passados trinta, tinha decorrido o prazoperemptrio, depois do qual se no jantava mais em casa da tia Anglica.

    Como j dissemos, tal era o regmen salutar que a santa mulhertinha estabelecido ao mesmo tempo para as tristes detenes e para astravessuras do sobrinho; desse modo economizava ela uns sessentajantares custa do pobre Pitou.

    Mas desta vez o que mais inquietava o pobre estudante no era oparco jantar da tia; bem magro havia sido o almoo e no entanto Pitoutinha o corao to cheio que no dava pelo vazio do estmago.

    H um horrvel suplcio, conhecidssimo de todo o estudante, pormais relaxado que seja, que a sua estada ilegtima, depois de umaexpulso colegial, em qualquer esconderijo, por mais retirado e oculto queparea; sobretudo a gazeta definitiva e forada que obrigado a fazerenquanto os seus condiscpulos passam de papis e livros debaixo dobrao para o seu trabalho quotidiano. Ento o colgio, at esse momentoto odiado, comea a ser apetecido, e o estudante ocupa-severdadeiramente do importante trabalho dos temas e verses, de quenunca tratara e que se discutem no colgio na sua ausncia. Quantas

    relaes no h entre o estudante expulso e o excomungado pela suaimpiedade, que perdeu o direito a entrar na igreja, e arde em desejos deouvir missa?

    Acontecia isto mesmo ao pobre Pitou, porque medida que seaproximava da casa de sua tia, o viver nessa casa parecia-lhe horroroso; efoi ento a primeira vez, em toda a sua vida, que se lhe figurou ser aescola um paraso terrestre de que o abade Fortier, como anjoexterminador, acabava de o expulsar com a sua palmatria em lugar daespada coruscante.

    Todavia, apesar dele caminhar devagar, e de fazer grandes paradasde dez em dez passos, paradas que se tornavam mais longas proporo

    que se aproximava, e que no podia deixar de se aproximar da portadaquela casa temida por ele, Pitou transps finalmente o limiar, quase quearrastando-se e levando maquinalmente a mo ao barrete.

    - Ai! Tia Anglica, estou muito doente! exclamou ele para prevenirtodos os ralhos e argies, e talvez para ver se o lastimavam.

    - Est bom - disse a tia Anglica; - j sei qual o mal: cur-lo-eifacilmente desandando o ponteiro do relgio hora e meia.

    - Oh! No! - acudiu amargamente Pitou. No tenho vontade decomer.

    A tia Anglica ficou to assombrada como inquieta. Uma doenainquieta tanto uma boa me como uma madrasta; a me com receio doperigo que causa o mal, a madrasta com o medo que tem de que ele lheentre pelos haveres.

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    - Mas ento que tens? Anda, fala - disse a velha.A estas palavras, pronunciadas sem grande agrado, ngelo Pitou

    desfez-se em lgrimas: e cumpre confessar que as caretas que faziapassando das lamrias s lgrimas, eram das mais feias e desagradveisque se podiam ver.

    - Oh! Minha tia, aconteceu-me uma desgraa muito grande -respondeu ele.- Que foi?- O abade ps-me fora - exclamou por fim ngelo Pitou soltando

    estrepitosos soluos.- Ps-te fora? - replicou a Sr. Anglica, como se no percebesse

    bem.- Ps, sim, senhora.- E donde te ps ele fora?- Do colgio.E os soluos de Pitou redobraram.- Do colgio?- Sim, senhora.- E para sempre?- Sim, senhora.- Visto isso no haver exames, nem concursos, nem benefcio, nem

    seminrio?A estas palavras os soluos de Pitou converteram-se em roncos, e a

    Sr. Anglica encarou com ele como se quisesse ler no ntimo do coraodo sobrinho as causas da expulso.

    - Apostemos que tornaste a fazer alguma gazeta, ou que levaste o

    tempo a rondar a herdade do tio Billot? No tens vergonha, um futuroabade!ngelo abaixou a cabea.- Tu mentes! - bradou a velha, cuja clera aumentava proporo

    que se convencia da verdade de que o lance era grave; - tu mentes! Aindano domingo te vi na alameda dos Suspiros com a Billot.

    Desta vez era a Sr. Anglica que mentia; mas em todo o tempo asbeatas se tm julgado autorizadas a mentir em virtude deste axiomajesutico: permitida a mentira para se saber a verdade.

    - impossvel que me vissem na Alameda dos Suspiros - retorquiungelo; - impossvel, porque ns no passmos do lado do pomar.

    - Ah! Desgraado! Por isso se v que estavas com ela.- Mas, minha tia - replicou Pitou corado agora no se trata da

    menina Billot.- Sim, chama-lhe menina para ocultar o teu passatempo impuro!

    Mas deixa estar que eu advertirei o confessor daquela delambida.- Porm, minha tia, asseguro-lhe que a menina Billot no

    delambida.- Ah! Pois tu defende-la quando s tu que tens preciso de desculpa!

    Logo, vocs entendem-se um com o outro? Onde ir isto parar, meu Deus?Rapazes de dezesseis anos!...

    - A minha tia est enganada; o contrrio do que est dizendo.Tanto no me entendo com a Catarina, que ela nunca me d cavaco.

    - Ah! Vocs bem vem que eu bem os entendo. Olha a sem-

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    cerimnia com que lhe chamas a Catarina. E que quer isso dizer,hipcrita? Ela no te d cavaco, mentiroso... seno quando olhas para ela.

    - Ta, ta, ta! -disse para si Pitou, inopinadamente inspirado; - ta, ta,ta! E eu que no tinha pensado nisso!

    - Tu vs - disse a beata aproveitando-se da enganosa exclamao do

    sobrinho para o convencer de convivncia com a Billot - que percebo ascoisas? Mas deixa, que eu vou arranjar tudo. O abade Fortier o seuconfessor, vou pedir-lhe que te faa encarcerar, e que te ponha a po egua por quinze dias, e enquanto menina Catarina, se for necessrio,ter um convento para moderar a paixo que tem por ti. Dentro empouco, v-la-emos em Saint-Remy.

    A velha beata pronunciou as ltimas palavras com uma talautoridade e convico do seu poder, que fez estremecer Pitou.

    - Oh! Minha tia - disse-lhe pondo as mos olhe que se engana; juroque a menina Billot no concorreu em nada para a minha desgraa.

    - A impureza a me de todos os vcios disse sentenciosamente aSr. Anglica.

    - Mas, minha tia, torno a repetir que o Sr. abade no me expulsouporque eu fosse impuro; expulsou-me porque eu fazia muitos barbarismos,misturados com alguns solecismos, que me escapam tambm de quandoem quando, e que me tiram, segundo ele diz, toda a probabilidade dealcanar o benefcio do seminrio.

    - Toda a probabilidade, dizes tu? Visto isso, nunca alcanars obenefcio, no sers abade, nem eu serei tua ama?

    - Jesus! No, minha tia!- Ento que hs-de vir a ser? - perguntou a velha acesa em ira.

    - No sei - respondeu Pitou erguendo lamentavelmente os olhospara o cu; - serei o que a Providncia quiser.- Ah! A Providncia?... J percebo o que isso exclamou a tia

    Anglica. - Quem lhe falaria destas idias novas, e quem lhe terinculcado estes princpios de filosofia?

    - Est enganada, minha tia, porque no se pode entrar em filosofiaseno depois de ter dado a retrica, e eu nunca pude passar do 3. ano.

    - Muito bem, muito bem. No dessa filosofia que te falo; falo dafilosofia de Diderot, que comps a Religiosa.

    Nisto a Sr. Anglica persignou-se.- A Religiosa? - perguntou Pitou - que isso minha tia?

    - Tu j a leste, desgraado?- Juro-lhe que no, minha tia.- A est porque tu no queres nada com a igreja.- Engana-se, minha tia; a igreja que no quer nada comigo.- Este rapaz pior que uma serpente! No vem como ele replica?- No, minha tia; eu s respondo.- Est perdido decididamente! - exclamou a Sr. Pitou com os sinais

    do mais profundo abatimento, deixando-se cair na sua poltrona habitual.E com efeito, aquele est perdido, significava: Estou perdida!O perigo estava iminente. A tia Anglica tomou uma resoluo

    suprema; levantou-se da cadeira, como se uma mola a pusesse em p, ecorreu a casa do abade Fortier para lhe pedir explicaes, e sobretudopara tentar com ele um ltimo esforo.

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    Pitou seguiu-a com os olhos at porta; depois, assim que eladesapareceu, chegou tambm porta e viu-a caminhar com uma rapidez,que lhe no era habitual, para a rua Soissons. vista disto, Pitou no tevemais dvida das intenes da Sr. Anglica e convenceu-se de queefectivamente ela ia a casa do professor.

    Isto devia-lhe render pelo menos um quarto de hora detranqilidade. Pitou tratou pois de utilizar o tempo que a Providncia lhedeparava. Juntou os restos do jantar da tia para dar aos lagartos; apanhouduas ou trs moscas para as formigas e rs; depois, abrindosucessivamente a arca do po e o armrio, tratou de se alimentar tambma si, porque com a solido voltara-lhe o apetite.

    Depois de ter tomado todas estas disposies, foi espreitar porta,para no ser surpreendido pela chegada da sua segunda me.

    A Sr. Anglica intitulava-se segunda me de Pitou. No entanto eleespreitava uma bela rapariga que passou pelo fim do Pleux, seguindo aviela que vai dar da extremidade da rua Soissons rua de Lormet. Iamontada na garupa de um cavalo carregado com dois cestos vindimos,um cheio de frangos, outro de pombos. Era a menina Catarina, que,avistando Pitou porta da tia, parou.

    Pitou corou, segundo o seu costume; depois ficou de boca aberta,olhando, isto , admirando; porque a menina Billot era para ele a maisacabada expresso da beleza humana.

    A rapariga deitou um lance de olhos para a rua, cumprimentou Pitoucom uma pequena inclinao de cabea e continuou o seu caminho.

    Pitou correspondeu estremecendo de prazer.Esta pequena cena durou o tempo justamente necessrio para que o

    nosso bom estudante, todo embevecido naquela contemplao, e sempreolhando para o lugar onde tinha estado a menina Catarina, no desse porsua tia, que voltava de casa do abade Fortier e que lhe puxou pela mo,tremendo de raiva.

    ngelo, tornando a si do seu belo sonho pelo choque elctrico quelhe causava sempre o contacto da tia, arredou a vista da cara enraivecidada Sr. Anglica para a pousar sobre a prpria mo, e foi ento que se viucom terror possuidor de uma enorme fatia de po j encetada e sobre aqual apareciam super abundantemente aplicadas duas camadas demanteiga fresca e de queijo branco sobreposto.

    A velha soltou um grito de terror, e Pitou um gemido de medo.

    Anglica ergueu a mo descarnada: Pitou abaixou a cabea; Anglicalanou mo do pau da vassoura que estava prximo; Pitou deixou cair afatia do po e deitou a fugir.