alex calheiros. fora do jogo

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Recordando a Pier Paolo Passolini

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Fora do jogo

Pier Paolo Pasolini: morto h 35 anos, o intelectual deixou uma obra que vai alm do cinema

Publicado em 08 de novembro de 2010

TAGS: Alberto Moravia, Brecht, cinema, Medeia, Pier Paolo Pasolini, Rossellini, SalAlex CalheirosPier Paolo Pasolini, intelectual italiano morto no dia 2 de novembro de 1975, supostamente assassinado por um jovem da periferia romana que poderia muito bem ser um de seus personagens, mais conhecido entre ns por sua atividade cinematogrfica, por vezes por sua obra literria e, mais raramente, por suas ideias. Autor de filmes e romances ainda hoje muito lidos, sua obra, desde sempre mltipla, perpassa o cinema e a teoria do cinema, a literatura e a crtica literria, a poesia, o teatro e a ensastica, alcanando a crtica moral e poltica.

As atividades de Pasolini, no entanto, vo muito alm do mbito propriamente artstico, como facilmente poderamos supor, porque ele foi talvez um dos intelectuais mais lcidos e crticos de nosso tempo. Pasolini foi, acima de tudo, um homem inquieto e incmodo, podendo certamente ser alinhado queles que fizeram da crtica radical da cultura, para alm dos meios expressivos de que se utilizaram, ponto de partida e ponto de chegada de um projeto intelectual em sentido pleno.

No dia de seu enterro, o escritor Alberto Moravia, diante de amigos e fs comovidos e chocados pela brutalidade, mas tambm pela covardia de seu assassinato, disse enfaticamente que naquele dia haviam matado um poeta. Mas poetas, como todos sabem, nascem poucos, no mximo um ou dois durante todo um sculo, continuou. Diramos mais; diramos que um grande intelectual foi morto naquele dia. Intelectual inquieto e incmodo. Mas a inquietao, marca inconfundvel de sua vida pblica e privada, nunca foi movida por problemas abstratos, tampouco se colocava publicamente por mero narcisismo, transformando sua vida em um espetculo. Foi, desde sempre, pela realidade, ou melhor, pelo sentimento de inadequao que a realidade lhe impunha.

Pasolini, como ningum, transformou sua inadequao em argumento contra o fascismo que domina nossa cultura. Movido pelo que chamou de uma paixo desmesurada pela realidade, transformou-se, no por ingnua indignao, mas pelo mais forte sentimento patritico e humano, num crtico mordaz da cultura italiana que, segundo ele, estava passando por um verdadeiro processo de decadncia, uma trgica mutao.

Culpa a ser expiadaMas importante notar que o processo de decadncia intudo e apregoado por Pasolini no era apenas uma suspeita, j estava plenamente instalado, no somente na cultura italiana, exemplo talvez mais prximo e mais esdrxulo, mas em toda a cultura ocidental. Pasolini dizia que a vulgaridade da liberdade que nunca fora conquistada, mas concedida pela classe dominante, era o motivo pelo qual, tal como numa tragdia grega, carregvamos uma culpa que deveria ser de todo modo expiada. A decadncia que Pasolini viu em nossa cultura era to radical e violenta mais radical e violenta que aquela, por exemplo, efetuada pelo fascismo e pelo nazismo , que ele acreditava talvez j ser muito tarde para que algo ainda pudesse ser feito, para que pudssemos ansiar por algum tipo de salvao. A decadncia de nosso tempo mais absoluta, diria Pasolini, porque ela no mais imposta, mas alegremente aceita por cada um de ns.

O esquema pelo qual Pasolini explica a realidade claramente teolgico. Os homens, iludidos por aquele que se pe no lugar de Deus, o dinheiro, vivem e no percebem, como que encantados, aquele que se apossou no somente de seus corpos, mas tambm de suas almas. Pasolini agitava-se, ainda que no deserto, contra a nova idolatria que se instaurava. Coragem era a virtude desse italiano que, por amar o seu tempo, tornou-se justamente inimigo dele e, como um mrtir, foi morto por tudo aquilo que disse e que ainda poderia dizer. A linguagem tornou-se ento a mais importante questo de sua trajetria. A impossibilidade de se comunicar com seu tempo, apesar de toda sua lucidez, fez com que ele encontrasse outra forma de estabelecer relao com o mundo. Pasolini mergulhou ento numa dimenso mtica, religiosa, sacra, para poder escapar desse monstro que tudo quer possuir. A paixo desmesurada pela realidade foi sua religio. Tudo sagrado, tudo sagrado, tudo sagrado e a natureza no natural.

Assim, j de incio, ouvimos na voz do Centauro, no filme Medeia, o problema que de algum modo Pasolini desenvolveria em toda a sua obra, especialmente aquela da maturidade: a poca trgica em que vivemos. Medeia, assim como Sal, pontos altos de sua obra, foram pessimamente recebidos na poca de sua exibio. A crtica mais engajada disse do primeiro que era arcasta, evasivo e espetacular; do segundo, como se pode imaginar, disse ser perverso. Mas, para alm do fato de Pasolini ter sido sempre mal compreendido, a crtica naquele momento no levou em conta o que ele sempre deixou muito claro e que explicita justamente a lucidez de seu projeto, contra toda evaso e contra toda perverso. Tanto a Grcia quanto a Repblica de Sal, lugares nos quais o autor ambienta seus filmes, no servem histria por um desejo de evaso do tempo presente, como quis a crtica, mas apresentam uma tentativa de representao das questes mais candentes de seu tempo. Representar o tempo para melhor apresent-lo. Num, o conflito entre dois modelos culturais, um burgus e racional, encarnado por Jaso, e outro antiburgus e irracional, encarnado por Medeia. Noutro, a radicalizao desse processo em que no h mais oposies, ao representar um mundo no qual as foras, inclusive toda forma de resistncia, j foram subjugadas.

Descrena na razo,na gramtica e na histriaSo essas as premissas da explicao que Pasolini d ao momento presente italiano. Num e noutro ficou pra trs o que restava ainda de uma vida sadia, e assistimos ao preldio da tragdia que se tornou a vida. O itinerrio de Pasolini, desde sua obra potica em dialeto friulano, um itinerrio de descrena na razo, na gramtica e na histria, apostando no irracional, pr-gramatical e pr-histrico. um adensamento da crtica cultura ocidental, apresentando um contnuo afastamento da linguagem e uma gradativa aproximao da sacralidade da comunicao arcaica. Curioso, por causa de sua origem literria, o cinema de Pasolini absolutamente antiliteral, no verbal, notadamente em Medeia, uma das mais belas vozes dos anos 1950, quase muda, de uma mudez em tudo eloquente. Em Sal, mais radical, toda linguagem normativa, serve apenas para antecipar aquilo a que os prisioneiros devem se submeter.

Sabemos que Pasolini se encantou pelo cinema justamente por seu carter pr-gramatical, por sua capacidade de produzir uma comunicao primitiva, violenta, brbara. As formulaes mais consistentes de Pasolini acerca do especfico cinematogrfico encontram-se num livro de ensaios tericos, Empirismo Hertico. Escrito na mesma poca em que Christian Metz iniciava suas pesquisas tericas em semiologia do cinema, dizendo que o cinema seria uma linguagem sem lngua, Pasolini ir mais adiante, postulando (e provocando um debate acirrado) que a lngua do cinema, ou seja, o cdigo utilizado pelo cinema para comunicar-se, era a prpria realidade. A proposta de Pasolini era, portanto, uma radicalizao da utopia neorrealista de narrao da realidade por um processo basicamente privado de mediao. No cinema, para dizer de uma vez, o espectador decodifica as imagens flmicas com os mesmos parmetros com os quais decodifica a realidade.

Barbarizar pensar contra a racionalidade burguesaPasolini, em sua obra e em sua vida, marcado por esse desejo primitivo, alucinado, violento e pragmtico pela realidade. E nesse amor tornado encontro com a realidade que ele descobre a alienao do mundo. A realidade, ao contrrio do que prega nossa cultura racional, sacra, misteriosa e ambgua; de modo algum natural. A alienao comea justamente quando se comea a ver a realidade como algo natural. O cinema, de certo modo, se desapega da tentativa de mediar abstratamente a realidade, reintroduz o homem numa dimenso sacra, misteriosa e brbara do mundo. Assim, para falar brevemente, Pasolini no um decadente. O barbarismo pasoliniano uma atitude genuinamente filosfica. Barbarizar pensar contra a racionalidade da sociedade burguesa. O cinema uma arma no em favor da cultura, mas contra ela.

Pode soar estranha aos nossos ouvidos a concluso tirada por esse grande intelectual: temos pouco a fazer, a no ser nos revoltar, e isso tudo. isso que intumos, afinal, quando acompanhamos o desespero de Medeia, que se mata e mata os prprios filhos por sentir na pele sua incompatibilidade com o mundo estabelecido; ou ainda quando vemos o soldadinho fascista de Sal, que, ao tentar resistir, amando justamente uma vtima como ele, uma garota negra, surpreendido pelos superiores e levanta o brao esquerdo, mesmo sabendo que vai morrer.

Mas isso ns apenas podemos compreender se antes entendermos que, distante do projeto revolucionrio daquele que foi o pai ou humilde irmo da Itlia (como diz no poema Cinzas de Gramsci), restou-lhe somente a revolta, como um heri trgico justamente, que mesmo sabendo o destino reservado, demonstra sua altivez na luta contra o que lhe imposto. Por isso, mesmo descrente da adeso que poderiam surtir suas palavras, no deixava de gritar em praa pblica.

Esse Cristo danado, hertico e banido, quase religioso em sua irracionalidade, teria mesmo de morrer. A vida e a morte de Pasolini foram insistentemente marcadas pelo compromisso incondicional com uma verdade que ningum queria escutar. O compromisso de Pasolini, mortas por sufocamento as esperanas revolucionrias, passou a ser esse amor sem crenas, desesperado e trgico, pela realidade.

O tempo de Brecht e Rossellini, quando ainda era possvel aprender e ensinar, acabou, dizia o Corvo em Gavies e Passarinhos, mas de algum modo Pasolini cumpriu seu papel, porque seu desespero, proftico em seu tempo, encontra hoje na sociedade de consumo a mais justa adequao. Ou no verdade que nossas vidas esto completamente subjugadas pelo mais poderoso dos poderes e seus ritos de morte? Ou no verdade que nossa vida no mais vida? Hoje, por isso mesmo, mais do que nunca, talvez seja o momento de voltar ao seu pensamento, no por mera erudio, atitude que certamente pareceria detestvel aos olhos do poeta das cinzas (j que se trataria de uma atitude tipicamente burguesa; filisteia, para falar com sotaque nietzschiano), mas para pelo menos compreender, qui melhor, o mal que nos aflige.

Ah! Brbaros, meus amigosNenhum homem de igreja jamais destruiu uma igrejaA luta foi sempre entre a velha e a nova ortodoxia isso que me desespera e me deixa fora do jogo.

Alex Calheiros professor de filosofia na UnB