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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Alessandra Garrido Sotero da Silva A Literatura infanto-juvenil engajada de Georgina Martins: a busca de novos valores diante da indiferença pós-moderna à exclusão social brasileira. Rio de Janeiro 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Alessandra Garrido Sotero da Silva

A Literatura infanto-juvenil engajada de Georgina Martins: a busca de novos

valores diante da indiferença pós-moderna à exclusão social brasileira.

Rio de Janeiro

2008

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A Literatura infanto-juvenil engajada de Georgina Martins: a busca de novos

valores diante da indiferença pós-moderna à exclusão social brasileira.

Alessandra Garrido Sotero da Silva

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária)

Orientador: Professora Doutora Helena Parente CunhaCo-orientadora: Professora Doutora Angélica Soares

UFRJ/ Faculdade de Letras1º semestre de 2008

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A Literatura infanto-juvenil engajada de Georgina Martins: a busca de novos valores diante da indiferença pós-moderna à exclusão social brasileira.

Alessandra Garrido Sotero da Silva

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária)

Banca Examinadora

Professora Doutora Helena Parente Cunha (Orientadora)/ UFRJ

Professora Doutora Angélica Maria Santos Soares (Co-orientadora)/ UFRJ

Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Géns/ UFRJ

Professora Doutora Maria Lizete dos Santos/ UFRJ

Professora Doutora Teresa Cristina Meireles/ UFRJ

Professora Doutora Sônia Cristina Reis/ UFRJ

___________________________________________________________________Professor Doutor Manuel Antônio de Castro (suplente)/ UFRJ

___________________________________________________________________Professora Doutora Elódia Xavier (suplente)/ UFRJ

Defendida a Tese em

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Aos excluídos socialmente, partes da criação divina,

possuidores por isso de sua centelha, esquecidos e

marginalizados em refúgios humanos.

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A Deus, ao mestre Jesus, aos amigos espirituais, aos

meus pais que se dedicaram com fervor à minha

formação acadêmica, ao meu grande e eterno amor

Pedro Rodrigo, às minhas brilhantes e sensíveis

orientadoras Helena Parente Cunha e Angélica Soares,

e especialmente aos meus filhos, de quem roubei

preciosas horas de convívio com a mãe, para

desenvolver esta pesquisa.

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Estes são, realmente, livros literários: a prova é que sendo de

criança são também de adultos. Acho que é este o teste

definitivo sobre o valor dos livros infantis, porque, na

verdade, o subsolo da arte é um só. As histórias que apelam

para a nossa imaginação agem sobre nós como as que

encantam as crianças de tal forma que se nem todo livro de

adulto serve para o menino, todo bom livro de criança serve

para o adulto. (CÂNDIDO, 1987: 329)

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SINOPSE

Engajamento na Literatuta Infanto-juvenil de Georgina

Martins: No olho da rua: historinhas quase tristes (2002) e

Uma Maré de desejos (2005). Busca de valores

humanitários frente à sociedade capitalista indiferente pós-

moderna excludente e marginalizante. Literatura e a visão

ecológica: Literatura enquanto energia inesgotável,

apontamentos de possibilidades de saídas dos problemas

pós-modernos na arte literária, necessidade da arte na vida

humana. Histórico do excluído socialmente na Literatura

infanto-juvenil brasileira. Propostas ecológicas

humanitárias e resgate das subjetividades dos meninos de

rua e moradores de comunidades desfavorecidas na

ficcionalidade de Georgina Martins.

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SILVA, Alessandra Garrido Sotero da. A Literatura infanto-juvenil engajada de Georgina Martins:

a busca de novos valores diante da indiferença pós-moderna à exclusão social brasileira. Rio de

Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2008.

Esta tese discute os problemas advindos com a Pós-modernidade e a consolidação do

Capitalismo no mundo Ocidental e estuda o fazer literário em uma proposta ecológica enquanto

fonte inesgotável de energia planetária, conseqüentemente como o espaço de conscientização de

saídas humanitárias possíveis, nestes tempos de relações líquidas (BAUMAN). As obras literárias

estudadas, de cunho infanto-juvenil são: No olho da rua: historinhas quase tristes (2002) e Uma

Maré de desejos (2005), de Georgina Martins as quais, na nossa leitura, configuram a proposta

mencionada. A relevância dessas obras citadas se dá, sobretudo, como energia (WILLIAN

RUECKERT) formadora de mentalidades críticas no mundo pós-moderno, em que se percebe o

silenciamento das massas, a exclusão social marginalizante, a indiferença ao outro, a alienação e a

fragmentação do sujeito frente à manipulação midiática. Evidencia-se, nestes textos, o resgate das

subjetividades da população marginalizada brasileira frente à massificação das mentalidades.

Traçamos um breve histórico do foco exclusão social em algumas obras literárias infanto-juvenis

editadas no Brasil e constatamos que as obras referidas de Georgina Martins não inauguram, mas

contribuem para um novo gênero literário infanto-juvenil: engajado, sensível, belo e reflexivo. No

olho da rua: historinhas quase tristes (2002) e Uma Maré de desejos (2005) educam sem dizer

que estão educando, tornam o jovem ou a criança um ser mais sensível e mais receptivo ao bem

sem se rotular religioso. Proporcionam a quem lê a fruição estética através da simplicidade e da

sensibilidade com que desenvolvem suas causas, expõem a defesa do oprimido sem se tornarem

panfletários. São obras capazes de suscitar no jovem mais alienado e indiferente a causa do outro,

desmistificando a imagem de medo e terror institucionalizada pela mídia quando se trata de

menores abandonados e moradores de favelas. Enfim, busca-se evidenciar, através das obras

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citadas, o poder utópico de um texto literário, que tratando-se de necessidade vital do ser humano,

pode além do prazer estético, portar uma busca de valores mais igualitários, mais humanos,

resgatando a proposta ecológica, em uma sociedade em que o capitalismo dita modelos de

comportamento e a essência do ser humano é esmagada pelo poder do capital.

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SILVA, Alessandra Garrido Sotero da. A Literatura infanto-juvenil engajada de Georgina Martins:

a busca de novos valores diante da indiferença pós-moderna à exclusão social brasileira. Rio de

Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2008.

Questa tesi affronta i problemi sopraggiunti con la ‘postmodernità’ e con la consolidazione

del Capitalismo nel mondo occidentale, studiando così il fare letterario in base a una proposta

ecologica intesa come fonte inesauribile di energia planetaria, e di conseguenza lo spazio di

scopi umanitari possibili, in questi tempi di relazioni liquide (BAUMAN). La scrittrice e le opere

letterarie studiate in quesa tesi, dedicate a piccoli lettori, si intitolano: No olho da rua:

historinhas quase tristes (2002) e Uma maré de desejos (2005), di Georgina Martins, le quali

attraverso la nostra lettura consolidano la proposta citata prima. L’ importanza di studiare queste

opere si mostra nel fatto che esse presentano una data energia (WILLIAN RUECKERT) di

formazione del modo di vedere il mondo postmoderno, in cui si percepisce una serie di elementi

come il silenzio della collettività, l’esclusione sociale degli emarginati, l’indifferenza verso

l’altro, l’alienazione e la frammentazione del soggetto davanti alla manipolazione midiatica. Si

intende di studiare tramite i testi della scrittrice brasiliana Georina Martins il riscatto delle

soggettività da parte della popolazione brasiliana emarginata davanti alla massificazione del

modo di ragionamento capitalistico. Abbiamo abbozzato un breve nocciolo dell’esclusione

sociale in alcune opere letterarie pubblicate in Brasile per i ragazzi e abbiamo partito dall’idea

che le opere studiate della scrittrice Georgina Martins non prendono soltanto una mossa verso i

piccoli emarginati, ma contribuiscono ad un nuovo genere letterario infantile e impegnato, oltre

ad essere sensibile, bello e riflessivo: No olho da rua: historinhas quase tristes (2002) e Uma

Maré de desejos (2005) educano senza manifestare che stanno educando, fanno vedere ai suoi

lettori l’ idea di un essere più sensibile e più ricettivo al bene senza lo stereotipo religioso. Questi

libri proporzionano così una lettura gradevole, semplice, sensibile oltre a far conoscere un

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mondo di difficoltà dei piccoli, presentano un racconto di una diffesa dell’oppresso senza

diventare libelli. Sono opere in grado di suscitare nei ragazzini più alienati e indifferenti verso la

causa dell’altro qualche mossa, svelandogli un altro aspetto diverso dall’immagine della paura e

del terrore istituzionalizzata dai mass media brasiliani quando si tratta di monelli e abitanti di

comunità povere. Alla fine, il lavoro propone di mettere in evidenza, attraverso le opere

sopracitate, il potere utopico di un testo letterario, il quale discute le necessità vitali dell’essere

umano, mostrando che aldilà il piacere estetico il testo possa portare ad una ricerca di valori

maggiormente ugualitari e umani, ricuperando la proposta ecologica verso una società libera dal

capitalismo e dai suoi problemi derivanti che modellano comportamenti, rivelando l’essenza

dell’essere umano che viene oppresso dal potere economico.

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SILVA, Alessandra Garrido Sotero da. A Literatura infanto-juvenil engajada de Georgina Martins:

a busca de novos valores diante da indiferença pós-moderna à exclusão social brasileira. Rio de

Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2008.

This thesis discusses the problems generated with the anival the postmodernity and the

Capitalism cansolidation in the wertern world. It studies the leterary perspective on an

ecological proposal while an ineschaustible source of planetary energy , therefore scen as the

space of possible humanitarian solutions. The researched leterary works, for children´s programs,

are namily: No olho da rua: historinhas quase tristes (2002) and Uma Maré de desejos (2005),

by Georgina Martins, those which, on our perspective, consolidate the mentoned proposal. The

relevance of the works mentioned, avove all, higerlights the energy (WILLIAN RUECKERT)

capable of generating critical thoughts in the post-modern world, in wich we notice a mass

silend, the marginalizing social exclusion, indifference, the alienation and the subject

fragmentation up against the mediatic manipulation. In these texts, the return of the subjectivity

of the Brazilian marginalized population up against thoughts massification may by noticed. We

drew up a bief history of the social exclusion focused on a number of leterary children´s works

published in Brazil. Our view presuposes that the works by Georgina Martins do not inaugurate,

but consolidate a new leterary genre: commited, sensitibe, beautiful and reflexive. No olho da

rua: historinhas quase tristes (2002) e Uma Maré de desejos (2005) educate undeliberately, turn

the young or chlidren a more sensitive human being, mopre receptive to good, without being

classified as religious. They provide to the reader, the aesthetic possession through simplicity

and sensitivity with wich they develop their plots, expose a defence for the opressed without

becoming simple pansphleters. They are works capable of inspiring the most alienated and

indifferent youngster, demistifyng the image of fear and terror institutionalized by the media

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when it comes to abandoned children and slumers. Finally, this works tries to highlight, thourgh

the mentioned works of art, the utopic power of a leterary text, which dealing with vital needs of

human beings,. May avise a search for equalitarian an more humanistic values, briging the

ecological proposal back, beyond aesthetic pleasure, in a society where the capitalism dictates

behavioral patterns and where human brings essence is crushed by the capital power.

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SUMÁRIO:

Introdução p.15

1 Os desafios da Pós- Modernidade p.24

1.1 A mudança de paradigma e a crise identitária p.25

1.2 Caos no capitalismo atual: violência, exclusão, silenciamento das massas e

Indiferença p.32

1.3 Utopia e esperança p.44

2 Literatura: uma energia inesgotável p.54

2.1 Literatura e Ecologia p.54

2.2 A essência vital da Literatura p.61

2.3 Literatura e seu papel redentor – o engajamento p.65

3 Era uma vez... o excluído social p.71

3.1 Histórico do excluído social na Literatura Infanto-Juvenil p.71

3.2 Georgina Martins e sua arte engajada p.89

4 Contos ecológicos em No olho da rua: historinhas quase tristes p.100

4.1 Título, epígrafe e a apresentação da narradora-personagem p.104

4.2 Os meninos e a pizza p.109

4.3 O menino e o livro p.120

4.4 O menino e o sinal p.127

4.5 A menina e as balas p.134

4.6 O menino e o fim p.140

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5 Emergem as subjetividades dos alagados: Uma Maré de desejos p.152

5.1 O que é Maré? As minhas percepções... p. 153

5.2 Desejos silenciados e legitimados na obra p. 158

Considerações finais p. 186

Referências p.190

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Introdução

Na sala de aula de uma escola da comunidade Nova Holanda, Maré, em que ocorria uma

oficina da palavra, projeto voltado para o desenvolvimento do gosto pela escrita e leitura,

dirigido pelo Programa de criança Petrobrás, a professora propõe uma espécie de interação

inicial:

- O que vocês pretendem fazer quando crescerem?

Dentre as semelhantes respostas obtidas, como motorista de Kombe, professor, modelo, ator,

pastor e pedreiro (evidenciando o restrito campo de conhecimento daquelas crianças), surge uma

voz que parece mostrar o sentimento de grande parte dos meninos, chocando os adultos presentes

e desconcertando o educador responsável pela oficina:

“- Tia, quando eu crescer, quero ser bandido como meu pai.”

Em outra comunidade, conversando com um adolescente excluído das práticas escolares,

com mãe alcoólatra, pai ausente e escola da qual havia saído descompromissada; ao sugerir o

ingresso desse rapaz no programa do governo federal de inclusão profissional de jovens

desfavorecidos socialmente (PRÓ-JOVEM), como resposta, obtêm-se a seguinte:

“- Fui um dia lá e a professora escreve e fala muito rápido palavras complicadas. Eu não entendo

nada, fico perdidão. (para este curso é necessário ao menos estar cursando a 4a série)

Estas duas situações, relatadas no início de uma tese, não estão aqui por engano. Na verdade,

estes relatos são dois momentos de extrema reflexão pelos quais passei e me motivaram, como

estudante de Literatura, a repensá-la dentro desse contexto sócio-econômico-cultural em que

vivemos. Como contribuir enquanto estudantes das Letras brasileiras e estrangeiras para a

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mudança da sociedade brasileira? O que nós estamos fazendo em uma Academia, que não nos

preocupamos com questões centrais, como o acesso dessas crianças e jovens ao acervo cultural

de que dispomos? Será que não devemos mais nos sensibilizar e buscarmos saídas para uma

exclusão social que já começa do berço, no nosso país?

Naturalmente, estes relatos dizem respeito a problemas que não necessariamente nós

resolveremos, como a progressão automática nas escolas públicas até o último ano do primeiro

segmento do ensino fundamental, a criminalidade e o descaso das autoridades perante tais

problemas. Entretanto, destaco que nosso papel, enquanto educadores, formadores de futuros

educadores, críticos literários e pensadores, não é esperar somente a ação do governo e criticá-lo.

Somos formadores de opinião, portanto, dispomos de precioso arsenal para combater a exclusão

social e a indiferença pós-moderna, que ocasionam a banalização de situações como as narradas

acima.

Ressalto que comecei esta tese com esses fatos reais para evidenciar dois momentos que

momentaneamente me permitiram sair do anestesiamento em que vivemos, nessa sociedade

indiferente aos problemas alheios e me inspiraram substancialmente na escrita desta tese.

A tese em questão apresentará como tema uma leitura das obras No olho da rua: historinhas

quase tristes (2002) e Uma Maré de desejos (2005) de Georgina Martins, a partir da percepção

da indiferença da sociedade brasileira pós-moderna, frente aos problemas de exclusão social.

Esta pesquisa surgiu tardiamente de maneira oficial, pois escapa bastante da proposta com a

qual cheguei ao concurso de seleção para ingresso no doutorado. Até então, trabalharia a obra As

aventuras de Pinóquio (1881), através de um olhar psicanalítico, voltado para o processo

civilizatório que sofre a marionete no decorrer de sua trajetória na narrativa. Na verdade, ao

ingressar na Área de Ciência da Literatura, esperava ter um espaço maior para aprofundar

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questões não suficientemente discutidas no mestrado, por escassez de tempo e por serem em

alguns pontos divergentes da proposta que efetivamente discuti na minha dissertação. Este

espaço me foi concedido durante o curso das disciplinas de Doutorado e pude amadurecer

academicamente, culturalmente e intelectualmente a ponto de conhecer vertentes de estudo ainda

não cogitadas. Tais vertentes suscitaram em mim o desejo de trabalhar com outro tema, cuja

abordagem já faz algum tempo condiz com minha maneira específica de ler a sociedade. Uma

dessas linhas de estudo é a oferecida pela professora Doutora Helena Parente Cunha,

“Imaginários culturais e Literatura”, que discute, além de outras questões, a Pós-Modernidade.

Após o contato com essa teoria, cursando duas de suas disciplinas, me tornei sua orientanda e

começamos a repensar como minha proposta de tese se enquadraria na linha de estudo que

pretendia estudar a partir de então.

Outras disciplinas cursadas auxiliaram na decisão de mudança de rumo de proposta, como

Literatura e Ecologia, ministrada pela professora Angélica Soares, a qual me permitiu reter

outras visões possíveis acerca de uma obra literária.

Embora a mudança de rumo seja evidente, se confrontada com o pré-projeto para ingresso no

curso de doutoramento, persistiremos trabalhando com obras literárias consideradas infanto-

juvenis, por considerarmos que seja fundamental cada vez mais estudarmos com cautela as obras

literárias que, geralmente, iniciam as crianças e jovens no mundo da Literatura.

A Literatura infanto-juvenil tem, inclusive, um espaço cada vez maior nas livrarias, pela sua

alta vendagem. Entretanto, é pouco estudada academicamente nas universidades, principalmente,

nas ditas tradicionais. Na nossa universidade, por exemplo, o aluno de graduação não tem um

contato obrigatório com obras literárias destinadas ao público infanto-juvenil, salvo em casos em

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que professores comprometidos com este tipo de pesquisa busquem levar este aprofundamento

teórico para sala de aula.

Como aluna desta universidade, graduada, pós-graduada, mestra, bolsista, monitora e futura

doutora por esta renomada instituição, pela qual tenho muita estima e reconhecimento, posso

afirmar o fato supramencionado. Não sei se este é um problema, mas sem dúvida é algo digno de

reflexão. Em uma faculdade formadora de professores e pesquisadores, por que não há uma

reflexão maior acerca deste tema, antes de estudos de pós-graduação?

Além deste motivo, um outro fato gerador para que continuássemos investigando obras

infanto-juvenis e deleitando-nos com esta prática é a nossa crença de que esta forma literária

possibilita a fruição literária, o gosto pelo ato de ler.

Preocupados também com os problemas advindos com a Revolução Industrial e com a

institucionalização do capitalismo, acirrados com a revolução da Informática e do

hiperconsumismo, trabalharemos com questões referentes às mudanças ocorridas no período que

podemos denominar a Pós-Modernidade. Almejamos situar a Literatura infanto-juvenil do Brasil

frente a estas questões, de modo a colaborar para uma percepção específica e mais cuidadosa dos

trabalhos que vêm sendo desenvolvidos por alguns escritores contemporâneos no nosso país.

Ainda que fosse o meu desejo esgotar as publicações infanto-juvenis, pelo menos pós anos

90, vale ressaltar que se trata de tarefa impossível, visto que a literatura infanto-juvenil se tornou

um mercado rentável e conseqüentemente há incontáveis publicações, que não cessam de surgir a

cada mês. Portanto, resolvi “pisar no chão”do mundo que conheço de perto e do qual tenho

minhas origens: a literatura que trata da exclusão social.

Nasci e moro em Vaz Lobo, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, rodeado de comunidades

carentes. Poucas pessoas conseguiam obter um diploma universitário nesta região. Não sei se há

outros doutorandos no meu bairro (eu não conheço), mas pode ser que haja alguns que

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conseguiram vencer a indiferença e a massificação a que a mídia nos expõe, idiotizando grande

parte das pessoas dos bairros mais pobres que não tiveram acesso a escolas de qualidade.

Basicamente, nunca estudei em escola particular: fiz o ensino fundamental, médio e todo ensino

acadêmico na rede pública de ensino. Posso garantir que me sinto honrada por estar escrevendo

hoje esta tese, pois represento um número pequeno na estatística dos “pobres”, filhos de pais sem

cultura que chegaram à universidade e puderam se dedicar à pesquisa.

Enfim, não sei se desconsiderei regras acadêmicas, mas considero imprescindível, em uma

sociedade desigual e excludente como a brasileira, relatar o meu histórico, que justifica também

o motivo pelo qual escrevi uma tese com este tipo de abordagem.

Trabalhei em um projeto intitulado “Programa de Criança Petrobrás”, que atende crianças e

adolescentes moradores da favela da Maré (uma das maiores do Rio de Janeiro e com alto nível

de pobreza) e nesta experiência, enquanto educadora social, pude enraizar a minha crença sobre a

infância esquecida, que povoa o nosso país. Enquanto fazia minhas oficinas nas comunidades da

Nova Holanda, Baixa do Sapateiro e Morro do Timbau, contrapunha a maneira de ser e de agir

no mundo daquela gente e das pessoas com as quais convivia no meu bairro. Há pobreza em Vaz

Lobo, mas nunca vira a miséria absoluta (econômica, lingüística, cultural) como presenciei

naquelas regiões da Maré. É inacreditável ver que no Rio de Janeiro, a poucos metros de uma

universidade como a UFRJ, possa haver tanta precariedade de condições básicas de um ser

humano e os acadêmicos desconhecerem ou ignorarem. Será que o nosso papel é ficarmos

estagnados ou somente no nível discursivo, enquanto universidade, potência de divulgação de

saberes? Não sei responder a esta pergunta, mas posso garantir que, enquanto fazia parte do

corpo discente de mestrado em letras neolatinas, refletia muito sobre as diferenças, desta vez,

ainda maiores, entre acadêmicos e “favelados”. Perguntava-me o que fazíamos ali discutindo

sobre Literatura deste e de outros países, se muitos brasileiros neste exato momento não sabiam

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sequer que existia algo chamado universidade, ou mesmo Literatura. É altamente complexa esta

discussão e não pretendo responder a estas questões, porém, considerei importante resgatar este

fio de pensamento original gerador da discussão nesta pesquisa.

Tive o primeiro contato com a obra de Georgina Martins através do programa “Sem

censura”, em que a autora divulgava O menino que brincava de ser, livro que gerou polêmica na

mídia, por insinuar a possibilidade fantástica da troca de sexo de uma criança. Até este momento,

nada de tão contundente me chamara atenção no trabalho da escritora, até conhecê-la

pessoalmente no “Programa de criança Petrobrás” e descobrir a sua mais recente obra na época:

No olho da rua: historinhas quase tristes. A obra narra, a partir da visão subjetiva e particular de

uma professora, episódios com meninos de rua. Recebeu 1º Lugar no Prêmio Carioquinha de

Literatura Infantil, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, em Setembro de 2000

e Menção Honrosa no Prêmio Adolfo Aizen de Literatura Infantil da União Brasileira de

Escritores. É um dos livros da escritora que fará parte desta pesquisa. Outro livro que comporá o

nosso corpus é Uma Maré de desejos, narrativa que se passa na Maré, fruto de inúmeras

experiências vivenciadas por nós no projeto. Este livro também recebeu o Prêmio Adolfo Aizen

da União Brasileira de Escritores de melhor livro Infantil de 2006.

Atraída pela temática da exclusão nos livros mencionados, pelos motivos expostos acima,

farei uma leitura sobre a indiferença pós-moderna frente aos problemas que assolam o nosso

país, resgatando a possibilidade de uma literatura engajada infanto-juvenil.

Acreditamos ser a Literatura uma fonte inesgotável de energia, portanto, geradora de novos

padrões de pensamento e, por que não dizer, também de “mudança”? A Literatura de Georgina

explorará a dor, o pesar, a sensibilidade do leitor através do impacto, provavelmente despertando

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muitos leitores, adultos e crianças, deste anestesiamento que o consumismo e os apelos da mídia

provocam na população.

Os temas propostos como material de reflexão nos livros de Georgina foram discutidos, antes

de chegarmos a um consenso, nos encontros freqüentes com a orientadora desta tese, Helena

Parente Cunha. Mesmo quando ainda fazia parte do corpus a obra de Collodi, as nossas

discussões giravam em torno das questões mais diretamente ligadas à Pós-Modernidade.

Vale ressaltar que não abandonaremos o livro que foi fonte de grande parte das minhas

investigações: As aventuras de Pinóquio (1881), mas pretendemos, neste momento, refletir sobre

questões mais próximas da nossa realidade, por sugestão da orientadora desta pesquisa. As obras

escolhidas de Georgina Martins parecem ser muito ilustrativas acerca do que queremos discutir,

problemas advindos com a Pós-Modernidade. A pesquisa feita durante um curso de doutorado é

algo muito sério, portanto, concluímos ser fundamental escrevermos sobre assuntos que se

enquadrem nas correntes críticas em que neste momento de nossas vidas acreditamos.

Partiremos do pressuposto de que as obras referidas de Georgina Martins não inauguram,

mas consolidam um novo gênero literário infanto-juvenil, sensível, belo e reflexivo. No olho da

rua: historinhas quase tristes (2002) e Uma Maré de desejos (2005) educam sem dizer que estão

educando, tornam o jovem ou a criança um ser mais sensível e mais receptivo ao bem sem se

rotular religioso. Proporcionam a quem lê a fruição estética através da simplicidade e da

sensibilidade com que desenvolvem suas causas, expõem a defesa do oprimido sem se tornarem

panfletários. São obras capazes de suscitar no jovem mais alienado e indiferente a causa do

outro, desmistificando a imagem de medo e terror institucionalizada pela mídia, quando se trata

de menores abandonados e moradores de favelas.

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A obra No olho da rua: historinhas quase tristes (2002) evoca a subjetividade de meninos de

rua através de um sensível olhar de uma narradora. A narradora, neste caso, é a fonte de reflexão

e de denúncia ante a insensibilidade com que as pessoas de modo geral se comportam na

sociedade capitalista pós-moderna. Pode ainda ser considerada um foco de resistência à

indiferença que anestesia grande parte da sociedade como um todo, não permitindo perceber o

excluído, na onda do consumismo em voga na pós-modernidade.

Na obra Uma Maré de desejos (2005), há um resgate de subjetividades, em que as

personagens principais, dentro do limite de uma obra deste gênero, são aprofundadas. Através de

muitos diálogos, que muitas vezes retratam a interioridade de cada um, nota-se a representação e

a legitimação dos desejos de crianças pertencentes à classe excluída. Percebe-se ainda a escola

como instituição que tolhe e forma um indivíduo alienado e ignora sua subjetividade,

massificando-o. Tendo em vista a aceleração das mudanças provocadas pelo consumismo

desenfreado e a manipulação da mídia, sua forte ferramenta, haverá ainda espaço para “sermos”

e permitir que as pessoas “sejam”, em vez de “termos” e exigir que o outro “tenha”? Esta

representa um resgate de subjetividades esquecidas e desprivilegiadas socialmente.

Para chegarmos aos objetivos mencionados, dividiremos esta tese em cinco capítulos.

Iniciaremos discutindo acerca dos desafios advindos do momento pós-moderno em que vivemos,

respaldados principalmente pelos teóricos: Stuart Hall, Zygmunt Bauman e Gilles Lipovetski.

Situados no momento sócio-econômico cogitado, no segundo capítulo, é nossa intenção

transmitir o papel da Literatura, enquanto material artístico capaz de trazer possíveis saídas para

as adversidades narradas. No terceiro capítulo, traçaremos um breve histórico da respresentação

da exclusão social na Literatura Infanto-Juvenil brasileira, além de introduzirmos, diante deste

contexto, a obra engajada de Georgina Martins.

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No quarto e quinto capítulos, aplicaremos ao corpus selecionado a hipótese demarcada sobre

o “fazer literário” de Georgina Martins, evidenciando a sua Literatura engajada e de percepção

sensível do outro (excluído socialmente). Vale ressaltar que seguiremos as próprias pistas

textuais das obras para fazer a nossa leitura, sem nos delimitarmos exclusivamente no aparato

teórico mencionado, embora este tenha sido fio condutor da investigação realizada, funcionando

como norteador de pesquisa.

No último capítulo mencionado, dedicaremos uma parte dele a impressões minhas durante a

minha atuação no Programa de Criança Petrobrás, em que convivi com as crianças moradoras do

Complexo da Maré. O meu objetivo é fornecer ao leitor amostragens reais desta indiferença

discutida teoricamente nos capítulos anteriores e, vislumbrada como material de crítica nas obras

de Georgina Martins, que em Uma Maré de desejos, destaca como personagens principais

meninos da Maré.

Queremos ressaltar por último, antes de iniciarmos propriamente a tese, que as preocupações

formais acadêmicas foram respeitadas dentro do possível, mas sem que essas se sobrepusessem

ao principal objetivo desta pesquisa: o de buscar valores mais humanos. Portanto, é nítido que se

deixou transparecer em vários momentos o lado emocional humano, que jamais pode ser

esquecido:

O homem moderno não entende o quanto o seu “racionalismo” (que lhe destruiu a capacidade para reagir a idéias e símbolos numinosos) o deixou a mercê do “submundo” psíquico. Libertou-se das “superstições” (ou pelo menos pensa tê-lo feito), mas neste processo perdeu seus valores espirituais em escala positivamente alarmante. (JUNG, 1964: 94)

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1 Os desafios da Pós-modernidade

É extremamente complexo datar o surgimento deste momento histórico social que

chamaremos nesta pesquisa por Pós-Modernidade. Trataremos especificamente das

conseqüências advindas com a Modernidade, a partir da Revolução Industrial e com o

Capitalismo globalizado, acirradas pela liberação de costumes da década de 1970. Gilles

Lipovetsky, em Os tempos hipermodernos, fala sobre a nomenclatura Pós-Modernidade, que na

sua visão, hoje, pode ser chamada de Hipermodernidade: “A partir do final dos anos 70, a noção

de Pós-modernidade fez sua entrada no palco intelectual com o fim de qualificar o novo estado

cultural das sociedades desenvolvidas”. (2004: 51)

Lipovetsky define o contexto “pós-moderno” da seguinte forma:

O neologismo pós-moderno tinha um mérito: salientar uma mudança de direção, uma reorganização em profundidade do modo de funcionamento social e cultural das sociedades democráticas avançadas. Rápida expansão do consumo e da comunicação de massa; enfraquecimento das normas autoritárias e disciplinares; surto de individualização; consagração do hedonismo e do psicologismo; perda da fé no futuro revolucionário; descontentamento com as paixões políticas e militâncias/.../ (2004: 52)

Acredita-se que o contexto pós-moderno traz uma série de questões que devem ser discutidas

e encaradas como desafios a serem superados. A mudança paradigmática aportada por esse novo

estado cultural será discutida, juntamente com a crise identitária. Essas questões mudaram

muitos fatos nas sociedades e influenciaram a Literatura de maneira geral, sendo esta, uma forma

de representação da realidade.

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1.1 A mudança de paradigma e a crise identitária

Um dos fatos a ser discutido para entendermos a terminologia “mudança paradigmática” é a

liberação de costumes, que resultou posteriormente em uma insegurança, denominado por

Bauman de “mal-estar”, parafraseando Freud. A liberação dos costumes pós-moderna não quer

dizer que antes não se burlavam as normas impostas por um saber tido como incontestável, mas

sim que há, hoje, diferente do passado, uma legitimação das várias escolhas, ou seja, é possível

optar entre vários tipos de conduta, sem que sejamos banidos socialmente por isso. Entretanto,

não podemos nos esquecer de que esse processo de libertação não significa que vivemos em uma

sociedade sem conflitos e sem dominação, como podemos constatar na afirmação de Sébastien

Charles, em seu prefácio sobre a obra de Gilles Lipovetsky, no livro Os tempos hipermodernos:

/.../ essa libertação em face das tradições, esse acesso a uma autonomia real em relação às grandes estruturas de sentido, não significa nem que desapareceu todo o poder sobre os indivíduos, nem que se adentrou num mundo ideal, sem conflito e sem dominação. Os mecanismos de controle não sumiram; eles só se adaptaram, tornando-se menos reguladores, abandonando a imposição em favor da comunicação. (2004: 20)

Logo, nesse processo de pretensa liberdade, a mídia tem forte papel dominador, pode ditar

regras de maneira muito sutil e se acredita que a passividade perante elas não passa de uma

escolha. Talvez, essa dominação implícita seja ainda mais perigosa do que as regras impostas nos

séculos anteriores.

Sébastien Charles, baseado em Gilles Lipovetsky, alerta ainda para duas vertentes que

surgem com a vasta possibilidade de escolhas advinda na sociedade pós-moderna:

No fundo, trata-se de compreender que a pós-modernidade se apresenta na forma de paradoxo e que nela coexistem intimamente duas lógicas, uma que valoriza a autonomia, outra que aumenta a dependência/.../ De um lado, mais tomada de responsabilidade; de outro, mais desregramento. (2004: 21)

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Essas características paradoxais são frutos da falta de referências estáveis na Pós-

modernidade, cujas conseqüências foram ou um total desregramento, por não haver regras pré-

determinadas, ou uma busca de responsabilidade, como um possível retorno às tradições

passadas. Essas afirmações nos conduzem à constatação de que o ser humano precisa realmente

de regras para viver em sociedade, pois a sensação de total falta de modelos é angustiante.

Funciona como se estivéssemos em um navio, cuja direção é completamente imprevisível, em

que não há um comandante seguro para nortear os tripulantes. A liberação radical da tradição

acarretou essa impressão, como podemos vislumbrar na fala de Charles:

Basta pensar na liberação de costumes, que teve como contrapartida uma desestruturação do mundo familiar e relacional, tornando os vínculos entre as pessoas mais complicados que no passado, quando a norma tradicional impunha a cada um seu devido lugar na ordem social. (2004: 22)

Portanto, a falta de referências representa um vácuo, que buscamos incessantemente

preencher. Se antes as regras eram inflexíveis, ao menos havia modelos a serem seguidos, hoje, a

melhor designação para o que vivenciamos é o vazio. Por isso, há a variedade de condutas no

que diz respeito aos relacionamentos em geral, não existe mais uma regra clara e incisiva sobre

como agirmos.

No panorama descrito, surge uma nomenclatura, proposta por aqueles que estudam a pós-

modernidade, usada para definir a supervalorização dos indivíduos que detêm o conhecimento

predestinado à produção e ao lucro nesta sociedade. Trata-se aqui do saber utilitarista, um

conhecimento que não se preocupa especificamente com questões filosóficas, mas com fins

específicos: a produção e o lucro.

Na revista Tempo brasileiro, editada no período entre janeiro e março de 2003, Saul Fucks,

em seu artigo “A sociedade do conhecimento”, disserta sobre o tema:

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Na sociedade moderna, a produção foi acionada pela preexistência de uma demanda de bens (que atendiam às necessidades da população), induzindo os proprietários de capital a produzirem e ofertarem estes bens.

Na sociedade do conhecimento, o processo é justamente o inverso. O Estado e as empresas multinacionais fazem imensos investimentos em inovação tecnológica (conhecimento) através de uma programação; simultaneamente, é acionada gigantesca máquina de propaganda, utilizando a mídia para induzir o consumidor a adquirir os bens produzidos. A gênese do processo é, de fato, a criação de novos bens e novos processos produtivos, sendo o motor que aciona o desenvolvimento econômico. Considerando que este elemento caracteriza a essência desta sociedade, podemos denominá-la “sociedade do conhecimento”. (2003: 77-8)

Nota-se que se na Idade Moderna, a grande preocupação era utilizar o pensamento para suprir

as demandas da população, na Pós-modernidade, o grande foco é criar demandas. A explosão das

empresas de telefonia neste século é um exemplo claro disto. A cada ano novos modelos de

celulares e novos serviços são lançados e a mídia faz um trabalho, em que, acionando arquétipos

universais, induz o cidadão a acreditar que aquele novo aparelho ou novo serviço realmente é

necessário para ele. Logo, percebe-se que a mídia tem o poder de transformar o supérfluo em

imprescindível, e esta é a principal ferramenta da “sociedade de conhecimento”. Por isso,

observamos grande valorização dos pensadores de “novas demandas” e também, não podemos

esquecer aqueles que, através do imaginário midiático, concretizam na sociedade essas

demandas.

A questão identitária dos indivíduos é também um tema amplo e complexo, pois inclui

teorias de naturezas diversas, mas para começarmos a entender o que ocorre na sociedade pós-

moderna a respeito da identidade, vamos recorrer a algumas leituras sociológicas da temática

através de Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade e Zygmunt Bauman, em O

Mal-estar da Pós-modernidade e em Identidade.

Stuart Hall fala de crise de identidade na Pós-modernidade, a partir da leitura das identidades

prontas até então percebidas na nossa História. De maneira muito didática, em um primeiro

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momento de seu livro, Hall determina seu argumento principal, como se pode ler no trecho

referido:

/.../ as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada crise de identidade é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (2002: 07)

Hall mostra, neste trecho, o quanto a sociedade ideologicamente parecia ser bem definida,

pois os papéis sociais das pessoas e das instituições eram nítidos e assim, as identidades

funcionavam de acordo com esses papéis, unificadas. Na pós-modernidade, Hall discute a

chamada crise da identidade, pois os sujeitos unificados, certos dos seus papéis, não possuem

mais pontos de referência estáveis, fragmentando-se suas identidades. Logo, não é mais claro

quem somos e porque fazemos parte da sociedade, ou seja, que papel devemos desempenhar, e a

esse processo, ele nomeia deslocamento/ descentração do sujeito:

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX /.../ Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um sentido de si estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento- descentração dosindivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos- constitui uma crise de identidade para o indivíduo. (2002: 09)

É nítido que a crise de identidade é provocada por um processo mais amplo do que se

imagina. As transformações ocorridas na sociedade atual fazem com que percamos o sentido

seguro de nós e passemos a não ter clara noção do nosso verdadeiro eu. Esta sociedade produz

sujeitos com identidades fragmentadas, sem uma referência estável, manipulados pelo sistema

midiático e é produzida por eles, num processo dialético, recíproco.

Para entendermos, de forma mais clara, estas transformações ocorridas, Hall define três

concepções de sujeitos históricos baseados nas correntes das respectivas épocas. O primeiro

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indivíduo é o produzido pelo Iluminismo, no auge da Modernidade, o segundo é baseado em

correntes sociológicas interacionistas e o terceiro, é o sujeito pós-moderno:

O sujeito do Iluminismo estava baseado em uma concepção de pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades da razão, de consciência e de ação, cujo centro consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia /.../ O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa /.../ essa era uma concepção muito individualista /.../

G.H.Mead, C.H. Cooley e os interacionistas simbólicos são as figuras-chave na sociologia que elaborava esta concepção interativa da identidade e do eu. De acordo com essa visão, a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o eu real, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que estes mundos oferecem.

Argumenta-se, entretanto, que são exatamente essas coisas que agora estão mudando. O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composta não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas /.../ Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. (2002: 10-12)

De acordo com essas concepções, podemos constatar que pelo menos duas visões de sujeitos

fixos, estáveis representaram a Modernidade: o sujeito do Iluminismo e o sujeito sociológico.

Nas reflexões iluministas, repletas de certezas baseadas na razão, o indivíduo tem segurança de

quem é, a partir de uma visão inatista de sua identidade. Já a abordagem sociológica, que surge a

partir das teorias interacionistas, é ciente de o indivíduo possuir tendências inatas, mas sabe que

sua identidade é construída de acordo com o meio sócio-cultural em que vive. Logo, nessa visão,

o homem interfere no meio e, ao mesmo tempo, é produto dele. Com o surgimento da Pós-

modernidade e o questionamento de todas essas determinações, o sujeito não é visto de modo

mais uno, mas composto de diversificadas faces que o fazem ser múltiplo, instável, facilmente

modificável e até mesmo contraditório. Este é um sério motivo de preocupação na sociedade

atual, pois se antes havia regras, referências, modelos incontestáveis, embora muitas vezes,

“errôneos”; tratava-se de norteadores importantes. Hoje, percebe-se, como nossa marca, a total

ausência de valores que nos dêem a noção do que é certo ou errado. A interrogação seria um bom

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símbolo para esse momento histórico, em que, como afirma Hall: “As sociedades modernas são,

portanto, por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente”. (2002: 14)

É importante notar que nós não somos seres unos, não fomos e nem nunca seremos, somos

“vários” por nossa natureza. A grande questão levantada por Hall é a descentração do sujeito, ou

seja, o total desconhecimento de norteadores seguros: a angústia, a insegurança, que esse novo

modelo social traz às pessoas.

Zygmunt Bauman apresenta uma outra versão para entendermos o que ocorre com a questão

da identidade do sujeito pós-moderno. Em seu livro O mal-estar da pós-modernidade, no

capítulo XIII, ele fala de nascimento da identidade no lugar de crise de identidade:

Logo que a polis parou de estabelecer lei a respeito de tudo, ficou aberto o caminho para a emergência de atividades do psiquismo anteriormente impensáveis, observa Gehlen. Mas as atividades do psiquismo a que Gehlen se refere são os sintomas preliminares do nascimento da identidade, a mais essencial de todas as criações ou invenções modernas. O nascimento da identidade significa que de agora em diante são as habilidades do indivíduo, sua capacidade de julgamento e sabedoria de escolha que decidirão (pelo menos precisam decidir; de qualquer modo, espera-se que decidam) qual das possíveis formas infinitamente numerosas pelas quais a vida pode ser vivida se torna carne, e em que extensão a escolha irregular e vacilante pode preencher o papel outrora desempenhado pelos constantes princípios de orientação ministrados e protegidos pela polis.

São as incertezas concentradas na identidade individual, em sua construção nunca completa e em seu sempre tentado desmantelamento com o fim de reconstruir-se, que assombram os homens e as mulheres modernas/.../(1998: 221)

De acordo com a visão de Bauman, pode-se verificar que, diversamente de Stuart Hall, ele

não crê que com a Pós-modernidade surjam identidades fragmentadas pela falta de referências,

mas que nasça, neste momento de construção, a identidade. Assim, segundo ele, a identidade é

uma criação da sociedade atual, pois antes, o que se pensava ser identidade, era nada mais que

repetição de valores pré-determinados pelas leis sociais vigentes da época. Logo, com o

enfraquecimento do Estado, ou seja, quando a polis deixa de determinar o certo e o errado, o

comportamento seguro e o excluído; surgem as possibilidades de escolha, e só assim, surge a

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construção de uma identidade, que embora incompleta, confusa e contraditória, é livre para se

construir e reconstruir. Este total livre-arbítrio assusta os homens, pois se é bom ter “liberdade”,

esta pressupõe responsabilidade e conseqüências inevitáveis, fator este que explica a insegurança

e o medo das pessoas na Pós-modernidade.

Portanto, a crise da identidade ou o nascimento da identidade é um fator que mudou

completamente as relações interpessoais da sociedade pós-moderna e faz surgir um novo

homem, pronto a ser construído ou desconstruído, mas inseguro, na “defensiva”, individualista e

indiferente.

O livro Identidade, de Zygmunt Bauman trata-se de uma entrevista que o grande sociólogo

cedeu a Benedetto Vecchi através de correio eletrônico. Nesta entrevista, fala sobre a chamada

crise da identidade: “A fragilidade e a condição eternamente provisória da identidade não podem

mais ser ocultadas. O segredo foi revelado. Mas esse é um fato novo, muito recente...” (2005:

22). Na verdade, Bauman discute que nossas identidades sempre foram frágeis e o que Hall

chama de crise da identidade é o segredo que está sendo revelado: as nossas identidades não são

prontas, estão sempre se construindo. Logo, não é que a nossa identidade tenha sido

fragmentada, mas a certeza que tínhamos dela é que foi: “A idéia de identidade nasceu da crise

de pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o

“deve” e o “é” e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela idéia-recriar a

realidade à semelhança da idéia.” (2005: 26). Portanto, a idéia que se tinha de identidade foi

derrubada: “No admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as

identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente não funcionam. (2005: 33).

No próximo item, buscar-se-á relacionar a chamada crise de identidade ao caos que

vivenciamos hoje, em que, o indivíduo, inseguro e fragmentado, não consegue se organizar

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perante os problemas sociais e freqüentemente permanece indiferente ao outro, como se este

fosse algo de ameaçador.

1.2 Caos no Capitalismo Atual: violência, exclusão, silenciamento das massas e indiferença

O primeiro grande nome a tratar sobre o Capitalismo foi Karl Marx, publicando em 1867, a

primeira edição de O capital, livro este que mudou para sempre a maneira como as pessoas

enxergavam as relações de trabalho no sistema capitalista. Segundo o autor, o processo de

produção capitalista produz muito mais que mercadorias, produz relações cada vez mais

legitimadas, visto seus fins lucrativos:

Por sua prórpria realização, o processo de produção capitalista reproduz então a separação entre a força de trabalho e as condições de trabalho. Assim reproduz e eterniza as condições de exploração do operário. Ele obriga constantemente o operário a vender sua força de trabalho para viver, permitindo ao capitalista comprar constantemente essa força para se enriquecer./.../ O processo de produção capitalista, enquanto processo de produção, não produz apenas mercadorias ou mais-valia; produz e reproduz, sem cessar, por um lado o capitalista, por outro lado o assalariado e, assim, a própria relação capitalista. (1969: 146)

Então, a partir dessa visão inovadora para a época trazida por Karl Marx, não só as vantagens

do sistema capitalista estavam à mostra, mas também os problemas das classes foram

evidenciados. Conseqüentemente, as injustiças desse sistema foram trazidas à luz, como neste

trecho da obra:

A mais-valia é produzida pelo emprego da força de trabalho. O capital compra a força de trabalho e paga, em troca, o salário. Trabalhando, o operário produz um novo valor, que não lhe pertence, e sim ao capitalista. É preciso que ele trabalhe um certo tempo para restituir unicamente o valor do salário. Mas isso feito, ele não pára, mas trabalha mais algumas horas por dia. O novo valor que ele produza agora, e que passa então ao montante do salário, se chama mais-valia. (1969: 54)

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As diferenças sociais sempre existiram, entretanto, a resolução de todos os males esperada

pelo capitalismo não foi alcançada, pois se percebe que o sistema, por si só, é injusto e

excludente. Os próprios objetivos de um Estado democrático são negados a cada dia com a

legitimação do capitalismo, em que a exclusão de certos integrantes do sistema é flagrante.

Com a Revolução industrial, cada vez mais, o homem é tratado como máquina, perdendo a

sua criatividade, a sua espontaneidade e até a sua vontade. Ele produz mercadorias em série e

para o sistema no qual está inserido, vale pelo quantitativo que produz. Eis a grande diferença

entre o trabalho artesanal e o industrial. Enquanto no primeiro, a criatividade, a capacidade

artística de criação são valores primordiais, no segundo; é a quantidade de produtos que será o

centro dos interesses. Pode-se dizer que já neste período, a fragmentação do sujeito começa a se

instaurar, como vimos, pois ele perde a noção do eu cada vez mais e do seu produto, que só tem

valor, dentro de uma coletividade de outros. Essa fragmentação de identidade a que o sujeito

começa a ser submetido desde este período, dá início ao fenômeno do individualismo moderno,

em que o “eu” é fator preponderante em detrimento da coletividade. Sobre as conseqüências do

capitalismo atual, disserta João Carlos Petrini, em seu artigo “Mudanças sociais e familiares”,

pertencente ao livro Família, sociedade e subjetividades:

O mercado vitorioso abre espaço a uma pós-modernidade na qual a lógica do capitalismo globalizado mostra seus lados sombrios, com a redução dos quadros funcionais nas empresas e nas administrações públicas, com a ameaça de desemprego, com as exigências de competitividade, de qualidade e de dedicação ao trabalho que absorvem as melhores energias das pessoas, com violências e guerras que mal encobrem com o ideal das liberdades democráticas interesses menos elevados./.../ A vida aparece estressante e apreensiva, prevalecendo as preocupações com a segurança, proteção, defesa das conquistas sociais. (2005: 38-9)

Visto que as melhores energias das pessoas são dispersas pela busca do capital, devido à

competividade que se instaura cada vez mais no sistema, as pessoas também abandonam alguns

outros sentimentos, como a solidariedade. E surge no panorama do capitalismo atual um

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sentimento estranho, ou um não-sentimento: a indiferença. No livro A indiferença pós-moderna,

Ronaldo Lima Lins discute a respeito dessas novas configurações sociais:

Não parece lógico usar a categoria da indiferença como sinal do comportamento moderno em qualquer uma de suas fases, inclusive a atual. Uma época que se iniciou com o sonho de uma revolução e perseguiu este objetivo com tenacidade, um mundo que se definiu por uma inventividade que mudou a fisionomia do planeta, mereceria qualquer termo menos vinculado à possibilidade de inércia, da inação, da apatia, da insensibilidade moral, como se o “dar de ombros” representasse a marca dos nossos movimentos, apesar da má qualidade da expressão. (2006: 7)

Neste contexto social em que vivemos, fortemente influenciado pelos momentos históricos

narrados acima, se acirra muito a indiferença, relatada por Ronaldo L. Lins, como tema central de

seu livro. Define dessa maneira o indivíduo indiferente na sociedade pós-moderna:

Um indivíduo indiferente não saberia de seus embaraços para olhar e interferir no exterior. Voltado para um “eu” que só se dobraria ao peso da angústia, não possuiria disposição para mergulhar nas dificuldades alheias, por mais agudas que se mostrassem. A tal ponto permaneceria anestesiado que não perceberia aquilo que o ameaça em família, na pracinha ou no meio da multidão, partindo de um conhecido ou de um estranho. Estaria incapaz de amor, de solidariedade, de paixão. Distrair-se-ia com as providências que os deveres impõem, sem esforços sobressalentes. ( 2006: 8)

Lins relembra, a partir da leitura desse momento conturbado em que vivemos, a democracia,

que possui, entre outras, a finalidade de se perceber a sociedade como coletividade, em que todos

devem ser vistos e ouvidos. No processo democrático, não deveria ocorrer qualquer tipo de

indiferença, pois o bem comum da coletividade, a princípio, seria o seu grande ensejo. Assim,

todos deveriam ser iguais em seus direitos e deveres perante as leis que regem o Estado

democrático e neste pressuposto estaria toda a modernidade desta maneira nova de entender o

mundo, diferentemente dos sistemas ditatoriais e feudais: “A utilidade da democracia consiste em

não permitir que a exacerbação do eu até a anomalia (ou da loucura), o eu já não mais dividido,

mas único, exclusivo, perca a noção da realidade e nos arraste para a miséria, de onde, quando

começamos, desejamos sair”.(2006: 38)

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Se a instauração da democracia representou grande avanço para grande parte do globo

terrestre, a implantação do processo democrático nunca se implementou da maneira como se

supunha, valorizando os pareceres de todos os componentes de uma sociedade. Já que a

democracia, em quase todo o mundo surgiu juntamente com o capitalismo, impulsionado

principalmente pela Revolução Industrial, o fenômeno que se tem é diverso: a desvalorização do

ser em favorecimento do “possuir” ou “consumir”. Afirma Lins, que o capitalismo, enquanto

sistema, já traz arraigado em si o sentimento da indiferença, à medida que estimula a

competitividade e a maior valia. O lucro a qualquer custo e a pressa para atingi-lo leva a

sociedade capitalista a ser cada vez mais indiferente ao seu semelhante, inebriada pelo consumo e

o utilitarismo. O outro pode até ser importante, caso possa proporcionar algum tipo de vantagem

ao indivíduo: seja amorosa, sexual, financeira ou até afetiva. Portanto, não são só as pessoas estão

se tornando indiferentes, mas o próprio sistema capitalista traz embutido o desprezo pelo outro

que não possa trazer ao indivíduo algum tipo de satisfação, ou pior, que possa proporcionar-lhe

qualquer prejuízo:

A sociedade gerada em tal contradição aspirará, no século XIX, por mais calor humano/.../ e promoverá mais índice de frieza do que qualquer outra. É da ordem do capitalismo em suas várias formas/.../, como sabemos, o valor da produção e do lucro sufocando os demais critérios de convivência. Por causa disso, promove-se o desemprego quando necessário para o bom andamento e as necessidades da indústria, não importando as famílias que caem no desabrigo. (2006: 80-1)

A cada dia, o verbo “ter” passa a ser muito mais valorizado, em vários tipos de relações e o

verbo “ser” vem sendo esquecido nas relações empregatícias e de outros tipos.

Ronaldo Lima Lins liga a indiferença social à perda da capacidade de amar. Defende que este

é um dos piores problemas da sociedade pós-moderna frente a tantos outros, como os citados

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anteriormente. Na verdade, estão muito ligados, porém, a indiferença surge como um grande mal,

que parece tender a se acirrar à proporção que o sistema capitalista se consolida. Para Ronaldo,

este desprezo pela “humanidade” das pessoas seria resultado da ausência de amor, como explicita

na seguinte afirmação:

A indiferença é uma doença? Em algum momento (na modernidade agora chamada de pós-modernidade) perdemos a capacidade de amar.Aquilo que antes significou uma salvação, e no romantismo significou tudo, não obstante os fracassos, esvaziou-se de apelo e de conteúdo, como se as emoções, neutralizadas, não tivessem como expandir-se, sujeitando-se à lógica da hegemonia dos fatos. A ausência de expectativas (ou alternativas), uma vez sufocada a idéia da utopia, não encontra nada que impeça uma sensação de desagregação ligada ao desinteresse. (2006: 163)

O desinteresse pelo outro é flagrante. Por esse motivo, as pessoas ignoram seus semelhantes,

preocupadas com seu conforto e de seus filhos, esquecendo que isso não é possível em uma

sociedade desigual. Como ter segurança, diversão e proteção para os nossos em uma sociedade

em que os direitos não são iguais para todos? Como se sentir completamente feliz, consumindo

em qualquer lugar que seja, enquanto o outro está ao lado lhe pedindo ajuda, ou quem sabe,

ameaçando a sua vida? Será que seremos perfeitamente felizes em “prisões de luxos”, com carros

de vidros escuros e blindados que “garantam” a nossa segurança?

Parece que o mercado extrapolou qualquer uma das previsões possíveis e passou a governar

não só o sistema no qual estamos inseridos, mas as próprias relações entre as pessoas. Petrini, em

seu artigo “Mudanças sociais e familiares”, discute sobre o poder inimaginável do mercado:

Nesses contextos socioculturais, o mercado tornou-se um poder impessoal capaz de condicionar não somente os cidadãos que querem estar nele incluídos, para desfrutar dos benefícios que ele disponibiliza, mas os próprios Estados. Estes, com efeito, devem adaptar seus programas de desenvolvimento e suas políticas econômicas ao comportamento do mercado./.../ O poder maior do mercado, no entanto, manifesta-se na capacidade de introduzir nas relações humanas, isto é, no tecido fino das realções quotidianas, os critérios, os valores, os métodos que lhes são próprios, sinteticamente inidicados como intercâmbio de equivalentes. O mercado coloniza o mundo da vida, reduzindo não somente os espaços da gratuidade, tudo calculando em função da conveniência e da utilidade, mas restringindo a própria abertura da razão, que passou a ignorar a busca da felicidade e dos significados, aplicando-se à produção do lucro e do poder. (2005: 39-40)

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O mercado passa a ditar o valor das pessoas através de vários quesitos, como vestimenta,

habitação e hobbies. Dilma Mesquita, em seu livro Shopping center: a cultura sob controle,

disserta sobre as prisões em que vivem aqueles que detêm poder em nossa sociedade. Os

condomínios e os shoppings centers seriam espaços de segmentação social, em que se dividem e

se separam as pessoas através do poder aquisitivo: “As estratificações sociais, portanto, não mais

se dão de forma vertical, mas sim horizontal: o indivíduo (sujeito partido, $, uma cifra – o sujeito

moderno é agora um construto romântico), se detém o poder de compra, está in, se não o detém,

está, conseqüentemente, out.”(2002: 49)

Há, nesse processo, uma indiferença tamanha, pois à medida que se estratificam socialmente

as classes ou as pessoas pelo poder aquisitivo, surge a indiferença pelo estranho, pela sua cultura,

pelo seu modo de viver. Portanto, cremos que a indiferença pós-moderna está profundamente

ligada à questão social, pois na sociedade capitalista, geralmente, se é indiferente àquele que não

lhe pode proporcionar nenhuma vantagem, como as classes desfavorecidas, em sua maioria. As

pessoas que fazem parte dessas classes só são notadas quando prejudicam as outras classes,

geralmente, em um ato violento. Dilma Mesquita chama aqueles que não podem consumir de

anti-heróis:

O deslocamento experimentado pelo contingente excluído dos círculos decisórios encontra seu eco na cidade-abrigo; a mesma cidade atacada pelos interesses centralizadores do poder globalizado. Por ela transitam numa caminhada infinita os anti-heróis não consumidores, aqueles, que de alguma forma, conseguem abocanhar uma fatia da produção. A fatia que lhes cabe, ao contrário, é a menor e a mais rejeitada do bolo consumível do mercado, a que lhes dá acesso a bens que não conferem statusem grau nenhum./.../ Valendo muito mais pelo que têm do que pelo que são, os indivíduos se sentem cada vez mais estranhos frente a este universo de consumo. (2002: 79)

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Zygmunt Bauman, em O Mal-estar da Pós-modernidade, afirma que os pobres de hoje são

vistos como consumidores falhos, ratificando a idéia expressa por Dilma Mesquita, na citação

anterior. Logo, a culpa de sua infelicidade não é do sistema, mas deles mesmos:

Os pobres de hoje são, antes e acima de tudo, consumidores falhos, incapazes de tirar vantagem dos tesouros tantalizantemente exibidos a seu alcance, frustrados antes do ato, inabilitados mesmo antes de experimentar; enquanto eles são irrealizados produtores, ou pessoas fraudadas na divisão da mais-valia, mas a um segundo de distância. (1998: 227)

Citando Teresa Caldeira, Zygmunt Bauman, em seu livro O amor líquido, fala a respeito dos

condomínios, que vêm assustadoramente crescendo na sociedade brasileira atual, denotando para

os mais atentos um fenômeno bastante relevante: sua faceta excludente e indiferente:

Um traço muito importante do condomínio é seu “isolamento e distância da cidade... Isolamento significa separação daqueles considerados socialmente inferiores” /.../ “o fator chave para garanti-lo é a segurança. Isso significa cercas e muros rodeando o condomínio, guardas trabalhando 24 horas por dia no controle das entradas e um conjunto de instalações e serviços” destinados a manter os outros do lado de fora. (2004: 130-1)

Bauman chama os excluídos socialmente de “lixos humanos”, utilizando uma terminologia

com o intuito de chocar quem lê sua obra. Pode-se dizer que Bauman argumenta, sem dúvida,

dialeticamente, sobre a indiferença de que está repleta a outra camada da sociedade, que permite

que seus semelhantes sejam vistos desta maneira:

Todo modelo de ordem é seletivo e exige que cortem, aparem, segreguem, separem ou extirpem as partes da matéria-prima que sejam inadequadas para a nova ordem, incapazes ou desprezadas para o preenchimento de qualquer de seus nichos. Na outra ponta do processo de construção da ordem, essas partes emergem como “lixo”, distintas do produto pretendido, considerado “útil”. (2004: 148)

O sociólogo alerta ainda sobre o perigo deste tipo de ação seletiva e indiferente a valores mais

humanos: “Pilhas de lixo humano crescem ao longo das linhas defeituosas da desordem mundial,

e se multiplicam os primeiros sinais de uma tendência à autocombustão, assim como os sintomas

de uma explosão iminente”. (2004: 149)

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Anthony Giddens, importante filósofo social inglês de nossos tempos, trata a respeito do

termo “estilo de vida”, advindo com o capitalismo moderno, que, na verdade, traz imbutido em si

a exclusão, a desordem mundial:

/.../ poderíamos imaginar que “estilo de vida” se refere apenas aos projetos dos grupos ou classes mais prósperos. Os pobres seriam quase completamente excluídos da possibilidade de escolher estilos de vida/.../ De fato, divisões de classes e outras linhas fundamentais de desigualdade, como as que dizem respeito a gênero ou etnicidade, podem ser em parte definidas em termos do acesso diferencial a formas de auto-realização e de acesso ao poder discutidos aqui. A modernidade, não se deve esquecer, produz diferença, exclusão e marginalização. (2002: 13)

Pode-se afirmar, portanto, que as massas são silenciadas e impedidas de terem acesso ao

“estilo de vida”, que deveria ser uma escolha e não uma imposição, como notamos nas favelas

brasileiras, em que esse lema basicamente não existe. As diferenças sociais gritantes geram

exclusão e falta de acesso a oportunidades diversas nos segmentos mais miseráveis brasileiros.

Beatriz Sarlo, tratando sobre a realidade Argentina, no livro Tempo presente. Notas sobre a

mudança de uma cultura, ressalta a segregação que os excluídos do sistema capitalista vivem em

seu país, ocasionada pela violência:

A crise da segurança afeta e imobiliza aqules que vivem nos bairros populares. Para evitar depredações e roubos, são obrigados a não deixar nunca suas casas vazias; são condenados ainda, a permanecer isolados em conjuntos habitacionais em que o equipamento cultural é mínimo. Sua mobilidade nos momentos de lazer é reduzida, e, como conseqüência, também vão desaparecendo as possibilidades de contato com outros níveis e consumos sociais. /.../ Nessa paisagem decomposta, a violência urbana não é surpreendente e sim previsível./.../ Num ambiente dominado pela hostilidade, a violência armada se generaliza ali onde, até há poucos anos, era apenas excepcional. (2005: 58)

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Nota-se que a realidade argentina, neste aspecto, é muito semelhante à realidade brasileira,

em que milhares de famílias são compelidas a viverem em guetos marginalizados. Um outro fator

preponderante que deve ser acrescentado é o poder do tráfico de drogas sobre esses indivíduos,

que pode decidir o destino de toda uma comunidade. A violência neste contexto se concretiza

pelo fato do impedimento de pessoas se locomoverem, conhecerem outras culturas e terem acesso

à educação. As oportunidades que deveriam ser iguais para todos num Estado democrático são

negadas, a todo instante, aos segmentos sociais menos favorecidos, que são condenados a

perpetuarem sua condição, nema espécie de sistema de castas. Assim como afirma Beatriz Sarlo,

a violência neste contexto é altamente previsível, pois através da formação de indivíduos sem

opções e com o forte apelo midiático para aquisição de bens, é notável o surgimento da violência

urbana, que na verdade, é o resultado de um longo processo também muito violento de

cerceamento de vários tipos. A mídia segrega e os direitos não são iguais para todos,

principalmente em casos de contexto altamente apelativo, em que o excluído socialmente é

comparado a um animal, sem levar-se em conta seu histórico pessoal e social:

A Justiça é insuportavelmente lenta quando comparada à velocidade da transmissão jornalística ao vivo. Os meios de comunicação colocam-se ao lado das vítimas, pois elas, as vítimas, não estão interessadas na construção de um caso judicial baseado em provas e que dê todas as garantias processuais e probatórias aos suspeitos de delinqüir, pedem, simplesmente, um castigo direto e sumário. E expressam isso quando afirmam, diante das câmeras de televisão, que os delinqüentes são animais e, portanto, não têm, qualquer direito. Esse discurso é compreensível quando parte das vítimas. Elas sentem a dor da perda ou a humilhação da violência sofrida e seu discurso não é baseado na perspectiva da existência de um princípio de justiça para todos./.../ No entanto o julgamento tem sido feito pelos meios audiovisuais de acordo com os regimes não-republicanos: sumariamente. (2005: 62-3)

Sobre a influência da mídia, Anthony Giddens disserta:

A familiaridade gerada pela experiência transmitida pela mídia pode talvez, com freqüência, produzir sensações de “inversão da realidade”: o objeto ou evento real, quando encontrado, parece ter uma existência menos concreta que sua representação na mídia./.../ Em suma, nas condições da modernidade, os meios de comunicação não espelham realidades, mas em parte, as formam. (2002: 31-2)

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Logo, a mídia manipula de acordo com seus interesses e os interesses das classes

desfavorecidas pelo sistema raramente são levados seriamente em discussão nos grandes canais

de televisão. O excluído do sistema é animalizado e visto como o grande culpado de toda a

violência que existe nos grandes centros urbanos. Exalta-se, enquanto isso, aqueles que

conseguem, em regime de exceção, sobressair-se do sistema excludente, vencer as dificulades e

enriquecer, como se esse fato dependesse unicamente da vontade de cada um. Desta forma,

disfarça-se a grande desigualdade e segregação sob a qual vivem milhares de pessoas no Brasil,

tolhidas de seus direitos e deveres.

Eni Orlandi, especialista em Análise do Discurso, no livro Cidade dos sentidos, faz uma

reflexão sobre o papel da mídia como legitimadora do discurso da violência nos grandes centros

urbanos:

Neste sentido, a mídia, embora não seja a instância produtora do imaginário da violência, ela o acentua, na medida em que investe neste processo de significação ao invés de procurar rompê-lo. O que, aliás, é próprio ao funcionamento da mídia: ela, em geral, não reflete sobre os processos de significação sociais, ela os reflete, no sentido de efeito de retorno automático, de espelhar. (2004: 65-6)

De acordo com a leitura feita de sua obra, podemos dizer que Orlandi acredita na

possibilidade de mudança a partir do momento em que tentarmos sair do discurso superficial da

mídia e buscarmos uma leitura mais aprofundada das questões que originam a violência.:

Para falar em cidade, fala-se em violência, em primeira instância. Eu me coloco em outra perspectiva: se a gente compreender o que está silenciado e não ficar só convergindo para a discursividade da violência vai encontrar outros sentidos para a cidade, para o social, para a história, para nós. O discurso da violência é homogeneizante e nem o social, nem a cidade, em seu real, tem homogeneidade. (2004: 29)

O assunto violência é extremamente explorado pelos meios de comunicação e o senso

comum, que se preocupam em contestar a falta de segurança e reivindicar medidas drásticas para

evitar que a violência rubana ocorra, sempre veiculando-a a alguns segmentos sociais

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desfavorecidos monetariamente. Neste discurso, não há espaço para pensar dialeticamente as

causas e as motivações dessa explosão de violência urbana que vivemos hoje, tornando-se uma

fala homogeneizante, generalizante. Sobre esse discurso homegeneizante da violência, afirmam

Maria Lívia do Nascimento e Ruth Silva T. Ribeiro, no livro Pivetes: a produção de infâncias

desiguais, no artigo intitulado “Percursos do PIVETES: a construção coletiva de um grupo de

pesquisa”:

Nas últimas décadas do século XX, com a consolidação do capitalismo em escala planetária, assistimos a uma ampliação de práticas que criam um verdadeiro apartheid social e uma imensa violência urbana. Especialmente no contexto brasileiro tal fato se evidencia através do alarmante aumento de pessoas que fazem das ruas seu espaço de moradia e subsistência. Paralelo a isso se reafirma a associação da rua e da pobreza como sinônimo de perigo, relação que emerge no início do século passado e vai se ampliando como uma construção do capitalismo. (2002: 24)

No mesmo livro referenciado, há um artigo de Irene Bulcão, chamado “A Produção de

infâncias desiguais: uma viagem na gênese dos conceitos “criança” e “menor”, em que se discute

o surgimento da nomenclatura menor para caracterizar as crianças de rua, sem recursos, criando-

se a partir dessa conceituação, uma divisão entre dois tipos de infância: a da criança e a do

menor. Na verdade, percebe-se uma grande segmentação social neste contexto, em que os direitos

de um grupo de criança são garantidos e os de outro não. Os deveres do “menor” são cobrados e

os da “criança”, não. Há, portanto, nitidamente, uma separação entre dois mundos, estabelecidos

pelo poder do capital, como discutimos em outros momentos. Os juristas foram os primeiros a

institucionalizar o termo menor:

Entram em cena os juristas da época, atentos ao grande número de crianças que perambulavam pelas ruas e ao aumento da criminalidade infantil. /.../ Com efeito, os juristas podem ser considerados os responsáveis pela incorporação ao nosso vocabulário do termo “menor” para se referir à criança pobre, já que foram os homens das leis que popularizaram o uso desse termo. (2002:68)

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Assim, como dito acima, duas infâncias são construídas e para sempre separadas no Brasil:

Já deu para notar que duas infâncias extremamente diferentes estão sendo construídas. A primeira, associada ao conceito de menor, é composta por crianças de famílias pobres, que perambulam livres pela cidade, que são abandonadas e às vezes resvalam para a delinqüência, sendo vinculadas a instituições como cadeia, orfanato, asilo, etc. Uma outra, associada ao conceito de criança, está ligada a instituições como família e escola e não precisa de atenção especial (2002: 69)

Mayalu Matos e Ruth Torralba, no artigo “Intervindo nas práticas de alguns personagens que

atuam na área da infância e juventude”, publicado no livro em pauta, ratificam as idéias

defendidas por Irene Bulcão, pois aproximam as nomenclaturas discutidas à questão da inclusão

versus exclusão no sistema capitalista da sociedade brasileira. Este é um ponto pertinente a se

destacar, pois nas obras literárias que discutiremos, objeto de investigação de nossa tese,

constataremos que essas distinções são patenteadas pela sociedade em geral:

Não é raro abrirmos os jornais e nos depararmos com manchetes do tipo: “Pivetestomam o Centro de assalto”. E logo abaixo encontramos outra chamada dizendo: “Gás mata duas crianças em Magé”. Apesar de estarem na mesma faixa etária, uns são pivetes, menores, e os outros, de outra “estirpe”, são chamados de crianças. O que diferencia uns dos outros?O uso desses termos não é aleatório, nem neutro. Eles portam, em sua enunciação, toda uma carga do já instituído binômio exclusão/inclusão. Afinal, menores são aqueles que assaltam, que vivem nas ruas, que vão para os juizados e educandários, enquanto as crianças vivem em famílias “estruturadas”, vão à escola e têm um futuro pela frente. Num segundo momento, poderíamos dizer que menores são aqueles seres pobres, pequenos, pretos ou mulatos em sua maioria, que vagam pelas ruas tentando arrumar dinheiro, “...e pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos...”, enquanto que as crianças são geralmente brancas e têm uma “condição de vida”, são futuros cidadãos. (2002: 75)

Logo, o próprio discurso midiático se torna violento, a partir do momento que propaga e

difunde valores pré-estabelecidos e consagrados pelo sistema. A exclusão e a segmentação são

claras nestas manchetes, que distinguem nitidamente as crianças em debate, evidenciadas pela

força do discurso. Eni P. Orlandi propõe pensar a própria exclusão, que estamos discutindo neste

capítulo, como uma forma de violência:

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O gesto de separar é violento: produz uma exclusão antecipada e o resultado é que temos populações se digladiando, criando uma situação bélica na disputa dos seus territórios. Resultado dos confrontos da segregação. Segundo o que pensamos é preciso ressignificar o social e ampliar a convivência urbana, civil. A responsabilidade da violência não é só do bandido, é falta de investimento no social. Faltam experiências de socialização e falta até mesmo o aprendizado da convivência com os outros. (2004: 78)

Será que ainda há saídas frente a este panorama descrito? A exclusão, o silenciamento das

massas, a violência, a indiferença são curáveis? Nesta época em que se decreta o fim das utopias,

ainda haverá espaço para se ter sonhos e visões otimistas de mudança?

1.3 Utopia e esperança

Na sociedade pós-moderna, frente aos desafios supracitados, o homem possui algumas

tendências, guiado pelo pessimismo ou pelo otimismo. O pessimismo o levaria para a crença de

que tudo está perdido, não existe solução tangível para esta desordem em que funciona o mundo

atual, caminhamos, portanto, para o fim ou a supremacia das forças destruidoras (thanatos). O

otimismo proporcionaria a capacidade de acreditar num mundo melhor, e que neste momento

complexo em que vivemos, podem surgir maravilhosos frutos, pois o caos precede o equilíbrio. A

pós-modernidade funcionaria então como um período de transição: a liberdade total como o

momento de criar parâmetros mais justos e humanitários. Pois bem, seguiremos a hipótese

otimista e tentaremos neste capítulo esboçar um provável percurso para um novo mundo,

entendendo que o homem é um ser em processo.

Esta perspectiva de esboçar possibilidades para um novo mundo, para muitos, é utópica, no

sentido de que se trata de um ideal inatingível. Entretanto, será que temos perfeita noção do que

seja utopia e de como este sentimento é essencial para a sobrevivência humana? O livro O que é

utopia, de José Teixeira Coelho Neto, trata exatamente sobre esse conceito tão utilizado e ao

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mesmo tempo pouco discutido. Segundo Teixeira Coelho, a utopia é uma necessidade humana,

mola impulsionadora das grandes mudanças, como podemos constatar nas afirmações abaixo:

Um traço que deve caracterizar o ser humano, ainda não embrutecido pela própria fraqueza ou pela realidade tremenda, é a liberdade que ele se reserva de opor ao evento defeituoso, à situação decepcionante, uma força contraditória. Essa força poderia chamar-se esperança/.../ Essa força talvez pudesse ser chamada, também, de força do sonho. Mas também esse seria um nome inadequado: acima de tudo, porque não somos nós que temos um sonho e sim, o sonho que nos tem. Ele escapa a nosso controle/.../ Estaríamos mais perto do nome adequado a essa força de contradição se pensássemos na imaginação, essa capacidade de superar limites freqüentemente medíocres da realidade e penetrar no mundo do possível/../

Mas a imaginação necessária à execução daquilo que deve vir a existir não é a imaginação digamos comum, aquela que se alimenta apenas da vontade subjetiva da pessoa e se volta unicamente para seu restrito campo individual/.../ Tem de ser uma imaginação exigente, capaz de prolongar o real existente na direção do futuro, das possibilidades; capaz de antecipar este futuro enquanto projeção de um presente a partir daquilo que neste existe e é passível de ser transformado.

Esta imaginação exigente tem um nome: é a imaginação utópica/.../ É ela que até hoje pelo menos, sempre esteve presente nas sociedades humanas, apresentando-se como o elemento de impulso das invenções, das descobertas, mas, também, das revoluções/.../ é ela que, militando pelo otimismo, levanta a única hipótese capaz de nos manter vivos: mudar a vida. (1985:7-9)

É interessante notar que para Teixeira Coelho, a utopia é uma característica própria do ser

humano, que vai além da esperança e o sonho; porque estes podem ficar somente no plano da

fantasia, sem objetivos concernentes para que se tornem realidade. A utopia, como ele disse, é

uma espécie de imaginação impulsionadora das mudanças, potencialmente concretizadora, capaz

de vislumbrar o que precisa ser mudado, e mesmo que pareça algo muito distante do real,

aproxima-o através de ideais objetivos.

Essa força, cremos, reside dentro de todos os homens, mesmo naqueles homens que foram

massacrados pela dura realidade e se dizem pessimistas. Apesar de não utilizarem esta força, por

se dizerem vencidos pelo desânimo, ela está lá, pronta para ser ativada. Ela é uma força interna e

necessária para continuarmos como espécie humana, é uma força de Eros, opondo-se a Thanatos.

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Precisamos, portanto, por questão de sobrevivência, da utopia, pois somos alguns menos, outros

mais, seres essencialmente utópicos.

Uma visão otimista e favorável à utopia é fornecida por Saul Fuks, no artigo “A sociedade do

conhecimento”, publicado em 2003 na Revista Tempo Brasileiro. Ele acredita que esse caos

representante da pós-modernidade acena para as possibilidades de mudança, como podemos ler

nas afirmações abaixo:

O futuro é um despertar que depende da ação humana; é preciso gerar um arsenal ideológico capaz de conduzir as transformações almejadas./.../

As realidades de hoje foram utopias no passado, germes, embriões que fecundaram a história.

Nessa concepção, a utopia não é algo irreal, inviável, sonho romântico irrealizável. Ao contrário, é a própria condição de possibilidade do devir, do florescimento do novo, são só anseios, às vezes ainda não amadurecidos, que aguardam a sua vez nos labirintos da história.

Mas, antes de transformar o mundo, é preciso sonhá-lo.

Talvez seja isto o destino do conhecimento e do homem após cada naufrágio: o renascimento.

Aristóteles, preocupado em buscar a essência criativa do homem, inicia sua meditação com um dos mais belos poemas de Safo:

“O homem é o único ser que rompe o silêncio da noite cósmica. É como se, antes de seu aparecimento, reinasse um silêncio absoluto no cosmos e a criatividade humana rompesse esse silêncio”. (2003: 99)

Todas as grandes transformações começaram pelo “acreditar” e lançar recursos para que um

determinado ideal se concretize, não desistindo a cada “naufrágio”, pois são sinônimos de

renascimentos. Devemos recordar que todas as realidades de hoje, um dia foram utópicas.

A utopia, como vimos, é necessária, mas não pode se igualar a uma esperança estática.

Teceremos também considerações importantes, baseados em pensadores, que visam à

possibilidade de viabilização deste projeto utópico citado. Abdala Junior, professor de Literaturas

Africanas da USP, por exemplo, destaca fatores importantes no palco internacional que

representam uma tendência à mudança de valores da sociedade pós-moderna, no livro Poéticas

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da diversidade, organizado por Marli F. Scarpelli e Eduardo de Assis Duarte, em seu artigo

“Fronteiras múltiplas e hibridismo cultural: novas perspectivas ibero-afro-americanas”:

Numa época de falta de convicções, a atribuição do Prêmio Nobel de Literatura a José Saramago constitui um fato altamente relevante. Toda a arte literária desse ficcionista português aponta para suas convicções político-sociais, dialogando com imagens da utopia socialista. Ao individualismo contemporâneo (para ele um mundo de cegos, como aparece no seu romance Ensaio sobre a cegueira), opõe-se o seu sonho de uma sociedade mais humana, pautada pelos valores da solidariedade. (2002: 31)

Este reconhecimento de cunho mundial, seguramente é um indício de que os integrantes da

sociedade pós-moderna não estão satisfeitos com este modelo social. É, portanto, uma

perspectiva de mudança, de conscientização de que precisamos caminhar em direção a um mundo

mais humano, com seres menos individualistas, como representados metaforicamente por

Saramago no livro citado.

A união de todas as nações é destacada por Abdala Júnior como uma frátria comum (2002:

33), assim seria uma nação reimaginada, em que todas as comunidades nacionais se unissem sem

que para isso fosse necessário que houvesse forças coercitivas do Estado, mas pela própria

tendência de fraternidade. Assim, esta mudança não significaria uma perda de identidade

nacional, mas uma conquista de solidariedade, de irmandade, de liberdade, de igualdade, como

propunham inicialmente os ideais da Revolução Francesa.

Um outro ponto estratégico para entendermos a visão utópica que nesta tese propomos é uma

conquista já efetivada: a civilização. A civilização é um passo na conquista de crescimento do

homem? Sem dúvida, mas representa ainda um processo lento e doloroso, dada a nossa condição

inata egocêntrica. Por acreditarmos ser de suma importância o processo civilizatório para o

crescimento do homem, dedicaremos uma parte desta tese aos estudos freudianos sobre o tema.

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No livro O futuro de uma ilusão, Freud faz um estudo imprescindível para qualquer estudioso

que queira entender o que é o processo civilizatório, definindo o que ele entende por civilização:

A civilização humana, expressa pela qual quero significar tudo aquilo que a vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais - e desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização-, apresenta, como sabemos, dois aspectos ao observador: Por um lado, inclui todo conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível. (1927:16)

Um dado relevante fornece Freud ao afirmar que a civilização representa um diferencial entre

a vida humana e a animal, pois a nossa pesquisa concentra esforços em comprovar que a distância

cada vez maior entre o animal irracional faz do homem um ser superior, como disse Aristóteles,

em uma citação acima, o único ser capaz de romper o silêncio do cosmos. A civilização, como

disse Freud é um marco decisivo de diferença entre a escala animal e a hominal, logo, se é assim,

deve-se sempre mais aperfeiçoá-la, ensejando uma capacidade, cada vez em maior escala, de o

homem se aproximar de uma condição mais elevada.

Como aponta Freud, a civilização representa ainda a distribuição da riqueza que o homem é

capaz de produzir com a transformação dos meios naturais. O homem pós-moderno, cada vez

mais sabe produzir riquezas, a grande questão que já colocamos em pauta é a má distribuição.

Um caminho certo para a elevação humana é distribuir de maneira mais justa essas riquezas,

aprimorando assim a civilização.

A Psicanálise mostra também os mecanismos mentais ocorridos no processo de civilização,

tendo como patamar primordial a supremacia do princípio da realidade sobre o princípio do

prazer. Logo, para se formar qualquer grande civilização é necessária a renúncia do prazer

individualista dos seus integrantes em prol de um bem comum. No livro Os sentidos da paixão,

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há um artigo chamado “A Psicanálise e o domínio das paixões”, de Maria Rita Kehl, que mostra

como se forma a civilização a partir de uma leitura psicanalítica das paixões. No sentido de

ilustrarmos o processo civilizatório, citaremos alguns trechos relevantes nesta obra que resumem

a teoria freudiana sobre o assunto:

/.../ a partir de uma renúncia, o homem funda a civilização, estabelecendo, pela primeira vez, uma relação de domínio e apropriação de uma força natural, em troca de abandono de um prazer aparentado com os prazeres sexuais. (1987: 472)

/.../ um dos pactos fundamentais de toda forma de convivência social dita civilizada é aquela que propõe a repressão de grande parte da agressividade em troca das vantagens da convivência (1987: 474)

A renúncia parte não da negação do desejo, mas do contato com ele e da constatação da impossibilidade de sua realização plena. É a alegria de se estar no mundo e de se pertencer à sociedade humana, aliada à liberdade que se obtém renunciando-se ao que não pode obter satisfação, que possibilita a melhor sublimação, aquela que não opera para negar ou destruir as paixões, mas para lhes dar alcance ilimitado no terreno da criação simbólica /.../ A sublimação é, portanto, incompatível com o narcisismo/.../ (1987: 482)

Trocar o prazer infantil da descarga imediata das pulsões pelo prazer das regras de convivência representa, por um lado, uma perspectiva de evolução psíquica e social: a saída da infância, a admissão da existência, da autonomia e dos direitos do outro; a introjeção de alguma lei e a possibilidade de algum prazer numa relação onde o outro não é simplesmente um objeto de descarga das minhas pulsões, mas tem existência própria (1987:487)

Vimos, portanto, que é necessário nos libertarmos do nosso egocentrismo e percebermos que

vivemos em sociedade, logo, precisamos ceder em prol de um futuro mais justo para todos. Outra

informação importante é que o prazer secundário, entendido como aquele permitido pela

sociedade, supridor da impossibilidade da verdadeira satisfação, tal qual entende o nosso

inconsciente, a longo prazo representa a verdadeira humanização: a capacidade de superar de

uma vez por todas os mecanismos que precisamos reprimir: “A longo prazo, a instauração de

normas relativamente corteses de convívio representa uma espécie de passo da nossa civilização

para longe da condição animal. (1987: 495).

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A civilização, quando se instaurar de maneira plena, configurando os ideais da Revolução

Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade, representará a verdadeira humanização dos

homens, a consciência dos direitos e deveres e a certeza de que o mundo não pode girar em torno

de seus impulsos. Como se pode ler em O mal-estar da civilização, Freud acredita que a

observação dos astros, desde a Antigüidade, proporcionou ao homem uma compulsão pela

ordem, pelo equilíbrio e apesar de sua tendência inata para o descuido, ele crê também que há

uma tendência humana para a ordem, seguindo as grandes regularidades astronômicas.

Entretanto, para que haja uma regularidade equilibrada, sem hegemonias, é necessário que haja

sublimação, como o pai da Psicanálise afirma nestes trechos:

A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato dos membros da comunidade serestringirem em suas possibilidades de satisfação, ao passo que o indivíduo desconhece tais restrições. A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo/.../ O resultado final seria um estatuto legal para o qual todos –exceto os incapazes de ingressar em uma comunidade- contribuíram com um sacrifício de seus instintos, que não deixa ninguém – novamente com a mesma exceção – à mercê da força bruta. (2002: 49).

A sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural: é ela que torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas o desempenho de um papel tão importante na vida civilizada. (2002: 52)

Como vimos, para a realização de uma civilização tal como foi exposta até aqui, é imperioso

que ocorra a sublimação dos instintos dos membros desta civilização. Freud chama de

substituição do poder do indivíduo, movido pelo princípio do prazer, pelo poder de um grupo,

movido desta vez pelo princípio da realidade. Desde que nascemos, o princípio do prazer nos

acompanha, buscando tudo aquilo que nos proporciona prazer e que evita a dor, porém, este

mecanismo precisa ser controlado pelo princípio da realidade, adequando os nossos desejos às

possibilidades sociais, tendo em vista os objetivos do grupo e não exclusivamente do indivíduo.

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Na verdade, este é um processo que provavelmente levará muitos anos para se concretizar da

maneira idealizada e, ao contrário do que muitos pensam, não se trata de um retorno aos

parâmetros pré-modernos, tendo em vista a natureza do que foi proposto aqui. Entretanto,

representa um passo decisivo para que saiamos deste labirinto que se tornou a Pós-modernidade,

em que reina o individualismo e a supremacia do Eu. É utópico, naturalmente, este projeto, mas

precisamos de utopia para as grandes transformações, como constatamos. Não se pode mais viver

esta época de maneira passiva, pois a sociedade do conhecimento, se não buscarmos saídas, nos

levará para uma tendência destrutiva, cada vez mais materialista, egocêntrica, excludente. A saída

é o coletivo, o “nós”, no lugar do “eu”. Assim, seremos humanos e não simples homens perdidos

da Pós-modernidade.

Zygmunt Bauman, no livro Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, disserta

sobre os preceitos civilizatórios discutidos por Freud e retoma o princípio que fundamentaria uma

sociedade evoluída qualitativamente: “A invocação de “amar o próximo como a si mesmo” diz

Freud (em O mal-estar da civilização), é um dos preceitos fundamentais da vida civilizada. É

também o que mais contraria o tipo de razão que a civilização promove: a razão do interesse

próprio e da busca da felicidade” (2004: 97). Logo, na concepção freudiana, assim como na

ratificação de Bauman, o processo civilizatório, acima de tudo, precisa de um principal preceito:

o amor ao semelhante. É utópico e complexo amarmos todos os seres humanos, mas, segundo a

visão de Bauman, se assim fosse, esse fato representaria um ato decisivo na evolução humana:

Aceitar esse preceito é um ato de fé; um ato decisivo, pelo qual o ser humano rompe a couraça dos impulsos, ímpetos e predileções “naturais”, assume uma posição que se afasta da natureza, que é contrário a esta, e se torna o ser “não-natural” que, diferentemente das feras /.../, os seres humanos são.

Aceitar o preceito do amor ao próximo é o ato de origem da humanidade. Todas as outras rotinas da coabitação humana, assim como suas ordens pré-estabelecidas ou retrospectivamente descobertas, são apenas uma lista (sempre incompleta) de notas de rodapé a este respeito. Se ele fosse ignorado ou abandonado, não haveria ninguém para fazer essa lista ou refletir sobre a sua incompletude.

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Amar o próximo pode exigir um salto de fé. O resultado, porém, é o ato fundador da humanidade. Também é a passagem decisiva do instinto de sobrevivência para a moralidade./.../ Com esse ingrediente, a sobrevivência de um ser humano se torna a sobrevivência da humanidade no humano. (2004: 98)

O homem, para ter a especificidade do ser humano, precisa amar, não de uma maneira

egocêntrica, como freqüentemente o tem feito, buscando nas pessoas satisfação para o seu

próprio ego, mas o amor sobre o qual Bauman trata nesses trechos reveladores; o amor fraternal,

que nos permitirá sermos uma humanidade melhor. Isso não significa que não haverá mais

diferenças, estas ainda existirão, mas haverá respeito às diferenças, respeito ao outro,

independentemente de sua raça ou situação financeira. O processo civilizatório, ao qual Freud se

refere, não deve ser estipulado por imposição e desfavorecimento de classes, mas movido por

este sentimento de fraternidade, de respeito a cada individualidade deste planeta. Amar ao

próximo como a si mesmo é respeitar o outro, como toda a sua singularidade, assim como o

indivíduo se respeita e se julga digno de valor, como afirma Bauman:

Eu sou importante e o que penso e digo também é. Não sou uma cifra, facilmente substituída e descartada. Eu “faço diferença” para outros além de mim/.../ O mundo à minha volta seria mais pobre, menos interessante e promissor se eu subitamente deixasse de existir ou fosse para oturo lugar.

Se é isso que nos torna objetos legítimos e adequados de amor-próprio, então a exortação a “ amar o próximo como a si mesmo”/.../ evoca o desejo do próximo de ter reconhecida, admitida e confirmada a sua dignidade de portar um valor singular, insubstituível e não-descartável/.../ Amar o próximo como amamos a nós mesmos significaria então respeitar a singularidade de cada um- o valor de nossas diferenças, que enriquecem o mundo que habitamos em conjunto e assim o tornam um lugar mais fascinante a agradável/.../ (2004:101)

Pode-se concluir, a partir dessas conclusões de Bauman, estudidoso das tendências pós-

modernas, que seus desafios podem ser superados se utilizarmos o amor como única saída e meta

em detrimento do valor do mercado. É utópico acreditar nessa possibildade, de uma sociedade

justa, solidária, respeitosa e amável, mas a utopia, como vimos, não pode ser um sonho

estagnado, mas um projeto pelo qual lutaremos e faremos a nossa parte.

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Ernest Bloch, no artigo “O Homem como Possibilidade”, publicado em 1966, afirma que

acredita nas utopias e no homem enquanto realizador de grandes idéias e projetos: “Possibilidade

não é palavrório. É um conceito, que se pode determinar exatamente: um condicionamento

parcial. O mundo ainda não está inteiramente determinado. Ainda há possibilidades deixadas

abertas, como o tempo de amanhã.”(1966:25). Em uma visão otimista de construção de uma

realidade melhor, Bloch disserta sobre a necessidade de vislumbrarmos e projetarmos novas

possibilidades pela frente, como um projeto de realidade:

Acontece que muitos dos castelos de hoje, transformam-se amanhã em palácios e cidades ou mesmo em sociedades. Esse fato possibilita a observação, até a constatação de que nada de grande surge na história sem ter sido primeiro esboçado, para depois da devida racionalização ser então planejado. (1966: 16)

A Literatura, na concepção que defenderemos nessa pesquisa é forma eficaz de se repensar a

sociedade, pois através de um mundo plurissignificante e multissignificado, podem-se criar

hipóteses de reflexão, de maneira artística e utópica. Portanto, cremos que a Literatura seja uma

das respostas ou caminhos possíveis para o resgate da “humanidade” nos homens, por se tratar de

uma experiência única para quem a vivencia. No próximo capítulo, trataremos sobre a essência

do texto literário em uma visão ecocrítica, dando ênfase a esse papel salvador da Literatura,

enquanto arte da palavra.

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2 Literatura: uma energia inesgotável

Neste capítulo, através da discussão de especificidades literárias, e sua ligação com a

ecologia, refletiremos sobre o objeto artístico, ligado às potencialidades do planeta Terra,

enquanto energia. Discutiremos o significado do termo ecologia, suas vertentes de estudo e suas

possíveis ligações com a obra literária, baseando-nos principalmente nas explanações de Félix

Guattari. Sobre a potencialidade energética da obra literária, recorreremos a William Rueckert.

Comecemos, no entanto, a lembrar com Manuel Antônio de Castro que, nas suas origens, a

ecologia tinha uma acepção mais ampla que as que se divulgam hoje, pois dizia respeito à

concepção do habitar humano.

2.1 Literatura e Ecologia

Ecologia se constitui de dois termos gregos. 1o Oikos, que significa: habitação, família, raça; este, em grego, se forma do verbo oikizein, que significa: instalar, construir, fundar. 2a Logia, que se formou do verbo leguein: dizer, anunciar, ler, ordenar. A este verbo se prende também a palavra logos, (daí logia), que significa: palavra, razão, discurso. Percorrendo e confrontando os diferentes significados possíveis dos dois termos gregos, notamos que em nenhum momento aparece a palavra natureza. Muito pelo contrário, se há um significado central no termo ecologia, este é HABITAÇÃO. (1992: 14).

A discussão sobre o relacionamento entre literatura e ecologia não pode ser feita

corretamente, se de início não discutirmos o que é a proposta ecológica, tão divulgada,

principalmente nos dias atuais, em que a ameaça do efeito estufa e do aquecimento global nos

assola. A Ecologia, conforme esclarece Manuel Antônio de Castro é o estudo da habitação

humana e consequentemente de seus constituintes, da relação do homem consigo, com os outros

e com as coisas. Trata-se da preservação de sua habitação, implicando assim o cuidado com tudo

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aquilo que a constitui; logo, os animais, os vegetais, o meio ambiente, e finalmente, os próprios

homens.

Se objetivarmos uma habitação segura e pacífica, precisamos ter cautela com as relações

sociais em que estamos inseridos e as condições de atuação que as mesmas imprimem a diversas

pessoas. O cuidado com o habitat é também o cuidado com os seres que nele vivem e com as

relações injustas que nele se estabelecem. Reconhecer-se no outro é fundamental para pensarmos

ecologicamente, pois a ecologia representa o nosso lado humano de ser. Félix Guattari, no livro

As três ecologias (2005), propõe um novo paradigma ético-estético para transformarmos o nosso

modo de agir no planeta: a ecosofia. Nesta nova proposta, se intercruzam três registros

ecológicos: mental, social e ambiental; objetivando um resgate das subjetividades, altamente

prejudicadas pela presença massiva da mídia e da globalização:

A recusa a olhar de frente as degradações destes três domínios, tal como isto é alimentado pela mídia, confina num empreendimento de infantilização da opinião e de neutralização destrutiva da democracia. Para se desintoxicar do discurso sedativo que as televisões em particular destilam, conviria, daqui para frente, apreender o mundo através dos três vasos comunicantes que constituem nossos três pontos de vista ecológicos./.../

Não podemos nos deixar guiar cegamente pelos tecnocratas dos aparelhos de Estado para controlar as evoluções e conjurar os riscos nesses domínios, regidos no essencial pelos princípios da economia de lucro. Certamente seria absurdo querer voltar atrás para tentar reconstituir as antigas maneiras de viver. Jamais o trabalho humano ou o hábitat voltarão a ser o que eram há poucas décadas, depois das revoluções informáticas, robóticas, depois do desenvolvimento do gênio genético e depois da mundialização do conjunto dos mercados.(2005:24-5)

Nota-se que as reflexões de Guattari têm extrema pertinência em relação ao que discutíamos

no capítulo anterior, principalmente no que diz respeito ao “poder sedativo da mídia”, que em sua

visão, se apresenta como forte impedimento às propostas ecológicas, pois impede o acesso às

nossas autênticas subjetividades. Pode-se constatar que sua proposta ecosófica de resgate das

subjetividades não se trata de um retorno ao tradicional, mas da busca de um paradigma

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multívoco, de respeito à alteridade, pois, como dito, a globalização gera indivíduos de pobres

subjetividades. Precisamos urgentemente de uma valorização da interioridade, de indivíduos que

se conheçam mais, que sejam mais inteiros, mais solidários e que se entendam fazendo parte de

uma estrutura maior, o universo. Percebe-se hoje, como ressaltado por Guattari, uma idiotização,

em que a mídia manipula até mesmo as subjetividades, tornando-as iguais, a serviço do consumo,

apagando a idéia de que vivemos em um planeta e se não cuidarmos dele e de seus componentes,

não haverá mais humanidade.

Dentro deste contexto, percebe-se que a preocupação de Guattari vai além do meio ambiente

natural, pois se volta para as relações sociais e as suas problemáticas. O seu discurso, muitas

vezes, trata de uma crítica à supremacia humana e sua onipotência, que esmaga sutilmente todos

os outros seres, inclusive humanos considerados à margem do sistema, em decorrência da

ideologia capitalista:

Não somente as espécies desapareceram, mas também as frases, os gestos de solidariedade humana. Tudo é feito no sentido de esmagar sob uma camada de silêncio as lutas de emancipação das mulheres e dos novos proletários que constituem os desempregados, os “marginalizados”, os imigrados. (2005: 27)

Não havendo solidariedade, portanto, não haverá uma atitude ecológica harmônica, de

preservação, de cuidado, de proteção. Os excluídos socialmente representam um resultado de

atitudes extremamente antiecológicas, em que o homem, com sua onipotência, em um sistema de

alta competividade, não se importa com o outro, anestesiado pelas ferramentas midiáticas.

Essa vertente de seu estudo se encontra principalmente na ecologia social, sobre a qual

recolhemos alguns trechos em seu livro:

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A ecologia social deverá trabalhar na reconstrução das relações humanas em todos os níveis, do socius. Ela jamais deverá perder de vista que o poder capitalista se deslocou, se desterritorializou, ao mesmo tempo em extensão – ampliando seu domínio sobre o conjunto da vida social, econômica e cultural do planeta – e em intenção – infiltrando-se no seio dos mais inconscientes estratos subjetivos. (2005: 33)

Parece-me essencial que se organizem novas práticas micropolíticas e microssociais, novas solidariedades, uma nova suavidade juntamente com as novas práticas estéticas e novas práticas analíticas das formações do inconsciente. Parece-me que essa é a única via possível para que as práticas sociais e políticas saiam dessa situação, quero dizer, para que elas trabalhem para a humanidade e não mais para um simples reequilíbrio permanente do Universo das semióticas capitalísticas. (2005:35)

O sistema capitalista transbordou do âmbito da política e cada vez mais direciona

comportamentos, dita atitudes e formula filosofias. Logo, devemos ter uma cautela dobrada para

não internalizarmos essas idéias e aceitá-las como se fossem nossas, sem termos feito antes uma

análise cuidadosa do fundamento das mesmas. É interessante, em uma visão ecológica, estarmos

atentos a essas questões, pois até mesmo o equilíbrio do planeta nessa visão capitalista está a

serviço do lucro e do consumo. Há uma ideologia do presente, do imediatismo, em que as pessoas

só estão preocupadas com a resposta imediata para seus problemas materiais, excluindo assim

uma proposta de um futuro melhor, mais seguro, mais pacífico, mais equilibrado de um ponto de

vista ecológico. Esta harmonia ecológica proposta só é possível através de nações com

distribuição de renda mais justa, com menores diferenças de qualidade de vida, com dignidade

para todos, respeitando-se os direitos humanos.

Guattari afirma que “Mais do que nunca a natureza não pode ser separada da cultura e

precisamos aprender a pensar “transversalmente” as interações entre ecossistemas, mecanosfera e

Universos de referências sociais e individuais” (2005: 25). Então, nesse contexto de preservação

de nossa habitação, natureza e cultura precisam ser pensadas juntas, e no acervo cultural dos

povos está a Literatura, fonte rica de discussão e de possibilidades. Na reinvenção dos estudos

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literários e na fruição de suas diversas facetas está uma das saídas apontadas por Guattari, em sua

preocupada visão de resgate de subjetividades, perdidas pelo sistema:

/.../ trata-se de se reapropriar de Universos de valor no seio dos quais processos de singularização poderão reencontrar consistência. Novas práticas sociais, novas práticas estéticas, novas práticas de si na relação com o outro, com o estrangeiro, como o estranho: todo um programa que parecerá bem distante das urgências do momento! E, no entanto, é exatamente na articulação: da subjetividade em estado nascente, do socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época. (2005: 55)

Nessas novas práticas estéticas incluímos obras literárias inovadoras, que busquem perceber o

outro, o estranho, o excluído, em todo o seu conjunto, e não de uma maneira condicionada pelo

sistema, pois a Literatura traz em si uma capacidade infinita de difundir novos olhares sobre o

mundo.

Uma visão particularmente interessante à nossa discussão é a de William Rueckert, inventor

do termo ecocrítica. Usaremos a tradução de Marcela Leite Medina para seu artigo “Literature

and ecology: na experiment in Ecocriticism”, publicado em 1996, no livro The Ecocriticism

reader landmarks in literary ecology. O autor considera a obra literária fonte de uma energia

inesgotável. Parte da visão ecológica de que tudo está ligado a tudo, para fazer aproximações

entre Literatura e Meio Ambiente: “Esta necessidade de ver até mesmo as menores e mais

remotas partes em relação a um conjunto grande é a ação intelectual central exigida pela ecologia

e em uma visão ecológica” (1996: 106). Ressaltamos que esta dimensão literária é esquecida ou

pouco estudada, Literatura como vida, geradora de energia vital, pois assim, como as outras

produções culturais, está ligada ao Planeta Terra, como um todo.

Ele aproxima a obra literária a uma fonte inesgotável de energia armazenada, semelhante ao

Sol, um caminho de energia que sustenta a vida e a humanidade. Respalda-se no sistema de fluxo

de energia do planeta, para explicar a circulação desta energia:

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O “fluxo de energia sem retorno” é um fenômeno universal da natureza, onde, de acordo com as leis de termodinâmica, a energia nunca é criada ou destruída; é apenas transformada, degradada ou dispersada, fluindo sempre de uma forma concentrada para uma dispersa (entrópica). Um dos conceitos básicos de ecologia é o de que existe um fluxo de energia sem retorno em um sistema mas que o material circula ou é reciclado e pode ser usado repetidamente. (1996: 107-8)

Assim, ele compara esse fluxo de energia que não tem fim ao percurso de uma obra literária,

de sua criação a suas várias recepções. A Literatura, nesta visão, é energia, energia que deve ser

apropriada e novamente reutilizada por vários segmentos sociais:

Na literatura, toda energia vem da imaginação criativa. Ela não vem da linguagem, pois esta é apenas um (dos muitos) veículos para o armazenamento da energia criativa./.../ Ela é usada contínuas vezes como um recurso renovável pelo mesmo indivíduo. Diferente da natureza, que tem uma única fonte restante de energia, a comunidade humana parece ter muitos sóis, recursos renováveis para expor o próprio Sol. A literatura em geral e trabalhos individuais em particular estão entre muitos sóis humanos. /.../

A leitura é claramente uma transferência de energia já que a energia armazenada na obra literária é liberada e deságua nos centros da linguagem e na imaginação criativa dos leitores. (1996: 108)

Podemos simplificar a teoria do estudioso americano com o seguinte esquema:

Centros de linguagem

e imaginação criativa do

autor

Centros de linguagem e imaginação criativa do autor

Obra literária -energia concentrada

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Logo, podemos ter uma visão da obra literária como concentradora de energia que deve ser

dispersa, para ser novamente reciclada em outras energias, como produções artísticas,

acadêmicas, projetos, atitudes que contribuam para o planeta. A questão que colocamos para

nossa reflexão é: se essa energia não é estacionável, para onde ela está sendo canalizada? Ela

deve ser isolada para uma pequena elite apreciar à sua maneira ou devemos realmente ter uma

visão diferenciada da Literatura, como disseminadora de saberes? A energia literária está sendo

utilizada para o bem comum da humanidade?

Segundo William Ruerckert, discutir Literatura é “agrupar centros de energia em uma matriz

de energia poética e verbal”. (1996: 109) Logo, a sala de aula é o lugar de dessacralizar o texto,

no sentido de disseminá-lo e não aprisioná-lo em correntes prontas, como transparece em sua

afirmação: “Os maiores professores (os melhores ecologistas de sala de aula) são os que podem

gerar e liberar a maior quantidade de energia criativa coletada; são os que compreendem que a

sala de aula é uma comunidade, um campo verdadeiramente interativo”. (1996: 109)

Segundo essa visão, diante da potencialidade exposta da Literatura, pode-se dizer que é

importante que se torne acessível o texto literário ao leitor. Muitos estudiosos apresentam uma

atitude contrária, em que se fecham todas as possibilidades de leitura de um texto e se aprisiona a

Literatura em uma vertente de análise.

De acordo com Rildo Cosson, a atitude de sacralizar a Literatura, impossibiltando a sua

leitura criativa, destrói a riqueza literária:

/.../ essa atitude sacralizadora da literatura lhe faz mais mal do que bem. Mantida em adoração, a literatura torna-se inacessível e distante do leitor, terminando por lhe ser totalmente estranha. Esse é o caminho mais seguro para destruir a riqueza literária. A análise literária, ao contrário, toma a literatura como um processo de comunicação, uma leitura que demanda respostas do leitor, que o convida a penetrar na obra de diferentes maneiras, a explorá-la sob os mais variados aspectos. É só quando esse intenso processo de interação se efetiva que se pode verdadeiramente falar em leitura literária. (2006: 29)

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É na troca de pensamentos e idéias sobre a obra literária que essa toma seu maior valor, que

se consagra enquanto fonte de energia. As idéias expostas por Cosson, em seu livro Letramento

literário, respaldam a concepção ecológica do texto literário, visto como espaço fundamental de

encontros de individualidades. Ler um texto literário é ter um encontro profundo com o outro,

com os outros que estão a sua volta e consigo, conforme a sua afirmação:

Na leitura e na escritura do texto literário encontramos o senso de nós mesmos e da comunidade a que pertencemos. A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada. É mais que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade. No exercício da literatura, podemos ser outros, podemos viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos. É por isso que interiorizamos com mais intensidade as verdades dadas pela poesia e pela ficção./.../ (2006: 17)

2.2 A essência vital da Literatura

A Literatura, como vemos, no decorrer deste capítulo, é fundamental para uma vida repleta

de grandes reflexões. Segundo Antônio Cândido, no artigo “O direito à Literatura”, esta é

fundamental universalmente, pois tem um papel humanizador único, que só pode ser usufruído

através dessa arte:

A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. (1995: s/p)

Libertando-nos do caos, a Literatura pode reorganizar questões que, soltas, estavam perdidas

no nosso inconsciente e pode dar voz a imagens que povoam o nosso imaginário. Faz parte da

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nossa condição imanentemente imaginária criar símbolos e é imprescindível que esses símbolos,

enquanto fontes de energia, estejam disponíveis, pois o homem precisa deles.

No livro A utopia da palavra, Severino Antônio afirma que a arte é essencial para garantir a

nossa existência plena, pois somos seres que precisamos de símbolos, da imagem simbólica:

Se a existência material é possível para reprodução das moléculas, se a existência biológica é possível pela reprodução das células, a existência humana é possível pela reprodução simbólica: pela linguagem e pelo pensamento simbólico, que são, ao mesmo tempo, produto e produção de cultura. (2002: 25)

O símbolo é a própria história do universo, e sempre presente no texto literário, fala para

nossos inconscientes. Torna-se a convivência com o texto literário imprescindível para o ser

humano: “A convivência com o texto literário converge para a direção de se criar uma nova

razão, em unidade (dialética) com o sensível e com o imaginário, nova razão que é uma das

necessidades,/,,,/ para se gestar a vida futura” (2002: 93).

Respaldamo-nos ainda sobre a pertinência e a imprescindibilidade de se disseminar e

divulgar o texto literário no livro Esculpir o tempo (1998), de Andrei Tarkovski, no qual ele

mostra a sua inquietação em busca da arte e de tantas possibilidades que o cinema pode trazer

como criação artística. Durante essa busca, pode-se observar a concepção de arte desse talentoso

artista, que não se refere somente ao cinema, mas à arte em geral. Ele acredita que a arte, de

alguma forma, liga o homem a sua atividade vital, sendo um dos passos que aproxima o homem

da compreensão plena do significado da sua existência, como se observa na seguinte afirmação:

A criação artística, afinal, não está sujeita a leis absolutas e válidas para todas as épocas; uma vez que está ligada ao objetivo mais geral do mundo, ela tem um número infinito de facetas e de vínculos que ligam o homem a sua atividade vital; e, mesmo que seja interminável o caminho que leva ao conhecimento, nenhum dos passos que aproximam o homem de uma compreensão plena do significado da sua existência pode ser desprezado como pequeno demais. (1998: 09)

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Através destas palavras, podemos reafirmar que as pessoas precisam e têm o direito de

vivenciar a arte, mas para tal, necessita-se que se oportunize acesso a ela. É vital para o homem,

assim como beber água e comer, vivenciar a arte e suas manifestações, pois este tipo de atividade

pode aproximá-lo de uma consciência do significado da existência, busca de todo homem,

enquanto criatura. A Literatura, nesse sentido, é o Sol, é geradora de energia e de acessos ao

significado da existência.

É interessante observar ainda que para o cineasta, o conhecimento advindo da arte é muito

mais amplo do que se costuma geralmente rotular como conhecimento de uma maneira geral. Há,

portanto, uma distinção entre conhecimento científico e estético: a verdade da ciência é

altamente objetiva e substituível, enquanto a arte é uma experiência subjetiva e uma verdade

insubstituível. A arte não se dirige às pessoas com argumentos lógicos, como o sistema

científico, mas, se dirige ao homem na intenção de criar uma impressão, um impacto emocional

(1998: 39-40). A arte, portanto, atua no homem, pelo seu emocional, por isso, trata-se de uma

energia de extremo poder, por acessar compartimentos do nosso inconscinete pouco acessados.

A arte, segundo Tarkovski, não ensina nada a ninguém, “/.../ mas tem a capacidade, através

do impacto e da catarse, de tornar a alma humana receptiva ao bem” (1998: 55). Retoma no

homem a humanidade, às vezes esquecida ou apagada pelo sistema e só o faz por atingir a

emoção.

Na conclusão do livro, Tarkovski destaca que cada vez que delegamos aos outros a solução

dos nossos problemas, o abismo entre o material e o espiritual cresce; e, a nossa motivação

individual deveria estar em harmonia com o movimento social, para a solução dos nossos

conflitos. Assim, um dos maiores erros do homem é acreditar que não participa da realização do

seu destino, não fazendo relação entre seus atos e a sua consciência. Então, a harmonia do

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mundo, ao seu ver, seria conseguida com a reintegração do sentimento de responsabilidade

individual:

O homem verdadeiramente livre não pode sê-lo num sentido egoísta, nem a liberdade individual pode ser o resultado do esforço comum. Nosso futuro não depende de ninguém, a não ser de nós mesmos/.../ Recusamo-nos a admitir o fato simples de que “tudo está ligado neste mundo”; nada existe de fortuito, uma vez que somos dotados de livre-arbítrio e do direito de escolher entre o bem e o mal. (1998: 284)

Neste ponto, a preocupação advinda dos estudos ecológicos é relevante e primordial, pois

recupera a responsabilidade individual dos seres. O resgate das subjetividades, o esclarecimento

das massas, a rearticulação do homem com o seu habitat e o acesso à energia concentrada em um

texto literário devem fazer parte deste processo em contraponto a um mundo em que o

consumismo capitalista impera.

A arte é fundamental neste processo de rearmonização do Universo, pois pode retratar a

tentativa do homem de alcançar um equilíbrio, a sua ânsia de lutar por um mundo melhor, como

evidencia Tarkovski: “A arte afirma tudo o que existe de melhor no homem - a esperança, a fé, o

amor, a beleza, a prece... Aquilo com que sonha, as coisas pelas quais espera...” (1998: 286).

Portanto, a arte desempenha um importante papel neste contexto, enquanto busca de um

equilíbrio humanizador, quando o homem recupera a sua responsabilidade individual e se

enxerga como potência realizadora de seus ensejos:

Nesse contexto, perece-me que a função da arte seja a de exprimir a liberdade absoluta do potencial espiritual do homem. Creio que a arte foi sempre a arma de que o homem dispôs para enfrentar as coisas materiais que ameaçavam devorar-lhe o espírito./.../A arte encarnou um ideal; foi um exemplo de perfeito equilíbrio entre princípios éticos e materiais, uma comprovação do fato de que esse equilíbrio não é apenas um mito que só existe nos domínios da ideologia, mas algo que pode concretizar-se nas dimensões do mundo dos fenômenos. A arte expressou a necessidade de harmonia do homem e sua presteza para lutar contra si mesmo, no interior de sua própria personalidade, numa tentativa de alcançar o equilíbrio pelo qual sempre ansiou. (1998: 285)

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Nesta busca de equilíbrio que a arte representa, verifica-se a sua imprescindibilidade na vida

humana, porque por sua essência, o ser humano busca o equilíbrio.

No próximo item, trataremos de uma forma de arte muito discutida por teóricos diversos e

muito também invalidada por tantos outros. De acordo com nossa proposta de pesquisa,

julgamos essencial tratar da arte engajada, já que as obras literárias de Georgina Martins que

serão estudadas, situam-se nesta modalidade literária, entoando, a nosso ver, todas as razões que

fazem com que uma obra de arte seja fundamental para os homens.

2.3 Literatura e seu papel redentor – o engajamento

Nós, humanos e tão matéria, tão cósmicos. Nós, compostos de carne, osso, energia e sentimentos que contêm os mesmíssimos elementos físico-químicos que formam o Universo inteiro. Nós, que perseguimos a explicação de nossa origem, que estudamos a formação do mundo, que temos a obsessão de conhecimento. Nós, seres humanos com autoconsciência, carregados de memória ancestral, atômica, animal, vegetal e mineral. Nós, que nos diferenciamos dos moluscos, das abelhas e dos cães não por sermos feitos de outra matéria -não somos!-, nem por desenvolvermos técnicas - outros animais também têm suas habilidades!- mas, por buscarmos significados, por construirmos culturas, por ritualizarmos a morte, por desejarmos o Absoluto. Nós, os seres mais complexos da criação conhecida até agora, somos seres éticos: temos idéia de pertencimento (sabemos que fazemos parte da sociedade humana) e sentimo-nos, de alguma maneira, responsáveis por um destino comum das gentes. (ALENCAR, Chico. 2002: 18)

Crê-se que a noção de ética, na concepção exposta por Chico Alencar, no livro Direitos mais

humanos é um dos fatores que permitem que surja a Literatura engajada, por ser uma forma de

arte que preconiza politicamente a idéia de pertencimento a uma comunidade maior. Segundo

Benoit Denis, em seu livro Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre, o escritor engajado

pode ser definido da seguinte maneira:

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/.../ o escritor engajado é aquele que assumiu, explicitamente, uma série de compomissos com relação à coletividade, que ligou-se de alguma forma a ela por uma promessa e que joga nessa partida a sua credibilidade e sua reputação./.../ Por outro lado, no sentido próprio, engajar-se significa também tomar uma direção. Há assim no engajamento a idéia central de uma escolha que é preciso fazer. (2002:31-2)

O escritor da arte engajada não concebe que a Literatura não esteja extremamente atrelada à

responsabilidade social, portanto, deve ela discutir os problemas de seu tempo, sem perder sua

imanente natureza artística. Na citação a seguir, Denis remete ao conceito de ética, presente na

arte engajada:

O escritor engajado não acredita que a obra literária remeta apenas a ela mesma e que encontre nessa auto-suficiência a sua justificação última. Ao contrário, ele a pensa atravessada por um projeto de natureza ética, que comporta uma certa visão do homem e do mundo, e ele concebe, a partir disso, a literatura como uma iniciativa que se anuncia a se define pelos fins que persegue no mundo. (2002: 35)

Mas, como surge nos estudos literários, a terminologia arte engajada? Segundo o estudioso

citado, surge a partir do pós-guerra, associada à figura de Jean-Paul Sartre, fato este que até os

dias de hoje limita a arte engajada ao modelo sartreano. Nas conclusões de Denis sobre esta arte,

parece que é bastante nítida a sua visão, de arte engajada enquanto Literatura que promove

ligações em seu fazer literário com a sociedade. A seguir, Denis relata as duas acepções a que,

freqüentemente, o conceito de Literatura engajada vem sendo ligado:

A noção de literatura engajada, assim como a de engajamento, é com efeito suscetível de duas acepções que, no uso, são raramente distinguidas: a primeira tende a considerar a literatura engajada como um fenômeno historicamente situado, que o associam, geralmente à figura de Jean-Paul Sartre e à emergência no imediato pós-guerra, de uma literatura passionalmente ocupada com questões políticas e sociais, e desejosa de participar da edificação do mundo novo anunciado, desde 1917, pela Revolução Russa; a segunda acepção propõe do engajamento uma leitura mais ampla e flexível e acolhe sob a sua bandeira uma série de escritores, que de Voltaire e Hugo a Zola, Péguy, Malraux ou Camus, preocupam-se com a vida e a organização da Cidade, fizeram-se defensores de valores universais, tais como a justiça e a liberdade, e, por causa disso, correram freqüentemente o risco de se oporem pela escritura aos poderes constituídos. (2002: 17)

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O conceito de arte engajada, que usamos aqui nesta tese, preconizará a segunda acepção

propagada por Benoit Denis, em que valores universais são defendidos e ideais voltados para a

organização das cidades são discutidos. Consideramos esta arte como fonte de energia capaz de

provocar reflexões e mudanças de paradigmas sociais à medida que alerta para o convívio social

equilibrado, ecologicamente harmônico. Denis conceitua a arte engajada como uma arte de

participação, em oposição a uma literatura de abstenção ou do intimismo (2002:38). Citando

Barthes, o autor em destaque afirma que para o teórico, a questão do engajamento ultrapassa a

posição de Sartre e seus seguidores, pois essa questão se estende ao conjunto da história literária.

Adquiriu um valor “trans-histórico” e transformou-se em um viés literário suscetível se ser

aplicado a outros momentos ou outros contextos da história literária. A literatura engajada

“figura como um dos termos de uma alternativa definidora das relações possíveis entre literatura

e sociedade (realismo político e arte pela arte; moral do engajamento e purismo estético”

(2002:18-9). A questão colocada em pauta por Barthes e reavivada por Denis é uma eterna

discussão das várias correntes de estudiosos da Literatura: A arte se apagaria enquanto objeto

artístico à medida que se coloca a função de outro ideal? A arte não deveria funcionar

exclusivamente pela arte e não por outros ideais menores, como os problemas sociais? A pureza

estética não se perderia com tamanha preocupação política?

Na verdade, retornamos neste ponto à questão da sacralização da arte que, segundo a visão

que pretendemos defender, é mais prejudicial que benéfica à Literatura, como afirmamos acima,

em outro momento. Se, na visão ecológica, tudo está ligado a tudo, é muita presunção isolar a

arte de seus constituintes e fatores a ela conectados obrigatoriamente, diante deste

posicionamento. A sociedade, seus problemas, as questões políticas e os ideais do homem estão

ligados à Literatura, de maneira indissociável, pois nada no universo está isolado. Theodor

Adorno, em Notas de Literatura, no artigo “Engagement”, dilui o preconceito existente em

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relação à arte engajada, que pressupõe seja esta de menor valor artístico do que a arte

propriamente dita, que não deve estar a serviço de outras causas. Em seu modo de ver, a arte

nunca está dissociada de uma ideologia:

O distanciamento das obras para com a realidade empírica é antes ao mesmo tempo intermediado por esta... Ao oporem-se à empiria, as obras de arte estão a obedecer às forças dessa empiria/.../Ninguém senão Sartre reconheceu o relacionamento entre a autonomia da obra e um querer, que não é imprimido à obra, mas que é seu prórpio gestuis frente à realidade. “A obra de arte”, escreveu ele, “não tem objetivo algum, nisso concordamos com Kant. Ela é, porém, um objetivo” (1973: 66)

Mais adiante, Adorno afirma que “Mesmo na obra de arte mais sublimada, abriga-se um

dever ser de outro modo” (1973: 66), implicando que as ideologias, de forma mais ou menos

implícita, sempre estão presentes nas obras literárias, em desejo de mudança ou em um devaneio

poético. O verdadeiro engajamento, segundo ele, não aponta uma panfletagem política mas, na

sua própria essência e natureza literária, dilui possibilidades em plurissignificações. A arte não é

um mero texto objetivo, persuasivo ou informativo, mas um objeto estético e neste quesito reside

o seu grande diferencial de outras formas textuais politizadas: “Um engagement desse, mesmo

quando político, permanece politicamente multi-significativo, enquanto não se reduza à

propaganda/.../ (1973: 52). Neste sentido, prolongando essa discussão, Adorno distingue o

engajamento artístico de tendenciosismo, que não se enquadraria em um perfil artístico, por ter

objetivo unilateral, marcando que a ambiguidade é fator fundamental para o objeto artístico

engajado se afirmar como tal:

Teoricamente ter-se-ia que distinguir engajamento de tendenciosismo. A arte engajada no seu sentido conciso não intenta instituir medidas, atos, cerimônias... A inovação artística do engajamento, porém, frente ao veredicto tendencioso, torna o conteúdo em favor do qual o artista se engaja, plurissignificativo, ambíguo. (1973: 54)

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Depoimento relevante para entendermos essa aproximação de arte e realidade pode ser

retirado do artigo “Cidades fragmentadas e intelectuais partidos”, de Victor Hugo Adler Pereira,

publicado no livro Dialogando com culturas: questões de memória e de identidade. Neste artigo,

o autor relata uma entrevista de Paulo Lins, em que evidencia o seu fazer literário:

Em entrevista recente ao jornal Caros Amigos, Paulo Lins afirma: “ A realidade não cabe na literatura. Você não pode pegar a realidade e transformar em literatura, senão vira documento, reportagem. Se você contar a vida de cada personagem tal como ela é, no fim não vai. Então, tem coisas que estavam acontecendo na Cidade de Deus no momento em que eu estava vivendo ali na década de 60 e eu fazia colagem, pegava o astral e inventava, tem muito mais criação do que narrar tal como é. Eu estava a fim de fazer ficção. (2003: 203)

Nesta entrevista, Paulo Lins, o autor da obra Cidade de Deus, que resultou no filme dirigido

por Fernando Meireles, grande sucesso de bilheterias, retrata o processo criativo de uma obra

literária. Não é uma cópia da realidade, mas o trabalho artístico do escritor sobre uma história

real. É uma das tendências da Literatura de hoje esse aspecto realista das obras.

Ronaldo Lins, em A indiferença pós-moderna, afirma que a Literatura Pós-Moderna

brasileira está voltada também para a denúncia de vários problemas sociais. Repleta de

pessimismo e ausente de soluções, propõe caminhos através da própria denúncia, sem se

comprometer diretamente com essa missão, como o fizeram séculos atrás os românticos com

seus ideais, mas sem perder por isso, seu engajamento. Na citação abaixo, pode-se ler a respeito

da nova Literatura:

Um exame da literatura, em suas manifestações de importância, na atualidade dos novos escritores, ajuda a configurar o lema da negatividade como a verdade do momento. Em cada situação, os personagens concentram a idéia da violência e da impotência, como se houvéssemos criado um mundo acima das nossas capacidades de governá-lo. (2006: 72)

É interessante notar que, apesar de todo esse amargor presente nos textos literários da

atualidade, percebe-se um fio de esperança nessa tendência trágica, pois essa representação da

sociedade faz transparecer que acreditamos em mudanças, se assim não o fosse, não haveria toda

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a indignação que, implicitamente, muitos textos demonstram, preenchendo vazios em suas

colocações:

É uma curiosa forma de introduzir o problema do amor no contexto da literatura contemporânea.Que se insinue, apesar de tudo, no meio da vasta crise que nos assinala, fornece indícios de que, pelo menos como aspiração, a ausência de utopias no horizonte não elimina o desejo de preencher vazios e compensar frustrações. (2006: 230)

Uma característica particularmente interessante que insurge em grande parte de obras que

participam desta forma literária é fazer nascer do improvável, do bruto, do cruel, o lado humano

das coisas, fatos e pessoas, confrome cita Adorno: “Quase infalível é uma das características

dessa literatura, que ela, propositalmente ou não, deixa perceber-se que: mesmo nas chamadas

situações extremas, e justamente nelas, floresce o humano/.../ (1973: 65). Percebemos claramente

esta característica ao fazermos o estudo das obras de Georgina Martins, em que, sua preocupação

em fazer notar o humano na mais ínfima das criaturas, socialmente assim considerada, é aspecto

fundamental de composição de seus textos. É o valor humano das pessoas esquecido, soterrado

por meio de valores mercadológicos pré-determinados, que Georgina pretende desencantar e

fazer fato de análise e reflexão em sua literatura, sem abandonar a sua intencionalidade estética.

Logo, o fato de escrever Literatura hoje pode significar resistência ao sistema que

desumaniza e é indiferente ao outro, representando as expectativas do homem em busca de

equilíbrio. Neste contexto, cremos que a Literatura Infanto-Juvenil possa contribuir

substancialmente para driblar ou quem sabe reequilibrar os desafios advindos com a Pós-

Modernidade. Por isso, dedicamos o próximo capítulo a esta modalidade literária, que vem

ganhando cada vez mais espaço no cenário da cultura brasileira. Traçaremos um breve histórico

dessa modalidade no Brasil, levando em consideração o seu engajamento, a partir da

representação do excluído social em sua trajetória.

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3 Era uma vez ... o excluído social

3.1 Histórico do excluído social na Literatura Infanto-Juvenil

Tendo em vista a produção literária de Georgina Martins sobre a exclusão social,

dedicaremos este capítulo a falar sobre este tema em livros direcionados ao público infanto-

juvenil. Na história da Literatura Infanto-Juvenil brasileira, houve espaço para a representação de

todos os públicos? A exclusão social foi assunto contemplado? Quais autores se dedicaram a este

assunto? Como o tema foi abordado em suas formas de expressão? Enfim, discutiremos algumas

questões pertinentes ao histórico da exclusão social na Literatura Infanto-Juvenil no Brasil, não

ensejando com isso esgotar a discussão, mas iluminá-la.

Acreditamos que, para entendermos a história da exclusão na Literatura Infanto-juvenil, antes

de tudo, é importante nos reportarmos à história desta Literatura. Como surge a Literatura

infanto-juvenil no Brasil? Que fins a estimularam?

A Literatura destinada à infância no Brasil é algo extremamente novo, surge durante a

segunda metade do século XIX. Nesta época, em que houve forte popularização da escola, devido

a grandes transformações vivenciadas pela sociedade brasileira, havia a necessidade de se

educarem crianças e capacitá-las a ler. Escola e Literatura Infanto-Juvenil no Brasil, portanto,

têm suas raízes entrelaçadas fortemente, semelhante ao que ocorreu na Europa Ocidental, como

nos respalda Carmen Bravo-Villasante, em sua coleção História da Literatura Infantil Universal:

“Os abecedários e as cartilhas pedagógicas estão nas origens da literatura infantil, embora se

encontrem muito longe do ideal literário que hoje se considera mais adequado para a infância”.

(1977: 17)

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Diante deste contexto, pode-se afirmar que as ideologias da instituição escolar sempre

estiveram presentes nos livros destinados à infância, desde a sua propagação no Brasil. Esta

questão nos faz pensar a respeito das características extremamente moralizantes e pouco

preocupadas com a realidade psíquica deste novo ser.

Além disso, pode-se dizer que as ideologias dominantes sempre estiveram presentes no

ensino propagado nas escolas daquela época. Apesar da forte popularização do livro infantil,

devido à necessidade de modernização do Brasil, é notável que a exclusão já estivesse presente,

pois os livros, assim como a instituição escolar, eram direcionados a um público específico. E

quem tinha acesso à escola naquela época? Os filhos dos burgueses.

A indústria do livro, sempre ligada à escola, conseguiu obter respaldo econômico e público

consumidor desde o início. Marisa Lajolo, em seu texto Circulação e consumo do livro infantil

brasileiro: um percurso marcado, aborda esta estreita relação:

Escola e Literatura infantil constituem , pois, uma equação, onde a primeira, por ser uma instituição do Estado, enleia a segunda em práticas políticas e ideológicas favorecedoras das classes dominantes que tanto se servem do livro para a difusão de valores que lhe são caros como servem ao livro, na medida em que patrocinam sua adoção e incentivam seu consumo através de campanhas pela leitura.(LAJOLO: 1986, 45)

Lino Albergaria, pesquisador, veiculado às indústrias de livros, em Do folhetim à literatura

infantil: leitor, memória e identidade, afirma que essa relação deve ser discutida e pensada, pois

se torna essencial para entendermos o histórico da Literatura Infantil no Brasil:

/.../sua circulação desde o autor até o leitor, não consegue prescindir da escola. Continua forte a ligação entre escolas e editoras, intermediada pelo professor. A educação e a promoção da leitura são consideradas em toda abordagem mercadológica da literatura pra crianças e adolescentes.(ALBERGARIA: 1996, 09)

Por esta estreita ligação, a Literatura Infantil, por muito tempo, teve objetivos claramente

pedagógicos, com autores que se preocupavam fundamentalmente em alfabetizar e educar as

crianças que representariam o futuro da nação, em uma visão tipicamente romântica.

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Paralelamente a um florescimento de traduções e adaptações de livros estrangeiros destinados à

infância, circulavam alguns autores brasileiros; dentre outros, podem ser citados como pioneiros:

Antônio Marques Rodrigues, Abílio César Borges, Hilário Ribeiro, Felisberto de Carvalho,

Romão Puggiari, Figueiredo Pimentel, Francisco Vianna, Olavo Bilac, Alexandrina de

Magalhães Pinto e Thales de Andrade, como informa Nelly Novaes Coelho, em A Literatura

infantil. (1982: 340-351).

Monteiro Lobato, visto como um verdadeiro “divisor de águas” na história dos livros infantis

no Brasil, no início do século XX, liberta a nossa Literatura Infanto-juvenil do tom extremamente

escolar e moralizante, abrindo espaço para o entretenimento, para o lúdico.

Como afirmou Laura Sandroni, em palestra intitulada “ A Literatura Infanto-Juvenil no

Brasil”, ministrada na Academia Brasileira de Letras, no dia quinze de maio de dois mil e sete, é

inaugurada no Brasil a fase literária de produção de livros destinados à infância, com a

publicação de A menina do narizinho arrebitado(1921). Sandroni afirma que Lobato é o pioneiro

em trazer para o universo das crianças os problemas sociais que até então não eram tratados, de

maneira clara e simples. Portanto, era engajado, sendo considerado por ela o primeiro autor

brasileiro que acreditou na inteligência da criança.

Lobato é o primeiro escritor que dá voz e espaço às classes menos favorecidas, de maneira

arrojada para a época em que vivia. Tia Nastácia é um exemplo de uma negra que faz parte de um

contexto maior, conta histórias e participa ativamente das aventuras no Sítio do Picapau Amarelo.

É querida “como” um ente familiar, mas é válido notar que Lobato não extrapola este limite.

Nunca, na Literatura infanto-juvenil, algum escritor arriscou tanto, a ponto de dar voz a minorias

silenciadas em toda a sua trajetória histórica no Brasil, como é o caso dos negros, no início do

século XX. Tia Nastácia é uma narradora de histórias, e como tal, tem voz, opina no mundo e cria

sua realidade no contexto em que vive, trazendo à tona nas histórias do sítio personagens do

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folclore brasileiro, frutos do seu alto conhecimento popular, em oposição à D. Benta, que contará

histórias voltadas para o clássico europeu.

Segundo Walter Benjamin, em Magia e técnica, arte e política.Obras escolhidas, em seu

texto escrito em 1936, “O narrador”, aquele que narra, desde a antiguidade, é sempre alguém que

detém o saber: “ /.../ o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se dar conselhos

parece hoje algo antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis/.../ O

conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria”. (1985: 200-1) Logo,

se Tia Nastácia representa a figura da negra matriarca solteirona, que nos casarões da época,

viviam como domésticas e como entes familiares, sendo a hierarquia nitidamente mantida, ela se

consagra pelo espaço da sabedoria. Por isso, pode-se afirmar que, dentro dos limites de seu

contexto histórico, Lobato consegue exprimir “saber” na figura de uma classe excluída ainda do

acervo de conhecimento.

Um outro aspecto importante de sua obra é que se passa em um ambiente rural, espaço este

não lembrado nos livros da época, que se inspiravam em moldes europeus. Lobato, portanto, dá

voz a um outro segmento muito esquecido: o rural. Segundo Márcia Camargos, em seu ensaio

Monteiro Lobato: nosso clássico do faz-de-conta, a consagração do espaço rural em Lobato

representa a libertação do Brasil em relação aos moldes europeus:

Despidos do atávico complexo de inferioridade que sempre marcou as relações do brasileiro com o dito Primeiro Mundo, os protagonistas da obra lobatiana dialogam de igual para igual tanto com filósofos e deuses, quanto com sacis e príncipes encantados. Espaço multi-étnico, multicultural e até mesmo trans-humano, o Sítio converte-se no exemplo da convivência harmoniosa. Numa pluralidade invejável nos dias correntes marcados pela intolerância, coabitam seres humanos brancos, negros e mestiços de todas as idades/.../ Com suas trocas culturais, ele permite a inserção do particular, do “caipira”, numa territorialidade mais abrangente e complexa/.../ na fabulação lobatiana o regional adquire qualidades transcendentais/.../ ( 2002: 23)

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Então, pode-se afirmar que, pela primeira vez na Literatura, os excluídos de terceiro mundo

têm voz e espaço na Literatura Infanto-juvenil, frente aos moldes ainda preconizados dos

clássicos europeus.

Segundo Nelly Novaes Coelho, Lobato foi um marco na Literatura dedicada à infância, pois

rompeu com o racionalismo tradicional que imperava nas histórias infantis e abriu espaço para a

criatividade que precisava ser liberada.(1982: 354). Ele mistura o real e o mágico em uma só

realidade, valorizando o espaço real escolhido: a zona rural e mostrando-a como espaço de uma

série de possibilidades educativas e divertidas. Coelho aponta que, devido à sua natureza

progressista, que propaga a liberdade criadora, nem sempre os seus livros foram aceitos de

maneira irrestrita (1982: 363), pois houve algumas campanhas, principalmente de colégios

religiosos, contra os livros de Lobato.

Regina Zilberman, em Como e por que ler a Literatura Infantil Brasileira, relata que “O sítio

está aberto para todos, sem discriminação”, (2005: 29), confirmando a nossa proposta de que a

obra de Lobato derrubou muitos preconceitos e padrões pré-estabelecidos, abrindo espaço para

outros tipos de processos criativos de arte que estavam por vir.

A partir de então, apesar de obras com objetivos exclusivamente educativos ainda serem

grande parte do total das produções infantis no Brasil, alguns críticos literários, vendo em Lobato

o ícone deste gênero literário, e, movidos pelas novas tendências críticas literárias, passaram a

criticar o fim moralizante nas obras infantis:

Ora, na medida em que tivermos diante de nós uma obra de arte, realizada através de palavras, ela se caracterizará certamente pela abertura, pela possibilidade de vários níveis de leitura, pelo grau de atenção e consciência a que nos obriga, pelo fato de ser única, imprevisível-original, enfim, seja no conteúdo, seja na forma. Essa obra, marcada pela conotação e pela plurissignificação, não poderá ser pedagógica, no sentido de encaminhar o leitor para um único ponto, uma única interpretação da vida. (CUNHA: 2006, 27)

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Graciliano Ramos, em 1939, movido por esta tendência antididática, publicou o livro A Terra

dos meninos pelados, que foi vencedor de um prêmio literário do Ministério da Educação,

embora não tenha contado com muitos apreciadores na época. Tempos depois foi redescoberta

essa obra literária e adaptada para minissérie de TV. Não podemos deixar de falar deste livro, já

que é citado em uma das obras de Georgina Martins, que será estudada posteriormente nesta tese:

Uma Maré de desejos, além de ser um livro que aborda de maneira pioneira a exclusão sofrida

por um menino, pelo fato da diferença física. A narrativa começa já retratando a exclusão e o

preconceito sofridos pelo menino:

Havia um menino diferente dos outros meninos. Tinha o olho direito preto, o esquerdo azul e a cabeça pelada. Os vizinhos mangavam dele e gritavam: - Ó pelado!Tanto gritaram que ele se acostumou, achou a apelido certo, deu para se assinar a carvão, nas paredes: dr. Raimundo Pelado. Era de bom gênio e não se zangava; mas os garotos dos arredores fugiam ao vê-lo, escondiam-se por detrás das árvores da rua, mudavam a voz e perguntavam que fim tinha levado os cabelos dele. Raimundo entristecia e fechava o olho direito. Quando o aperreavam demais, aborrecia-se, fechava o olho esquerdo. E a cara ficava toda escura. Não tendo com quem entender-se, Raimundo Pelado falava só, e os outros pensavam que ele estava malucando.Estava nada! Conversava sozinho e desenhava na calçada coisas maravilhosas do país de Tatipirun, onde não há cabelos e as pessoas têm um olho preto e outro azul. (1984:7-8)

Percebe-se que o menino se sentia inferiorizado em relação aos outros meninos até que, pela

força do maravilhoso, ele vai a este lugar e lá sua auto-estima cresce ao ver outros meninos como

ele. Volta para sua terra natal, Cambacará, mais capaz para enfrentar suas dificuldades do dia-a-

dia. Zilberman faz a seguinte constatação a respeito desta obra:

De certa maneira, a narrativa foge às características da obra que Graciliano escreveu para o público adulto, pois, em A Terra dos meninos pelados, predomina a fantasia e o fabuloso. Mas ele carrega traços tanto do estilo sintético, quanto da visão do mundo do autor, porque, como ocorre a Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos, filhos do casal, personagens de obra da mesma época, Vidas Secas, de 1938, deparamo-nos com uma pessoa que não pertence aos grupos dominantes da sociedade e sofre muito com a exclusão de que é vítima. Só que Raimundo tem a oportunidade de dar uma virada em sua vida, apresentando-se como exemplo de auto-afirmação perante o leitor (2005: 39)

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Podemos notar que, na Literatura infantil de Graciliano Ramos, apesar do tom de denúncia,

em que o preconceito e a exclusão são questões discutidas, o mágico proporciona um fim

salvador . As inseguranças do menino são resolvidas pelo elemento do maravilhoso, resultando

em uma narrativa bastante otimista.

A partir de 1970, há um grande florescimento no ramo da Literatura Infanto-juvenil, como é

registrada por Glória Pimentel de Souza, em A Literatura infanto-juvenil vai muito bem,

obrigada:

A década de 1970 é apontada pelos estudiosos da literatura brasileira para crianças e jovens como um momento ímpar e bastante promissor. Alguns fatores favorecem essa nova visão, como o empenho das editoras em melhorar a qualidade do material impresso, em aumentar o número de exemplares publicados e manter uma certa regularidade de lançamentos. De outro lado, há também um aumento considerável do número de escritores e ilustradores e a produção literária passa a apresentar uma grande e diversa variedade temática. O estudioso Edmir Perrotti afirma que: “nesse momento, surge na literatura para crianças e jovens um número grande de escritores, com uma consciência nova de seu papel social: reclamam a condição de artistas e desejam que suas obras sejam compreendidas enquanto objeto estético, abandonando assim, o papel de moralistas ou pedagogos/.../ (2006: 91)

Um fato marcante se deu através das Leis de Diretrizes e Bases da Educação, de 1971, que

obrigaram a adoção de livros de autores brasileiros nas escolas, funcionando como alavanca de

crescimento para a indústria do livro naquela década. Entretanto, cabe-nos fazer a seguinte

observação:

A partir dos anos 70, começou-se a falar de um boom da literatura infantil, devido à grande expansão desse segmento dentro da produção editorial do país. O termo mostrou-se mal escolhido, pois supunha um interesse momentâneo. O que tem acontecido, nesse espaço de mais de vinte anos, é uma firme posição de liderança das obras para jovens, no mercado de livros de literatura. (ALBERGARIA, 1996: 23)

O boom é contínuo e ainda não terminou: a própria necessidade de se adquirir o hábito de ler

alimenta essa indústria do livro infantil. Conseqüentemente, surge uma gama de críticos e

professores preocupados em discutir a especificidade deste novo gênero literário que prolifera no

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país: “Com a difusão da literatura infantil, uma série de estudiosos preocupou-se em registrar,

documentar historicamente os passos dessa produção literária /.../” (SOUZA, 2006: 77)

Logo, é importante ressaltar que não só a Escola e as leis da Educação, com a descoberta da

importância da leitura, foram fundamentais para o livro infantil e a fertilidade da Literatura

destinada à infância, mas o próprio mercado editorial e o hábito de se estimular a ler, em um ciclo

de consumo, colaboraram para que a Literatura infanto-juvenil florescesse cada vez mais no

nosso país. É inerente a este florescimento uma dicotomia, pois se há neste momento histórico

livros infantis como nunca existiram, cada vez mais elaborados, criativos e modernos; há o

empobrecimento dessa forma, com a sua vulgarização. Vale esclarecer que nem todo livro para a

infância pode ser visto como Literatura e nos dias atuais este tipo de livro é o mais rentável,

juntamente com os didáticos, ocasionando a sua disseminação descuidada. Entretanto, essa

problemática fortalece muito o surgimento de teóricos preocupados com essa forma literária, não

inédita, mas nunca tão vulgarizada e tão próxima a qualquer classe social. Este seria um dos

aspectos que nos permite afirmar que há uma relevância em se discutir questões mercadológicas a

respeito da Literatura.

A visão dos escritores também se torna diferente, fato este que colaborou fortemente para

uma nova Literatura Infanto-Juvenil, pós-Lobato, preocupada em ser Arte. A partir dessa cota de

novos escritores, apesar da vulgarização e banalização citada advinda com o mercado, há a

proliferação de obras infantis com a qualidade que deve ter um objeto estético, proporcionando à

criança: o lúdico, a leitura plurissignificativa, a crítica social, a educação e o crescimento

enquanto ser humano. Citaremos alguns escritores que fazem parte desta safra, neste capítulo:

Lygia Bojunga, Lia Neiva, Rosa Amanda, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Pedro Bandeira,

Bartolomeu Campos de Queiroz, Marina Colasanti, Ziraldo, Silvia Ortof, Sidônio Muralha,

Adriana Falcão, entre outros. Desde já, gostaríamos de nos desculparmos por não citarmos outros

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autores importantes, mas não haveria espaço que comportasse todos, de maneira que não fugisse

do tema proposto.

O livro, embora veiculado como mercadoria, ganha, através desses escritores, o status de

Literatura, ainda que esta afirmação pareça paradoxal. Parece que alguns escritores conseguem

ludibriar os interesses exclusivos do mercado e conseguem divulgar obras literárias de qualidade

nesse mercado editorial, alcançando o que se espera da Literatura:

O artista não pode, pois, aceitar tal sujeição. Cabe-lhe resgatar a condição humana, essa condição que se debate entre a necessidade e o prazer, e que as certezas da mercadoria querem dissimular. Cabe-lhe resgatar essa condição que toda dominação pretende ocultar em benefício próprio. É, pois, nesse sentido, que o compromisso da literatura é com a liberdade, pois ela não pode estar nunca satisfeita com um mundo sempre aquém da necessidade. (SOUZA, 2006: 81)

É importante referenciarmos os escritores, que voltados para o público infanto-juvenil, se

preocuparam de maneira precursora, com o tema da exclusão nos grandes centros urbanos,

assunto em pauta nas obras literárias escolhidas de Georgina Martins.

Com o texto de Wander Piroli - segundo relata Zilberman – a Literatura infantil parece

romper fronteiras. O menino e o Pinto do menino foi publicado em 1975 e a editora que lançava

suas obras era dirigida por “André Carvalho, que se alinhava a um grupo de escritores e

intelectuais que compunha a linha de frente do projeto de mudança e atualização da nossa

Literatura” (2005: 102-103) A história gira em torno de um menino pobre que mora em um lugar

pequeno, que não comportava o pinto que ganhara da professora. O texto denuncia a falta de

dinheiro, de espaço e o excesso de trabalho, de maneira objetiva e direta, de tendência verista. A

sua narrativa não é tranqüilizadora nem tem final feliz, segundo Regina Zilberman: “ Eis outro

elemento inovador importado por Wander Piroli: as intrigas não apresentam soluções, apenas

diagnósticos dos fatos que transtornam a vida cotidiana...” (2005: 105)

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Um outro autor desta mesma safra é Carlos de Marigny, inserindo como personagem

principal, pela primeira vez na Literatura infanto-juvenil brasileira, um menino de rua, em Lando

das ruas. Segue-o na mesma linha Henry Corrêa de Araújo, que publica Pivete, em 1977, em que

personagens moradores das ruas evidenciam seus conflitos. É importante ressaltar que “... a

literatura infantil não mais se conforma com figuras convencionais, pertencentes aos setores

dominantes da sociedade/.../ Nem com a perspectiva paternalista que faz dos meninos

abandonados candidatos passivos à benevolência dos ricos... (2005:105-106)

Se em Lando das ruas, apesar de seus percalços narrados, a personagem principal não se

deixa vencer pelo mundo da criminalidade, no livro Pivete, percebe-se um tom mais pessimista e

a indissolubilidade dos conflitos:

Sozinho ou com a cumplicidade dos parceiros, trombadinhas como ele, sabe que a marginalidade é a única e inevitável opção que lhe resta. Não há recuperação, mesmo quando tenta largar o mundo dos crimes, acaba retornando às ruas e levando avante a trajetória da contravenção, cujo resultado nunca coincidirá com a reintegração à sociedade... (2005: 107)

Mais suave é o texto de Sérgio Capparelli, Os meninos da Rua da Praia, de 1979, que relata a

saga de meninos que são vendedores de jornais palas ruas da cidade. Como relata Zilberman,

significando inserção no mundo do trabalho e expectativa de aceitação pela sociedade (2005:

107).

Em todos esses livros citados, nota-se a preocupação com a exclusão social e a

marginalidade, que, cada vez mais, se fazem presentes nos grandes centros urbanos brasileiros.

São textos voltados para o urbano e seus problemas, cada qual com seu tom: realista ou com

pitadas de fantasia, pessimistas ou otimistas, mas com propostas inovadoras de discussão dos

problemas sociais de exclusão do espaço urbano.

Ressaltamos ainda Júlio Emílio Braz, escritor com vários livros publicados, que entrou na

literatura infantil e juvenil por acaso, quando um amigo seu o apresentou para um editor em São

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Paulo. Seu primeiro livro Saguairu, recebeu o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, em

1989 (1996: 55). Na década de 90, publica alguns livros que enfocam as crianças de rua, como

Crianças na escuridão (1991), Coleção Veredas da Editora Moderna.

O livro narra a história de uma criança que ao ser abandonada, conhece o mundo das ruas. É

um texto em que a piedade se faz sentir a todo momento, em cada fala comovente da personagem

principal, batizada nas ruas como “Rolinha”. O texto é narrado em 1ª pessoa, sendo

extremamente subjetivo. Não há outros olhares, não há o outro, a não ser o próprio narrador.

Adentra-se no mundo das crianças de rua, mas sempre com um tom forte melodramático, sem

contextualização e enfoque na situação do menor no panorama capitalista.

É interessante no livro a denúncia da brutalidade dos policiais: “O guarda me chutou. Assim,

sem mais nem menos, apenas pelo prazer de chutar” (1996: 15). São notáveis ainda os ensejos de

reflexão psicológica da personagem, em que o conceito de infância é discutido:

Não somos mais crianças. Temos idade. Jeito de criança. Alguns ainda têm o olhar inocente de criança, mas a gente não é, não. Tem alguma coisa dentro de mim dizendo isso e o grito é cada vez mais forte. Grita. Grita. Grita. Não sei o que somos, mas não somos crianças. Não somos, não. Ser criança é sonhar e nós não sonhamos, não muito. Não como qualquer uma de nós gostaríamos de sonhar. (1996: 32)

A narrativa apresenta teor de denúncia, à medida que retrata a condição dos meninos de rua e

suas emoções, mas se perde em alguns momentos pelo apelo dramático.

Narrativa semelhante a esta é a de Roberto Freire, em Moleques de rua: As aventuras de João

Pão, um menor abandonado (1994), publicado também pela Coleção Veredas, editora Moderna.

A semelhança se dá, sobretudo, por ser um texto que retrata a triste realidade dos meninos de rua,

sem ensejos de possibilidades de mudança. Assim como fez Júlio E. Brás, Roberto Freire relata

as tristes condições às quais são submetidos os menores que vivem pelas ruas. Todavia, neste

livro, a criminalidade e violência são sinônimos de meninos de rua, que, em suas aventuras

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cometem diversos crimes e atos ilícitos, sendo consagrados pelo grupo por isso. Os abusos

sexuais entre crianças e suas descobertas sexuais nas ruas também são narrados, além das casas

de prostituição de aliciamento de meninas de nove, dez anos. A obra relata todos esses fatos, sem

pieguice, de maneira rude e extremamente realista, assim como parece conceber o autor o

comportamento “transfigurado” do menor de rua.

É interessante ressaltar na obra o código dos grupos para estarem juntos. Esses grupos de

meninos de rua são capazes de alguns atos de solidariedade entre eles por questão de

sobrevivência, devendo ser respeitadas regras pertencentes a este código de honra, bastante

estranho:

João Pão procurava esquecer o código de fidelidade e de justiça dos bandos de meninos de rua, sempre os mesmos códigos, apesar da diferença que pudesse existir entre o estilo de vida dos grupos e a personalidade dos meninos em cada um: a traição pessoal que pudesse colocar em risco a vida de um membro ou de todo grupo deve ser, invariável e indiscutivelmente, punida com a morte do traidor, por assassinato coletivo. (1994:83)

O paulistano Roberto Freire, é importante notar, tem conhecimento de causa, pois Moleques

de rua: As aventuras de João Pão, um menor abandonado foi baseado em uma experiência real

vivida por ele. Trabalhava o autor para a revista Realidade em 1968 e lhe foi solicitado que

fizesse uma reportagem sobre menores abandonados. Conta o autor:

Escolhi a cidade de Recife e representando o papel de um ambulante, vendi cafezinho no centro da cidade. Aos poucos fui conhecendo os bandos de meninos que viviam por ali. Acabei amigo deles e, finalmente, me juntei a um bando e fui morar com eles sob uma ponte do Rio Capibaribe. Moleques de rua está baseado nesta experiência de vida que resultou numa matéria para a revista Realidade. Essa matéria intitulada “Meninos do Recife”, recebeu o Prêmio Esso de Reportagem. Só pude contar um pouquinho da vida dessas crianças. E olha, quando fui checar a realidade deles, fiquei triste: nada mudou. Então, fui escrevendo a história com o amor e o respeito que tenho por esses homens e por essas mulheses de sete a catorze anos. (1994:88)

Constatamos que a epígrafe utilizada pelo autor, de Ulisses Tavares: “Quando crescer, quero

ser criança”, retrata bem o que o autor quer discutir no livro. Aqueles menores de rua conheciam

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todas as violências e brutalidades da vida e eram capazes de praticar atos terríveis, eles só não

sabiam algo: o que era ser criança. Essa parece ser a constatação de Roberto Freire, que conviveu

de perto com o problema, mas não parece querer contextualizá-lo em uma gama maior de

problemas sociais. Assim como faz Julio E. Brás em sua narrativa, Freire relata as aventuras do

menor sem um contexto maior social, de maneira isolada.

Em uma obra dominada exclusivamente pela imagem, Angela Lago, também em 1994,

publica Cena de rua, segundo relata Regina Zilberman. A narrativa tem como personagem

principal um menino de rua, vendedor de frutas, que enfrenta os perigos do trânsito e o mau-

humor dos clientes. Logo, o trabalho infantil brasileiro é denunciado por esta autora que discute

principalmente com suas imagens a disparidade de relações entre o maior de idade e o menor de

idade, exercendo atividade não condizente para sua faixa etária, por total falta de oportunidades

distintas:

A violência exercida pelas crianças esboça-se desde a primeira imagem, seja por contrapor o adulto e a criança, o comprador endinheirado e o vendedor pobre, seja por colocá-la num espaço caracterizado pela agitação, o movimento intenso e o risco permanente. A esquina é igualmente significativa enquanto cenário de ação, por traduzir a encruzilhada vivenciada pelo herói, que, da sua parte, não dispõe de muitas escolhas, haja vista a última página e imagem da narrativa, que repete a primeira. (2005: 162-3)

Rosa Amanda Strausz, vencedora de diversos prêmios, como o Jabuti e João de Barro,

também se insere na escrita da exclusão social dos grandes centros urbanos, com o livro Uólace e

João Victor (il. Pinky Wainer) –publicado em 1999. Esta narrativa foi adaptada para tv em

Cidade dos Homens, minissérie dirigida por Fernando Meirelles, o também diretor do filme

Cidade de Deus. Além disso, a obra citada de Rosa Amanda foi publicada na França, pela

Metallié/du Seuil, em 2005, Editions Métailié. Percebe-se nesta narrativa uma preocupação

grande em denunciar a desigualdade social brasileira, em que crianças da mesma faixa etária são

sujeitadas a oportunidades de vida muito distintas. A narrativa se organiza em capítulos que

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relatam sempre em constante oposição dialética a trajetória de dois meninos, até o encontro deles.

É fundamental que sejam ressaltados os sentimentos dos meninos, sempre marcados com bastante

sensibilidade pela escritora. Em muitos trechos, percebe-se a aproximação dos desejos daquelas

crianças que, apesar de estarem ocupando posições sociais distintas, têm sonhos de consumo

semelhantes: “A fome aperta mais a minha barriga. E bate a tristeza do fim da tarde. Se eu tivesse

nascido americano feito o meu nome, tinha meia dúzia de pai rico, uma casa cheia de hambúrger,

tênis e carro” (2003: 28)

Em 2005, Rosa Amanda publica um livro que também toca na questão da desigualdade

social, embora de maneira menos elucidativa que o anterior. Trata-se de Quanta casa!, da

Coleção Tião Parada: cidadão na estrada, da FTD. Neste livro, são relatados os diferentes tipos de

habitação vislumbrados pelo caminhoneiro Tião Parada. Certo dia, encontra-se com um menino

de rua, chamado João Sem Braço que, ao ver seu caminhão repleto de caixas, diz: “-Quanta

casa!”. O caminhoneiro tenta explicar que não eram casas, mas caixas e o menino,

inocentemente, relata que aquelas na verdade eram casas, maravilhosas, novíssimas. Diz que não

poderia deixar seus irmãos dormirem no chão frio e lhe pede: “- Você me dá uma casa dessas?”

(2005:17). Logo, nesta obra, as desigualdades díspares de habitação deixam nítidas as

desigualdades sociais existentes no Brasil. A caixa, que seria material dispensável para alguns

brasileiros, se torna habitação para muitos outros.

Fernando Bonassi é também um escritor sobre o qual falaremos, pois apresenta em sua

publicação muito diversa, um livro singular, intitulado: A incrível história de Naldinho, um

bandidão ou anjinho? Escreveu contos e livros publicados na França, Alemanha e EUA. É

formado em Cinema pela ECA-USP, tendo participado como diretor/roteirista dos filmes Castelo

Rá Tim Bum e O trabalho dos homens.

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No livro A incrível história de Naldinho, um bandidão ou anjinho?, publicado em 2001, pela

Geração Editorial, tem-se uma prosa poética, em que o autor narra a história de uma criança que

se transforma em um grande bandido. É relevante a maneira como o texto apresenta uma série de

contextualizações que justificam o fato de o menino ter se transformado em um delinqüente, de

forma extremamente sensível. A dedicatória de seu livro é bastante emblemática quanto ao seu

ideal literário de mudança, tranformação social: “Pras crianças que viraram bandidos, pras que

estão virando bandido justo hoje e pras que vão ter que virar ainda, torcendo pra que chegue um

dia em que isso não tenha de acontecer mais”

O narrador se coloca como alguém que se surpeende com a história triste do menino e

conseqüentemente seu lado humano: “eu sempre achei que bandido/ Fosse um bicho diferente/

Tipo um monstro escondido/Mas olha: é tudo gente!”(2001: 6). Evidencia nesse trecho a visão

diferenciadora do senso comum que vai narrar, pontuando os motivos que levaram o garoto à

marginalidade e à falta de oportunidades que o gerou como tal.

Há alguns exemplos na narrativa de motivações que impelem Naldinho à delinqüência, como

os seguintes, que emblematizam de maneira nítida o posicionamento que Bonassi assume em seu

texto de proteção ao menor:

Era cinza cor de cimentoA sua casa, quando tinha.Banheiro não era dentroEra só quarto e cozinha

Quando a fome vinha Até meio tonto ficavaComia só água e farinhaO que não alimentava (2001: 7)

Queria tênis americano Ou nacional incrementadoSó tinha chinelo de panoE um sapato furado

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Andando nesse estadoPor mais que estivesse quietoQuando aparecia um soldadoEra enjaulado direto (2007:9)

Na prisão ele apanhavaCom ou sem motivoAté sem água ficavaDifícil ficar vivo! (2007: 10)

Depois de buscar as causas da delinqüência do menino, Bonassi narra o grande ladrão que ele

virou e seu triste fim, nesses versos:

Roubava loja e padariaNão queria nem saberTinha revólver, pontariaE nenhum medo de morrer

Então de caso em casoNunca mais parou de roubarTodo dia sem atrasoRoubava até enjoar (2001:10)

Delegado saía dizendo:Naldinho foi longe demais!“Os ricos morrem de medo”Era o que diziam os jornais

Não havia quem se importasseCom o jeito que o pegariamPodia ser que só algemassemPodia ser que matariam (2001:17)

Então aconteceu a desgraçaNuma viela bem escuraEle roubava um carro da praçaQuando apareceu a viatura

Foi um tiroteio, eu juro,Que nunca se viu na ruaNaldinho logo caiu duroEsticado na luz da lua (2001: 19)

Naldinho hoje é caso encerradoE poucos lembram, nessa cidadeDaquele menininho endiabradoQue roubava sem piedade

Ninguém gosta de ser marginalNaldinho só não viu outro caminhoPra mim, se Deus existir e se for cara legalDevia perdoar o diabinho...

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O que é que você acha? (2001: 20)

Bonassi exorta a falta de oportunidades e de escolha, sendo fatos geradores da criminalidade

na vida de uma criança e o próprio título da obra é bastante elucidativo, no que tange os

julgamentos que a sociedade faz a respeito de um garoto, como este, tão comum nas grandes

cidades.

Com essas explanações sobre alguns autores brasileiros que escrevem para o público infanto-

juvenil, preocupados com a questão da exclusão social nos grandes centros urbanos, podemos

perceber que esta chega a ser uma tendência na Literatura de hoje. Hoje, não só na Literatura,

mas é uma tendência do mercado, por ser algo altamente rentável falar sobre esse assunto em

filmes, novelas, peças, músicas e livros. Por isso, é extremamente preocupante analisarmos um

livro que verta sobre esse tema, sem uma devida cautela. Vivemos um fenômeno em que o

próprio sistema absorve movimentos artísiticos engajados, com o objetivo de “vender” e deturpá-

los, como foi o caso do curta Falcões, meninos do tráfico, exibido pela TV Globo, que explorou o

tema em vários outros programas, muitas vezes, acrescido de comentários dispensáveis que

deturparam o trabalho de Mv Bill e Celso Ataíde (autores), entre outros trabalhos sugados pelo

sistema.

Exemplos dessa avalanche de produtos artísticos nesta área, que comprovam a sua

repercussão foram os seguintes filmes, baseados em romances: Cidade de Deus, Carandiru,

ônibus 174, Tropa de Elite, Cidade dos homens etc. Esses filmes têm feito estrondoso sucesso

nas bilheterias brasileiras. Gostaríamos de citar um filme africano que merecidamente ganhou o

Oscar de melhor filme estrangeiro: Infância Roubada (Tsotsi, 2005) , dirigido por Gavin Hood,

baseado no romance do famoso dramaturgo sul-africano Athol Fugard. O filme apresenta

imagens fortíssimas de favelas da África, capazes de chocar muitos brasileiros conhecedores das

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favelas cariocas e debate como a falta de amor pode gerar violência. Humaniza o protagonista,

que não é visto nem como mau, nem como bom, mas como um ser humano com suas

imperfeições, maldades e fraquezas. Apresenta uma abordagem da criança que faz lembrar muito

o estilo de Georgina compor suas personagens.

Flávio Carneiro, em seu livro No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI ,

diz que não há mais um missionário pronto para esclarecer os problemas da multidão, como em

movimentos anteriores na Literatura, mas cidadãos comuns, preocupados com “a convivência

possível com o próprio presente” (2005: 19). Ressalta que a Literatura de denúncia continua

sendo uma vertente considerável na produção de livros nos dias atuais:

Surgem ainda, nos últimos anos, novas variações para a ficção de cunho social, preocupada em conciliar Literatura e denúncia, a partir da representação dos conflitos que assolam o país, em particular suas metrópoles. A favela e o asfalto, a violência, a corrupção, o narcotráfico, a miséria são, dentre outros tantos, temas recorrentes nessa produção, voltada para o problema de se encontrar uma linguagem que dê conta das novas problematizações urbanas. (2005: 309)

Embora Flávio Carneiro teça comentários sobre a ficção brasileira como um todo, esse

discurso tem grande validade para o nosso estudo, como se pode constatar em Um Brasil para

crianças: Para conhecer a literatura infantil brasileira: histórias, autores e textos. Zilberman e

Lajolo acenam para o direcionamento que os textos infantis tomam em relação ao urbano e como

isso acarreta em uma legitimação da linguagem coloquial nesta forma literária:

A adesão da literatura infantil contemporânea ao urbano ainda tem outras conseqüências: legitimou definitivamente o tom de oralidade e coloquialismo, isto é, legitimou literariamente um registro lingüístico bastante mais flexível do que o padrão de linguagem em vigor nos primeiros livros brasileiros destinados à infância. (1986: 178)

Esta tendência madura da Literatura Infanto-juvenil do presente pode justificar-se também

pelo perfil das crianças nos tempos modernos, bastante diferentes dos infantes de outra era, como

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prossegue Albergaria: “A criança de hoje é menos protegida, a sua capacidade de discernimento é

levada em conta, já que os textos não são tão simplificados nem os temas abordados pretendem

amenizar a realidade representada na Literatura” (1996: 34). Logo, o ponto alto desta nova

Literatura Infantil Brasileira é perceber a criança e o jovem, em uma escala crescente, como seres

capazes de pensar sobre várias questões do Brasil e do mundo, do individual e do coletivo.

Assim, são convidados a participar ativamente das histórias e raramente são vistos como

recipientes vazios prontos a receberem ensinamentos morais ou sujeitos auto-suficientes.

3.2 Georgina Martins e sua arte engajada

Introduziremos, neste subitem a escritora pesquisada em nossa tese: sua arte e seu

engajamento. Georgina Martins, nascida em 1959, na cidade do Rio de Janeiro, sempre morou

nesta cidade e sempre esteve atenta aos problemas sociais pertinentes a este grande centro

urbano. Atualmente, enquanto funcionária da Faculdade de Letras (UFRJ), executa as seguintes

funções: Pesquisa em Literatura Infantil; Planejamento e Execução de Projetos em Literatura

Infantil; Assessoria à Coordenação do Curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil;

dá aulas no curso de Pós-Graduação em Literatura Infantil. Em outros espaços, exerce várias

atividades voltadas para o livro infantil: ministra aulas em outros espaços, capacita professores do

Ensino Fundamental e Médio, nas áreas de Leitura e de Literatura Infantil na Rede Pública e

Privada do Ensino Fundamental, além de estar constantemente inserida em projetos sociais que

visam à reintegração de indivíduos excluídos na nossa sociedade. Participou do Programa de

Criança Petrobrás, como coordenadora da Oficina da Palavra, durante um ano. Este era um

projeto do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Favela da Maré (CEASM), realizado em

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várias turmas da Rede Municipal de ensino da comunidade, cujos objetivos consistiam

principalmente em criar e implementar atividades em Língua Portuguesa e Literatura, auxiliando

no processo de aquisição de leitura e de escrita. O prazer pelo texto era um dos assuntos mais

discutidos e preconizados pela então líder do grupo de educadores sociais que ministravam suas

oficinas. A experiência nesta comunidade marcou a trajetória de Georgina Martins, de tal modo,

que rendeu um de seus livros: Uma Maré de desejos (2005).

Especialista em Teoria e Crítica da Literatura Infantil e Juvenil — FL/UFRJ, Georgina

defendeu em 2004 a sua dissertação de mestrado: A ficção de Graciliano Ramos à Sombra da

Infância Infeliz, atingindo o título de Mestre em Literatura Brasileira — FL/UFRJ. Neste

trabalho, evidenciou na obra do referido autor, reflexos de sua infância de menino do sertão

nordestino, que só teve acesso às letras muitos anos depois da idade tradicional. Como se

percebe, a autora, em todos os seus trabalhos, sempre demonstra olhar atento à exclusão que

sofrem as crianças em solo brasileiro.

Georgina Martins já publicou os seguintes artigos:

A) “Era uma vez”. ( A representação da infância pobre nos contos de fadas) In: Ciência Hoje

das Crianças, janeiro de 2000.

B) “Seres encantados que desembarcaram no Brasil”. In: Ciência Hoje das Crianças,

setembro de 2000.)

C) Crianças no Brasil(*)

D) História de Crianças e Crianças na História(*)

E) Causas Imaginárias da Mortalidade Infantil(*)

F) “Pequena História do Mito”. In Ciência Hoje das Crianças, set de 2001

(*) Artigos publicados na Enciclopédia Britânica, em mídia eletrônica, em 2001.

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Publicou os seguintes livros:

1. O menino que não se chamava João e a menina que não se chamava Maria

( Ed. DCL, 1999).

2. O menino que brincava de ser (DCL, 2000)

3. Fica comigo. (DCL, 2001).

4. Espere que eu vou contar como foi (Nova Didática, 2001)

5. No Olho da Rua: Historinhas quase tristes.( Ática, maio de 2002)

6. Vamos falar de Ética? ( no prelo. Coleção sobre ética para crianças/ Ed. DCL)

7. Coleção sobre Trabalho e consumo ( DCL, no prelo)

8. Todos os amores ( Ed. DCL. 2003)

9. Outros Bichos ( Ed. Scipione agosto de 2003)

10. Uma Maré de desejos ( Ed. Ática/2005)

11. Minha Família é Colorida ( Ed. SM/ 2005)

12. Todas as cores de Van Gogh (Ed. Ática/ 2007)

13. Ave do Paraíso (Ed.Planeta/2008 –a ser publicado)

Dentre suas publicações, recebeu alguns prêmios, como 1º Lugar no Prêmio Carioquinha de

Literatura Infantil, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, em setembro de 2000 e

Menção Honrosa no Prêmio Adolfo Aizen de Literatura Infantil da União Brasileira de Escritores

pela obra No olho da rua: historinhas quase tristes (2002). Pelo livro Fica comigo, recebeu

Menção Honrosa no Prêmio Adolfo Aizen e Inclusão no Catálogo de Bolonha de 2003. O livro

Todos os amores também foi incluído no Catálogo de Bolonha, de 2004. E o livro Uma Maré de

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desejos recebeu o Prêmio Adolfo Aizen da União Brasileira de Escritores de melhor livro Infantil

de 2006.

A Literatura de Georgina Martins é sempre marcada pela contestação e pela reflexão crítica

acerca de temas diversos. Um tema recorrente em sua vida acadêmica, profissional e pessoal é a

preocupação com a exclusão social, como notamos em todos os seus projetos e trabalhos

realizados. Na Literatura, não poderia ser diferente, onde permeiam a indignação e a

sensibilidade da escritora através de suas personagens e mundos criados ou talvez copiados de

sua vivência. Dentre esses livros, selecionamos No olho da rua: historinhas quase tristes (2002)

e Uma Maré de desejos (2005), para discutirmos a fundo, esmiuçando a proposta desta tese. A

escolha se deu pelo fato de os livros apresentarem linguagem semelhante, direcionamento a um

público adolescente e ressaltarem, de forma direta, os assuntos que debatemos nesta pesquisa. A

exclusão social nestas obras é vista em toda a sua complexidade, com um olhar investigativo

sobre o humano presente nos excluídos (freqüentemente camuflada pela nossa indiferença).

Entretanto, não nos furtaremos de falar em breves linhas sobre algum de seus livros em que a

preocupação social é questão recorrente.

Em seu primeiro livro lançado O menino que não se chamava João e a menina que não se

chamava Maria: Um conto de fadas brasileiro (1999), com ilustrações de Victor Tavares,

Georgina debate o abandono de crianças em nossa sociedade brasileira a partir do clássico João e

Maria, que também vivenciam em sua história, o abandono. Nesta primeira publicação de

Georgina, é evidente o seu potencial para a Literatura engajada, de denúncia, cujas motivações

são esboçadas na apresentação da obra:

Bem, este é meu primeiro livro. Ele começou a ser pensado quando iniciei um trabalho de pesquisa sobre a história da infância abandonada. Sempre me incomodou muito viver num país que não cuida bem das suas ciranças. Fico triste quando penso que, a cada dia, o número de meninos e meninas que vivem pelas ruas aumenta. Foi pensando nisto que resolvi pesquisar a crinaça através dos tempos dentro de uma perspectiva

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histórica, e para tal, comecei a ler contos de fadas. /../ Descobri, por exemplo, que, assim como os pais de João e Maria, as famílias pobres das crianças francesas há mais ou menos 400 anos atrás, preferiam, muitas vezes, abandonar seus filhos nas florestas para ver se eles conseguiam uma vida melhor do que levavam em casa, já que não tinham como alimentá-los. Vi, ainda, que as crianças, nesse tempo, começavam a trabalhar desde muito pequenas, às vezes, com pouco mais de dois anos de idade. E, com muita tristeza, descobri que muitas delas morriam de fome e de frio. Só que descobri, também, que há muito tempo essas coisas não acontecem mais por aquelas bandas. Isso foi há muitos anos!/.../ Por enquanto, ofereço-lhes esta história com a esperança de que, assim como lá, as crianças deste nosso país não sejam mais abandonadas na floresta das nossas cidades. (1999: s/p)

Um casal de irmãos carregando um bebê nos braços sai em busca da Casa feita de doces, tal

qual a da história de João e Maria, e assim o fazem na tentativa de sanar a fome e de fugir do

monstro que vivia em sua casa: “ /.../ você sabe muito bem que a hora em que aquele monstro

expulsou a gente de casa só deu tempo de pegar a Nininha no berço e sair correndo” (1999: s/p).

Nesta narrativa, a todo o momento, se intercalam o mundo real, extremamente cruel e o mundo

da fantasia, que na concepção das crianças seria a solução de todos os problemas. Nessas

intercalações de realidades, o sofrimento pelo qual essas crianças passam é exposto de forma

chocante, como na parte em que eles buscam alimento para o bebê, que estava literalmente

morrendo de fome, nos detritos:

- Moça, será que aí nesses sacos tem alguma caixa de leite? Preciso levar pra minha irmãzinha, a Nininha, que ela não come há três dias.

Uma mulher resolveu dividir com o menino as duas caixas com resto de leite que ela havia achado. Balançou as duas caixas e entregou ao menino a que estava mais vazia; certamente, a mais cheia seria para as duas crianças que estavam com ela. Ficou tão agradecido que resolveu lhe contar aonde estava indo:

-Se a senhora quiser, eu posso levar os seus filhos até lá. A casa é toda feita de doces e a gente pode comer à vontade. Dizem que depois que a gente encontra a tal casa nunca mais passa fome. (1999: s/p)

A ilustração da página seguinte é notável e não pode deixar de ser citada, pois no espaço

urbano retrata-se a tamanha desiguladade social: enquanto uma criança, com orelhas de Mickey

Mouse, vestiário americanizado e tênis novos se alimenta fartamente com lanches de fast-food, a

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Nininha, absorve da própria embalagem, o resto do leite podre achado entre os detritos. Várias

interpretações sugerem essa ilustração que sobrepõe aos nossos olhos a gritante e injusta

diferença social.

Devido ao fato de consumir o leite estragado e provavelmente devido à desnutrição, a criança

menor morre, sendo a imagem instaurada no mundo mágico do texto, suavizando o fato em si:

- João, espera aí, a Nininha tá gelada! ... João, a Nininha...

- Calma Maria, bota ela aqui no chão, deixa eu ver.

- João, a Nininha morreu! E agora?

- Maria, pega ela no colo, vamos correr que a gente vai chegar logo na casa de doces pra fazer o pedido. Eu e você vamos pedir a mesma coisa, aí vai ser mais forte e ela vai ficar viva outra vez. Anda, corre!

Eles correram, correram e correram mais ainda, afinal precisvam salvar a Nininha. Tão cansados ficaram que logo caíram no sono e adormeceram.

- João, acorda! Eu tive um sonho...

- Maria, cadê a Nininha?

- Ta aqui João. A gente vai ter que deixar ela perto do riacho, em cima da pedra mais bonita que a gente encontrar.

- Por quê?

-Eu sonhei que uma fada aparecia aqui e pegava a Nininha no colo e ela ficava viva outra vez. Aí, a fada falava que a gente tinha que deixar ela na beira de um riacho em cima da pedra mais bonita que a gente encontrasse e que depois ela iria virar uma estrela. (1999: s/p)

Depois deste triste fim, que se tangencia com inúmeros casos na nossa sociedade brasileira,

de crianças abandonadas ao próprio destino, sem ninguém para dar-lhes atenção e os devidos

cuidados, o texto porta um final feliz, como é clássico nos contos infantis. Eles finalmente

encontram a casa de doces:

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O menino que não se chamava João e a menina que não se chamava Maria fecharam os olhos ao mesmo tempo e começaram a desejar... desejaram com tanta força que, de repente, foram diminuindo, diminuindo, diminuindo... até que ficaram invisíveis. Desapareceram! Junto com eles, desapareceu também a casa de doces. Dizem por aí que eles foram morar no livro e viveram felizes para sempre. Isso eu não sei não, mas ouvi dizer que, agora, a história começa igual àquela outra: Era uma vez um menino que se chamava João e uma menina que se chamava Maria... (1999: s/n)

É interessante notar que o final feliz não lhes é dado pela família, nem pelo sistema, mas pelo

mundo da fantasia, o espaço privilegiado da arte, em que sonhos podem ser reais e em que não há

priviligiados, nem desfavorecidos, mas só há aquele que sonha e se vê nos mais impossíveis

lugares e situações. Talvez, Georgina inspire neste livro as nossas reflexões, direcionando-as para

o espaço da arte como possibilidade, enquanto que o mundo real surge como total negação dos

desejos daqueles que não detêm poder aquisitivo em nossa sociedade.

A questão da raça é discutida no livro lançado em 2005 Minha família é colorida, no qual

tem-se uma busca clara em dicutir a miscigenação do povo brasileiro, a partir da história de um

menino chamado Ângelo. O menino questiona: “-Mãe, o meu cabelo não “vua”, o da minha avó

Marli “vua”, o seu “vua”, o do Camilo “vua” um pouco, e o do meu pai, não.” (2005). E então,

Georgina tece a narrativa, sempre desmitificando os preconceitos existentes e exaltando as

características naturais das raças:

Dizem que o pai do pai do pai do Ângelo se apaixonou pela cor da pele da mãe do pai do pai do Ângelo, que era negra como a noite. Dizem, ainda, que ele também se apaixonou pelos olhos dela, que eram pretinhos como duas jabuticabas maduras.

E, como estavam apaixonados, combinavam em tudo. Então, a mãe do pai do pai do Ângelo se encantrou pelos olhos do pai do pai do pai do Ângelo, que eram azuizinhos como o céu, e também pela cor de sua pele, que era branca como um copo de leite.

Eles ficaram tão apaixonados um pelo outro que resolveram se casar, porque, aí, poderiam ficar olhando para os olhos um do outro todas as horas que desejassem...

Eles ficavam tão juntinhos que, às vezes, não dava nem para saber quem era um, quem era o outro. Muito menos dava para ver a cor dos olhos deles: nessas horas, eles fechavam os olhos para poder sonhar.

E, quase todas as vezes em que eles ficavam juntos, os pedacinhos de um se misturavam com os pedacinhos do outro. Essa mistura de pedacinhos deu origem a um monte de menininhos. Um deles é o pai do pai do Ângelo, o avô Agostinho (2005: s/p).

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Neste texto, direcionado para um público infantil, percebe-se a sensibilidade da escritora, que

trata sobre sexo, amor, miscigenação, árvore genealógica, pecualiaridade das raças, de maneira

extremamente literária, ou seja, artística. A presença da poesia neste livro quase dilui a questão

do preconceito, que não é defrontado diretamente na fala das personagens, mas implícito na fala

do menino, que contaminado pelos veículos midiáticos, quer ter cabelos lisos, como grande parte

dos ícones da TV.

Baseada em sua história pessoal, como é nítido nos nomes das personagens (nomes de seus

filhos), a autora de forma costumeira afirma que é na sua experiência pessoal que busca

inspiração para escrever seus livros. Neste caso, a história de sua família foi material rudimentar

para que ela criasse o texto poético que, combinado com as ilustrações de Maria Eugênia,

formam este livro, finalizado com a seguinte colocação de Ângelo: “-Mãe, então sabe por que o

meu cabelo não “vua” e minha pele é assim dessa cor? É porque nossa família é toda colorida, eu

acho que ela é muito bonita, igualzinha à minha caixa de lápis de cor!” (2005: s/p)

Em muitos de seus livros, a questão da fantasia é recorrente, principalmente os voltados para

um público de menor faixa etária. Na nossa pesquisa, todavia, estudaremos suas obras

direcionadas a um público de faixa etária maior, juvenil, em que sua abordagem social é mais

nítida e suas obras mais realistas. Isso não quer dizer que a fantasia não exista, pois como é

inerente a obras de ficção, o imaginário está sempre presente. O próprio ato criador do artista é

em si simbólico, por não se tratar de um texto informativo, direto, como afirma Monique Augras,

em seu livro A dimensão simbólica:

Poderíamos falar, não de acesso simbólico ao universo, mas de construção simbólica do universo, pois desta maneira, o homem cria o mundo. Ele constrói o universo através desta função que lhe é própria exclusivamente, chamada de função simbólica: a linguagem. /.../ Todo sistema de explicação do mundo representa uma nova forma do mundo. A capacidade de elaborar abstrações deixa de ser, portanto, uma fuga do mundo

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real para tornar-se a maneira mais adequada do homem adaptar-se ao mundo real. (1967: 5-7)

Logo, segundo essas colocações, entendendo a obra literária como sistema possível de

explicação do universo, como toda forma de arte, nota-se ser o símbolo imprescindível para se

remeter àquilo que se quer discutir. Diferentemente de um texto objetivo, jornalístico, o texto

literário, por mais próximo da realidade que seja, não prescinde jamais do símbolo, ligado

diretamente à fantasia. Portanto, sem fantasia, não há ficção. O texto de Georgina Martins

voltado à juventude, embora mais realista, não perde jamais seu teor imaginário, como

demonstraremos na leitura que faremos nos próximos capítulos das obras selecionadas.

No livro A imaginação simbólica, de Gilbert Durand, talvez de forma mais esclarecedora,

tem-se uma explicação a respeito das maneiras que nossa consciência tem de representar o

mundo:

A consciência dispõe de duas maneiras de representar o mundo. Uma, direta, na qual a própria coisa parece estar presente na mente, como na percepção ou na simples sensação. A outra, indireta, quando, por qualquer razão, o objeto não pode se apresentar à sensibilidade “em carne e osso”/.../ Em todos esses casos de consciência indireta, o objeto ausente é re-(a)presentado à consciência por uma imagem, no sentido amplo do termo. (1988:11-2)

Obtem-se, a partir desse esclarecimento, a segurança de que a arte é uma forma de utilização

da consciência indireta, em que se buscam símbolos com o fim de significar coisas, nunca um

sentido único, mas plurissignificante. O próprio símbolo em si já traz a sua múltipla possibilidade

interpretativa. Feitas essas ressalvas, afirmamos que a Literatura de Georgina Martins, embora

não excluindo a força simbólica e plurissignificante, se destaca principalmente pelo seu paralelo

com os problemas sociais vividos nos grandes centros urbanos. Nas obras que serão estudadas,

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nota-se claramente que a exclusão social que sofrem as crianças dos segmentos desfavorecidos é

discutida a fundo, com o olhar sensível da arte.

Antônio Cândido, em Literatura e sociedade, esclarece sobre a importância de não se separar

a Literatura de seu meio social, por entender que se tornaria uma visão alienada do objeto

artístico, como se lê em suas afirmações: “Hoje sabemos que a integridade da obra não permite

adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só podemos entender fundindo texto e contexto

numa interpretação dialeticamente íntegra” (1967: 04) e “Tomando o fator social, procuraríamos

determinar se ele fornece apenas matéria que serve de veículo para conduzir a corrente criadora;

ou se, além disso, é elemento que atua na constituição do que há de essencial na obra enquanto

obra de arte” (1967: 5).

Essas questões levantadas por este grande crítico da Literatura Brasileira nos acompanharão

na investigação sobre as obras de Georgina, em que o social se faz presente a todo instante e em

certa medida não funciona apenas como pano de fundo, mas como elemento constituinte e

essencial na obra de arte. Texto e contexto social na Literatura de Georgina parecem ser um elo

indissociável e, portanto, não prescindiremos de estar atentos aos dois na análise das realidades

que foram fonte de inspiração para os textos de Georgina Martins.

Consideraremos a obra da escritora como engajada, a partir dos seguintes pressupostos:

Banoît Denis, em Literatura e Engajamento (2002) e Theodor Adorno, Notas de Literatura

(1973), estudados em capítulos anteriores. O engajamento de Georgina Martins está, sobretudo,

em uma preocupação em “dever ser de outro modo” (1973: 70), uma ânsia por mudança e uma

indignação que não quer calar frente às desigualdades e às injustiças observadas na sociedade

brasileira. Georgina, em seu texto, não se esquece do belo, mas o deixa transparecer em lugares

inusitados e esquecidos por grande parte dos brasileiros, evidenciando a sua sensibilidade

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artística em várias estruturas de sua narrativa: o narrador, as personagens, o espaço etc. Todos

permeados por uma magia de vontade de mudança, por um mundo mais justo, em que todos os

seres humanos sejam vistos pela sociedade como “seres humanos”.

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4 Contos ecológicos em No olho da rua: historinhas quase tristes

O livro No olho da rua: historinhas quase tristes, editado em 2002, pela editora Ática, ao

nosso ver, é aquele que melhor dialoga com as diretrizes apresentadas nos dois primeiros

capítulos, por ser um livro que retrata de maneira humana e sensível, com qualidade artística, as

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realidades em que muitos meninos de rua estão inseridos. É uma coletânea de contos, que, cada

qual com sua dramaticidade, narram percalços conhecidos pela escritora na sua aproximação

com meninos de rua. A narradora, neste caso, seria a fonte de reflexão e de denúncia ante a

insensibilidade com que as pessoas de modo geral se comportam na sociedade capitalista pós-

moderna. Poderia ainda ser considerada um foco de resistência à indiferença que anestesia

grande parte da sociedade como um todo, não permitindo perceber o excluído. Através de um

olhar cuidadoso e particular da narradora em No olho da rua: historinhas quase tristes, Georgina

consegue contrapor as idéias do senso comum às possibilidades investigativas de comportamento

de meninos de rua. A narradora, como um elo provocativo de reflexão, funciona como

resistência à idéia de que esses moradores de rua são assustadores, mostrando-os enquanto

crianças. Essa nova percepção, consolidada principalmente pela comparação com “nossos

filhos”, nos remete a uma discussão mais aprofundada sobre quem são essas pessoas e que fatos

as transformaram desta maneira. A fantasia inerente ao texto infanto-juvenil chega ao extremo

com o intuito de “sacudir” o leitor e fazê-lo ver as histórias que nos são contadas pelos jornais a

cada dia por um ângulo diferente. A obra causa impacto e surpresa, pois contradiz o que o senso

comum esperaria do comportamento de meninos de rua. Através desta técnica, pode provocar o

inculcamento de valores mais humanos, mais altruístas e menos egocêntricos, contrários a mais

valia e a defesa da propriedade privada a qualquer custo, na onda do consumismo em voga na

pós-modernidade. O impacto e a surpresa presentes na teia narrativa dos contos de Gerogina se

dão também em parte pela própria natureza do conto. No livro Teoria do conto, de Nádia Battella

Gotlib, tem-se as seguintes constatações sobre essa forma literária, a partir da concepção de Poe:

A teoria de Poe sobre o conto recai no princípio de uma relação: entre a extensão do conto e a reação que ele consegue provocar no leitor ou o efeito que a leitura lhe causa.

É o que Poe expõe no prefácio à reedição da obra Twice-told tales, de Hawthorne, em texto intitulado Review of Twice-told tales”, de 1842. Aí, o contista norte-americano parte do pressuposto de que “em quase todas as classes de composição, a unidade de

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efeito ou impressão é um ponto de maior importância”. A composição literária causa, pois, um efeito, um estado de excitação ou de exaltação da alma. E como todas as excitações intensas, elas são necessariamente transitórias. Logo, é preciso dosar a obra, de forma a permitir sustentar esta excitação durante um determinado tempo. Se o texto for longo demais ou breve demais, esta excitação ou efeito ficará diluído. (1990: 32)

O fato de ter um compromisso especial com a história narrada, possuindo brevidade

adequada, faz do conto uma forma literária que pode causar no leitor um efeito único:

Porque cada conto traz um compromisso selado com sua origem: a da estória. E com o modo de se contar a estória: é uma forma breve. E com o modo pelo qual se constrói este seu jeito de ser, economizando meios narrativos, mediante contração de impulsos, condensação de recursos, tensão das fibras ao narrar. Porque são assim construídos, tendem a causar uma unidade de efeito, a flagrar momentos especiais da vida, favorecendo a simetria no uso do repertório dos seus materiais de composição. (1990: 82)

Por sua natureza literária, os contos da obra No olho da rua: historinhas quase tristes portam

consigo o poder de fornecer ao leitor esses momentos de êxtase e de surpresa, detendo-o a cada

página e ao fim de cada conto, o enredando para ler o próximo. Chamamos os mesmos de contos

ecológicos por entendermos por ecologia o cuidado com a habitação humana, englobando todos

os seus constituintes, inclusive os seres humanos. Por apresentar um estilo de proteção à

humanidade, ao que há de essencial no ser humano, como evidenciado anteriormente,

consideramos esses contos ecológicos.

O projeto gráfico da obra foi assinado por Renata Alves de Souza, a partir das ilustrações do

artista plástico Nelson Cruz, que nasceu em Belo Horizonte e vive atualmente em Santa Luzia. O

artista recebeu o prêmio de "Melhor Ilustração Hors-Concours" (2003), pelas ilustrações do

primeiro volume da coleção Dedinho de Prosa, Conto de Escola, de Machado de Assis,

concedido pela FNLIJ. Na Feira de Ilustradores da Bolonha (Itália), Conto de escola foi exposto

no estande da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil. O livro também virou capa do

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catálogo dessa Fundação durante a feira bolonhesa. Conto de escola foi incluído no catálogo

"The White Ravens", da Internationale JugendBibliothek (Munique, Alemanha), conforme relata

o site http://www.cosacnaify.com.br/noticias/conto_escola.asp.

Nelson Cruz adiciona ao texto de No olho da rua: historinhas quase tristes um sensível olhar

artístico a cada situação narrada através de um jogo de claro e escuro, de cores, de proporções de

medida e de inclinação dos elementos ilustrados. Faz a seguinte declaração sobre o livro no final

da narrativa: “Mas essas histórias de Georgina sobre crianças abandonadas me pegaram de jeito.

Fiquei tocado! Elas nos levam a refletir sobre essa condição que nos entristece e nos afasta da

idéia de sociedade evoluída” (2002:56)

Portanto, a leitura que faremos dos contos de Georgina Martins será acompanhada da leitura

das ilustrações, pois estes se fundem de maneira a formar um material artístico indissociável de

grande valor.

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4.1 Título, epígrafe e a apresentação da narradora-personagem

O título da obra está imbuído de sentidos implícitos, que nos permitem pontuar algumas

leituras e significações possíveis.“No olho da rua”, pode ser ler lido enquanto expressão

idiomática, no sentido de expulsar alguém de algum ambiente e submeter o indivíduo a uma

condição de morador de rua ou desempregado (mas sempre deslocado de instituições sociais,

sejam elas lar ou emprego). Nesta linha de pensamento, o título pode sugerir que os meninos

retratados nos contos são resultados de um sistema que os expulsou da convivência em

sociedade, os consagrou aos limites de seres marginalizados, sem expectativas no contexto

social: o excluído, o marginal, aquele que não pertence às fronteiras do meio social. Logo, esses

meninos não estão nas ruas porque querem, como comumente é alardeado pela mídia e pelo

senso comum, mas estão na rua porque foram submetidos a isso, pelo Estado que deveria prover

seus participantes, e, contraditoriamente, os exclui, os marginaliza. É da exclusão em toda a sua

crueza que Georgina vai tratar, mas, como o título sugere, é a exclusão impingida pelo sistema,

diferentemente de outras literaturas na mesma linha, que não fazem essa contextualização.

O termo “No olho da rua” pode sugerir ainda o olhar das pessoas sobre esses seres de rua,

como são vistos e encarados pelos habitantes desta sociedade. A narrativa, como um todo, vai

evidenciar esses olhares que se voltam para esses meninos, de maneira nem sempre harmoniosa e

geralmente desconfiada. É interessante notar que é o olhar humanitário que tem maior relevância

nos contos, e esse olhar é conferido a pessoas distintas, que podem fazer a “diferença” e oposição

à “indiferença pós-moderna. Esse olhar “diferente” é conferido à narradora, Maria, a uma amiga

da narradora, a Ana, a um vendedor de livros e incrivelmente a um policial, contradizendo muito

de nossas expectativas em relação a esse profissional.

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O subtítulo “historinhas quase tristes” permite uma leitura interessante, pois geralmente

historinhas infantis não têm final triste, terminam, em grande parte com o “e foram felizes para

sempre”. Intencionalmente, Georgina sabe que estes meninos são os opostos dos heróis infantis,

não vencem, mas perdem, não têm mundo encantado, mas realidade dura, etc. Entretanto,

suaviza ao dizer “quase”, pois não são completamente tristes, apontam saídas, possibilidades de

conduta que o outro pode ter em relação a esses meninos que contradizem o senso comum e o

sistema capitalista vigente. É um livro repleto de atitudes, sejam elas práticas ou reflexões, mas

atitudes que não conferem a esses contos uma perene tristeza, mas ensejos de “diferença”.

Reproduziremos a seguir a epígrafe, para posteriormente comentá-la:

Aos anjos da Candelária.

Aos meninos e meninas perdidas, nesta Terra do Nunca às avessas, e que precocemente perdem a infância sem que nenhum Peter Pan, fada ou bruxa possa transformá-los em meninos de verdade.

Ao Beto Novaes, que acredita no sonho.

E a Ivone Cabral, que às vezes se chama Ana e gosta muito de pizza. (2002: s/p)

Tem-se aqui a triste realidade da infância abandonada brasileira em confronto com a tradição

literária mágica do Ocidente Europeu. Diz “Aos anjos da Candelária” remetendo à Chacina

ocorrida em 1993, em que vários meninos que se abrigavam em frente à Igreja da Candelária

foram brutalemente assassinados enquanto dormiam, sem nenhuma possibilidade de defesa,

incorporando a idéia que permeia no senso comum de “limpeza da cidade”. A terminologia

“anjos” delimita a posição ideológica da escritora, eximindo de qualquer culpa essas crianças,

que, ao ver da escritora, são simplesmente resultados do regime excludente capitalista em que

vivemos. A Terra do Nunca às avesas é a nossa realidade, em que a fantasia tem pouco ou

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nenhum espaço para essas crianças, que são submetidas ao seu próprio sustento desde muito

pequenas. A Terra de Peter Pan, onde tudo é possível e mágico, conforme Barrie relata em sua

história, é o oposto da nossa realidade brasileira, cujas possibilidades são inexistentes para

determinados segmentos sociais ou “a-sociais”. E nesta realidade, não há criatura mágica

transformadora, como nos contos europeus de tempos passados: fadas, bruxas e Peter Pan. Essas

personagens do mundo da fantasia que criam possibilidades inimagináveis nos contos de fadas,

salvando os meninos dos perigos e os aproximando da felicidade, simplesmente não existem.

Georgina compara a condição desses meninos à de Pinóquio, que não era menino de verdade até

o final da história, e sim uma marionete de madeira, sem deveres e também sem direitos. (na

maior parte da história original ele é morador de rua, passa fome e diversas necessidades). No

final do clássico italiano de Carlo Collodi, entretanto, a marionete se transforma em menino de

verdade e tem um final feliz, diferentemente, de nossas crianças, abandonadas, distantes de

saberem o que é ser um menino de verdade.

A autora oferece a obra finalmente a dois amigos e nesse momento, de maneira mais

otimista, consagra o espaço do sonho e o da ficção, ao afirmar “que às vezes se chama Ana...”,

confrontando uma pessoa real a um personagem. O “às vezes” permite a imprecisão, a

verossimilhança necessária à ficção. Logo, ela delimita o espaço da ficção, separando-a da

realidade.

Na primeira parte do livro: “De meninos, de meninas, de mim e daqui”, a narradora se

apresenta com incrível semelhança à biografia da escritora Georgina Martins. Todavia, o espaço

da Literatura é instaurado neste prefácio, a partir do momento em que a própria narradora,

enquanto personagem, se apresenta. Entra-se, apesar da semelhança com a vida da escritora, no

espaço do simbólico.

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Conforme pontua Anatol Rosenfeld, em “Literatura e personagem”, artigo publicado no livro

A personagem de ficção, organizado por Antônio Cândido, nestes casos, a intenção ficcional se

instaura: “ O autor parece convidar o leitor a permanecer na camada imaginária que se sobrepõe

e encobre a realidade histórica/.../ É porém a personagem que com mais nitidez torna patente a

ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza. (2002: 21)

Concretizado o espaço narrativo da ficção, faz-se ainda uma aproximação grande do

personagem-narrador com o leitor, como percebemos no trecho a seguir da obra estudada:

“Então, é bom que fique claro que eu tenho apenas alguns muitos anos a mais que você, e por

isso sei um monte de histórias que você não conhece/.../” (2002: 9).

A narrativa surge do narrador, sendo ele fonte inesgotável de conhecimentos, como o trecho

acima evidencia. É um processo artesanal entre narrador e vida humana, conforme diz Walter

Benjamin, em “O narrador”:

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão, é ela própria, nem certo sentido, uma força artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o puro em si da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim, se imprime na narrativa a marca do narrador, com a mão do oleiro na argila do vaso. (1985: 205)/.../ a relação entre narrador e sua matéria – a vida humana- não seria ela própria uma

relação artesanal? Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência – a sua e a dos outros- transformando-a num produto sólido, útil e único? (1985: 221).

Então, misturam-se nas narrativas a experiência do narrador, o conhecimento dele sobre o

fato narrado e sua posição ideológica, formando um conteúdo único indissociável, que é a arte,

como é evidente nos trechos iniciais do livro No olho da rua: historinhas quase tristes.

A ficcionalidade da obra e sua aproximação com a realidade são discutidas também no

prefácio, na fala do personagem-narrador, que busca resumir a obra e explicar as fontes de

explicação:

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São histórias de meninos e meninas, às vezes com casa, às vezes sem, mas que, de um modo ou de outro, moram ou zanzam nesta cidade, e que a gente sempre encontra pelas ruas. Alguns vão dizer que são histórias quase engraçadas, outros que são tristes ou quase tristes, e outros, ainda, que são só quase verdade... Mas posso jurar que todas aconteceram mesmo, não inventei nenhuma! Posso, em algumas, ter aumentado um pouquinho, trocado os nomes das pessoas...agora, inventar, eu não inventei nada...bem...quase nada... (2002: 9)

A imprecisão nas colocações finais da narradora evidencia o tênue limite de ficção e

realidade, principalmente em uma obra com alto teor realista como esta, mas, paradoxalmente,

mais uma vez, privilegia o espaço da narração ficcional e a sua desobrigação com a fidelidade de

acontecimentos reais. Ou seja, a realidade é pano de fundo, é matéria-prima, mas o desenrolar

das histórias é fruto do processo criativo.

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4.2 Os meninos e a pizza

Este é o primeiro conto do livro No olho da rua: historinhas quase tristes. Tem um inusitado

enredo: um assalto praticado por três menores a uma enfermeira termina em pizza, literalmente.

Pode ser que este seja o mais polêmico de seus contos, em que a fantasia e o imaginário se fazem

presentes, abrindo espaço para as possibilidades. Não ser indiferente ao outro é tudo de mais

forte que se observa neste conto. Sem pieguices, sem melodramas, sem bajulações, sem

idealizações, é o simples encontro de alguns seres humanos, pertencentes a realidades diferentes,

com histórias diferentes, motivações diferentes, valores diferentes, mas seres humanos e são

vistos nesta história como seres humanos. A possibilidade de assaltantes lancharem na mesma

mesa, no dia do assalto, cordialmente, com sua vítima, é algo que nos remete para o imaginário,

se bem não saibamos o grau de ficcionalidade desta história. A crença na humanidade latente nas

pessoas é fator que motiva a obra como um todo, em que o excluído social é sempre visto como

alguém que apresenta possibilidades.

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Antes de tudo, o conto se inicia com uma notável ilustração de Nelson Cruz: trata-se da

figura do contorno de três meninos, sem traços nítidos, todos sombreados. As figuras não têm

face, expressão, olhar, ou qualquer elemento que permita o esclarecimento de indícios para pré-

julgamentos. Representam a infância abandonada no Brasil, sem face, sem história, sem nada.

Meninos de rua, que para o senso comum, camuflado pela indifernça pós-moderna, são seres

indignos de nossa atenção, supeitos, que provocam medo e são rotulados e massificados, sem

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que sequer se veja sua trajetória, seus medos, seus sentimentos. São perigosos e devem manter-se

afastados, distantes. A sociedade não se importa com os seus destinos, com suas famílias, com

seus problemas, desde que se mantenham afastados. Os destinos dessas crianças começam a ser

discutidos somente quando a violência suspende a indiferença e faz sobressaltar o medo.

O trabalho de sombreamento feito pelo ilustrador também pode ser bastante elucidativo, pois

remete a proporções. As sombras são maiores que os meninos, como se remetessem à proporção

que o sistema confere aos “menores”, que são, na realidade, produtos do descaso. Essas imensas

sombras representam o “peso e a medida” que o Estado costuma atribuir aos delitos praticados

por esses meninos, enquanto as figuras pequenas dos meninos representam a infância, a

desproteção.

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A segunda ilustração do conto é a representação de uma rua de subúrbio, que lembra muito a

pintura de Di Cavalcanti, principalmente pela mulher, sentada em uma cadeira na rua.

Características do subúrbio e a pintura de uma “mulher natural”, isenta da plastificação artificial

canonizada de beleza permitem este comentário. A figura ocupa uma página inteira e repete as

figuras desproporcionais de imagens e sombreamentos dos meninos na espreita de uma mulher,

esta sem sombra e com olhar nítido, face nítida, posição das mãos e outros detalhes em

evidência. Os meninos, apagados, sem face, sem expresão.

A narrativa começa da seguinte maneira: a narradora comenta tratar-se de uma amiga,

chamada Ana que, saindo de seu plantão do hospital, é submetida a um assalto por três menores.

Movida pela sua vontade de comer pizza, ela toma uma atitude inusitada: os convida para

comerem pizza juntos:

- Tia, passa a grana e o relógio; não adianta reagir que nós tamos armados.Minha amiga viu que todos tinham canivetes e, nessa hora, ela ficou um pouco assustada.-Tia, anda logo com isso, a gente tá com pressa!Ela abriu a bolsa e deu a eles todo o dinheiro que tinha e mais o relógio. O dinheiro até que não era muito, mas, para molequinhos como aqueles, dava pra fazer uma boa farra.Foi bem na hora em que eles já iam se virando para ir embora que a minha amiga teve uma idéia. (Depois ela me disse que só teve a tal idéia porque estava morrendo de vontade de comer pizza) Olhou pra os meninos e disse:- Que tal se a gente fosse ali no Petisco comer uma pizza, hein? Eu to morrendo de fome! (2002: 13)

Neste trecho é nítido que, apesar de assustada, como qualquer indivíduo ficaria em uma

situação de risco, Ana vence os limites de segregação que separam os mundos dos meninos e o

dela e se aproxima de uma realidade comum a todos: pizza. Quem não gosta de pizza? Qual

pessoa não se sente motivada a um convite de comer pizza que, geralmente, implica reunião de

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amigos, pessoas que se querem bem ou familiares. Neste sentido, ela consegue manter um viés

de contato com aquelas crianças, bem diferente de outros como xingamentos, olhares

preconceituosos, tapas, socos, ou até pedidos de não faça isso, por favor. Era o inusitado que

visitava os meninos, alguém os tratou como pessoas, sem armadilhas, sem trocas, sem que eles

tivessem dado qualquer tipo de brecha que permitisse tal contato. Era talvez a primeira vez que

eram olhados de maneira não preconceituosa.

Neste ponto da narrativa, começam a surgir os diversos preconceitos e olhares indiferentes

que a sociedade verte para esses meninos:

-No Petisco? Mas o garçom não vai deixar a gente entrar, tia.- Se a agente entrar com a tia, ele vai ter que deixar, ora! /.../- Quero só ver a cara daquele mané que nunca deixa a gente ficar lá. Noutro dia, a gente bem viu o Martinho da Vila! O Andrey queria entrar pra pedir um autógrafo, mas o garçom não deixou. (2002: 14)

Esta segmentação social que estabelece quem pode entrar em uma restaurante é sempre

baseada nas aparências, tão em voga e valorizada no mundo pós-moderno e consumista. Neste

caso, o fato de eles terem ou não dinheiro não importa, mas é relevante sim que a exclusão não

fique à mostra para os freqüentadores do famoso lugar, a pobreza, a aparência suja e descuidada,

diferente dos modelos globais ditadores de moda e beleza. Aqueles meninos são os “lixos

humanos” estudados por Bauman, aqueles que não têm utilidade na sociedade capitalista, não

tendo portanto, posição a ocupar enquanto cidadão:

Todo modelo de ordem é seletivo e exige que se cortem, aparem, segreguem, separem ou extirpem as partes da matéria-prima humana que sejam inadequadas para a nova ordem, incapazes ou desprezadas para o preenchimento de qualquer de seus nichos. Na outra ponta do processo de construção da ordem, essas partes emergem como “lixo”, distintas do produto pretendido, considerado “útil”. (2004: 148)

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Eles são os anti-heróis, falhos como consumidores, os que não têm poder aquisitivo para

exigirem os seus direitos enquanto cidadãos. Bauman explica que hoje os dois termos “homem”

e “cidadão” expressam realidades distintas e seus direitos conseqüentemente, também:

E por toda era moderna essa “potência” veio a ser, invariavelmente, aquela que traçou a fronteira entre humano e inumano, disfarçada nos tempos modernos, na que divide cidadãos e estrangeiros./.../ os sem-teto são também sem direitos, e sofrem, não por não serem iguais perante a lei, mas porque não existe lei que se aplique a eles e nas quais possam se pautar, ou a cuja proteção possam recorrer/.../ (2004: 152)

Esses seres indignos de proteção do Estado e segmentados por todos os lados da sociedade

podem ser chamados de estrangeiros, pois não têm pátria, pelo menos não esta. Na narrativa, são

evidentes os sinais de exclusão aos quais esses meninos foram submetidos que, provavelmente,

se não funcionaram como agentes, funcionaram como colaboradores importantes para que

estivessem praticando delitos:

- Tia, eu me chamo Anderson. Esse aqui é o Wesley...- Eu me chamo Andrey. Minha mãe disse que é com ípsilon que se escreve. - O meu é com dáblio. Quando eu for pra escola vou aprender a escrever meu nome. Meu pai disse que quando sair da prisão, ele vai me colocar na escola e que eu vou poder morar com ele. Eu falei que queria uma casa com banheiro do lado de dentro. Banheiro do lado de fora é muito ruim, nem dá pra tomar banho... (2002: 15-6)

A escola, direito de todos, não é um direito dos meninos, nem o direito à família, muito

menos o direito a um lar. As falas desses meninos evidenciam que a escola ainda é vista como

possibilidade por eles. Em seus imaginários, um dia terão o direito a decifrar os códigos

lingüísticos, signos sociais estes que também podem significar poder e exclusão. Diferentemente

do que os “indiferentes pós-modernos” pensam, essas crianças gostariam de estudar e saber

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escrever seus nomes. Um outro fato muito importante que vamos encontrar nesta narrativa é a

questão da falta do espaço físico do banheiro no interior das residências pobres: a falta de

privacidade a que eles são submetidos, a invasão de seu espaço e território. É interessante notar

que bem antes deles invadirem o espaço do próximo, o deles não era respeitado. A busca por um

espaço legitimamente deles aparece a todo o momento na narrativa, ilustrando o desejo de

inclusão na sociedade: pizzaria, escola, banheiro. O desejo de um banheiro na residência é

comum em outras narrativas que tratam de meninos excluídos, que vislumbram em um banho de

chuveiro uma grande conquista. A narradora desta história relata sobre o hospital em que Ana

trabalhava: “Lá, a maioria das crianças também era muito pobre e não tinha banheiro dentro de

casa /.../ Ela dizia que as crianças adoravam o banheiro do hospital por causa do chuveiro – elas

só tomavam banho de chuveiro quando estavam internadas. (2002: 17)

Na narrativa, mais uma vez é inserido o espaço do sonho e da tentativa dos meninos de se

sentirem incluídos, quando um deles, ignorando a impossibilidade de esta façanha se realizar,

diz: “Quando eu crescer vou querer ser médico!” (2002: 17). A fantasia infantil aqui é

preservada, a capacidade de sonhar e de desejar, inerente ao ser humano, é trazida à tona como

elemento que consagra toda a humanidade presente nestes menores, ignorados pelo sistema,

foragidos no limite do inumano, rechaçados pelo desprezo da multidão, inconcebíveis como

pessoas. É a humanidade destes meninos que transborda nessas linhas, como valor

imprescindível que Georgina pretende preconizar em suas histórias.

A ausência de alimentos também é narrada no decorrer da conversa entre Ana e os meninos,

além da saga para consegui-los em suas peripécias pelas ruas: “ – Humm! ... Tá muito boa essa

pizza! Eu também tava morrendo de fome, ainda não tinha comido nada hoje: a rua tava muito

ruim, a gente não conseguiu arrumar nada...” (2002: 18). A subsistência dos meninos é

determinada por seus atos ilícitos, como é claro neste trecho. É interessante notar a postura de

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Ana, que em nenhum momento apresenta qualquer palavra de julgamento às atitudes dos

meninos, fato este que permite que eles confiem nela e se coloquem, falando de seu dia-a-dia.

Há uma ilustração pequena de canto de página, em que se observam os meninos, juntamente

com Ana, sentados à mesa do restaurante. É válido ressaltar que a proporcionalidade mais uma

vez pode ser ponto para discussão nesta ilustração. A proporção das medidas entre cadeiras e

crianças explicita a baixa estatura deles, e provavelmente, a pouca idade também. Ressaltam-se

ainda as fisionomias dos garotos, que desta vez aparecem. Estão felizes, falando, com as mãos à

vista e olhares contentes, pois lhes foi dado o direito de participar da sociedade, de terem voz, de

serem ouvidos e não silenciados, como costuma ser. Agora, pelo menos por breves momentos,

não são sombras sem rostos, ignorados pelos sistemas, mas são pessoas, com todos os seus

atributos.

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Os meninos falam o tempo todo e em um determinado momento eles, curiosos, perguntam

sobre a vida daquela tia, que tanta atenção dava a eles, com poucos gestos e palavras:

- Tia, você tem filho?- Tenho dois: um menino e uma menina.- E onde é que eles estão agora?- Em casa.- Sua casa é bonita?- Mais ou menos, mas eu gosto muito dela.- Aposto que na sua casa o banheiro é do lado de dentro... Eu também queria ter uma casa, dormir na rua é muito ruim, dá muito medo... Quando eu crescer eu vou ter uma casa bem bonita... Tia, por que que a senhora chamou a gente pra comer pizza?- Porque eu estava com muita fome e não ia agüentar esperar até chegar em casa. Vocês vão querer mais alguma coisa? (2002: 20)

Mais uma vez a refrência ao banheiro dentro de casa, a privacidade respeitada, a dignidade

garantida, tudo o que aqueles garotos queriam e aquela moça tinha. E surge uma curiosidade da

parte deles: o porquê do convite para comer pizza. Era algo realmente inusitado, uma cidadã

convidar um menino de rua, pivete, assaltante que a fez de vítima nas circuinstâncias narradas,

para comer pizza. Para nossa leitura é importante constatar que sem pieguices ou

sentimentalismo, Ana usa o argumento da fome e nada mais, ela não os amava, nem os odiava,

os via como seres humanos comuns. Nada a discutir ou nenhum sermão para dar, nem pedidos de

devolução do assalto, era a fome e nada mais que os reunia naquele dia. Naquele momento, eles

eram pessoas que se reuniam para se alimentarem, sanarem a fome, o que há de humano também

em todos nós. É notável nesta colocação de Ana: a fome como urgência, algo que não pode

esperar, nem prevê reflexões, é somente um instinto básico que clama a sua resolução. Podemos,

então, perceber que a mesma atitude que movimenta Ana a dividir a pizza com aqueles meninos

“pivetes de rua”, talvez perigosos, motiva os meninos a realizarem o assalto, sem reflexões ou

preceitos morais, mas em busca de alimento. Como pensar ou refletir com o estômago clamando

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comida? No caso de Ana, provavelmente estava algumas horas sem comer mas, para os

meninos, aquela talvez fosse a primeira refeição, como eles mesmo disseram em um determinado

trecho da conversa. Cada refeição para essas crianças é uma conquista a ser feita e uma luta a ser

travada.

Na hora de pagar a conta da pizza, parece que a redenção dos meninos acontece, sem que

eles percebam, por intermédio da atitude de Ana:

O garçom trouxe a conta e entregou a Ana, que foi logo dizendo:- Ó, eu estou dura... vocês me deixaram sem nenhum! A conta é com vocês...Por aquela eles não esperavam! Minha amiga disse que um ficou olhando par o outro, sem saber o que fazer.- E aí, quem é que vai pagar?De repente, o Anderson meteu a mão no bolso, contou o dinheiro que havia roubado da minha amiga e disse todo orgulhoso.- Pode deixar que eu pago, tia. Quanto é?/.../Eles já iam se levantando, quando minha amiga falou:- Tem troco, esperem.O garçom voltou com o troco e, quando ia entregá-lo ao menino, ele disse:- É da tia.Minha amiga apanhou o dinheiro e foram todos saindo do bar. Na calçada, ela olhou bem para os três e falou:- Agora preciso ir, já é tarde.Tomem, podem ficar com o troco. Quem sabe a gente não se encontra num outro dia pra comer mais pizza?Quando perceberam que a minha amiga já ia longe, saíram correndo atrás dela, gritando:- Tia, tia, o seu relógio! (2002: 21)

Desta maneira termina o conto, mostrando que seres humanos, quando são tratados como

seres humanos, têm, em grande parte, atitudes humanas, íntegras, redentoras. Com essa

possibilidade de aproximção à humanidade do outro, Georgina esboça uma saída dessa complexa

indiferença que vivemos na sociedade pós-moderna e aponta valores esquecidos, submergidos

pelo excludente sistema capitalista. Um vestígio de integridade resplandece na atitude do garoto,

que percebe a sua responsabilidade perante aquela conta e reconhece não ser possuidor daquele

dinheiro, ao devolver o troco para a tia. Como lhes foi dado um mínimo de dignidade, sem

repressões ou atitudes violentas, os meninos perceberam seus papéis naquele contexto.

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Estamos no plano da ficção e nesse plano tudo é possível, até o impossível, mas valores mais

humanos e possibilidades para a recuperação das crianças podem ser esboçados a partir de um

texto ficcional. A sensibilidade de Georgina e seu engajamento não propõem um modelo de

comportamento salvador perante essas crianças de rua, mas esboça atitudes que podem fazer o

outro se reconhecer como igual, como humano.

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4.3 O menino e o livro

Este é o segundo conto do livro de Georgina e que, devido a sua curta extensão, de forma

breve e sutil, esboça um comportamento atípico, dentro da concepção do que se espera de um

menino de rua: um menino que sabia e gostava de ler.

A história se inicia com uma ilustração de um menino, com face, olhos investigativos, mãos

no bolso e, uma espécie de equipamento, que surgindo de sua cabeça, sustentava um livro.

Parece uma metáfora, que através da arte pictórica, Nelson Cruz busca transmitir: o livro estava

na sua imaginação, “não saía da sua cabeça”, como diz a linguagem figurada da nossa língua. A

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importância da leitura para ele é ilustrada, sobretudo, pelo fato de o menino não trazer nada

consigo, a não ser o livro. Devido à narração, sabemos que nem o livro ele trazia materialmente

consigo, mas a imagem que o livro representava em sua vida, em seu imaginário.

Na narração desta história, Maria relata que, entrando em uma livraria em busca de material

para sua pesquisa sobre contos de fadas, encontra, surpreendentemente, “um menininho muito

distraído com um livro na mão”(2002: 25). Neste trecho, ela contrapõe mais uma vez em sua

obra, realidade e fantasia, quando dialoga com o leitor sobre a possibilidade de ele ter imaginado

o seu encontro com algum ser do mundo maravilhoso. Também aqui, com a estratégia

comparativa, ela desnuda a nossa realidade de uma forma bastante crítica, à medida que expõe as

circunstâncias em que o menino se apresentava fisicamente:

Aposto que você pensou que eu havia encontrado alguma fada ou uma bruxa, não é? Mas não, era um menininho mesmo, em carne e osso; aliás, em muito mais osso do que carne, porque ele era bem magrinho, bem raquítico e bem sujinho.Era um desses menininhos que quem é mãe logo vê que ele não tem uma – ou, se tem (ou tinha), provavelmente ela não tem tempo ou condições de cuidar dele. É porque eu acho que mãe só não cuida dos filhos quando não pode. (2002: 25)

Neste trecho, é evidente também a posição ideológica de Georgina, que se deixa ler a partir

do posicionamento ideológico da narradora, que afirma achar que mãe só não cuida dos filhos

quando não pode. Podemos notar, portanto, que toda discussão social que a autora propõe em sua

obra vai verter principalmente sobre o sistema em que essas pessoas estão inseridas. Em sua

visão, o problema da criança de rua não é o desleixo dos pais, que a abandonam, mas as

motivações que os levaram a abandoná-la. O grande gerador dos conflitos vivenciados por essas

crianças é o Estado indiferente, que deveria prover os pais para que pudesem cuidar deles,

através de empregos e oportunidades de inserção social, de forma digna, como todo ser humano

merece.

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A narradora conta que seu primeiro ímpeto, além de questionar aquele garoto, foi o de medo

dele, como se fosse uma figura ameaçadora. É comum que o estranho, o inusitado, o não

esperado nos assuste, mas cremos que com as palavras a seguir, Georgina quis evidenciar o

discurso ideológico do senso comum, do qual ninguém está totalmente isento, apesar de seu

conhecimento das causas sociais: “Confesso que a primeira coisa que pensei foi que ele estivesse

ali para roubar algum livro, ou se escondendo para roubar quem entrasse na livraria. A gente

sempre pensa isso de menininhos sujos e sem mãe. Fiquei até com um pouco de medo” (2002:

26). Embora a narradora seja alguém sensível para a causa do outro, não indiferente ao discurso

ideológico que domina os telejornais de todo o país e o medo se faz presente em seu discurso. No

livro Linguagem e ideologia, de José Luiz Fiorin, têm-se umas afirmações muito pertinentes à

nossa pesquisa sobre a ideologia presente nos discursos:

Uma formação ideológica deve ser entendida como a visão de mundo de uma determinada classe social, isto é, um conjunto de representações, de idéias que revelam a compreensão que uma dada classe tem do mundo./.../ essa visão de mundo não existe desvinculada da linguagem. Por isso, a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de temas e de figuras que materializa uma dada visão de mundo. /.../ Por isso, o discurso é mais o lugar da reprodução que o da criação. Assim como uma formação ideológica impõe o que pensar, uma formação discursiva determina o que dizer./.../ assim, como a ideologia dominante é da classe dominante, o discurso dominante é o da classe dominante.(2003: 32)

A formação ideológica que se materializa através do discurso, neste trecho do conto de

Georgina Martins, representa o preconceito social, a segmentação, a marginalização e

conseqüentemente a indiferença a que se condena a massa dos excluídos que emergem a todo o

momento diante de nós em situações diversas. O discurso da classe dominante, que impera nos

meios de mídia, será o discurso de que grande parte das pessoas, na fragmentação pós-moderna,

irá se apropriar: pobreza no vestir é sinônimo de violência e delito. Conseqüentemente, é o

discurso que Georgina denuncia neste conto, sem isentar qualquer um da força do mesmo.

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Embora ainda tenha receio, mas superado pelo seu enjagamento, a narradora aborda a criança

e se oferece a comprar-lhe um livro, que é negado. Ela insiste, mas ele continua muito entretido

na leitura, afirmando não querer o presente. Durante este diálogo, surge o vendedor, que é mais

uma daquelas ferramentas nas estratégias narrativas de Georgina, personagens que desenrolam

papéis humanizantes, que rejeitam o olhar indiferente do sistema àqueles meninos. O vendedor

fala com a narradora, que neste conto especificamente, desempenha o discurso das classes

dominantes, em oposição ao vendedor, que desempenha o papel daquele que enxerga o outro em

sua totalidade, ecologicamente:

- Precisa ter medo não, moça. Ele não é ladrão, não, a gente já conhece. Todos os dias ele vem aqui pra ler e fica aí, horas distraído com os contos de fada. Fiquei morrendo de vergonha! Era a primeira vez que um vendedor protegia um menino de rua de mim. E eu que sempre pensei que todos os vendedores não gostassem de menininhos magrinhos, raquíticos. Sujinhos e sem mãe... (2002: 27)

Da figura do vendedor, que está diretamente ligado e a serviço dos lucros capitalistas surge o

discurso ecológico, trazendo surpresa à narradora, que se envergonha de sua atitude, quase

impensada. A partir disso, ela ainda insiste para que ele aceitasse um livro como presente e o

menino então se coloca, demonstrando seus motivos de recusa:

- Moça, eu não tenho casa, moro na rua. Durmo ali na Candelária, e lá a gente não tem onde guardar as coisas. Se eu levar esses livros, os outros vão roubar. Por isso é que eu venho ler aqui. Todo mundo aqui já me conhece. Depois que eu lavo as mãos, eles deixam eu mexer em todos os livros que eu quiser. Nunca estraguei nenhum! Amanhã, quando eu voltar, vou ler esses que a senhora me mostrou, são muito bonitos. (2002: 28)

A narradora finaliza a história com sua reflexão, perante tamanho aprendizado que tinha

adquirido, a partir do relato de menino e de vendedor:

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Ele foi embora e eu fiquei pensando que as fadas e as bruxas da minha pesquisa não se importariam nem um pouco se eu as deixasse, pelo menos por algumas horas por dia, e viesse à livraria para acompanhar aquele menino em suas viagens pelo mundo encantado. (2002: 29)

A narradora, que neste conto se coloca como pesquisadora, percebe que o mundo mágico,

encantado, também está presente nos desejos desses meninos de rua, que não têm em sua

realidade nada do mundo maravilhoso. Mas nem por isso, estão isentos de sonhar, de fantasiar,

de fazer devaneios, processos imprescindíveis para nosso amadurecimento saudável, como

afirma Marcuse, em Eros e civilização: uma crítica filosófica ao pensamento de Freud:

Como processo independente e fundamental, a fantasia tem um valor próprio e autêntico, que corresponde a uma experiência própria- nomeadamente, a de superar a antagônica realidade humana. A imaginação visiona a reconciliação do indivíduo com o todo, do desejo com a realização, da felicidade com a razão. (1968: 134)

A superação da realidade humana em que está inserido é tudo de que um menino como este

precisa, para escapar da dura verdade a que está sujeito e vivenciar outros mundos, outras

possibilidades de realização; motivações de risos e de felicidade. O interesse pelo mundo mágico

torna esse “menor” uma crinaça real, com aptidões e desejos.

É importante ressaltar que uma história como esta é exceção, não pelo quesito do desejo,

mas pelo quesito da ferramenta lingüística. São raros os casos de meninos como estes que saibam

ler, que freqüentaram a escola, mas crê-se que não raro seja a disponibilidade deles para a

fantasia, só que muitas vezes realizada em subterfúgios muito perigosos, como a droga. Perdem,

no entanto, a oportunidade única que esse menino teve, a de se tornar humano, como Marcuse

afirma pela experiência cultural: “Não é possível tornarmo-nos seres humanos, salvo por

intermédio da experiência cultural.” (1968: 214)

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O conto é finalizado com uma belíssima ilustração, em que Nelson Cruz expressa o poder da

imaginação e da força simbólica na vida desse menino. O desenho figura o menino caminhando

pelas ruas, sorrindo, chutando latas e seguindo-os, em seu incalso, encontram-se figuras dos

contos mágicos que ele então lera: sacis, coelhos encantados e Visconde de Sabugosa, todos em

uma atitude de silêncio, como se não quisessem que o menino percebesse a existência real deles.

É linda e relevante a imagem, que denota a sutil linha que delimita realidade concreta e realidade

mental.

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A proteção à humanidade e o cuidado com o outro e suas necessidades psicológicas são fatos

marcantes nessa narrativa, em cuja tessitura percebemos novos valores embutidos, distintos do

discurso ideológico da classe dominante, que não reconhece a fantasia como necessidade real de

qualquer ser. É mais um conto ecológico, desta vez, com a preocupação voltada para a

preservação da saúde mental de todo e qualuqer ser, pela necessidade da fantasia em nossas

vidas.

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4.4 O menino e o sinal

Um aspecto marcante que está presente em todos os contos desse livro é a intertextualidade

que se constrói com eles, ou seja, um conto sempre apresenta algum trecho de releitura do outro,

compondo uma grande rede, em que todas as informções estão conectadas. Este terceiro conto

começa ntitdamente com essas retomadas:

O menininho desta história também era um desses meninos que vivem pelas ruas, só que eu não o encontrei na livraria. Acho que ele nunca havia entrado em uma. Era tão magrinho e raquítico quanto o outro e, muito provavelmente, tão sem casa e sem mãe quanto.Certamente ele nem sabia ler. Pelo seu jeitinho pude perceber que não era livro o que ele queria. (2002: 31)

Neste elucidativo confronto, Georgina opõe duas realidades, que antagonicamente tanto se

interceptam, quanto se distanciam. São dois meninos de rua, magros, em conseqüência,

provavelmente de uma paupérrima alimentação. São abandonados, não têm proteção, não têm

um lar, com todas as significações que esse vocábulo traz consigo. Esses são os pontos que

aproximam esses garotos: as semelhantes condições a que foram submetidos em suas trajetórias.

No entanto, a narradora ressalta a história de um menino no sinal de rua, através de suas

diferenças em relação ao menino do outro conto: ele não estava em uma livraria, ele não sabia ler

e não era livro seu objeto de desejo, deixando nas entrelinhas o submundo do crime em sua

vivência.

Ao narrar o seu encontro com aquela individualidade, busca, ao máximo, significar as suas

impressões, através da descrição do menino que perambulava pelo sinal de trânsito: “Era bem

miudinho, quase não dava para enxergá-lo de dentro de um carro/.../” (2002: 33), ensejando toda

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a infância presente naquele pressuposto assaltante. Posiciona-se ideologicamente perante o

espaço freqüentado pelo menino, ao afirmar: “Não sei o que você pensa sobre isso, mas para

mim sinal de trânsito não é o melhor lugar para crianças ficarem.” (2002: 33). Através de um

corte na narrativa, se faz um intercâmbio com o leitor (processo já visto em outros contos),

remetendo-lhe a sua visão sobre espaços que não devem ser freqüentados por crianças. É

evidente, neste trecho, a preocupação da autora em relatar que, independentemente do que

estivesse fazendo o garoto no sinal: vendendo balas, lavando vidros de carros ou roubando, o

espaço da rua não é um espaço para crianças perambularem entre carros, arriscando suas vidas

por vários motivos óbvios.

Após essas reflexões iniciais, a narradora relata o assalto sofrido, sem prescindir de fazer

digressões sobre o fato:

/.../ ao fechar o sinal, percebi aquela coisinha miúda, com um pedaço de caco de vidro na mão, bem junto da janela do meu carro, com uma cara muito brava e uma voz que era um fiapo, de tão fininha:- Moça, passa o dinheiro e o relógio, senão eu vou te cortar!Imagine você o susto que eu levei! Olhei para o lado e fiquei sem entender direito como um menininho daquele tamanho conseguiria me fazer mal.Mas pareceu-me que ele estava falando sério:- Anda logo, eu não to brincando!Naquela hora eu me lembrei dos meus filhos, tão pequeninos quanto ele e, às vezes, tão malcriados quanto. O molequinho era muito atrevido. Merecia umas boas de umas palmadas e depois uma cama quentinha para consolar suas lágrimas. /.../ (2002: 33-34)

O menino de rua, apesar de estar particando um delito, é visto pelo olhar atencioso da

narradora em toda a sua meninice. A violência praticada pelo menino, naquelas circunstâncias, é

lida como uma malcriação infantil, a partir de uma analogia entre aquele menino e seus filhos,

que também apresentavam petulância, raiva, atrevimento. Todas essa reações são vistas como

naturais da criança, assim como as punições que seus responsáveis lhes dão para reprimi-las.

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Mas aquela criança de rua provavelmente não tinha seu responsável, logo, suas malcriações não

eram reprimidas, sendo constantemente repetidas. O paralelo entre filhos e menino de rua é

estratégia textual essencial para trazer à discussão o aspecto infantil desses meninos de rua que,

embora apresentem comportamentos reprováveis, são crianças.

Observamos em diversos casos largamente explorados pela mídia, a maneira como a

população em geral injeta a culpa da criminalidade nos “menores”. Exige, então, a urgente

punição pelos seus crimes, mas o julgamento é feito sumariamente, como se animais que fossem,

não tivessem sequer direito à defesa. Freqüentemente, a infância desses seres é esquecida e as

circunstâncias que os levam a praticar delitos também. A arte engajada de Georgina faz emergir,

dentro das discussões de maioridade penal, a similitude desses seres, esquecidos, excluídos,

marginalizados, às crianças nossas.

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A ilustração da página 32 do livro faz um jogo de luz e escuridão, trazendo à tona a dispersão

dos valores e a confusão, para uma possível leitura atenta de fatos díspares que se intercalam

entre claro e escuro. É um perfeito retrato da sociedade capitalista pós-moderna em que vivemos,

onde menores de idade desfilam entre os carros de uma grande cidade, tentando adquirir seus

sustentos, enquanto detentores do poder passam onipotentes, indiferentes. A grandiosidade de

um centro urbano é contraposta à figura pequena deste menino na ilustração. Com o menino,

além de um caco de vidro, nota-se uma chupeta presa em um cordão, simbolizando o lado pueril

daquele ser. O carro sobre o qual se encosta o menino reflete a magnitude da sociedade crescente

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em forma de gigantescos prédios, simbolizando o cutlo às imagens de progresso social.

Progresso social se contrapõe, nesta imagem, ao desprezo a massas que circulam pelas ruas.

A narradora, então, expressa a sua reação perante a solicitação um tanto quanto violenta

daquele menino:

Mais que tudo, na verdade, acho que ele precisava mesmo era de uma boa cama, bem quentinha, para embalar não só as suas lágrimas, mas principalmente os sonhos dos seus... sei lá, cinco anos de idade.Olhei para aquele menino com uma cara bem séria, acho que do mesmo jeito que olho para os pequenininhos lá de casa quando estão fazendo besteira, e falei rispidamente: -Fique calmo, vou te dar meu relógio e o dinheiro. Não precisa ficar nervoso.Devo confessar que eu estava com muito medo, não sei se do menino ou se de arrancar com o carro e machucar o braço dele. (2002: 34)

A pressuposta idade do menino é informada, cerca de cinco anos, talvez por isso, se explique

a atitude de comparação da narradora a seus filhos. As reflexões da narradora continuam

caminhando para essa analogia, assim como suas atitudes profundamente humanas para com ele,

exortando a sua sensibilidade, sua visão dialética, diante de uma sociedade que, nestes

momentos, rotula, segmenta e é indiferente à totalidade dos fatos. Por isso, é inusitado seu dizer

em que se preocupa em não machucar o menino. O amor ao próximo neste momento é maior que

a preocupção individulista com seus bens.

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Há uma ilustração pequena no canto da página 34 do livro que retrata a chupeta caída no

chão ao lado do caco de uma garrafa, ensejando novamente a possível leitura que confronta

violência versus inocência, agressividade versus infantilidade.

O final da narrativa é sensível e revelador, contrapondo todas as atitudes violentas que se

esperava daquele pequeno infrator, pois ele responde à narradora: “- Então não vou te cortar mais

não tá, tia?!” (2002: 34). Esta fala infantil, recorrente no discurso das crianças, em que a troca é

fator determinante para determinados fins, porta para a narradora uma série de reflexões:

Já estava longe dele, mas ainda podia ouvi-lo repetir:- Então não vou te cortar mais não, ta?!Parecia os pequenininhos lá de casa quando tentam me fazer desistir de puni-los por causa de suas travessuras: “Então não faço mais isso não, tá? Não vou chorar mais não, tá? Não vou mais bater no maninho não, tá?”.Acho que naquela hora, se eu convidasse, ele aceitaria comer uma pizza. (2002: 34-5)

A comum troca nos jogos infantis é motivo para mais uma vez se ressaltar a infância naquele

ser rotulado pelo sistema como marginal, pivete. A comparação com seus filhos novamente traz

toda a parcela de humanidade na narrativa, pois aproxima o menino de rua a tudo o que mais

amamos: nossos filhos. O enredo em si é curto, mas as reflexões digressivas da narradora

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configuram a parte mais preponderante desta narrativa, em que o outro, o excluído das condições

básicas de subsistência é visto como pessoa, ser humano em transição, criança.

O texto é finalizado com uma intertextualidade, assim como é iniciado, mostrando a

proximidade deste menino de rua em pauta com os outros, também assaltantes mas que, quando

tratados como pessoas, recuam da aitude violenta e apresentam um lado mais humano.

Uma ilustração finaliza o conto: a figura do menino, acenando, feliz, o caco de vidro já pelo

chão, enquanto sacudia em seu pescoço a sua chupeta. Em uma das mãos, o dinheiro e o relógio

roubados.

Que tipo de comportamento queremos exigir de um menino a quem tudo foi negado? Que

direitos e deveres ele conhece? Georgina reflete sobre essas questões ao evidenciar que todos

somos homens e mulheres, criaturas semelhantes, seres da mesma espécie, e que, portanto,

mereceríamos o mesmo tipo de proteção por parte do Estado.

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4.5 A menina e as balas

Todos os encontros da narradora deste livro com os meninos de rua são extremamente

profundos, mas este pode ser considerado diferencial, por se tratar de uma menina, sendo

explorada pela família pelo trabalho infantil.

Neste conto, pode-se dizer que a ilustração inicial é extremamente emblemática, por se tratar

de uma excelente metáfora das circunstâncias em que a menina estava inserida. Trata-se da

figura de uma menina voando em um balão, que era uma grande bala em seu formato, cujo

letreiro diz “Balas de todos os sabores”. Na imaginação da criança, o balão pode representar a

incorporação do poder que as balas exercem em sua vida, como se direcionassem seus caminhos

a percorrer e seu destino. Ela iria para onde as balas a portassem, como um balão que decidisse

seus caminhos. A ilustração é bastante pertinente à história que será narrada.

A narradora inicia o texto fazendo uma analogia proposital entre outras realidades, para

apresentar a personagem de seu conto: “Todos os dias a menininha estava lá: vendia doces na

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porta de uma lanchonete, perto de uma pracinha, onde brincam quase todas as crianças da

redondeza. Mas ela não brincava, só vendia doces.” (2002: 37). O triste confronto explora, no

leitor adulto, as suas mais sensíveis emoções, a sua recordação da infância e das brincadeiras. A

necessidade do brincar é discutida já nestas primeiras linhas, em que a narrativa se inicia

apresentando argumentos contrários ao trabalho infantil, antes mesmo que se declare contrário a

ele. Algumas digressões da narradora também sensibilizam o leitor, quando se reporta ao seu

tempo de criança, às dificuldades financeiras pelas quais passou e sua vontade de comprar uma

“fábrica de doces”. Neste trecho da narrativa, ela apresenta seu posicionamento ideológico sobre

o trabalho infantil de maneira explícita, a partir de seus devaneios infantis: “Eu nunca pensava

em vender os doces das fábricas dos meus sonhos, só pensava em comê-los. Acho que os doces

não foram feitos pra serem vendidos por crianças, foram feitos para serem comidos por elas. Mas

aquela garotinha não comia nenhum, mesmo quando não conseguia vendê-los.” (2002: 39). A

narradora, confrontando seus desejos pueris com a realidade da menina, discute que o doce não

deve ser mercadoria de troca por capital, mas de consumo próprio, como para as crianças de

elite. O doce, através da visão infantil a que ela se transporta pelas suas reflexões, não é

entendido como mercadoria para crianças, mas naquela ocasião a lógica se inverte.

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Na página 38, localiza-se uma ilustração do fato narrado: uma menina muito pequenina com

uma caixa de doces nas mãos, em paralelo com uma cidade muito grande, com bastantes

elementos de uma grande metrópole: carros, ônibus, postes, estátua na praça, pessoas passando.

O jogo de luz e penumbra, neste caso, é muito revelador para a nossa interpretação da história,

vista sob o ângulo da indiferença pós-moderna. A menina é focalizada na parte escura da

ilustração, denotando o esquecimento, o menosprezo, a falta de “holofotes” para sua história, ela

vive enfim na sombra de um país em desenvolvimento, à margem do progresso e esquecida ou

apagada pela sociedade.

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Em grande parte da ilustração, o centro urbano com todo o seu esplendor: a luz ilumina

fortemente prédios, ônibus e monumentos, mas pouco espaço há de destaque para o elemento

humano. É o mundo dos objetos inumanos, em que máquinas e coisas inanimadas têm grande

destaque, como grandes realizações do progresso enquanto os seres naturais são cada vez mais

“apagados”. Totalmente de forma antiecológica, é a essência humana que vem sendo esquecida.

Motivada por ter acabado de assistir a um grande filme, conforme relata, Filhos do Paraíso, a

narradora conta que resolveu auxiliar a menina, comprando todos os doces que ainda restavam

naquela noite:

Depois de ver um filme como aquele, eu achava impossível deixar uma menininha daquelas cochilando no meio da rua, numa noite fria.- Olhe só, vou lhe dar esse dinheiro. Dá pra comprar todos os doces que você tem aí, e você nem precisa me dar os doces, pode ficar com eles e vendê-los amanhã. Ela me olhou sem entender direito e me disse que eu tinha que levar os doces.- Mas menina, é a mesma coisa: você ganha o dinheiro e ainda fica com os doces; é muito melhor pra você...- Melhor nada, minha mãe diz que eu não posso voltar pra casa enquanto não vender tudo.- Mas você vai vender, vai levar o dinheiro que levaria se tivesse vendido tudo.- Tia, você não entendeu, eu não posso voltar com doce pra casa, senão eu apanho da minha mãe e do meu padrasto. Preciso ajudar em casa, minha mãe trabalha muito, lá em casa tem muita gente pra comer/.../ (2002: 41)

Um fato importante a ser comentado neste conto é a energia criadora da arte, representada

pelo cinema, que assim como discorremos em capítulo anterior, traz embutida em si grande

potencial energético, capaz de motivar pessoas a criarem outras vias de energias de realização.

Neste conto, percebe-se nitidamente o poder de gerar aitudes benéficas que tem a arte, quando

exorta no homem sua emoção e toda a sua criatividade. Toda a energia depositada no objeto

artístico pelo cineasta e sua equipe resplandece nos telespectadores que a recebe, entretanto

como cada individualidade utilizará e repassará esse recebimento é uma questão de formação de

cada um, de vivências realizadas, posicionamentos ideológicos. Entretanto, a arte sempre será

um canal de energia, neutro em si, mas potencialmente persuasivo e conscientizador.

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No trecho citado, pode surpreender a reação da menina, que em vez de aceitar o dinheiro e

lucrar, desconhecedora do sistema capitalista em que está inserida, prefere vender as balas a

aceitar o dinheiro, tamanho o seu condicionamento naquela prática. A relação de troca estava

implícita no inconsciente da garota e o que a motivava era o fato de tornar a casa sem doces.

Percebe-se que a inquietação da garota não está concentrada na aquisição do dinheiro, mas na

total venda dos doces, talvez pelo medo que ela demonstra perante a exigência dos responsáveis

do esvaziamento de sua cota de doces por dia.

Diante da tentativa de persuasão da narradora, a menina continua expondo seus argumentos

de recusa:

- Não, tia, não é assim. Eu não estou pedindo o seu dinheiro, estou vendendo doces e tenho que vender tudo, minha mãe falou. Por favor, leva os doces. /.../ - Já falei que ela disse que eu não posso voltar com nada pra casa. O meu padrasto, quando eu chego em casa, faz as contas e quando sobra doce ele me bate. Ele sempre conta quanto dinheiro tem e tem que ter tudo certinho. (2002: 42)

Em uma lógica estranha, a dignidade da menina parece estar implícita, pois ela não admite

doações, ela precisa levar o dinheiro para casa, mas em forma de trabalho. Conforme a menina

relata, se assim não for, ela sofrerá grandes punições. Então, ela convence a narradora,

explicitando uma lógica de ver o mundo e o dinheiro diferente do que se conhece em nossa

sociedade, em que o lema da vantagem impera. É a inocência da criança em contraponto com a

realidade que conhecemos dos adultos:

Dei-lhe o dinheiro e tive que levar todos aqueles doces, que ela , rapidamente, enfiou em minha bolsa.Ao ver-se livre deles, seus olhinhos brilharam de contentamento a ainda pude ouvi-la falando sozinha, muito indignada com a minha pouca compreensão a respeito do seu problema:- Que tia burra, não entende nada de vender doces. Vai ver que ela nunca trabalhou, porque nem sabe fazer conta! (2002: 43)

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A razão de contentamento e de alegria neste final inverte as estruturas mentais visualizadas

pela narradora no início do conto. Em sua imaginação, ter doce e consumi-los era o maior desejo

de qualquer criança, mas a narradora não esperava encontrar concepções tão diferentes de mundo

em outras realidades sociais. No contexto social daquela menina, seu maior desejo não era comer

doces, mas se livrar dos doces, trocá-los por sua sobrevivência, sua subsistência, em uma lógica

invertida em relação àquelas crianças que não precisam pensar sobre isso. Esse conto adverte

sobre a necessidade de subsistência, que não deveria ser de um menor de idade, entretanto, ocupa

o espaço dos sonhos e da infância da menina.

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4.6 O menino e o fim

Na sociedade atual percebem-se alguns grupos preocupados com a ávida morte precoce de

algumas espécies animais e o desmatamento desnecessário de muitos “pulmões humanos”, mas

poucos grupos no movimento ecológico se mobilizam para preservar a própria espécie humana,

que está em extinção.

Homens, no mundo pós-moderno globalizado, cada vez mais perdem ou esquecem a sua

específica constituição enquanto espécie humana e se dedicam exclusivamente a atividades que

multiplicam seus capitais para que possam consumir e para que seus filhos sejam “bons

consumidores”. Paga-se uma escola de qualidade para garantir a seu filho um bom emprego e

conseqüentemente um lugar nos shoppings da cidade, consumindo, consumindo,

incessantemente consumindo...

A extinção à qual nos referimos é a da humanidade do homem, ou seja, da sua preocupação

enquanto espécie igual a todos os outros. Existe o outro nesta sociedade? Sim, somente o outro

que pode indicar um emprego, convidar para boas festas ou ser um bom parceiro sexual. Mas o

outro enquanto ser humano, existe na concepção do homem pós-moderno? A indiferença a

outros seres humanos, de classes sociais diversas, seres humanos da mesma espécie, tem

assolado este novo mundo e considerando que este seja um problema ecológico, propomos

analisar o conto O menino e o fim, de Georgina Martins, para discutirmos essa questão.

Além de todos os pressupostos ecológicos estudados anteriormente, que nos permitem

afirmar ser este um conto ecológico, utilizaremos o livro A indiferença pós-moderna (2006), de

Ronaldo Lima Lins, para respaldarmos essa discussão. Neste livro, lê-se a seguinte definição de

indiferença:

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Um indivíduo indiferente não sairia de seus embaraços para olhar e interferir o exterior. Voltado para um “eu” que só se dobraria ao peso da angústia, não possuiria disposição para mergulhar nas dificuldades alheias, por mais agudas que se mostrassem. A tal ponto permaneceria anestesiado que não perceberia aquilo que o ameaça em família, na pracinha ou no meio da multidão, partindo de um conhecido ou de um estranho. Estaria incapaz de amor, de solidariedade, de paixão. (2006: 08).

Por acreditarmos se tratar de uma tendência atual este tipo de anestésico, que provoca a

inércia, julgamos pertinente analisar este conto, em que são intercalados o senso comum

indiferente à dor do próximo e a consciência solidária. Trata-se de uma Literatura de denúncia,

que aponta sem rodeios as mazelas e dilemas atuais da sociedade, em que o outro só é motivo de

comentários pela massa quando se propaga a sua violência.

Ronaldo Lins acredita ser a Literatura um caminho para novas formulações de relações

sociais, como se pode observar abaixo:

A literatura da indiferença escreve contra a indiferença. É uma forma de pôr em prática uma teoria – e resistir. Como sinal, opera no espaço da interioridade, região obscurecida pelo excesso de luminosidade, na confusão pós-moderna, mas ainda lá, um ponto de expectativa no qual a hipótese da liberdade permanece viva, à espera de atitudes. (2006: 125)

Escrevendo contra a indiferença, Georgina Martins publica o livro No olho da rua:

historinhas quase tristes (2002), do qual o conto “O menino e o fim” faz parte.

Neste conto, Georgina denuncia a indiferença anti-ecológica pós-moderna, à qual nos

referimos, de maneira muito peculiar, pois não retrata pessoas que não percebem as situações, as

ignorando, como discute Ronaldo Lins; mas sim pessoas que são indiferentes por destruírem o

outro principalmente pela posição social. Esquecem-se, portanto, da condição humana do outro,

visto como coisa, cujo destino pode ser decidido por qualquer um.

Encontramos no livro Estéticas da crueldade (2004), organizado por Ângela Maria Dias e

Paula Glenadel, alguns artigos que trazem pressupostos teóricos pertinentes a essa análise a que

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nos propomos. No texto “Representações contemporâneas da crueldade: para pensar a cultura

brasileira recente”, De Ângela Dias, se coloca a seguinte questão sobre a nova arte:

No seu incurável e agudo mal-estar, resultante da crise da autoridade da tradição e, também da proliferação de recursos, técnicas e efeitos a seu dispor, a produção contemporânea desvia-se dos padrões canônicos e, ao mesmo tempo, reprograma-se em desconcertantes combinações.Na cena pós-moderna, a reconhecida propensão ao realismo da literatura brasileira tende a dramatizar o que flui e escorre pelos muros, espelhos e recantos das cidades brasileiras contemporâneas. No entanto, o dilúvio imagético, no qual estão imersos habitantes e metrópoles, dentro e fora da ficção, confunde observadores e objetos, e ofusca os olhares entre imagens-mercadorias e corpos-fetiches. (2004: 17)

De acordo com a afirmação da autora citada, podemos perceber a obra de Georgina Martins

que, na contemporaneidade, busca transparecer de maneira inovadora os novos sujeitos dessa

sociedade e possíveis olhares diferenciados nas problemáticas sociais através da arte. Alguns

críticos podem, inclusive, perceber uma visão muito inocente da obra sobre os meninos de rua,

que assim, seriam idealizados romanticamente. Entretanto, salientamos que Literatura não é um

espaço em que se deva ter fidelidade à realidade, como muitos equivocademente ainda a

interpretam, mas é o espaço da criação artística, por isso cabem nela outras visões, que os jornais

não mostram. Destacamos ainda que nas obras dirigidas para o público infanto-juvenil, nas quais

embutida há uma preocupação didática, é relevante esse olhar humanizante que Georgina lança

sobre esses pequenos meninos marginalizados, pois projeta para o futuro uma humanidade

melhor, equilibrada ecologicamente, que não esmague seu semelhante pela indiferença social.

O conto “O menino e o fim” narra a história de um menino pego em delito, assaltando um

ônibus, através do ponto de vista de uma professora de um abrigo da prefeitura. Ressaltam-se no

conto, os julgamentos da multidão, que o rodeava e o condenava incessantemente, observados

pelo olhar atencioso da narradora. Em contrapartida, se sobressaem o fim trágico da estória e a

postura do policial, que protegia o menino enquanto aguardava as devidas medidas.

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A ilustração de Nelson Cruz antecede a narrativa e traz a imagem de um garoto sentado no

chão com a cabeça entre as pernas, com um jogo de sombra bastante interessante, como é próprio

de sua técnica, em que o sombreamento é sempre maior que a figura real. A impressão de

vergonha é notável com o abaixar da cabeça, mas essa posição também remete para a fuga dos

falares que o julgaram incessantemente como se ele estivesse ausente daquele lugar e só seu

corpo ocupasse o espaço.

Destacaremos a seguir os juízos feitos pelos passantes, que expressam o comportamento

desumano e antiecológico pós-moderno de que falamos anteriormente, seguidos de reflexões,

ressaltando-se o sentido da indiferença:

- Bandido, safado! Isso é que dá, esse negócio de direitos humanos, a gente não pode fazer nada com esses pivetes... Eles podem assaltar, bater e até matar, mas se por acaso a gente encostar um dedo neles, vai pra cadeia. Olha só a cara dele, tá se vendo que é ruim mesmo, não tem pena de ninguém." (2002: 45)

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Nesta fala do homem que salvou as pessoas do “bandido”, percebe-se a indignação

compreensível quando se sofre algum tipo de assalto, mas o que é extremamente interessante é a

maneira como o senso comum transparece nas palavras desse homem. Ele critica os direitos

humanos, conquista importante adquirida pela humanidade, em 10 de dezembro de 1948, criada

pela ONU; talvez uma das principais conquistas dessa organização. Provavelmente a personagem

não conhecia a fundo o documento, que traz no seu artigo 1 a seguinte afirmação: “Todos os

homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e

devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.” Perguntamo-nos: será que a

esse menino foram concedidos os seus direitos de se alimentar, de estudar, de crescer em um

ambiente saudável, de brincar? Esse menino pode representar grande parte das crianças

brasileiras, nesse sentido, pois lhe são roubados, todos os dias, os seus principais direitos e

poucas pessoas se importam com isso, mas quando viola os direitos dos “cidadãos de bem”,

incomoda e muito a essas mesmas pessoas que com ela não se importam. É essa indiferença que

fica evidente na fala deste homem, que diz: “é ruim mesmo, não tem pena de ninguém”. Não há

uma preocupação com o que o fez ser assim e nem mesmo respeito, de deixar que a lei o

julgasse.

Juntamente com o “herói do ônibus” (como Georgina Martins chama este personagem), uma

passageira do ônibus faz uma perfeita representação da indiferença pós-moderna: “Também,

esses motoristas já conhecem esses meninos, não sei por que é que param o ônibus pra eles

entrarem. Devia ser assim: menino assim desse jeito, sujo e mal vestido não poderia entrar em

ônibus” (2002: 47). Ou seja, é evidente, neste trecho, que a maneira de se vestir é determinante

nesta sociedade, como se fosse condição para honestidade e se somente as pessoas que podem se

vestir bem, tivessem os seus direitos de cidadão. É notório aqui o desprezo das pessoas pelo

sujeito mal-vestido, sujo, o excluído socialmente, independentemente de suas atitudes, pois para

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aquela passageira o motorista não deveria deixá-lo entrar pela sua aparência, fazendo um pré-

julgamento. Neste caso, percebemos o quanto é forte na nossa sociedade o preconceito social,

que faz vir à tona a indiferença. Na verdade, nas falas mencionadas acima, percebe-se uma

coisificação do ser humano, comum na sociedade pós-moderna, quando se trata de rotular as

pessoas que não seguem os padrões desejados pelo mercado. Sobre tal fenômeno, Nízia Villaça,

no texto “Estética da crueldade e do luxo na comunicação contemporânea”, do livro Estéticas da

crueldade, afirma:

Duas tendências sociais, aparentemente contraditórias, são alardeadas pela mídia: por um lado, a busca da convivialidade, a dimensão multicultural da democracia global, movimentos de interação através de grupos virtuais ou presenciais; por outro, explosões violentas, articuladas a efeitos de discriminação, imposições totalitárias e fundamentalismos. Tal contexto assume dimensões inéditas no mundo globalizado, tanto para o bem, quanto para o mal. A disputa pelo reconhecimento, pela inclusão e pela cidadania é patente na promoção dos processos de subjetivação pelos mais diversos veículos, bem como nas notícias e relatos sobre a aniquilação e coisificação de indivíduos/grupos excluídos de tal dinâmica/.../ As estratégias da crueldade e do luxo encontram o seu ponto comum na busca hiperbólica de distinção e hierarquização, num momento onde a massificação e a indiferença dão a tônica, como bem assinala Peter Sloterdijk em Desprezo das massas. (2004: 64)

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Na segunda ilustração de Nelson Cruz nesse conto, percebe-se o menino mais uma vez na

mesma posição, porém, com a inclusão de vários pares de olhos, que não têm rosto. Esses olhos

representam os olhares que se vertem sobre o menino, todos, acima da figura, representando a

supremacia que os donos desses olhares julgam ter, ao criticarem a situação. Olhares que não

têm rosto podem nos remeter também à massa, ao senso comum, a modelos pré-estabelecidos de

posições ideológicas e julgamentos. Olhares sem rosto, sem cérebro, que julgam sem pensar, só

vêem a situação no contexto do agora, sem ponderarem a situação social que gerou o ato ilícito

do garoto, sem julgarem a parcela de culpa que todos os cidadãos têm ao se omitirem das suas

responsabilidades sociais.

Do lado oposto ao da coisificação dos indivíduos surge, na narração de Georgina Martins, a

posição consciente de um policial, cuja atitude é de proteção ao menino, em conjunto com Maria.

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Eles representam a parte da narrativa que busca defender os direitos do menino, cujo

comportamento pela multidão era duramente criticado e dado como imperdoável. Maria, para o

espanto de todas as pessoas que se aglomeravam no local, fala com o menino: “ Não se

preocupe, ninguém vai machucar você, pode deixar que eu vou ficar aqui do seu lado. Como é

seu nome?” (2002: 47). E nesse momento da história, o menino conta o motivo pelo qual

roubava: para garantir o funeral de seu pai. O policial completa a ação solidária da professora: “

–Ele é novo por aqui, mas eu já o conheço lá da Baixada. Cheguei até a dar uns conselhos para

ele; podia ser um bom menino. É uma pena que vive abandonado pelas ruas.”(2002: 48). Na

página 50, tem-se uma ilustração, em que Nelson Cruz evidencia a posição do policial, que em

seu desenho, é forte, grande e tem uma atitude física de proteção ao menor perante uma multidão

revoltada. Desta vez, as pessoas ilustradas na multidão têm corpos e a feição de seus rostos é de

raiva, ódio, gana de destruir o menor infrator.

A resposta da passageira à colocação do policial retoma a atitude antiecológica e mesquinha

de destruir um ser humano que já estava em difícil situação: “-Não fiquem com pena dele não,

eles não têm pena de ninguém, é sempre assim, na hora em que a coisa aperta eles fazem tudo

cara de anjo”. (2002: 48). Ela prossegue afirmando que “Tem mais é que prender, mas não é pra

soltar depois não, viu seu guarda? É pra deixar eles lá até ficar homem, pra ver se aprendem

alguma coisa que preste” (2002: 49). E nesta mesma página, Nelson Cruz faz a ilustração de

algemas repletas de teias de aranha, representando a solução dada pela mulher que tanto opinava.

Envelhecer na cadeia seria a solução, no sistema penitenciário e de detenção de menor que temos

no nosso país? Parece que essas perguntas são feitas através da ilustração de Nelson Cruz.

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Em outro trecho da discussão, o herói do ônibus aponta outra solução, para ele, mais cabível:

“Por mim tinha que matar tudo que era bandido” (2002: 51). Será que nesse discurso deste

pretenso herói estão incluídos outros tipos de bandidos: o que compra droga e tem carro

importado, se vestindo muito bem; o que explora o trabalho infantil, roubando a oportunidade da

criança de ter um futuro digno através da educação; o que rouba o sonho e as esperanças, como

ele fazia agora com aquele ser humano? Na verdade, o discurso dessas personagens

“indiferentes” representa o senso comum, que não reflete com cuidado sobre o que pensa e o que

diz, repete somente as opiniões divulgadas pela mídia de massa, que discrimina o bandido pobre,

o excluído socialmente, enquanto pouca atenção se dá a outros tipos de crimes, camuflados por

belas roupas, belos carros e bela aparência. O que será que ele considera como bandido?

No artigo de Jair Ferreira dos Santos, intitulado “Literatura, crueldade e produtivismo”, do

livro Estéticas da crueldade, encontra-se uma pergunta muito relevante ao que estamos

discutindo:

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Porque nos leva freqüentemente a cruzar a fronteira do inumano, a crueldade é uma experiência fundamental do humano. Da sua instabilidade, da sua perdição. Crimes. Torturas, vinganças, carnificinas são concebidos e executados com tal esmero na imposição da dor, física ou moral, em escala individual ou coletiva, que somos forçados a perguntar sem rodeios: onde foi parar a humanidade? (2004: 39)

A crueldade moral neste conto é muito forte, pois a multidão se esquece completamente da

condição do menino enquanto criança, representando a infância esquecida do nosso país. As

colocações da passageira do ônibus e do herói são extremamente contaminadas de crueldade,

com tal requinte capaz de assustar, cruzando a fronteira do inumano, provocando a nossa

memória sobre a nossa constituição física infantil, idêntica à do menino, esquecido como ser

humano. A pergunta “...onde foi parar a humanidade?” é perfeita para pensarmos através de uma

visão ecológica esses personagens do conto, que transitam pela indiferença pós-moderna, no

limite do humano.

Antes da surpresa do final trágico da história, na página 53 notam-se belas reflexões da

personagem-narradora (provavelmente classe média), que contrapõe na narrativa as falas de seus

filhos e o destino daquela criança rechaçada pela multidão:

Naquela noite quase não dormi. Quando o dia amanheceu decidi que passaria na DPCA para saber do menino, mas antes precisava levar as crianças para a escola.-Mãe, você compra aquele boneco pra mim? Todo mundo no mundo tem aquele boneco, só eu que não tenho. Você sempre diz que não tem dinheiro!-Mãe, compra pra mim também? Eu quero um vermelho. E, depois, amanhã, você compra um carro de controle remoto?-Ah, então eu também vou querer alguma coisa. Você vai comprar?-Fiquei pensando que o menino dos olhos azuis não fazia parte do mundo que o meu filho falava, porque com toda certeza ele não tinha o tal boneco. (2002: 53)

Talvez, tenhamos aqui, de acordo com encaminhamento que queremos mostrar na Literatura,

um dos trechos mais belos da obra de Georgina Martins, em que se contrapõe o destino de

crianças, que como espécie são igualmente humanas. As diferenças sociais são nitidamente

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percebidas pela narradora de uma forma indireta, literariamente, sem que se fizesse uma longa

discussão sobre o assunto. A literariedade do conto é muito marcante neste trecho, em que,

através da emoção, se igualam, enquanto semelhantes, as crianças e se opõem drasticamente suas

vidas em : “o menino dos olhos azúis não fazia parte do mundo que o meu filho falava”. Este

mundo ao qual os filhos da narradora se referiam é o mundo do consumismo, no qual vivemos e

no qual todas as crianças são estimuladas a consumir, principalmente pela mídia. O consumismo,

portanto, é cruel, pois exclui socialmente vários seres humanos do sistema capitalista, em que só

é respeitado e digno de direitos e de admiração aquele que pode consumir. Naturalmente, o

menino do assalto também queria ser um consumidor, queria se sentir parte da sociedade - apesar

disto não ficar claro no texto - mas a ele este direito é negado, como também lhe é negado o

direito de enterrar seu pai (coisas não se enterram na visão da massa).

Esta é uma dinâmica muito maquiavélica da mídia, em que a todos é dado o impulso a

consumir para se sentir pertencente a um meio social, mas nem a todos são dados meios para

adquirir os bens requeridos. Essa questão é geradora de problemáticas e segmenta a sociedade,

como é claro nas frases de Anthony Giddens, em Modernidade e identidade (2002): “ /.../ nas

condições da modernidade, os meios de comunicação não espelham realidades, mas em parte as

formam/.../” e “/.../ a modernidade tardia produz uma situação em que a humanidade em alguns

aspectos se torna um “nós”, enfrentando problemas e oportunidades onde não há outros”(2002:

32).

A tragédia que ocorre no final da história é mais um recurso utilizado pela narradora para

humanizar aquela criança, contrariando as expectativas de todos que criam que aquele garoto era

“ruim mesmo”. O garoto, que poderia fugir em um ataque à viatura em que se encontrava,

socorreu os policiais baleados que o conduziam a uma instituição para menores. Neste trecho, é

interessante que a generalização a respeito do comportamento de bandidos se desintegra, pois

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havia um grupo que atirou nos policiais, retratando toda a violência urbana que vivemos hoje,

mas também retrata o comportamento do menino que poderia fugir e opta por ajudar. Ele é

humano, solidário, tem sentimentos; ao contrário do que comumente se espera deste tipo de

menor infrator.

Apesar do final impactante e triste para o público infanto-juvenil, acreditamos ser este um

dos motivos de tornar o conto tão peculiar, pois o mergulho no trágico é, acima de tudo, uma

tentativa de superá-lo, como nos respalda Ronaldo Lins:

A experiência caminha sobre o terreno do paradoxo. Buscar o melhor implica mergulhar no pior. É revolvendo a terra apodrecida e úmida do solo que se obtém a flor. Isto quer dizer que, para começar o processo, o ângulo de visão devia deslocar-se da luz para as trevas e, só depois de examiná-las e compreendê-las, sair e voltar para o lugar de origem. (2006: 49)

A obra de Georgina Martins, evidenciada pelo conto “O menino e o fim”, é um convite a

refletirmos sobre a indiferença que se instaura hoje no Brasil e no planeta, quando se trata da

exclusão social. É ainda um convite a pensarmos ecologicamente, a respeitarmos o outro que é

tão humano quanto nós, apesar de ter atitudes equivocadas, (como temos muitas vezes). Este

conto nos revela que se pode pensar em uma Literatura mais simples, menos excludente, mais

humanizante, mais preocupada com problemas ecológicos e universais, a serviço do bem

comum. Nem por isso, se perde a qualidade estética da obra, em que, como foi destacado, se

percebe o forte papel da ativação da emoção dos leitores, através da ficcionalização de fatos

comuns no dia-a-dia das grandes cidades, ficcionalização que reúne a percepção, a imaginação e

o imaginário da autora.

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5 Emergem as subjetividades dos alagados: Uma Maré de desejos

Neste capítulo estudaremos a obra Uma Maré de desejos, publicada em 2005, por Georgina

Martins. Surge também como fruto de suas experiências como coordenadora de um projeto

chamado Oficina da Palavra, do qual fiz parte como educadora. Na tentativa de tornar a leitura do

livro mais próxima de uma realidade tão distante para grande parte dos leitores desta tese, um

primeiro item foi criado com as minhas percepções sobre a Maré e seus “sobreviventes” durante

o tempo em que lá estive.

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5.1 – O que é Maré? As minhas percepções...

Nos capítulos anteriores, estudamos teoricamente, segundo alguns autores, a indiferença pós-

moderna. Percebemos que em razão de um culto demasiado do eu, cada vez mais, os sujeitos

sociais se importam menos com seus semelhantes, o outro passa a ser um objeto que só é

enxergado à medida que pode proporcionar algum tipo de satisfação ao indivíduo. Neste jogo de

“não percepção”, aqueles que fazem parte de uma gama considerável na sociedade brasileira, “os

excluídos”, são ocultados, como se não existissem, ou como se fossem os responsáveis pelas

situações às quais são submetidos. Estes seres, que poucas vezes são considerados desta forma

pelos incluídos no sistema, só são realmente percebidos quando praticam algum tipo de ato

ilícito, digno da apreciação e da crítica de toda sociedade brasileira. Exemplos desta gama social

são os moradores da comunidade da Maré, sobre os quais falaremos neste capítulo, com o

propósito de ilustrar toda a parte teórica da nossa pesquisa.

Assim como foi explicado na introdução, para alcançarmos a pretensão citada, utilizaremos

vivências minhas enquanto educadora para respaldar os fatos mencionados, além de também nos

servirmos de acontecimentos narrados por outros educadores que trabalhavam naquela época na

Maré.

Antes de iniciarmos a narração, no entanto, citaremos o livro Maré vida na favela, de Drauzio

Varella, Ivaldo Bertazzo e Paola Berenstein Jacques, que resgata, de forma primorosa, histórias

desta grande comunidade, que engloba uma série de conjuntos habitacionais. Berenstein Jacques

faz os seguintes relatos, importantes para entendermos os mecanismos sobre os quais surgiu esta

favela:

A Maré não é simplesmente uma favela, mas o que se denomina um complexo de favelas, várias comunidades diferentes juntas, como se fossem vários bairros distintos, uma quase-cidade informal. Complexa Maré. /.../ sofreu tantas alterações que a própria

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maré que deu o nome ao complexo já não existe mais; foram tantos os aterros que o mar ficou bem distante. (2002: 19)

A Maré nasceu e se desenvolveu nas margens e sobre as águas da baía de Guanabara. Hoje, o complexo é composto por 16 comunidades, que por ordem de ocupação são: Morro do Timbau (1940), Baixa do Sapateiro (1947), Conjunto Marcílio Dias (1948), Parque Maré (1953), Parque Roquete Pinto (1955), Parque Rubens Vaz (1961), Parque União (1961), Nova Holanda (1962), Praia de Ramos (1962), Conjunto Esperança (1982), Vila do João (1982), Vila do Pinheiro (1989), Conjunto Pinheiro (1989), Conjunto Bento Ribeiro Dantas ou “Fogo Cruzado” (1992), Nova Maré (1992) e Salsa e Merengue (2000). Essas comunidades tão distintas que formam o complexo da Maré reúnem uma população de 132.176 pessoas, abrigadas em 38.273 domicílios, o que representa 2,26% da população do município do Rio de Janeiro, ou seja, trata-se do maior complexo carioca de favelas. O início da ocupação efetiva na área da Maré se deu na década de 1940 – período da mais forte proliferação de favelas no Rio de Janeiro-, pouco antes da construção e abertura da avenida Brasil (1946), que simboliza a época de expansão de industrialização da cidade. /.../ A necessidade de morar perto do local de trabalho incitou a população migrante a instalar-se nos terrenos não ocupados que escaparam da especulação imobiliária pela dificuldade ou mesmo impossibilidade de construção: morros, mangues, terrenos inundáveis. (2002: 20-1)A Maré ocupa uma região originalmente pantanosa, com vários mangues e brejos, e sua imagem mais forte, ainda presente no imaginário urbano dos cariocas e na memória de vários moradores da região, são as palafitas que sustentam os barracos de madeira em cima do mangue, que ficavam constantemente alagadas ou enlameadas quando a maré subia/.../ Hoje... as palafitas já não existem, mas sem dúvida fazem parte da história desse lugar, demonstrando toda a criatividade construtiva dessa população que habitava corajosamente sobre as águas./.../ Entre os barracos usavam-se pontes, construídas e reconstruídas também em madeira, que após os aterros viraram as ruas e becos de boa parte da Maré de hoje. (2002: 21) A única grande fronteira interna existente hoje no complexo não está entre as comunidades mas, infelizmente, entre as diferentes facções do tráfico de drogas e do crime organizado que literalmente cortam a Maré ao meio com suas disputas de territórios de dominação. (2002: 23).

Neste contexto, sem saber bem “o chão que pisava” estreei nas comunidades Nova Holanda e

Baixa do Sapateiro, em escolas que geograficamente se situavam em paralelo, mas em terrenos

rivais, na famosa “divisa” entre essas comunidades dominadas por facções diferentes. O projeto

era muito sério, nos reuníamos uma vez na semana durante metade do dia na sede, uma ONG

chamada CEASM, no alto do Morro do Timbau. Portanto, era comum os educadores circularem

todo o complexo, caminhando consideravelmente entre as diversas escolas em que faziam as

oficinas e o pólo central, o CEASM. Eram várias as oficinas: de artes, de música, capoeira e eu

participava da Oficina da Palavra. Tínhamos o objetivo de incentivar o hábito da leitura e da

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escrita entre as crianças e adolescentes, de forma prazerosa, lúdica. Na época, a coordenadora

desta oficina era Georgina Martins. Por isso também, pode-se afirmar que se trata de alguém que

tem conhecimentos pertinentes sobre a infância naquela região. O seu livro não é escrito no plano

exclusivamente fictício, como estudado. Nas nossas reuniões estudávamos meios de atingir o

nosso público, que devido à condição absoluta de pobreza e à marginalização em que vivia,

tornava a nossa atividade extremamente difícil.

Certa vez, em uma das primeiras oficinas que ministrei, presenciei a professora dizer a um

aluno que ele era sujo, imundo e nojento, levantando para todos a condição de pobreza do

menino, devido a um comportamento inadequado dele. Presenciei ainda, nesta mesma sala uma

grande maldade, detalhadamente planejada: a professora estava lendo um texto e uma aluna

conversava, distraída, quando de supetão, “nas pontas dos pés”, a referida professora gritou em

seus ouvidos: “Cala a boca!”, assustando a menina e a fazendo chorar copiosamente.

Em uma oficina para crianças do antigo CA, atual 1º ano do Ensino Fundamental,o professor

responsável pela turma comentou que costumava deixar um menino realmente “complicado” de

castigo da seguinte forma: pedia que ele permanecesse sobre uma mesa, no centro da sala durante

toda a aula, exibindo-o ao ridículo. Há comentários também, na escola, de castigos como prender

crianças nos armários da sala.

Tudo é aterrorizante, não só o comportamento dos responsáveis pelas turmas, como o das

crianças, que freqüentemente os xingavam. A direção permanecia omissa a todos esses fatos. Os

responsáveis pelas crianças, muitas vezes, as maltratavam. Havia casos freqüentes de crianças

que chegavam às escolas agredidas fisicamente e outras profundamente agredidas

psicologicamente. Muitas moravam em casas bastante pequenas, em que não havia espaço nem

mesmo para a locomoção. Presenciar os pais mantendo relações sexuais era algo bastante usual e

a brincadeira não podia ser em outro lugar que não a rua, fato este extremamente arriscado

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naquela comunidade. Como exigir destes meninos estrutura psicológica para respeitar seu

professor?

A fome e o frio, problemas também bastante comuns naquela comunidade, atrapalhavam

substancialmente um comportamento adequado daquelas crianças e ainda um rendimento

mínimo. No inverno, quantas vezes os educadores cediam seus agasalhos àquelas crianças?

Mesmo diante de uma grande ventania, elas iam à escola com uma camiseta suja, chinelos e

bermuda. Certa vez, uma educadora narrou a depressão que sentia ao presenciar um menino que

comia com voracidade sua refeição e depois devorava os restos de todos os seus colegas. Ele

dizia que seus piores dias eram sábado e domingo, pois nunca tinha a certeza de que comeria.

Adorava os dias de aula, não para estudar, mas por ter certeza que se alimentaria.

Ao entrar em uma oficina com o intuito de acompanhar o trabalho, Georgina Martins, que se

vestia com calças brancas e largas e bonita blusa estampada escutou a seguinte pergunta: Você é

estrangeira? Afinal, aquela não era uma roupa comum naquela comunidade, era “roupa de rico” e

o estranhamento foi fatal, retratando claramente a diferença de costumes entre os “excluídos” e os

“incluídos”.

Ao incitar alguns deles a fazerem pesquisas, conhecer a Biblioteca de nossa Sede, muitos

afirmavam que não poderiam se dirigir àquela localidade, eram considerados inimigos, mesmo

aqueles meninos que não tinham relação alguma com o tráfico. Muitos meninos de 10, 11 anos

relatavam que nunca tinham atravessado a Avenida Brasil, nem mesmo pegaram um ônibus.

Certa vez, um carinhoso aluno chamado Douglas queria saber onde morava e ao definir como

ele deveria fazer para chegar a minha casa, mostrou desconhecimento e pavor ao referir-me à

Avenida Brasil (território do outro lado). Portanto, sair da Maré era algo impossível para ele,

visto que a principal saída se dá por aquela avenida, de ônibus. Era sofrida a vida deste garoto e

vivia enclausurado em uma realidade-pesadelo da qual não era permitido sair.

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Todos esses fatos narrados são reais e são materiais que inspiraram Georgina Martins na obra

de que trataremos neste capítulo e que também me motivaram a dedicar uma tese à indiferença da

sociedade frente à exclusão social na sociedade brasileira. A realidade tal como narrada é

argumento de prova que confirma a nossa tese, pois parecia que aqueles professores estavam

anestesiados e muitos eram capazes de atrocidades, sem levar em conta a “humanidade” daquelas

crianças, pois tudo conspirava para que elas fossem tratadas como animais, vítmas da indiferença

de grande parte das pessoas. Presos na realidade-pesadelo, eram oprimidos pelo tráfico, vítimas

da violência física, por parte dos pais e dos bandidos e ainda submetidos à tortura moral pelos

professores.

O que é Maré? Refaz-se a pergunta inicial deste capítulo. No livro Uma Maré de desejos, em

seu final, há um apêndice chamado Quero mais. E ali encontramos um pouco mais da história da

Maré:

Hoje, o Complexo da Maré ocupa uma área de 4,6 Km2. Seus 132 mil moradores representam 2,26% da população do Rio de Janeiro e estão espalhados por 38.273 domicílios em 16 comunidades. O complexo dispõe de 16 escolas de ensino fundamental e uma de ensino médio. Não há bancos ou agências de correio. Todo o transporte interno é realizado por kombis. Os ônibus deixaram de circular por causa da violência gerada pelos traficantes de drogas. (2005:67)

Palco da indiferença pós-moderna e, como Herbert Vianna ilustrou em sua música em

homenagem a essa comunidade “alagados”. Alagados não mais pelos mangues, como até pouco

tempo, mas alagados pela violência e mais ainda, pelo olhar indiferente da sociedade, que

discrimina, que oprime, que exclui. A seguir, através da obra Uma Maré de desejos,

perceberemos as essências dessas crianças, que emergem na arte, apesar de serem esquecidas

pelo sistema e oprimidas por quase todos os lados, “quase”...

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5.2 Desejos silenciados e legitimados na obra

O livro Uma Maré de desejos (2005) conta a história de um menino e uma menina moradores

da favela da Maré: Luciano e Sergiana. O início da história se dá com o pedido da professora de

Sergiana, para que a turma fizesse uma redação sobre o maior desejo deles. A partir dessa

solicitação, Sergiana pensa em vários desejos e conseqüentemente vão surgindo aos poucos, na

narrativa, a sua história, sua rotina em casa, na escola e todas as dificuldades pelas quais

passavam, impossibiltando a realização de seus sonhos. É por causa de um de seus desejos que

surge, no enredo, Luciano, seu amor platônico, e então, sua vida e trajetória também são narradas.

Seus encontros e desencontros tornam-se o maior elemento movimentador da história, que é

dividida em três capítulos e pode ser considerada uma novela.

Pode-se afirmar que esta narrativa apresenta um tom bastante distinto de No olho da rua:

historinhas quase tristes pois, desta vez, o narrador não é personagem, é simples observador, que

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relata os diálogos e reflexões dos meninos. Por isso há um distanciamento maior do narrador, que

não se envolve com os acontecimentos narrados. Em um tom mais direto, o livro pode ser

considerado com menos carga de engajamento, por não ser tão explícito em relação às críticas

sociais, que surgem, no decorrer da história, como elementos acessórios, aparentemente em

função do enredo. Talvez neste ponto esteja a maior diferença entre os dois livros. No primeiro, o

enredo é todo dirigido para as tristes realidades de moradores de rua, de maneira extremamente

subjetiva, em que o narrador se envolve com os fatos mencionados e faz deles motivos de

comentários e de reflexões. No segundo, há um aprofundamento nas subjetividades dos

adolescentes moradores da Maré, trazendo à tona seus desejos, suas realidades, suas vidas tristes,

mas sem que estes sejam elementos que direcionam o texto. Na verdade, esses elementos surgem

nas reflexões dos meninos sobre encontros e desencontros deles. Na nossa leitura, entendemos

que o enredo de encontro de amor entre os dois adolescentes é uma estratégia narrativa para

denunciar as vivências tristes relatadas pelas reflexões destas crianças, sem que se deixe explícita

esta crítica, de modo a desafiar a inteligência do leitor e fazê-lo refletir. Os momentos em que a

introspecção das personagens se faz notar são os mais ricos, fugindo do fluxo narrativo

predominante, que também cede espaço notório às digressões .

O primeiro capítulo se chama “A menina, o mar, os desejos e a professora de redação”. É

evidente, nesta primeira parte da história, uma crítica ao sistema escolar, representado pela

professora, que castra os desejos da menina e a menospreza, demonstrando imensa

insensibilidade e desconhecimento da realidade em que exercia o magistério. Em contraponto,

são constatados os maiores momentos de digressões, através dos desejos da menina Sergiana,

cuja subjetividade se deixa ver pela retratação de seus pensamentos pelo narrador. Na primeira

vez que essa estatégia narrativa aparece na história, uma discussão pertinente é posta em tela: o

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preconceito existente em relação aos cabelos de meninas, principalmente, e a tentativa de se

enquadrar no padrão estético de moda em voga:

- Bem, agora vamos fazer uma redação... O tema é “O meu maior desejo”- a professora ia falando enquanto escrevia no quadro.Sergiana ficou engasgada, não conseguia escrever nadinha, só pensando na praia, nas águas molhando seus pés, nos mergulhos que daria... Mas não podia molhar os cabelos, dava muito trabalho para pentear. Sempre doía muito quando a tia fazia aquelas tranças. Então, no seu desejo, ela molharia o corpo inteiro, menos a cabeça. Talvez jogasse água no rosto, mas com cuidado, porque a tia ia brigar muito se ela deixasse os cabelos molhados.- Cabelo ruim é assim, não pode molhar todo dia, não, que encolhe. Não tem jeito, é de nascença.Todos os dias a tia falava a mesma coisa, e quando ia fazer as tranças então! Ai é que ela reclamava muito:- E eu, que não tive menina, agora tenho que pentear esse seu cabelo duro. Fica quieta, não chora, que é pior. Se eu tivesse dinheiro sobrando pagava a Diana pra fazer chapinha em você. Acho que vou mandar cortar feito menino homem, assim não dá trabalho!Nessas horas Sergiana ficava triste, não queria cortar curtinho, e chapinha queimava a cabeça/.../Esse era um outro desejo da menina: secar os cabelos no vento. Mas a tia não deixava:- Cabelo ruim é assim, tem que viver amarrado!

Ela não achava que seus cabelos fossem ruins, às vezes até que gostava deles, mas só às vezes, porque a tia não deixava que ela gostasse deles. (2005: 7-8)

Nestas recordações da menina pode-se notar o quanto seu sofrimento era grande por ter

desmoronado qualquer possibilidade de auto-estima, a todo o momento, por sua tia que, também

possuidora de uma vida difícil, não tinha noção de que suas falas eram reprodução do preconceito

enraizado em nossos inconscientes. O termo “cabelo ruim” é extremamente segmentador e

pejorativo, por ser este adjetivo o oposto de “bom”, acrescentando ao substantivo adjetivado, uma

carga negativa, de inferioridade, de menosprezo. É interessante ressaltar que este termo é muito

comumente utilizado para denegrir a imagem de alguma pessoa, como se tivesse nascido com

alguma deficiência física, uma limitação que impediria qualquer expressão de beleza e sucesso no

mundo. Um outro termo preconceituoso utilizado pela tia de Sergiana é “cabelo duro”, também

muito comum para depreciação da qualidade do cabelo. Nota-se que “duro” é o oposto da maciez,

qualidade muito preconizada pela mídia nas campanhas publicitárias de produtos capilares.

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Este problema vivenciado por Sergiana faz lembrar muito o de Ângelo, do livro Minha

Família é colorida, pela não-aceitação de seus cabelos encaracolados. A grande diferença dos

dois casos está no fato de que Ângelo tinha uma família estruturada, pronta para explicar para ele

questões de miscigenação e de valorização de raças subjeitadas pelo sistema, enquanto Sergiana

era criada por uma tia que reproduzia o preoconceito.

O sofrimento pelo qual a menina passava para se enquadrar no sistema pode ser visto nessa

talentosa ilustração, em que a tia “doma seus cabelos rebeldes”, de maneira bruta e indelicada:

A questão do tipo de cabelo é algo muito sofrido, principalmente para as meninas, que não se

vêem representadas pela mídia com toda a sua beleza natural. Quando meninas de cabelos afro-

descendentes são ícones de beleza na Tv, estão sempre com eles completamente transformados,

“domados”, sem que nenhum vestígio da raça negra seja visto. Por isso, a não-aceitação de

muitas meninas, que sofrem com os deboches dos colegas e não são bem recebidas nos grupos até

que se enquadrem em uma estética consagrada pela sociedade. A fala da tia de Sergiana, neste

caso, demonstra uma introjeção de valores pré-estabelecidos por classes dominantes nos

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oprimidos, que segundo Guattari, é um dos graves problemas da sociedade capitalista moderna,

por impedir uma busca profunda das subjetividades das pessoas, de todas as classes: “Um dos

problemas-chave de análise que a ecologia social e a ecologia mental deveriam encarar é a

introjeção do poder repressivo por parte dos oprimidos.” (2005: 32)

A crítica ao sistema escolar é nítida na novela quando, após essas digressões, há um retorno

ao fluxo narrativo, retratando que a menina gostaria de escrever sobre três desejos: ir à praia,

molhar os cabelos e deixar secá-los ao vento: “- Professora, agora eu tenho três desejos; posso

escrever sobre os três? “ e a professora, em regime totalmente ditadorial, responde: “ – Não, tem

que escolher um. Já disse!” (2005: 8). Ela nem ao menos procura saber quais são os desejos, se há

relação entre eles e se poderiam ser escritos em concomitância com o principal. Ela age de

maneira ríspida e homogeneizante, sem permitir que as diferenças entre seus alunos se

sobressaiam.

Os três desejos da menina, entretanto, são realizados através da ilustração de Cris Eich:

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Nas digressões da menina, ao imaginar o que escreveria em sua redação, emerge também o

choque cultural que a menina vivenciou e ainda vivencia, por ser nordestina, e muitas vezes, as

variações lingüísticas regionais a impedirem de ler o mundo dos cariocas, moradores da Maré:

Já tinha ouvido dizer que a água do mar era salgada. Os meninos da escola iam sempre à praia, eles contavam do arrastão, alguns até participavam. No princípio, ela não sabia o que era arrastão, pensou que fosse coisa de pesca.- Ai, você não sabe de nada. Arrastão é assim: junta um monte de moloque que sai pela areia arrastando as coisas dos outros, roubando. Entendeu? Aí vem a polícia e sai batendo em todo mundo, dão tiro e tudo, aí a gente sai correndo, e se você for lá com a gente nem adianta, vão pensar que você também é do arrastão./.../Antes ela pensava que tinha jacaré na praia, aí ela tinha medo, não queria ir não.- Deixa de ser burra, não tem jacaré de verdade, não; pegar jacaré é pegar onda.Mas agora ela sabia tudo de praia, isso de pensar que tinha jacaré de verdade foi só no começo, quando ela chegou aqui no Rio com a mãe/.../ Em Buíque não tinha praia. (2005: 10)

Os desencontros culturais entre a linguagem dos moradores da Maré, na cidade do Rio de

Janeiro e a da menina nordestina foram ilustrados por palavras polissêmicas e gírias: “arrastão” e

“pegar jacaré”. Essas palavras são significativas para os freqüentadores de praias no Rio,

entretanto, para uma menina do interior, “arrastão” está no campo semântico de pescaria e “pegar

jacaré”, em seu sentido denotativo. O poder de segmentação que a língua pode exercer está

principalmente em sua variação sócio-cultural, relatada neste trecho:

Lembrou que um dia fora com a mãe à casa da patroa. Era no Flamengo, e elas iriam ver o mar. Sergiana achou o Flamengo muito diferente, não se parecia com a Maré, Buíque se parecia mais.- Mãe, essas pessoas aqui falam português?- Vixe, menina, mas é claro que falam. Tudo é Brasil. Aí a mãe lembrou que a patroa falava muitas palavras que ela não entendia, e teve dúvidas: “Será que eles falam mesmo português?”Naquele dia, não viu o mar. Tinha muito serviço na casa da patroa, e a mãe trabalhou até tarde, ficou cansada, e naquela semana todo mundo só podia entrar na favela até as dez horas, era ordem do pessoal do tráfico, tinha que obedecer. (2005: 12)

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A oposição entre as características daquelas pessoas, da classe média alta e as das pessoas

com quem Sergiana convivia, os desfavorecidos socialmente, remontando ao fato semelhante que

ocorreu com a autora na Maré: quando um menino pergunta-lhe se era estrangeira. Apesar da

mãe de Sergiana saber que não se tratava de estrangeiros, resta uma dúvida: eles falam

português?, surgida a partir das variações lingüísticas que notava no falar dos seus patrões, que

eram tão grandes a ponto de atrapalharem sua comunicação com eles. Este fato denota que a

distância lingüística e cultural nos discursos das classes são exemplos da segmentação que a

própria língua pode exercer entre seus falantes. À medida que não se tem o direito de apropriar-se

da variante culta da própria língua, permanece-se à margem da sociedade. Sendo a língua

instrumento de poder, é também mecanismo de segmentação social.

Na página 13 é narrada a história triste de Sergiana, a partir de sua recordação:

Lembrou que um dia ouviu a mãe conversando baixinho com a tia:- Mas você toma conta dela, não toma? Vai ser por pouco tempo, arrumo um bom dinheiro e volto.Foi e não voltou mais.- Tia, minha mãe vai voltar, não vai?A tia não quis responder, só enxugou os olhos com o pano de prato.- Vai brincar, menina, vai brincar!E a lembrança da mãe fez Sergiana pensar que tinha mais um desejo, mas não tinha nada a ver com os outros. E não ia dar pra escrever sobre ele mesmo. Como explicar à professora que desde que a mãe sumira ela a esperava nos pontos das kombis? Ela sempre chegava de Kombi, e, como chegavam kombis a toda hora, a mãe poderia chegar em uma delas. E foi assim que passou a ficar nos pontos das kombis todos os dias. (2005: 13)

O abandono que a menina sofreu trouxe um impacto muito grande em sua vida, tanto que

apresentava uma atitude atípica, cuja inspiração se deu baseada em fato realmente detectado na

favela da Maré pelo CEASM: havia uma menina que, diariamente, ficava nos pontos das Kombis

esperando sua mãe retornar. A sua espera é também ilustrada no livro:

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Outro fato recorrente na obra de Georgina Martins é o desejo pelo chuveiro, relatado nesta

história, em um pensamento de Sergiana:

/.../ naquela casa não tinha nem uma tina para ela entrar de corpo inteiro! Odiava ter de tomar banho de canequinha/.../ Aí lembrou-se de um outro desejo, desejo que ela acalentava desde Buíque, e que a mãe juntou que no Rio de Janeiro seria diferente. Dessa vez a mãe não cumpriu.-Você vai ver, lá no Rio de Janeiro vamos tomar banho de chuveiro. Dizem que todo mundo lá só toma banho de chuveiro, porque é tudo civilizado. (2005: 14)

Nesta declaração da mãe de Sergiana é nítido o desconhecimento das desigualdades sociais

também existentes em grandes metrópoles. Nem “tudo” é civilizado, como deveria ser com a

correta distribuição do progresso. O Rio é, na verdade, uma cidade partida, segmentada em

classes. Portanto, mais uma frustração para a menina, que nem ao menos em sua redação (sua

única forma de apropriação de sua língua) tinha o direito de sonhar e desejar o que bem quisesse.

A intertextualidade com o texto de Gracilano Ramos é fato também recorrente neste livro de

Georgina, pois através do imaginário da menina, retrata em vários momentos personagens do

livro A terra dos meninos pelados, do qual a Princesa Caralâmpia era seu sonho de

transformação:

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Um dia quis ser princesa; lembrou-se da princesa Caralâmpia, uma princesa muito linda que tinha ido morar em Buíque. A mãe falava sempre na tal princesa: uma princesa menina que morava na fazenda Maniçoba. Sempre soube que princesas moravam em castelos, mas a mãe dizia que aquela era diferente, era um princesa do mato que tinha pulseiras de cobra coral, coroa feita de rosas e enfeites de vaga-lume. (2005: 15)

É interessante notar que Buíque é a terra em que Graciliano cresceu, a mesma de Sergiana.

Outro fato comum na favela da Maré são pessoas que catam as balas das armas pelo chão,

após os tiroteios, com o intuito de vendê-las no ferro-velho. Na narrativa, Georgina denuncia esse

fato real, através da prática de sua personagem principal, que coloca o leitor frente a frente com

as atrocidades cometidas contra aquelas crianças:

De todos os seus desejos, tinha um que a tia não poderia saber de jeito nenhum, sópodia contar para o Luciano/.../: desejava que não houvesse mais tiros. Achou que a tia não iria gostar muito desse desejo e ficou triste. Eram muitos tiros, quase todas as noites, e ela nem conseguia dormir direito./.../- Anda, menina, cata essas balas aí no chão que eu vou levar lá no seu Fernando pra vender, seu Fernando aproveita tudo, ainda bem que esse chumbinho da bala vale dinheiro no ferro-velho, porque esse negócio de passagem de roupa não tá dando, não. Quantas balas têm aí?O pior de tudo é que tinha que catar as balas bem cedinho, a tia dizia que era muito perigoso, já tinha visto gente ser presa por causa disso/.../Um dia, quando morava em Buíque, viu na tevê que no Rio de Janeiro tinha crianças vendendo balas no sinal, e, quando a tia falou que elas iriam catar balas pra vender, nem entendeu direito. Depois soube que eram outras balas. (2005: 16)

Há uma denúncia da violência a que a criança era submetida e como aquilo poderia interferir

em sua concepção de mundo. A polissemia das palavras é mais uma vez explorada pela escritora,

que evidencia, pelas reflexões da garota, sua confusão mental perante aquela situação. É um jogo

cruel de sentidos, pois as duas signifcações referidas no texto à palavra bala representam objetos

de trabalho infantil. Tanto a bala (doce) quanto a bala (munição de armamento de fogo) podem

ser vendidos por troca de capital, preocupação esta que não deveria ser da menina, visto se tratar

de uma criança. São os valores completamente invertidos na ótica do capitalismo. Há uma

ilustração de Sergiana catando as munições:

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Sergiana começa a pensar em outro desejo: comer uma goiabada de lata, que era vendida na

rua Teixeira Ribeiro, espécie de centro comercial da favela, reconstruída na narrativa, como uma

espécie de shopping pelo qual as crianças gostavam de transitar: “ Na Teixeira tinha goiabada de

caixa, de vasilha de plástico... mas as que Sergiana achava as mais bonitas eram as de lata.

Adorava as latinhas vermelhas de goiabada. A tia não podia comprar, dizia que era luxo. (2005:

17). Neste trecho, Georgina Martins retrata um de seus maiores desejos, em sua infância também

pobre, como relata no apêndice do livro. Há uma ilustração da Rua Teixeira Ribeiro, em que se

podem perceber as construções das casas, que se misturam com o comércio:

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Às vezes, as divagações de Sergiana, que surgem na narrativa como digressões e ocupam

grande parte do texto, são interrompidas por chamamentos da professora, que a trazem de volta à

realidade, sempre de maneira bastante áspera: “- Anda, menina, fica de boca fechada e faz logo

essa redação!” (2005: 18). O menosprezo à classe desfavorecida a que pertencia a menina é nítido

neste trecho, em que a professora responde a uma pergunta da menina: “-Pra que essa menina

quer aprender a escrever Leblon? Nunca vai poder ir lá!” (2005: 23). Seus desejos eram

silenciados, a cada alternativa que Sergiana encontrasse e, conseqüentemente, a indiferença à sua

existência se faz presente em cada um desses silenciamentos. Alguns desejos ela nem ousava

revelar, como beijar o Luciano na boca, por medo do que as colegas, a tia e a professora iriam

achar. (2005: 21) A legitimação de seus desejos só é pensada no espaço da arte, como se observa

nesse seu devaneio: “Desejou ser escritora para poder escrever quantos desejos quisesse” (205:

22). A arte é vista como espaço de total liberdade, sem cerceamentos, como os que ela vivenciava

por parte da professora e da tia; a arte como espaço de criação, totalmente livre.

O enredo continua, depois de longa interrupção das digressões e Sergiana, enfim, escreve sua

redação e entrega à professora que, novamente, de forma opressora diz: “- Você é mesmo muito

teimosa! Eu não falei que tinha que ser só um desejo? Está tudo errado! Amanhã você vai ter que

escrever outra.” (2005: 25). A atitude antiecológica da professora é uma forte denúncia de

atiutdes semelhantes a essa, praticadas por uma série de profissionais da educação que,

descontentes com seus salários e condições de trabalho, agridem verbalmente crianças, como

vimos nos depoimentos de fatos reais, reproduzidos. A auto-estima dessas crianças fica

totalmente comprometida, pois se em casa, geralmente não há estrutura educacional que a

desenvolva, na escola, o único espaço de saber a que elas têm acesso, oprime e castra, silenciando

as suas subjetividades.

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Mais uma vez, a possibilidade de saída é dada pela arte, como espaço em que se resgatam as

subjetividades oprimidas pelo sistema:

No caminho de casa, Sergiana foi pensando que seria muito bom se fosse escritora; aí sim, poderia ter quantos desejos quisesse, poderia escrever sobre todos eles que ninguém iria dizer que estava errada. Ouviu falar que em Buíque morou, há muito tempo, um menino que havia se tornado um escritor muito famoso; não lembrava o nome dele, talvez sua mãe soubesse. Quando ela voltasse, perguntaria. Ouviu dizer que o menino foi morar no Rio de Janeiro; igualzinho a ela. (2005: 26)

As esperanças da menina quanto à volta da mãe parecem incansáveis e sua lembrança remete

mais uma vez ao escritor Gracilano Ramos, e as temáticas de sua obra: a pobreza, a crítica social

à desigualdade.

Na segunda parte do livro “Luciano, a Maré e os desejos”, o texto se volta para a trajetória

desse menino, Luciano, suas indagações, suas percepções do mundo e sua maneira de ver

Sergiana. Pensando sobre a proposta de redação que a professora de Sergiana tinha feito, ele faz

um mergulho em si e reflete sobre quais seriam seus desejos, embora algo dentro dele relutasse

contra essa idéia: “ – Muito chato esse negócio de fazer redação, ainda mais de desejo. Isso é

coisa de boiola”. “E por mais que tentasse, não conseguia parar de pensar nos desejos.” (2005:

30)

A sua história é muito difícil, desde muito cedo precisou ter uma série de responsabilidades,

que não eram condizentes com a sua mente de adolescente, tornando-o um garoto menos

sonhador, mais realista, sem tempo de pensar em desejos. Mas isso não significa que não os

tinha, pois que os desejos fazem parte de qualquer ser humano.

No trecho abaixo, podemos conhecer uma parte da vida de Luciano e as dificuldades pelas

quais passava na Maré, comunidade em que vivia:

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A mãe ficou doente, e já não brigava com mais ninguém; de cama havia uns três meses, teve que mandar os gêmeos, que eram bem menores, para a casa da comadre que morava em Senador Camará.Luciano achou que agora seria mais fácil, os gêmeos tinham três anos, davam muito trabalho;a Lidiane estava com seis, só não tinha ido pra escola porque não tinha vaga no mesmo CIEP em que os outros estudavam, a outra escola era mais longe, do outro lado, e aí era perigoso. Leonardo e Lucimara estavam na turma de progressão, estudavam na mesma sala. Luciano era mais adiantado, já estava na sexta série. Quando terminasse a oitava teria que mudar de escola, não sabia como ia fazer, porque só havia segundo grau do outro lado do valão. (2005: 31)

É importante ressaltar os limites pelos quais todas as pessoas que convivem em um complexo

de favelas, como a Maré, são submetidos a viver. Dividida em facções do tráfico, a totalidade das

favelas não representa uma unidade, cada uma delas, portanto, recebe ordem de um grupo

criminoso. Nesta delimitação, os moradores devem transitar, não ousando atravessar para o lado

regido pela facção inimiga daquela que governa a sua comunidade. Esse fato narrado na história

de Luciano é muito comum na vida das crianças e adolescentes moradores da Maré, que ainda

que não possuam nenhuma ligação com o tráfico, precisam obedecer às regras impostas por cada

facção dominante em sua área de residência. Se um adolescente é morador da Nova Holanda, por

exemplo, não pode se arriscar a ir até a Baixa do Sapateiro, comunidade vizinha, mesmo que seja

para estudar ou ver um amigo, pois no território “do inimigo” não estaria garantida a sua

segurança. “Os meninos” (traficantes, na linguagem coloquial dos moradores) da favela inimiga

poderiam fazer algum tipo de mal ao garoto que se atrevesse a ultrapassar os limites demarcados.

Essas regras eram muito respeitadas e por esse motivo, muitas crianças deixavam de estudar. A

escola ser “do outro lado do valão” significa ser inacessível a um menino daquela localidade que,

além de reprimido pelo próprio sistema, que segmenta e rotula os moradores de favela, é

reprimido pelo tráfico de drogas. A diferença crucial entre o sistema vigente das classes

dominantes e o tráfico é a proteção: embora sejam extremamente cerceadores, os traficantes

ainda são ícones das comunidades, por protegê-la, na visão da maioria dos moradores. O sistema,

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de maneira oposta, além de castrar qualquer possibilidade de manifestação por parte dos

moradores de favela, que são excluídos da sociedade, não lhes oferece proteção de nenhum tipo.

A desvalorização da arte também é notada nas comunidades, onde muitos moradores

acreditam ser de total inutilidade usar sua renda em qualquer atividade cultural. Essa é uma

tendência que muitas ONG’S e projetos sociais vêm tentando reverter, levando às comunidades

expressões artísticas e valorizando as existentes nas comunidades, como artesanato e

manifestações folclóricas.

Alguns professores, como na ficção de Georgina Martins, tentam fazer nascer em suas turmas

o gosto pela arte, mas são aitudes geralmente tolhidas pela comunidade. Vejamos como isso é

narrado na história de Luciano:

Um dia a professora levou a turma dele para assistir a uma peça de teatro e ele ficou encantado com os atores; pensou que um diua pudesse ser ator, mas na escola nunca quis representar, tinha vergonha, e depois a mãe também não queria saber desse negócio.Bobagem, levar dinheiro para ir ao teatro. Essas professoras inventam cada uma, pensam que a gente é rica. Com esse dinheiro, comprava um litro de leite pros pequenos. (2005: 32)

A maneira sensível de Georgina narrar as suas histórias é extremamente humana pois, apesar

de sempre ensejar a abordagem dos problemas sociais de desigualdade de condições entre as

pessoas, não se detém unicamente a isso, elucidando suas subjetividades: seus medos, suas

vontades, independentemente das forças coercitivas a que estão submetidas. Apesar de a mãe de

Luciano não incentivar a arte, até pelas suas precárias condições, entendia a importância da

instituição escola na vida de seus filhos, como lemos nesse pensamento de Luciano:

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A mãe reclamava muito, mas acabava dando o dinheiro, bastava a professora pedir que ela dava um jeito de arrumar, e se fosse preciso lavava mais roupas. Achava que a escola era mutio importante, e que os filhos tinham que estudar para virar gente na vida.- A única coisa que eu ainda posso dar a vocês é o estudo. Se aquele safado de seu pai não tivesse dado linha na pipa, tudo era mais fácil, mas não, bastou os pequenos nascerem pra ele se mandar. Vai ver que tem até outra família, o covarde. Malandro, safado! Nunca gostou de trabalhar, pensando bem foi até bom ele ter dado o fora.Luciano já estava cansado de ouvir a mãe falar isso, sabia que era tudo da boca pra fora. No dia em que o pai foi embora ela chorou muito. Ele não, achou que o pai nem ia fazer tanta falta assim, nunca estava em casa/.../ (2005: 32-3)

Neste techo, além da preocupação da mãe com o futuro dos filhos, é notável um grave

problema que afeta as favelas brasileiras: o abandono do pai. Parece que o homem, nessa era pós-

moderna perdeu as referências em relação ao seu papel de pai e cada vez mais cresce o número

da “infância sem pai”, que vai refletir na entrada de mutios jovens para a criminalidade, por falta

da presença masculina em casa. Não é raro, esses jovens enxergarem, na figura do traficante, um

herói, um pai provedor e protetor, preenchendo a falta real desse componente essencial na

instituição familiar. A ausência do pai marca a vida dessas crianças, como a de Anderson, ex-

amigo de Luciano que passou a viver da criminalidade: “Quando eles eram menores, jogavam

bola de gude no portão da casa de Luciano/.../ Agora não tinha mais tempo pra essas brincadeiras.

Passou a andar armado e de cabeça baixa. Tinha doze anos, não conhecia nem o pai nem a mãe.

Era a avó que o criava.”(2005: 33) Abaixo, a ilustração do encontro de Luciano com o ex-amigo:

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Muitos especialistas, hoje, discutem sobre esse fenômeno do pai ausente na

contemporânea sociedade brasileira, principalmente nas periferias. Pedro Morandé Curt, no artigo

“Família e sociedade contemporâneas”, publicado no livro Família, sociedade e subjetividades:

uma perspectiva multidisciplinar, apresenta a seguinte opinião sobre o tema: “ /.../ a família

representa uma esperança para a sociedade e para a cultura atual, não obstante a grave situação

pela qual atravessa, derivada especialmente da institucionalização progressiva de uma cultura do

“pai ausente”. (2005: 13). Notadamente esse fenômeno está se tornando cada vez mais

banalizado, de modo que muitas mulheres introjetaram suas responsabilidades para com seus

filhos como exclusivas, sem se indignarem com a ausência da figura masculina. No livro Uma

Maré de desejos, notamos que os protagonistas não têm pai presente, ilustrando com muita

eficácia a situação de grande parte das crianças moradoras de comunidades desfavorecidas.

Luciano se sentia feio e gostaria de ter roupas bonitas como a de seu primo ou de ter poder

com as garotas como o Anderson, o menino que virara do “movimento” e, em suas reflexões, é

notável a sua insegurança, quando não se sente nem protegido por um pai, nem pelo traficante,

sentindo-se desvalorizado. A realidade de Luciano, então, é contraposta ora à de seu primo, este

com pai presente, que fazia toda a diferença em sua vida, ora à do traficante, idealizado pelas

garotas da comunidade:

Essa lembrança fez ele pensar que o Anderson já parecia um homem, mas ele era um ano mais velho que o Anderson; apostava que o amigo já tinha ficado até com mulher (que dirá com garotas”. Ele não. Nunca tinha ficado com nenhuma garota, mas isso ele não queria contar nem pra Sergiana./.../Luciano se achava muito feio, não gostava de suas pernas, achava-as muito finas, nem pareciam pernas de homem./.../ “ficar sem camisa?” Nem pensar, tinha o peito afundado pra dentro. /.../ Quando se olhava no espelho não gostava do que via:- Como é que vou ficar com garotas, se sou feio desse jeito? Nenhuma garota vai querer ficar comigo.E aí desejou ter umas roupas bem bacanas pra ver se ficava bonito. O primo dele só andava bem arrumado, só com roupa de marca.- Também pudera, meu filho, o pai dele trabalha de carteira assinada e mãe é fixa em casa de madame pra mais de cinco anos/.../

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Nessa hora, ele desejou que o pai não tivesse ido embora/.../ (2005: 35)

Muitos adolescentes de comunidade carente, que não pertencem ao mundo da criminalidade,

nem têm pai que garanta seu sustento, se sentem exatamente desta forma: excluídos,

abandonados, não desejados pelas garotas. O consumismo, neste momento, parece peça-chave

para garantir a felicidade, mesmo desses meninos, que apesar de não terem renda para

consumirem, se sentem atraídos pelo poder que o consumo pode trazer. Assim, recorreremos a

uma afirmação de Dilma Mesquita para ilustrar essa idéia de pertencimento necessário a esses

meninos na sociedade capitalista: “ Estar in significa deter o poder de compra; podendo

consumir, o indivíduo tem acesso à produção com a marca do sistema; vítima de um “engodo”,

os ingênuos consumidores se supõem participantes/.../ do próprio núcleo de poder.” (2002: 50).

É discutida também na obra de Georgina Martins a inacessibilidade aos livros existente na

escola. A instituição escola, que deveria ser responsável pela divulgação do saber, veta ao aluno

qualquer possibilidade de ter acesso aos livros, considerando que os alunos não são aptos para

cuidar deles. Essa atitude escolar lembra muito a sacralização do saber da Idade Média, quando

só os cléricos detinham o instrumento da leitura e conheciam o que diziam os livros. O assunto

surge na narrativa quando a professora de Luciano pede uma redação sobre a família, e então

recorda as figuras que via nos livros sobre o tema:

- Hoje, vocês vão fazer uma redação, e o tema da redação é a família. Podem começar.E foi nessa hora que o menino descobriu qual era o seu verdadeiro desejo, o desejo mais forte de todos os desejos que ele já havia tido. Lembrou-se dos livros que a professora levava pra sala: de português, de matemática, de história e de geografia. Luciano achava os livros muito bonitos, mas o preferido era o de história, só que a professora não deixava nenhum aluno levar os livros pra casa:- Já disse que não pode levar pra casa, vocês não têm nem onde guardar, vai ficar tudo jogado, e depois vocês vão se esquecer de trazer pra escola. Já conheço essa história. Vocês perdem tudo que é livro.Luciano não se lembrava de ter perdido nenhum livro, até porque ele nunca tinha levado nenhum para casa. Como é que iria perder? Mas pensando bem era melhor não levar mesmo, a mãe dele não queria saber de livros em casa:

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- Olhe, não me tragam nenhum livro pra casa, ouviram? A Emídia disse que no dia da matrícula dona Abigail avisou que se algum livro sumir, ou for rasgado, a gente tem que pagar, porque no final do ano o governo manda recolher tudo /.../A Emídia ainda ficou falando das propagandas da televisão sobre os livros que o governo dava pras crianças de escola pública, mas não adiantou nada./.../Luciano se lembrou de um livro de estudos sociais da quarta série, e aí se lembrou das fotos de família que havia no livro. No livro de português também havia várias fotos de família, e as famílias dos livros eram sempre muito bonitas, principalmente aquela sentada á mesa na hora do jantar: o pai, a mãe e os três filhos – dois meninos e uma menina. A mãe era linda e o pai parecia muito legal./.../Na televisão ele sempre via as famílias das novelas jantando juntas, à mesa. Ele achava muito bonito a família assim reunida. Sempre tinha suco de laranja em copos bonitos, e todo mundo bem-arrumado/.../Luciano pensou em como é que ele iria fazer uma redação bonita se a família dele não era igual à dos livros:Bem que podia ser, era só o meu pai voltar pra casa, minha mãe ficar boa outra vez e comprar um vestido bem bonito pra ela e colocar o jantar pra gente. /.../ (2005: 37-8)

Uma inconstitucionalicidade é narrada neste trecho, pois os livros que deveriam ser dos

alunos, como as campanhas publicitárias governamentais alardearam, ficavam retidos nas

escolas, como notamos na fala da mãe de Luciano que, por esse motivo, o proíbe de levar

qualquer livro para casa, amedrontada de ter que pagar por ele. Esse é um fato que infelizmente

ocorre com muita freqüência nas escolas públicas, em que educadores detentores do poder local,

são os primeiros a terem um olhar excludente para essas crianças, julgando-as incapazes de

cuidar de um livro, se bem que, se seguida a lei, os livros paradidáticos pertenceriam aos alunos.

Logo, eles poderiam fazer o que quisessem com eles. Não compete aos diretores e professores

decidirem sobre esse material, fruto de muito dinheiro público investido pelo governo. Tem-se

nesse relato da obra de Georgina uma crítica muito séria à atitude de certos educadores, dos quais

se esperariam atos mais reflexivos, inteligentes, humanos. A indiferença pós-moderna se faz

presente aqui, na segmentação social proposta pelas entidades competentes.

Um outro ponto importante para discussão, suscitado pelo trecho citado, é o modelo familiar

imposto pela mídia, muitas vezes copiado em livros didáticos, em oposição a famílias reais,

pobres, desfavorecidas. A incompatibilidade entre as famílias dos livros e as sua entristece

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Luciano, que se vê excluído e despossuído do que as ferramentas midiáticas consideram como

uma família. A insituição família, como já foi dito, é instrumento essencial para um crescimento

humano saudável e é extremamente cruel e antiecológico tirar da criança o seu direito a ter uma

família, assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Esse direito vem sendo violado e

o Estado não se tem preocupado, de maneira notória, para dar estrutura a essas famílias a não se

desmantelarem, senão com atitudes bastante discretas, paleativas, que não resolvem o grave

problema.

Sobre essa importante instituição social, disserta Pedro Morandé Court:

A família /.../ pode ser para seus membros o lugar de mais elevada realização do significado de sua existência, como também o lugar mais injusto de despersonalização e violação de sua dignidade/.../A família representa para a vida social e pessoal uma experiência única de sociabilidade humana, não comparável com nenhuma outra forma de vida institucional./.../ Por isso, é oportuna a definição de família no horizonte de um pensamento ecológico, ou seja, que procura observar a realidade no conjunto de todos os seus fatores. Aparece assim como o que realmente é, como um testemunho de solidariedade intergeracional que tem como função o cuidado da vida humana que lhe foi confiada, em sua imponderável dignidade e grandeza e, para os crentes, em seu destino de eternidade. (2005: 27)

A família, como contemplada na afirmação acima, não é um mero aglomerado de pessoas,

mas é responsável pelo desenvolvimento saudável do ser humano, portanto, deve ser cuidada e

protegida pelo Estado, por ser ferramenta indispensável na formação de sujeitos de bem. Luciano

queria uma família estruturada, com alimentação saborosa e saudável, com organização, que toda

pessoa precisa, mas a sua não é equivalente a esse desejo, fazendo-o sofrer.

Na escola, ele tinha os poucos momentos de alegria, e enquanto pensava nessas questões de

família, se distrai, solta a sua imaginação e desenha como gostaria que a Maré fosse. Nesse

momento, a professora dele, bem mais sensível que a de Sergiana, faz um comentário:“- Luciano,

você desenha muito bem, já pensou em ser arquiteto? Ele não sabia o que os arquitetos faziam, aí

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a professora explicou, e o menino gostou da idéia.” (2005: 39). Desenhou bastante a partir dali,

tudo o que desejasse e o que seus amigos pediam. Em casa, distraído de suas dificuldades,

desenhou pra seus irmãos:

Na escola, no dia seguinte, trava com sua melhor amiga, Sergiana, o seguinte diálogo:

- Luciano, será que você consegue desenhar a Maré inteira? Mas desenha a Maré com praia, tá?- Mas aqui não tem praia.- Não tem nada a ver, aqui também não tem prédios. No desenho a gente pode colocar tudo do jeito que a gente quer, é igual na história que a gente inventa. Você sabia que eu vou ser escritora? Então, vou escrever tudo o que eu quiser, e se quiser também pode ser desenhista, aí vai poder desenhar tudo do mundo./.../E o menino pensou que ser desenhista era agora o seu maior desejo. (2005: 44)

Neste trecho, mais uma vez o poder criativo da arte é sugerido, mas desta vez, não só a arte

de escrever, mas também a arte de desenhar, capazes de provocar a fantasia, o escape da

realidade, a possibilidade do sonho na vida tão dura daquelas crianças. Percebemos que, na obra

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de Georgina Martins, mesmo que a narrativa aparentemente se dê em um tom realista, a fantasia

tem privilégio. Até mesmo a concepção de personagem, não se pode dizer que seja fiel à

realidade, pois muito de fantasioso é presente no ato de criação dessas personagens, em que a

autora busca preservar a inocência, talvez nem tanto preservada nos dias atuais na mentalidade

dos adolescentes.

Podemos refletir através dessa constastação que a Literatura não é mero reflexo da realidade,

mas um diálogo que o autor propõe com a realidade que busca conhecer ou discutir. Conforme

afirmação de Fúlvia Rosemberg, citada por Maria Antonieta A. Cunha, em Literatura Infantil:

teoria e prática, pode-se dizer que os livros infanto-juvenis não constituem um reflexo, mas uma

ação e cremos que, assim, pode-se entender melhor o papel da fantasia:

Criar um texto, criar uma imagem não é refletir. É agir. É atuar no concreto. É executar uma ação. O escritor, através desta sua ação, que se utiliza de símbolos, está concretizando, atualizando uma forma, dentre as muitas possíveis de se relacionar com crianças. É assim que o criador de literatura infanto-juvenil propõe, através de seu ofício, uma forma de relacionamento com a criança. (2006: 29)

A proposta de relacionamento com as crianças, em Georgina Martins, não é só de sugestões,

mas de negação de comportamentos, a partir de sua retratação, que é lida como uma crítica

àquela realidade. Isso ocorre na terceira parte do livro, chamada “Sergiana, Luciano e a princesa

Caralâmpia”, em que a crítica recorrente ao sistema escolar é feita através do paralelo implícito

entre dois comportamentos de educadores. Primeiramente, é relatada a atitude da professora de

Luciano, que valoriza os trabalhos elaborados por seus alunos, levando-os ao conhecimento até

da direção: “Quando ele chegou, a professora pegou o desenho e foi mostrar à diretora da escola,

e ela perguntou se ele não queria pintar um painel no refeitório.” (2005: 45). No lado extremo

oposto, tem-se a professora de Sergiana, que menospreza seu alunado, como já mencionado,

tolhendo suas possibilidades criativas, e além disso, repete o padrão de muitos professores de

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escola pública, que sem comprometimento com seu ofício, faltam excessivamente, devido às

facilidades cedidas ao funcionalismo público: “ Luciano foi pra sala de aula. As meninas ficaram

no pátio, a professora tinha faltado outra vez, e Sergiana achou que ela não voltava mais: “ Ela

não gostava de dar aula aqui, vai ver arrumou outra escola. Tomara!” (2005: 46). Percebe-se,

nessa citação, que os alunos também a ignoravam, que ela não gerava na turma empatia. Outra

professora é citada como representante de segmentação, que exclui alunos por motivo de falta de

compreensão da realidade em que está inserida, enquanto educadora. Observa-se esse fato, que

insurge na obra como crítica ao sistema que reprime, indiferentemente, aqueles que já são

excluídos pela própria condição de vida:

No caminho, Luciano encontrou Leonardo e Lucimara, que vinham da escola, e lembrou-lhes que não poderiam esquecer o horário do remédio da mãe. Lucimara disse que a professora reclamou que o uniforme dela estava muito sujo:

- Ela falou na frente de todo mundo, fiquei morrendo de vergonha.

Luciano explicou à irmã que não tinha lavado porque o sabão acabara, mas ela não podia falar pra mãe, ela iria ficar preocupada, e não poderia fazer nada. Depois ele daria um jeito de arrumar sabão. (2005: 49)

Remete-nos esse fato à indiferença pós-moderna, pois, preocupada e apressada com as

aparências, com o estético, com a higiene, a professora se coloca de forma indelicada e insensível

à garota, submetendo-a ao deboche dos outros, e portanto, produzindo mais exclusão,

segmentação, preconceito. Naturalmente, este também é um episódio bastante comum nas

escolas, onde o educador, sem levar em consideração o histórico do aluno, o rotula. A questão da

higiene, discutida nessas linhas, é indispensável de ser comentada, porque pra se manter limpo,

precisamos de mais do que água. Os produtos de higiene, que garantem o cheiro agradável à

roupa, ao nosso corpo e a nossa casa, custam bastante caro nas prateleiras dos supermercados.

Isso significa que ter a aparência limpa e cheirosa depende também de poder aquisitivo, ainda

mais em um país tropical como o nosso, em que o calor nos castiga demais.

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Além dos problemas sociais de Luciano, o seu problema existencial é sempre elucidado na

narrativa. Sua necessidade de pertencimento é detectada, desta vez, pela sua vontade de trabalhar,

que é relatada da seguinte forma:

Luciano queria muito fazer carreto na feira, um monte de menino menor do que ele já fazia. Pensou que, se conseguisse dinheiro com o carreto, até poderia comprar uma latinha de goiabada pra Sergiana; ela iria gostar muito. Decidiu que ia fazer escondido da mãe, que era só dizer que ia pro futebol, e pronto. Foi dormir pensando em Sergiana, e no carrinho que precisava arrumar para fazer o carreto. (2005: 48)

Neste caso, percebe-se que a necessidade de ter um “ganha-pão” está subjacente à sua

necessidade de agradar a garota amada, de ser aceito por ela. O trabalho infantil é denunciado,

pois a personagem afirma que crianças bem menores do que ele já trabalhavam na função

pretendida. O consumismo também é um dos fatores que impulsionam esses meninos a

trabalharem desde muito cedo. Para se sentirem pertencentes ao grupo social, necessitam

consumir, e para consumir, precisam trabalhar, se não optarem por se enveredar a práticas ilícitas,

já que os pais não podem garantir-lhes o sustento. Sobre esse quesito, a narrativa ilustra os

desejos dos irmãos de Luciano, que contagiados pelo furor da moda dos brinquedinhos de uma

grande rede de fast-food americana, querem também obtê-los. Que criança também não o

desejaria, visto o massacre de imagens publicitárias que induzem à compra? A seguir, constata-se

que este também é um impulsionador para o trabalho precoce de Luciano:

Lidiane perguntou se um dia a mãe não podia levá-la ao Mc Donald’s, nunca tinha ido lá, se fosse ganharia os mesmos brindes que a filha da dona Emídia ganhou:

- Mãe, os cachorrinhos são lindinhos, a Suelen escolheu um todo branquinho. Me leva lá?

Luciano também tinha vontade de ir ao Mc Donald´s, quem sabe se com o dinheiro do carreto não conseguiria levar os irmãos? Mas primeiro iria comprar algumas coisas pra casa; depois, compraria a latinha de goiabada da Sergiana. (2005: 51)

A ilustração a seguir demonstra a sensação de poder que invade Luciano ao trabalhar:

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Após trabalhar bastante, Luciano consegue um valor que só dá para comprar o básico, sem

esquecer a goiabada de Sergiana e obviamente, nota-se na narrativa o desencontro entre seus

sonhos e a sua dura realidade:

Novamente pensou em seu desejo, achou que ele combinava com um dia de domingo: comida na mesa, copos bonitos, jarra de suco e até sobremesa. Mas em sua casa não tinha mesa, só uma bem pequena na cozinha, mesmo assim era pra guardar as panelas, não dava pra ser mesa de jantar.

Colocou o arroz no prato com um pouco de farinha e comeu. Lembrou-se do picadinho do dia anterior e do Mc Donald’s. Queria muito comer coisas gostosas. Às vezes, na escola, serviam frango com macarrão. (2005: 54)

Neste trecho, é evidente a oposição entre sua comida e seus reais desejos de alimentação,

última crítica social apresentada na obra, que seguirá uma tendência, em suas páginas finais, de

tensão entre os desejos de Sergiana e de Luciano e a possível revelação dos mesmos:

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Pensou em Sergiana, e sentiu vontade de ficar com ela. No caminho da escola, a vontade foi aumentando, precisava falar mesmo com ela. “ E se ela não quiser? E se não quiser nem ser mais minha amiga?” Mesmo morrendo de medo, decidiu que falaria.

Procurou por Sergiana em todos os lugares da escola e não a encontrou; a sala estava vazia/.../ Seu coração batia muito forte. Achou que a menina estava atrasada; olhou no relógio da sala da direção e viu que ainda faltava mais de meia hora pras aulas começarem, mas mesmo assim estava ansioso/.../

Sergiana não queria chegar atrasada naquele dia, já tinha chegado na outra semana. Gostava de chegar cedo na segunda-feira pra poder ficar mais tempo com Luciano, já bastava não vê-lo sábado e domingo./.../

Pensou que encontraria Luciano no portão da escola, ele sempre esperava por ela na entrada, mas ele não estava lá, seu coração bateu mais forte. “E se ele faltar à aula hoje?” Subiu a rampa correndo, nem passou pela sala de leitura que costumava ficar aberta na hora da entrada. Foi até a sala do menino, havia alguns alunos no fundo da sala, perguntou por ele, mas disseram que ele não tinha chegado ainda. Desceu a rampa, ainda faltavam vinte minutos pro sinal bater. Ficou zanzando pelo pátio inteiro.

Na sala de leitura, Luciano estava distraído com um livro novo que a sua professora havia comprado numa feira de livros: A terra dos meninos pelados. Achou o nome engraçado, pensou que fosse uma história sobre meninos nus; abriu o livro e viu que não era nada daquilo, /.../ quando se deparou com uma palavra: “Caralâmpia”. Seu coração bateu forte. Só podia ser a tal princesa de que Sergiana falava tanto, precisava contar pra ela. Largou o livro em cima da mesa e foi correndo ver se ela já tinha chegado; avistou a menina no pátio, e sentiu que seu coração batia mais forte do que tudo no mundo.

Sergiana viu Luciano e respirou aliviada:

- Pensei que você não viesse hoje.

Luciano olhou pra ela e achou que ela estava mais bonita

- Você precisa ver o que eu encontrei, vamos pra sala de leitura que eu te mostro.

/.../Abaixou a cabeça pro Luciano não ver que seus olhos estavam marejados, mas ele percebeu; levantou a cabeça dela, enxugou duas gotinhas de água que escorriam pelo rosto vermelho da menina, tomou coragem e falou baixinho:

- Sergiana, eu acho você muito mais bonita que a princesa Carlâmpia.

O sinal bateu, os olhos de Sergiana brilharam, e o coração do menino disparou. Sergiana até ouvia as batidas.

Luciano segurou a mão dela, e os dois saíram da sala de leitura atordoados. Despediram-se e combinaram de passear na Teixeira quando acabassem as aulas. (2005: 57-9)

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Essa ilustração é a última da narrativa, em que a demonstração de carinho e cuidado entre os

dois amigos remete ao amor:

E assim termina a narrativa Uma Maré de desejos, com a exacerbação ao máximo dos desejos

de adolescentes daqueles meninos, criando uma tensão no final do texto, inexistente no seu

percurso. O seu final é surpreendente, pois diferentemente do que se espera de uma narrativa de

tensão como esta, que o desejo se realize, como nos clássicos contos infantis, em que a resolução

das tensões são sempre atingidas, nesta história a solução é implícita. A paixão platônica entre os

dois não se realiza, mas há indícios de que pode se realizar, a partir do comportamento de ambos.

O primeiro amor é narrado com grande sensibilidade, igualando esses meninos, tão repudiados

pelo sistema, que os reprime, a todas as outras pessoas. Quem nunca sentiu seu coração disparar

diante de seu amor, na adolescência? E os amores platônicos, quem nunca os teve? Georgina

Martins, portanto, falou sobre o amor de forma inocente, singela e sensível. Consegue atingir, em

parte, a essência do amor, quase perdida hoje, no mundo capitalista pós-moderno, como disserta

Bauman, em Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos:

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E assim é numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para o imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a experiência amorosa à semelhança de outras mercadorias/.../ (2004: 21-2)

Diante desta amostragem de Bauman, em que tudo de mais belo que existe é submergido na

fugaz busca de uma mercadoria, a Literatura infanto-juvenil de Geogina Martins, consegue

aproximar-se do belo, da sutileza, da essência do amor, cuja natureza também é discutida por ele:

/.../ o amor não se dirige ao belo, como você pensa; dirige-se à geração e ao nascimento do belo. Amar é querer gerar e procriar e assim o amante busca e se ocupa em encontrar a coisa bela na qual possa gerar. Em outras palavras, não é ansiando por coisas prontas, completas e concluídas que o amor encontra o seu significado, mas no estímulo a participar da gênese dessas coisas. O amor é afim à transcendência; não é senão outro nome para o impulso criativo e como tal carregado de riscos, pois o fim de uma criação nunca é certo. (2004: 21)

Também faz colocações importantes sobre o amor: “O amor, por outro lado, é a vontade de

cuidar, e de preservar o objeto cuidado. /.../ E assim o amor significa um estímulo a proteger,

alimentar, abrigar; e também à carícia, ao afago e ao mimo/.../ Amar signifca estar a serviço,

colocar-se à disposição.” (2004: 24)

O encontro entre Luciano e Sergiana simboliza a transcendência do amor, com toda a sua

pureza, desinteressado de relações capitalistas, em que o relacionamento com o outro é visto

como pura mercadoria. O encontro entre o conhecimento popular e o científico, quando Luciano

ao ler o livro de Gracilano Ramos reconhece a personagem de que tanto Sergiana falava,

representa a busca de satisfazer o ente amado, como se percebe na felicidade do menino ao

encontrar Caralâmpia. É o cuidado que ele dedica a ela que resgata a mais sublime natureza do

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amor, surgida em uma das mais malvistas favelas do Rio de Janeiro: a Maré. Neste sentido,

podemos constatar o resgate das subjetividades alagadas nesta narrativa, que evidencia e

contrasta o que há de mais triste na vida dessas crianças ao que há de mais belo neles. Ao relatar

cada desejo que esses adolescentes tinham, na verdade, Georgina Martins, não só dialoga com a

realidade deles, mas exprime suas subjetividades, tão diluídas e tão apagadas pelo sistema. Cada

desejo retratado na obra é um resgate de humanidade explicitado, é uma voz legitimada, que

constantemente não teve outro espaço nos instrumentos midiáticos do nosso sistema capitalista

pós-moderno. E, assim, a autora consegue fazer de sua arte, sem apontar soluções para os

problemas sociais narrados, uma energia inesgotável de possibilidades, uma obra ecológica, na

qual se recria o respeito ao outro enquanto semelhante.

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Considerações finais

Consideramos que a parte mais complexa de se escrever em uma tese é sua conclusão,

principalmente quando a pesquisa é qualitativa, voltada para os aspectos abstratos, subjetivos e

considerados pela sociedade de conhecimento na qual vivemos sem fins utilitários e práticos. Na

verdade, o objeto de um trabalho como este não é propor soluções imediatistas que o mundo pós-

moderno solicita, com uma pressa frenética. O objetivo de uma pesquisa como esta é discutir a

Literatura, seu papel e sua essência a partir do entrelaçamento de teorias da sociologia, da

linguagem, da psicologia, pois a plurissignificação inerente ao texto literário permite fazer este

imbricamento. A busca de um projeto como este não é se encaixar em padrões científicos de um

saber cartesiano com resultados provados, atestados e incontestáveis, mas pensar, sobretudo,

exercer a nossa capacidade de pensar e refletir, tão esquecida nos dias atuais.

Na presente tese, para sustentarmos a sua hipótese, tornou-se essencial recorrermos a uma

gama de teóricos nas áreas relativas aos estudos aqui mencionados. Dentre eles, pode-se citar os

seguintes principais norteadores do aparato teórico da pesquisa: BAUMAN, Zygmunt, em Amor

líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, LIPOVETSKY, Gilles em Os tempos

hipermodernos, LINS, Ronaldo lima, em A indiferença pós-moderna, GUATTARI, Félix em As

três ecologias, ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a Literatura Infantil Brasileira,

RUECKERT,Willian. Literature and ecology: na experiment in Ecocriticism. In: GLOTFELTY,

Cheryll & FROMM, Harold’ eds. The ecocriticism reader landmarks in literary ecology,

SOUZA, Glória Pimentel Correia Botelho de. A literatura infanto-juvenil brasileira vai muito

bem, obrigada!,TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo e HALL, Stuart. A identidade cultural

na pós-modernidade. Estes autores foram de suma importância para trazer à pesquisa um suporte

teórico, que nos permitiu fazer afirmações acerca da sociedade na qual vivemos (circundada

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pelos problemas apontados por estes) e traçar diretrizes para a leitura dos textos literários que

fazem parte do corpus.

Tendo em vista estas primeiras considerações, vale ressaltar os objetivos emocionais e

pessoais que levam um pesquisador a escrever sobre o tema em foco, pois, ao contrário do que se

imagina, há um ser humano por trás do pesquisador, que sente, que chora, que se emociona e que

é, sobretudo, “humano”, parte do cosmos, do universo. O ideal principal, norteador desta

pesquisa, foi resgatar a essência humana dos sujeitos sociais, através de uma proposta

verdadeiramente ecológica, que não se atenha unicamente aos animais e às plantas, mas aos seres

humanos, principal criação da energia geradora do cosmos, que na cultura Ocidental se chama

comumente de Deus.

A arte literária foi vista como necessidade vital do ser humano: energia inesgotável do

universo, que se renova a cada leitura, a cada interpretação, a cada onda de pensamento suscitada

por ela. Desta forma, desempenha papel vital em nossas vidas, sendo a expressão “a necessidade

da arte” algo extremamente vigoroso de sentido, principalmente nos dias atuais em que o espaço

da reflexão e da criação é progressivamente invadido pela mentalidade da pressa e da maior valia.

Neste contexto que intitulamos de Pós-moderno, embasados pelos teóricos norteadores desta

pesquisa, notaram-se características subjacentes às nossas consciências que alteram os

comportamentos e as percepções da sociedade. Sendo assim, denominamos, na introdução,

desafios da Pós-Modernidade: a mudança de paradigmas de referências estáveis, a crise

identitária, o caos da insegurança nas escolhas, manipulação midiática e massificação, violência,

exclusão, silenciamento das massas e indiferença. Levantando estas questões, acreditamos ter

contribuído para detectarmos os males sociais que podem ser alterados se os conhecermos e

estivermos atentos a estes. Apresentamos a utopia como mola impulsionadora das grandes

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mudanças, portanto, sendo um sentimento que deve ser sustentação para o homem nos seus

projetos e ideais. Neste contexto, o texto literário incorpora esses ideais e os concretiza no plano

da ficção, do imaginário, que falam a fundo à alma humana, suscitando a sua emoção, que

articuldada com a nossa racionalidade pode render frutos promissores. Portanto, cremos que a

Literatura seja uma das respostas ou caminhos possíveis para o resgate da “humanidade” nos

homens, por se tratar de uma experiência única para quem a vivencia.

A arte engajada, entendida ideologicamente como o “dever ser de outro modo”, provoca

reflexões e mudanças de paradigmas sociais à medida que alerta para o convívio social

equilibrado, ecologicamente harmônico. Logo, o fato de escrever Literatura engajada, hoje,

poderá significar resistência ao sistema que desumaniza e é indiferente ao outro. A Literatura

destinada ao público infanto-juvenil, especificamente a de Georgina Martins foi nossa opção de

investigação, por considerarmos que reflete exatamente a proposta literária que defendemos nesta

pesquisa. A partir de um breve histórico do tema da exclusão social, nas obras infanto-juvenis

brasileiras, notamos que este não é inédito, pois já é assunto discutido por muitos autores nos

livros deste gênero, entretanto, identificou-se, em Georgina Martins, um fazer literário sensível,

que busca novos valores, os quais não se limitam à denúncia ou à exploração de sentimentos

piegas. Georgina, em seu texto, não se esquece do belo, mas o deixa transparecer em lugares

inusitados e esquecidos por grande parte dos brasileiros, evidenciando a sua sensibilidade

artística em várias estruturas de sua narrativa, todas permeadas por uma magia de vontade de

mudança, por um mundo mais justo, em que todos os seres humanos sejam vistos pela sociedade

como “seres humanos”.

Fizemos, portanto, a leitura de No olho da rua: historinhas quase tristes (2002) e Uma Maré

de desejos (2005), cujo teor gerador de discussão é a exclusão social de meninos marginalizados

socialmente, sejam eles moradores de rua ou de comunidades desfavorecidas. Ambas as obras

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refletem um olhar sensível que repudia a indiferença social, despertando em quem as lê uma

percepção diferenciada da sociedade em oposição às tendências do senso comum. Nestes textos,

notamos as subjetividades desses seres humanos, que muitas vezes, pelo sistema, são taxados de

animais, aos quais não se dá os mesmos direitos de um cidadão. A oposição “criança” a “menor”

foi bastante elucidativa para pensarmos a respeito da cidade partida em que vivemos, onde

milhares de esquecidos pelo sistema perambulam pelas ruas ou se refugiam em comunidades sem

acesso à educação de qualidade e ao patrimônio cultural de que dispomos. A Literatura de

Georgina denuncia esses fatos, sem perder a poesia, o imaginário, sem se vestir de uma ideologia

política específica, mas trazendo à tona a principal discussão com a qual estivemos preocupados

no decorrer deste trabalho: o humano presente nas pessoas, em todas as pessoas.

Conclui-se, por todos esses fatos mencionados, que sendo a Literatura fonte de energia

inesgotável, é portadora de mudanças para a lógica atual da sociedade, material imprescindível de

que dispomos para buscarmos um mundo melhor, com uma divisão mais igualitária de direitos e

deveres. As soluções e saídas deste caos em que estamos inseridos virão posteriormente, mas os

caminhos poderão ser traçados na arte literária, como o faz Georgina Martins, que em sua busca,

profundamente ecológica, deixa transparecer a essência dos excluídos socialmente, esmagada

pelo sistema. Enxerga, desta forma, visionariamente uma outra percepção do “humano”...

ensejando uma das possibilidades do “amar ao próximo como a ti mesmo”.

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