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ALÉM DO CÉU E DO INFERNO DAN VECCHI

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ALÉM DO CÉU E

DO INFERNO

DAN VECCHI

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Copyright © 2012 Dan Vecchi

All rights reserved.

ISBN-10: 150330941X

ISBN-13: 978-1503309418

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Para minha mãe Dirce, mulher que me educou e ensinou a trilhar os caminhos

da minha vida.

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Agradecimentos

Primeiramente, gostaria de agradecer à minha mãe Dirce; se não fosse por

seu suporte e sua paciência, este livro não existira. À minha tia Dalva, que me

ajudou no momento em que eu mais precisava. À minha família, que, de alguma

forma, também me apoiou nesta jornada, Vivianne, João, Rebeca, meu irmão

Daniel, minha cunhada Dê, e ao meu sobrinho Murilo.

A todos os meus seguidores do Tumblr, Twitter, Facebook e Skoob que me

ajudam na divulgação do livro; mesmo os que eu não conheço pessoalmente,

meu muito obrigado.

A minha leitora Akemi, que bondosamente se disponibilizou a fazer a

revisão da nova versão do livro.

Ao meu capista Régis Marley, pela dedicação e paciência ao desenvolver a

nova capa.

Ao meu querido amigo Marcio Falcão, que me ajudou nas artes de

divulgação com muita paciência e carinho.

A todos os meus alunos que me deram total incentivo e suporte do começo

ao fim do livro, quero que todos saibam o carinho que eu tenho por cada um de

vocês. Em especial à Larissa e à Amanda, que me incentivaram no início,

quando tudo eram apenas algumas ideias.

E aos meus queridos amigos, que sempre estão ao meu lado quando mais

preciso, Fernanda, Juliana, Michelli, Thiago, Verônica, Gabriela, Fabiana, Julio,

Sandra, Anna Cecília, Kamila e Wesley, obrigado por fazerem parte da minha

vida, e por me mostrar o verdadeiro sentido da palavra amizade, quando eu

mais precisei, amo muito todos vocês.

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Prólogo

A noite estava escura; a lua não estava no céu como de costume. Pelas

frestas das portas podiam-se entrever pequenas luzes de velas. Naquele tempo,

a energia elétrica era apenas um estudo nas mãos de Willian Gilbert.

Era o ano de 1600 e, apesar de toda aquela escuridão, dentro de

determinada casa percebia-se uma luminosidade maior. Em grande parte do

quarto haviam velas acessas, possíveis de serem vistas mesmo com as cortinas

fechadas. Geralmente, isso significaria momento de oração na pequena Amber,

mas, naquela noite, a reunião era por outro motivo, de uma forma não

convencional.

Na residência, apenas mulheres, todas trajando longos vestidos negros de

mangas compridas. Usavam também grandes véus que cobriam seus rostos.

Sobre a cabeça de uma delas, uma espécie de coroa. Porém, era impossível

descrever qualquer outra coisa diferente, pois todas estavam ajoelhadas em

círculo e permaneciam em silêncio. Foi quando uma dentre elas que parecia a

líder disse:

— Hoje estamos aqui para celebrar o nascimento. Não nascia um homem

nesta cidade havia exatamente cinquenta anos. Por isso queremos reverenciar

os anciões pelo sinal recebido.

— OSHAMAN — disseram todas em um único som. Aquela palavra parecia

ser um sinal de agradecimento.

— As almas me dizem que o momento está chegando. — A líder apontava

para a mulher com a coroa. — Minha querida Doroth, se prepare para receber o

nosso mais novo membro, pois a hora do nascimento está próxima.

As mulheres ficaram eufóricas, ao mesmo tempo tentavam conter-se. A

única que aparentava calma era a condutora da cerimônia.

A líder se levantou e foi em direção a Doroth. Novamente, ajoelhou-se em

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frente da mulher, retirando a coroa e o seu véu. Ela era linda. Seus olhos e

cabelos eram negros e sua pele, branca. Aparentava tranquilidade, ao mesmo

tempo em que transmitia uma espécie de medo no olhar.

Tocando a barriga de Doroth com as mãos, a líder começou a profetizar

palavras estranhas, difíceis de serem entendidas. As outras mulheres faziam o

mesmo, cada qual de uma forma diferente, na tentativa de falar mais alto do que

as demais. Foi quando a líder apontou para uma delas e disse:

— Corra que a criança está nascendo. Vá imediatamente chamar o Coronel

Albert.

A mulher se levantou, abriu a porta e correu pela escuridão afora.

******

Enquanto isso, em um celeiro isolado longe dali, três homens conversavam.

Um deles era muito magro, usava roupas sujas e aparentava ter trabalhado o dia

todo com elas. Tinha cara de poucos amigos. Aliás, todos pareciam mal-

encarados. O outro vestia uma roupa mais elegante, podia-se dizer que saíra de

uma festa para aquele momento. O terceiro parecia que tinha algo em especial.

Era um sujeito alto, de cabelos curtos levemente grisalhos, roupas escuras, cujo

chapéu cobria parte do seu rosto tenebroso, esse era o capataz.

Nesse momento, um gemido emitido por um quarto homem foi ouvido,

chamando a atenção dos outros.

— Então resolveu falar? — O homem de cabelos grisalhos olhou com fúria

para o rapaz. — Espero que comece, o mais rápido possível, a falar o que quero

saber, eu não tenho o tempo todo.

Tanto o rapaz interrogado quanto os outros dois permaneceram em silêncio.

— Amarrem-no pelo braço. Está na hora de começar o tratamento especial

para o nosso convidado — ordenou o homem grisalho.

Machucado, o rapaz estava sem camisa e possuía várias marcas pelo

corpo, aparentando ter sofrido muito. Com os braços amarrados, foi levado para

ficar cara a cara com o interrogador.

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— Eu... já... disse o que... eu... sei — o homem tentava falar com muita

dificuldade.

Seu estado era de total debilidade e ele, assim, parecia não ter forças para

falar ou fazer mais nada. Estava desistindo da vida. Não importava o que

dissesse, sabia com quem estava lidando e o quanto aquelas pessoas podiam

ser cruéis.

De repente, um grito feminino e ofegante veio da escuridão:

— Coronel Albert, seu filho está nascendo. Você precisa voltar para sua

casa imediatamente.

Sem pensar duas vezes, o homem que usava roupas elegantes, correu em

direção aos cavalos amarrados do lado de fora do celeiro e montou em um

deles. Depois disse:

— Utilize a caldeira e, se ele não falar mais nada, podem matá-lo. Ele não

tem mais serventia para nós.

E em um piscar de olhos, saiu em disparada pela escuridão da noite.

******

Do lado de fora da casa, os gritos de Doroth podiam ser ouvidos. As

residências ao redor permaneciam em silêncio; ouvia-se apenas o barulho de

algumas janelas se fechando. Como em um filme de terror, as pessoas pareciam

estar com medo de algo que estava por vir.

Doroth estava perto de dar à luz, quando ouviu o cavalo de Albert se

aproximando.

— Albert, meu amor, nosso filho — gritava Doroth ofegante.

— Calma. Você sabe que ele ainda não pode entrar. Concentre-se no

trabalho de parto, seja forte, ele já está do lado de fora. Falta muito pouco —

disse a líder.

Todas as mulheres continuavam pronunciando as estranhas palavras.

O coronel Albert desceu de seu cavalo e parou junto à porta. Ele podia ouvir

as mulheres e os gritos de sua esposa, mas também sabia que não podia

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atrapalhar aquele momento. Ficou aguardando, esperando ser chamado.

Alguns minutos se passaram. Em seguida, um grito assustador de Doroth e

o choro de uma criança puderam ser ouvidos.

— É um menino, deu certo! Nasceu um saudável menino, finalmente, após

cinquenta anos — a líder não parecia tranquila, ela precisava fazer alguma coisa

o mais rápido possível, sabia que algo estava para acontecer.

Na varanda da casa, o homem que aparentava ser o mais temível e cruel da

aldeia ficou em silêncio e uma lágrima pôde ser vista correndo pelo seu rosto.

Para ele, aquele era um dos momentos mais felizes de sua vida, seu herdeiro

finalmente nascera. O choro do seu substituto o fizera se emocionar.

A porta se abriu e a líder, ainda com o véu no rosto, disse:

— Coronel Albert, você pode entrar para conhecer seu herdeiro antes de

limparmos o bebê.

Quando o coronel entrou, não olhou para a criança, mas, sim, para sua

esposa caída no chão. Outra lágrima correu em seu rosto. Ele sabia que aquela

mulher, que um dia tanto amou, se sacrificou para trazer o herdeiro da família.

Caminhando para perto de onde a criança estava, disse:

— Ele se parece com você Doroth.

Olhando agora para o rosto do bebê apavorado ele falou:

— Sua mãe lutou bravamente para te trazer para este mundo, ficará

orgulhosa de você, será um grande homem. Aquele que há cinquenta anos esta

cidade não vê. Como meu único herdeiro, eu o chamarei de...

Suas palavras foram interrompidas por um grande som de trovão e uma voz

que vinha do lado de fora:

— Você não o chamará de nada, pois ele não será seu herdeiro. Será

nosso. — Acompanhado por dois outros homens, todos vestindo negro, com

seus rostos ocultos por capuzes, o dono da voz continuou: — Nossa missão é

levar a criança. Aqueles que forem impróprios para a educação de um ser puro

serão julgados e condenados. Entretanto, a pureza de seus filhos será mais bem

utilizada dentro dos domínios negros do inferno.

Sem saber o que fazer naquele momento, coronel Albert pegou o menino

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em seus braços e correu para o fundo da casa.

Todas as mulheres, principalmente a líder, começaram a recitar as palavras

estranhas.

— Suas estúpidas, mais uma vez pensam em nos trair? Acham que podem

nos afetar com esses feitiços? — dizia o mesmo homem ameaçador com muita

calma. — Nós não somos os fracos demônios que muitas de vocês já

capturaram, lembrem-se de onde veio a magia de vocês.

— A criança não pode ser levada, ela é especial, os anjos a protegem —

disse a líder do lado de dentro.

Os intrusos começaram a rir.

— Bom, eles tentaram proteger a criança, porém os anjos foram mortos com

seus feitiços de proteção contra nós. Enfim, vocês já fizeram todo o nosso

trabalho. — Olhando fixamente na direção da casa, parecendo intimidá-las, o

homem cuja única voz era ouvida disse: — Acharam que nos enganariam

novamente, não avisando o nascimento deste? Apenas conseguiram condenar a

raça de vocês à extinção.

Os três homens voltaram a rir. Naquele instante, ao perceber que aquele

que falava havia desaparecido, a mulher líder correu para o lado de fora com as

outras e gritou:

— Corram, ajudem o coronel! O demônio foi atrás da criança. Já estamos

sentenciadas precisamos evitar que o mesmo aconteça com as outras de nós.

Um dos dois homens que continuava no local, apenas estendeu um de seus

braços para a líder. Naquele momento ela parou de falar; parecia que queria

dizer algo mais, mas não conseguia pronunciar nada. Suas pernas perderam a

força e ela caiu de joelhos. Seu corpo começou sofrer estranhas alterações: os

olhos ficaram brancos como se ela tivesse ficado cega, seus braços também

perderam o movimento. Era como se seu corpo estivesse perdendo todos os

sentidos. Então, sem forças, caiu sem sinal de vida.

Depois, sem dizer uma única palavra, o outro homem olhou para as outras

mulheres, as quais tiveram seus corpos incendiados. Em um piscar de olhos, e à

medida que todas corriam de um lado para o outro, a cidade foi arrasada pelas

chamas. Os gritos de dor e horror puderam ser ouvidos por toda Amber. Aqueles

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que não tinham culpa do que estava acontecendo também morreram

incendiados dentro de suas casas.

Nos fundos da casa em que Doroth dera à luz, o coronel Albert preparava

seu cavalo. Lutava para levar a criança em segurança quando foi pego de

surpresa pelo homem que havia partido em sua busca.

— Saia daqui, sua aberração das trevas — disse o coronel. — Você não vai

levar meu filho.

— É exatamente por isso que estamos levando esta criança, por ele ser seu

filho — respondeu o homem. — Você não merece ter a pureza dele em seus

braços. Essas mãos sujas que você usou para torturar tantas pessoas não

podem criá-lo. Nós temos um propósito muito maior para ele. Você é sujo, será

julgado e vai pagar por toda a eternidade em um sofrimento eterno.

Naquele momento, uma grande foice surgiu nas mãos do homem. Em um

movimento rápido, ele cortou o coronel verticalmente, tomou a criança antes que

ela caísse ao chão e retornou lentamente através da casa em chamas.

Carregando o bebê nos braços, caminhou em direção aos outros dois homens

que o esperavam do lado de fora, de onde poucos gritos ainda podiam ser

ouvidos.

Os dois companheiros do coronel Albert chegaram a cavalo e depararam

com aquela cena. Um deles teve o mesmo destino da líder: seu corpo fora

totalmente perdendo os sentidos. O outro, que usava as roupas sujas, se

desesperou e tentou fugir, mas o cavalo não obedeceu a seu comando. Foi

quando escutou tais palavras:

— Você viverá, porque será nosso mensageiro. Avise a todos o que viu

hoje. Esta é mais uma das várias crianças que estão conosco.

Os três causadores de tamanha desordem desapareceram em meio a

fumaça das chamas, deixando apenas o rastro de destruição.

Naquela mesma noite, correndo em desespero, o mensageiro contou para

os moradores da aldeia mais próxima o que havia acontecido e visto. Muitos

foram para o local e, quando retornaram, acusaram-no de bruxaria. No dia

seguinte, ele foi queimado em uma fogueira, levando consigo a verdadeira

história do fim de Amber.

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Capítulo 1

COTIDIANA. Assim foi a manhã de uma terça-feira. Um chuvoso dia de

fevereiro na cidade de Polsher. Porém, não para Natalie Zeniek; ela sabia que

aquele não seria um dia comum. Quando acordou, teve a impressão de que sua

vida tomaria um rumo diferente de tudo que já vivera. Após o término da escola,

ela estava pronta para procurar um emprego, mas a preguiça em acordar cedo

não a deixava começar.

Natalie era uma menina de cabelos castanhos, lisos, que quase chegavam à

cintura. Sua pele bem clara ressaltava a cor dos seus olhos castanho-claros. Era

linda, porém nunca se vira dessa forma.

Pertencia a uma família de classe média. A mãe, mesmo recebendo a

pensão deixada pela morte de seu esposo (ocorrida há dez anos), era uma

mulher que sempre trabalhara para manter sua família. Quando a menina

precisava de algo, a senhora Zeniek fazia de tudo para dar o que a garota

queria, mas ultimamente ela estava economizando para comprar uma casa.

Aos dezessete anos, Natalie sempre queria muito mais do que podia ter,

principalmente porque era melhor amiga de Kelly Golpher, filha do prefeito da

cidade. Esta vivia dizendo ao seu pai que não poderia sair pelas ruas de Polsher

vestida de qualquer forma e, assim, sempre conseguia dinheiro para comprar o

que pretendia. Dessa forma, todos os dias ela era vista usando as roupas de

última moda, de diversas marcas famosas. De cabelos loiros ondulados e olhos

verdes, era alta, magra e muito bela, despertando a inveja em todas as garotas

da região. A amizade das duas era algo difícil de acreditar, visto que as duas

pertenciam a duas classes sociais totalmente diferentes.

Naquela manhã, Natalie acordou e foi para a cozinha tomar o seu café,

preparado por sua mãe que, naquele momento, já não se encontrava mais em

casa. Passava das dez horas; nesse horário, a senhora Zeniek estava na sua

segunda hora de reunião com os diretores da empresa que trabalhava.

Como todos os dias, Natalie se deliciou com o suco de laranja caseiro que

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Kelly costumava dizer ser o melhor do mundo. Torradas e algumas bolachas

eram um bom prato para satisfazer Natalie, que tinha um corpo bonito. Ele era

mantido sem nenhum esforço, o que causava certo incômodo em Kelly, pois a

garota frequentava diariamente a academia para se conservar em forma e

percebia que a amiga não fazia absolutamente nada.

Após tomar seu café lentamente, Natalie ouviu o celular tocar. Seu toque

extremamente alto. Rapidamente, ela deixou seu copo de suco na mesa e

correu para o segundo andar da casa, entrando desesperadamente em seu

quarto. Porém, quando pegou seu celular, ele havia parado de tocar. Notando a

impaciência da pessoa, ela imediatamente pensou o que Kelly poderia estar

querendo logo de manhã. Apertando a discagem rápida, Natalie retornou a

ligação à sua amiga. Em apenas um toque, Kelly atendeu ao telefone e disse em

alto e bom som:

— Natalie! — com voz agressiva e ao mesmo tempo carinhosa.

— Bom dia, Kelly. Dormiu bem? O que faz você ligar tão cedo para mim?

— Cedo? São quase onze da manhã e a senhorita combinou de me

encontrar em frente ao shopping, esqueceu?

Natalie, que ainda não estava bem acordada, não conseguia entender como

a amiga estava tão animada para ir ao shopping de manhã.

Atordoada com a ligação, Natalie respondeu sem pensar:

— Mas ainda não são onze da manhã. Ou seja, eu não estou atrasada,

Kelly. Aguarde um momento que logo eu chegarei aí. — Então, olhou no espelho

e, apesar de não ser o tipo de garota que ligava para a aparência, sabia que

pelo menos precisava tomar um banho para melhorar a expressão. Ela usava

seu pijama de todas as noites: blusa e calças largas.

— Eu preciso de pelo menos um banho. Sei que vou me atrasar um pouco,

mas eu sou bem rápida pra me arrumar, você sabe. Minha situação não está

boa para sair na rua com você, devo até imaginar como você está vestida —

disse toda atrapalhada, despindo-se de seu pijama.

— Como se você desse bola para sua aparência — debochou a amiga. —

Mas é bom se arrumar um pouco mesmo, afinal, eu só saio com você mediante

a uma pré-avaliação.

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— Prometo que em dez minutos estarei pronta.

Natalie sabia que a promessa que estava fazendo naquele momento era

impossível de ser cumprida, pois sua casa ficava longe do centro da cidade de

Polsher. Rapidamente Kelly respondeu:

— Considerando que eu te conheço há mais de dez anos, e que você não é

tipo de pessoa pontual, estou indo te buscar.

Naquele momento, a campainha da casa de Natalie tocou insistentemente,

a garota correu para o banheiro e se enrolou em uma toalha e foi até a porta

sem saber de quem se tratava.

Olhando pelo olho mágico, a única imagem que Natalie conseguiu perceber

foi a de sua melhor amiga vestindo uma roupa que simplesmente fez seus olhos

brilharem. Trajava uma blusa com um decote discreto, calça jeans clara que se

encaixava perfeitamente no seu corpo e um sapato salto alto, todos

devidamente com sua marca de alto padrão. Em uma de suas mãos estava uma

bolsa preta linda; na outra, um pequeno guarda-chuva. Apesar de a chuva estar

bem calma, Kelly não poderia estragar seu penteado, que acabara de fazer em

um dos salões mais chiques da cidade. Olhando aquela cena, Natalie abriu a

porta e disse:

— Kelly, primeiramente como você consegue chegar tão rápido?

— Eu já estava na frente da sua casa, sabia que se atrasaria — disse a loira

entrando na casa.

— Agora me diz uma coisa: como você consegue acordar cedo para ir ao

salão? — perguntou com um toque de preguiça. — Eu deveria acordar mais

cedo para procurar um emprego, e nem isso consegui.

Kelly, que começava a dizer algo, parou por um momento e disse:

— Procurar o quê?

— Procurar um emprego, procurar uma faculdade, procurar algo útil para

fazer na minha vida. Afinal, daqui a uma semana eu faço dezoito anos; daqui a

pouco, minha mãe vai me expulsar de casa se eu não começar a me mexer.

— Ela te disse isso? — perguntou Kelly assustada.

— Não. Apenas começou a cortar algumas despesas. Ultimamente, ela

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anda especulando muito, perguntando a real necessidade do uso esse dinheiro.

— Será que ela desconfia que você esta usando drogas?

— Kelly! — disse Natalie espantada. — Por acaso eu uso drogas?

— Não, mas...

Sem que a garota terminasse seu comentário, Natalie disse:

— Ela está fazendo isso por conta da compra da casa nova, eu até entendo,

mas preciso viver também.

Natalie foi andando em direção as escadas, para que pudesse tomar seu

banho.

— Fica a vontade, vou tomar meu banho. Tem suco na geladeira.

Depois de um delicioso copo de suco de laranja de Dorah, Kelly subiu as

escadas. Natalie já estava tomando seu banho. Nesse ponto, a garota realmente

era bem diferente das outras meninas: não demorava nem um pouco. Se

houvesse briga naquela casa por conta do chuveiro, não era culpa de Natalie.

Muitas vezes, a bronca ia para o seu irmão mais novo.

— Você viu quem está na capa do jornal da cidade? — perguntou Kelly, do

lado de fora do banheiro.

— Não. Quem? — perguntou Natalie, fingindo estar curiosa, sendo que já

sabia a resposta.

— Eu. — respondeu, dirigindo-se para o espelho do corredor a fim de

arrumar toda aquela cabeleira loira que Deus tinha dado naturalmente àquela

menina.

— Nossa, até parece que isso nunca acontece — ela riu, desligando

chuveiro.

— Preciso estar na mídia — Kelly seguiu falando diretamente para o quarto

de Natalie. – Afinal, esta cidade não pode me esquecer jamais.

— Acabamos a escola, mas você nunca vai mudar. — Natalie colocou a

cabeça para fora da porta com os cabelos molhados, olhando para a amiga. —

Eu ainda não consigo entender como duas pessoas tão diferentes como nós

conseguem manter a amizade tão forte, Kelly.

— Olha, às vezes eu faço essa pergunta, monstrinha — Era assim que Kelly

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chamava sua melhor amiga nos momentos de descontração. — Acho que, com

você sendo assim, as chances de nós brigarmos pra ver quem está mais bonita,

ou qual a melhor roupa para sair, são nulas — disse Kelly, rodando para que

Natalie pudesse novamente ver como ela estava vestida. Como se ela já não

tivesse reparado nisso.

Para qualquer garota aquilo poderia parecer uma ofensa, mas Natalie

conhecia bem a amiga e no fundo ela tinha razão, ela nunca brigaria por conta

da aparência.

Kelly decidiu descer as escadas e esperar a amiga na parte de baixo.

— Se quiser ligar a televisão, fique à vontade. — Natalie saiu do banheiro

enrolada em uma toalha e foi direto para o quarto trocar de roupa.

— Não quero ver televisão. Mas acho que vou para a geladeira pegar mais

um pouco de suco. — Kelly caminhou direto para a geladeira e pegou mais um

copo de suco bem grande, bebeu quase tudo em um gole só. — Espero que

laranja não engorde.

Natalie era bem prática, pois, ao mesmo tempo em que se vestia, arrumava

o cabelo com o secador, já que Kelly estava ali. Se fosse em outra ocasião nem

isso ela faria. Passou sua maquiagem bem leve só para não ter o rosto todo

maquiado pela amiga. Aquele era o momento em que somente uma mulher

conseguia desenvolver tantas habilidades ao mesmo tempo.

Ela gostava de simplicidade, e era exatamente dessa forma que ela se

sentia bem. Depois de mais uma rápida olhada no espelho, estava certa de que

podia sair com a amiga. Pegou seu amarrador de cabelo e foi em direção às

escadas.

Natalie desceu as escadas, e, como sempre, suas roupas básicas não

espantaram Kelly. Ela vestia calça jeans, uma blusinha preta, um sapato básico,

e seus lindos cabelos castanhos estavam agora amarrados. Como não podia ser

diferente, Kelly imediatamente disse:

— Santa mãe da simplicidade! Eu, com um cabelo desses, jamais o deixaria

amarrado. Mesmo assim, mal vestida, você continua linda, sua monstrinha, acho

que podemos ir.

— Estou mal vestida? — Natalie imitou Kelly e começou a olhar para sua

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própria roupa. Caso tal comentário partisse de sua boca falando sobre a amiga,

era daquela forma que ela se portaria e, com toda certeza, correria para casa e

trocaria de roupa.

Sem dar bola para o comentário de Kelly, decidiram sair de casa em direção

ao shopping da cidade. Na porta estava um dos carros do pai de Kelly, junto

com o motorista, Kenedy, um jovem de muita confiança do prefeito. As meninas

entraram no carro e disseram para Kenedy em uníssono:

— Para o shopping.

******

Longe do centro de Polsher, em uma pequena fazenda abandonada, duas

pessoas conversavam e o clima não parecia tão divertido.

Um dos rapazes era alto, tinha um corpo belo e definido, invejado por muitos

homens e desejado por muitas mulheres. Seus cabelos eram negros, cobrindo a

testa, seus olhos eram castanho-escuros e sua pele branca, possibilitando que

fosse facilmente visto na escuridão da casa em que estava. Sua voz era suave,

mas, ao mesmo tempo, assustava qualquer um que o ouvisse naquele local.

Junto do rapaz estava uma garota, um pouco mais baixa que ele, mesmo

usando um grande salto. Tinha um corpo lindo e escultural, seus cabelos eram

vermelhos, longos e lisos, e em alguns momentos, quando alguma fresta de sol

entrava na casa, parecia que no lugar deles havia mechas de fogo.

Os dois conversavam sobre coisas que eram difíceis de ser entendidas.

Pareciam códigos:

— Nesta noite ele cairá na tentação — disse o rapaz. — E o seu protetor irá

pagar com a vida.

— Espero que você tenha certeza do que está fazendo. Não podemos

chamar a atenção — falou a garota.

— Não se preocupe. Tudo sairá como planejado. — O jovem andou de um

lado para o outro; uma aparência de dúvida transparecia em seu rosto. —

Apenas gostaria de saber qual o motivo dessas missões.

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— Não devemos duvidar do propósito dele. Tudo deve ser feito conforme o

ordenado.

******

Dentro do carro do pai de Kelly, as duas meninas continuavam o caminho

para o shopping. Falavam de tudo e de todos, e até com o motorista puxaram

conversa:

— Kenedy, por que você é tão sério? — perguntou Kelly.

O motorista não respondeu, apenas sorriu e continuou o percurso bastante

concentrado. Foi então que Natalie resolveu se pronunciar:

— Kelly, por acaso você não chamou o Dalton para o passeio, chamou?

— Então...

— Kelly! — interrompeu Natalie com ar de reprovação.

— Monstrinha, você sabe que ele é meu namorado e eu gosto dele; aliás,

estou com muita saudade.

— Saudade? Mas você viu o Dalton ontem à noite. — com cara de

desânimo, ela completou: — Você sabe que o meu problema não é o Dalton, e

sim o Paul. Eu ainda não entendo por que ele insiste em levar o amigo para

todos os lados.

— Isso é simples. Ele ainda acha que tem alguma chance com você. —

Kelly olhava para Natalie com um olhar irônico, afinal, ela sabia que a amiga não

gostava dele. — Fala sério, ele até que é bonitinho.

— Prefiro ficar quieta. A única coisa que seria pior é se a irmãzinha querida

dele aparecesse por lá também.

— O Dalton não é louco de fazer isso. Ele sabe que, se levar a Lily, a nossa

tarde acaba. Já não basta ter estudado a vida inteira com ela — Kelly disse,

olhando rapidamente para janela e vendo o shopping à sua frente.

Polsher não era uma cidade muito grande. Nela havia dois shoppings

pequenos, sendo que o maior deles era o Central Park: um lugar muito

frequentado pelos jovens devido às suas lojas e aos cinemas. Na frente, havia

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um posto de gasolina com conveniência e ao lado uma praça, ponto de encontro

de moças e rapazes, após o encerramento das atividades do shopping, que ali

ficavam conversando até o horário de ir para casa.

Após deixar as meninas, Kenedy foi informado por Kelly que não precisaria

buscá-las, pois Dalton as levaria para casa.

As duas entraram, e então a chuva começou a aumentar novamente.

Natalie ficou feliz porque, possivelmente, Paul não iria sair de casa com aquele

tempo.

O shopping encontrava-se relativamente vazio, cujas lojas estavam sendo

organizadas, porque ainda faltavam alguns minutos para o meio-dia, horário em

que as pessoas saíam do trabalho. Muitos procurariam a praça de alimentação

e, claro, aproveitariam para fazer suas compras rápidas. Às terças-feiras, o

movimento do shopping era maior porque à noite, na praça, apresentava-se uma

banda ou cantor ao vivo para alegrar os jovens. Então, aqueles que lá

frequentavam vinham para passar o dia e até aproveitavam para fazer compras.

Era o caso de Kelly e Natalie, que já estavam dentro de uma loja vendo algumas

roupas.

— O que você acha dessa blusa, vai ficar perfeita em mim, não acha? —

disse Kelly em frente ao espelho.

— Kelly, com o preço dessa blusa, você poderia comprar quase a loja do

lado inteira. — retrucou a amiga.

— Até parece que eu vou usar alguma roupa básica e dar o gostinho para

alguma dessas meninas da cidade, principalmente a Lily.

Natalie não se sentiu ofendida pelo comentário de Kelly, afinal, se não fosse

ela, mais ninguém conseguiria colocar a irmã do Dalton no lugar que ela merecia

estar.

Após as compras, que duraram aproximadamente cinquenta minutos, Kelly

estava praticamente de mãos vazias. Era sempre assim: viam muitas roupas e

ela não gostava de nenhuma. Como Natalie não tinha muitas atividades para

preencher o seu dia, não se importava de acompanhar a amiga. Foi então que a

fome decidiu incomodar as duas.

— Acho que estou com fome, que tal comermos um lanche? — sugeriu

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Natalie.

— Lanche? Você só pode estar louca. — Kelly parecia incomodada com a

sugestão. — Depois eu preciso ficar na academia, me matando pra perder todas

as calorias ingeridas nesse lanche. Eu preciso de salada e grelhados.

— Tudo bem, Kelly, eu te acompanho, já que acho que vou precisar de

dinheiro emprestado para pagar meu almoço — disse Natalie rindo da situação

formada. — Afinal, pra que servem as amigas, quando uma delas está sem

emprego e a mãe resolve cortar despesas extras?

— Não se preocupe, o convite foi meu e o almoço e o cinema são por minha

conta.

— Cinema? Vamos ao cinema? — Natalie disse aquilo sem saber que sua

tarde estava toda comprometida e planejada por Kelly.

— Claro. Você viu aquele filme que começou ontem? Parece dar muito

medo e eu já comprei nossos ingressos pela Internet.

Vendo aquela situação, parecia que Kelly gerenciava a vida de Natalie. Na

verdade não parecia, era o que acontecia. Isso não a deixava muito feliz, mas,

como as duas eram amigas havia anos, ela não se importava mais com isso.

Então, ambas decidiram seguir com a ideia do almoço.

Na praça de alimentação, que já estava bem cheia, Natalie procurou um

lugar para se sentar, em um dos restaurantes que levavam o prato até a mesa.

Kelly não era do tipo de pessoa que gostava de carregar uma bandeja nas

mãos. Mas, apesar de todas essas coisas, não era uma má pessoa. Natalie a

achava engraçada, e gostava da companhia da amiga. Quando as duas

estavam juntas, não tinha tempo ruim.

Dois rapazes entraram no local e chamaram a atenção de Natalie. Um deles

era alto e bem forte, usava calça jeans e uma camiseta branca, em que era

possível ver cada músculo do seu corpo. Seu cabelo era bem curto e um pouco

claro, quase loiro; seus olhos eram azuis, e ele aparentava ser uma pessoa bem

tranquila. O outro também era forte, mas não se comparava ao primeiro: um

pouco mais baixo, tinha cabelos escuros e olhos verdes, que despertavam o

interesse de qualquer menina, menos de Natalie.

— Veja, Dalton e Paul resolveram aparecer para o almoço. — Kelly se

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levantou para abraçar o namorado.

Natalie, que por sua vez estava pagando o almoço com o dinheiro de Kelly,

preferiu não se virar para os meninos, até que fosse obrigada a se dirigir para a

mesa onde sua amiga estava. Foi com um sorriso forçado, que ela se dirigiu à

mesa, cumprimentando Dalton com um abraço e um beijo; depois Paul, no qual

preferiu apenas dar um abraço. Qualquer outro movimento poderia dar

esperança para o rapaz, coisa que ela queria evitar. Foi então que todos

decidiram se sentar à mesa para conversar.

— Então, meninas, o cinema está de pé ainda? — perguntou Dalton, que

estava sentando bem próximo de Kelly, todo animado.

Naquele momento, Natalie disfarçadamente chutou a perna de Kelly por

baixo da mesa, reprovando a ideia de chamar os dois meninos para o cinema.

— Que filme vamos assistir? — perguntou Paul, com uma voz tímida.

— Àquele novo filme de terror — Kelly falou toda entusiasmada com a cena.

Afinal, quando ela se assustasse, correria para os braços fortes de Dalton.

— Parece ser muito bom para ficar bem perto de você — disse Dalton,

deixando Kelly mais apaixonada do que já estava.

Ao ouvir isso, Natalie não teve como evitar seu olhar para Paul, dando uma

risadinha sem graça. Para ela, aquele momento não poderia ser mais

embaraçoso, até Dalton soltar a frase do dia:

— E você e o Paul, quando vão sair dessas trocas de olhares?

Natalie não sabia o que dizer e muito menos o que fazer. Foi então que ela

respirou fundo e falou:

— Paul e eu somos apenas amigos, não existe nenhuma troca de olhares.

— Não está mais aqui quem falou — disse Dalton sem graça.

Naquele momento, ninguém falou mais nada. Paul não parecia nem um

pouco surpreso com o comentário de Natalie. O silêncio só foi quebrado quando

o garçom trouxe os pratos de comida para as meninas, e Dalton aproveitou para

pedir dois lanches para eles.

Natalie tinha perdido a fome, mas sabia que, para não piorar a situação, ela

deveria pelo menos comer seu almoço. Foi então que ela mesma decidiu iniciar

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uma conversa:

— Estou procurando um emprego. Alguém sabe de algo?

— Ai, que assunto chato, logo na hora do almoço. Não dá pra falar de

coisas mais agradáveis? — comentou Kelly.

— Eu sei de um lugar que estão precisando de caixa. Você tem alguma

experiência? — perguntou Dalton.

— Experiência? Ela nunca levantou um copo — Kelly riu, interrompendo a

resposta de Natalie.

Natalie decidiu ficar em silêncio novamente, percebeu que aquela não seria

a melhor hora para procurar emprego, afinal, estava com pessoas que não

trabalhavam e não tinham preocupação alguma com dinheiro. Naquela hora, o

melhor seria se aventurar no seu prato de salada, onde tudo era verde, menos o

pequeno pedaço de frango grelhado.

— O dono do bar é meu amigo; você é bonita. Acho que, mesmo sem

experiência, ele pode fazer um teste com você — disse Dalton, chamando

imediatamente a atenção de Natalie.

— Dalton, isso seria ótimo. — Natalie parecia muito animada com a

conversa, e ficou curiosa em perguntar a respeito. Um pensamento veio à sua

cabeça, relacionado à sua mãe. Então, pareceu desanimar um pouco. — Mas

não sei se minha mãe gostaria de ver sua filha de dezessete anos trabalhando

em um bar no período da noite.

— E quem disse que a filha da senhora Dorah Zeniek vai ter dezessete anos

quando nós formos para o bar te apresentar? Lembre-se que daqui a uma

semana você terá dezoito anos, monstrinha. — lembrou Kelly.

— E podemos comemorar seu aniversário no bar, o que acha? — completou

Paul.

— Calma, gente! — disse Natalie, confusa com todas as ideias. — Eu ainda

nem sei como isso vai funcionar, e como minha mãe vai reagir a tudo isso.

Talvez ela fique preocupada e nem me deixe trabalhar.

Naquele momento, o garçom trouxe o lanche dos meninos. Ambas as

meninas ficaram assustadas com o tamanho dos lanches, mas, como os

rapazes eram bem grandes, eles aguentariam tranquilamente.

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Depois de algumas horas, todos ainda estavam sentados na mesa e já

tinham conversado sobre vários assuntos. O clima já estava bem amigável; até

Natalie, que tentava evitar Paul ao máximo, estava rindo de seus comentários

indevidos.

— Ei, acho que conversamos demais. Para que horas está marcado o

cinema, Kelly? — perguntou Paul.

— Eu reservei a sessão das cinco horas. Falta uma hora para o filme

começar — respondeu Kelly.

— Eu tive uma ideia. Podemos tomar um sorvete antes de ir ao cinema —

sugeriu Dalton, que já estava com fome novamente.

— Claro, com toda certeza. Depois vamos ao cinema, compramos pipoca e

doces, e eu viro uma bola, saio rolando e você larga de mim — disse Kelly

ironicamente.

— Kelly, você sempre consegue ser exagerada nos seus comentários. —

Natalie inclinou sua cabeça na frente da sua amiga. — Você não precisa tomar,

apenas acompanhe.

Todos seguiram para uma sorveteria famosa dentro do shopping, onde

vendia o sorvete mais delicioso da cidade.

Após algum tempo, todos entraram na sala de cinema e aguardaram o filme

começar.

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Capítulo 2

CAOS e muita adrenalina era o que o filme pretendia passar. Porém, o que

não agradava Natalie eram os comentários de Dalton e Paul dentro do cinema.

Coisas de meninos que ficavam falando dos seios das meninas, visto que esses

filmes de terror exibem o corpo nu de mulheres bonitas e jovens de forma

natural.

A sala de cinema do Central Park era bem confortável, suas cadeiras eram

espaçosas e a tela era a maior da cidade. Como aquela era uma das poucas

diversões que havia em Polsher, as salas estavam sempre cheias, até mesmo

no período da tarde.

O filme já estava na metade e, como a maior parte das meninas, Natalie e

Kelly estavam morrendo de medo. Quando se assustavam, davam pequenos

gritos que eram abafados pelos gritos de outras meninas um pouco mais

escandalosas. Kelly ainda tinha a quem recorrer: quando se assustava, logo

agarrava os braços fortes de Dalton. Mas Natalie, que nunca pensaria em pegar

no braço de Paul, apenas fechava seus olhos, enquanto o ouvia rindo e fazendo

pequenos comentários das caras que ela fazia.

Em um momento, Paul tentou dar uma investida em Natalie, dizendo:

— Se você ficar com medo, eu estou aqui.

Ouvindo aquele comentário, mesmo morrendo de medo, Natalie levantou

sua cabeça e olhou para a tela, fazendo uma expressão de coragem, apenas na

intenção de disfarçar. E, para não ser antipática, respondeu rapidamente:

— Pode deixar, eu te procuro caso aconteça.

Kelly ouviu essa conversa e não pôde deixar de comentar:

— Acho que tá pintando um clima entre os dois monstrinhos.

O rosto de Natalie era tão branco que ficou mais vermelho que uma maçã

bem madura. Ela não conseguia conter sua vergonha. Vendo aquelas maçãs

rosadas, Paul ficou mais apaixonado por ela. Mas nada podia fazer, com medo

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de levar outro fora da garota.

O filme estava quase no final, quando a tela se apagou e as luzes de

emergência se acenderam. Então uma voz ressoou:

— Fiquem calmos, apenas tivemos uma queda geral de energia no

shopping. Em alguns minutos retornaremos com o final do filme.

Aquele parecia ser o momento para que Paul tentasse alguma coisa com

Natalie. Dalton e Kelly estavam se beijando, o que aumentou mais ainda a

vontade no garoto. Quando ele se virou para ela, pronto para falar algo, foi

interrompido:

— Não deixa a situação mais constrangedora — disse Natalie.

O rapaz tentou disfarçar, mas estava sem graça e não sabia como reagir a

mais um fora dado por ela.

Alguns minutos se passaram e o segurança entrou gritando algumas

palavras:

— Atenção. Todos os geradores do shopping foram queimados e não

conseguimos restabelecer a energia. Portanto, peço que saiam calmamente. Os

seus ingressos serão devolvidos, a fim de que vocês possam trocar para ver o

mesmo filme outro dia.

Várias reclamações podiam ser ouvidas, porque o filme já estava no final.

Natalie e seus amigos se levantaram e foram caminhando lentamente, assim

como o segurança havia solicitado.

Do lado de fora, os jovens já começavam a se reunir na praça ao lado do

shopping. O local era bem arbóreo, muitas árvores cobriam as luzes da rua, o

que deixava o ambiente mais escuro. Os carros já estacionavam, cujos

motoristas brigavam para ver qual som era o melhor e mais alto. Muitos já

estavam com latinhas de cerveja nas mãos. A chuva havia dado uma trégua

naquele momento, mas o chão ainda estava molhado e era possível sentir a

umidade no ar.

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******

A poucos metros dali, exatamente no terraço do shopping, estavam os dois

jovens estranhos que conversavam na antiga casa da fazenda. Naquele

momento, eles discutiam algo sobre um plano. A garota de cabelos vermelhos,

irritada, disse:

— Espero realmente que você saiba o que está fazendo.

— Relaxa! Não tem como dar errado, ele já esta lá. — E apontou para a loja

de conveniência do posto de gasolina. O que se via era apenas o atendente.

— É exatamente disso que eu tenho medo, ele já sabe que algo vai

acontecer. E, se alguma coisa der errado, vai chamar os outros e podemos ser

mortos em poucos segundos.

— Alguma vez eu já fiz meus planos darem errado, Katherine? — O Rapaz

segurou o rosto da garota, como se fosse beijá-la, e em um movimento brusco o

soltou. — Então fique tranquila, porque eu sei o que estou fazendo. Se algo der

errado matamos os outros também.

Naquele momento, o jovem de cabelos negros sacou um revólver, que

parecia uma arma convencional, tirou o pente com as balas e substituiu a

primeira bala por uma munição diferente. Era negra e, se olhada bem de perto,

tinha algumas inscrições em uma língua que não se parecia com nada

convencional nunca visto por olhos humanos.

— Está tudo pronto: munição preparada, vítima em seu lugar e o nosso

assassino já descansando em seu posto — disse o garoto.

Os dois olharam atentamente para um homem que estava deitado em um

beco, próximo ao posto. Ele parecia bêbado; em alguns momentos mexia sua

perna. Pelas suas roupas sujas, parecia ser um andarilho que dormia e pouco se

importava com o som alto feito pelas pessoas ao redor.

Os dois jovens que estavam no terraço do shopping já não estavam mais lá.

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Naquele momento, Natalie e seus amigos saíam do shopping, cujas luzes

estavam completamente apagadas, assim como as da rua. Mas isso não

intimidou aqueles que estavam festando na praça ao lado. Dalton tinha

estacionado seu carro na rua do posto, ao lado do beco em que estava o

homem apontado pelo casal misterioso. Todos decidiram ir para a praça.

As luzes da rua começaram a se acender novamente, o posto também

estava aceso, e o ambiente voltou ao normal, a não ser pela fraca chuva que

começou a cair na cidade de Polsher. Os jovens já estavam acostumados com

essa situação, porque chuva era algo comum por lá. Muitos chamavam Polsher

de ―cidade úmida‖.

Dalton, que já tinha vinte anos, abriu uma cerveja na praça e ofereceu para

todos. Paul era um rapaz mais comportado, ou pelo menos queria passar essa

imagem, e não aceitou a bebida. Kelly apenas tomou um gole da cerveja e

Natalie, que não gostava de bebidas alcoólicas, recusou.

Como sempre, Kelly olhava para todos, reconhecia cada jovem na praça e

comentava sobre as roupas, principalmente das meninas. Ela tinha um olho

clínico para identificar o que era de marca e o que não era. Natalie, por sua vez,

apenas ria das observações da amiga, mas preferia ficar em silêncio, até que

uma pessoa peculiar apareceu na sua visão.

A irmã de Dalton, mais conhecida com inimiga número um de Kelly e rival de

Natalie, estava vindo na direção das meninas. Lily tinha uma estatura bem

parecida com a de Natalie, mas o que as diferenciava eram seus cabelos loiros

naturais e lisos, seus olhos azuis e suas roupas de marca. Ela vestia uma saia

justa e curta, mas não chegava a ser vulgar. Sua blusa, que não tinha decote,

mostrava o suficiente para deixar qualquer homem louco. Toda maquiada, Lily

caminhava lentamente em meio à multidão, sabendo que estava chamando a

atenção de muita gente.

Quando ela chegou perto do grupo, disse:

— Oi, irmãozinho. — Olhando para Dalton e ignorando as meninas. — Paul,

você também por aqui? Não achei que fosse te ver hoje.

Nesse momento, Lily colocou seus braços ao redor do pescoço de Paul e o

beijou intensamente. Mesmo não gostando de Paul, aquela cena não foi aceita

naturalmente por Natalie. Ao ver aquilo, ela ficou com uma ponta de ciúme. Lily

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conseguiu provocar uma confusão na roda; todos ficaram espantados, menos

Dalton, que estava furioso.

— Que tipo de cena você quer mostrar aqui, Lily? — Dalton estava

superirritado com aquela situação provocada pela irmã.

— Cena? Do que você está falando, irmãozinho? Apenas estou curtindo a

noite — respondeu ela, ironicamente.

Kelly tentou manter a calma, mas tudo aquilo a deixou incomodada. Natalie,

por sua vez, não conseguiu segurar suas palavras:

— Pronto, Lily, você já conseguiu o que queria. Chamou a atenção de todos,

fez papel de idiota. O que mais você quer?

— Olha quem está falando. — Lily olhava para Natalie de cima a baixo. — É

a mal vestida, da melhor amiga da minha chata cunhadinha.

— Escuta aqui, Lily, — disse Kelly, reprovando o comentário da menina —

estamos todos aqui rindo e conversando. Você vem, faz um papelão desses e

ainda quer ter razão?

— Papelão? O que eu fiz demais? Apenas dei um beijo, que, aliás, foi bem

ruim.

Naquele momento, Paul, que já não sabia onde colocar a cara, pois estava

envergonhado por ter beijado a irmã de seu melhor amigo, ficou totalmente

constrangido com o comentário de Lily. Foi então que Dalton resolveu falar:

— Acho que seu tempo acabou aqui, irmãzinha. — Lily tentou falar, mas foi

interrompida por seu irmão. — Espero não ter que falar mais uma vez. Aliás,

você ainda não tem idade suficiente para ficar na rua. Então vá pra casa, ou tem

gente que não vai gostar de saber que sua filha anda saindo e beijando os

outros pela rua esta hora.

Lily ficou completamente irritada pelo comentário do irmão, mas ainda não

tinha desistido de querer estar por cima da situação.

— Pelo visto, eu não sou a única aqui que não deveria estar na rua a esta

hora — disse olhando para Natalie.

Aquele era o motivo de Natalie e Lily não se darem bem. Natalie fazia

aniversário uma semana antes de Lily, que desde pequena sempre gostava de

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ser melhor que as outras pessoas. Principalmente quando sua festa de

aniversário conseguia ser a melhor, deixando o aniversário de Natalie sempre

ofuscado.

— Para casa, eu disse — insistiu Dalton fazendo a irmã ir embora do local.

Naquele momento, a chuva voltou a ficar mais forte, as luzes da cidade se

apagaram novamente e a única claridade que podia ser vista era vinda dos

faróis do carro da polícia, que vinha tirar os jovens da praça. Aquele era o

momento ruim da noite, em que os oficiais acabavam com a alegria dos jovens.

Para Natalie e seus amigos, a festa já tinha acabado, quando Lily resolveu

aparecer. Kelly pediu para que Dalton a levasse, junto com sua amiga, e todos

concordaram em ir embora juntos. Foi então que a luz do posto voltou a

funcionar; mas as luzes da rua continuavam apagadas: aquelas lâmpadas

antigas, que demoram para esquentar e acender novamente. Natalie, que

estava morrendo de sede, pediu que todos a esperassem no carro, pois

precisava comprar água na conveniência do posto.

Naquele exato momento, o homem que estava deitado no beco conseguiu

se levantar. Do seu lado, parado, estava o misterioso casal. A presença deles

não fora notada pelo homem, pois os dois estavam invisíveis para ele. O homem

notou a presença de algo na sua blusa e, quando enfiou a mão bolso, percebeu

que estava segurando uma arma. Naquela hora, milhares de coisas passaram

por sua cabeça, que apenas conseguiu dizer:

— Isso é um sinal para eu mudar minha vida. Posso voltar pra casa, minha

mulher vai me querer de volta, se eu levar dinheiro.

Mas, em seguida, a coragem momentânea foi embora.

— Não posso fazer isso, sempre fui um homem honesto. Posso ser um

bêbado viciado, mas ladrão eu não sou.

Aquelas palavras filosóficas estavam deixando Katherine sem paciência. O

jovem rapaz olhou para o seu rosto, e disse:

— Talvez eu precise dar uma ajuda a ele.

— Então faça, pois isso aqui já está me cansando. — A ruiva virou de

costas para os dois.

O jovem colocou a sua mão sobre o ombro do homem, mas este não sentiu

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o toque. Por dentro, seu coração era preenchido por ódio e também por muita

coragem. Parecia que ele queria descontar toda a sua raiva acumulada em

alguém. Naquele momento, suas ações não podiam ser medidas. O toque do

jovem rapaz o fez sentir tudo isso. Então, decidiu esconder o revólver, sair do

beco e ir diretamente para o posto.

A polícia, que já havia dispersado os jovens do local, saíra para fazer uma

ronda. As luzes estavam se acendendo aos poucos, mas ainda havia pouca

iluminação no caminho. O posto estava vazio, com suas bombas desligadas,

pronto para fechar.

Natalie estava caminhando, quase chegando próximo à loja de

conveniência, quando o homem passou do seu lado esbarrando nela e

derrubando sua carteira no chão. O casal, que o acompanhava, decidiu parar do

lado de fora do posto, debaixo da chuva, que agora não era tão fraca.

O homem entrou na loja de conveniência, que estava vazia, sacou sua arma

e apontou para o atendente, ameaçando um assalto:

— Eu quero todo dinheiro que você tem agora — gritou com um ar de

desespero e ao mesmo tempo cheio de coragem. — Eu não estou brincando,

me passa a grana.

O atendente, assustado, tentou explicar:

— Senhor, nós já fechamos o caixa, e o proprietário da loja levou todo o

dinheiro.

Natalie olhou para toda aquela gritaria e, ao ver o homem com uma arma

apontada para o atendente, ficou paralisada. Não conseguia mover suas pernas,

parecia que o mundo em sua volta estava em câmera lenta, deixando-a sem

reação.

O casal apenas assistia à situação. Ambos estavam bem próximos de

Natalie, mas ela também não conseguia vê-los.

— Veja que lindo, ele já está do lado do atendente, pronto para protegê-lo

— comentou o rapaz de cabelos negros.

— Ele já sabia que tudo ia acontecer, já deve ter notado a nossa presença

também — disse Katherine.

— Não se preocupe, ele não percebeu. Está preocupado demais

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protegendo a vida do pobre garoto. Sendo que, na verdade, deveria estar

preocupado com a sua.

Era difícil de saber sobre quem eles estavam falando, porque, naquele

momento, apenas o homem e o atendente estavam na loja. Foi então que

Katherine debochou:

— Esses idiotas são tão puros e ao mesmo tempo uns idiotas. Vivem em

função de proteger os ingratos seres humanos.

— Hoje será o seu último dia de trabalho. — O rapaz, sorrindo, imitou nas

mãos um revólver e fingiu atirar contra algo que apenas eles conseguiam ver.

Naquele momento, ambos repararam na situação formada, na qual podiam

ver claramente o homem com o revólver e o garoto que expressava medo

extremo. Atrás deste, um homem alto, bem forte, com cabelos castanho-claros e

olhos azuis; por detrás de suas costas era possível perceber algo que se parecia

com asas de um pássaro encolhidas, mas bem maiores e brancas. Ele colocava

suas mãos no ombro do rapaz, dando a impressão de que o estava protegendo

de alguma coisa ruim.

Toda aquela cena parecia ter acabado com o barulho que fora ouvido: o

homem tinha perdido completamente o controle e atirou contra o atendente.

Logo depois, outro barulho: ele colocou a arma em sua boca e se matou.

Vendo toda aquela situação, Natalie gritou e tudo ao seu redor ficou mais

lento do que já estava. Em sua cabeça, apenas o som do tiro ecoava. Então

uma dor insuportável na cabeça tomou conta dela. A garota caiu de joelhos,

fechando seus olhos. Ao erguer a cabeça, sua vista estava meio embaçada. Foi

quando Natalie viu algo que parecia irreal: o homem que havia se matado

permanecia no chão, mas o atendente não estava mais lá, e, curiosamente, a

garota reparou em uma terceira pessoa, que antes não se encontrava lá.

Tentando limpar sua visão, ela esfregou seus olhos, mas continuava vendo

o terceiro homem. Foi quando Natalie reparou que ele estava ferido. No seu

peito havia uma mancha de sangue. Nesse momento, o corpo dele começou a

expelir uma fumaça branca; seu corpo paralisou e sua pele trincou feito vidro.

Então ele, que se parecia com um homem, abriu suas gigantescas asas, as

quais se quebraram também. Nesse momento, uma forte luz saiu de dentro de

seu corpo, que se parecia com o de um anjo, fazendo seu corpo se despedaçar

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por completo.

Natalie tentou cobrir seus olhos por causa daquela luz, e gritou novamente.

Naquele momento, Dalton, que havia ouvido os tiros e gritos, correu para o

posto. Ao ver Natalie ajoelhada no chão, abaixou-se, achando que sua amiga

havia sido atingida e que poderiam haver mais disparos.

O casal, que olhava atentamente para a morte do anjo, aparentava

satisfação, como se a missão deles tivesse sido cumprida. Então, o rapaz olhou

para Natalie, a qual olhava de volta para eles, sem entender o que ambos

estavam fazendo naquele local.

— Tenho a impressão de que aquela garota está nos vendo. — O rapaz

olhava assustado para Natalie.

— Deixe de ser ridículo e vamos sair daqui, antes que mais anjos venham

— disse Katherine.

— Precisamos pegar a capsula — concluiu o rapaz.

Depois do rapaz sair da conveniência e pegar algo, ambos caminharam em

direção ao beco e, em meio à chuva que caía na cidade, desapareceram.

Natalie os observou caminhando, e aquela foi a última imagem que ela viu. Logo

que Dalton chegou perto dela, seus olhos se fecharam por completo, e ela caiu,

perdendo a consciência.

Dalton a pegou no colo, quando Kelly, que também havia saído do carro,

correu em direção aos dois. Dalton apenas gritou:

— Kelly, chame a ambulância e a polícia também.

Kelly só teve tempo de chamar a ambulância, porque a polícia, ao que

parece, já havia sido chamada por alguém, e chegava com suas sirenes ligadas.

Poucos minutos depois, o local já havia se tornado uma cena de crime: a

loja de conveniência estava isolada e o corpo do assaltante podia ser visto

atirado ao chão, coberto por um pano preto e rodeado por marcas de sangue.

Várias viaturas de polícia e ambulâncias estavam por lá, e em uma delas

Natalie permanecia desacordada; na outra, o atendente do posto. A bala

passara de raspão em seu corpo, e o rapaz estava sendo medicado pelos

paramédicos.

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Todos os amigos de Natalie estavam sendo investigados pelo detetive

Ramones, um sujeito mais velho, um pouco barrigudo, com pinta de durão, de

cabelos grisalhos, que sempre usava sua jaqueta de couro e calça social preta.

Dava impressão de que ele sempre estava trajado para um velório. E, na

verdade ele estava, pois sempre se deparava com cenas de crimes com vítimas

fatais.

Ramones se aproximou da ambulância em que Natalie estava desacordada,

onde, ao seu lado, permanecia Kelly, que nem se importava mais com seu

cabelo todo molhado. Quando o detetive chegou próximo das garotas, Natalie

abriu seus olhos lentamente e começou a resmungar. Ao ver que a amiga

estava acordando, Kelly tentou chamar a atenção dela:

— Monstrinha, você está bem? Fala comigo.

— Ele... foi... ajudar... anjo... — Natalie parecia estar delirando.

— Anjo? Do que você esta falando? — perguntou Kelly sem entender.

— Ele matou um anjo — terminou Natalie, e depois apagando novamente.

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Capítulo 3

ILUSÃO era o que os moradores de Polsher gostariam que fosse tudo

aquilo que acontecera naquele dia, marcado na vida dos habitantes da cidade.

Nada tão cruel e estranho fora visto em dez anos, desde o assassinato que tirou

a vida de Laurence Zeniek, o pai de Natalie.

Longe do centro de Polsher, naquela mesma fazenda abandonada, estava o

casal misterioso. Agitada, Katherine encontrava-se do lado de fora da simples

casa feita de madeira. Ela andava de um lado para o outro na varanda da casa,

que rangia a cada passo seu.

Dentro da pequena casa, sentado em um sofá de pano, que parecia pouco

confortável, estava o outro rapaz. Ele parecia calmo, pensativo, olhava para seu

pulso e depois para a porta, como se estivesse olhando para seu relógio e

esperando alguém chegar. Mas ele apenas conseguia ver a impaciência de

Katherine.

— Desse jeito você vai furar o chão, Kath. — Era assim que o rapaz

chamava a ruiva.

— Mais um comentário desses e eu vou furar o seu pescoço — respondeu

raivosamente a garota.

— Bom, caso você consiga, eu mando um recado do inferno para você. —

Aquela conversa não parecia incomodá-lo, ou ele conseguia ser tão sarcástico

ao ponto de não parar de sorrir. — Esqueceu-se de que eu sou o mais velho e

mereço respeito?

O rapaz de cabelos negros dava realmente a impressão de ser o mais velho

do grupo. Ele e Katherine poderiam ter no máximo três anos de diferença.

Aparentavam ter seus vinte e poucos anos.

Quando Katherine parou de andar de um lado para o outro, ele disse:

— Sabe, eu ainda acho que aquela garota olhava diretamente para nós.

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— Ninguém pode nos ver, você está imaginando coisas — respondeu ela.

—Tem alguma coisa diferente nela, e eu tenho que descobrir o que é —

disse o rapaz encarando a ruiva.

Naquele momento, um barulho foi ouvido de dentro da casa; parecia que

vinha de um dos quartos. Katherine e o garoto de cabelos negros olharam um

para o outro, e ficaram em silêncio. Ambos caminharam em direção ao quarto,

lentamente, sem que pudessem ser ouvidos. Os passos eram silenciosos, mas,

ao mesmo tempo, pesados. Ambos estavam nervosos. Quando chegaram à

porta dos quartos, nada viram. O barulho agora vinha do lado de fora da casa da

fazenda. Os dois se olharam e Katherine disse:

— Você acha que eles nos encontraram?

— Agora é você quem está viajando — disse ele, debochando da garota. —

Você sabe que eles não podem entrar aqui.

Então uma voz do lado de fora disse:

— Eles não podem, mas eu posso.

Os dois caminharam para fora, calmamente. Aquela voz parecia familiar

para ambos. Quando saíram, viram um menino, um pouco mais baixo que eles,

aparentando ser mais novo também. Tinha cabelo castanho-claro, bem curto,

olhos verdes, e um corpo não tão forte quanto do outro rapaz, mas definido. Seu

olhar era sombrio, e naquele momento ele estava inquieto. Parecia um

adolescente que havia aprontado alguma coisa. Foi quando disse sorrindo:

— Matei quatro. E você, Mister C?

Parecia que ele estava se referindo ao rapaz de cabelos negros, o qual

respondeu:

— Parece que você teve uma noite e tanto. Ficamos apenas em um — disse

referindo-se ao anjo que havia acabado de matar.

— Sofri uma emboscada dos anjos. Estava atrás de um deles, quando

outros três apareceram e tentaram me matar. Sorte que o Larxen estava comigo.

Misteriosamente, um gato preto apareceu atrás do garoto. Era Larxen, o

animal que o ajudou a matar quatro anjos naquela noite.

— Você é muito imaturo para sair nas ruas sozinho — disse Katherine. —

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Ainda bem que um dos anciões colocou Larxen atrás de você, ou poderia estar

morto agora.

— Mudando de assunto, ouvi vocês dizerem que uma garota viu vocês —

disse Victor rindo.

— Eu tive a impressão, mas a Kath achou que eu estou louco. — O rapaz

de cabelos negros não parava de olhar para a ruiva.

— Se você continua achando que ela te viu, é bem simples. Achamos

alguém para fazer um trabalho sujo, e acabamos com ela — disse Katherine.

O rapaz olhou para Katherine, com um olhar bem sombrio, como se ela

tivesse dito algo que não o tinha agradado.

— Se tiver que acontecer alguma coisa, quem tomará as providências serei

eu, entendeu? — afirmou o rapaz. Logo depois, ele voltou ao assunto elogiando

Victor: — Você conseguiu um belo trabalho, Victor.

— Muito obrigado, Mister C.

— Ei! – disse o rapaz, querendo chamar a atenção do garoto. — É Carsten,

meu nome é Carsten, sem formalidades, por favor.

— Como se eu não soubesse disso — Ironicamente respondeu Victor.

— Ei, garotos, hora de voltar pra casa — Katherine, olhando para fora,

parecia aguardar por algum tipo de sinal.

Um som grave e terrível ecoava por todos os cantos da casa, como se fosse

um chamado. E, em um passe de mágica, nenhum dos três estava mais lá,

assim que o barulho parou. A casa agora permanecia vazia. E bem longe, no

topo de algumas montanhas, o sol começava a aparecer.

******

De volta ao centro de Polsher, próximo ao local onde tudo aconteceu na

noite passada, ficava o hospital Gerard Westler. Era lá em que Natalie estava.

Em um quarto pequeno, mas confortável, ela dormia um sono pesado. Ninguém

estava no quarto com ela. Havia um silêncio muito grande no local, e em todo

hospital não se ouvia um ruído sequer. Aquela era uma situação atípica, visto

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que o sol já batia na janela de Natalie havia algum tempo. Foi quando uma voz,

de dentro do quarto, quebrou o silêncio:

— Ei, garota, acorde. Você já dormiu muito — disse a voz. — Preciso que

você veja. Mais deles estão caindo.

Natalie parecia incomodada com a situação, mas não conseguia abrir seus

olhos pela forte luz que vinha da janela. Quando a garota pôde abrir seus olhos,

viu do lado de fora muitas bolas de luz caindo do céu, que quando se

aproximavam da terra explodiam em uma forte bomba iluminada.

— Ontem você viu um deles queimando, e de alguma forma conseguiu

chamar a atenção do Carsten — disse novamente a voz chamando a atenção de

Natalie. — Hoje é a sua vez de queimar.

Naquele momento, a única imagem que conseguir ver era da garota ruiva,

da noite passada, ao seu lado. Ela não teve tempo de reagir, apenas sentiu uma

forte dor em seu peito, onde a garota havia encravado uma adaga negra. A pele

de Natalie começou a brilhar, igual à do anjo quando ele fora morto. Cada

pedaço do seu corpo começou a trincar como vidro, e uma luz forte fez o corpo

de Natalie se despedaçar.

Ela não conseguiria entender o que acontecera. Talvez não soubesse, mas

sua vida tinha muito mais segredos que não seriam mais revelados após aquele

momento.

Naquele instante, uma forte luz dentro do quarto fez a visão de Katherine se

ofuscar, quando a ruiva abriu seus olhos novamente, Natalie estava flutuando no

quarto do hospital. O que a fazia flutuar eram grandes asas brancas. Elas eram

maiores do que as do anjo visto na noite passada. A adaga negra veio parar nas

mãos de Natalie sem saber como, e em um movimento de precisão ela a atirou

contra Katherine, atingindo-a no coração.

Um buraco negro se abriu no chão, bem abaixo da ruiva. Parecia que garras

a puxavam para baixo, ferindo sua pele e a matando lentamente.

Ver um ser como Katherine sendo morto parecia uma situação comum para

Natalie, como se ela já estivesse acostumada com aquilo.

Mesmo sentindo a mesma dor e sofrimento que o anjo da noite passada

havia sentido, Katherine conseguiu olhar para Natalie e dizer algumas palavras:

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— Mesmo me matando, você não vai conseguir ficar ao lado dele. Sabe que

será caçada e morta, pois os dois lados ainda vão te caçar. Aproveite seu pouco

tempo ao lado dele, porque serão os últimos.

Um clarão tomou conta de todo o ambiente novamente. Natalie não

conseguia enxergar nada, apenas escutou uma voz que vinha de longe:

— Vamos acordar, garota...

Aquela voz que era familiar para Natalie a fez aos poucos abrir seus olhos, e

lentamente a garota distinguiu a cabeça de Kelly em cima da sua.

— Você está acabada, toda suada, e ainda por cima delirando com anjos —

disse Kelly.

— Onde eu estou? — perguntou Natalie.

— No hospital, querida. Você apagou ontem e acordou só agora. Estamos

todos preocupados, inclusive sua mãe e seu irmão.

— Minha mãe, onde está ela? — perguntou Natalie aflita.

— Calma, ela foi tomar café. Assim que ficou sabendo do acidente, ela veio

para cá. Aliás, a cidade inteira já sabe do ocorrido. Tem vários repórteres lá fora.

Todas aquelas ideias ainda eram confusas para Natalie. Ela conseguia se

lembrar de pouco, como o barulho do tiro, em seguida o homem se matando, o

casal parado ao seu lado e o anjo se queimando.

Tudo aquilo era muito confuso e irreal. O sonho sobre asas, a garota ruiva

tentando matá-la e a advertência para não ficar com ele. Quem era ele? Do que

ela poderia estar falando? Todas essas perguntas rodavam a cabeça de Natalie.

Kelly poderia pensar que ela estava louca, ou sob efeitos de remédios, caso

contasse tudo que tinha visto. Nem mesmo ela sabia se o que tinha acontecido

era real, já que segundos depois ela havia desmaiado, e estava dentro de um

quarto de hospital.

A porta do quarto se abriu, e lentamente uma jovem senhora de cabelos

castanhos, curtos, entrou no quarto. Ela tinha a aparência de uma mulher

simples e ao mesmo tempo serena. Aquela imagem mudou quando viu sua filha

acordada.

— Natalie, minha filha, você está bem? — Dorah parecia muito preocupada

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naquele momento, como toda mãe estaria com uma filha na mesma situação

correu pra abraçar a garota.

— Mãe, eu fiquei com tanto medo. Achei que eu fosse morrer.

— Tudo está bem agora, querida. Seu irmão está lá fora, muito preocupado

com você também.

— Você está brava? — perguntou Natalie receosa.

— Claro que não, minha filha. Kelly me contou o que aconteceu, e que foi

apenas um acidente. O importante é que agora você está bem.

Naquele momento, todos escutaram uma batida na porta. Um homem alto e

forte, de cabelos loiro-escuros, vestido de branco, entrou no quarto. Era possível

ver o crachá que dizia: ―Dr. Reik‖.

— Muito bem. Como está a nossa garota famosa? — indagou o médico.

Aquelas palavras deixaram Natalie bem preocupada. Agora ela seria

reconhecida por toda a cidade. Então, ela imaginou que, se contasse

exatamente o que tinha visto, poderia ser conhecida como a garota surtada de

Polsher.

— Pronta pra voltar à sua vida normal? — perguntou Dr. Reik colocando a

mão sobre a cabeça de Natalie.

Aquelas palavras trouxeram alívio para Natalie. Então, ela poderia ir para

casa com sua mãe e seu irmão, que estava lá fora.

O médico saiu do quarto e encontrou o detetive Ramones o aguardando na

porta. Ambos trocaram poucas palavras. Dr. Reik olhou diretamente para ele,

dizendo:

— Trate-a com cuidado, pois a tensão a que ela foi submetida pode não ter

sido esquecida por ela, ainda.

Seu olhar encarou fixamente o detetive, que apenas confirmou a solicitação

do médico com a cabeça.

Ramones entrou no quarto, se identificando e cumprimentado a todos,

pedindo para que todos saíssem do quarto, pois precisava conversar com

Natalie. Todos atenderam à solicitação do detetive, o qual puxou uma cadeira de

madeira que ali havia, sentando-se ao lado da garota.

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— Então, agora que você já esta acordada, me diga exatamente o que

aconteceu — questionou o detetive.

— Eu não me lembro de muitos detalhes — respondeu Natalie. — Tenho

alguns flashes na cabeça. Estava indo comprar uma água na conveniência do

posto, quando toda a confusão começou. O homem apontava a arma para o

atendente e, quando ele atirou, acabou matando o... — Foi então que ela foi

interrompida pelos seus pensamentos. – Quer dizer, se matando em seguida.

— Foi exatamente isso que você viu? Não se lembra de nenhum outro

detalhe? — perguntou o detetive.

— Sim, eu me lembro — disse Natalie, que ainda estava pensativa. — Eu

me lembro que, antes de eu desmaiar, eu vi um casal que estava parado bem do

meu lado, assistindo à cena.

— Um casal? — perguntou o detetive desconfiado. — Hoje pela manhã eu

vi a fita de segurança. Você se lembra onde eles estavam?

— Claro que lembro. Eles estavam parados próximo de onde eu estava. Ela

era ruiva e ele tinha cabelos negros — disse ela. — Lembro perfeitamente do

rosto dela, mas o dele não consegui ver direito.

— Natalie, não tinha ninguém do seu lado nas filmagens. Talvez o que você

tenha visto foi algum tipo de alucinação — comentou o detetive. — Da mesma

forma que, quando você acordou dentro da ambulância, disse ter visto um anjo.

Natalie não se lembrava de ter acordado na ambulância, muito menos de ter

feito comentário sobre o anjo que ela tinha visto.

— É. Talvez eu tenha apenas imaginado aquilo, nunca passei por algo

assim detetive — disse ela.

— Bom, Natalie, caso você se lembre de mais alguma coisa, por favor, me

avise. Aqui está meu telefone — falou o detetive, entregando o cartão para

Natalie.

— Tudo bem, eu ligarei. — Natalie aceitou o cartão, mesmo se sentindo

incomodada com tudo aquilo.

Assim que o detetive saiu do quarto, Natalie se levantou. Tirou a roupa do

hospital e vestiu a sua. Kelly entrou superanimada, dizendo:

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— Monstrinha, temos de sair pela porta dos fundos, e o momento é agora. O

detetive Ramones está dando entrevista para os repórteres.

— Onde estão minha mãe e meu irmão? — perguntou Natalie.

— Eles já estão lá fora, esperando no carro. Portanto, apresse-se.

As duas saíram do quarto e foram diretamente para o corredor que levava

até a saída dos fundos. No caminho deram de cara com o Dr. Reik. O médico

encarava Natalie fixamente. Quando elas passaram do lado dele, Natalie sentiu

uma forte dor na cabeça, que a fez parar por um momento. Kelly, que continuou

caminhando, virou-se e viu que a amiga estava parada.

— Natalie, vamos, não temos muito tempo — disse ela, voltando para

buscar a amiga. — Você está bem?

— Sim, apenas senti uma forte dor de cabeça quando o Doutor Reik passou

pelo nosso lado. A mesma dor que eu senti ontem — respondeu Natalie

continuando a caminhar lentamente.

— Doutor quem? — Kelly olhou para sua amiga. — O bonitão que entrou no

seu quarto? Onde ele está?

Natalie olhou para trás e não conseguiu ver o médico. Tudo aquilo foi muito

rápido para que ele saísse da visão das meninas.

— Esquece, Kelly, devo estar precisando dormir mais um pouco — falou

Natalie, saindo pela porta dos fundos.

O carro da senhora Zeniek já estava na saída, esperando as meninas. A

porta se abriu e elas entraram no carro.

Do outro lado da rua, um fotógrafo estava parado. Ao ver as meninas, ele

gritou para seus outros colegas, informando que as garotas estavam lá. Vários

deles correram em direção ao carro, tirando fotos do rosto de Natalie, que

tentava cobri-lo de todas as formas. Após a senhora Zeniek acelerar o carro, os

fotógrafos deram espaço a fim de que pudessem seguir para casa.

Dentro do carro estava um garoto que aparentava ter uns quinze anos. Seus

cabelos eram castanhos, jogados sobre o rosto e seus olhos eram verdes. Ele

não se parecia tanto com Natalie, mas aquele era Gabriel Zeniek, o irmão dela,

que aparentava estar bem animado com a situação.

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— Então, minha irmã virou uma celebridade dos principais programas

policiais da cidade? — perguntou o garoto debochando dela.

— Gabriel Zeniek, não diga mais nenhuma palavra sobre isso — advertiu

Dorah em um tom ríspido.

— Deixa, mamãe, ele está certo. — Natalie respirou bem fundo. Ela sabia

que, apesar de não querer concordar com o irmão, aquela era a melhor saída

para ela. — Vou ter que ficar fora de circulação por algumas semanas.

— Semanas? — Kelly ficou assustada, arregalando seus olhos para Natalie.

— Mas seu aniversário é na semana que vem, e temos de comemorar.

— Vocês podem comemorar no outro final de semana, depois do

aniversário, Kelly. Até lá tudo isso terá passado, e eu também posso pensar se

vou deixar vocês saírem — disse a senhora Zeniek.

— Fiquem tranquilos todos vocês, eu ficarei bem. Só preciso ficar um tempo

em casa, e daqui um tempo já estarei bem — afirmou Natalie.

Eles seguiram de carro em direção à casa de Natalie.

Em cima do edifício mais alto da cidade estava Carsten, que olhava

atentamente para o carro que seguia pela avenida.

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Capítulo 4

OS OLHOS de Natalie pareciam cansados por conta da vida turbulenta da

garota. Os dias passavam e a mídia lentamente esquecia o seu nome, visto que

a criminalidade crescia constantemente na cidade. Polsher não era uma cidade

violenta, mas algumas coisas estavam fazendo a tranquilidade daquele local se

acabar.

Era manhã de domingo e Natalie, que, já estava cansada de ficar em casa,

acordou cedo e foi para cozinha. Sua mãe tinha saído de casa bem cedo, mas o

café estava pronto em cima da mesa, com um bilhete deixado por Dorah:

FILHA, SAÍ CEDO PARA LEVAR SEU IRMÃO AO TREINO FINAL DE FUTEBOL NA ESCOLA.

AMANHÃ É A FINAL DO CAMPEONATO DELE, E ESPERO QUE VOCÊ POSSA IR COMIGO.

DEIXEI O CAFÉ PRONTO, MAS, POR FAVOR, LIMPE QUANDO TERMINAR. BEIJOS, MAMÃE.

Aquela mensagem não deixara Natalie muito feliz, visto que ela teria de ir ao

jogo do irmão no outro dia. Porém, como ainda estava acordando, não deu muita

importância no texto. Então pegou um copo de suco, um pedaço de bolo e foi

para sala, ligando a televisão.

No início, ela não ligou para as notícias, até que uma delas chamou a sua

atenção. Os repórteres estavam entrevistando um rapaz que havia sofrido um

acidente na estrada. Ele parecia bem machucado e desesperado, dizendo

palavras sem nexo, como ―ela estava no meio da estrada‖, seguida por ―eram

mais de dois‖, ―meu amigo tentou desviar‖.

Natalie ficou assustada com a notícia e uma frase peculiar tirou sua

respiração: ―Ela tinha cabelos vermelhos como o fogo‖.

Seria possível que a mesma garota que Natalie viu naquela noite provocara

o acidente daquele rapaz? Ela já estava com plena certeza de que o casal não

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existia, que teria sido coisa da sua imaginação, mas aquela notícia reviveu todas

as suas memórias daquele dia. Apesar de não saber o que fazer, ela queria

compartilhar aquilo com alguém. A única pessoa que poderia acreditar nela, mas

ao mesmo tempo achar que ela estava maluca, era Kelly.

Sem pensar duas vezes, pegou o telefone e ligou para Kelly preferindo

arriscar:

— Alô, quem incomoda a essa hora? — disse Kelly com voz de sono.

Eram dez da manhã e, apesar de não ser tão cedo, Kelly não era o tipo de

pessoa que se preocupava com o horário quando não tinha salão. Ainda mais

porque ela tinha saído com o namorado no dia anterior.

— Kelly, eu preciso falar com você urgente. A que horas você pode vir aqui

em casa? — Natalie estava aflita.

— Depois do almoço eu vou, preciso dormir mais um pouco.

— Não, precisa ser mais cedo. É um caso de vida ou morte. — Natalie não

diminuía sua aflição nas palavras.

— Tudo bem, daqui a pouco eu levanto e peço pro Kenedy me levar na sua

casa. Sua sorte é que a folga dele é amanhã — explicou a amiga.

Natalie ficou tão nervosa que não conseguiu terminar o café da manhã.

Decidiu tomar um banho para esfriar a cabeça. Seria a garota ruiva responsável

pelo crime daquele dia? Mas como, se ela não saiu do lado de Natalie? Como

somente ela teria visto a garota? Mais questionamentos sem respostas

atormentavam a garota.

Quase uma hora depois, Natalie estava sentada no sofá, ansiosa pela

chegada de sua amiga e torcendo para que sua mãe não aparecesse, pois

aquele assunto era muito delicado. Caso Kelly não acreditasse, apenas uma

pessoa a chamando de louca era o suficiente.

Quando a campainha tocou, Natalie pulou do sofá e foi direto pra porta. Lá

estava Kelly com cara de poucos amigos. Ela usava óculos escuros, calça jeans

e uma blusa de manga comprida. Seu cabelo loiro estava amarrado. Natalie

ficou surpresa ao vê-la, já que sua amiga sempre demorava mais que o normal

para se arrumar.

— Onde estão os corpos? — perguntou Kelly.

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— Corpos? Do que você está falando?

— Você disse que seria um caso de vida ou morte. Para me tirar tão cedo

de casa, eu quero pelo menos um corpo atirado no chão — disse Kelly

ironicamente.

— Você fica brincando, mas não sabe como eu estou — falou Natalie.

As duas caminharam para o segundo andar, em direção ao quarto de

Natalie. Sentaram na cama e começaram a conversar:

— Você se lembra do dia em que o detetive Ramones entrou no quarto do

hospital para falar comigo? — perguntou Natalie — Então, ele me fez algumas

perguntas sobre o que tinha acontecido naquela noite.

— Sim, e você contou pra ele exatamente o que aconteceu. Qual o

problema nisso tudo? — questionou Kelly.

— Então, teve algumas coisas que eu contei pra ele, e que eu não contei

pra mais ninguém.

— Como assim? Quer dizer que o detetive virou seu melhor amigo agora?

— Kelly, com ar de irritação, parecia não ter gostado nada do que ouviu.

— Não, sua boba. Eu fiquei com medo de contar isso para mais alguém, e

as pessoas me chamarem de louca, ou pensarem que eu estava alucinando.

Assim como o detetive pensou — explicou Natalie.

— Então, comece a contar agora. — Kelly cruzou seus braços olhando

diretamente para a amiga.

— Naquela noite, quando tudo estava acontecendo, tinha um casal do meu

lado, que observava toda a situação.

— Um casal? Como assim? Onde? — interrompeu Kelly, querendo saber

mais informações. Parecia que ela era a detetive naquela situação e que tentaria

resolver o caso.

— Sim, eles estavam parados do meu lado na hora em que tudo estava

acontecendo. Uma menina ruiva, que parecia ter a nossa idade, e um cara de

cabelos negros.

— Ele era bonito? — Kelly interrompeu a amiga novamente, deixando-a

irritada. Aquela situação era delicada e parecia que Kelly, mesmo querendo

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acreditar em Natalie, tentava fazer uma piada ou comentário sobre tudo.

— Kelly! Eu não me lembro desse detalhe. Você se esqueceu de que depois

disso eu apaguei? — lembrou Natalie. — Não estou te contando isso porque eu

quero lembrar quem ele é, mas, sim, porque hoje uma coisa entranha

aconteceu.

— Ele apareceu na sua janela e ficou te observando. — Kelly realmente

provou não estar levando a história de Natalie a sério.

— Você vai realmente tentar me entender, ou eu vou procurar alguém que

seja realmente confiável para me ouvir? — disse Natalie com tom mais sério.

— Calma, monstrinha. Quis deixar o clima mais leve. Você está muito tensa.

Naquele momento, Natalie pensou em parar de falar, pois parecia que tudo

aquilo era uma grande bobeira da parte dela. Kelly deveria acreditar em sua

história. Mesmo sabendo que seria quase impossível, Natalie preferiu continuar

a falar:

— O que aconteceu é que, depois de o detetive me dizer que não havia

mais ninguém na filmagem além de mim, parei de acreditar em tudo.

— Então, por que você está tão preocupada? — perguntou Kelly.

— Hoje pela manhã, quando acordei, liguei a televisão e estava sendo

noticiado um acidente na rodovia envolvendo dois jovens. O sobrevivente deu

uma entrevista dizendo que eles estavam dirigindo à noite, quando foram

surpreendidos, no meio da estrada, por uma moça ruiva — explicou Natalie.

— Já entendi. Quer dizer que você acha que a mesma moça ruiva que

estava na estrada era a mesma que você acha ter visto naquele dia? —

questionou Kelly. — Você não acha pretensão demais achar que a exista

apenas uma ruiva e que ela seja a mesma que atacou os rapazes.

— Pode parecer loucura, mas algo me diz que é a mesma pessoa —

afirmou Natalie sem ter qualquer prova do que estava falando. — O que mais

me intriga é: por que somente eu consegui vê-los naquele dia?

— Natalie, tenta esquecer, amiga. Tudo isso parece loucura demais e não

deve passar de uma grande coincidência. — Kelly segurou a mão da amiga,

tentando acalmar a situação, pois percebeu que Natalie estava realmente

nervosa. — Aproveitando que você me fez sair da cama, deixa eu te contar o

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que aconteceu ontem.

Kelly continuou a falar sobre sua noite com Dalton. Eles foram ao bar em

que Natalie supostamente deveria se informar sobre a vaga de emprego. Kelly

disse que o proprietário havia encontrado uma garota, mas não estava satisfeito

com ela. Aquela poderia ser a chance de ela conseguir o emprego, caso fosse

conversar com o dono.

Natalie parecia escutar atentamente a amiga, mas sua atenção estava em

outro lugar. Aos poucos, ela também se lembrava do sonho que teve no hospital,

sobre o qual ela matava a garota ruiva e depois criava asas.

Alguns minutos depois, a senhora Dorah entrava pela sala, junto de Gabriel.

Ela trazia o almoço de domingo, que provavelmente devia ter comprado em

algum mercado ou restaurante da cidade. Gabriel, que havia acabado de voltar

do treino, decidiu subir e tomar um banho antes de almoçar. As duas meninas

desceram as escadas. Depois de toda aquela conversa, elas estavam famintas.

A senhora Zeniek, ao ver Kelly, disse com toda a sua educação:

— Que bom que você está aqui, Kelly. Com certeza vai se juntar a nós no

almoço de domingo, não é?

— Bom, eu não tinha planejado ficar aqui — respondeu Kelly. — Mas, se a

senhora me disser que vai ter suco de laranja acompanhando o almoço, eu

mando o Kenedy embora e fico com muito prazer.

— Claro que teremos! — Dorah ficou toda animada, como qualquer mãe

que adora ser elogiada por alguma coisa que sabe fazer muito bem. Além do

mais, ela sabia que aquele suco era seu segredo. — O suco de laranja é a

especialidade da casa.

Todos riram do comentário. Kelly abriu a porta e pediu para Kenedy ir

embora, avisar seu pai. Disse que ligava quando fosse hora de ir buscá-la.

Pouco depois, encontravam-se todos sentados à mesa para o almoço de

domingo. Gabriel já estava de banho tomado. Dorah colocava os pratos na

mesa, os quais ela tinha todo o cuidado de enfeitar. E, claro, ela não se

esqueceu de colocar duas jarras de suco de laranja.

— Meu Deus! Hoje eu vou me acabar nesse suco — exclamou Kelly.

— Fique à vontade, querida. Está aí para ser bebido — falou gentilmente

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Dorah.

O almoço continuava perfeito, todos comiam bem e pareciam estar

contentes, exceto Natalie, que continuava preocupada com o acontecido pela

manhã. Nada tirava do rosto dela aquela expressão de questionamento.

Percebendo aquilo, Kelly tentou colocar emoção na mesa:

— Natalie, você já contou para sua mãe que o dono do bar está ansioso

para te conhecer?

Naquele momento, as expressões do rosto de todos mudaram. Natalie, que

estava preocupada, fez a cara de que Kelly não gostava nem um pouco: a de

que estava com vontade de matá-la. Dorah parecia insatisfeita com a aquele

comentário. Kelly percebeu que havia feito bobagem. Gabriel, com um sorriso

maldoso nos lábios, percebeu que aquele comentário acabaria com a paz no

almoço.

— Minha filha, quem é o dono do bar? Do que a Kelly está falando? —

Dorah olhou para Natalie com ar de preocupação e ao mesmo tempo

descontentamento, pois sabia que a filha estava escondendo alguma coisa.

— Mãe, desculpa não ter te falado nada, mas é que eu nem estava

pensando nisso depois de tudo. Ia conversar com você depois. — Natalie estava

totalmente constrangida, pois a chateação da mãe era perceptível. Naquele

momento, a única coisa que passou por sua cabeça foi matar Kelly. — É sobre a

vaga de emprego que estão oferecendo no bar do amigo do Dalton.

— Você estava procurando um emprego e nem me avisou? — perguntou

Dorah espantada.

— Na verdade ela não estava. Natalie ia começar — disse Kelly, tentando

amenizar a situação.

— Ela poderia trabalhar com você, mãe — Gabriel tentou deixar a situação

da irmã mais complicada do que já estava.

Dorah parecia ter gostado da ideia e disse, animada:

— Isso mesmo, você pode...

— Não mesmo, mamãe — interrompeu Natalie. — Estou procurando algo

que seja meio expediente. Afinal, nunca trabalhei. E trabalhar com a senhora

não seria legal. Não que eu não goste da ideia, mas eu queria algo diferente.

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— Não sei, minha filha. Tenho de pensar mais a respeito disso — falou

Dorah paciente. — Eu sei que daqui a dois dias você terá dezoito anos. Eu gosto

de saber que você quer ser independente, mas tenho muito medo de vê-la em

um bar depois de tudo que aconteceu.

— Mãe, você não tem de se preocupar. Acidentes podem acontecer em

qualquer lugar — tranquilizou Natalie.

— Senhora Zeniek, Natalie ainda não conhece o bar. Sábado que vem

vamos comemorar o aniversário dela lá — disse Kelly.

— Sim, mãe. E se eu achar que o ambiente não é muito legal, nem fico com

a vaga — completou Natalie, tentando amenizar a situação.

— Eu ainda acho que é muito perigoso pra minha irmãzinha — ironizou

Gabriel. — Imagina, linda desse jeito, os caras vão ficar loucos por ela quando

ela subir no balcão e começar a dançar.

— O quê? Que balcão? — perguntou Dorah desesperada.

— Cala a boca, Gabriel. Ele está tentando te encher, mãe. Ninguém sobe no

balcão, é um bar normal, parecido com um pub, e às vezes tem show acústico

ao vivo — explicou Natalie.

— Bom, como eu disse, depois podemos conversar sobre isso. — Dorah

ainda estava incomodada com a situação, e não procurou ser agradável com

nenhuma das meninas. — Agora, terminem o almoço.

Natalie olhou para a cara do irmão com vontade de matá-lo. Ele retribuiu

com um olhar de satisfação, pois tinha conseguido o que queria.

O almoço continuou normalmente. As meninas se ofereceram para lavar a

louça (quer dizer, Natalie se ofereceu, porque Kelly não podia estragar suas

unhas — porém, disse que enxugaria).

As duas foram para o quarto e, após se entenderem sobre o acontecimento

do almoço, conversaram sobre muitas coisas. As horas passaram rapidamente,

então Kelly ligou para que Kenedy fosse buscá-la.

— Fica tudo combinado para sábado então? — perguntou Kelly.

— Acho que sim. Caso minha mãe fale alguma coisa, eu te aviso — disse

Natalie.

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— Monstrinha, o Kenedy chegou. Vou para casa, mas amanhã, eu te ligo

para conversamos mais um pouco. Vê se fica mais tranquila, e para de pensar

nessas besteiras.

As meninas desceram as escadas juntas. Kelly se despediu de Dorah e

agradeceu pelo almoço. As duas amigas se abraçaram e Kelly correu para o

carro.

O dia havia passado bem rápido e já escurecia novamente. Natalie disse

para sua mãe que não estava com fome e iria para o quarto ver um pouco de

televisão. Quando chegou lá, preferiu ligar seu computador e pesquisar mais

sobre o acidente da manhã. Ela descobriu que um dos rapazes era um antigo

colega de sala no ensino médio. A notícia a deixou mais abalada ainda. Natalie

leu e releu as informações que ele deu a respeito da mulher de cabelos

vermelhos. Para muitos, aquela notícia parecia um conto de fantasma, mas,

para ela, aquilo era o início de um pesadelo.

Após alguns minutos de pesquisa e sem nenhuma informação nova, Natalie

deitou-se para ler um de seus livros. Ela era do tipo de garota que não gostava

de ler, mas quando se interessava por alguma história, não conseguia parar a

leitura.

Após quase uma hora de leitura, Natalie desceu as escadas a fim de tomar

um copo de água. Depois iria dormir. Dorah, que também se preparava para

dormir, desejou boa-noite para a filha e subiu. Gabriel estava no seu quarto

escutando música, com seus fones, sem se preocupar com o horário, pois no

outro dia ele só teria aulas no período da tarde. Depois de matar a sede, Natalie

se deitou e fechou os olhos. O sono não chegava rapidamente, e ela pensava

em tudo que havia acontecido, principalmente no sonho estranho do hospital.

Quem poderia ser o homem sobre o qual a ruiva falava para ela? Apesar de

ser um sonho, a garota pensava muito sobre isso.

Após lutar contra seus pensamentos, Natalie conseguiu finamente dormir.

Todos dormiam na casa dos Zeniek. O ambiente estava quieto e tranquilo;

só era possível ouvir o som da noite. Do lado de fora, quase nenhum carro

transitava pela rua, e o bairro parecia mais quieto do que de costume. Tudo

transcorria na total normalidade, exceto por um curioso homem que estava

encostado na árvore da casa de Natalie. Aqueles cabelos negros, a pele clara e

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a estatura eram reconhecidos facilmente. Tratava-se de Carsten. Parado, de

braços cruzados, parecia estar à espera de alguém ou alguma coisa.

Lentamente, ele ergueu a cabeça para a casa de Natalie. Seus olhos eram de

uma cor escura — algumas vezes pareciam negros — e não paravam de se fixar

na janela do quarto de Natalie.

Dentro do quanto, o único som que podia ser ouvido era a leve respiração

de Natalie. Ela não se movia muito. Apesar de ter um dia totalmente agitado, sua

mente naquele momento estava tranquila. Olhando para ela, era possível ver

que estava tendo algum sonho bom, pois seu rosto transmitia tranquilidade.

As janelas e as portas continuavam trancadas, mas, como num passe de

mágica, sem nenhuma explicação lógica, lá estava ele, na mesma posição,

dentro do quarto de Natalie e olhando fixamente para ela. Observava cada

minúsculo movimento feito pelo seu corpo.

Carsten queria saber se Natalie realmente podia vê-lo, e tinha de tirar

aquela dúvida de sua cabeça a todo custo. Ao mesmo tempo, era possível

perceber pelo seu olhar que analisava cada parte do rosto da garota.

Ela começou a se mover lentamente, parecendo que iria acordar. Colocou

as mãos sobre o rosto e abriu seus olhos devagar. O quarto estava escuro e ela

não podia ver nada, nem sequer notou a presença de Carsten. Levantou-se e foi

até janela, abriu a cortina e viu que a rua estava tranquila como em todas as

noites. Carsten estava exatamente ao seu lado; caso pudesse vê-lo ou ao

menos senti-lo, aquele seria o momento. Ambos estavam tão próximos, que era

possível sentir a respiração de Carsten em Natalie. Ela apenas sentiu um frio

correndo pelo seu corpo.

Natalie desceu as escadas para pegar um copo de água. Carsten continuou

parado no mesmo lugar. Sua expressão era de alívio, mas, ao mesmo tempo,

ele parecia estar decepcionado. Ver que Natalie era normal como todas as

outras garotas o deixou desanimado.

— Está feliz agora? — veio a pergunta de dentro do quarto.

— Você que deve estar feliz. Vendo que eu me enganei — respondeu

Carsten.

— Se você tivesse me ouvido, talvez não perdesse seu tempo aqui.

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— Eu sei disso, Katherine. Vamos embora — pediu Carsten.

Após desaparecerem lentamente do quarto, postaram-se perto da árvore em

que Carsten estava antes.

— Temos um último trabalho a fazer, e é melhor que você consiga. Já é a

segunda noite que você volta sem nenhuma cápsula — repreendeu Katherine.

— Eu sei, Kath. Vamos sair daqui — disse Carsten dando uma última

olhada para a janela de Natalie.

Para a surpresa do rapaz, lá estava Natalie olhando diretamente para seu

rosto.

Assim que a garota voltou da cozinha, abriu novamente a janela e sua

cabeça começou a doer como naquele dia. Natalie viu Carsten e Katherine

parados do lado da árvore. Com aquela visão ela desmaiou, derrubando o copo

de água no chão. Ele, por sua vez, não conseguiu entender o que acontecia.

Mas, sem parar, apenas desapareceu no rastro de Katherine. O mesmo silêncio

voltou a ecoar na casa, e Natalie permaneceu caída no chão.

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Capítulo 5

EUFORIA: era o clima da manhã de segunda-feira na silenciosa casa que,

agora, já começava a ganhar vida. Acordado, Gabriel estava todo animado, pois

aquele seria o grande dia, a final do seu time de futebol, que jogaria contra a

equipe invicta.

A senhora Dorah preparava o café da manhã com agilidade, pois teria de

levar o filho para a escola e depois ir ao trabalho. Enquanto espremia as laranjas

para o seu famoso suco, lembrou-se de uma conta que precisava ser paga

naquele dia. Subiu as escadas rapidamente para acordar Natalie, já que ela não

teria tempo para efetuar o pagamento na data do vencimento.

Acordar Natalie não era algo comum. Todos os dias em que Dorah saía, ela

deixava a filha dormindo, mas parece que o pressentimento de mãe e o destino

combinaram: naquele dia, ela acordaria a filha.

Ao abrir a porta do quarto, Dorah olhou diretamente para a cama e não viu a

filha deitada. Seu coração começou a bater mais forte. Olhando para todos os

cantos, ela viu o copo de água no chão e, do lado, a filha caída. Então, gritou

para Gabriel e foi ao socorro de Natalie. Segurou a filha nos braços e a chamava

tentando acordá-la.

Quando Gabriel entrou no quarto, Dorah gritou para o filho:

— Dentro da minha bolsa tem um cartão do Doutor Reik. Ligue para ele e

peça que venha urgentemente para cá.

Gabriel desceu as escadas em alta velocidade. Enquanto procurava o

cartão, a campainha tocou. O garoto não sabia se atendia ou não a porta, mas

quando correu para abri-la, tomou um grande susto. O médico de quem ele

procurava o cartão estava lá. Muito nervoso, Gabriel, não conseguia pronunciar

uma palavra.

— Minha... irmã... está... — tentou o garoto dizer.

— Você está bem, garoto? — perguntou. — Sou o Doutor Reik, o médico

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que cuidou de sua irmã. Vim para uma visita rotineira. Ela está dormindo?

Respirando fundo, Gabriel conseguiu se controlar e disse:

— Minha irmã está no quarto, desmaiada. Minha mãe está com ela lá em

cima.

Sem pensar duas vezes, o médico correu para o primeiro andar. Era a

primeira vez em que visitava a casa de Natalie, mas parecia que ele já sabia o

caminho. Quando chegou ao quarto, Dorah levou um susto, porém logo deu

passagem para o Doutor Reik, que a cumprimentou com um aceno de cabeça.

O médico abriu os olhos de Natalie, e ao mesmo tempo mediu sua

frequência cardíaca. Respirou bem fundo e disse:

— Natalie, acorde, eu sei que você está aí. — Parecia que ele conversava

com ela.

Foi quando a menina respondeu:

— Ele esteve aqui.

— Vamos, acorde, você precisa se levantar — disse ele, tentando

novamente acordá-la.

Natalie continuava resmungando, mas não conseguia abrir os olhos. O

médico colocou uma de suas mãos na testa da garota e a outra na barriga. Ele

parecia dizer algumas palavras que não podiam ser identificadas.

De repente, Natalie abriu seus olhos, como se tivesse levado um susto. Ela

ainda parecia estar em choque com o que havia visto na noite anterior. Dorah

correu em direção à filha e a abraçou bem forte, sem conseguir conter a

emoção. Apenas chorava, dizendo que a amava. O médico se afastou das duas

e apenas falou antes de sair do quarto:

— Seria bom que você se deitasse um pouco, Natalie. Precisa descansar,

pois ainda pode ter algum mal-estar.

— Isso mesmo, filha, você deve ficar aqui. Vou descer e já trago alguma

coisa para você comer e beber. — Dorah estava bastante preocupada.

— Senhora Zeniek, poderíamos trocar algumas palavras lá em baixo, por

favor? — perguntou o médico.

Concordando com a cabeça, Dorah se levantou, deu um beijo na testa de

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Natalie e desceu as escadas para conversar na sala. Ambos se sentaram no

sofá, quando Dr. Reik começou:

— Foi uma sorte eu decidir visitar minha paciente hoje.

— Foi Deus que te mandou aqui, doutor — disse Dorah interrompendo a

fala do médico. — Se não fosse por você, minha filha poderia estar em uma

situação pior.

— Não se preocupe, Natalie está em perfeita saúde — explicou o médico.

— Quando uma pessoa passa por um grande trauma como ela passou, é normal

que isso aconteça.

— Mas ela sempre terá esse tipo de trauma? — perguntou Dorah.

— Não. Mas vai demorar um tempo para que ela se sinta bem. Tente levá-la

para fazer coisas diferentes. Fugir um pouco da rotina.

— Eu devo levá-la para um acompanhamento psicológico também.

— Mãe, eu estou bem — interrompeu Natalie descendo as escadas. Dorah

levantou-se rapidamente e correu em direção à filha. Porém, a garota continuou:

— Mãe, eu disse que estou bem. Não precisa se preocupar, eu não preciso

descansar. Afinal, dormi a noite toda, só estou com dor nas costas.

O médico pegou um pedaço de papel e escreveu o nome de um remédio.

— Para a dor que ela sente nas costas — disse, entregando o papel para

Dorah.

— Gabriel — gritou Dorah —, venha aqui. Preciso que você vá à farmácia

agora, comprar um remédio para sua irmã.

— Mãe, eu vou, não se preocupe — interrompeu Natalie.

— Seria melhor que não saísse na rua ainda, Natalie — disse Doutor Reik.

— Você pode ter algum tipo de mal-estar com a luz do sol. Após o almoço,

estará liberada para dar uma volta.

— Que pena. Isso quer dizer que ela vai ao jogo — reclamou Gabriel

descendo as escadas, sabendo que teria de ir à farmácia para comprar o

remédio da irmã.

— Que pena mesmo. Você não sabe a questão que eu faço de ir ao jogo —

retrucou Natalie.

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— Crianças, parem — repreendeu Dorah, tratando os filhos adolescentes

daquela forma. — Desculpe-me, Doutor, mas você sabe como são os irmãos,

não é?!

— Não se preocupe. Agora tenho que ir. Caso sinta alguma coisa, não deixe

de me ligar.

— Nós ligaremos — disse Dorah.

O médico fechou a porta e a correria começou, principalmente quando

Dorah olhou para o relógio e viu que já estava atrasada para o trabalho.

— Filha você vai ficar bem? — perguntou Dorah preocupada.

— Mãe, fique tranquila. Eu não vou a lugar nenhum.

— Vou levar o Gabriel para a escola, e depois passo em alguma farmácia

para comprar seu remédio. Vou pedir para entregarem aqui para você —

explicou Dorah. — Te amo, minha filha. — Dorah, beijando a testa de Natalie,

saiu correndo com o celular na orelha, provavelmente para explicar o atraso.

Agora que a casa estava silenciosa novamente, Natalie tentou pensar em

tudo o que acontecera. Ela tinha certeza do que havia visto pela janela naquela

noite, e sabia que aquele rapaz também estava olhando para ela. Mas o que ela

poderia fazer? Com quem ela poderia contar? Se ligasse para Kelly, dessa vez,

sua amiga com toda certeza acharia que ela estaria louca. Natalie decidiu ligar a

televisão e repousar, assim como o médico recomendou. Em poucos segundos,

entrou em um profundo sono.

******

Longe dali, na cabana misteriosa, Victor e Katherine discutiam algo sobre

Carsten:

— Eu não consigo entender o que aconteceu com ele depois que saímos da

frente da casa daquela menina — comentou Victor, confuso sobre o assunto.

— É muito simples. Ela estava na janela, e sinceramente, Victor, estou

começando a acreditar que aquela menina consegue realmente nos ver. —

Katherine parecia incomodada com a toda situação, a expressão de seu rosto

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era de intranquilidade.

— Vocês só podem estar malucos. Os únicos que conseguem essa façanha

somos nós, os anjos e os...

— Nefilins — interrompeu Katherine.

— Ei, Kath! Você realmente acha que aquela menina possa ser uma Nefilin?

Isso é impossível. Os Nefilins foram extintos há muito tempo, pelos próprios

anjos. Eram considerados aberrações por eles. Você não se lembra? Todos

foram caçados e extintos — lembrou Victor com muita convicção no que estava

dizendo.

— Eu sei disso — respondeu Katherine. — E outra, não podemos nos

esquecer de que todos os Nefilins nasciam albinos, por isso a identificação deles

era fácil.

— Uma coisa você não pode negar, de albina ela não tem nada, apenas a

pele branca. Ela é uma garota muito bonita, talvez seja por isso que Carsten

esteja tão obcecado por ela — provocou Victor.

— Não seja ridículo, Victor. Não é isso. O Carsten já viu humanas muito

mais lindas do que ela e não ficou dessa maneira. Eu não consigo entender o

que está acontecendo. Mas eu prometo que vou descobrir.

— Eu acho que tem gente que está com ciúme — novamente provocou

Victor.

— Às vezes eu não consigo entender o quão velho você é, e ao mesmo

tempo tão infantil — disse Katherine, com um tom sério no rosto. — Eu estou

começando a ficar preocupada com o Carsten. Está quase na hora do toque de

recolher, e ele continua fora daqui. Vamos acabar nos encrencando por conta

dele.

— Não vão, não. Eu sei bem das minhas responsabilidades Kath, não vou

fazer vocês se encrencarem por mim. — Carsten reapareceu. Andando

lentamente em direção dos amigos, falou: — Além do mais, estava fazendo o

meu serviço. Quantos hoje, Victor? — perguntou, olhando para Katherine.

— Consegui abater dois. A noite não foi fácil, ainda mais com a Katherine

preocupada e falando de você a noite toda. — Victor mostrou duas cápsulas

cheias de energia.

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— Não venha me culpar pela sua incompetência hoje — retrucou Katherine.

— Pois bem, quantos você conseguiu caçar? — perguntou Victor.

— Você sabe que essa não é minha função, Victor. Eu não vou sujar minhas

mãos já que essa é a tarefa que foi dada a vocês — declarou Katherine,

zombando do menino. — Além do mais, eu não posso usufruir da energia deles;

caso contrário, estarei infringindo as leis.

— Vinte, consegui vinte — afirmou o rapaz, mostrando as vinte cápsulas

iguais às de Victor. — O melhor de tudo é que consegui vinte sozinho.

Naquele momento, as expressões de Katherine e Victor ficaram totalmente

nulas. Nada que ambos falassem poderia tirar o mérito de Carsten. Sabiam que,

por mais que Carsten fizesse algo para irritar os anciões, era nessas horas que

ele continuava sendo o favorito deles.

De repente, o mesmo som que sempre ecoava começou a tocar. Eles

sabiam que era hora de partir. Todos foram para o lado de fora, e em poucos

segundos o lugar estava silencioso e vazio, como se ninguém, nem mesmo a

natureza, ousasse se pronunciar.

******

Dentro da casa da família Zeniek, o silêncio também reinava. Até mesmo a

respiração de Natalie podia ser ouvida se alguém estivesse próximo da garota.

O sono tranquilo da garota foi interrompido pelo som da campainha. Natalie

acordou assustada, sem conseguir entender muito bem o que estava

acontecendo. Quando a campainha tocou novamente, ela se levantou do sofá e

foi em direção à entrada da casa. Rapidamente, sem nem mesmo arrumar os

cabelos, abriu a porta, dando de cara com um rapaz que segurava uma sacola

plástica.

— É da farmácia. Sua mãe pediu para que entregasse este remédio aqui —

disse o rapaz.

— Ah! Sim. Ela já deixou pago? — Natalie segurava a porta, querendo

fechar logo e voltar para o sofá.

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— Sim, pode ficar tranquila que já está tudo certo — confirmou o rapaz.

— Muito obrigada — agradeceu a menina.

Natalie foi diretamente para a cozinha, abriu a geladeira, pegou um copo de

suco de laranja e tirou o remédio da caixa. Quando se preparava para tomar o

comprimido, o telefone tocou. Com o susto, ela deixou o remédio cair no chão.

Naquele momento, ao invés de tomar o medicamento, foi correndo atender ao

telefone. Porém, ninguém disse nada; podia apenas sentir a respiração de uma

pessoa. Irritada e com um pouco de medo, ela declarou em tom de raiva:

— Escuta aqui! Eu tenho mais o que fazer. Vai falar alguma coisa ou ficar

apenas fungando pelo telefone?

— Prefere que eu faça isso próximo do seu pescoço? — disse a voz

misteriosa, com um tom de riso.

— Kelly, sua infeliz! Não tem o que fazer, não? Estava tomando meu

remédio, aliás, tentando, porque perdi o comprimido assim que você ligou —

reclamou Natalie com o telefone na orelha e indo em direção à cozinha para

tomar o seu remédio.

— Não fica brava, monstrinha, eu apenas estou te ligando porque amanhã é

um dia mais que especial — anunciou Kelly toda empolgada.

— Ah é? O que tem de tão especial amanhã? — perguntou Natalie

ironicamente, e demonstrando um mau humor terrível.

— Vixe! Estou vendo que alguém caiu da cama hoje, hein? — Kelly disse,

mas sem saber o que realmente tinha acontecido.

— Olha, Kelly, vamos fazer o seguinte: você desliga o telefone, eu vou

tomar o remédio, lavar meu rosto e, assim que eu terminar, ligo pra você com

meu humor renovado. Pode ser? — perguntou Natalie.

— Tudo bem. Já que não tem outra opção — falou Kelly, desligando o

telefone em seguida.

Estou vendo que, com esse humor, hoje vou acabar descontando minha

raiva em quem não tem nada a ver, pensou Natalie. Estava preocupada com o

que tinha dito a Kelly. Espero que o remédio me ajude a controlar isso também.

Natalie finalmente conseguiu tomar seu remédio. Como ela não tinha

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nenhum animal doméstico, não se preocupou em pegar o comprimido que havia

caído no chão. Então, subiu as escadas e decidiu tomar um banho para

melhorar sua aparência e seu humor.

******

Em um local estranho e escuro, quase nada podia ser visto, onde apenas

algumas velas clareavam bem pouco. Lá estavam Carsten, Victor e Katherine

ajoelhados. Pareciam esperar por alguém, quando uma grave voz se

manifestou:

— Pelo que constatei, a noite de hoje foi excelente para você, Carsten.

— Sim, senhor. Consegui abater vinte anjos — Carsten dizia aquilo com

tanta confiança, que provocava certa ira em Victor.

Para Victor, tudo não passava de uma competição de irmãos: quando ele

perdia para Carsten, ficava furioso. Mas, pela seriedade do assunto, era muito

mais que uma pequena competição.

— E, pelo visto, Victor e Katherine não conseguiram nem um quarto disso.

Estou certo? — perguntou o homem que não conseguia ser visto por nenhum

deles.

— Sim, senhor — responderam Victor e Katherine ao mesmo tempo.

— Mas, senhor, estávamos procurando por...

— Eu não quero desculpas — o homem interrompeu a fala de Katherine. —

E os outros ainda têm a coragem de me perguntar por que Carsten é o preferido.

Qual dos demônios consegue abater vinte anjos em uma noite?

Apenas a silhueta do homem podia ser vista, mas nenhum dos três ousava

olhar para frente e encará-lo. Se aquele fosse o inferno, não parecia ser tão

tenebroso como as pessoas imaginam. Entretanto, se alguém ficasse algumas

horas por lá, enlouqueceria com o silêncio.

— Vocês podem descansar agora, porém, tomem muito cuidado com

qualquer coisa que fizerem amanhã. Ouvi dizer que as ações de hoje deixaram

os anjos bem irritados. Não duvido que eles mandem um dos arcanjos atrás de

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vocês, principalmente de Carsten.

O misterioso homem estendeu sua mão e as cápsulas, que estavam com os

três, flutuaram e ficaram rodeando o corpo dele.

— Sim, senhor — responderam os três em uníssono.

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Capítulo 6

O JOGO era o assunto do dia na cidade de Polsher, mas na casa da família

Zeniek, após um delicioso e relaxante banho, Natalie, que estava em seu quarto

trocando de roupa e amarrando seus longos cabelos castanhos, não parecia

preocupada. Enquanto isso, ela decidiu pegar o celular e ligar para a amiga, que

naquele momento devia estar furiosa, esperando pela sua ligação.

— Alô, disque amizade, bom dia. Em que posso ajudar? — disse Kelly

ironicamente, irritada pela demora na ligação.

— Kelly, me desculpa. Eu sei que você deve estar irritada com a minha

ligação atrasada, mas eu precisava de um tempo para pensar — tentou explicar

à amiga. — Depois que eu te contar sobre a noite que eu passei, você vai me

entender melhor.

— Sem problemas, estaremos sempre à disposição para escutar a sua

história — continuava Kelly com sua ironia.

— Kelly, fala sério! Não foi de propósito? — perguntou Natalie preocupada.

— Ontem eu dormi no chão a noite toda, porque desmaiei depois de ter visto o

cara do posto novamente.

— Como assim? E só me fala isso agora? — disse Kelly em um tom de

preocupação. — Mas, monstrinha, você está bem?

— Sim, sim! Agora já estou bem melhor. Parece que foi uma coincidência,

mas o Doutor Reik estava aqui em casa no período da manhã, fazendo uma

visita de rotina. Ele me ajudou e já receitou um remédio. Disse que essas coisas

são normais, após o trauma que eu tive.

— Espera, Natalie! Quer dizer que o médico estava na sua casa, justo

quando isso aconteceu? — exclamou Kelly, achando tudo aquilo bem estranho.

— Qual médico, hoje em dia, que te atende em um hospital, faz visitas em casa

para saber como você está?

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— Achei estranho também. Mas vamos pensar que ele foi o médico que

salvou a menina do posto de gasolina, talvez o hospital tenha mandado ele fazer

a rotina, tipo, para mostrar que estão se importando.

— Pode ser. Então quer dizer que você desmaiou porque viu o cara

novamente? Isso já esta virando uma novela, Natalie.

— Eu sei disso. Por que você acha que eu ando tão estressada e

preocupada com as coisas? — suspirou Natalie. — Bom, mas, mudando de

assunto, o que você tinha pra me falar de tão importante?

— É mesmo, quase tinha me esquecido. Amanhã é seu aniversário, e eu

convenci meu pai a fazer um almoço especial pra você em minha casa. O que

acha?

— Não sei se é uma boa ideia, amiga — disse Natalie, que parecia estar

preocupada, afinal, ainda não tinha saído de casa depois de tudo o que

acontecera.

— Fica tranquila, vai ser legal pra você sair de casa. Aliás, não se preocupe,

porque eu mando o Kenedy te pegar amanhã, antes do almoço. — E em um

suspiro ela continuou: — E não se esqueça de que vai ter presente.

— Tudo bem, Kelly, eu vou. Só não esqueça de que à noite minha mãe vai

querer fazer alguma coisa aqui também, você sabe.

— Sem problemas. Você já sabe quem vai chamar?

— Não pensei nisso ainda. Mas, não será uma grande festa, apenas uma

reunião para amigos.

— E você vai deixar que a festa de Lily seja melhor que a sua? —

questionou Kelly já pensando no que Lily faria.

— Kelly, não somos mais crianças. E outra, amanhã será apenas uma

comemoração, a festa será no bar no sábado, lembra?

— É assim que se fala, amiga.

— Bom, nos vemos hoje à noite no jogo. Você vai, né? — perguntou Natalie,

com medo de ouvir a resposta, e possivelmente saber que estaria sozinha

naquele jogo.

— Claro que sim, Dalton não parou de falar nesse jogo. Lembra que ele

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ajudou o treinador a preparar os meninos?

— Bom, mais tarde nós falamos então. Beijos. — Natalie desligou o

telefone, porque precisava ainda preparar seu almoço.

Antes de descer a garota se olhou no espelho e vários pensamentos

vagaram pela sua cabeça. Porque tudo aquilo estava acontecendo com ela?

Aquela garota de quase 18 anos tinha uma vida monótona e rotineira, e agora

mal sabia o que esperar do dia seguinte.

Entretanto, quando olhou para janela, a cena da noite anterior voltou a

percorrer sua cabeça: aquele rapaz, que ela mal reconheceria na rua. Todas as

vezes em que ela o vira, ou pensou tê-lo visto, fizeram-na perder a consciência.

E essa cena estava bem viva em sua cabeça.

O mais preocupante de tudo é que ela teria de carregar esse peso sozinha

porque, para os outros, aquilo era loucura ou efeito do trauma. Mas, para

Natalie, tudo era real. Anjos existem? Será que realmente eles vivem entre os

humanos? Quem mataria os anjos? Quem eram aquele rapaz e aquela moça?

Apenas perguntas sem respostas (afinal, somente ela conseguira vê-los).

Em meio àquela discussão interna, a campainha tocou. Natalie desceu

correndo as escadas para atender à porta, pois não esperava nenhuma visita.

Natalie viu que sua mãe, com várias sacolas nas mãos, a esperava para que

abrisse a porta.

— Mãe? O que a senhora está fazendo aqui? — indagou Natalie, ajudando

a senhora Zeniek com as sacolas.

— Fiquei preocupada com você, minha filha. — Dorah entrou na casa,

colocando o resto das compra na mesa da cozinha. — Então, resolvi passar no

mercado para comprar alguma coisa para nós almoçarmos juntas. E também já

paguei as contas, assim você não precisa sair de casa. — Dorah continuou

tirando as compras das sacolas. — Expliquei a situação na empresa e eles me

concederam um pouco mais de almoço hoje.

— Não precisava se preocupar, mãe, eu estou bem — disse Natalie, feliz

com a preocupação da mãe.

— Filha, aliás, você estava indo para algum lugar? — Dorah notou que a

filha não estava como a mesma cara da manhã. — Você está linda, nem parece

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que está doente.

— Isso! É porque eu não estou doente, mãe. — Natalie abriu um sorriso e

tentou aliviar o peso da preocupação de Dorah. — O remédio que o Doutor Reik

receitou parece ter feito efeito mais rápido do que eu esperava.

— Talvez seja porque você dormiu depois de ter tomado. — Dorah pegou a

caixa do remédio que Natalie tinha deixado na mesa da cozinha. — Espera um

pouco. Esse não é o remédio que eu comprei na farmácia. Isso me parece um

tipo de medicamento manipulado. Quem veio te entregar?

— Ora! O rapaz da farmácia, o mesmo que sempre entrega os

medicamentos aqui, mãe. — Natalie parecia não entender a situação, e ficou

preocupada, porque não tinha certeza do que tinha ingerido. — Bom, eu não sei

ao certo o que eu tomei, mas de uma coisa eu sei: não sinto mais fraqueza e

estou pronta pra outra.

— Não seja boba, Natalie. Isso não vai voltar a acontecer, minha filha. De

qualquer forma, preciso ligar na farmácia para entender o que aconteceu.

Dorah já estava com o telefone na mão, e não parecia nem um pouco

tranquila com o que aconteceu. Então, Natalie tentou acalmar a mãe, pegou o

telefone do médico na mesa da sala e disse:

— Mãe, eu tomei o remédio, não estou sentindo mais nada. Em vez de você

ligar na farmácia, não é muito mais fácil ligar para o Doutor Reik e perguntar se

esse remédio tem o mesmo efeito?

Por um minuto, Dorah parou e pensou. Depois, pegou novamente a caixa do

remédio e leu a bula. Percebeu que o efeito do remédio parecia o mesmo, mas,

como não era nenhuma especialista no assunto, resolveu seguir o conselho da

filha. Ligou diretamente para o celular do médico. Após dois toques, ele atendeu

ao telefone:

— Doutor Reik Salton falando. Natalie, é você?

— Não, é a mãe de Natalie. — Dorah estranhou totalmente o médico

atender ao telefone achando que fosse a filha.

— Desculpe-me, senhora Zeniek, o número da sua residência está

cadastrado na minha agenda, onde estão os nomes dos meus pacientes. Em

que posso ajudá-la?

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— Sem problemas, Doutor. Eu tenho uma grande dúvida. A receita que o

senhor deu para a minha filha solicitava um medicamento, mas, por um erro da

farmácia, eles enviaram outro manipulado, e aparentemente ele fez efeito. —

Dorah pegou a bula novamente nas mãos para ter certeza do que estava

dizendo. — Na bula também diz que o remédio é para dores de cabeça e

náuseas, mas, de qualquer forma, resolvi ligar.

— A senhora fez muito bem em ligar. Por favor, me diga o nome do

remédio.

— Alcaflanide — respondeu Dorah rapidamente.

— Era o que eu imaginava. Eu não sei se a senhora percebeu, mas, na

bula, existem dois remédios; um deles é esse que a senhora está nas mãos. A

farmácia deve ter se confundido. Não se preocupe, porque o efeito é o mesmo.

Aliás, o efeito é um pouco mais rápido do que o outro.

— Ufa, fico um pouco mais aliviada. Desculpe-me o incômodo e, obrigada,

Doutor.

— Imagina, não é incômodo nenhum. Fico feliz em saber que minha

paciente está melhor. Tenha um bom dia, ou melhor, uma boa tarde.

Dorah desligou o telefone e percebeu que realmente já era tarde. Ela

precisava almoçar para voltar ao trabalho. Começou a colocar o almoço nas

travessas e pediu para que Natalie terminasse de arrumar a mesa.

Após terminar de arrumar a mesa e lavar as mãos, mãe e filha estavam

sentadas, prontas para o almoço.

O cardápio daquele dia era um pouco diferente para Natalie, que estava

acostumada a esquentar o resto do jantar do dia anterior. Dorah havia comprado

arroz, bife e batata frita, sem falar no suco de laranja, afinal, essa combinação

na mesa, de uma segunda-feira, não tinha como dar errado.

A relação de Natalie e Dorah era muito boa, as duas tinham um carinho

enorme uma pela outra. Natalie gostava de contar as coisas para ela, dividir

experiências; era uma relação bem aberta e sem segredos. Por esse motivo,

Natalie ficou tão chateada no dia do almoço de domingo.

Almoçar com Dorah durante a semana também não era algo comum, ainda

mais um almoço sem Gabriel, em que assuntos diferentes podiam surgir sem

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que Natalie esperasse e quisesse.

— Então, minha filha, já pensou a respeito daquele emprego no bar? —

questionou Dorah cortando seu pedaço de bife.

Natalie ficou sem palavras no momento, mas uma série de pensamentos

passou por sua cabeça: Será que minha mãe está querendo me testar? Isso é

pegadinha, né? De qualquer maneira, ela achou melhor pensar antes de

responder àquela pergunta.

— Não, mãe, ainda não vi nada a respeito. — Natalie pegou uma batata e

colocou na boca, mastigando enquanto pudesse pensar o que falar. — Você se

lembra que, no sábado, meus amigos e eu vamos ao bar comemorar meu

aniversário?

— Ah, sim, me lembro de Kelly ter comentado isso ontem. — Dorah ainda

parecia estar chateada com a omissão de Natalie.

— Mãe, você sabe que eu pretendia te contar sobre aquilo, mas não achei

que fosse a hora correta, afinal, nem eu ainda decidi sobre o trabalho. Por

enquanto será apenas uma comemoração. — Natalie pegou o copo de suco na

mão. Ela estava tão nervosa com aquele assunto, achando que sua mãe poderia

estar irritada, que quase tomou todo o suco em apenas um gole.

— Minha filha, eu andei pensando sobre tudo, e acho que estou segurando

você demais aqui. Como mãe, me preocupo com você, mas acho que está certa

em procurar um emprego. Eu te dou total liberdade de escolher onde quer

trabalhar. — Dorah resolveu beber um gole do suco para molhar a garganta, e

continuou a falar: — Só peço que observe bem o lugar e tome a decisão correta.

Você já tem dezoito anos, e é uma mulher independente.

— Dezessete.

As duas riram e continuaram a conversar. O tempo de Dorah estava quase

acabando, quando Natalie resolveu iniciar um assunto um pouco mais

complicado. Ela sabia que não podia mais esconder de sua mãe as coisas que

estavam acontecendo. Tomou mais um gole do suco e disse:

— Naquele dia, no posto, aconteceram algumas coisas estranhas. Antes de

eu desmaiar, tive a impressão de ter visto um homem e uma mulher ruiva e até

mesmo um anjo sendo morto. — Natalie parou por um momento, respirou e

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continuou a falar: — O Doutor Reik disse que podiam ser alucinações do trauma,

mas domingo, antes de eu desmaiar, tive a impressão de ter visto o mesmo

rapaz daquele dia me observando do lado de fora.

— Minha filha, com certeza ainda podem ser efeitos do trauma. Porém, se

você quiser, podemos ligar para o detetive Ramones e você pode contar o que

viu.

— E ele virá aqui e continuará a me olhar com aquela cara, como se eu

fosse maluca? Não, melhor ficar somente entre nós. — Natalie levantou e

colocou seu prato e de sua mãe na pia para lavar as louças. — De qualquer

forma, acho que isso estava me prendendo e eu precisava desabafar com você.

— Fico feliz que tenha me contado. Se voltar a acontecer, eu quero que

você me fale, por favor — pediu Dorah. — Bom, agora vou escovar meus

dentes, pois tenho de ir direto para o trabalho. Seu irmão chegará mais cedo do

que de costume, o pai de um dos amigos dele vai trazê-lo para casa. Afinal, o

grande jogo é hoje à noite.

— Nem me fala isso — disse Natalie em um tom nada animador.

Dorah foi finalizar seus afazeres em casa, enquanto Natalie terminava de

lavar a louça do almoço. Apesar de não trabalhar, Natalie era do tipo de filha que

ajudava nos afazeres de casa e não reclamava. Ela entendia que precisava

auxiliar em alguma coisa. Então, a limpeza do seu quarto e os afazeres básicos

não eram problema para ela.

Dorah desceu as escadas parecendo estar atrasada, como sempre. Deu um

beijo em Natalie e saiu de casa, dizendo:

— Fique pronta para a noite. O jogo começa às oito e meia, mas precisamos

estar lá uma hora antes, por conta do Gabriel. Te amo, minha filha.

— Mãe, não se preocupe, Kelly e Dalton vão passar aqui para me pegar.

Você pode ir antes, apenas guarde um lugar para nós. — Com um sorriso bem

largo e verdadeiro, ela disse: — Também te amo, mãe.

Natalie não havia conversado com Kelly sobre a possibilidade de ir com ela,

mas, como ela conhecia a amiga, sabia que não teria nenhum problema quanto

a isso. Pegou o celular e mandou uma mensagem para ela, dizendo:

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AMIGA, VOCÊ E O DALTON PODEM ME DAR UMA CARONA PARA O JOGO HOJE À

NOITE? SÁBADO TAMBÉM ESTÁ TUDO COMBINADO PARA O BAR, MINHA MÃE

ATÉ ME APOIOU PARA A VAGA DE EMPREGO. POR FAVOR, NÃO ME DIGA NÃO.

BEIJINHOS.

Kelly era do tipo de pessoa que vivia em função do seu celular, e era bem

rápida com as mensagens de texto. Não demorou muito para que Natalie

recebesse a resposta:

MONSTRINHA, EU IA TE LIGAR À TARDE JUSTAMENTE PARA ISSO. TENHO

CERTEZA DE QUE SUA MÃE QUER IR UMAS DUAS HORAS MAIS CEDO, KKKKKK.

SOBRE A VAGA NO SÁBADO, FIQUE TRANQUILA QUE ELA JÁ É SUA. VAMOS

DEIXAR VOCÊ A CARA DO BAR. CONVERSAREMOS MAIS SOBRE ISSO À NOITE.

BEIJOS.

Natalie recebeu a mensagem e ficou mais tranquila, sabendo que Kelly a

pegaria naquela noite. Ela subiu as escadas para escovar os dentes; depois,

resolveu descansar um pouco e aproveitar os seus possíveis últimos dias de

folga. Em breve, ela seria uma trabalhadora. Mas essa ideia não a preocupava

muito. Qual pessoa, na situação de Natalie, que não gostaria de trabalhar em

um bar à noite e poder dormir durante o dia? Bom, isso era o que ela andava

pensando que iria acontecer.

******

Natalie terminava de se arrumar no quarto, quando escutou a buzina do

carro de Dalton. Sua mãe, àquela altura, já estava na escola com Gabriel. Como

sempre, ela não estava nem um pouco deslumbrante: usava calça jeans, uma

blusinha branca básica, seus cabelos devidamente amarrados e um tênis, afinal,

eles estavam indo para um jogo. Na cabeça dela, como o jogo era local, não

precisava de nenhuma superprodução.

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— Monstrinha, depressa, daqui a pouco não vamos achar lugar — disse

Kelly, dentro do carro.

Natalie não estava muito preocupada, porque sabia que sua mãe a

aguardava com os lugares. Mas ela não imaginava que teria companhias extras

nesse jogo, e que talvez ele fosse muito pior do que ela já imaginava.

Pensado nisso, respirou fundo e viu pelo vidro do carro de Dalton, que era

um pouco mais escuro, que havia duas pessoas no banco de trás. Mas ela não

conseguia distinguir quem eram. Com um sorriso forçado, continuou

caminhando. Quando chegou perto, a porta se abriu e lá estava Paul, sentando

com um sorriso no rosto, como ela já esperava. O que Natalie não esperava era

ver Lily sentada do outro lado.

— Como sempre, vestida de uniforme — comentou Lily, sem nem mesmo

esperar Natalie entrar.

— Já vai começar, Lily?! — Dalton olhou para cara da irmã, reprovando a

atitude dela. — Depois você não sabe por que as pessoas não gostam de você.

Hoje não, por favor.

O clima ficou pesado naquele momento. Da casa de Natalie até à escola

todos permaneceram em silêncio, apenas um rock romântico tocava no rádio do

carro tentando amenizar o ocorrido. Nem mesmo Natalie e Kelly ousaram

conversar naquele momento. Apesar de a represália ter sido contra Lily, todos

estavam com certo receio de dizer alguma coisa. A cara de Dalton não era a de

melhores amigos.

Quando eles chegaram à escola, todos desceram do carro. Sorrateiramente

Lily chegou perto de Natalie e sussurrou:

— Você viu o que você fez? Culpa sua novamente, mas dessa vez vai ter

troco, pode esperar.

— Tudo bem por aqui Lily? — Perguntou Dalton, vendo que a irmã

novamente perturbava Natalie.

A garota foi logo saindo de perto, preferia a todo custo evitar arrumar

confusão com o irmão.

— Não, absolutamente nenhum, vou encontrar as minhas amigas. —

respondeu a irmã.

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A loira se encontrou com as amigas da sala, que pareciam ser tão chatas

como ela, e enturmou-se logo. Lily apenas pediu que o irmão ligasse quando

eles estivessem indo embora.

Natalie preferiu nem falar da ameaça e tentar manter o clima agradável.

Pronto, lá estava o quarteto fantástico do shopping. Pelo menos, Natalie

acreditou que nada de ruim aconteceria naquela noite. Ao ver sua mãe

acenando da arquibancada para ela, por um momento, envergonhou-se. Porém,

Dalton fez um comentário agradável:

— Que bom que sua mãe foi gentil e guardou lugares para nós.

Dorah estava em uma situação engraçada: colocou a bolsa em um canto,

sentou em outro e, possivelmente, com toda a sua educação, estava dizendo

para as pessoas que os lugares estavam reservados.

Finalmente conseguiram chegar onde ela estava. Muito simpática, Dorah

cumprimentou todos os amigos de Natalie e percebeu que na sua direita Paul

estava sentado sozinho, seguido dela, Natalie, Kelly e Dalton. Então, para a

infelicidade da garota, Dorah se levantou e deu seu lugar para o garoto, assim

ele pôde se sentar ao lado de Natalie. Paul nunca havia tentando nada com ela

diretamente. Era evidente que ele queria, mas quem fazia a pressão para que

acontecesse eram os seus amigos.

— Acho que o jogo vai começar — disse Dalton, olhando os jogadores

entrando no campo.

— Vai, Gabriel! — gritava Dorah de pé, chamando a atenção de todas as

pessoas.

Natalia ficou vermelha e constrangida pela atitude de sua mãe. Ao ver

aquela situação, Paul começou a rir.

— Fica tranquila, mãe é tudo igual. A minha fazia isso quando eu jogava

também. — Paul olhou para Natalie e tentou acalmá-la com aquelas palavras.

— É difícil ficar tranquila quando sua inimiga particular está reparando nessa

cena e rindo de você, e não da sua mãe. — Natalie direcionou seu olhar para

Lily, que estava sentada perto deles.

— É só você agir normalmente que ela não pega no seu pé — aconselhou

Paul, deixando Natalie mais tranquila.

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O jogo estava começando e o time da escola, como sempre, entrou

acompanhado das torcedoras oficiais. Aquele era um costume que lembrava

muito o tempo de escola de Natalie, com todas aquelas garotas vestidas de azul,

usando saias supercurtas. É claro que ela estava se lembrando dos momentos

em que brigava com Kelly, porque a amiga queria que Natalie entrasse para a

equipe e ela nunca quis participar. A garota sempre gostou mais da equipe de

teatro, apesar de nunca ter encenado nada, ficando encarregada da parte

criativa: as histórias e os cenários.

— Gente, que roupa mais estranha. Na minha época, nossas roupas eram

tão lindas. — Todos olharam para Kelly, que, com toda certeza, queria chamar a

atenção com aquele comentário. — O que foi, gente? Estou falando a verdade,

sinto falta daqueles momentos.

— Foi dessa forma que nós nos conhecemos — disse Dalton, dando um

beijo em Kelly.

— Foi dessa forma que a Kelly também quebrou a perna no segundo ano.

— Natalie rindo tentou ver a cara de Kelly com o comentário.

— Meninas, fiquem quietas que o jogo vai começar. — Dorah estava atenta

a cada movimento do seu filho. — Vai, Gabriel! — Nem ele mesmo queria olhar

para a arquibancada, com vergonha do que estava acontecendo.

Assim como as meninas da torcida, os jogadores usavam uniforme azul, e o

outro time do colégio rival, uniforme vermelho. Aquele era um jogo típico de

escola, que valia vaga para o campeonato estadual das escolas, com premiação

para o time e para os destaques do campeonato. Gabriel estava concorrendo ao

posto de artilheiro da temporada.

O jogo já havia iniciado e a torcida estava alvoroçada; parecia que era um

jogo internacional. Os pais, os amigos e os próprios alunos das escolas estavam

lá para torcer pelos seus respectivos times. E, com toda aquela plateia, muitas

pessoas da cidade de Polsher fizeram daquele jogo um entretenimento para a

família toda. Até mesmo o prefeito Joseph Golpher encontrava-se na plateia,

sentado com seus assessores e prestigiando o evento.

A escola era uma das maiores na região, tinha um grande prédio de três

andares, cujas luzes estavam apagadas; no topo dele, no meio da escuridão,

estavam Carsten, Katherine e Victor. Os três observavam atentamente o campo

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onde estava acontecendo o jogo.

— Pois bem, ficar o tempo todo aqui sem fazer nada e não poder chamar a

atenção não era o que eu esperava para uma noite de segunda — resmungou

Victor irritado, andando de um lado para o outro.

— Essas são as ordens que recebemos, Victor, e temos de ficar aqui. —

Katherine também parecia não ter gostado dessa ideia.

— Tantos anjos para serem mortos neste estádio e nós aqui, parados, sem

nem ao menos poder utilizar as nossas habilidades nesses porcos nojentos. —

Victor parecia um adolescente quando comentava dessa forma, ficava todo

animado como se estivesse sedento pela matança.

O local estava infestado de anjos, todos com suas asas brancas abertas em

prontidão. Dessa vez, eles não pareciam estar ali para a proteção das pessoas,

mas, sim, à procura de algo. E não era somente ali, pois, em toda Polsher havia

anjos. Portanto, nenhum dos três poderia expressar qualquer forma de poder.

Era a única forma de serem rastreados pelos anjos. Sem manifestação de suas

habilidades, anjos e demônios podiam fingir que eram humanos com a

permissão dos seus superiores, e apenas serem reconhecidos por seres da

própria natureza.

Os anjos não tinham nenhuma intenção de se esconder dos demônios.

Cada um usava suas habilidades específicas, as quais não protegiam ninguém

em especial, mas eram utilizadas para defender todas aquelas pessoas e a eles

próprios, enquanto continuavam sua busca.

— Eu acho que nós deveríamos invocar o Larxen e provocar uma matança,

acabar com todos esses anjos — Victor continuava com seu desejo de luta e

sangue.

Carsten que estava na escuridão olhando atentamente para um

determinado lugar da arquibancada, resolveu se manifestar:

— Você só pode estar ficando maluco, Victor. O número de anjos é muito

maior do que podemos lidar aqui.

— Olha só quem está com medo, o mestre da caça. — Victor ainda não

tinha engolido aquela história de Carsten levar os créditos pela caçada do dia

anterior. — Você sozinho conseguiu vinte ontem. O que seriam uns trinta anjos

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hoje, já que estamos em quatro?

— Ontem eu consegui vinte, mas não estava sozinho. — Katherine olhou

rapidamente para Carsten, espantada com a declaração do rapaz. — Eu estava

com Larxen. — Naquele momento, o grande animal negro apareceu do lado de

Carsten, mas não se parecia mais com um pequeno gato preto. Dessa vez,

transformara-se numa pantera, cujo tamanho era de um grande tigre.

— Como assim?! Você disse que estava sozinho — Victor parecia

inconformado. — Você teve a ajuda de Larxen e levou todo o crédito sozinho?

Eu não posso acreditar nisso. Aliás, o Larxen foi treinado por mim e deveria

estar me ajudando.

— Calma, Victor. Você, cada vez se mostra mais infantil. — Carsten

começou a andar, e para provocar mais raiva em Victor, o animal o

acompanhava. — Larxen não é um animal de estimação, ele tem vontade

própria. Só que ontem ele veio ao comando do mestre; a ocasião era propícia e

ele foi enviado. Não entendo por que a raiva. Além do mais, você sabe que eu

sou rápido o suficiente para estar em vários lugares em poucos minutos.

Vendo que Victor estava a ponto de voar em cima de Carsten e usar

qualquer tipo de poder, Katherine colocou sua mão no ombro dele para tentar

acalmá-lo.

— Relaxa, Victor, controle sua raiva — disse ela, dando um pequeno

apertão no ombro dele. — Você sabe que Carsten não tentaria nada hoje.

— Do que você está falando, Katherine? — Carsten olhou para ela bem

sério.

— De uma olhada para aquele local na segunda fileira. — Katherine

apontou para o lugar onde Natalie estava, ela queria ver a reação do demônio.

— Você já está sendo ridícula — Irritado, disse Carsten tentando evitar o

assunto.

Por alguns segundos os três ficaram em silêncio, mas Carsten logo mudou

sua fisionomia e disse:

— Será que nenhum de vocês sentiu esse poder forte? Estão se

preocupando com outras coisas e deixaram isso passar? — Pela expressão de

curiosidade dos dois, eles não tinham sentido nada, até que Carsten tivesse dito

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aquilo. — Tem um arcanjo aqui também, e ele está disfarçado no meio daquelas

pessoas. Se tentarmos algo, além de contrariar o mestre, seremos mortos em

segundos.

Naquele momento, Victor se acalmou e Katherine expressou medo. Aquele

assunto incomodava muito eles.

Quando o assunto era de maior gravidade, os arcanjos precisavam se

misturar com as pessoas para resolver seus problemas na Terra. Já os anjos

não tinham a permissão de serem vistos por humanos, nem quando suas asas

estavam escondidas.

Victor e Katherine estavam bem assustados. Sentiam vontade de sair dali

imediatamente, mas, mesmo utilizando seus poderes, nunca localizariam o

arcanjo, pois este, quando disfarçado de humano, tinha seus poderes

escondidos. Victor e Katherine poderiam morrer em segundos. Os demônios

eram facilmente percebidos por um arcanjo, mesmo quando não tivessem

demonstrando poder. Porém, naquele momento, o arcanjo não queria provocar

uma batalha. Os humanos poderiam sofrer com aquilo, havia muita gente no

campo.

— Ele está liberando pequenas quantidades de energia para nos

amedrontar — Comentou Carsten. — Por isso podemos senti-lo.

— Por que ele não nos atacou ainda? — perguntou Katherine com a voz

tremula.

— Talvez ele não queira iniciar uma batalha, e eu acho que nem nós

mesmos queremos isso, não é? — Carsten parecia que não estava disposto a

enfrentar nenhum tipo de situação naquele momento. — Acho melhor irmos

embora.

— Teremos de ser bem rápidos, ou seremos mortos — disse Victor, olhando

para o céu.

Quando uma espécie de portal se abriu no céu, símbolos roxos se

formaram, e o mesmo som ouvido na pequena fazenda pôde ser escutado

naquele local. Os demônios tinham poucos segundos para sair de lá, pois

sabiam que aquilo chamaria a atenção dos anjos. Os dois rapazes tiraram suas

camisetas, e a garota despiu apenas a jaqueta que estava usando, pois sua

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blusa por baixo deixava suas costas livres. Então, os três abriram suas

majestosas asas negras tão macias e igualmente majestosas, como a dos anjos,

apenas a cor as diferenciava. Essa era uma das poucas vezes em que Carsten

abria suas asas.

Em um movimento rápido, os três partiram para dentro do portal, que se

fechou rapidamente. Larxen também não estava mais ali. Apesar de não ter

entrado no portal, o animal desapareceu do prédio no mesmo momento.

Quando viram o portal, os anjos ficaram em posição de ataque, mas, após

receberem um sinal do arcanjo que estava no local, não se movimentaram. Este

emitiu um tipo de sinal sem chamar a atenção do público, que estava vibrando

com o placar do jogo: dois a um para o time da casa.

A partida continuou se desenrolando normalmente e o time da casa

conseguiu vencer com o placar final de três a um. Todos estavam bem

contentes e foram para casa naquela noite que parecia terminar tranquila, visto

que a cidade de Polsher estava protegida pelas forças divinas.

Natalie não via a hora de chegar em casa, dormir e acordar para aproveitar

o grande dia que estava por vir. Afinal, não é toda hora que uma garota faz

dezoito anos. Claro, ela estava ansiosa pelos presentes e pela comemoração

que aconteceria à noite. A garota também pretendia dormir em sua cama, e não

no chão desta vez.

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Capítulo 7

AS VOZES dos vizinhos de Natalie já a tinham acordado na manhã daquela

terça-feira, mas ela ainda estava na sua cama; sem coragem de se levantar.

Como não escutava nenhum tipo de som, imaginava que sua mãe já havia saído

para o trabalho e que seu irmão também já estava na escola. O jogo do dia

anterior daria início ao novo ano letivo para Gabriel. Com todo aquele silêncio,

não tinha por que ela sair da cama, já que parecia tão confortável, e ela podia

escutar as gotas de chuva caindo na sua janela. Por um lado, ficou chateada,

pois seu aniversário seria em um dia chuvoso.

Quando ela resolveu levantar de vez, sentou na beirada da cama e se

espreguiçou. A tranquilidade e paz daquele momento foram quebradas por um

som de algo se quebrando na sala. Assustada, Natalie foi para a porta do seu

quarto e colocou a cabeça para fora. Chamou pelo irmão, mas não teve

nenhuma resposta. Curiosa como era, saiu do quarto e desceu lentamente as

escadas, mas ao chegar na sala não encontrou nada, apenas o vaso indiano de

que sua mãe tanto gostava quebrado. Como eles não tinham nenhum animal de

estimação e as janelas da casa estavam todas fechadas, ela continuava

preocupada.

Natalie foi em direção à mesinha da sala para pegar o telefone. Naquele

momento, não sabia se ligava para sua mãe ou para a polícia; até pensou em

abrir a porta e sair correndo, mas o silêncio da casa era tanto, que ela não tinha

certeza se realmente alguém estava lá. Quando pegou o telefone, a linha estava

muda e uma voz masculina quebrou o silêncio dizendo:

— Acho que você não vai querer fazer isso. — Natalie não conseguia virar,

tinha medo de olhar e ver quem estava atrás dela. — Largue esse telefone, e eu

não vou te machucar.

Natalie não sabia o que fazer. Desconhecia com quem estava lidando, se

com um bandido ou com um estuprador. Seu corpo estava congelado, por um

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instante ela sentiu o suor frio correndo pelo seu corpo.

Ao se lembrar do rapaz da noite em que desmaiou, sua espinha congelou

de cima a baixo. Se ela já estava nervosa antes, o seu nervosismo triplicou, e o

frio consumia seu corpo. Sua visão começou a ficar embaçada, Natalie começou

a perder os sentidos e, mais uma vez, estava no chão.

Bem de longe, uma suave música estava tocando; segundo a segundo o

som aumentava, e se tornava algo familiar para a garota. Seus olhos

começavam a se abrir e, aos poucos, a memória da voz que ela havia escutado

voltava à sua cabeça. Ao abrir completamente os olhos, ela reconheceu o teto e

sentiu a maciez da sua cama. Natalie não estava no chão da sala, e aquele

barulho era seu telefone tocando. Ainda meio confusa, ela atendeu ao celular.

— Parabéns, meu anjo, mamãe te ama muito — Dorah dizia toda animada

acordando a filha. — Acordou agora? Está dormindo demais.

— Oi, mãe, obrigada por se lembrar do aniversário — Natalie agradeceu à

mãe, mas sua cabeça não parava de doer pelo ocorrido. Será que ela tinha

sonhado? Será que era verdade? Mas, se fosse verdade, por que estaria na

cama?

— Hoje não vou conseguir almoçar com você, querida. Mas deixei dinheiro

com o Gabriel para comprar o almoço. Ele só tem as duas primeiras aulas, vai

chegar mais cedo.

— Mãe, eu não vou almoçar em casa. Kelly me chamou para almoçar com

ela e o senhor Golpher hoje. — Natalie colocou a mão no seu pescoço, que

estava um pouco dolorido.

— Tudo bem, vou mandar uma mensagem para ele. Meu bebê se tornou

finalmente uma mulher, dezoito anos, como o tempo passa — Dorah parou de

falar por um momento, parecia estar pensando em alguma coisa. — Não, na

verdade ainda não. Você só vai completar dezoito anos às onze da noite, que foi

o horário em que você nasceu. — Dorah deu uma risada suave. — Você foi o

último bebê a nascer naquela noite, deu muito trabalho para os médicos.

Natalie deu uma risada sem graça, em seguida dizendo:

— Fique tranquila, mãe, sua filha sempre foi uma garota comportada, não

vou mudar por conta da idade.

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— Tudo bem, querida, à noite eu levo seu presente e as coisas para a

festinha. Quantas pessoas serão? — Dorah perguntou por perguntar, porque a

essa altura já tinha tudo encomendado, por isso encerrou a conversa sem nem

ao menos esperar a resposta da filha. — Bom, meu amor, preciso voltar ao

trabalho. Um beijo e feliz aniversário novamente.

Natalie desligou o telefone, um pouco mais confusa do que já estava.

No dia de seu aniversário, o telefone celular não parava de tocar. Depois de

Dorah, ela recebeu o telefonema de Kelly, Dalton, entre outros amigos não tão

próximos; outros preferiram mandar recados nas redes sociais. Ela recebeu

também uma discreta mensagem de Paul pelo aniversário.

Mais ou menos uma hora se passou, e até aquela altura ela já tinha se

arrumado. Estava no computador lendo suas mensagens de aniversário quando

escutou a porta da sala se abrindo. Pelo horário, era Gabriel que tinha chegado.

O rapaz chegou, foi para o quarto direto, deixou sua mochila na cama e foi

falar com a irmã. Ele segurava um troféu nas mãos, queria mostrar para ela que

havia ganhado um prêmio.

— Parabéns — disse Gabriel, encostando-se à porta.

— Obrigada. Como você conseguiu, pela primeira vez, se lembrar do meu

aniversário? — perguntou Natalie, surpresa com o irmão.

— Na verdade, eu não tinha lembrado. — Gabriel cruzou seus braços. —

Estou te cumprimentando porque você conseguiu a façanha de quebrar o vazo

indiano da mamãe e ela vai ficar bem feliz quando chegar. — disse rindo

daquilo. — De qualquer forma, parabéns pelo seu aniversário.

— Pelo visto, você ganhou o troféu de melhor jogador, né? — Natalie olhava

o irmão segurando aquele troféu com muito orgulho.

— Pois é. Alguém tem de vencer nesta família para dar orgulho para

mamãe.

— Gabriel, por que você é tão petulante comigo? Vai pro seu quarto e me

deixa sozinha aqui.

Quando Gabriel foi para o seu quarto, Natalie não parou de pensar no que

tinha acontecido. Não era um sonho, foi real. A garota não conseguia inventar

uma desculpa para o vaso, porque nem mesmo ela sabia o que acontecera. E

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por que ela estava na cama? E quem era aquele misterioso rapaz atrás dela?

Natalie tentou juntar as peças. Ela queria se lembrar da voz do misterioso

rapaz do posto para comparar com a do homem daquela manhã, mas poucos

fragmentos restavam na sua cabeça. Parecia que, com o passar do tempo, ela

estava se esquecendo de tudo aquilo. Natalie tentava lembrar-se do rosto do

rapaz, mas também não conseguia. Era como se ela estivesse perdendo tais

memórias.

Seus pensamentos foram bloqueados quando seu celular recebeu uma

mensagem chamando atenção da garota pra outro lugar. Natalie viu que era de

Kelly:

O KENEDY ESTÁ PASSANDO AÍ EM CINCO MINUTOS. ESPERO QUE ESTEJA

PRONTA. VOU FICAR ESPERANDO VOCÊ AQUI. TEMOS MUITAS COISAS PARA

CONVERSAR, AMIGA. TEM ALGUÉM REALMENTE APAIXONADO POR VOCÊ.

Natalie terminou de se arrumar, dessa vez um pouco melhor, pois se tratava

da casa e do pai de Kelly, nem deu muita bola pela parte do apaixonado, pois já

sabia que se tratava de Paul. Desceu as escadas e avisou Gabriel que estava

indo para casa da Kelly.

— Gabriel, não limpei a sujeira do vaso, mas, quando chegar, eu limpo —

gritou ela próximo à porta. — Volto antes da mamãe.

Gabriel mal esperou a irmã sair e enviou uma mensagem para a mãe,

avisando sobre o que tinha acontecido.

******

Quando chegou à casa de Kelly, Natalie deu de cara com a cadela da

amiga. Toda animada, a shih-tzu, que era um animal de porte pequeno e bem

peludo, correu em direção à Natalie, pulando nas pernas da garota. De repente,

uma voz veio das escadas:

— Monstra, deixe a monstrinha em paz.

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— Sabe, Kelly, eu realmente fiquei confusa se você estava falando com a

sua cachorra ou comigo nesse momento — disse Natalie.

— Você sabe, amiga, você é minha monstrinha. E a minha cadela é a

Monstra. Não tem como errar.

Natalie continuou fazendo cara de confusa, pois, não importava o nome da

cadela, ela se sentia meio estranha sabendo que tinha um apelido com o mesmo

nome do animal. Sempre que fosse chamada de monstrinha, ela se lembraria

daquela cadelinha com laços rosa na cabeça, abanando o rabo para ela, com

cara de felicidade.

Aquele pensamento estranho foi interrompido pelo forte abraço de Kelly,

cumprimentando-a pelo aniversário.

— Feliz aniversário, amiga, que os anjos te abençoem muito, com muita

paz, saúde e muita felicidade, hoje e sempre. — Aquele abraço apertado era o

mais sincero possível. Ambas tinham um carinho muito especial uma pela outra.

— Muito obrigada, fico muito feliz em saber que eu tenho uma amiga

especial como você.

— Não precisa agradecer. — Kelly puxou Natalie pelo braço, querendo levar

a amiga para o quarto dela. — Vamos, tenho que te dar meu presente.

— Calma, não precisa arrancar meu braço, já estou indo. — Natalie ficou

curiosa para saber o que a amiga tinha comprado. Afinal, os únicos presentes

que ela esperava naquele ano eram os da sua amiga e de sua mãe.

— Daqui a pouco serviremos o almoço. Meu pai ainda não chegou da

prefeitura, mas acho que hoje ele não vai se atrasar, me disse que não tinha

nenhuma reunião agendada.

As duas amigas entraram no quarto de Kelly, que já chamava a atenção

pelo grande número de coisas que possuía no interior. Uma enorme cama de

casal, vários espelhos pelo quarto, uma mesa com todos os perfumes,

maquiagens e o notebook rosa de última geração. Naquele momento, Natalie

reparou nos três presentes embrulhados em cima da cama. Natalie pensou se

todos aqueles seriam seus.

— Pronto. Aqui estão seus presentes. Tudo bem que eu comprei os três,

mas fica sendo um meu, outro do Dalton e o terceiro do meu pai. Se bem que

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ele pagou por todos. — Kelly riu, jogando seus longos cabelos loiros para trás.

— Qual você vai abrir primeiro? Apesar de eu ter comprado, escolhi coisas

baseadas nas personalidades do meu pai e do Dalton.

Natalie ficou surpresa, ela nunca teria pensado nas personalidades dos

outros para comprar presente para outra pessoa. Mas, vindo de Kelly, isso não

era novidade, afinal, o que ela poderia fazer o dia todo, a não ser ocupar sua

cabeça com essas coisas.

— Pode ser o do seu pai. — Natalie pegou nas mãos o embrulho azul; a

caixa não era muito grande. Ela tentou imaginar o que Kelly teria comprado de

acordo com a personalidade do senhor Golpher, mas era quase impossível,

porque não tinha tanto contato com ele. Apenas o conhecia como prefeito da

cidade.

— Que lindo, Kelly, eu adorei. — Natalie segurava nas mãos uma blusa

preta e um par de calças jeans, do jeito que ela gostava. De qualquer forma, não

conseguiu entender o que tinha a ver as calças com a personalidade do pai da

amiga. Mas, pouco importava aquilo, ela estava curiosa para abrir os outros

presentes.

Quando abriu o embrulho vermelho, que representava Dalton, ela deparou

com lindos sapatos de salto, que, aliás, eram bem altos, o que Natalie não

costumava usar. Mas, mesmo assim, ela gostou muito deles.

— Você entendeu, né, amiga? — disse Kelly, pegando um dos sapatos da

caixa. — Dalton gosta de mulherão, assim como eu, e esses sapatos vão te

ajudar a se tornar um. Principalmente no sábado, quando você conhecer o

amigo dele, seu futuro chefe.

Natalie apenas riu, e ficou se imaginando usar aquele salto. Mas ela teria

até sábado para praticar e, com certeza, se acostumar com a dor em seus pés.

Por último, faltou o presente de Kelly, e com certeza seria o melhor de

todos. Ela já imaginava não ser algo barato, visto que os presentes dos outros

anos foram um celular, o relógio caríssimo que ela trouxe do exterior, entre

outros objetos de valor elevado.

Quando Natalie abriu a menor caixa, lá estava o último presente. Um par de

brincos. Ambos ao mesmo tempo eram delicados, mas pareciam caríssimos ao

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olhar de qualquer pessoa. Ela ficou encantada, sem saber como agradecer à

amiga por todos aqueles presentes e pelo carinho que recebera naquele dia.

Com todo o cuidado que Natalie tinha, ela guardou os presentes nas devidas

caixas e novamente deu um abraço e um beijo na amiga.

— Me conta sobre a festa de hoje à noite: quem você resolveu chamar? —

perguntou Kelly toda animada para saber quem seriam as pessoas convidadas.

Natalie começou a contar as pessoas. Seria uma pequena reunião entre

amigos. Kelly, Dalton, a mãe, o irmão e Paul, que por tanta insistência da amiga

entrou na lista. Na verdade, a lista não era segredo para ninguém. O meio de

Natalie sempre foi o mesmo; ela tinha poucos amigos, era uma garota mais

reservada, mas desses poucos que tinha ela gostava e os tratava com muito

carinho.

Mandou uma mensagem para a mãe, dizendo o número de convidados.

Alguns minutos depois, ela recebeu outra não muito agradável. Dorah já sabia

do vaso, e parecia estar bem chateada com a situação. Aquilo fez Natalie se

lembrar do que tinha acontecido, e ela resolveu contar para Kelly da misteriosa

voz que ouvira:

— Você acha que essa voz é a mesma do menino do posto? — perguntou

Kelly, que já achava toda aquela história bizarra, mas, ao mesmo tempo,

interessante.

— Que menino do posto, Kelly? Do que você está falando? — Depois

daquela segunda-feira turbulenta, Natalie parecia não se lembrar mais dos

acontecimentos.

— Pronto. Agora você me diz que não se lembra de nada. O menino do

posto, a morte do anjo, ele na sua janela. — Kelly deu um grande suspiro e

olhou pra cara da amiga. — Agora eu tenho plena consciência de que você está

realmente ficando louca.

Natalie colocou a mão na cabeça e sentiu uma forte dor. Alguns flashes dos

acontecimentos vieram rapidamente à sua cabeça, mas ela não conseguia se

lembrar de nada.

— Você está bem? — perguntou Kelly.

— Deve ser o remédio que eu estou tomando. Não se preocupe.

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A conversa das meninas foi interrompida pela governanta da casa, que as

havia chamado para o almoço. Elas desceram e deram de cara com o prefeito.

Ele beijou a filha e cumprimentou Natalie, que agradeceu a ele pelos presentes.

O almoço foi tranquilo. O prefeito apenas falava de negócios, assuntos que

não eram de interesse das meninas, mas que elas eram obrigadas a ouvir. O

senhor Golpher apenas perguntou se elas pretendiam comemorar o aniversário

em outro lugar, e as garotas comentaram sobre o bar. Ele pediu para que elas

tomassem cuidado, pois a cidade estava passando por um caos na segurança, e

algumas coisas o preocupavam ultimamente.

Após o almoço, Natalie continuava preocupada com o vaso de sua mãe, e

foi quando Kelly teve uma brilhante ideia. Dentro do porão da mansão existiam

muitas coisas. Ela pediu para que Kenedy pegasse dois vasos que estavam lá.

Ambos eram indianos, tinham praticamente o mesmo tamanho do vaso de

Dorah. Natalie sabia que não poderia substituir o vaso preferido de sua mãe,

mas pretendia amenizar a situação com os novos objetos.

Depois que Kenedy levou Natalie e os vasos para casa, ela decidiu limpar a

bagunça antes que sua mãe voltasse. Embrulhou os pedaços em jornais e os

colocou em um saco preto. Limpou os vasos novos, empoeirados pelo tempo, e

os colocou em um lugar para que sua mãe chegasse e os visse.

******

A noite estava começando. Dorah já tinha perdoado a filha pelo vaso, pois

havia adorado os novos, para o azar de Gabriel, que tinha provocado aquela

situação chata. Natalie já tomara seu banho e estava de roupa trocada. Como o

jantar seria em casa, ela não colocou nada especial. Como de costume, estava

bem básica, usando calça jeans, uma blusinha e sapatos de salto médio, o que

já era algo diferente para quem não gostava de saltos. Dorah esperava a filha

com o presente nas mãos.

— Mãe o que é isso? Não precisava de nada. Ainda mais depois do que

aconteceu hoje. — Natalie segurou o presente sem jeito.

— Filha, eu já disse que está tudo bem. Não se preocupe, apenas tome

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mais cuidado. Mas abra o presente, espero que você goste.

Natalie abriu o pacote. Dentro dele, um lindo colar de prata e um pingente

com uma pequena pedra preciosa; parecia uma esmeralda, pois seu tom era

verde.

— Mãe, é lindo, eu adorei. — Natalie correu para os braços de Dorah,

dando um forte beijo na mãe.

— Sim, eu sei. Esse foi um presente que eu ganhei quando fiz dezoito anos.

Eu tento todas as vezes me lembrar de quem foi, mas não consigo.

— Mas, mãe, por que você está me dando?

Dorah pegou delicadamente o colar das mãos de Natalie, passou-o por

detrás do pescoço da filha e disse:

— Ficou lindo em você, meu anjo, mandei restaurar, está como novo.

— Muito obrigada, mãe, vou usá-lo no jantar de hoje. — Natalie correu para

o espelho mais próximo para ver como estava o colar em seu corpo.

Logo depois de ganhar o presente, Natalie terminou de arrumar a mesa para

receber seus convidados. Como eram poucos, e o mesmo ciclo de amigos,

chegaram todos juntos. Ela foi surpreendida com o presente de Paul, que lhe

trouxe rosas vermelhas. Naquele dia ela parecia estar bem feliz com todos os

amigos. Dorah, mesmo não entendendo da maioria dos assuntos, estava

conversando com todos, tentando se enturmar.

— Estou sentindo falta de alguma coisa aqui nesta mesa. — Kelly olhava

por todos os cantos da mesa, em cima da pia, no balcão da cozinha, para ver se

encontrava o que ela procurava.

— Olha só, eu quase me esqueci. — Dorah se levantou e foi até a geladeira,

e trouxe uma grande jarra de suco de laranja. — É um aniversário, mas eu não

poderia deixar de fazer o meu suco.

— Mãe, às vezes eu fico impressionada, e me pergunto que horas você

espreme essas laranjas — comentou Natalie segurando a jarra de suco.

— Sou uma mulher que faz coisas que até Deus duvida. — Todos riram do

comentário de Dorah.

— O que tem de tão especial nesse suco? — perguntou Paul.

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— Experimente um gole que você vai saber — respondeu Dalton.

— Claro que não é apenas um suco normal, Paul. Tem um pequeno

segredo nele, que eu não conto para ninguém. — Dorah estava toda orgulhosa

por receber tantos elogios.

— Então, vamos cantar parabéns para o suco de laranja — disse Gabriel,

fazendo uma brincadeira sadia, o que era impressionante, já que o garoto

adorava fazer piadas de mau gosto.

— Monstrinha, agora que você já tem dezoito anos, qual é a primeira coisa

que quer fazer? — perguntou Kelly.

— Beijar na boca — interrompeu Gabriel, que estava demorando para soltar

uma de suas piadas.

Dalton e Kelly olharam para a cara de Paul. Quando o rapaz percebeu que

Natalie também o olhava, não soube para onde olhar. O que era para ser

embaraçoso para Natalie se tornou pior para o rapaz.

Dorah mais uma vez chamou a atenção de Gabriel pela brincadeira, mas o

ambiente era de festa, e aquilo não conseguiu estragar o clima. Dalton tentava

contar piadas e Kelly nunca entendia. Todos se divertiam muito enquanto

jantavam.

Pareciam estar satisfeitos, e, claro, muita comida tinha sobrado. Mas ainda

havia a grande sobremesa, um delicioso bolo de morango, com trufas de

chocolate branco, o favorito de Natalie. A expressão de todos não foi das

melhores, porque ninguém parecia aguentar mais nada. Mas, encarando bem

aquele suculento bolo, todos pediram por um pedaço. Alguns, como Dalton,

pediram por mais um. Era incrível como ele comia e não engordava. O garoto

dizia que seu treino dependia de uma alimentação forte, e ninguém duvidava

daquilo, depois de suas refeições.

Já estava tarde, e todos decidiram ir embora. A casa, que estava com todo

aquele movimento, ficou silenciosa novamente, como em todas as noites.

Gabriel estava no seu quarto, com os seus fones de ouvido. Dorah aproveitou

para tomar um banho antes de dormir, e logo foi para seu quarto, onde pegou no

sono rapidamente.

Natalie decidiu ir para o quarto e ligar o computador, para ver seus recados

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de aniversários. Faltavam quinze minutos para as onze da noite. Dentre muitos

recados, de gente que havia muito tempo ela não via e outros que ela nem ao

menos conhecia pessoalmente, um deles chamou atenção. Era de um antigo

amigo de escola, que Natalie não via fazia muito tempo. Eles eram praticamente

irmãos na escola. Kelly, por sua vez, morria de ciúmes da amizade dos dois,

pois ela sempre achava que eles eram namorados. O recado era simples, mas

bem carinhoso.

PARABÉNS, NAT. COMO EU QUERIA ESTAR AÍ PARA TE DAR UM GRANDE

ABRAÇO. SINTO MUITA SAUDADE DOS NOSSOS PAPOS. PENA EU ESTAR TÃO

OCUPADO EM JANOVE. ESPERO QUE VOCÊ ESTEJA BEM, MANDE NOTÍCIAS.

BEIJOS, ROCKENBACH.

Era assim que Natalie chamava Andrew. Todos os amigos da época

de escola também. Eles achavam um sobrenome forte, algo que não

tinha nem um pouco a ver com aparência daquele garoto magro. De

qualquer forma, Natalie estava bem feliz pela mensagem. Por motivos

familiares, Andrew teve de se mudar para Janove, a capital a duzentos

quilômetros de Polsher. Natalie não demorou a responder ao amigo. Mas,

como estava cansada pelo dia, foi bem breve na resposta.

ROCKENBACH, QUE SAUDADE! MUITO OBRIGADA. MAS AINDA QUERO UMA

VISITA. NEM É TÃO LONGE PARA INVENTAR UMA DESCULPA. BEIJOS, NATALIE.

Assim que respondeu à mensagem, Natalie desligou o computador e foi

para cama. O relógio marcava dois minutos para as onze.

Há dezoito anos, Natalie nascia no hospital, uma criança saudável e forte,

que naquele dia era o maior orgulho de Laurence, aquele pai sempre presente

em todos os momentos da vida da filha. Dorah sabia que aquela criança era

muito especial. Dezoito anos depois do nascimento, era Natalie quem começaria

a entender o significado da palavra ―especial‖.

No momento em que Natalie pegava no sono, já era uma garota de dezoito

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anos. As responsabilidades começariam a aparecer mais cedo ou mais tarde,

afinal, ela não era mais uma menina, estava se tornando uma mulher. Mas, por

suas características, não devia estar muito preocupada com tantas coisas assim.

Lembrava-se do dia que teve, dos presentes, dos amigos, do recado que

acabara de receber. Tudo tinha sido perfeito e o que ela queria naquele

momento era apenas dormir. Natalie fechou seus olhos e lentamente foi ficando

com sono.

— Natalie...

Seu descanso foi interrompido por aquele chamado, a garota sabia que não

era um sonho, pois não tinha dormindo ainda. Natalie não sabia quem a estava

chamando, a voz parecia de alguém familiar, mas ela não conseguia identificar

de quem era. Depois o silêncio voltou, e ela imaginou ter ouvido coisas.

— Está muito escuro, mamãe. Cadê você? — A voz parecia vir do lado de

fora; soava como de uma criança pequena. Natalie, porém, não quis levantar-se

da cama, pois não a escutou mais.

— Eu juro, eu juro, eu não fiz nada... — Mais uma voz que vinha de fora.

— Você precisa me ajudar, eu preciso voltar... — Outra voz.

— Este lugar é lindo, mas eu quero ver a minha família...

Natalie não conseguia entender de onde vinham todas aquelas vozes.

Pareciam estar do lado de fora, mas, ao mesmo tempo, vinham do lado de

dentro da casa. Ela estava ficando assustada. Levantou-se da cama e foi para a

janela. A rua estava vazia e tranquila, não havia ninguém, algo impossível para o

número de vozes diferentes que ela ouviu. Apenas a primeira parecia familiar,

entretanto. Sem escutar mais nada, Natalie continuava de pé, olhando para a

rua. De repente, o som da primeira voz foi novamente ouvido, e parecia estar

bem do lado da garota:

— Natalie, minha filha...

— Pai? — Natalie reconheceu a voz misteriosa e se virou rapidamente, mas

não havia ninguém no quarto e as vozes se calaram.

Por alguns minutos, Natalie sentou-se na beirada da cama, pensando ter

ouvido claramente aquelas vozes. Dessa vez, ela tinha certeza: não se tratava

dos efeitos dos remédios, era realmente a voz de seu pai. Ela não sentiu

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nenhum medo, pelo contrário, parecia se sentir segura. Ele era uma pessoa

muito querida e que fazia tanta falta para ela. Seus olhos se encheram de

lágrimas, que aos poucos foram escorrendo por seu rosto. A saudade de alguém

como Laurence era visível no rosto da garota. Seu coração estava apertado, e

aquela voz, que há cinco anos não era ouvida, parecia viva nas lembranças

dela. Depois daquele breve momento, a única coisa que Natalie sentiu foi um

enorme vazio.

Ela se deitou novamente na cama e não se preocupou com mais nada.

Apesar daquele sentimento ruim, sentiu-se segura. Sabia que seu pai não

estava lá, mas tinha certeza de que ele estava olhando para ela, onde quer que

estivesse.

Naquela noite, Natalie teve um sono profundo. Durante toda a noite,

Laurence Zeniek visitou seus sonhos.

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Capítulo 8

AVALON, esse era o nome do bar que mudaria a vida de Natalie naquele

dia. Mas, enquanto a noite não chegava, a garota parecia tranquila.

Durante toda a semana, Natalie pensou em seu pai. Desde sua morte, ele

não era tão lembrado. Natalie pediu para Dorah a levar ao cemitério, pois queria

levar flores para o pai. A mãe achou linda a atitude da filha, mas ao mesmo

tempo estranha, já que durante os cinco anos Natalie não foi uma vez sequer ao

cemitério. Mesmo perguntando qual o motivo daquela ação, Dorah continuou

sem resposta, porque Natalie não contou absolutamente nada.

Na quarta-feira, Natalie parou com a medicação do Doutor Reik, pois as

vozes continuavam e ela achava que o remédio poderia estar causando algum

tipo de alucinação. O medo ainda existia, mas começou a dar lugar à

curiosidade. Ela precisava lidar com aquele problema sozinha.

Na noite seguinte, Natalie ouviu algumas vozes, e de nenhuma delas teve

medo. Por mais que não entendesse como aquilo estava acontecendo. Não se

importava, pois o que mais queria era ouvir novamente seu pai. Porém ele não

apareceu novamente.

As vozes diziam coisas diferentes a cada noite: algumas pareciam transmitir

tranquilidade, outras, desespero. Era como se aquelas pessoas não estivessem

no mesmo plano que ela, pareciam espíritos e tentavam transmitir algum recado,

alguma mensagem para quem pudesse ouvi-los. Duravam poucos minutos e

depois paravam.

Na noite de sexta-feira, após um longo dia, Natalie estava em seu quarto

descansando quando as vozes começaram novamente.

— Eu fiz tudo errado, eles o pegaram por culpa minha. — A garota

permanecia com os olhos fechados, apenas escutando aquelas vozes.

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Era a quarta noite que aquilo acontecia, sempre no mesmo horário. Natalie

já estava se acostumando com a ideia de ouvir aquelas pessoas. Parecia que,

em todas as noites, as vozes eram aleatórias, como se ela não conseguisse

escutar apenas uma pessoa falando. Mas ela continuava sem entender de onde

elas vinham e quem eram aquelas pessoas. Quando escutou seu pai pela

primeira vez, imaginou ouvir a voz dos espíritos, mas não compreendia por que

alguns deles pediam por ajuda, e quando ela tentava se comunicar, não

respondiam de volta.

— Se você me ajudar, prometo que te recompenso. — Algumas pareciam

querer algo dela; ofereciam coisas em troca da sua ajuda.

Natalie achava aquilo estranho, mas após tantos acontecimentos incomuns

em sua vida nos últimos dias, ela começou a encarar tudo de uma maneira

diferente. Prometeu para ela mesma que não contaria nada a respeito do que

estava acontecendo para ninguém, por enquanto.

Na manhã seguinte, Dorah estava de folga, e resolveu levar a filha ao

cemitério. As duas foram logo cedo, enquanto Gabriel continuava dormindo. No

caminho, pararam em uma floricultura e Natalie comprou um vaso de flores

brancas, aquela cor representava paz. Ela não sabia o que significava ter

escutado a voz de seu pai, mas queria desejar toda a paz do mundo para ele,

onde quer que estivesse.

No cemitério, Natalie não sabia como chegar ao túmulo do pai, então seguiu

Dorah. Ela percebeu que a aparência da mãe tinha mudado. Dorah nunca tinha

entrado naquele lugar com um de seus filhos, e ver aquele gesto nobre da filha a

deixou muito emocionada. Ao chegarem ao local, Natalie colocou a flor ao lado

da lápide. A foto de Laurence Zeniek estava colada. Ele era um homem muito

charmoso, e parecia estar muito feliz nela. Os olhos de Dorah encheram-se de

lágrimas.

— Tenho muita saudade dele, minha filha — disse Dorah abraçando a filha.

— Mãe, não fica triste. — Natalie abraçou a mãe, mas segurou sua emoção.

— Tenho certeza de que o lugar em que ele está é muito melhor do que aqui.

— Eu sei disso, meu anjo. — Dorah enxugou as lágrimas com um lenço de

papel que tinha na bolsa. — Por que você quis fazer isso, depois de cinco anos?

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Natalie ficou muda por um tempo. Ela tinha de pensar o mais rápido

possível em uma resposta, pois, apesar de não querer mentir para a mãe, falar o

que estava acontecendo só ia preocupar mais a cabeça de Dorah, que, com

certeza, ia achar que a filha estaria sofrendo de algum problema psicológico por

conta do acontecido da semana passada.

Depois de passar alguns minutos na frente do túmulo de Laurence, mãe e

filha caminharam para saída do cemitério de mãos dadas. Quando elas

chegaram à porta, viraram para fazer o sinal da cruz. E em um movimento

rápido, Natalie viu um homem de asas brancas em frente do túmulo de seu pai.

Suas asas pareciam maiores que as do anjo que havia morrido no posto de

gasolina. Dorah continuou andando e chamou pela filha. Natalie olhou para a

mãe, mas ao voltar seus olhos para o cemitério, não havia mais ninguém por lá.

A garota ficou confusa por um instante, cada vez mais duvidava de seus olhos,

pois não sabia mais o que era verdade ou mentira.

Ambas entraram no carro e voltaram para casa, para preparar o almoço de

sábado.

******

Natalie estava tomando banho, porque Kelly e Dalton iriam passar na casa

dela mais à noite, para todos comemorarem seu aniversário no bar, e, claro, a

fim de que ela pudesse conhecer seu possível chefe.

Natalie estava um pouco nervosa, era a primeira vez em que comemorava

seu aniversário em um bar. Ela não era do tipo de garota que usava uma

identidade falsa, ou algo do tipo, pra entrar em um bar. Sempre fora mais

tranquila em relação a isso. Preferia programas caseiros ou festas nas casas

dos amigos. O nervosismo era tanto, que ela nem sabia o que vestir. Foi quando

se lembrou dos conselhos de Kelly sobre as roupas, o cabelo e a maquiagem,

ela não tinha como escapar, mesmo estando completamente perdida.

Natalie se lembrou dos presentes que Kelly tinha lhe dado, secou seu

cabelo, vestiu a blusa e a calça, foi para o espelho e, pela sua expressão,

parecia não ter gostado muito. Então, decidiu se maquiar para dar uma

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aparência melhor. Ela usou algo um pouco mais forte, principalmente nos lábios,

já que raramente passava um batom; sempre usava brilho apenas para dizer

que usava algo. Por último, decidiu colocar os brincos, que eram prata,

combinando com a corrente que, desde o dia em que ganhara, não tinha mais

tirado do pescoço.

Antes de sair do quarto, Natalie colocou um sapato baixo que ela sempre

usava. Quando estava apagando as luzes, lembrou-se do perfume e voltou.

Assim que terminou de se arrumar, foi para o espelho novamente, a fim de se

dar uma última olhada e ajeitar o cabelo. Mas parecia que alguma coisa ainda

não estava certa. Natalie escutou a buzina do carro de Dalton e apressou-se

para descer, mas em um breve momento se lembrou de outro presente que

tinha ganhado de Kelly.

Dentro do carro, Kelly já estava com o celular na mão para ligar para amiga.

— Calma, minha linda, ela já deve estar descendo. — Dalton olhou para a

namorada, e depois para Paul, que estava no banco de trás, dando-lhe uma

piscada. — Lembre-se de que você também é mulher.

— Eu sei, mas a Natalie não gosta muito de se...

A fala de Kelly foi interrompida, quando a porta da casa de Natalie se abriu.

Ela estava linda. Seus cabelos voavam com a brisa da noite. Ela estava usando

o sapato de salto que tinha ganhando de presente, e, para quem não tinha muito

costume, ela estava se saindo bem. O sapato tinha melhorado a aparência do

visual. Natalie não parecia mais uma menina, ela era uma verdadeira mulher.

Queria que sua mãe a tivesse visto daquela forma, mas Dorah estava em uma

reunião de moradores do bairro, que estavam preocupados com a violência de

Polsher.

— Meu Deus do céu, a fada madrinha visitou você esta noite ou você

resolveu acordar para a vida? — perguntou Kelly, olhando para o banco de trás,

assim que Natalie entrou.

— Boa noite — disse Natalie fechando a porta. — Acho que já podemos ir

para o bar, estou ansiosa para comemorar e conhecer meu primeiro emprego.

Natalie disse aquelas palavras com muita confiança. Paul, que já tinha uma

queda por ela, não conseguia parar de olhar para aquele mulherão. Para

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complementar, Dalton disse:

— Já entendi tudo. Como vocês mulheres são, né? — Kelly olhou para a

cara do namorado, querendo entender o que ele realmente queria dizer. — Toda

arrumada, só para garantir o emprego. Dessa forma, qual chefe vai resistir?

Natalie ficou tímida, pois, pelo visto, estava chamando muita atenção. Para

ajudar a amiga, Kelly disse:

— Você está mais do que certa, monstrinha. Tem mais é que ficar linda

mesmo.

— Eu concordo totalmente com a Kelly — disse Paul, que continuava

admirando Natalie.

— Muito obrigada, gente, mas será que podemos ir? — Todos perceberam

que o carro não tinha saído do lugar ainda. Dalton resolveu partir para o bar, que

todos na cidade conheciam. Por ser longe do centro e das residências de

Polsher, o som podia ficar alto.

O bar localizava-se na área industrial da cidade, em uma espécie de casa,

que possivelmente fora usada para algum escritório ou algo do tipo. Era uma

estrutura que, vista de fora, parecia comprida. Possuía uma área bem grande

para os carros e uma pequena porta de entrada, onde dois seguranças bem

grandes e fortes ficavam.

Quando o carro de Dalton chegou, já era possível ouvir o som do lugar, um

rock clássico, e dava para ouvir muita gente conversando. Algumas pessoas

estavam do lado de fora, próximo aos carros, bebendo e fumando. Havia fila

para entrar, o que indicava que a casa estava cheia.

Avalon era conhecido por ter as melhores bebidas da cidade. Ninguém

entendia como eles conseguiam uma temperatura tão perfeita para cada bebida,

o que fazia o bar ficar cheio quase todas as noites.

Os quatro desceram do carro. Naquele momento, enquanto placas de luz

iluminavam o nome do bar, Natalie olhou para cima e sentiu que veria muito

aquele lugar durante bastante tempo.

Quando eles entraram na fila, Dalton foi até o início pedindo para chamar

por Jonathan, o dono do bar. O segurança, que parecia conhecer o rapaz, fez

um sinal para que ele esperasse e entrou no bar. Após alguns minutos, ele

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voltou confirmando com a cabeça que eles poderiam entrar. Dalton fez um sinal

para os outros, e todos entraram no bar. Após o segurança revistar as bolsas

das meninas e os bolsos dos rapazes, eles receberam um cartão de

consumação e entraram para o cadastro.

— Vai prestando atenção em tudo o que acontece, para na hora de falar

com o Jonathan você não parecer leiga no assunto, já que você é — disse

Dalton, dando alguns toques para Natalie.

Quando ia chegando a hora da verdade, Natalie começou a ficar nervosa, e

olhava para todos os lados, avalizando cada canto do local.

— Fica tranquila, vai dar tudo certo, Natalie — tranquilizou Paul gentilmente,

percebendo o nervosismo da garota.

O lugar estava bem cheio. Por fora não parecia muito grande, mas dentro a

disposição das mesas, o pequeno palco, que possivelmente era usado para

bandas, e o grande balcão que era dividido pelo bar e pelo caixa, deixavam o

lugar bem aconchegante. De longe, um grupo de pessoas saía de uma mesa.

Um rapaz alto, magro, de cabelos castanhos, que vestia um avental com o nome

do lugar, fez um sinal para Dalton. Na cabeça de Natalie aquele era Jonathan,

mas, quando chegaram mais perto, Kelly deu um sorriso, e disse:

— Nick, que saudade. Ainda bem que temos atendimento especial aqui. —

Ela deu um abraço no rapaz, que logo foi cumprimentado por Dalton e Paul, os

quais já o conheciam.

— Ei, essa eu não conheço. Nova amiga de vocês? — perguntou Nick,

encantado com a aparência de Natalie.

— Possivelmente sua nova colega de trabalho — Kelly disse isso,

colocando Natalie na frente dele.

— Prazer, Natalie — disse a garota toda tímida, dando a mão para Nick.

— Olha só, então era de você que o Jonathan estava falando? — Nick

falava tirando os copos sujos, dando uma geral na mesa e deixando o cardápio.

— Não deixa o Jonathan ver você, porque a outra garçonete está doente, e hoje

o negócio está difícil aqui.

— Está precisando de ajuda? — perguntou Dalton, já se levantando da

mesa.

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— Não, nem se preocupa, ainda estou conseguindo dar conta do recado.

Daqui a pouco eu volto pra tirar o pedido de vocês. — Dalton voltou a se sentar,

e todos começaram a conversar, menos Natalie, que continuava a olhar para o

bar.

Nick saiu com a bandeja cheia de copos, e voltava cada hora com mais

copos cheio de cerveja. No bar e no caixa estava um homem alto e careca, com

vários brincos na orelha; era bem forte e tinha cara de mau.

— Aquele deve ser o Jonathan, né? — Natalie apontou para o homem

careca no bar. — Ele tem cara de chefe, mas acho que hoje não vamos

conversar, ele parece estar bem atarefado e estressado.

— Não se preocupe, mesmo que não estivesse, ele não conversaria agora.

— Dalton levantou o braço e chamou Nick para fazer os pedidos. — Hoje

teremos de ficar aqui até o movimento cair para que vocês conversem.

— Portanto, vamos pedir — disse Kelly, enquanto Nick estava com o bloco

de anotações na frente da mesa.

— Três cervejas. — Dalton estava fazendo o pedido por ele, Kelly e Paul, já

que Natalie não tomava bebidas alcoólicas.

— E você, minha futura colega de trabalho? — Nick falou supersorridente,

olhando para Natalie. — Aproveita hoje que estou te servindo, depois você vai

me ajudar.

— Acho que vou seguir todo mundo hoje.

— Como assim? — perguntou Kelly.

— Quero uma cerveja também.

— Mas monstrinha...

— Deixa ela amor, é o aniversário de dezoito anos dela — disse Dalton

interrompendo a namorada.

— Para comer alguma coisa, gente? — perguntou o garçom.

— Uma porção de batatas com queijo. — Kelly estava com o cardápio nas

mãos.

Nick saiu da mesa e, antes que chegasse ao bar, passou em outras mesas,

anotando mais pedidos. Os olhos de Natalie o acompanhavam, quando ele

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deixou os pedidos no bar, Jonathan disse alguma coisa para ele, e, depois de

um comentário do garçom, ambos olharam para a mesa onde Natalie estava. O

dono do bar olhou para a garota, mas logo desviou o olhar para atender às

solicitações e colocar os pedidos na cozinha, local onde as pessoas deviam

estar tão atarefadas, que o cozinheiro não dava nem sinal de vida.

Em alguns momentos, Jonathan chegava a sair do bar para atender às

mesas e desafogar o Nick. Foi ele quem levou os pedidos para a mesa onde

Natalie estava. Quando ele entregou as bebidas e o aperitivo, olhou para a

garota e disse:

— Converso com você depois. — Ele sorriu para Natalie, e brincou: —

Espero que não desista da vaga, mas isto aqui não é sempre assim. Depois de a

outra moça do bar ter saído, tudo ficou mais congestionado, e hoje a Shanon

resolveu ficar doente. Isto virou loucura. — Ele saiu direto para o caixa, porque

novos clientes tinham chegado.

Natalie tinha ficado mais tranquila quando Jonathan demonstrou um pouco

de bom humor. E decidiu animar um pouco a mesa.

— Bem, gente, acho melhor começarmos a comemoração. Afinal, foi pra

isso que viemos aqui. — Todos levantaram os copos para brindar.

— Eu não acredito em uma coisa dessas. — Kelly olhava para a porta, com

cara de indignação. Depois, virou-se para Dalton e disse: — Eu não acredito que

você chamou a sua irmã para vir aqui!

Lily e suas amigas estavam no caixa, prontas para entrarem no bar. Como

sempre, ela estava usando roupas mais curtas do que o normal, assim como as

garotas que a acompanhavam. Até aquele momento, ela não tinha visto Natalie

e seus amigos.

— Eu não falei nada, ela nem mesmo sabia que eu viria pra cá — Dalton

tentou se defender da cara que Kelly fazia para ele. — Vamos tentar nos divertir.

Esqueça a minha irmã, ela só veio pra cá porque também deve estar

comemorando o aniversário dela, que é na próxima terça.

Natalie nem se lembrava desse detalhe, mas suas lembranças das festinhas

rivais entre ambas vieram à sua cabeça naquele momento. A garota começou a

rir, já que elas não eram mais crianças (e, apesar de Lily insistir na ideia, Natalie

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considerava aquilo tudo passado).

— Você gostou das flores? — Surpreendentemente, Paul conseguiu acabar

com o péssimo clima que estava se formando.

— Me desculpe, Paul, eu nem te agradeci. Gostei sim, eram lindas — disse

Natalie, agradecendo sinceramente pelo presente do rapaz.

— Fico feliz, e espero ter acertado na cor. — Aquela conversa era estranha.

Paul pretendia deixar Natalie mais tranquila, já que Lily o havia beijado na noite

do crime, deixando a todos em uma situação complicada (principalmente ele).

Quando a loira viu todos sentados à mesa, fez questão de passar em frente

a eles. Enquanto andava colocou suas mãos no ombro de Paul, mas não

cumprimentou ninguém, nem mesmo seu irmão. Para eles, a atitude dela havia

sido a melhor possível, já que continuaram conversando e se divertindo. Natalie

parecia se incomodar um pouco, porém ter algo com Paul não passava por sua

cabeça.

— Ainda bem que sua irmã está controlada hoje. — Kelly continuava

olhando para Dalton, achando que ele havia dito para a irmã aonde eles iriam

naquela noite. — De qualquer forma ela não poderia estar aqui, ela só vai fazer

dezoito na próxima semana.

— Amor, deixa ela com as amigas. Não vamos estragar a noite da Natalie

— sensato, Dalton deixou todos tranquilos na mesa, incluindo Natalie que estava

nervosa.

Lily, por sua vez, não estava nem dando bola para eles. Como sempre,

falava alto e tentava chamar a atenção de todos no ambiente, principalmente

dos homens, mas por outro lado aquela parecia a vingança que ela tinha

prometido a Natalie.

Ao passar da meia-noite, o movimento do bar foi caindo e as pessoas já

estavam indo embora. Avalon era conhecido pelo seu grande movimento nas

sextas-feiras, pois eram os dias em que havia show. Aos sábados, o movimento

crescia apenas quando alguém decidia dar uma festa com a autorização do

Jonathan. Mas, vazio o bar nunca ficava.

Quando Lily e as garotas decidiram ir embora, passaram perto da mesa de

Natalie e seus amigos novamente. A loira mandou um beijo para Paul, mas,

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naquela altura, ele não via mais nada, pois já havia bebido bastante; até mesmo

Dalton não parava de beber, mas Kelly não bebera muito e os levaria em

segurança para casa. Natalie ficou no primeiro copo de cerveja, ela não estava

acostumada com o sabor e ainda tinha uma entrevista de emprego.

— Bom, acho que agora você e o Jonathan podem conversar — disse

Dalton, ao perceber que já não havia mais nenhum cliente por ali.

Natalie se levantou, foi em direção ao bar e se sentou em um dos

banquinhos que ficavam próximos ao caixa. Enquanto isso, Nick continuava

recolhendo os copos sobre as mesas e erguendo as cadeiras, junto com os

seguranças, que já tinham fechado as portas para ajudar.

— Se tiver experiência, inicia na terça-feira. — Jonathan continuava

contando o dinheiro, enquanto começava a conversa. — Afinal, a folga é sempre

no domingo e na segunda, quando o movimento do bar é fraco, e, nesse caso,

eu nem abro.

— Esse é o problema. Eu não tenho nenhuma experiência com esse tipo de

trabalho. Mas eu posso ficar no caixa, sem problemas. — Natalie parecia

desconcertada ao dizer isso.

— Eu já devia imaginar. — Jonathan apontou para Dalton, que fez um sinal

de cumprimento de longe. — Aquele rapaz que te indicou é um grande amigo

meu, mas devo dizer que tem a vida bem mais fácil que a minha.

— Eu gosto muito deles, mas estou aqui hoje porque minha vida também

não é tão fácil como a deles. — Natalie queria dizer que ela não tinha as coisas

que queria com tanta facilidade, mas não podia reclamar da sua vida também.

— Olha, menina, você é uma bela garota, e isso pode atrair clientes para o

meu bar. — Jonathan fechou o caixa e foi para o balcão, ficando em frente à

Natalie. — Apesar de saber que vou ter que te ensinar tudo, você começa na

terça.

— Muito obrigada. — Natalie parecia toda feliz, ela queria abraçar o dono de

felicidade, mas se lembrou de que agora ele era seu chefe. — Prometo não te

decepcionar.

— Sobre o salário, vamos começar com o mínimo até você adquirir

experiência. Depois, voltamos a conversar.

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Para Natalie, naquela situação, qualquer coisa que Jonathan pagasse seria

algo. Na realidade, como ela nunca tinha trabalhado, não sabia que teria de suar

muito para receber seu salário no fim do mês.

— Bom, como você viu hoje, aqui ninguém tem uma função só. Se alguém

precisar de ajuda, mesmo que for a cozinha, não pode ter preguiça.

— Não se preocupe, Jonathan. Eu faço o que for preciso. — Natalie estava

sendo sincera, diferentemente de Kelly, pois não tinha frescuras com nada, já

que era responsável por grande parte dos serviços de casa. — Mesmo não

sabendo cozinhar.

— Você vai aprender muita coisa aqui, garota. Agora chame seus amigos,

hoje fica por conta da casa, fica como as boas-vindas. Mas não se acostuma

com isso, hein?! — Jonathan sorriu novamente para a garota. — Terça às seis e

meia, aqui, para arrumar tudo antes de abrir. — Jonathan foi para a cozinha

terminar de ajeitar as coisas.

— Estarei aqui. — A garota abriu um enorme sorriso, e era possível

perceber que tudo tinha dado certo.

Quando voltou à mesa, Natalie contou para todos que o emprego seria seu,

e que começaria a trabalhar na próxima terça.

— Temos de comemorar isso — disse Dalton, que não sabia mais o que

estava falando.

— Não temos de comemorar nada. Temos de ir embora. — Kelly já estava

se levantando e puxando o braço de Dalton.

— Pelo visto, vamos ter sua companhia agradável na próxima terça —

comentou Nick, que parecia ter finalizado o trabalho.

— Sim, Nick, vai ser legal trabalhar aqui com vocês. — Natalie estava toda

empolgada com a notícia.

— Escuta, o Jonathan parece ser meio durão, mas é um cara muito gente

boa, não se preocupe. — Nick foi tirando o avental e se preparando para ir

embora. — Vou tirar o lixo e depois irei para casa. Até terça, Natalie.

— Até terça, Nick. — Natalie parecia estar em um sonho. Tinha conseguido

o emprego, seu chefe era uma cara legal, e seu companheiro de trabalho

também. Faltava agora conhecer a outra garçonete, mas isso ficaria para a

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terça-feira.

Após Natalie informar aos seus amigos que Jonathan havia liberado do

pagamento, todos se levantaram e foram para o carro. Já era madrugada e Kelly

decidiu deixar Paul primeiro, pois a casa dele ficava mais próxima do bar.

Depois ela deixou Natalie, e esperou até que a amiga entrasse em segurança.

******

Em um lugar escuro, em meio a algumas velas acesas, Carsten estava

ajoelhado em silêncio. Fazia algum tipo de meditação. O silêncio daquele lugar

era tamanho, que apenas a suave respiração dele era ouvida, mas fora

interrompido com os sons dos saltos de Katherine se aproximando.

— Porque você está aqui, neste lugar meditando longe dos outros? —

Katherine continuou caminhando, olhando para Carsten. A garota chegou

próximo a uma vela e, mesmo com a pouca iluminação, seu rosto pôde ser visto.

Estava cheio de manchas e parecia estar velho. — Posso saber no que está

pensando?

O silêncio continuou naquele lugar. Carsten parecia estar com sua cabeça

bem longe dali. Inquieta, Katherine queria chamar a atenção do demônio e

continuava a caminhar ao redor dele.

Desde que foram proibidos de sair depois da aparição do arcanjo no jogo, a

ruiva demonstrava sinais de fúria e impaciência.

Apesar de todo o barulho, Carsten permaneceu concentrado, mas somente

até Katherine proferir algo na hora errada:

— Você só pode estar pensando nela. Só pode estar pensando naquela

garota. Aquela menina vai acabar te... — Suas palavras foram interrompidas.

Em um rápido movimento, Carsten se levantou e segurou o pescoço da ruiva

com força contra a parede fazendo com que seus pés ficassem fora do chão.

— Será que você não aprendeu a ficar quieta em certos momentos? —

Carsten soltou o pescoço da ruiva para que ela pudesse dizer alguma coisa,

mas não estava nem um pouco a fim de ouvir a voz dela.

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— Você diz isso... porque sua... habilidade não te destrói. — Katherine

gemeu de dor assim que Carsten soltou seu pescoço, deixando-a de joelhos no

chão.

— Katherine, eu poderia gostar muito de você. — Ele respirou fundo para

continuar. — Mas, além de esse sentimento não fazer parte de mim, você

dificulta cada vez mais a nossa convivência.

— Você sabe que eu estou assim porque preciso de vidas para sobreviver.

— Katherine continuava de joelho, seus longos cabelos ruivos estavam sobre

seu rosto. — Eu preciso de anjos.

— Seu poder é como uma droga, Kath. Você precisa sempre de mais para

se saciar, e eu não sei aonde vai parar desse jeito — lamentou Carsten.

— Como se você se preocupasse com isso. Você recebeu a habilidade da

velocidade, é mais rápido do que todos aqui. Victor tem uma força gigantesca,

mas não conseguiu desenvolver a sua habilidade por completo ainda. — Ela se

levantou e voltou a ficar perto das velas. — Mas nenhum de vocês é consumido

pelo seu próprio poder.

— Como também nenhum de nós consegue matar um anjo sem uma arma,

não se esqueça disso, Katherine, apesar de ultimamente você não estar

utilizando essa habilidade como deveria.

— Você sabe que matar e não poder usufruir da força não altera em nada

eu poder ou não utilizar a minha força. — Katherine parecia irritada e, ao mesmo

tempo impotente, por não ter a permissão de fazer as coisas do seu jeito.

Todos eles tinham uma habilidade; cada qual podia ser desenvolvida com o

tempo e se tornar mais forte. Mas, cada vez que Katherine se tornava mais

poderosa, sua habilidade a estava matando. A garota precisava consumir anjos

para ficar bonita e forte. Permanecer dentro daquele lugar, presa na escuridão,

não fazia muito bem para sua sanidade.

— Falta pouco, Katherine, logo vamos sair daqui e você pode fazer o que

quiser — Carsten tentou confortá-la.

As velas se apagaram e o lugar aquietou-se mais uma vez. Katherine não

se encontrava mais na sala. Novamente, apenas era possível ouvir a respiração

de Carsten, que voltara à meditação e ao silêncio do submundo.

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Capítulo 9

A COMUNICAÇÃO em família não tinha começado, e Dorah já estava

acordada no domingo. Ela preparava o almoço na cozinha, e parecia toda

animada. Tranquilamente, lavava as verduras e terminava de fazer o arroz, já

que a suculenta costela estava no forno, cheirando em toda a casa. Gabriel e

Natalie ainda dormiam. A garota, porque ficara até tarde no bar, comemorando

seu aniversário e a conquista do emprego. Ele, como todo domingo, dormia até

tarde, pois acordava cedo para os treinos do time até mesmo aos sábados.

Minutos depois, Natalie desceu as escadas e debruçou-se no balcão da

cozinha, ela estava sentindo uma forte dor de cabeça, talvez fosse pelo efeito da

cerveja da noite passada. Sem que a mãe percebesse sua presença ela disse:

— Bom dia, mãe. Tenho novida... — Natalie foi interrompida pelo susto de

Dorah, que estava concentrada nas folhas verdes. — Bom, como eu ia dizendo,

tenho novidades para contar. — Natalie correu para perto da mãe e lhe deu um

caloroso abraço.

— Meu Deus, como você está animada. Parece que a comemoração foi

ótima ontem. — Dorah dava atenção para a filha, mas continuava com seus

afazeres. Como boa dona de casa que era, dificilmente atrasava o almoço do

domingo, diferentemente da maioria das pessoas, que prefere almoçar mais

tarde.

— Consegui o emprego — disse Natalie toda animada. — Começo na terça

às seis e meia.

— Como assim? Mas já? E o contrato? E o pagamento? Já acertaram tudo?

– Dorah parecia confusa. No dia anterior, a filha estava em casa vendo televisão

e agora, quase pronta para ir ao trabalho. — Minha filha, eu não tenho certeza

de que isso vai ser legal. Aliás, seis e meia? Por que tão tarde? Vai trabalhar à

noite?

— Mãe, é um bar, eles abrem à noite. — Natalie explicou para a mãe, mas

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parecia não convencer. — E outra, você prometeu que ia me apoiar, lembra?

— Eu sei, minha filha, me desculpe. — Dorah deu um caloroso abraço na

filha. — Apesar de você ter dezoito anos, eu ainda me preocupo com você.

— Pode ficar sossegada, senhora Zeniek, que sua filha vai ficar bem. O

lugar é legal e tranquilo. Jonathan, dono do bar, também parece ser um cara do

bem. Não vai ter problema algum.

— Meu amor, você já está tão adulta e às vezes eu não percebo isso.

Parece que foi ontem, quando seu pai e eu entramos por aquela porta e

trouxemos você para esta casa pela primeira vez.

— Mãe, por falar no papai, me conta mais um pouco sobre ele. Quando eu

era criança, como ele era comigo?

— Ah! Minha filha, seu pai gostava muito de você. Quando não estava

trabalhando, ele ficava horas brincando com você. — Dorah continuou contando

sobre Laurence. À medida que falava, os olhos de Natalie enchiam-se de

lágrimas.

Depois de ter ouvido a voz do pai rapidamente naquela noite, a garota foi

tendo mais interesse em saber como ele era. Tudo isso espantava Dorah, que

continuava sem entender de onde vinha toda aquela curiosidade expressada

pela filha nos últimos dias.

— Escute, minha filha. Por favor, olhe a panela de arroz, que eu vou buscar

uma coisa lá em cima e acordar seu irmão. — Dorah deixou o avental na mesa e

subiu as escadas.

Natalie continuou na cozinha com o pensamento nas lembranças que a mãe

contara para ela. Parecia fazer tão pouco tempo, quando ela ainda tinha o pai do

lado, antes do terrível acidente que deixou toda população de Polsher em estado

de choque, quando seu pai fora brutalmente assassinado.

Aquelas sofridas recordações também permaneciam vivas na cabeça de

Natalie. Ela não chegou a ver o pai morto, preferiu manter as boas lembranças

que teve dele.

A senhora Zeniek desceu as escadas, dizendo:

— Natalie, me ajude a arrumar a mesa. Seu irmão já está quase descendo.

— Dorah segurava uma foto nas mãos. — Filha, quando você terminar, quero

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que veja isso.

Curiosa como era, Natalie mal terminou de organizar a mesa e já foi ver do

que se tratava.

— Meu Deus! Essa foto. — Natalie parecia espantada. Na foto, seu pai,

ainda novo, a segurava no colo quando criança. A garota parecia ter uns dois ou

três anos. — Ele era lindo. Por isso você ficou com ele, não é, mãe?

— Seu pai era um homem muito bonito. Várias garotas queriam conhecê-lo,

e eu não dava bola. Pelo que você me conta, parece sua história com aquele

garoto, o Paul.

— Ai, mãe, nem tem comparação. — Apesar de Dorah estar certa, Natalie

preferiu não comparar nada, porque pelo visto, até sua mãe estava gostando da

ideia. — O papai parecia estar muito feliz nesta foto.

— Sim. Além de segurar o tesouro dele no colo, seu irmão estava

chegando.

— Você estava grávida do Gabriel nessa época? — perguntou Natalie.

— Bom, na verdade... — Dorah foi interrompida pela chegada de Gabriel, e

depois não voltou a tocar mais no assunto.

O almoço de domingo correu normalmente. A comida de Dorah, como

sempre, estava deliciosa e todos comeram mais do que deviam. Natalie deixou a

foto do pai ao seu lado e, assim que terminou de comer, lavou a louça e foi para

o quarto. Gabriel tinha saído para jogar bola com os amigos no campo próximo a

casa deles. Dorah continuava vendo televisão na sala.

No meio da tarde, Natalie ligou para Kelly a fim de saber como terminou a

noite. Então, a amiga lhe contou todos os detalhes, alguns até que não eram

necessários. Ambas riram juntas e comentaram sobre o bar, o emprego e,

principalmente, sobre Nick.

— Eu acho o Nick bem bonito, um cara que chama a atenção — disse Kelly,

esperando uma reação contrária de Natalie.

— Que o Dalton não escute você falando dessa forma, de outro cara. –

Natalie parou, deu uma breve risada e continuou seu comentário: — Além do

mais, se ele descobrir isso, nunca mais vai com você para o bar, ou seja, você

não vai poder me visitar lá.

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— Relaxa, monstrinha, ele não vai ficar sabendo de nada. Além do mais, foi

apenas um comentário, não troco meu Dalton por nada neste mundo.

— E a outra garçonete? Você já a viu por lá? — perguntou Natalie, curiosa

para saber como era a única garota que não estava no bar ontem.

— Sim, eu já a vi, mas não sei o nome dela.

— Shanon — disse Natalie, se lembrando da conversa que teve com

Jonathan. — Mas como ela é fisicamente? Alta, magra, loira, morena, bonita?

— Como se isso te importasse muito, né, monstrinha? — Kelly lembrou à

amiga. — A não ser que você tenha mudado de ideia. E, a partir de agora, vá

sempre bem vestida para o trabalho.

— Como se eu tivesse roupas boas para ir ao trabalho sempre bem vestida

— reclamou Natalie, que nunca se preocupou em comprar roupas, já que

sempre usava as mesmas. — E outra, mesmo que eu quisesse, não tenho

dinheiro para comprar nada.

— Calma. Quando você receber seu primeiro salário, nós resolvemos isso

— Kelly comentou toda empolgada, já que adorava fazer compras, mesmo que

não fosse para ela. — Monstrinha, você vai ter um uniforme, então não se

preocupe muito com a roupa. Agora, a maquiagem é importante. Apenas repita a

mesma que você usou ontem, que estava linda.

— Espero conseguir refazer aquela maquiagem novamente.

— E falando na outra garçonete, ela é um pouco mais velha. Faz tempo que

ela trabalha lá, eu acho. — Pela forma que Kelly dizia, até parecia que ela

frequentava sempre o bar, sendo que sua vida noturna tinha começado havia

pouco tempo. — Ela parece ser uma pessoa bem legal, pelo menos com os

clientes.

Depois de alguns minutos de conversa, Natalie resolveu descansar e,

segurando novamente a foto do pai, pegou no sono. A garota, que apenas

pretendia tirar um cochilo, entrou em um sono profundo que durou algumas

horas; talvez ela estivesse se recuperando da noite anterior mal dormida.

O sono foi tranquilo e Natalie acordou com a cabeça vazia, sem nenhum

tipo de pensamento. Parecia que não havia sonhado, ou, pelo menos, não se

lembrava de nada. O quarto já estava escuro e, quando olhou no relógio, se deu

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conta de que dormira mais do que imaginava. Já eram mais de onze horas, e,

pelo horário, todos na casa já estavam dormindo.

Depois de se esticar na cama e ficar alguns minutos com os olhos fechados,

percebeu que já tinha dormido o suficiente e precisava se levantar. A garota

decidiu tomar um banho, mas antes foi procurar alguma coisa para comer.

Natalie achou estranho que sua mãe não a chamara para o jantar, mas Dorah

assim preferiu.

Sentou-se para comer e, após o delicioso jantar, foi para seu quarto se

preparar para o banho. Natalie não costumava demorar, mas, naquele dia,

fechou seus olhos e ficou sentindo a água escorrer pelo seu rosto e corpo.

Aquele momento agradável logo foi interrompido:

— Eu preciso falar com você. — Aquela voz familiar parecia confortar a

garota. Era seu pai novamente tentando se comunicar com ela. Naquele

momento, a garota estava disposta a conversar com ele.

— Pai, você consegue me ouvir? — Suas palavras foram em vão, pois não

houve resposta alguma, e ela não podia falar muito alto, porque todos na casa

dormiam.

Natalie saiu do banho, enxugou seus longos cabelos molhados, se enrolou

na toalha e foi direto para o quarto. Ao perceber a presença de alguém,

direcionou seu olhar para o corredor e viu um vulto descendo as escadas. A

princípio, pensou que fosse Gabriel, mas o garoto estava dormindo. Olhou para

a cama de Dorah e viu que a mãe também dormia tranquilamente.

Natalie foi para as escadas. Mesmo sem saber o que encontraria escada

abaixo, desceu lentamente, degrau por degrau. Quando chegou à sala, acendeu

todas as luzes, mas não havia ninguém.

Natalie voltou a pensar que tudo não passava de imaginação e decidiu

voltar a dormir. Porém, novamente sentiu a presença de alguém parecendo

tranquilizá-la. Já em sua cama, após apagar todas as luzes e sua visão se

acostumar com a escuridão, olhou para a porta e se deparou com uma pessoa

parada. Acendeu seu abajur rapidamente, mas não havia mais ninguém lá. Seu

coração estava acelerado, em um misto de susto e uma forte emoção.

Mesmo com certo medo, mais uma vez, Natalie apagou as luzes e olhou

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fixamente para a porta, mas não viu mais nada de estranho. Então, antes que

pudesse dormir, começou a ouvir novas vozes:

— Ela não era de confiança.

— Ele está tão lindo e crescendo tão rápido.

— Por que você fez isso comigo?

Cada voz, assim como nas outras noites, dizia algo diferente e sem sentido.

Mas, dentre todas as vozes que Natalie ouvia naquele momento, uma em

particular chamou muito sua atenção.

— Te ver hoje foi o melhor presente que eu poderia ter recebido há muito

tempo, minha anjinha.

Enfim Natalie pegou no sono, com a certeza de que aquele vulto na porta

era seu pai, que estava ali olhando a filha novamente e, tentando, de alguma

forma, se comunicar com ela. Sem saber exatamente como aquilo acontecia,

apenas guardou consigo tais palavras, e teve mais uma noite de sono tranquila.

******

Natalie tinha acabado de tomar o café da manhã, e foi direto para o

computador a fim de realizar uma pesquisa sobre pessoas que ouviam vozes.

Dentre muitos charlatões, que diziam ter grande comunicação com espíritos,

encontrou uma reportagem sobre uma menina que começou a ter os mesmo

sintomas que ela, mas, como sua família acreditava que ela enlouquecera,

internaram-na várias vezes, até que ela se matou. De acordo com a notícia, a

garota tinha um caderno em que escrevera várias frases soltas, como se fossem

mensagens recebidas por ela. Mas, infelizmente, ninguém deu muita bola para o

material.

Depois de tudo isso, definitivamente, Natalie tinha certeza de uma coisa:

não contaria para ninguém sobre as vozes, os vultos, nem mesmo para sua

melhor amiga, pois não queria parar em nenhuma clínica de reabilitação. Em

contrapartida, a reportagem também deu uma brilhante ideia para Natalie: a

garota rapidamente se levantou, foi até seu armário e abriu uma gaveta com

algumas coisas velhas, dentre elas um caderno usado. Após arrancar as

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páginas usadas do tempo da escola, colocou a data da noite anterior e anotou

as poucas frases que tinha ouvido. Em especial, escreveu as que escutou do

seu pai e as circulou, dando maior importância. Natalie estava disposta a

reportar, todas as noites, as mensagens que escutasse, e se lamentou por não

se lembrar de todas as outras já ouvidas.

Depois de algumas horas e, de almoçar com o irmão que acabara de chegar

da escola, Natalie foi para o seu quarto. Gabriel resolveu sair com os amigos,

para jogar, como de costume. Natalie resolveu ligar para Kelly a fim de saber as

novidades, e não demorou muito para que a loira atendesse ao telefone:

— Resolveu falar comigo, trabalhadora? — com seu humor negro, Kelly,

como sempre, brincou com a amiga, mas já esperando por uma repreensão.

— Resolvi dar um descanso para você. Assim, quem sabe fica com saudade

de mim – disse Natalie. — Mas, como você resolveu sumir, resolvi ligar para

saber como estão as coisas.

— As coisas estão piores do que você imagina. — Kelly já estava com um

tom dramático na voz, e Natalie esperava escutar reclamações sobre alguma

coisa fútil. — Ontem eu fui ao shopping com o Dalton e vi uma bolsa linda na

loja. Quando eu lembrei que não estava com meu cartão de crédito, fui ao caixa

eletrônico tirar dinheiro, mas, quando voltei à loja, você não sabe o que

aconteceu.

— A loja foi assaltada? — perguntou Natalie, querendo ser mais dramática,

mas, no fundo, brincando com a amiga.

— Não, pior que isso. A bolsa já havia sido vendida.

— Nossa, Kelly, mas você não pode esperar que uma nova remessa venha?

Ou era artefato único? — Natalie tentou acalmar a situação. — E, outra, com

certeza você vai achar uma melhor do que aquela.

— Você não consegue entender a gravidade do assunto, monstrinha. —

Kelly começou a explicar. — A dona da loja disse que essa bolsa virá

novamente no sábado. Mas eu não te contei quem comprou a bolsa que eu

queria. — A gravidade do tom de Kelly já fez Natalie responder na hora a

pergunta.

— Lily. Acertei? — perguntou ela, já sabendo que estava certa.

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— A própria. E eu tenho certeza de que ela fez de propósito. Devia estar me

observando, e comprou só para me irritar.

— A bolsa era muito cara? — Natalie tentou analisar a situação. — Porque

ambas sabemos que a Lily não tem tanto dinheiro assim, e ela não está

trabalhando.

— Engano seu. Esqueceu-se de que estamos no começo do mês? Ela deve

ter recebido a mesada do pai, que com certeza dobrou por ser aniversário dela.

— Espero que, no começo do mês que vem, eu receba minha mesada do

Jonathan. — Lembrou-se do emprego que estava prestes a começar. — Aí,

quem sabe eu posso comprar uma bolsa da promoção. — Ambas riram juntas, e

logo encerraram a conversa.

A tarde foi passando e Dorah, como de costume, chegou do trabalho com

ingredientes para o lanche de todos. Assim que os preparava, pediu para que

Gabriel, que havia chegado do jogo fazia pouco tempo, tomasse banho. Natalie

já estava na cozinha ajudando a mãe.

— Amanhã, nesse horário, já estarei no bar no meu primeiro dia de trabalho.

— Natalie olhou para a mãe curiosa esperando a reação.

— Quem vai te levar? — perguntou Dorah.

— A Kelly disse que passa aqui com o Kenedy. Nos outros dias acho que

vou de ônibus, até juntar dinheiro e conseguir uma condução.

— Se aprender a economizar, logo, logo você terá sua condução e muitas

outras coisas que queira comprar. — Dorah tentava, como todas as mães,

colocar um pouco de juízo na cabeça da filha. — Mas é claro que também pode

gastar seu dinheiro com você, afinal, você merece.

— Sabe o que eu estou mais estranhando? — Natalie olhou para a mãe de

maneira curiosa. Dorah, por sua vez, retornou o olhar, esperando o comentário

da filha. — A senhora, ultimamente, tem aceitando tão facilmente essa ideia de

trabalho, e eu me lembro que, no começo, faltou você querer me prender.

Claro que Natalie havia exagerado no seu comentário, afinal sua mãe só

estava preocupada com ela. No fundo, toda aquela tranquilidade de Dorah era

uma maneira de esconder a grande inquietação que a consumia. A senhora

Zeniek sempre gostou e apoiou esse tipo de liberdade para os filhos, apesar de

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sua educação ter sido bastante restrita. Mas, só de pensar em Natalie

trabalhando em um bar, bebidas, homens e, possivelmente, drogas estariam à

sua volta.

— Mãe, tudo que você me ensinou até hoje me ajudou a ser o que eu sou.

Uma das coisas que eu aprendi é saber me virar muito bem, e principalmente

sair de situações difíceis. Portanto, não se preocupe comigo. — disse, tentando

tranquilizar a mãe.

— Meu amor. — As duas se abraçaram bem forte. — É claro que eu me

preocupo com você, afinal, você e o Gabriel são tudo o que eu tenho. Falando

em se preocupar, depois que o Doutor Reik receitou aquele remédio, você

nunca mais teve tonturas, não é?

— Sim, graças a Deus. Não aguentava mais apagar e depois acordar sem

me lembrar de nada. — lembrou Natalie.

Gabriel desceu as escadas e se juntou a elas para tomar o lanche. A família

não tinha o costume de comer alimentos pesados no jantar. Dorah, como uma

mãe responsável que era, avisou a filha que tinha comprado pão e outras coisas

para que Natalie preparasse seu lanche na terça, pois elas não se encontrariam.

Depois do jantar, como de costume, Gabriel foi para seu quarto e Natalie

ficou na sala com sua mãe para ver um pouco de televisão, pois, a partir

daquele dia, apenas nas segundas isso seria possível. Depois de algum tempo,

ambas foram para os seus quartos e Natalie pegou no sono rapidamente.

Naquela noite, ela não escutou nenhuma voz e, como estava cansada, não

esperou por elas também.

******

Assim que acordou, Natalie não conseguiu enxergar nada. Parecia que seus

olhos continuavam fechados, e, mesmo que se esforçasse, a escuridão

dominava tudo à sua volta. Foi então que ela percebeu que estava no chão frio,

e não mais no conforto da sua cama. A primeira imagem que veio à sua cabeça

foi da possibilidade de ter desmaiado novamente e acordado em algum outro

lugar. Porém, apenas se lembrava de, na noite anterior, ter deitado na sua cama

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e dormido rapidamente.

Alguns passos à frente, uma luz no ar parecia se movimentar sozinha.

Natalie forçou o olhar e percebeu que se tratava de uma vela, e que alguém a

segurava.

— Quem é você? Que lugar é este? — ela gritava, assustada por não

entender o que estava acontecendo. Porém ninguém respondia, e a pessoa

continuava calmamente a vir em sua direção. — Quem está aí? — ela repetiu.

Natalie se levantou do chão frio, pretendendo correr, mas não sabia que

direção tomar.

— Se eu fosse você, parava de gritar — a voz masculina era calma e

tranquila. — Este é um ambiente sagrado para nós, e deve ser respeitado por

todos.

— Lugar sagrado? Eu só posso estar sonhando. Quem é você? — Natalie

perguntou com seu tom de voz mais baixo, respeitando o pedido daquele

homem misterioso.

Quando o rapaz chegou mais perto, apenas sua pele branca refletia-se sob

a luz da vela. Aqueles cabelos negros e aqueles olhos escuros e penetrantes

podiam ser facilmente reconhecidos, caso Natalie se lembrasse de alguma

coisa. Quem estava à sua frente, era Carsten. Natalie abaixou a sua cabeça,

como se quisesse lembrar-se de alguma coisa.

— Talvez esteja mesmo sonhando, porque, se não estivesse, era pra você

já estar morta aqui.

Definitivamente aquilo era um sonho, pois Carsten parecia agir normalmente

na frente de Natalie, como se vê-la fosse algo normal. Natalie também não

conseguiria ter entrado naquele local, que parecia ser um refúgio para os

demônios, sem ser vista. De fato tudo era muito estranho, principalmente pelo

fato de a garota estar vendo Carsten em seus sonhos, mesmo sem se lembrar

do rosto dele.

— Por que eu não sinto medo de estar aqui nesta escuridão perto de você?

— Aquele local estava frio e escuro. — Você me lembra alguém, mas não

consigo me recordar quem.

O jovem permaneceu em silêncio por alguns minutos. Natalie apenas o

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encarava fixamente, tentando relembrar, mas parecia que alguma coisa a

impedia. Foi então que o rapaz resolveu falar:

— Você é diferente. Tem alguma coisa especial em você que eu não sei o

que é, mas sinto vontade de ficarmos juntos aqui. — Natalie não fazia nada, a

não ser prestar atenção nas palavras dele. — Entretanto, agora eu preciso ir,

antes que os outros me vejam aqui falando com você.

— Não vá. Eu preciso de ajuda, não sei como eu posso sair daqui — disse

Natalie.

— Isso é bem simples. Se isso é um sonho, você simplesmente pode

acordar.

A ideia parecia bem simples. Mas como seria possível acordar de um sonho,

sendo que nem mesma ela sabia como havia ido parar nele? A ideia de Carsten

estava funcionando, e uma pequena luz começou a iluminar o local. À medida

que os segundos passavam, aquela luz ia aumentando. O rapaz já não estava

mais lá, Natalie foi perdendo os sentidos pouco a pouco e sua mente parecia

descansar novamente.

Aquela pequena luz era do dia. Estava amanhecendo no quarto da garota,

que parecia estar dormindo um sono tranquilo. Quando ela acordasse, talvez se

lembrasse daquele sonho, mas não faria muita diferença, já que ela não sabia

onde estava e quem era aquele rapaz misterioso. Tudo o que continuaria

fazendo era dormir para descansar seu corpo, porque aquela terça-feira seria

um dia totalmente novo em sua vida.

******

O sol estava nascendo, e, no meio de uma floresta, era possível ouvir o

canto dos pássaros iniciando o dia. As árvores estavam calmas, o que evitava

que os raios do sol entrassem pelos galhos cheios de folhas. Bem no centro, em

meio a várias folhas secas no chão, estava Doutor Reik andando de um lado

para o outro, quando outra pessoa chegou. Com a luz ainda fraca, só era

possível ver que se tratava de uma mulher.

— Ela está começando a se lembrar das coisas — disse a mulher.

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— O remédio que eu dei a ela tinha efeito curto — Reik falava do remédio

que ele tinha receitado. — Ela voltará a se lembrar de tudo aos poucos.

— Bom, eu fiz o que você me pediu, troquei os remédios do entregador.

Mas, me diz uma coisa, por que você a fez esquecer-se de tudo?

— Ela está aprendendo algumas coisas. Se ela se lembrasse de tudo

aquilo, poderia prejudicar a evolução da sua habilidade. Tudo tem que acontecer

no devido tempo.

Os dois falavam de Natalie como se tratasse de alguém de muita

importância para eles, os quais também pareciam bem misteriosos.

— Então, o Doutor Reik está tentando proteger sua paciente? — A mulher

parecia estar tão curiosa para saber a resposta para essa pergunta que deu um

passo à frente. — Por que os outros não a mataram?

— Fomos destinados a protegê-la. O motivo é confidencial, mas, como você

veio para me ajudar, assim que chegar o momento, vai encontrá-la.

— Será um prazer em ajudá-lo. Até lá, eu posso ficar na Terra?

— Você tem a minha autorização, fique de olho se algo acontecer. — Reik

colocou dois dedos na testa da mulher, parecendo abençoá-la.

Em poucos minutos ela desapareceu, e Reik saiu caminhando lentamente

com suas roupas brancas. A luz do sol já estava mais forte, o que deixava a

floresta mais clara do que antes. Polsher estava acordando. O médico, que

deveria ir ao hospital para atender seus pacientes, entrou em seu carro,

estacionado em uma estrada próxima dali, e foi direto para o trabalho.

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Capítulo 10

A REALIDADE era que nenhum deles aguentava mais ficar naquele lugar.

— O queridinho do inferno já sabe quando poderemos sair daqui? — Victor

perguntou em voz alta, naquele mesmo local escuro das outras noites. — Não

aguento mais ficar aqui, preciso caçar.

— Você deveria falar mais baixo, este local é sagrado, Victor. — Carsten,

que estava ajoelhado e parecia meditar, apenas olhou para o rapaz com ar de

reprovação. — Eu também não sei quando sairemos daqui. As ordens dadas

foram para que permanecêssemos em silêncio, mas parece que você e a

Katherine não conseguem fazer isso.

— Katherine está morrendo, e você não está nem um pouco preocupado

com isso. — Victor se aproximou de Carsten e se agachou próximo ao rapaz. —

Você está nessa há muito mais tempo que eu, senão eu já teria acabado com

sua arrogância.

— Enquanto você não consegue desenvolver as suas habilidades, acho

melhor ficar longe de mim. — O relacionamento de Carsten e Victor parecia

estar abalado nos últimos dias. Os dois rapazes, que sempre se deram muito

bem, não conseguiam mais se tratar de forma amigável. — Me responde uma

coisa, Victor, por que mudou tanto nos últimos tempos? — continuou Carsten.

— Considerava você como meu irmão mais velho, alguém por quem eu

tinha muito respeito, um líder. Mas esse respeito acabou. — Victor parecia

irritado, porém, ao mesmo tempo, lamentava-se pelo que estava acontecendo.

— Parece que você quem mudou nesses últimos dias.

— Nada mudou, você está maluco. Por que eu mudaria?

— Gostaria muito de saber o que está acontecendo aqui. — a voz de um

ancião o interrompeu o comentário de Carsten. — Que mudanças são essas,

Carsten?

— Eu não sei do que o Victor está falando — respondeu Carsten.

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A pouca iluminação das velas pareceu menor quando um homem mais

velho entrou, aumentando a escuridão. Carsten, que já estava de joelhos,

apenas olhou para o rosto de Victor, lembrando-o de que ele deveria fazer o

mesmo.

— Vocês têm de ter paciência. Hoje à noite, poderão desenvolver suas

atividades normalmente. Mas precisam ter muito cuidado, porque os anjos ainda

não baixaram a guarda, e eu não quero nenhum problema por enquanto.

Victor parecia vibrar com a notícia, mas teve de se conter para demonstrar

seu respeito, e por medo de ser repreendido.

— Onde está Katherine? — perguntou o velho.

— Não a vejo há algum tempo — respondeu Carsten.

Um gemido pôde ser ouvido. Quando todos olharam para o canto, puderam

ver Katherine deitada, quase morrendo, e seu corpo dava os últimos suspiros.

— Peguem-na e tragam aqui — ordenou o velho para os rapazes.

Ambos se levantaram e foram até Katherine. Carsten a pegou no colo com a

ajuda de Victor e a colocou no chão em frente ao velho, que fez um movimento

rápido com as mãos. Todas as velas da sala se acenderam e, apesar de

viverem muito tempo por lá, foi a primeira vez em que Carsten e Victor

conseguiram enxergar todo o local. As paredes pareciam de pedra e não

possuíam nenhum tipo de simetria, mas o que eles não imaginavam era que lá

era tão alto. Ao olhar para o teto, viram nele várias estátuas com imensas asas.

— Conseguem vê-los? São anjos aprisionados. — O velho apontava para o

teto. — Todas as cápsulas que vocês e os outros me trouxeram são de um

desses anjos. — As estátuas nada mais eram do que centenas de anjos

grudados uns nos outros, todos com faces de sofrimento. — Eles não são

apenas prêmios, mas, sim, fonte de energia vital. Apenas eu e os outros quatro

anciões sabemos como usar essa energia sem que ela seja desperdiçada.

O homem explicava aquilo para os rapazes, mas eles não prestavam

atenção, pois só conseguiram ver Katherine, que estava com a aparência

deformada; parecia que tinha envelhecido muitos anos. Mesmo assim, ele

continuou:

— Dessa forma, consigo vitalizar a energia deles em fonte de vida para ela

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e para qualquer um de nós. — O velho colocou sua mão no rosto de Katherine,

e à medida que os segundos passavam, a pele dela voltava ao normal. — Cada

cápsula que vocês me entregam são chamadas de Cápsulas do Éden. Dentro

delas, encontra-se grande quantidade da energia de um anjo, e essa energia

continua sendo carregada por muito tempo, se for usada de forma correta, ou

seja, sem deixar que acabe.

Vendo que a aparência de Katherine já estava melhor, Carsten resolveu

perguntar:

— Quer dizer que essas cápsulas são usadas para nos curar?

— Sim, dentre outras coisas. Mas isso não é um problema de vocês. Ela já

está melhor; tentem controlá-la, senão, da próxima vez, ela morrerá.

As luzes se apagaram rapidamente, e o velho não estava mais no local.

Katherine já estava com os olhos abertos, e antes que alguém perguntasse

alguma coisa, ela disse:

— Eu escutei o que ele falou. Preciso achar alguma forma de absorver essa

energia quando eu precisar.

— Você só pode estar maluca — disse Carsten espantado. — Se você fizer

isso, será morta.

— Se eu não fizer, estarei morta de qualquer maneira.

— Kath, não se esqueça de que você está brincando com a sorte. Ele é um

dos anciões do inferno, poderia acabar com você em menos de um segundo.

Afinal, foram eles que nos deram vida — explicou Victor.

— Por isso mesmo. — retrucou ela — Se não fosse por eles, eu não estaria

nesta situação, com essa doença que me consome.

— Não vamos pensar nisso agora — disse Carsten se ajoelhando

novamente. — Temos de nos concentrar, já que durante a noite sairemos para

caçar novamente. Todo esse estresse tem trazido muito problema para nós,

então não vejo a hora de voltar à atividade.

— Finalmente o antigo Carsten, aquele de quem eu gostava, voltou a falar

como antes — disse Victor. — Assim eu até concordo em meditar com você.

— Então faremos isso todos juntos — anunciou Carsten se ajoelhando

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novamente, e dessa vez na companhia dos outros.

******

Após um longo banho, Natalie estava secando seus cabelos. Aquele dia era

para ser especial, afinal, era seu primeiro dia de trabalho. Ela se lembrou das

várias dicas de Kelly sobre a sua maquiagem. Apesar de se atrapalhar um

pouco com aquilo, ela conseguiu se arrumar direito.

Eram quase seis horas, e Kelly ficou de levar Natalie ao bar em seu primeiro

dia de trabalho. Como já era de se imaginar, ela chegou antes do combinado,

possivelmente para ver como a amiga estava, além de dar as últimas dicas.

— Está sozinha aqui? — perguntou Kelly entrando na casa.

— Sim. Minha mãe está trabalhando, e meu irmão foi fazer um trabalho

escolar na casa de um dos amigos dele — Natalie falava e continuava subindo

as escadas para terminar de se arrumar. — Vamos, Kelly, me diga o que tem de

errado comigo?

— Errado? Eu não disse nada... — a amiga deu uma pequena pausa no seu

comentário. — Ainda.

— Segui todas as suas dicas. Acho que a maquiagem está legal. O que

você acha?

— A maquiagem está ótima, a roupa também, mas o cabelo... — Kelly olhou

para a amiga e disse algo que Natalie não esperava ouvir. — Seu cabelo

amarrado ficaria lindo agora.

— Amarrado? Você só pode estar louca, Kelly. A única pessoa que criticava

meu cabelo amarrado a vida toda era você.

— Eu sei, eu sei, mas dessa vez é diferente. O bar do Jonathan é um local

mais descolado. Com o cabelo amarrado você vai ficar com cara de garçonete.

— Garçonete?! — exclamou Natalie espantada. — Quem foi que disse que

eu quero ficar com cara de garçonete?

— Não é bem garçonete. Ai, eu não sei te explicar.

— É melhor não explicar nada, Kelly. — Natalie pegou suas coisas na

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prateleira, parecendo não ter gostado do comentário da amiga, mesmo sabendo

que sua função seria basicamente a de uma garçonete, entre outras coisas que

faria no bar. — Vamos, senão vou chegar atrasada.

— Não ficou brava comigo, né, monstrinha?

— Relaxa, já estou mais do que acostumada com seus comentários.

As duas pegaram as coisas e partiram para o bar. No caminho, elas

continuaram conversando sobre outros assuntos.

— Ontem à noite o Dalton foi à minha casa jantar comigo, e nem te falo

quem está de castigo.

— Lily? — perguntou Natalie sem expressão de surpresa. — Aquela vaca

bem que merecia.

— Pois é, parece que, depois do bar, ela bateu o carro junto com as amigas.

— Mas ela está bem?

— Sim, foi uma batida de leve, só para estragar o carro mesmo. Por isso ela

ficou de castigo, já que o carro era do seu pai — disse Kelly rindo. — Só não sei

que espécie de castigo foi esse, não quis entrar em detalhes, porque o Dalton

perceberia que meu interesse seria puro sarcasmo.

— Ela já está bem grandinha para ficar de castigo. — Natalie, naquele

momento, pensou qual teria sido a última vez em que ficara de castigo.

— O castigo dela deve ser ficar sem receber mesada, ou sem o carro, algo

do tipo. — Em um suspiro, ela se comparou à cunhada. — Se fosse eu, acho

que morreria de tédio.

— Se isso é ficar de castigo, eu estou de castigo desde que eu nasci.

As duas riram, e continuaram o caminho falando de coisas bobas.

Quando chegaram à frente do bar, as meninas desceram juntas. Tudo

parecia estar fechado. Elas tentaram olhar pela porta da frente, mas as luzes

também estavam apagadas. Natalie conseguiu ver o vulto de uma pessoa, então

decidiu bater na porta.

— Estamos fechados ainda. Se for entrega, é pela porta dos fundos — a voz

era feminina, e parecia estar um pouco irritada.

— Bom, acho melhor entrar pelos fundos então — disse Natalie, se dirigindo

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ao fundo do bar.

A porta estava encostada, quando uma mulher, que parecia ter uns trinta

anos, apareceu. Seus cabelos eram pretos e estavam amarrados, seus olhos

escuros e sua feição brava a deixavam com uma cara assustadora. Ela vestia o

uniforme do bar: uma camiseta preta com o nome, calça jeans e um avental

branco na cintura.

— Pela descrição, você deve ser a menina nova. — A mulher olhou Natalie

de cima a baixo. — Toma, pegue isto. — Ela colocou a mão em um dos bolsos e

de dentro tirou um prendedor de cabelo. — Eu sei que não é higiênico, mas esse

é novo, não se preocupe. Melhor usar antes que o Jonathan te veja sem, o

humor dele hoje não é dos melhores, pois os entregadores não chegaram ainda.

Natalie amarrou seu cabelo, e como de costume ficou linda. Mas ela ainda

precisava trocar de roupa. A mulher entrou no bar e pediu para que as garotas a

acompanhassem:

— Aqui estão as duas trocas de uniforme — explicou a mulher, entregando

os uniformes para Natalie. — Nós chegamos aqui com a camiseta trocada, e

apenas colocamos o avental por aqui. Mas, como é o seu primeiro dia, você

pode se trocar no banheiro. A propósito, meu nome é Shanon.

Despois das devidas apresentações, a mulher parecia mais simpática.

Natalie foi até o banheiro e Kelly ficou sozinha com Shanon.

— Pegue aquelas caixas pra mim, menina — disse Shanon apontando para

Kelly.

— Eu só vim trazê-la — explicou Kelly abrindo a porta e saindo dali, antes

que precisasse fazer alguma coisa. — Diga que mandei um beijo e desejo boa

sorte.

Quando saiu do bar, correu para a seu carro e respirou fundo, como se lhe

tivessem pedido a pior coisa do mundo.

— Estou pronta, Shanon. O que posso fazer pra te ajudar? — Natalie estava

linda, e, como era o primeiro dia, sua empolgação também era das melhores

possíveis.

— Você pode pegar aquelas caixas e levar pra cozinha, já que sua amiga

saiu correndo quando pedi isso para ela.

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Natalie começou a rir, imaginando a cara de Kelly quando Shanon havia

pedido aquele favor. Imagina ela quebrando ou estragando alguma unha.

— Boa tarde, meninas lindas. — Nick entrou todo contente no bar, e

carinhosamente cumprimentou as duas com um beijo na mão. — Olá, nova

donzela — disse ele assim que beijou a mão de Natalie.

— Cuidado com ele, garota, é um galanteador barato. – Shanon pegou

umas das caixas e foi em direção à cozinha seguindo Natalie. Depois disse: —

Se eu tivesse uns quinze anos a menos, quem sabe me renderia a essa cantada

barata.

Curiosa, Natalie quis saber a idade de Shanon, sem ser indelicada.

— Mas você ficaria muito nova se tivesse quinze anos a menos.

— Quantos anos você acha que eu tenho, garota? — perguntou Shanon

colocando as caixas no chão.

— Não sei. Uns trinta talvez.

— Você quase acertou. — Shanon lavou as mãos na pia, e continuou: —

Trinta e cinco, sem filhos e divorciada.

— Mas o Nick parece ter uns trinta anos. Não está muito longe da sua

idade.

— Ei, eu ouvi isso — gritou Nick, do lado de fora da cozinha.

— Imagina, ele é mais novo, deve ter seus vinte três, vinte quatro anos. O

Nick trabalha desde os dezesseis, por isso tem esse semblante cansado —

Shanon diminuiu a voz para dizer isso.

As duas foram interrompidas quando um homem negro e bem gordo entrou

na cozinha, com cara de poucos amigos. Encarou Shanon e Natalie, mas não

disse nada, apenas foi para um balcão enorme, pegou uma de suas maiores

facas e fincou em um pedaço de madeira.

— Vamos. — Shanon pegou Natalie pelo braço e as duas saíram da

cozinha rapidamente. — Aquele é o Big Mike, é melhor não ficar na cozinha

enquanto ele estiver trabalhando, nem mesmo o Jonathan fica por lá. Essas são

as condições de trabalho dele.

— Se vocês não sabem o que ele faz na cozinha, como têm coragem de

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comer o que ele prepara? — perguntou Natalie, lembrando-se de que havia

comido no bar sábado.

— O Big Mike é durão, mas, em questão de higiene, ele é nota dez. Uma

vez disse que não iria cozinhar mais, porque as batatas não eram de qualidade,

e o Jonathan teve de trocá-las.

— Ladies. Preciso de ajuda com as mesas aqui — pediu Nick, chamando a

atenção das duas.

— A novata vai te ajudar, eu passo o pano em todas. — Shanon foi para a

área de serviço e pegou os panos, enquanto Natalie ajudava a retirar as

cadeiras de cima das mesas.

Todos continuaram a organizar as coisas no bar, antes que Jonathan

chegasse. Ele sempre entrava pelas portas da frente, abrindo o bar para que os

clientes chegassem. Geralmente por volta das sete e meia o bar começava a

encher, então eles tinham exatamente uma hora para deixar tudo pronto. E

naquele dia, com a ajuda de Natalie, não foi diferente. Quando Jonathan abriu

as portas, Nick já estava atrás do bar, Shanon terminando de colocar os

guardanapos nas mesas e Natalie à espera do chefe para saber o que iria fazer.

— Você, no balcão comigo. — Apontou Jonathan para Natalie, entrando no

bar sem cumprimentar ninguém. — Eles ligaram, Shanon?

— Ainda não. Fique tranquilo, devem estar a caminho — disse Shanon. —

Aliás, temos estoque para hoje, você sabe que o movimento da casa na terça é

pequeno.

— Pode ser, mas sinto que hoje vai ser diferente. — Jonathan foi para o

caixa, para fazer a abertura. — Natalie, você vai ficar comigo hoje para aprender

a mexer no caixa. Se acontecer algum problema durante a noite, eu te aviso o

que tem de fazer. Entendido?

— Sim, senhor — disse Natalie, com todo o respeito.

— Senhor não, garota. — Jonathan olhou para a menina. — Se eu fosse

senhor, estaria rodeado de anjos, e pela cara de vocês, estão mais para

demônios do que anjos.

— Credo, Jonathan, vira essa boca pra lá. — Shanon pegou o pano que

tinha usado para limpar a mesa e foi para área de serviço.

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— Bom, se você tem muitos anjos eu não sei, mas todos dizem que pelo

menos um anjo para nos proteger nós temos — disse Nick, todo empolgado com

o assunto.

— Se fosse assim, muitos não morriam todos os dias — retrucou Jonathan.

— Nesse caso, acho que são os seres lá de baixo — argumentou Nick.

— Por falar em anjos, os meus dois protetores estão aqui. — Jonathan

olhou para porta e lá estavam seus dois seguranças J e G, assim como eram

chamados. — Bom trabalho a todos, o Avalon está aberto.

Aquele era um sinal para que a equipe estivesse preparada para a entrada

dos clientes. J e G estavam na porta, e pareciam duas paredes, de tão altos e

fortes que eram; não falavam muito, mas pareciam ser dois caras legais. Logo o

bar começou a receber seus clientes e ficou cheio. Shanon, que já era bem

experiente com o trabalho, não teve dificuldades em atender a grande

quantidade de clientes. Com o passar do tempo, o número começou a aumentar,

e as pessoas passaram a fazer mais pedidos. Então, Jonathan percebeu que a

garçonete estava ficando atarefada demais e resolveu ajudar.

— Fique aqui. Se algum cliente vier pagar a conta, você já sabe o que fazer.

— Ele se levantou e foi ajudar nos pedidos, enquanto Natalie ficou no caixa

depois de receber as primeiras coordenadas.

Nick fez um sinal para a garota do bar, desejando boa sorte.

Natalie começou a atender alguns clientes que estavam saindo. Ela ficou

um pouco nervosa, pois aquele era um novo desafio para ela. Porém, os

comandos eram bem simples: colocar o número do cartão no computador,

imprimir a conta e esperar o pagamento.

Algumas horas se passaram, a casa ainda estava bem cheia, mas os

atendimentos já estavam bem controlados. Jonathan ficara no lugar de Nick no

bar. Natalie estava tão ocupada que não viu o rapaz saindo e preocupou-se,

pois não sabia dizer onde ele estava.

Alguns minutos se passaram e Nick voltou para sua posição. Jonathan veio

até Natalie e disse:

— Pode sair, você tem vinte minutos de descanso lá fora ou aqui dentro,

como preferir. Só não se sente à mesa com cliente.

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Natalie não sabia que tinha intervalo para descanso. Jonathan era muito

certo em todas as coisas, verificava que seus colaboradores precisavam de uma

pausa. Apenas nos dias de muito tumulto todos entendiam que não era possível

sair. Natalie aproveitou seus minutos e, pela saída dos fundos, foi respirar um

pouco de ar puro.

Lá fora era possível ouvir o som e a conversa das pessoas. Os fundos do

bar eram como um corredor: de um lado, a frente do bar, de onde dava para ver

os carros estacionados; do outro lado, a rua de trás, onde ficavam os galpões

das empresas. Ambos os lados eram fechados com grades bem altas, na parte

da frente havia um portão, com um grande cadeado, era por lá que os

funcionários e as entregas entravam no bar, e no final do expediente era onde o

lixo era deixado.

Natalie estava tranquila quando, de repente, ouviu uma gritaria vinda do

lado onde ficavam os galpões. Como não conseguiu ver nada, resolveu se

aproximar, até que avistou um homem todo de preto, correndo. Logo atrás

estavam mais três que vestiam calças brancas e não usavam camiseta. A garota

pôde ver que os três homens tinham as mesmas tatuagens de asas nas costas.

O homem de preto parecia cercado pelos outros. Em um rápido movimento, ele

deu um salto e asas negras surgiram nas suas costas.

Natalie estava assustada, não sabia se corria para chamar alguém ou se

assistia àquela cena.

No momento em que o homem de preto saltou, um dos outros três rapazes

saltou atrás dele. Aquelas tatuagens nas suas costas pareceram ganhar vida, e

rapidamente se tornaram asas brancas. Os dois brigavam no ar. O de preto

utilizou uma adaga negra para tentar matar seu oponente, que foi mais rápido,

tomando para si o objeto e cravando-o com suas próprias mãos no peito de seu

agressor, levando-o a toda velocidade para o chão, logo em seguida retirou

outra adaga da cor prata e também enfincou no corpo do homem já caído. O

corpo do homem cujas asas eram negras começou a se dissolver feito cinza,

como se queimasse de dentro para fora.

Natalie ficou sem reação. Ao olhar para o relógio, viu que seus vinte minutos

estavam acabando. Ela decidiu entrar novamente no bar. Quando voltou para o

caixa, Jonathan disse:

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— Que cara é essa, garota? Parece que viu um fantasma. Volte ao trabalho,

que a Shanon precisa de um descanso.

Ela voltou, mas sua cabeça não parava de pensar no que vira. Primeiro,

vozes de pessoas que aparentemente estavam mortas; depois, vultos; agora,

seres que pareciam anjos e um demônio. A garota não se lembrava do anjo

morto no posto, mas naquele momento ela sabia que precisava colocar sua

cabeça no lugar, pois estava trabalhando com dinheiro. Então, tentou esquecer-

se do que viu.

Do lado de fora, em cima de um galpão, estava Carsten, que parecia ter

visto toda a cena. Antes que pudesse ser notado, ele resolveu sair dali. No meio

do caminho, parou em um dos galpões e encontrou Victor e Katherine. Sua

expressão era estranha e assustada.

— Aconteceu alguma coisa, Carsten? Onde você estava? — perguntou

Katherine, curiosa com a expressão facial do rapaz.

— Acabei de confirmar o que eu já sabia — disse Carsten depois de ter

visto que Natalie realmente podia vê-los.

— Confirmar o quê? — perguntou Victor.

— Confirmar que os anjos estão nos caçando em bandos maiores. —

Carsten tentou disfarçar. — Acabei de ver um de nós ser morto por outros três.

— Isso é uma covardia — disse Katherine, olhando para todos os lados.

— Já fizemos isso outras vezes. — Victor retirou duas cápsulas de dentro

do seu bolso. — Aliás, fizemos isso hoje. E você, pegou alguma nessa saída

repentina, Carsten?

— Apenas uma até agora. Estava observando o ataque dos anjos, eles

estão se vingando.

— Podemos ir lá e acabar com eles. — Victor já se preparava para ir na

direção onde Carsten estava, quando foi interrompido pelo rapaz.

— Victor, somos apenas três; quando saí de lá eles já eram cinco. Como eu

te disse, eles estão muito bem preparados.

— Acho melhor recuarmos hoje — aconselhou Katherine sabiamente. —

Amanhã teremos mais tempo de analisar o que está acontecendo, e precisamos

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reportar isso para o Ancião.

— Você está maluca? — gritou Victor. — Se falarmos isso para ele,

ficaremos mais um grande tempo sem sair de lá.

— Victor tem razão, Katherine. Só precisamos tomar cuidado. Acho melhor

irmos agora, já conseguimos algumas cápsulas — disse Carsten, se preparando

para partir.

O imenso portal se abriu e os três desapareceram como nas outras vezes.

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Capítulo 11

ENCONTROS, festas e muito trabalho todos os dias no bar Avalon. Tudo

parecia tranquilo para Natalie. Ela estava aprendendo coisas diferentes e se

aperfeiçoando nas novas funções. Aquele dia, como todos os outros, começou

para Natalie depois das duas da tarde, pois o trabalho, por mais agradável que

fosse, a consumia muito.

Naquela semana, ela já havia trabalhado no caixa, ajudado Shanon com as

mesas, levado o lixo para fora, auxiliado na limpeza. Tudo aquilo parecia

agradar Jonathan, que já tinha elogiado a moça. Mas aquele dia seria diferente.

Em todas as sextas o bar era diferente: recebia bandas convidadas por

Jonathan e, no fim da noite, elas recebiam um cachê. A organização do bar era

bem diferente, Natalie já havia percebido isso, quando, na noite anterior, ao

invés de colocar as cadeiras em cima das mesas, eles as guardaram na área de

serviço. Naqueles dias de banda, algumas mesas eram espalhadas pelo

ambiente, e todos os clientes curtiam o show em pé. Shanon e Big Mike ficavam

de folga às sextas-feiras, pois a cozinha sempre fechava e os serviços da

garçonete não eram solicitados. Apenas o bar funcionava.

Natalie havia sido escalada para trabalhar no bar com Nick. Na noite

passada, quando tivera um pouco de folga, ela o observou para aprender com

ele. Nesses dias de show, algo mais simples era servido, como cerveja, vodka,

entre outras doses.

O que Natalie não sabia é que naquela noite as bandas convidadas seriam

de heavy metal. Natalie não tinha preconceito com nenhum tipo de música, mas

não seria uma experiência muito boa para quem não estava acostumada com

aquele estilo. A melhor parte da noite das bandas era que o bar só abria às nove

da noite.

Todos os dias, Natalie ia para o trabalho de ônibus e voltava de carona com

Shanon, que morava no caminho de sua casa. Naquela noite ela teria que

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arrumar outra carona para casa, já que sua colega de trabalho estava de folga.

O dia foi passando e as coisas acontecendo. Natalie ligou para Kelly e

contou as novidades do bar, evitando falar da briga, algo que atormentava a sua

cabeça naquele dia, a amiga também contou um pouco sobre suas futilidades,

as quais Natalie adorava ouvir.

No início da noite, Dorah, após chegar do trabalho, também preparou um

delicioso jantar. Apenas mãe e filha jantaram juntas, pois Gabriel estava na casa

de uns amigos e ligou falando que comeria por lá. A conversa entre as duas foi

agradável, falaram sobre o trabalho, os clientes e a noite que viria em seguir.

Faltando pouco tempo, Dorah pegou as chaves do carro e levou Natalie até o

trabalho.

Como de costume, Avalon estava com as luzes acesas, mas as portas da

frente permaneciam fechadas. Natalie perguntou se a mãe gostaria de conhecer

o local, mas, como Dorah estava muito cansada, preferiu ir para casa.

Assim que entrou pelas portas dos fundos, deu de cara com J e G. Então,

deu um sorriso e um oi e foi retribuída pelos dois brutamontes. Como Nick havia

chegado mais cedo, tudo estava limpo e arrumado, e ele aproveitou para ensinar

à garota o que ela precisava saber sobre o bar. Não demorou para que ela

pegasse todos os detalhes. Assim, quando Jonathan chegasse, bastava apenas

que a primeira banda levasse os equipamentos para a montagem do palco, e o

bar poderia abrir pontualmente às nove da noite.

Muitos dos clientes eram estranhos para Natalie, já que aquela era a sua

primeira noite de banda, e eles não pareciam o tipo de pessoa que frequentava

o local. Ela assustou-se no começo, mas logo se acostumou. Enquanto a banda

não começava a tocar, um rock pesado se ouvia em alto volume. De uma hora

para outra a casa já estava lotada, e havia fila do lado de fora.

A primeira banda tinha um nome tão estranho que se Natalie precisasse

contar para Kelly no outro dia, ela não se lembraria. A música deles também era

algo que Natalie desejaria não lembrar por muito tempo, cheia de gritos e mais

gritos. Apesar de ela não gostar, o público parecia estar adorando, e o dono do

bar também, pois as vendas estavam bem altas naquela noite.

Quando a segunda banda começou a tocar, o movimento do bar diminuiu

um pouco, e foi nesse momento em que a entrada de um rapaz chamou a

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atenção de algumas pessoas, principalmente das mulheres. Carsten estava lá, e

parecia que todo mundo conseguia vê-lo. De alguma forma, ele queria chamar a

atenção. Não era das outras meninas, mas, sim, de Natalie.

Assim que o rapaz chegou, Nick foi atendê-lo.

— Desculpe, mas gostaria de ser atendido pela garota — pediu Carsten.

— Fique à vontade. — Nick olhou para Natalie. — Ei, Natalie, cliente.

Sem entender o que estava acontecendo e por que Nick não tinha atendido

o rapaz, ela chegou até ele e disse:

— O que você deseja?

— Uma cerveja — ele pediu.

Natalie foi até o freezer, pegou a cerveja e a entregou nas mãos do rapaz.

Quando as duas mãos se encontraram, foi como se Carsten tivesse levado um

choque e fosse impossível de tocá-la.

— Obrigado — agradeceu o rapaz, encarando o rosto da menina. — Você é

nova por aqui, não é?

— Sim, comecei esta semana — respondeu Natalie atendendo a outros

clientes que prestavam atenção na conversa.

— Uma semana e já está experiente assim? — elogiou Carsten.

— Cuidado que o cão de guarda está de olho – disse Nick olhando para

Natalie e apontando para Jonathan com o olhar.

— Desculpa, moço, mas eu preciso trabalhar. — Natalie continuou seu

trabalho e não deu muita atenção para o rapaz.

Carsten continuou tomando sua cerveja e foi em direção ao caixa, mas seus

olhos acompanhavam Natalie. Ao pagar aproveitou e pediu outra cerveja, dirigiu-

se para uma das mesas e continuou observando a garota. Natalie, por sua vez,

estava com o homem do posto e da janela do seu quarto, mas parecia não se

lembrar de nada.

O som do bar foi interrompido. Duas garotas que chegaram deram o recado

para o cantor avisando sobre o acontecido na cidade:

— Atenção, todos os clientes do bar. Parece que a nossa cidade sofreu

nesta noite um ataque de um animal. Ainda não sabemos do que se trata. Sete

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pessoas foram encontradas mortas na floresta da região sul.

O cantor parecia preocupado, mas não queria acabar com a noite nem com

seu show:

— Vamos curtir a noite e, na hora de ir embora, tomem muito cuidado.

Todos ficaram apreensivos, alguns clientes preferiram ir embora, mas a

diversão continuou para muitos. Natalie ficou preocupada com a notícia, pois

sabia que sua mãe a tinha deixado ali e depois ido para casa; seu irmão também

estava na rua. Nick disse à garota que, depois que fechasse tudo, ele a levaria

para casa.

Carsten, por sua vez, no momento em que ouviu a notícia, saiu rapidamente

do bar, largando sue cerveja na mesa.

— Você está bem? — perguntou um dos clientes que prestava atenção na

conversa.

— Sim. — respondeu Natalie, sem entender a curiosidade do homem.

Carsten não sabia que estava sendo observado por Victor e Katherine.

— Então ele veio visitar a garota, e ainda se mostrou para vários humanos

sem permissão — disse Katherine.

— Dessa vez ele será punido — ameaçou Victor. — Vou contar para o

ancião.

— Você não vai fazer nada, Victor, ele acabou de ficar invisível para os

humanos. E você viu a qual velocidade que ele saiu? Há essa hora já deve ter

descoberto quem provocou o ataque animal.

— Não estou me importando com isso.

— Pois deveria. — Katherine olhou para o garoto com o rosto bem sério. —

O ancião também não permitiu esse ataque, não é?

— De que lado você está, Kath? — perguntou Victor.

— Do lado oposto dessa menina — respondeu a moça olhando para o bar

— Mas do lado que vai me fazer ficar fora daquela sala novamente.

******

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Carsten estava a caminho do lugar onde os corpos foram encontrados.

Mesmo possuindo a habilidade da velocidade o local era bem longe do bar.

Porém, novamente invisível para os humanos, ele seguiu o caminho pensando

no que havia acontecido naquela noite. Carsten sabia que Natalie podia vê-lo,

mas não entendia por que ela agira como se não se lembrasse dele.

Mesmo tentando evitar, muitos pensamentos confusos passavam por sua

cabeça a respeito do ataque e de Natalie. Não conseguia entender por que

aquela garota chamava tanto a sua atenção. Carsten sabia que, se continuasse

a encontrá-la, correria perigo. Mas de uma coisa estava certo: aquela não seria

a ultima vez em que a veria.

Carsten finalmente chegou ao local do crime. Em meio a uma mata fechada,

ficava próximo à estrada por meio da qual era possível sair da cidade de

Polsher. Encontrava-se totalmente interditado. Havia muitos policiais, dentre eles

o detetive Ramones, mas, como ninguém conseguia vê-lo, foi fácil ultrapassar os

guardas que bloqueavam a passagem.

O cenário era de sangue e corpos por toda a parte, e dava a entender que

aquelas pessoas haviam sido atraídas de alguma forma para lá. A grande

maioria das vítimas estava coberta por lençóis brancos. Os policiais ao redor

diziam se tratar de um ataque de lobos, mas Carsten sabia que aquele não era

um simples ataque de animais. O único capaz de atrair tamanho número de

pessoas e matá-las daquela forma era Larxen.

— Precisamos retirar esses corpos antes que a imprensa chegue — disse

Ramones.

— Tarde demais, senhor, eles já estão aqui — informou um dos policiais.

— Só não deixe que eles se aproximem — pediu o detetive.

— O que falamos para eles? — perguntou o policial.

— Apenas diga que, assim que possível, daremos as devidas informações.

— Por um momento o detetive parou, e se questionou: — O que está

acontecendo com essa cidade?

Carsten sabia o que estava acontecendo com aquela cidade, só não

entendia por que Larxen teria feito aquilo. Mas ele sabia quem tinha a resposta

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para isso, e não pensou duas vezes: foi atrás de Victor.

******

O bar já estava com as portas fechadas, Natalie e Nick arrumavam o local

para que as cadeiras e mesas fossem colocadas novamente. Jonathan contava

o dinheiro. Depois que J e G ajudaram a colocar todas as cadeiras e mesas,

eles estavam prontos para ir para casa. Assim como prometeu, Nick deu carona

para Natalie.

— O que você está achando do trabalho? — perguntou o rapaz no caminho.

— Nossa, Nick, apesar de ser a primeira semana, estou adorando. Vocês

todos foram bem acolhedores comigo. Só acho que ando experimentando drinks

demais.

— Não se preocupe, foi assim comigo também, tinha que saber se estava

bom, antes de servir, daqui a pouco você não vai precisar nem experimentar

mais.

— É melhor assim, tenho medo de virar uma alcoólatra.

Ambos riram, quando Natalie olhou para rua, e mudou de assunto:

— Nick, você acredita em anjos? — aquela pergunta deixou o rapaz

perplexo.

— Porque está me perguntando isso?

— Por nada, apenas uma curiosidade — Natalie se lembrou da noite

anterior e antes que tivesse que entrar naquele assunto louco, preferiu mudar de

assunto.

— Você ficou assustado com o ataque?

— Fiquei sim. Pelas poucas informações que peguei, o local das mortes é

bem próximo de casa.

— E você vai ficar bem? — indagou a moça.

— Claro, fique tranquila, eu consigo me virar. Prometo que fico com o vidro

do carro fechado — disse o rapaz rindo.

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Nick deixou Natalie na porta de casa. A garota ficou mais aliviada quando

viu o carro da mãe na garagem. Assim que entrou, Nick partiu.

Natalie subiu as escadas nas pontas dos pés para não acordar seu irmão e

sua mãe, mas quando olhou para o quarto do irmão, viu que estava vazio.

Naquele momento sua espinha congelou, e ela imaginou que Gabriel pudesse

ser uma das vítimas. Ela correu para o quarto da mãe e gritou:

— Mãe, mãe, onde está o Gabriel?

— O quê? O que você? — Dorah parecia sonolenta, fazia perguntas sem

sentido, até que pulou da cama. — O que foi minha filha?

— Onde está o Gabriel? — perguntou Natalie assustada.

— Ele está dormindo na casa de um amigo da escola.

Natalie escutou as palavras da mãe e parecia estar completamente aliviada.

— Me desculpa te acordar assim, mas fiquei sabendo dos ataques dos

animais, e fiquei preocupada — explicou a garota.

— Quando ouvi as notícias também fiquei, mas logo liguei para ele. —

Dorah encostou a cabeça no travesseiro. — Fique tranquila e vá dormir, minha

filha, amanhã é sábado, o dia em que o bar mais fica cheio, não é?

— Você tem razão. Boa noite, mãe.

— Boa noite, minha filha.

Natalie foi para o quarto mais aliviada. Quando estava se trocando seu

celular tocou. No visor estava o nome da amiga Kelly. Àquela hora da

madrugada, Natalie rapidamente atendeu ao telefone, nervosa.

— Você está bem, monstrinha? Fiquei preocupada — perguntou Kelly.

— Estou sim. E você?

— Estava indo dormir agora, o Dalton acabou de sair daqui, e depois das

notícias fiquei preocupada com você — explicou Kelly. — Como este é o horário

em que geralmente o bar fecha, resolvi ligar.

— Pois é, fiquei preocupada com tudo que aconteceu hoje. Essa cidade

está ficando estranha.

Momentos como aquele, ela sentia muita vontade de compartilhar as coisas

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com Kelly, como a briga que presenciara na noite passada.

Contudo, as vozes misteriosas não eram mais ouvidas por Natalie com tanta

frequência, deixando-a um pouco mais tranquila, já que naqueles dias muitas

surpresas estavam acontecendo.

— Mas e aí, me conta da noite de rock no bar hoje, como foi? Muita gente

bonita? — perguntou Kelly curiosa.

— Olha, trabalhei tanto no bar, que nem tive tempo de reparar nisso —

disse Natalie.

— Fala sério, monstrinha. Com tanto caras, você solteira, nem para reparar

em ninguém?!

— Kelly, eu estava trabalhando. Você quer o quê? — Natalie parecia irritada

com o comentário da amiga, mas, naquele momento, a imagem de um rapaz

que pediu uma cerveja na noite veio à cabeça da garota. — Na verdade teve um

rapaz.

— Eu sabia — Kelly interrompeu Natalie. — Você não é tão bobinha assim.

— Ei, espera aí, eu não fiz nada. Como eu te disse, estava trabalhando —

explicou Natalie.

— E como ele era? — Kelly parecia muito curiosa do outro lado da linha. —

Ele era bonito?

Natalie não havia parado para pensar nisso. Ao recordar de seu rosto, por

um momento, teve a sensação de que o conhecia de algum lugar, mas não

sabia de onde.

— Ele era bem bonito, do tipo que chamava atenção das garotas que

estavam lá — Natalie comentou.

— Não quero saber o que as meninas acharam dele, quero saber o que

você achou. Ele era loiro, moreno? Me diz, Natalie.

— Kelly, ele era apenas mais um cara que eu atendi, eu nem conversei com

ele direito. — Natalie não estava entendendo a curiosidade a amiga. — Mas, tá,

ele era moreno, tinha cabelos negros, a pele bem branca e um corpo bonito. Foi

isso que consegui notar.

— Só isso? Que falta de emoção e criatividade para me contar as coisas.

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Você só pode estar com sono.

— Pois é, já são três da manhã, e eu ainda tenho que tomar um banho

antes de dormir. — Mesmo sabendo que não ia tomar banho pelo cansaço, ela

não podia dizer que dormiria sem fazê-lo. — Amanhã conversamos mais. Boa

noite.

— Boa noite, durma bem e sonhe com o rapaz do bar. — Kelly desligou o

telefone rindo.

Depois de desligar o telefone, Natalie parou por um instante e se lembrou do

momento em que estregou a cerveja para o rapaz. Ela havia sentido algo

estranho quando o rapaz tentou tocar a sua mão, mas não sabia explicar o que

era.

Assim que Natalie se deitou começou a sentir sonolência, ouviu algumas

vozes que a despertaram rapidamente. Aquelas vozes, que já havia algum

tempo não a visitavam, agora estavam em seu quarto, todas de uma só vez.

Tentando compreender o que acontecia, acendeu as luzes e correu para a

penteadeira, onde pegou seu caderno e uma caneta, colocou a data daquele dia

e começou a anotar as mensagens.

Natalie tentava escutar a voz de seu pai, mas não conseguia distingui-la em

meio a tantas outras. O falatório parecia desconexo, sem sentido.

— Tentem falar uma de cada vez, para que eu possa escutá-los. — Natalie

tentou uma comunicação e, por incrível que pareça, todos ficaram em silêncio.

— Agora falem um de cada vez. — Como nada fora ouvido, ela tentou

novamente: — Vamos, falem, estou aqui para ouvi-los e, de alguma forma,

tentar ajudar.

Natalie estava nervosa. Falava sem se preocupar, e nem ao menos sabia se

aquelas eram pessoas boas ou ruins. Alguns minutos se passaram, e quando

Natalie estava pronta para apagar a luz, uma voz resolveu se pronunciar:

— Eu fiz uma coisa muito ruim.

— O que você fez? Me diz — perguntou Natalie, sem saber com quem

estava falando.

— Eu mereço ser castigada — quem disse foi uma voz feminina, mas não

era possível identificar se a mulher era nova ou velha.

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— O que você está falando? Por que merece o castigo? — insistia Natalie.

— Meu filho. Eu fiz uma coisa muito ruim. Eu e meu marido devemos ser

castigados — a mulher continuava dizendo o que, para Natalie, não fazia sentido

algum.

— Eles levaram nosso filho, porque fizemos coisas erradas.

Cada palavra dita pela mulher era anotada pela garota. Então, curiosa,

Natalie resolveu tentar se comunicar com ela, apesar do medo, pois era a

primeira vez em que ela tinha contato direto com eles.

— Como é o nome do seu filho, e quem são essas pessoas as quais você

se refere — perguntou Natalie.

— Eles são maus, mataram todos da nossa vila, inclusive meu marido.

Natalie agora teve a certeza de as pessoas com quem ela conversava

estavam realmente mortas. Mas, naquele momento, pouco importava quem

eram elas, pois a garota queria descobrir sobre o que aquela mulher estava

falando.

— Me diga seu nome e o nome do seu filho — pediu Natalie.

— Eu não posso. Eu não me lembro — lamentou-se a mulher. Depois

daquele momento, ela não disse mais nada.

Para Natalie, tais informações eram muito vagas, mas o fato de que ela

poderia conversar com pessoas mortas a intrigava cada vez mais. Naquela

noite, teve dificuldades para dormir e ficou pensando muito a respeito, e,

principalmente, que poderia de alguma forma conversar com seu pai.

******

— Parece que ela está desenvolvendo suas habilidades mais rápido do que

imaginávamos — disse um homem alto e forte na escuridão.

— Devemos continuar a seguir as ordens dadas pelo mestre dos mestres —

uma terceira voz vinda das sombras participou da conversa. Tratava-se do

Doutor Reik, que usava roupas brancas, mas não como as do hospital (ela era

comprida, parecia um manto que cobria todo o seu corpo). E ele continuou: —

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Dentro de alguns dias, o efeito do esquecimento dela vai passar, e as coisas

ficarão mais claras. Nesse momento, devemos ficar atentos.

— Existem anjos olhando por ela o tempo todo, não teremos problemas

quanto a isso – disse o segundo homem. — Eles foram permitidos a se misturar

em meio às pessoas, não estão provocando nenhuma desconfiança.

— Você se engana de pensar assim. Logo os anciões saberão dela, e com

toda certeza tentarão matá-la a todo custo — explicou o médico.

— Primeiro eles terão que nos enfrentar — falou o primeiro homem.

— É melhor evitarmos e ficarmos de olho nela, alguns demônios andam

rodeando a garota, mas não tentaram nada contra ela.

— E porque não foram mortos? — perguntou o segundo homem.

— Nenhum sinal foi dado. Eles apenas a estão observando, porque já

devem perceber que ela pode vê-los. Neste momento temos que apenas

lembrar-nos da missão, protegê-la a todo custo. Somente isso, senhores. —

Reik finalizou assim a conversa.

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Capítulo 12

BRIGAS não eram frequentes no Avalon, um bar que era mais tranquilo que

os demais. Faltavam poucos minutos para o bar abrir, e Nick ajudava Shanon

com as mesas. Geralmente as noites de sábado eram mais movimentadas,

porque, além do bar, a cozinha também funcionava, e a movimentação do caixa

era bem alta, visto que havia fila e era o único dia em que reservas eram

permitidas.

Assim que chegou, Natalie viu o recado deixado por Jonathan para que ela

confirmasse as reservas e informasse aos clientes que as mesas ficariam à

disposição somente até às oito da noite. Enquanto ela executava a tarefa, seu

celular vibrou. Era Kelly mandando uma mensagem para a amiga:

OI, MONSTRINHA, DALTON E EU ESTÁVAMOS PENSANDO EM IR AO BAR HOJE.

AINDA TEM MESAS PARA RESERVA? PRECISO TE CONTAR SOBRE ONTEM À

NOITE: DEPOIS QUE DESLIGUEI O TELEFONE, O DALTON APARECEU AQUI. VOCÊ

JÁ PODE IMAGINAR O QUE ACONTECEU, NÉ? BEIJINHOS.

Natalie ficava constrangida ao imaginar os momentos íntimos da

amiga. Principalmente depois de mensagens assim. Como estava bem

atarefada, não respondeu a mensagem.

Ela verificou a lista de reservas, mas infelizmente todas as mesas já

estavam ocupadas. Mas, como ela não havia terminado as ligações,

ainda poderia haver desistência.

Jonathan sabia que poderia receber novos clientes todas as noites.

Então, como era esperto, deixava apenas algumas mesas reservadas;

assim, quem visitasse o bar pela primeira vez poderia aproveitar a noite

também.

Após fazer todas as ligações, Natalie constatou que todas as mesas

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estavam confirmadas, e isso era um sinal de que a noite ia ser bem

movimentada. Quando Nick viu a lista, foi buscar novos banquinhos na

área de serviço para colocar ao redor do bar. Lá alguns clientes poderiam

beber enquanto aguardavam as mesas, ou até mesmo permanecer

durante a noite.

— Hoje a noite vai ser puxada, se prepare — advertiu Nick olhando

para Natalie.

— Mais do que ontem? — perguntou Natalie fazendo cara de

cansaço.

— Meu Deus! Já está com preguiça? — comentou Shanon com ar de

brincadeira.

— Depois daquelas pessoas estranhas de ontem, qualquer um ficaria

cansado. — Natalie olhou para Nick e deu uma leve piscada.

— Bom, acho que já está tudo pronto. Assim que o Jonathan chegar,

abriremos o bar. — Nick observou Big Mike, J e G chegando para o

trabalho e depois sugeriu: — Aproveitem para descansar um pouco

agora.

Natalie valeu-se daquele momento para relaxar e responder a

mensagem de Kelly:

INFELIZMENTE, MESAS CHEIAS. MAS VOCÊS PODERIAM TENTAR VIR DE

QUALQUER FORMA, É SÓ CHEGAR MAIS CEDO. EXISTEM AS MESAS QUE NÃO

PODEM SER RESERVADAS. SOBRE A NOITE, ME POUPE DOS DETALHES, OK?

BEIJINHOS.

Não demorou muito tempo para que a resposta chegasse. Kelly era

tão rápida para responder, que parecia usar os cinco dedos:

VOU CONVERSAR COM O DALTON, MAS ACHO QUE DEIXAREMOS PARA OUTRA

NOITE. DESCULPE FALAR SOBRE INTIMIDADE, ESQUECI QUE VOCÊ NÃO FAZ

ISSO AINDA. BRINCADEIRINHA. BEIJINHOS.

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Não satisfeita com a mensagem, Natalie achou melhor nem

responder.

Todos estavam bem relaxados, quando Jonathan chegou para

acabar com a folga:

— Mesas confirmadas? Bar pronto? Ambiente limpo? Seguranças a

posto? Cozinha a todo vapor? — O chefe parecia bem agitado naquela

noite, chegou fazendo as perguntas e olhando para cada responsável.

— SIM! — responderam todos ao mesmo tempo.

— Hoje a noite será daquelas, chefe — disse Nick.

— Muito bem, eu gosto disso. Bom trabalho a todos — desejou

Jonathan a seus colaboradores.

As portas do Avalon estavam abertas à espera dos seus clientes.

À medida que o tempo foi passando, o bar foi ficando cheio. As

pessoas que haviam feito reserva já estavam lá e, em poucos minutos,

todas as mesas e bancos do bar estavam ocupados. Jonathan ajudava

Shanon, parecendo não aguentar ficar parado em um canto. Como já

havia adquirido confiança em Natalie, deixou a garota no caixa sem mais

preocupações.

De hora em hora o público do bar ia mudando; algumas pessoas

saíam, novas entravam, algumas permaneciam. Em determinado

momento da noite, uma mulher entrou chamando a atenção de vários

homens. Ela vestia um vestido preto bem curto e sapatos de salto alto

que a deixavam mais alta do que já era. Aqueles longos cabelos ruivos

se destacavam no visual escuro. Era Katherine à vista de todos os

humanos, mas sem a companhia de Carsten e Victor.

Assim que chegou, foi diretamente ao bar. Quando viu que todos os

bancos estavam ocupados, parou e observou que um rapaz estava de

olho em uma menina sentada na mesa. A ruiva se aproximou dele e

colou uma de suas mãos no ombro do rapaz. Como se tivesse criado

uma coragem do tamanho do mundo, o rapaz se levantou e foi

diretamente à mesa da garota, beijando a sua mão e pedindo para se

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sentar.

— Como o amor é lindo — disse Katherine fazendo cara de nojo. E,

virando-se para Nick, pediu: — Uma cerveja.

O rapaz entregou a cerveja na mão dela, parecendo encantando com

a beleza da moça, assim como todos os homens no bar. A ruiva nem

dava bola para nenhum deles, e discretamente observava Natalie, com

medo de ser reconhecida. Apesar de não acreditar nas palavras de

Carsten, ela estava ali para descobrir o que estava acontecendo, e qual

era o motivo da obsessão do rapaz.

Assim que percebeu estar sendo encarada, Natalie se sentiu

incomodada, mas, como estava atendendo a vários clientes, não tinha

muito tempo a perder.

— Linda noite, não é? — disse um rapaz sentado ao lado de

Katherine.

— Estaria mais bela se não fosse pela sua presença? — Ela sorriu.

— Calma princesa...

— Princesa? Melhor você dar o fora ou vai se arrepender —

Katherine se virou para o homem e segurou as mãos dele e puxou o ar

delicadamente, para sentir seu odor. — Consegue ser tão repugnante

quanto o seu cheiro.

O rapaz não esperava ouvir aquele comentário e se levantou, indo

direto ao banheiro, possivelmente para ver se realmente estava

cheirando mal.

— Você foi dura com o rapaz — disse Nick

— Possivelmente ele deve estar com o mesmo cheiro que... —

Katherine sentiu o cheiro de Nick, mas, para ela, diferente, porém não

muito estranho.

— O meu cheiro está ótimo, tomei um belo de um banho antes do

trabalho. Outra cerveja? — comentou o rapaz, depois que viu que a ruiva

já estava com a garrafa vazia.

— Sim, pode me dar outra. — A ruiva continuou olhando para

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Natalie. — Aquela garota ali. — Apontou Katherine com a cabeça,

perguntando a Nick. — Qual o nome dela?

— Natalie. Você a conhece? — perguntou Nick.

— Não, mas estou muito a fim de conhecer — disse a ruiva.

Nick não estava entendendo mais nada, até pensou que Katherine

poderia estar interessada em Natalie, mas logo seu pensamento foi

cortado pelas palavras da ruiva:

— Não pense besteiras, eu apenas acho que a conheço de algum

lugar.

— Ela é nova aqui, não sei se foi do bar. Já esteve aqui antes? —

perguntou o rapaz.

— Não, mas acho que pretendo voltar outras vezes, caso seja

necessário. Posso ter minha conta? — pediu a ruiva para Nick.

— Você pode ir direto ao caixa com seu cartão.

Katherine esperou que o movimento do caixa terminasse e se

levantou em direção a Natalie.

— Minha conta, por favor — pediu a ruiva à garota, entregando o

cartão.

— Oito apenas. Dinheiro ou cartão? — perguntou Natalie

educadamente.

— Dinheiro. — Katherine parecia olhar para Natalie tentando

descobrir alguma coisa. — O que você tem de tão especial?

— Desculpe? — Natalie pareceu não entender o comentário da

mulher.

— Nada, apenas pensei alto. — Katherine deu uma nota de

cinquenta para Natalie, e quando tentou segurar a mão da garota,

percebeu que não podia tocá-la. – Está protegida, então?

— Não estou te entendendo? — perguntou Natalie. — Aqui está seu

troco.

— Não se faça de boba. Ele deve estar interessado em você, porque

sabe que tem algum segredo.

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— Você está começando a me assustar, moça. De quem você está

falando?

— Se você estivesse sem essa proteção, já estaria morta.

Naquele momento, Shanon, que estava no bar pegando mais

bebidas, escutou o comentário da moça e, percebendo a cara de espanto

da Natalie, foi direto para o caixa.

— Tem alguma coisa acontecendo aqui?

— Ainda não, mas se você me interromper, poderá acontecer —

disse Katherine ameaçando Shanon.

Alguns rapazes que estavam no bar se levantaram, eles estavam

prestando atenção na conversa desde o início, a impressão que dava era

que eles esperavam por alguma coisa, de qualquer forma ficaram de

longe aguardando qualquer movimento.

Natalie lembrou-se do que Jonathan dissera certa vez: se tivesse

algum problema no caixa, havia um botão debaixo da mesa que podia ser

acionado para que os seguranças viessem ajudá-la. Sem pensar duas

vezes, ela apertou o botão e em um segundo J já estava do lado da ruiva.

— Acham que um homem pode dar conta de mim? — Katherine

disse isso sem nenhum medo, intimidando o segurança. — Bom, meu

tempo aqui acabou.

— É melhor que você vá embora mesmo — disse Shanon.

Todos no bar já estavam reparando na confusão formada no caixa.

— Você já está avisada, garota, fique longe dele. E você, conte seus

dias — disse a ruiva olhando para Shanon.

— Você está me ameaçando? — gritou Shanon.

Ao ver a situação que estava se formando, Jonathan se apressou

para chegar ao caixa.

— Ei, o que está acontecendo aqui? Os clientes estão olhando.

J pegou no braço de Katherine, levando-a para fora.

— Mas que lindo! Você vai me acompanhar até lá fora de braço

dado?

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— Essa louca estava incomodando a Natalie — disse Shanon.

— Você conhecia a moça, Natalie? — perguntou o chefe.

— Não eu nunca a vi. Ela apenas...

— Ela era uma louca que já foi tirada daqui — interrompeu Shanon,

evitando mais conversas.

— Então, vamos voltar ao trabalho. — Ao perceber que todos

olhavam para a situação formada, Jonathan foi ao bar e pediu para que

Nick aumentasse a música. Em poucos minutos, tudo havia voltado ao

normal, e a noite continuou.

Os homens que estavam de pé voltaram a se sentar, apenas

observando a ruiva do lado de fora.

******

Longe do bar, na casa de campo abandonada, Carsten estava

sentado na varanda do rancho, parecendo esperar por alguém, quando

de longe avistou Victor vindo em sua direção. A noite estava dominando

o lugar, foi então que Carsten pôde perceber Larxen acompanhando o

garoto. Aquele animal negro era quase imperceptível na escuridão, mas

seus olhos vermelhos foram vistos e o rapaz logo o reconheceu.

Victor segurava cinco cápsulas na mão, e, como seu braço estava

manchado de sangue, elas ficaram avermelhadas.

— Pelo visto a caçada foi boa. — Uma vela ao lado de Carsten era a

única iluminação do lugar. — Onde está Katherine?

— Eu não sei, ela disse que resolveria um problema — respondeu

Victor.

— Como conseguiu acabar com cinco? — perguntou Carsten,

curioso em saber por que a mão de Victor estava suja de sangue.

— Dessa vez usei a minha habilidade. Como você sabe, ela está

evoluindo; cada vez me sinto mais forte.

— Quer dizer que acabou com eles usando suas mãos? — Carsten

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segurou a vela na mão e colocou próxima ao rosto de Victor.

— Sim, matei um por um com minhas próprias mãos. — Victor se

sentou em um banco na varanda, bem próximo de Carsten. — E você?

Quantos conseguiu até agora?

— Nenhum! — O rapaz abaixou a cabeça, parecendo estar bem

tranquilo. — Fiquei aqui descansando, não quero matar nenhum anjo

hoje.

Naquele momento Victor aparentou inquietude, dando a entender

que segurava a raiva que o consumia por dentro. Até que Carsten

resolveu provocá-lo:

— Vamos, Victor, diga o que você está pensando. Não me deixa

curioso, não.

— Eu só não consigo entender por que você continua sendo o

favorito, se nem caçar anjos consegue mais. — O rapaz se levantou e foi

para o lado de fora, ficando de costas para Carsten.

— Eu consigo ser o favorito, porque ainda posso ser mais inteligente

que você.

Victor virou-se para Carsten com fúria nos olhos, e, em um

movimento rápido, partiu para cima do rapaz. Ele apenas segurava a

camisa de Carsten, encarando-o.

— Seu idiota. Se acha mais inteligente que eu, mas não consegue ao

menos disfarçar que está correndo atrás daquela garota.

— Do que você está falando, Victor?

— Chega de mentiras. Eu e a Kath vimos você saindo do bar ontem

à noite na sua forma de humano. Você foi para vê-la, e eu sei por quê.

— Você é maluco, Victor. Eu apenas fui para o bar para verificar um

humano que poderia me atrair vários anjos, não existe ninguém

trabalhando lá.

— Não se preocupe. A Kath já foi averiguar isso e, a essa hora, já

deve ter resolvido o problema.

Nesse momento, a expressão de Carsten mudou totalmente. Era

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impossível que ele continuasse negando. Victor conseguiu ver em seu

olhar que ele estava completamente preocupado, e resolveu continuar:

— Eu sei muito bem o porquê desse seu fascínio por ela. Ela pode

nos ver, não é?

— De novo com essa história? Você e a Katherine já estão ficando

malucos com isso. — Carsten deu um empurrão em Victor para que o

garoto saísse de cima dele.

— Eu a visitei.

Nesse momento Carsten ficou paralisado. Depois de tanto dito por

Victor, aquelas palavras pareciam ter realmente afetado o rapaz.

— Você fez o quê? — Carsten usou a sua velocidade para jogar

Victor contra a parede. Depois o segurou pela garganta, dificultando a

fala do rapaz. — Diga o que você fez, Victor?

Apesar de Victor possuir uma grande força, Carsten era mais velho

que ele, portanto suas habilidades eram mais bem desenvolvidas.

— Eu visitei a casa dela uma noite na minha forma humana. Ela

sentiu a minha presença, mas, antes que pudesse me ver, eu desapareci.

Carsten parecia mais tranquilo, quando percebeu que Natalie não

tinha visto Victor.

— Você não tinha esse direito. Victor. Por que foi atrás dela?

— Apenas me diga, Carsten, por que você está atrás dessa garota?

Por que mudou tanto?

— Eu não sei. — Carsten olhou para Victor e demonstrou total

sinceridade.

— Devemos contar para o ancião então. Pode ser que ele saiba a

resposta — sugeriu Victor com ar de provocação.

— Você não vai falar nada. — Carsten abaixou a cabeça novamente,

e diminuiu o tom da sua voz, como se tivesse ficado calmo novamente. —

Porque, do contrário, ele ficará sabendo do ataque causado pelo Larxen

ontem à noite.

— Do que está falando? — perguntou Victor com os olhos estalados.

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— Já que é para brincar de jogo da verdade, vamos lá, Victor. — O

rapaz levantou a cabeça olhando diretamente para Victor. — Todas as

vítimas mortas, em um mesmo local, sendo que moravam em lugares

diferentes. Conhecendo bem o Larxen, ele não carregaria todos para lá

em tão pouco tempo. A única forma de fazer isso é usando o portal.

Apenas, eu você e a Kath podemos fazer isso, já que somos os únicos a

quem Larxen obedece. Agora, me responda: por quê?

— Sem ele, eu não conseguiria caçar tantos anjos sozinho. Queria

vários para que eu pudesse matá-los, sem que você recebesse todo o

mérito por isso. Quem sabe assim eu seja visto com outros olhos pelo

ancião.

— Como você é infantil. Fez tudo isso para me provocar? — Carsten

se virou novamente. — Bom, nós dois temos um segredo, e é bom que

você consiga guardar bem o seu, para que eu consiga guardar o meu

também.

— Eu só queria que você voltasse a ser o que era antes — gritou

Victor.

Carsten escutou o comentário do garoto e desapareceu logo depois.

******

Depois de uma noite cansativa, Natalie estava deitada em sua cama.

Pensava naquela mulher ruiva, no tal rapaz sobre o qual ela falava, sem

ainda compreender do que se tratava. Seu maior desejo era que, naquela

noite, nenhuma voz ou qualquer outro problema aparecesse, já que ela

pretendia dormir até tarde no domingo e aproveitar seus dois dias de

folga.

Natalie fechou os olhos e logo caiu no sono. Dormiu por

aproximadamente duas horas, quando foi acordada por um barulho na

cozinha. Ao despertar, em vez de descer as escadas, permaneceu na

cama esperando que o barulho recomeçasse, mas a casa estava

silenciosa. De repente, escutou um sussurro bem próximo do seu ouvido.

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Ao se virar, não havia ninguém. Então, o silêncio foi quebrado pela uma

voz familiar:

— Meu anjinho, como é bom saber que você pode me ouvir.

— Pai — disse Natalie, levantando-se rapidamente e fechando a

porta, para não acordar Dorah e Gabriel. — É você, pai?

— Sim. Não se preocupe. Você só pode me ouvir, não pode me ver

ainda.

Realmente, por mais que Natalie pudesse ouvi-lo, ela não podia vê-

lo. Parecia que eles estavam em dois planos diferentes.

— Você está bem, pai? — perguntou a garota.

— Sim, estou muito bem, apenas com muita saudade de você, do

seu irmão e da sua mãe.

— Nós também sentimos muito a sua falta. — Uma lágrima escorreu

pelo rosto dela. — Eu queria muito um abraço seu nesse momento.

Muitas coisas horríveis estão acontecendo, pai. — Natalie não pensou

duas vezes em falar tudo que estava acontecendo, ela sabia que por

estar em outro plano, seu pai poderia saber o que estava acontecendo.

Nesse momento, Natalie teve a impressão de que seu corpo fora

envolvido por um abraço confortável, e se sentiu segura, como se

nenhum mal pudesse tocá-la, como se aquele momento fosse único e

não pudesse ser substituído por nada.

— Eu sei, minha filha. Infelizmente não posso fazer nada para te

proteger, mas posso garantir que tudo tem um propósito na vida, e o seu

é um dos mais importantes. — As palavras de Laurence pareciam muito

sábias.

As recordações de Natalie começaram, então, a ficar cada vez mais

vivas. Ela se lembrou de sua infância. Até mesmo momentos dos quais

ela não poderia se recordar, por ser apenas um bebê no colo de sua

mãe, passaram por sua cabeça. Mas uma dessas imagens a fez retomar

a consciência: um homem vestido de branco entregava um bebê para

Laurence.

— Pai, quem é esse homem? — perguntou Natalie.

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— Ninguém, minha filha. Não se importe com ele agora, sua cabeça

já está cheia de problemas.

— A mamãe ficaria muito feliz em falar com você. — Mais uma

lágrima correu pelo rosto da menina. — Ela sente sua falta e às vezes

chora.

— Infelizmente ela não conseguiria me escutar, mas eu tive uma

ideia. Semana que vem é aniversário de Dorah. Todos os anos eu

comprava um presente para sua mãe, e, no ano da minha morte, o

presente já estava comprado, mas eu não tive tempo de buscá-lo.

Laurence explicou todos os detalhes para a filha sobre o presente,

onde ela poderia achá-lo e como a filha poderia entregar o presente.

A conversa não durou muito mais tempo, e ela acabou caindo no

sono.

No outro dia, quando acordou, Natalie não sabia se a conversa que

tivera com o pai fora real ou havia sido um sonho. Parecia muito real,

mas ela não se lembrava de muitos detalhes, apenas das rosas

vermelhas, do nome da floricultura onde ela deveria comprar, e de onde

ela deveria pegar o presente de Dorah.

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Capítulo 13

CONFIRMAÇÃO de um dia bom, era o que Natalie esperava daquela terça-

feira quase na hora do almoço. Gabriel havia chegado em casa e fora direto

para o banho. Enquanto ela estava arrumando a mesa para o almoço, escutou a

porta abrindo, e viu Dorah entrando com vários pacotes.

— Hoje o almoço será mais do que especial — disse a senhora Zeniek, que

parecia muito animada. — Tenho uma novidade para contar.

— Então conta logo, mãe. Para que todo esse suspense? — perguntou

Natalie.

— Onde está seu irmão? — Dorah tirava as coisas das sacolas, e parecia

que, pela quantidade de compras, seria um grande almoço.

— Ele está no banho, mãe. — Natalie começou a ajudar Dorah a arrumar o

almoço. — Mãe, não faça esse mistério, me conta o que está acontecendo.

— Eu também quero saber o que está acontecendo. — Gabriel chegou

enrolado na toalha. — E o que a senhora está fazendo aqui?

— Gabriel, vá trocar de roupa que eu tenho uma coisa muito importante

para falar. — Dorah pegou algumas laranjas e foi preparar o suco.

Gabriel não demorou muito para voltar, e todos estavam sentados à mesa.

O almoço estava mais do que perfeito, era realmente uma refeição para algo

muito especial. Foi quando Dorah resolveu falar:

— Meus filhos, vocês sabem que eu sempre quis dar do bom e do melhor

para vocês dois, mas, desde que seu pai se foi, nossa situação não foi das

melhores. — Os olhos de Dorah começaram a se encher de lágrimas. — Ontem,

meu chefe me chamou para uma reunião, e me deu a melhor notícia que eu

poderia receber.

— Vamos, mãe, conta logo que notícia foi essa — Natalie estava toda

ansiosa.

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— Pois bem, eu fui promovida a gerente da empresa. — Dorah se sentiu

toda orgulhosa ao dizer aquilo para os filhos. — Já houve alteração na minha

carteira, e no próximo pagamento já estarei recebendo como gerente.

— Por que a senhora não contou isso para gente ontem? — perguntou

Gabriel.

— Porque a melhor parte vem agora. — Dorah pegou um papel de dentro

da bolsa. — Durante todos esses anos, nós pagamos aluguel. Com o salário que

eu vou receber e com as economias que eu tinha guardado, comprei uma casa.

— Meu Deus! — Natalie parecia espantada. — Como assim, uma casa?

— Sim, comprei uma casa, e mudaremos para ela no fim do mês, quando os

reparos terminarem.

— Quando poderemos conhecer a casa nova? — perguntou Gabriel. — E

onde fica?

— Fica próximo ao meu trabalho — explicou Dorah.

— Isso significa que fica mais longe ainda do meu trabalho — constatou

Natalie.

— Não se preocupe, meu amor, com esse novo salário você não precisará

trabalhar mais — explicou Dorah, esperando a feliz reação da filha.

— Mas eu quero continuar trabalhando, mãe.

Dorah e Gabriel ficaram espantados com a reação de Natalie.

— Não sei o porquê dessas caras — disse Natalie olhando para os dois. —

Eu estou gostando muito de trabalhar no bar.

— Vixe! Aí tem — disse Gabriel.

— Eu apenas estou falando que quero continuar trabalhando. O que tem de

errado nisso? — Natalie ficou nervosa com o irmão.

— Vamos parar os dois! Hoje é um dia de comemoração. E se você quiser

continuar com o trabalho, não serei eu quem vai impedir. Afinal, eu gosto de ver

você assim, como uma mulher independente.

O almoço seguiu de forma tranquila e todos continuaram a conversar sobre

as mudanças. Gabriel aproveitou a deixa para pedir algumas coisas para a mãe,

e Natalie contou sobre o bar. Dorah falou sobre as novas funções e

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responsabilidades do novo cargo. E os três continuaram o almoço até que Dorah

precisou voltar ao trabalho.

******

A campainha tocou, e Natalie só teve tempo de pegar sua bolsa e correr.

Ela sabia que Kelly a estava esperando. Quando abriu a porta, deu de cara com

o motorista de Kelly; a amiga estava olhando pela janela do carro.

— Vem logo, monstrinha — gritou Kelly.

Natalie, mais do que depressa, trancou a porta e saiu.

— Por que você não veio com o seu carro? — perguntou Natalie.

— O Kenedy estava de bobeira, e eu estava com preguiça de dirigir. — A

loira fechou a janela, olhou para a cara da amiga e disse: — Vamos lá, me diz as

novidades, sem me esconder nada.

— Esconder o quê? Acho que não tenho mais novidade nenhuma desde

que nos falamos. — Natalie parou um instante para pensar, e lembrou-se de que

tinha uma grande notícia para contar. — Lembrei uma que você vai amar.

— Então conta.

Assim que Kenedy entrou no carro e ligou os motores, ele perguntou:

— Para onde vamos, senhorita?

— Para o Avalon. Você sabe onde fica? — perguntou Kelly.

— Claro, fique tranquila — respondeu o motorista.

— Nossa, Kenedy! Não sabia que você conhecia esses becos — brincou

Kelly.

— Kelly! Eu trabalho lá, se esqueceu? — Natalie olhou para a amiga e

depois fez uma careta, não aprovando o comentário. — Além do mais, você e o

Dalton não saem desse beco, né?

— Tá, agora me conta o que você queria dizer. Qual a novidade? — Kelly

encarou a amiga, com a maior cara de curiosidade.

— Minha mãe recebeu uma promoção. Vou me mudar de casa.

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— Essa é a melhor notícia que eu poderia ter recebido nos últimos dias! —

comemorou Kelly. — Quer dizer que terei minha melhor amiga em período

integral?

— O que quer dizer com isso? — perguntou Natalie sem entender.

— Que você não terá que trabalhar mais. — afirmou Kelly.

— Você também? Quem foi que disse que eu quero parar de trabalhar?

Kelly ficou surpresa com a resposta, mas conhecia bem Natalie para saber

que ela não desistiria de algo de que estava gostando, mesmo sabendo do duro

que dava no trabalho.

Kenedy diminuiu a velocidade, o transito estava completamente parado.

— Acho que tivemos um acidente ali na frente. Creio que será difícil chegar

até o bar — disse Kenedy.

— Não tem problema, daqui eu vou andando — falou Natalie descendo do

carro. — Muito obrigada pela carona, amanhã eu te ligo para falar da casa nova.

— Por que será que ela insiste tanto em trabalhar, Kenedy? — perguntou

Kelly. — Vamos para casa — disse a garota, antes que o motorista pudesse

responder.

Natalie continuou o caminho para o bar, e viu que realmente uma colisão

impedia que o trânsito fluísse normalmente. Aparentemente havia feridos no

acidente, visto que duas ambulâncias estavam por lá. Muitos curiosos se

aproximavam do local, mas Natalie não queria perder tempo, já que faltavam

poucos minutos para iniciar seu expediente.

Faltavam apenas cinco quadras para chegar ao bar. No meio desse trajeto,

enquanto andava pela rua, Natalie viu um homem parado em um beco com uma

atitude muito estranha. Era Carsten, e ele vestia roupas pretas, que

aparentemente não eram apropriadas para aquele dia quente em Polsher. Seu

olhar estava sombrio e, vagamente, ela se lembrou de já tê-lo visto no bar. Mas,

como não o conhecia, continuou seu trajeto.

Assim que chegou, Nick recepcionou a garota com notícias ruins:

— Viu quem se acidentou ali?

— Era alguém conhecido? — perguntou Natalie, curiosa.

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— Big Mike. Mas pode ficar tranquila, ele está bem. Apenas teve alguns

cortes, mas o Jonathan já está resolvendo tudo. — Nick continuava arrumando

as mesas. — O único problema é que a Shanon vai ficar na cozinha hoje, e você

no lugar dela.

— Sem problema, Nick, mas quem vai ficar no caixa? — perguntou Natalie.

— O Jonathan está vindo para cá, assim que terminar de resolver os

problemas por lá.

— Bom, já que temos muito trabalho a fazer, não vamos perder tempo, né?

— Natalie continuou a ajudar Nick com as mesas.

— Será que alguém pode me ajudar aqui? — gritou Shanon da cozinha.

— Acho melhor você ir, porque de cozinha eu não entendo nada.

— Homens. — Natalie sorriu para Nick e foi até a cozinha. — Vamos lá,

Shanon. O que posso fazer para te ajudar?

— Primeiramente, me ajuda a separar as coisas aqui. Vamos deixar tudo

que sai mais à noite perto do fogo, para não ter problema. — Shanon pegou o

cardápio e foi lembrando o que os clientes mais pediam. — Hoje eu deveria

ganhar o dobro.

— Fique tranquila, Shanon, eu te pago mais para ficar na cozinha hoje —

disse Jonathan entrando na cozinha e surpreendendo as duas mulheres. — Se o

trabalho ficar bem feito, ambas receberão mais hoje.

— Estou escutando isso, hein! — gritou Nick do lado de fora.

— Tudo bem, Nick, você também. Mas com uma condição: que o bar esteja

lotado hoje — finalizou Jonathan saindo da cozinha.

— Ganhar mais e trabalhar o dobro. Qual a vantagem nisso? — reclamou

Shanon.

Natalie riu e continuou a ajudar a Shanon. As duas pareciam se entender

bem na cozinha, já que Natalie já havia adquirido bastante experiência no bar.

Claro que nenhuma delas tinha experiência na cozinha, mas faziam o possível

para deixar as coisas em ordem.

Foi então que Avalon abriu suas portas. E, como todas as noites, as mesas

foram logo sendo ocupadas. Apesar de apenas Natalie estar atendendo e o

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cozinheiro oficial não estar trabalhando, parecia que a noite, mesmo

movimentada, estava tranquila. Quando precisava de ajuda, Jonathan saía do

caixa e ajudava as meninas, ou até mesmo Nick no bar.

De repente, Paul entrou no bar e sentou-se sozinho em uma mesa. Natalie,

como fazia com todos os outros clientes, chegou para atendê-lo:

— Oi, Paul. Você veio sozinho? Onde está o casal do ano? — perguntou

Natalie.

Tímido, o rapaz respondeu:

— Eu não sei onde eles estão, tive que sair um pouco de casa, estava

complicado por lá.

— E o que eu você quer tomar? — perguntou Natalie.

— Uma cerveja, por favor — pediu Paul.

— Um momento, que eu já trago para você.

Natalie saiu recolhendo os outros pedidos e entregou para Nick e Shanon

respectivamente. Assim que pegou a cerveja de Paul, ela se dirigiu a mesa do

rapaz.

— Aqui está. Deseja mais alguma coisa? — perguntou Natalie.

— Não. Na verdade eu... — Paul tentou dizer, mas a sua timidez era maior.

— Pode dizer, Paul, o que mais você deseja? — Natalie repetiu a pergunta.

— Eu... eu... eu vim aqui... — O rapaz parecia não conseguir falar. Respirou

e soltou de uma só vez: — Eu vim aqui para te ver.

Natalie realmente parecia não esperar por aquilo, suas maçãs ficaram

rosadas e ela saiu para atender as outras mesas, deixando o rapaz sozinho.

Paul, por sua vez, parecia estar totalmente encabulado e sem reação. Não

pensou duas vezes em se levantar e ir para o caixa.

Assim que Natalie viu o rapaz indo embora, sentiu-se culpada e tentou ir

atrás dele, mas era tarde demais. Não havia mais pedidos para a cozinha, e

pediu para que Shanon cobrisse o lugar dela por um instante. Então, correu para

a parte de trás do bar e de lá viu, através das grades, que Paul estava

encostado no seu carro. Natalie pensou em ir até lá e conversar com o rapaz,

mas, dependendo do que dissesse, ia deixar a situação muito pior e

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constrangedora do que já estava.

Quando ela olhou para o outro lado, onde ficavam os galpões, viu o mesmo

rapaz do beco próximo ao acidente parado na frente de outro homem, que, pelas

roupas que usava, parecia um morador de rua. Ele era mais velho, usava uma

barba por fazer grisalha, era bem magro, e aparentemente estava alcoolizado.

Natalie se aproximou da grade para observar melhor. O rapaz estava com

uma de suas mãos no ombro do homem, e na outra empunhava uma faca. Logo

depois de ter encostado no homem de barba grisalha, este tomou a faca de suas

mãos e saiu correndo. A garota olhou toda aquela cena, mas pareceu não

entender o que estava acontecendo. Em frações de segundos, o rapaz não

estava mais lá. Foi então que ela escutou um grito.

— O que você esta fazendo? — era Paul quem estava gritando. Ele tentava

se defender do homem que estava com a faca nas mãos. — Me solta.

Parecendo enlouquecido, o homem mostrava-se extremamente violento,

sob o efeito de álcool e de algum tipo de droga.

— Me passa todo o dinheiro agora — gritou impaciente.

Natalie tentou olhar pela grade, mas não conseguiu ver se os seguranças

estavam na porta. Foi quando decidiu entrar no bar. J estava entrando no

banheiro, enquanto G resolvia um problema na porta.

— G, você precisa ir lá fora, tem um cara tentando assaltar um cliente! —

gritou Natalie, despertando a curiosidade de todos os clientes do bar.

Assim que G saiu, Natalie o acompanhou; Jonathan, por sua vez, correu

para a porta, trancando-a para evitar que o ladrão entrasse. Natalie seguiu para

o estacionamento e viu Paul caído no chão. Ela foi até o rapaz, se ajoelhou e o

pegou pelos braços achando que o pior tinha acontecido.

— Foi tudo culpa minha. — Ela o abraçou e notou que seu braço estava

cheio de sangue. E começou a chorar. — Alguém chama uma ambulância,

rápido.

— Se eu soubesse que um corte no braço faria você ficar perto de mim, eu

teria tomado menos cuidado antes — falou o rapaz rindo e, ao mesmo tempo,

gemendo de dor.

— Paul, você está bem? — O choro de Natalie parecia contido. — Eu

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pensei que você tinha...

— Morrido? — interrompeu o rapaz. — Não, eu ainda tenho muito tempo de

vida; sou jovem. Apenas perdi meus documentos e um pouco de dinheiro.

Ali perto um anjo que estava em cima de um pequeno prédio observava

tudo. Assim que viu que a situação estava sob controle, se retirou do local.

Não demorou muito para a ambulância chegar e os ferimentos de Paul

serem medicados. Também não demorou para que o detetive Ramones

chegasse e fosse diretamente conversar com Natalie:

— Mais uma vez, senhorita Zeniek, envolvida em outro caso?

— Eu não tive culpa de nada. Apenas estava no meu horário de descanso

quando vi o que aconteceu e evitei que algo pior pudesse acontecer — Tentou

explicar a moça.

— Então, hoje você virou a heroína da história? — zombou o detetive.

A garota preferiu ficar em silêncio, evitando a provocação de Ramones.

— Detetive Ramones, será que eu posso ter minha funcionária de volta?

Sabe como é, né? A casa está cheia, temos um cozinheiro faltando — disse

Jonathan.

— Assim que ela me descrever o suspeito, pode voltar ao trabalho. —

Ramones pegou um lenço que tinha no carro e deu para Natalie se limpar. —

Acho que você terá de trocar de uniforme.

Naquele momento, Natalie pensou em dizer ao detetive sobre o rapaz no

beco, mas, se ela entrasse nesse assunto, talvez ficasse mais enrolada do que

já estava. O rosto do rapaz de cabelos negros ficava presente na memoria de

Natalie. E de uma coisa a garota tinha certeza: a arma que feriu Paul foi dada

por ele.

— Tem mais alguma coisa para me dizer, senhorita Zeniek? — perguntou

Ramones.

— Não, apenas estou me lembrando do rosto do homem para descrever ao

senhor — respondeu a menina.

Natalie descreveu o suspeito para o detetive, e foi liberada para voltar ao

trabalho. Shanon estava servindo as mesas, quando Jonathan chegou à frente

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de Natalie, deu outro avental para disfarçar as machas de sangue, e perguntou:

— Consegue trabalhar?

— Sim, consigo. Fica tranquilo. — Natalie olhou para seu corpo e viu que

sua blusa estava machada de sangue. — Apenas meu uniforme está manchado.

— Coloque esse avental e vá para o caixa; eu vou servir as mesas. — Mas,

antes olhou para a menina novamente e falou: — Eu sei a barra que você

passou hoje, obrigado por não me deixar na mão.

Natalie sorriu e continuou seu trabalho.

— O chefe fica muito preocupado com essa violência na região, que pode

espantar a freguesia — disse Nick, do bar.

— Do jeito que os clientes daqui são, acho mais fácil aumentar a freguesia,

principalmente nas noites de sexta. — disse Natalie.

A noite continuou, e Natalie decidiu não contar nada para sua mãe do que

tinha acontecido, porque poderia ser obrigada a sair do emprego, já que agora,

com a promoção de Dorah, não tinha mais necessidade de trabalhar. Com toda

certeza, depois dos últimos acontecimentos, ela ficaria muito preocupada com a

filha.

******

Não muito longe dali, em um beco bem escuro, o homem que tinha roubado

os pertences de Paul contava o dinheiro roubado, quando foi surpreendido por

um vulto:

— Quem está aí? — gritou o homem.

— Era esse o tipo de coragem que você tinha? — indagou a voz misteriosa.

— Você quer meu dinheiro, não é? — O homem parecia transtornado, dava

voltas no mesmo lugar, pois a voz vinha de cantos diferentes. — Veja o tanto de

dinheiro que eu consegui, e ainda consegui perfurar o peito dele. Se chegar

mais perto, vou furar você também.

— Você não sabe o que está dizendo, mal fez um corte no braço dele. —

Das sombras o jovem rapaz de cabelos negros apareceu. — Acho que seu

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trabalho terminou, e, como acabar com a vida de um humano com minhas mãos

é proibido, vou deixar você na companhia de um amigo, que vai cuidar muito

bem de você.

— Quem é você? — O homem tentava se afastar, mas em um passo em

falso ele caiu. — Você é o diabo?

— Não. — O rapaz riu. — Aliás, quem é esse?

O rapaz pegou a faca da mão do homem e saiu andando. Na direção

contrária, o grande animal negro caminhava lentamente. Suas garras já estavam

prontas para o ataque, e seu olhar sedento de sangue era ameaçador.

Carsten continuou caminhando lentamente, escutando os gritos do homem

que pedia socorro. Estes, porém, depois de alguns segundos, foram abafados

por um último gemido.

O som da noite serena continuou e aos poucos tudo ficou mais tranquilo e

calmo. Naquele local, nenhuma marca de sangue ou vestígios do homem foram

encontrados, apenas os documentos de Paul e o dinheiro dele foram achados

pelos policiais.

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Capítulo 14

LEMBRANÇAS de uma cidade tranquila ficavam na memória dos

habitantes de Polsher. Longe do centro, em uma floresta de mata fechada, uma

garota loira parecia fugir de alguém. Desesperada, não conhecia o caminho,

apenas seguia em frente sem olhar para trás. Sua pele era tão branca que a luz

do sol a incomodava, e até mesmo suas sobrancelhas eram brancas. Ela era

albina.

Naqueles tempos, era raro ver uma criança albina. Assim que nasciam logo

morriam, e nenhum médico tinha explicação para isso.

Aquela menina parecia ter mais ou menos doze anos, pelo seu tamanho e

formato do corpo, e usava um vestido branco que a deixava mais branca; os pés

descalços estavam machucados pelos galhos secos da floresta. Assim que

chegou a um pequeno rio, colocou seus pés na água, que lentamente ficou

vermelha com os fios de sangue vindos deles. Assim que a água escorria, as

feridas foram se curando, aparentando ser um líquido medicinal.

A garota escutou um barulho e decidiu correr novamente. Foram mais

alguns minutos de corrida, quando finalmente encontrou uma casa no meio da

floresta. Desesperada, ela bateu à porta, e não demorou muito para que um

senhor abrisse.

— Meu Deus! — exclamou o homem que parecia ter visto um fantasma —

uma albina.

A menina não esperou que o homem a convidasse para entrar. Assim que

entrou, puxou-o e fechou a porta.

— Calma, calma. Do que você está fugindo? — perguntou, observando o

desespero da menina.

Nenhuma palavra foi dita pela garota.

— Já entendi. É como diziam as pessoas antigas: os albinos não são de

falar. — O homem parecia encantado com os traços da garota.

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Assim que o silêncio reinou na casa, a garota parecia mais assustada. Ela

parecia esperar por alguma coisa. De repente, todos os vidros da casa se

quebraram, e ela, mais do que depressa, abriu a porta e começou a correr.

— Não deixe que ele se lembre de nada, e vocês atrás dela. — Essas

palavras vieram do lado de fora. Em frações de segundo, o homem estava no

chão e apenas o silêncio da floresta podia ser ouvido.

A menina continuou a correr, até que chegou a uma área aberta.

Desesperada, olhava para todos os cantos, como se estivesse cercada e não

pudesse mais fugir.

Em uma fração de segundo, ela foi surpreendida e cercada por cinco anjos.

Todos mantinham suas asas brancas e majestosas abertas. Um deles chegou

perto e colocou uma de suas mãos na testa da garota; no mesmo instante, outro

anjo se aproximou dela.

— É um caído. Não consigo rastreá-lo. Possivelmente já deve estar morto.

— disse o anjo que estava com a mão na testa da menina.

— Devemos terminar isso aqui — anunciou o outro anjo.

— Faça rapidamente e sem que ela emita nenhum tipo de som. — Parecia o

líder.

— Achei que eles estavam extintos. Como é possível que ela tenha crescido

tanto assim sem ser identificada antes? — perguntou um terceiro anjo que

estava no local.

— Não consigo entender, mas é possível que outros ainda estejam vivos por

aí, precisamos intensificar as buscas.

Assim que o homem tirou sua mão da testa da menina, ela caiu como se

tivesse desmaiado. O outro anjo que estava próximo encostou a mão na barriga

dela, dizendo algumas palavras desconhecidas do nosso vocabulário. Quando

terminou, ele se levantou e todos se afastaram do corpo imóvel.

Sem nenhum tipo de reação, a garota começou a emitir uma luz, que a cada

segundo ficava mais forte, até que a floresta ficou coberta por um enorme clarão

branco. Quando tudo voltou ao normal, nem os anjos nem a menina estavam

mais lá. Apenas era possível ouvir o canto dos pássaros e o barulho das árvores

se mexendo com o vento.

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******

Depois de mais um dia maluco na vida de Natalie, ela programou o

despertador para acordar um pouco mais cedo do que o normal, já que

precisava correr atrás do presente da sua mãe, e à noite teria de trabalhar.

Assim que acordou, viu que o irmão já não estava mais ali, mas ele tinha

deixado um bilhete avisando que não almoçaria em casa. A mensagem a deixou

mais tranquila, já que não precisava voltar cedo e preparar o almoço. Apenas

ligou para o restaurante, cancelou o pedido e saiu de casa, levando as

economias que tinha para comprar o presente.

Natalie ainda estava confusa sobre a noite em que ouviu seu pai. Apesar de

parecer loucura, ela tinha gostado da ideia dos presentes, já que não tinha

pensado em nada. Para chegar ao centro, pegou um ônibus, no caminho e

tentou ligar para Kelly, mas o celular estava desligado.

Assim que chegou ao centro de Polsher, Natalie foi até a floricultura para

encomendar o buquê de rosas. Ela queria várias rosas diferentes, mas,

seguindo o conselho de seu pai, escolheu um buquê de rosas vermelhas.

Depois de escolher, ela escreveu o cartão, colocando o nome dela e do irmão, já

sabendo que ele poderia esquecer-se do aniversário de sua mãe, como todos os

outros anos.

Assim que ela pagou pelas rosas e pela entrega, partiu para uma loja

próxima ao shopping, localizada na rua paralela à do posto, onde Natalie

desmaiou pela primeira vez ao ver o anjo sendo morto. Lá vendiam joias, e, ao

contrário do que seu pai dissera, parecia ser muito cara. Possivelmente, o

presente sairia muito mais do que Natalie poderia pagar.

Assim que entrou, uma das vendedoras a olhou com reprovação, talvez

porque a roupa que Natalie usava não era tão sofisticada quanto a de uma

cliente que frequentava aquele estabelecimento. Já a outra vendedora foi mais

simpática com a garota:

— Posso te ajudar? — perguntou a vendedora sorridente.

— Sim, estou procurando um presente para a minha mãe. — Natalie olhou

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para o balcão, mas parecia não encontrar nada parecido.

— Pode me dizer exatamente o que está procurando? Quem sabe eu posso

te ajudar. — A moça olhou para Natalie, esperando algum tipo de informação.

— Bom, eu procuro um colar de prata, que tem um coração vermelho bem

no centro.

— Será que você quer dizer rubi? — perguntou a funcionária, dando uma

referência de uma pedra preciosa vermelha.

— Isso, era rubi que ele me disse no sonho.

Nesse momento a outra vendedora sorriu, vendo que Natalie falava de um

sonho. Ao perceber, a garota ficou totalmente encabulada. A funcionária que a

estava atendendo, a qual por sinal demonstrou seu profissionalismo, continuou

falando com a menina, de forma educada:

— Eu imagino de qual peça esteja falando, mas, infelizmente, não temos

mais há muito tempo. Era uma peça única e um homem a comprou. — A

vendedora, que já aparentava ter mais idade, possivelmente lembrava-se, por se

tratar de uma peça única e de valor elevado.

— Sem problemas. De qualquer forma, muito obrigada — disse Natalie com

uma expressão triste e desanimada.

Depois dessa triste notícia, ela teria de pensar em outro presente para

agradar sua mãe, mas estava sem ideias.

— Bem, preciso encontrar alguma coisa para minha mãe. Até logo.

Quando Natalie puxou a porta para sair, escutou a voz de um homem a

chamando:

— Natalie.

Rapidamente, ela se virou e viu a figura de um senhor estranho.

Provavelmente, ele estava dentro de alguma sala na loja.

— O senhor me conhece? — perguntou, querendo saber como ele sabia

seu nome.

— Não, mocinha, é a primeira vez em que a vejo, mas sei que estava

procurando por isto. — O homem então tirou de uma pequena caixa uma joia

linda, com uma enorme pedra vermelha no formato de um coração. A corrente

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que Natalie pensava ser de prata era revestida de ouro branco.

— Meu Deus, o colar de que meu pai falou. — Os olhos de Natalie pareciam

brilhar.

— Mas seu pai não está...

— Morto — interrompeu Natalie. — É uma história complicada, e você não

vai acreditar.

— Meninas, vocês podem embrulhar para ela. — A atendente que riu de

Natalie levantou rapidamente para embrulhar o pacote.

— Por favor, eu gostaria que a outra vendedora, a que realmente me

atendeu, embrulhasse. — Natalie olhou para a cara da atendente simpática. —

Afinal, meu pai já tinha deixado pago esse colar havia muito tempo, e quem me

atendeu merece a comissão, não é?

Ninguém parecia entender nada, mas Natalie, com certeza, estava feliz.

Depois de tantos anos, o presente que seu pai tanto gostaria de dar para a sua

mãe estava em suas mãos. A única pergunta que ficou sem resposta: qual teria

sido o motivo daquele senhor ter guardado o colar por tanto tempo?

Já na rua, o telefone de Natalie tocou. Era Kelly perguntando onde ela

estava, pois as duas haviam marcado de se encontrar no shopping para

almoçar. Sem que Natalie percebesse, alguns homens mal-encarados, que

estavam do outro lado da rua, viram-na saindo da loja de joias, mas apenas

observaram a garota.

******

Natalie foi até a praça de alimentação do shopping esperar por Kelly. Não

era muito difícil de saber quando a amiga estava chegando, pois a atenção das

pessoas voltou-se para a loira, que usava um vestido preto, curto, mostrando

suas lindas pernas, sem falar nos sapatos e na bolsa de marca.

— Como assim que você foi fazer compras e não me chamou? — disse a

loira antes de sentar-se à mesa.

— Eu tentei te ligar, mas seu celular estava desligado. — Natalie tirou a

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caixa de dentro da sacola e a abriu. — Olha isso.

— Minha nossa, que coisa mais linda! — Os olhos de Kelly pareciam estar

deslumbrados. — Como você conseguiu comprar isso?

— Se eu te contar, você não vai acreditar. — Mesmo sabendo que Kelly

poderia duvidar, ela resolveu falar: — Meu pai tinha comprado esse colar antes

de morrer, e deixou pago na loja. Era para o aniversário da minha mãe naquela

época.

— E como você sabia que tinha que voltar à loja? — perguntou Kelly,

curiosa.

— Eu sonhei com isso. — Natalie achou melhor dizer que era um sonho.

Contar que conversava com mortos seria demais.

— A cada dia que passa, mais eu tenho medo de você. — Kelly passou as

mãos nos braços como se estivesse arrepiada com a história. — Você não vai

ficar andando com essa joia caríssima por aí, vai?

— Eu preciso voltar para casa antes de ir ao trabalho, estou sem meu

uniforme.

— Você não tem nenhum uniforme reserva? — perguntou Kelly. — Assim,

podemos ficar mais tempo aqui no shopping.

— Acho que eu devo ter outra blusa no armário, afinal, preciso lavar meu

uniforme depois do que aconteceu ontem.

— E o que aconteceu ontem? — O telefone de Kelly começou a tocar; era

Dalton. Assim que a loira atendeu, parecia estar escutando algo não muito

agradável, pelas caras que ela fazia, até que desligasse o telefone. — Como

você não me conta sobre o Paul?

— Era exatamente isso que eu ia te falar. — Natalie respirou fundo, e

começou a explicar exatamente tudo que tinha acontecido.

— Eu preciso ligar para o Paul agora! — A loira pegou o telefone e discou o

número do rapaz. Os dois conversaram um pouco e, inesperadamente, ela

passou o telefone para Natalie.

Pega de surpresa, Natalie ficou um pouco sem graça ao conversar com o

rapaz:

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— Paul, você está bem? — O rosto de Natalie parecia pegar fogo de tão

vermelho que ela estava. — Fico feliz que você esteja bem. Sim, nos falamos

em breve. Beijo.

— Beijo? Adorei a intimidade — disse Kelly, só para provocar.

As duas resolveram almoçar e passaram a tarde juntas. Conversaram sobre

muitas coisas, e colocaram o papo em dia. Kelly tentou convencer Natalie de

deixar o bar, mas nada que ela dissesse a faria mudar de ideia. Natalie adorava

seu trabalho, os amigos que fizera lá, se sentia independente, e o melhor, em

poucos dias receberia seu primeiro salário.

Depois de algum tempo, Kelly ligou para Kenedy vir buscá-las, pois faltava

pouco para seu horário de trabalho. Assim que as meninas saíram do shopping

e entraram no carro, os mesmos homens que estavam de olho em Natalie

entraram em outro carro e as seguiram.

Quando chegou ao trabalho, Nick e Shanon perguntaram se Natalie estava

bem depois do acontecido. A garota disse que estava tranquila, seu amigo

estava bem e ela já estava pronta para mais um dia de trabalho. Antes de

começar a ajudar, Natalie viu que não tinha outra camiseta no armário e pediu a

ajuda de Shanon.

— O Jonathan deve ter se esquecido de dar três camisetas, mas, olha, use

esta minha, está limpa. Assim que ele chegar, você pede outra para ele.

Natalie for até o vestiário, passou um desodorante e um perfume, já que não

teve tempo de ir para casa. Vestiu a camiseta, amarrou o cabelo, passou um

batom e logo estava pronta. Assim que saiu do vestiário, deu de cara com

Jonathan.

— Você está bem, menina? — perguntou o chefe.

— Sim, está tudo sob controle. Desculpa por ontem. — Natalie abaixou a

cabeça com vergonha.

— Ei, fica tranquila. Afinal, você não teve culpa. — Jonathan estava com

uma camiseta nos ombros. — Toma, usa essa. A da Shanon fica muito grande

pra você.

— Muito bem, hora de começar o trabalho. Espero que hoje, com o Big Mike

na cozinha, tudo esteja tranquilo — disse Natalie ansiosa para a noite.

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E assim aconteceu. O trabalho começou e, como em todas as noites, a casa

estava cheia, mas sem nenhum tipo de problema. Os atendimentos estavam

rápidos, e todos pareciam estar bem contentes. A noite continuou, até que os

clientes foram embora, e a hora de arrumar as cadeiras e as mesas havia

chegado.

— Esqueci de te avisar que hoje estou sem carro. Minha irmã vai me pegar

e vou para a casa dela, que fica em outra direção. Você tem como ir embora? —

perguntou Shanon.

— Sem problemas, Shanon, posso pegar uma carona com o Nick. Ele pode

me deixar perto de casa se não tiver nenhum problema.

— Claro. Deixo você a duas quadras de sua casa, se não tiver nenhum

problema, porque hoje estou de carona também — comentou o rapaz.

— Não tem problema, Nick. Duas quadras está bom pra mim. É bem perto

— disse Natalie.

E assim aconteceu. Depois do trabalho, todos fecharam o bar e Natalie

pegou carona com Nick e um amigo dele.

Assim que desceu do carro, Natalie pegou as chaves de casa e foi seguindo

o caminho, sem notar que estava sendo seguida. Andou um pouco mais rápido e

um carro preto, que estava com os faróis apagados, continuou atrás da garota.

Assim que percebeu que estava sendo seguida, Natalie começou a correr, mas

os homens desceram e foram atrás dela. Um deles a alcançou e a pegou pelo

braço. Antes que Natalie pudesse gritar para pedir ajuda, ele tampou sua boca

com as mãos.

Eram três os homens que a seguiam, os quais a haviam observado na saída

da loja, próxima ao shopping. Um deles, loiro e bem grande, era quem segurava

a boca dela. O outro sujeito era moreno e mais magro, e usava um gorro na

cabeça. O terceiro era careca, usava uma jaqueta de couro, e começou a falar

com a garota:

— Para onde ia com tanta pressa, princesa? Não fique com medo, não

vamos te machucar, só queremos sua bolsa.

Até então, Natalie não tinha se lembrado da joia. Então, ficou desespera

quando pensou no presente.

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— Vamos, pegue a bolsa dela. Eu já estou cansado de correr atrás dessa

menina o dia todo — disse o careca, que parecia ser o chefe da quadrilha.

Pela maneira como o careca havia dito, Natalie se deu conta de que eles já

a seguiam durante o dia todo. Mas, naquele momento, ela não podia fazer nada,

pois todos eles estavam armados.

Assim que o careca pegou a caixa na bolsa, ele a abriu e, sorrindo, admirou

a joia. Depois, jogou a bolsa com os documentos de Natalie para perto da

garota.

— Pelo visto, deve ser peça única. — disse o homem com gorro.

— Sim. Muito mais fácil de vender do que eu imaginava. — Ele fechou a

caixa novamente. — Vamos, amarrem ela, coloquem um pano na boca, e a

deixem por aí.

O homem mais alto e o com gorro na cabeça fizeram o trabalho. Natalie

tentou resistir, mas percebeu que não teria nenhuma chance com aqueles dois

caras. A única coisa que fez foi deixar que eles a amarrassem.

— Não vamos fazer nada com ela chefe? — perguntou um dos homens com

ar de repugnância.

O homem não respondeu e seguiu para o carro, os outros deixaram a

menina no chão, que começou a chorar, vendo-os partindo com o presente da

sua mãe. De repente, seu pensamento foi interrompido por um barulho.

Quando Natalie olhou para o carro, as portas estavam abertas, os faróis

acessos e não tinham mais ninguém ali por perto. O ambiente estava silencioso.

A garota olhava para todos os lados, procurando pelos homens, mas todo

aquele esforço parecia em vão, ela queria gritar, mas o pano na sua boca a

impossibilitava.

Natalie tentou novamente se soltar das cordas, o medo tomava conta de

todo o seu corpo, mas parecia que, à medida que tentava se soltar, ela ficava

mais presa. A tentativa de fuga foi interrompida por um forte barulho, seguido de

outro ainda mais forte. Quando Natalie olhou para frente, viu dois dos bandidos

estilhaçados no chão. O barulho fora estrondoso, ela virou o rosto não

conseguindo olhar para os corpos mutilados.

Outro barulho foi ouvido: era o terceiro bandido que caía sobre o carro. Seu

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corpo ficou praticamente todo destruído com a força da queda. Aparentemente,

eles pareciam estar mortos antes de tocar o chão, já que não gritaram com a

queda.

Como ao seu redor havia apenas terrenos abandonados, nenhum vizinho ou

qualquer alma viva chegou para ajudar.

E foi quando ela o viu. No início parecia um homem desconhecido vindo em

sua direção, mas, assim que ele se aproximou, ela notou que se tratava do

rapaz da noite anterior. Natalie ficou paralisada. Assim que ele chegou próximo

a ela, se agachou e disse:

— Eu senti seu medo de longe.

Natalie não queria dizer nada, apenas olhava fixamente para o rosto de

Carsten com seu corpo tremulo.

— Eu não conseguia sentir sua presença, até a noite de hoje. — Carsten

cortou a amarra das mãos de Natalie com uma faca preta.

Assim que ele a soltou, a garota se levantou e tirou o pano da boca. Seus

olhos estavam inchados, prontos para chorar, e a vontade daquele momento era

de correr. Mas, ao contrário, ela se virou para ele e apenas o encarou.

— Por que com você é diferente? — perguntou Carsten. — O que está

acontecendo comigo?

Natalie não entendia as perguntas do rapaz. Um turbilhão de perguntas

começou a surgir em sua cabeça. Ela queria questionar sobre a noite anterior, e

principalmente sobre o que acabara de acontecer naquele momento, mas sua

boca não conseguia emitir absolutamente nada.

— O que é você? — questionava o rapaz.

Carsten estendeu sua mão para Natalie, devolvendo a caixa com a joia.

Sem pensar duas vezes, ela pegou a caixa da joia, a sua bolsa e saiu correndo

em direção à sua casa.

— Que tipo de sentimento é esse? — Carsten a observou correndo, mas

não fez nada nem saiu do lugar. — Como você consegue me ver?

Ele andou em direção do carro, entrou e ligou os motores. Assim que seguiu

o caminho, assobiou bem alto. Era Larxen, que ele chamava para limpar toda a

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bagunça e exterminar os corpos.

Natalie, por sua vez, chegou à sua casa, trancou tudo, se encostou na porta

e começou a chorar em silêncio. Lentamente, foi escorregando pela porta, até

que se viu sentada no chão, segurando bem firme o presente de sua mãe.

Pela primeira vez em toda sua vida, Natalie sentiu medo de morrer, sentiu

também algo muito estranho, um sentimento diferente de todos, quando esteve

cara-a-cara com aquele homem de cabelos negros.

******

Assim que acordou no dia seguinte, Natalie lembrou-se de tudo que havia

acontecido naquela noite, e as perguntas começaram a surgir. Quem era aquele

rapaz? Será que foi ele quem matou os três homens? Como ele teria sentido o

medo dela? Todas essas perguntas ficaram na cabeça durante toda a noite. Ela

havia pegado no sono pouco tempo antes de acordar com o despertador.

As lembranças, que haviam sido apagadas de sua memória, começavam a

voltar. Ela se recordou do dia em que desmaiou no posto, e, para sua

infelicidade, dos dois rostos que estavam do lado de fora: um era do rapaz que

acabara de salva-la, e o outro era da ruiva que a tinha visitado no bar. Naquela

hora, ela queria ligar para Kelly, mas tinha medo da reação da amiga, e, por

conta de todos esses segredos, se sentia traindo a amizade delas. Mas, de

qualquer forma, achava que era o melhor a fazer naquele momento.

Aquele de quem a ruiva falava para que ela se afastasse podia ser o rapaz

da noite anterior, mas ela mesma nem o conhecia. Depois, começou a ligar os

fatos: o homem morto no dia do posto, o ataque de Paul, os sonhos com o rosto

de Carsten e a morte dos três assaltantes. Todos se relacionavam com algum

tipo de violência, o que a fez compreender o medo que sentiu no dia anterior e

os acontecimentos como algo muito ruim.

Por mais que ela quisesse se esquecer dele, aquele rosto não saiu de sua

cabeça durante todo o dia. Ela se lembrou daqueles olhos escuros que a

encaravam e daquela boca avermelhada que se destacava na pela branca,

mesmo durante a noite.

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Capítulo 15

VISITAS inesperadas, ultimamente, eram bem comuns em qualquer lugar

de Polsher, até mesmo no hospital em que o Doutor Reik trabalhava.

— Atenção, Doutor Reik, visita na recepção — era a voz da secretária que

anunciava a chegada de alguém.

Não demorou muito para que o médico chegasse à recepção e deparasse

com um homem desconhecido.

— Em que posso ajudá-lo? — perguntou o médico.

— Apenas me pediram para entregar este bilhete. — Assim que o médico

leu o conteúdo do bilhete, não teve tempo de voltar para o consultório. — Diga

que eu precisei sair, e peça para minha secretária avisar meu paciente. Volto em

instantes. — Reik saiu correndo pela porta do hospital, como se não pudesse

esperar nenhum segundo.

O lado de fora do hospital era cercado por árvores, e nos fundos havia uma

grande mata, que, se fosse adentrada, tornava-se mata fechada. Foi para lá que

o Doutor Reik de dirigiu. Ele seguiu como se conhecesse aquele caminho tal

qual a palma de sua mão, até chegar a uma linda área, com um grande lago

rodeado de flores brancas, e uma pequena cascata. A vista era maravilhosa, a

qual muitos passariam o dia admirando.

— Finalmente você chegou — disse uma voz feminina.

— Você apareceu para aquele humano? — perguntou o médico.

— Me desculpe, eu não tinha outra forma de chamar sua atenção — a

garota respondeu.

— Eu espero que o que você tenha para me falar seja muito importante. —

O médico parecia estar muito irritado, como se a garota tivesse quebrado uma

regra.

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— Eles se encontraram. — Ela saiu de trás de uma árvore onde estava. Era

loira, tinha a pele bem branca e delicada e seus olhos eram azuis como a cor do

lago. Sua expressão era serena.

— Eu senti o medo dela ontem, mas sabia que vocês e os outros estavam

por perto – confirmo Reik.

— Pode ficar tranquilo, ele não a tocou.

— Quer dizer que ele ainda não sabe sobre a proteção? — perguntou o

médico.

— Não. Ela ficou com medo dele e fugiu — explicou a moça.

— Ele tentou alguma coisa para que ela fugisse? — O médico parecia

preocupado em ouvir cada coisa que a garota dizia.

— Não, muito pelo contrário. Ele a salvou de três homens que tentaram

roubá-la.

— O quê? — Reik levou um grande susto. — Isso é impossível. Como ele

pode ter salvado ela? Ele é um demônio.

— Eu também fiquei impressionada, por isso achei que deveria contar isso

com urgência para você.

— Ele deve ter seguido a garota o dia todo — suspeitou o médico.

— Ontem, já estávamos de prontidão, sabíamos que algo aconteceria com

ela. Ele é muito rápido, como se tivesse sentido o medo dela, assim como nós

sentimos.

— E vocês não fizeram nada? — perguntou Reik.

— Não. Nós tivemos que impedir outros como ele de chegar perto dela. Eles

devem tê-lo sentido, por isso o seguiram.

— Você consegue percebê-la agora?

— Claro que não. Nós sabemos que apenas você consegue isso — disse a

garota, como se fosse algo óbvio.

— Eu sei disso, mas você me disse que conseguiu senti-la. Isso é um sinal

de que suas habilidades estão evoluindo muito rápido. — O médico colocou a

mão no queixo como se estivesse curioso. — Mas a pergunta é: como ele

conseguiu senti-la?

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— Bem, essa é a pergunta que eu estou me fazendo até agora —

respondeu a garota.

— Bom, fique de olho nela e qualquer coisa volte a me avisar. Mas tente

não chamar a atenção de humanos novamente. — Reik voltou a entrar na mata

em direção ao hospital.

Enquanto isso, a garota ficou naquele ambiente, pensando alto:

— O que essa garota tem de tão especial? E por que ele se preocupa tanto

com ela?

******

— Gente, precisamos nos apressar. Faltam cinco minutos para o bar abrir

— disse Jonathan desesperado, como se já houvesse fila do lado de fora.

— O dia em que ele não está desesperado para abrir o bar, ele está doente

ou apaixonado — comentou Shanon rindo.

— E você, Natalie, o que tem? — perguntou Nick, observando que a menina

estava um pouco estranha nos últimos dias. — Vamos lá, garota, é sexta-feira,

dia de show.

— Não é, não — disse Jonathan do caixa. — Vocês se esqueceram de que

o show desta semana é daquela banda de fora, e foi transferido para amanhã?

Hoje é dia normal.

— Meu Deus! Temos de colocar as mesas. Vamos, meninas, me ajudem —

pediu Nick, percebendo que o salão estava vazio.

Enquanto eles corriam para arrumar as mesas, Natalie continuava com uma

expressão ruim no rosto. Os dias estavam passando, mas ela não conseguia

esquecer-se do que acontecera naquela noite. Nada em especial com aqueles

bandidos, até porque ela estava bem, e o presente da sua mãe estava com ela,

mas a garota não conseguia tirar o rosto de Carsten da cabeça. Ele lhe dava

muito medo, e o pior de tudo é que ela não podia compartilhar aquilo com

ninguém. Como ela explicaria o sumiço dos três bandidos?

— Natalie. Natalie, acorda — Shanon percebeu que a menina estava

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sonhando acordada e a chamou. — Vamos, antes que o Jonathan perceba.

— Shanon, estou sentindo que alguma coisa ruim está para acontecer —

disse a garota.

— Que é isso! Chega de coisa ruim. Comece a atrair coisas boas, menina

— aconselhou Shanon.

— Bom, parece que está tudo certo. Agora é só esperar os clientes — disse

Nick olhando para o chefe.

E assim aconteceu. O bar foi enchendo aos poucos, e como a maioria das

pessoas sabia da mudança do show, os clientes foram chegando. Havia alguns

desavisados, mas lá foram informados; alguns ficaram para tomar uma cerveja

no bar, enquanto outros preferiram ir embora.

Eram quase nove horas e o bar recebeu a visita de Kelly, Dalton e Paul.

Natalie foi logo à mesa dos amigos para recolher os pedidos e conversar um

pouco. E também queria saber como Paul estava, afinal, não o tinha visto desde

a noite do acidente.

— Monstrinha, que saudade! — disse Kelly. — Como você está?

— Eu estou bem, Kelly. — Natalie envergonhou-se por a amiga tê-la

chamado de monstrinha na frente de todos. — E você, Paul, como está?

— Bem melhor. Meu ferimento não dói mais. Agora é só cuidar —

respondeu o rapaz, mostrando o curativo.

— Faz tempo que não te vejo, Natalie — disse Dalton. — Mas,

aproveitando, você poderia trazer quatro cervejas?

— Por que quatro bebidas? — perguntou Kelly.

— Ora, para nós quatro — respondeu o rapaz.

— Eu não posso me sentar com vocês, estou trabalhando. — Natalie fez

uma cara de desânimo.

— Que pena. Então você pode trazer três, e uma porção de batatas. —

Dalton abriu um sorriso enorme, pois comida era seu forte, e batatas fritas,

principalmente.

Em noites tranquilas como aquela, ela gostava de atender às mesas, afinal,

fazia todas as funções necessárias. A única coisa de que não gostava muito era

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ficar no bar nos dias de shows, pois muitos fregueses bebiam muito e viviam

cantando a garota.

Assim que o ambiente ficou mais tranquilo e os pedidos acalmaram, Natalie

foi até a mesa dos amigos para conversar um pouco com a autorização do

chefe.

— Paul, me conta: o que aquele cara disse para você naquele dia? —

perguntou Natalie sobre o assalto.

— Ele chegou me pedindo o dinheiro, e dizendo que era aquilo que ele tinha

de fazer, que ele precisava da grana, que agora ele tinha a coragem necessária.

— Coragem? — ironizou Kelly. — Será que esse é o novo nome das

drogas?

— Pois é! Ele parecia estar bem drogado, mas felizmente você viu e me

ajudou — disse Paul, olhando para Natalie e a deixando vermelha.

— A princesa salvando o príncipe. Essa é nova — Dalton tentou soltar mais

uma piada, mas, como sempre, não tinha dado certo.

— Bem, gente, vou atender a outras mesas. Depois eu volto aqui — Natalie

saiu anotando outros pedidos e evitando um novo constrangimento.

******

Enquanto isso, do lado de fora, em cima de um dos galpões, Katherine,

Victor e Carsten estavam conversando em um tom não muito agradável.

— Eu não vou entrar lá – disse a ruiva bem irritada. — Se eu ver aquela

garota na minha frente, ou qualquer um daqueles idiotas, acabo com a vida

deles sem me importar com as consequências depois.

— Então é melhor que você fique aqui — falou Victor. — Carsten, vamos de

uma vez por todas saber o que essa garota tem de tão especial. Não senti

absolutamente nada quando estive do lado dela, mas nada que fosse normal te

deixaria assim.

— Porque vocês insistem nisso?

Carsten parecia incomodado por tudo o que estava acontecendo. Pelo que

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parecia eles não sabiam da noite passada, já que todos os demônios que o

seguiram foram mortos pelos anjos. Ele não queria conversar sobre aquilo, mas

aceitou que eles pudessem se aproximar de Natalie, para evitar mais problemas.

— Tudo bem, entraremos, desde que sem nos mostrarmos para eles. —

Carsten apesar de ter aceitado aquilo, não estava gostando nada daquela

situação.

— Mas ela pode nos ver — lembrou Victor.

— Mais alguém sabe disso, além de nós? — perguntou Carsten.

— Não, somente nós três — respondeu Katherine. — Por que a

preocupação? Em breve, o ancião ficará sabendo também.

— Não antes de descobrirmos o que essa garota fez com o Carsten. —

Apesar da raiva que Victor estava sentindo, ele não aceitava que Carsten

daquele jeito, e queria o companheiro de caça de volta.

— Ela não fez nada, Victor. — Carsten sabia que estava mentindo, mas

nem mesmo ele entendia o que estava acontecendo para explicar.

— Vocês que sabem. Eu vou à caça, preciso me alimentar. — Katherine

saiu andando lentamente pelos telhados, enquanto os dois ficaram à espera do

momento certo para entrar.

— É quase meia-noite, acho que nenhum cliente vai chegar. Podemos ver

se alguma mesa está vazia. — Sugeriu Victor.

— Espera. — Carsten usou sua velocidade, saiu e voltou tão rápido, que

Victor não teve tempo de respirar. — Tem uma mesa no canto direito. Entramos

e vamos direto para ela. — Carsten olhou para o rosto de Victor e disse: — Tem

certeza de que quer fazer isso.

— Claro que eu quero. Se ela tem algo especial, quero descobrir o que é.

Assim, se recebermos alguma recompensa por isso, seremos beneficiados

também.

— Só me prometa uma coisa, Victor, não vai fazer besteira.

— Fique tranquilo — disse Victor, piscando para o rapaz.

******

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Dentro do bar, as coisas estavam se acalmando. Dalton já tinha bebido

cinco cervejas.

— Esta noite eu dirijo. — disse Kelly, pois apenas havia bebido uma cerveja.

— E você vai para a minha casa.

— Ainda bem que eu vim com o meu carro, senão ia segurar vela

novamente.

— Paul, você só segura vela se quiser. Podia oferecer uma carona para ela

— disse Kelly, apontando para a amiga.

— Melhor não, Kelly. Não vou insistir com a Natalie. Tenho medo dela ficar

com raiva – disse o rapaz.

— Eu não só acho que você deve insistir, como levantar agora e dar um

beijo nela — disse Dalton, que já estava começando com seus comentários

bobos.

— Eu já acho que devemos ir embora. — E Kelly pediu a conta para

Shanon.

— Só depois de outra cerveja, porque eu acho que... — Um barulho foi

ouvido e interrompeu o comentário de Dalton.

Quando todos olharam, Natalie havia derrubado uma bandeja com copos.

Ao invés de limpar a sujeira, ela estava parada, não conseguia se mover. Seu

olhar acompanhava alguma coisa, que somente ela conseguia ver.

— Você está bem, Natalie? — perguntou Shanon.

A garota continuou seguindo o movimento dos seus olhos, que eram os

únicos que enxergavam Victor e Carsten. O medo que a garota tinha sentido

naquela noite se multiplicou. O homem que a tinha salvado estava à sua frente

novamente.

— Amiga, você está bem? — Kelly já estava do seu lado ajudando a amiga,

enquanto Shanon pegava a bandeja do chão.

Nick e Jonathan observavam de longe sem saber o que estava

acontecendo, mas decidiram ficar em silêncio para não provocar alvoroço.

— Ele está aqui — disse Natalie.

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— Quem está aqui? — perguntou a amiga.

Nesse momento, Victor olhou para Natalie e fez um sinal para que ela

ficasse em silêncio.

— Você não está vendo, Kelly? Aqueles dois rapazes que acabaram de se

sentar-se à mesa do fundo. — Natalie apontou para uma mesa que estava

vazia.

— Acho que tem gente trabalhando demais — disse Shanon.

Assim que retomou a consciência, antes que todos pensassem que ela

estava ficando louca, Natalie disse:

— Acho que devo estar trabalhando mesmo.

Ela sabia o que estava vendo, e percebeu que ninguém conseguia vê-los.

Para qualquer pessoa normal, aquilo seria um choque, mas, depois de tudo pelo

que ela já havia passado, era apenas mais uma novidade.

— Está sentindo alguma coisa diferente? — perguntou Victor para Carsten.

— Ora, estou falando com você.

Carsten parecia estar em outro lugar. Seus olhos não paravam de observar

Natalie, e, mesmo que tentasse evitar, aquela vontade de vê-la e tocá-la era

muito maior. Ele só conseguiu voltar a si quando Victor lhe deu uma cotovelada.

— Ei, por que você fez isso?

— Você estava viajando nessa humana. O que você estava sentindo? —

perguntou Victor, que parecia não sentir nada ao lado de Natalie.

— Eu não sei. Tem algo nela que é diferente de todas as outras humanas,

mas não consigo entender. — Será que ela é um anjo? — O rapaz ficou

analisando a garota.

— Não. Mesmo que ela fosse uma caída, nós conseguiríamos identificá-la

de alguma forma. — A não ser que ela ficasse irrastreável. — Victor parecia

cada vez mais interessado na história.

— Ela parece muito assustada olhando para nós. — Carsten observou

Natalie, que de minuto a minuto olhava para eles. — Eu tenho uma certeza,

Victor, ela é humana, mas é especial.

— Porque eu não sinto nada de diferente? — Victor sabia que ela era uma

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garota normal, como todas as outras humanas, por isso não sentia nada.

Natalie terminou de limpar a bagunça e levou as coisas para a área de

serviço. Assim que voltou, foi para o bar com Nick, já que os pedidos eram

poucos e o ambiente estava ficando vazio.

— Ei, ninguém vai atender a gente?

Natalie percebeu que aquela voz era do rapaz que estava próximo a

Carsten. Ela decidiu ficar em silêncio, para ver se mais alguém notava a

presença dos dois.

— Aqui, eu quero uma cerveja — Victor gritou novamente, mas foi impedido

por Carsten de continuar. — Ora, ora, calma. Só quero me divertir um pouco.

Sem que os rapazes percebessem, dois outros clientes olhavam fixamente

para eles, não era somente Natalie que podia observá-los.

— Oi, monstrinha. Estamos indo embora, já está tarde — interrompeu Kelly,

retirando a atenção de Natalie dos dois rapazes. — Você já está quase indo

embora. Se quiser, o Paul pode te dar uma carona, ele disse que te espera.

Naquele momento, Paul ficou paralisado, porque sabia que não tinha dito

nada. Mas se ela respondesse que sim, com certeza ele ficaria feliz.

— Não vai dar. Depois que as portas se fecham temos muitas coisas para

fazer. Eu pego carona com a Shanon hoje. De qualquer forma, muito obrigada.

Todos disseram tchau e foram para o caixa. Quando Natalie voltou sua

atenção para a mesa dos rapazes, não havia mais ninguém por lá.

******

Do outro lado do bar, novamente em cima de um dos galpões, Katherine

esperava pela volta dos rapazes.

— Eu não consegui sentir nada, já disse — disse o Victor. — Mas parece

que o apaixonado aqui sentiu algo diferente de novo.

— Apaixonado? — Katherine fez um sinal de nojo. — Você só pode estar

brincando.

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— Ele está brincando, Kath. — falou o rapaz. — Vamos, é hora de caçar.

Quantos você pegou?

— Nenhum. Os anjos estão escassos esta noite. — comentou a ruiva —

Acho que devemos nos separar, a fim de conseguirmos pelo menos um para

cada um de nós.

— Você, querendo se separar? — perguntou Victor curioso.

— Acho que ela tem razão. Vamos que será mais rápido — disse Carsten.

E assim, os três se separaram e seguiram seus caminhos, mesmo Victor

desconfiando que Katherine estivesse tramando alguma coisa.

******

Enquanto isso, todos no bar se preparavam para encerrar a noite.

— Acho melhor você descansar bastante. Estava muito distraída hoje —

alertou Jonathan a Natalie.

— Desculpa, se você quiser descontar do meu salário eu não ligo, mas

prometo que não vai acontecer de novo. — Natalie parecia estar envergonhada.

— Fique tranquila, copos são quebrados todas as noites, no preço da

cerveja eles já estão inclusos. E, além do mais, quem já não quebrou alguns

copos aqui?

— Eu já quebrei uns trinta — disse Nick.

— Trinta? — Jonathan estava espantado.

— Brincadeira, chefe. — o rapaz riu.

Todos pareciam se divertir, mas estava ficando tarde e eles precisavam ir

para casa. Shanon pegou sua bolsa, e Natalie a acompanhou.

— Boa noite e até amanhã — disse Shanon.

— Boa noite — responderam todos.

E as duas seguiram o caminho para casa. Shanon, como sempre, ouvindo

suas músicas antigas, enquanto Natalie já parecia estar sonolenta e cansada.

— O que deu em você hoje, hein? — perguntou Shanon.

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— Eu não sei, pensei em ter visto uma pessoa entrando no bar, mas acho

que estava enganada.

— Às vezes eu tenho esse tipo de coisas também, mas sempre pensei que

fosse da idade.

— Eu realmente não sei o que está acontecendo comigo.

E assim as duas continuaram a conversa até que chegaram à frente da casa

de Natalie. A garota agradeceu a carona e entrou em sua casa.

Assim que Shanon deixou a menina, ela seguiu em direção a sua casa.

Apesar de ser bem perto, ela precisava passar por uma pequena estrada no

meio de uma floresta, o que todas as noites a deixava bem tensa.

E naquela noite não foi diferente. Assim que entrou na estrada, olhava para

todos os lados, preocupada em ter alguém ou alguma coisa no meio do

caminho. Depois que os ataques de animais começaram em Polsher, o medo

dela só aumentou.

Quando estava quase chegando ao fim da estrada, alguma coisa passou

pela frente do carro de Shanon e a assustou, fazendo que ela perdesse o

controle do carro. Ela desviou do caminho e entrou na mata, até que bateu em

uma árvore e perdeu a consciência por alguns minutos.

Quando acordou, estava tonta, porque havia batido a cabeça. Sua roupa

suja de sangue a assustou. Rapidamente, ela soltou o cinto de segurança e saiu

do carro, caminhando até a estrada para pedir ajuda. Naquela hora, dificilmente

algum carro passaria por ali.

Com dificuldades para ficar em pé, ela se sentou no chão e se lembrou de

que o celular estava na bolsa e ela poderia pedir ajuda. Com muito esforço,

levantou-se e foi em direção ao carro. Chegando lá, viu que seu celular estava

destruído, mas aquilo não parecia ter sido causado pela batida. Não havia mais

alternativas, a não ser ficar na estrada. Então, decidiu voltar, mas, antes de sair

do carro novamente, escutou um barulho no capô.

— Ai, meu Deus, o que é isso? — Shanon parecia muito preocupada.

Pensou que pudesse ser o animal que matou aquelas pessoas dias antes. Ficou

com muito medo.

De repente, escutou passos sobre o capô.

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— Quem está aí? — Aqueles passos pareciam ser de pessoas. — Me diga

quem é você.

— Alguém que você não deveria ter irritado alguns dias atrás.

Aqueles longos cabelos ruivos, de alguém que procurava vingança do dia

em que fora ao bar, poderia facilmente ser identificado. Mas Shanon não

reconheceu a voz da ruiva.

— O que você quer de mim? Eu não tenho nada para te oferecer. —

Shanon se fechou dentro do carro.

— Que você não tem nada para me oferecer eu já sei. Mas eu ainda acho

que você pode me dar uma última coisa. — Katherine pulou na frente do carro.

Em um movimento bem rápido, ela atirou uma pequena adaga negra que

perfurou o vidro e o coração de Shanon. O ataque foi tão certeiro, que Shanon

nem chegou a agonizar. Aquela arma era realmente afiada e letal para qualquer

tipo de humano.

— A sua vida. — A ruiva do lado de fora, parecia sugar a vida de Shanon.

Aquilo durou poucos segundos, já que Shanon era uma humana diferente

dos anjos e não tinha tanta energia armazenada no corpo.

— Larxen, você já sabe o que fazer — disse a ruiva, esperando que o

grande animal negro surgisse das árvores.

— Ele não vai aparecer.

— O que você está fazendo aqui, Carsten?

— Eu vim ver se estava tudo bem na sua caçada com os anjos, mas vejo

que você caçou outra coisa — disse o rapaz.

— Você não tem nada a ver com isso.

— Claro que eu tenho. Ultimamente, você e o Victor andam cuidando mais

da minha vida do que a de vocês, ou seja, agora todos temos segredos um do

outro para compartilhar.

— O que você quer dizer com isso? — perguntou Katherine desconfiada.

— Que se você continuar me ameaçando, dizendo que vai contar o que

anda acontecendo para o ancião, eu conto sobre isso.

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— Mas eu não matei outro humano. Essa foi a primeira e você não pode

fazer isso comigo.

— A regra não diz a quantidade, ela simplesmente não permite que usemos

nossas mãos para matar os humanos. — Carsten falava sobre as regras com

tanta propriedade, que nem parecia ter matado três humanos para defender

Natalie na noite anterior. — E sobre contar para o ancião, eu posso sim. Agora

tire a adaga do peito dela e vamos embora daqui.

Mesmo irritada com o que estava acontecendo, Katherine tirou a adaga do

peito de Shanon. Antes que os dois fossem embora, ela disse:

— Eles vão pensar que foi a menina, pois elas foram embora juntas.

— Isso não é da nossa conta — disse Carsten.

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Capítulo 16

O PRESENTE estava dentro do guarda-roupa. Assim que chegou em casa,

Natalie o pegou lembrando-se da última vez em que conversara com seu pai.

Ela havia recebido poucas mensagens todas as noites, mas nenhuma delas

tinha algum tipo de nexo com as outras recebidas das últimas vezes. Eram

vozes pedindo ajuda. Talvez fossem espíritos condenados, ou até mesmo

aqueles que não conseguiram resolver algum tipo de problema antes da sua

morte. Natalie poderia tentar entendê-los para ajudar, mas, ultimamente, era ela

quem precisava de ajuda. Pelo menos a ajuda de sua amiga, que, por conta de

todos aqueles mistérios, não era mais como antes.

— Eu preciso contar o que está acontecendo para Kelly, ela acreditando em

mim ou não. — disse Natalie, conversando consigo mesma — Amanhã eu vou

ligar para Kelly e contar tudo o que está acontecendo. Ou ela acredita em mim,

ou ela vai definitivamente achar que eu estou maluca. Não consigo mais guardar

isso comigo.

Ela trocou de roupa, e estava pronta para dormir. Por estar muito cansada,

desejou não escutar nenhuma voz, e parecia que aquele desejo estava sendo

atendido. Era como se Natalie estivesse aprendendo a controlar suas

habilidades, mesmo sem saber como.

Antes de se deitar, decidiu descer até a cozinha para beber água. Pegou um

copo de água fresca, encostou-se na pia e aquele rosto branco, aqueles cabelos

negros e os olhos escuros surgiram rapidamente à sua cabeça. Ela se lembrou

daquele rapaz misterioso, que, na noite em que Paul fora atacado, parecia ser

tão cruel, quando entregou a faca para o homem. Ao mesmo tempo, ele parecia

ter um olhar sereno quando a salvou dos três homens.

Aquela mistura de pensamentos confundia muito a cabeça dela, pois não

podia se esquecer de que os três homens foram mortos e caíram do céu como

se ele os tivesse jogado de lá.

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— Será que ele era um anjo? — pensou a garota por um instante. Mas

como um anjo poderia matar um humano, se sempre ouviu dizer que a missão

deles era guardar por suas vidas.

— Por que somente eu consegui enxergá-lo no bar? — Cada vez que ela

pensava nele, mais perguntas surgiam.

Natalie não queria vê-lo nunca mais. Essa era sua razão falando, mas o seu

coração batia mais forte cada vez que ela pensava no rapaz. Era um sentimento

diferente, algo que ela nuca tinha sentido por outro homem.

— O que te perturba, minha filha? — Natalie largou o copo de sua mão, que

se quebrou no chão na cozinha, fazendo um barulho que acordou Dorah e

Gabriel.

— Natalie, você está bem? — perguntou Dorah, descendo as escadas

rapidamente.

— Desculpa, mãe, eu não queria te acordar. — Natalie olhou para a escada

esperando Gabriel falar alguma coisa.

— Não vou nem falar nada — disse o garoto que, sonolento, virou as costas

e voltou a dormir, irritado por ter sido acordado.

— Deixa que eu limpo, mãe. Pode voltar a dormir, foi apenas o copo que

escorregou da minha mão. — Natalie foi até a área de serviço pegar um pano,

jornal velho para embrulhar o vidro e um saco de lixo.

— Tem certeza de que não quer minha ajuda? — perguntou Dorah.

— Tenho, mãe, amanhã você tem de acordar cedo, e eu posso dormir até

mais tarde.

— Bom, então boa noite, meu anjo, e cuidado para não se cortar. — Dorah

voltou a subir as escadas e foi dormir.

Natalie continuou a limpar os cacos, e verificou se nenhum deles estava

perdido pelo chão da cozinha.

— Desculpa ter te assustado. — Natalie novamente se assustou, mas logo

se acalmou quando reconheceu a voz do pai.

— Espera um minuto, estou terminando de arrumar as coisas aqui e já vou

para o quarto. Lá conversamos, não quero que a mamãe escute que estou

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falando sozinha.

— Tudo bem. Te espero lá, meu anjo, preciso te contar uma coisa — disse a

voz de Laurence.

Natalie terminou de arrumar a bagunça e se certificou de que todos estavam

dormindo. Entrou no seu quarto, e trancou a porta, para que não tivesse

nenhuma outra surpresa naquele momento.

— Pai, você está aí? — perguntou ela, imaginando o rosto de seu pai.

— Sim, minha filha. Como você está? — perguntou Laurence.

— Eu ando tendo alguns problemas, coisas estranhas estão acontecendo

na minha vida. — Foi então que ela teve uma ideia. Já que seu pai estava em

outro lugar, ela pensou em fazer algumas perguntas para ele. — Pai, dizem que,

quando as pessoas morrem, elas enxergam tudo. — Laurence não comentou

nada, então ela decidiu continuar perguntando: — Você viu o que aconteceu

comigo, no dia em que eu quase perdi o presente da mamãe?

— Sim. — Foi a única resposta de Laurence.

— O que aquele rapaz, é? — Natalie foi direta na pergunta.

— O presente é lindo, não é? — Laurence pareceu fugir totalmente do

assunto.

— Sim, é muito lindo, mas você não respondeu à minha pergunta. O que

aquele rapaz é? Um anjo ou um demônio?

— Tenho certeza de que sua mãe vai adorar o presente. — Mais uma vez

ele parecia fugir do assunto.

— Você não pode falar sobre isso, não é? — Percebendo que o pai já tinha

se esquivado duas vezes da resposta, ela decidiu não fazer mais perguntas. —

Tudo bem, mas será que você pode me dizer uma coisa? — Natalie esperava

que, dessa vez, ela pudesse matar a sua curiosidade. — O presente. Como

você sabia que, depois de tanto tempo, eu iria pegá-lo?

— A única coisa que eu posso lhe dizer é que, se eu entregasse antes para

sua mãe, não teria sentido nenhum — disse Laurence.

— E agora tem? — perguntou Natalie, que continuou sem entender nada.

— Hoje não, mas um dia fará todo o sentido. — E as palavras de Laurence

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criaram mais um mistério na cabeça de Natalie. — O importante é que sua mãe

vai amar o presente, disso eu tenho absoluta certeza.

Natalie parecia ter perdido todo o sono, enquanto conversava com seu pai,

e resolveu perguntar uma coisa que há dez anos a perturbava.

— O que aconteceu há dez anos? Por que seu amigo te matou? — Aquele

assunto ainda feria muito o coração de Natalie.

— Raiva e ódio multiplicados pela força negra. — Laurence disse aquelas

palavras, que pareciam não fazer muito sentido.

— Tente me explicar melhor, pai, eu não entendo — pediu a filha.

E assim, Laurence começou a contar toda história para Natalie. Ele era

trabalhador, saía pela manhã e só voltava à noite, pois almoçava na madeireira

onde trabalhava. Como boa pessoa, tinha vários amigos, mas um desses o fez

não voltar para casa, em uma quinta-feira chuvosa. Durante uma discussão

sobre futebol — muito comum entre os homens —, um de seus melhores amigos

descontrolou-se após uma brincadeira de mau gosto, mas tudo parecia normal,

pois ambos almoçaram juntos naquele dia, mesmo depois do ocorrido. Mas foi

no fim da tarde que ele voltou com um pedaço de madeira e, furioso, matou

Laurence a pauladas. Paralisado, sem acreditar no que havia feito, foi preso e,

depois de vinte dias na cadeia, suicidou-se. Ninguém em Polsher compreendeu

o que acontecera.

— Mas por que ele estava enfurecido, pai, se outras vezes aquilo já tinha

acontecido? Afinal, era apenas uma brincadeira — perguntou a filha sem

entender.

— Quando eu disse que a raiva dele foi multiplicada pela força negra, eu

quis dizer que ele teve um impulso que o ajudou a fazer aquilo.

Natalie continuou sem entender o que o pai quis dizer, mas ainda estava

curiosa.

— De que força negra você está falando? — perguntou a garota, que se

lembrou do anjo que viu no posto. — Eu sei que eu não entendo muito bem, mas

tenho certeza de que vi um anjo salvando um homem no posto. Por que eles

não te salvaram?

— Minha filha, minha missão já estava concluída — disse Laurence.

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— Quer dizer que, se sua missão já está concluída na Terra, eles não te

protegem mais? Que tipos de anjo são esses? — Natalie parecia estar revoltada

por saber que os anjos salvam as pessoas, mas deixaram seu pai morrer.

Laurence percebeu que aquilo chateou a filha, e que não podia contar mais

nada, para não piorar a situação. Mas, antes de partir, ele disse uma última

frase:

— Muito cuidado com a força negra. Ela pode ser muito perigosa.

— Que força negra? Do que você está falando, pai?

Natalie não ouviu mais a voz de Laurence. A garota não conseguiu perceber

a ligação que existia entre os fatos que vinham acontecendo, a morte de seu pai,

a mudança de comportamento do amigo dele e a tal força negra.

Mesmo revoltada, Natalie resolveu dormir, pois estava cansada e preferiu

não refletir muito. Porém, não tirou uma ideia da cabeça: assim que acordasse,

contaria para Kelly tudo que estava acontecendo, sem se importar com o

resultado dessa loucura. Finalmente, a garota adormeceu.

******

Quase duas horas da tarde e Natalie continuava a dormir um sono profundo.

Ela havia se esquecido de, na noite anterior, destrancar a porta do quarto. Assim

que acordou, levou um grande susto, olhou para o relógio e viu que já havia

passado da hora do almoço. Era sábado, mas, naquele dia, Natalie precisaria

tomar conta de tudo, porque Dorah havia saído cedo para resolver alguns

problemas e só voltaria no meio da tarde.

A garota levantou-se depressa e foi até o quarto de Gabriel, mas ele não

estava lá. Foi até a cozinha, onde o irmão também não se encontrava. Foi

quando viu um bilhete em cima da mesa:

OBRIGADO POR SE PREOCUPAR COMIGO. PRIMEIRO ME ACORDA DE

MADRUGADA, E AGORA ME DEIXA AQUI, ALMOÇANDO SOZINHO? BOM, SEU

ALMOÇO ESTÁ NA GELADEIRA. FUI PARA O CAMPO JOGAR.

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A princípio Natalie ficou preocupada, mas, vendo que Gabriel estava

fazendo seu drama de sempre, acabou se tranquilizando. Foi até a geladeira,

pegou o almoço e tranquilamente almoçou. Não demorou muito até que voltou a

pensar na conversa que teve com seu pai, bem como na frase que ele dissera

antes de partir.

— De que força negra ele estava falando? — Ela tentava encaixar as peças,

mas de nada se lembrava. — Preciso ligar para a Kelly agora, não aguento mais

isso. — Natalie pegou o telefone. — Sei que ela não vai resolver nada, mas

preciso tirar esse peso de mim.

O telefone chamou por diversas vezes, até que caiu na caixa de

mensagens. Natalie decidiu, então, lavar as poucas louças dela e viu que o

irmão havia deixado, por pirraça, as dele também. Assim que terminou, foi ao

banheiro, e escutou seu telefone tocando na sala. Com a escova de dente na

boca, ela saiu correndo para atender.

— Alô — disse Natalie, com a boca cheia de pasta.

— Gente, o que fizeram com a sua voz? — perguntou Kelly.

Ainda com a escova na boca, ela correu para o banheiro e cuspiu na pia.

— Pronto. Agora estou melhor. Estava escovando os dentes. — Natalie foi

para o seu quarto, deitou na cama e continuou a conversa com a amiga. — Por

que demorou em atender?

— Estava vendo a monstra tomar banho — Kelly se referia à cachorra.

— Precisamos conversar bem sério, Kelly. Tem algumas coisas que já estão

me matando há muito tempo, e que eu não conto para você.

— Primeiro tenho que te dizer que esconder não é legal, — Kelly deu uma

pausa e continuou: — Segundo, se você vier me falar de você e do Paul, posso

dizer que já estava desconfiada.

— Do que você está falando? — Natalie pensou para dizer. — Tem a ver

com o Paul também, mas não com nós dois.

— Que pena, não vejo a hora de nós sairmos de casal. — Kelly deu uma

risada, achando que o assunto que Natalie queria tratar com ela seria em um

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tom menos sério.

— Kelly, o que eu tenho para falar com você é muito sério. — O tom de voz

de Natalie havia mudado, e Kelly, por sua vez, também ficou mais séria. —

Muitas coisas estranhas estão acontecendo, e eu não posso contar para

ninguém, senão todos vão me chamar de louca.

— São novamente aquelas coisas que estavam acontecendo quando você

estava desmaiando? Elas voltaram? — perguntou Kelly, se referindo à semana

após o acidente no posto.

— Esse é o problema, as coisas estavam melhorando. Mas, após o meu

aniversário, tudo voltou novamente. E agora tem esse cara. Eu não sei mais o

que fazer, essa é a verdade.

— De que cara você está falando?

— Você se lembra de que um dia eu contei para você de um rapaz que

chegou no bar e...

— Claro que eu me lembro, o de cabelos negros, bem bonito — interrompeu

Kelly. — O que tem ele?

— Pois é, acredite ou não, mas no dia do acidente do posto, ele estava do

lado de fora, junto com uma garota de cabelos ruivos.

— E o que tem isso, monstrinha?

— Ela foi até o bar esses dias e me ameaçou, dizendo para que eu ficasse

longe dele.

— Será que ela é namorada dele? — Assim que perguntou, Kelly parou por

um instante. E continuou: — Mas você está saindo com ele?

— Não. Eu nem ao menos o conheço. — Ela suspirou, como se não

conseguisse parar de chorar. — Um dia, antes de irmos ao shopping, eu o vi

conversando com o cara que machucou o Paul, e a arma que o cara utilizou foi

ele quem deu.

— Então ele é perigoso. Você precisa ficar longe dele.

Natalie parou por um momento e pensou se deveria continuar com a história

para a amiga. Mas decidiu ir até o fim:

— No dia seguinte, quando eu voltava para casa, fui assaltada por três

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caras, que tentaram roubar meu colar.

— Meu Deus, e por que não me falou isso antes? — perguntou Kelly,

apavorada. — Você conseguiu recuperar a joia? Se você quiser, eu peço para

meu pai mandar os policiais atrás dos bandidos e...

— Ele recuperou a joia, e matou os três bandidos — disse Kelly,

interrompendo a fala continua de Kelly.

— Ele quem? — Kelly perguntou aquilo com a voz tremula.

— O mesmo cara do outro dia. — Natalie começou a perder a paciência. —

Os três homens caíram do céu, como se tivessem sidos arremessados. Ele veio

até mim, me soltou e devolveu o presente. Eu estava morrendo de medo, não

pensei em nada e corri para casa.

— Mas e os três bandidos? Eu não vi nenhuma notícia sobre isso. Onde foi

que aconteceu?

— Foi perto de casa — disse Natalie. — Eu também não sei aonde eles

foram parar, mas só sei que estou com muito medo, Kelly.

— Meu Deus. O que está acontecendo? — Kelly pensou que a amiga

estava voltando a ter aquelas alucinações. — Você tem certeza de que está bem

e não precisa ver um médico?

— Kelly, eu estou muito bem. Só estou contanto isso, porque você é minha

melhor amiga. Agora, se você acha que eu também estou ficando maluca, pode

me dizer, que eu não te conto mais nada a respeito disso.

— Não é isso. Eu só estou preocupada com você.

— E para finalizar tudo, ontem eu derrubei o copo no bar porque o vi

entrando com outro rapaz. Mas, como percebi que apenas eu os estava vendo,

resolvi ficar quieta.

Naquele momento, Kelly percebeu que realmente Natalie não estava

normal. Mas, apesar de não acreditar em nada daquilo que estava ouvindo,

decidiu não falar nada, pois não queria chatear a amiga.

— Eu acho que você precisa descansar um pouco, afinal, está trabalhando

bastante, e hoje à noite tem show de rock.

— Nem me fale isso, hoje aquele lugar vai estar uma loucura — reclamou

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Natalie. — Mas, de qualquer forma, acreditando em mim ou não, eu agradeço

por você me escutar.

— Não se preocupe, amiga, vai dar tudo certo. Fica bem. Beijos. — Kelly

desligou o telefone e voltou a pensar em tudo o que a amiga tinha lhe contado.

Era muita informação estranha para ser digerida tão rápido.

Talvez, naquele momento, Natalie estivesse mais aliviada, mas tinha

certeza de que dificilmente a amiga teria acreditado em tudo que ela dissera. Se

fosse ao contrário, ela também duvidaria da amiga.

E assim continuou a tarde de Natalie, até estar quase na hora de voltar ao

trabalho. Ela tomou um banho e se arrumou, como de costume, deixando o

cabelo amarrado, já que nas noites de show era indispensável e fazia muito

calor.

Antes de sair de casa, Natalie pegou suas coisas, o outro uniforme que sua

mãe tinha lavado e desceu as escadas. No meio do caminho, surpreendeu-se

pelo toque da campainha.

— Quem será a essa hora? Não posso ficar muito tempo. — Natalie chegou

até a porta e viu que era o detetive Ramones.

— Boa tarde, senhorita Zeniek. Como você está? — perguntou o Detetive.

— Estou bem, apenas atrasada para o trabalho — disse a garota.

— Prometo que serei bem breve, preciso apenas fazer algumas perguntas.

— Pois não, em que eu posso te ajudar? É sobre aquele caso da outra vez?

— perguntou a garota.

— Não. Eu apenas gostaria de saber quando foi a última vez em que você

esteve com a senhora Shanon Sevada. — O detetive parecia não querer soltar

nenhum tipo de informação.

— Ontem à noite eu estive com ela. Por quê? Aconteceu alguma coisa?

— Eu não terminei ainda. — Aquelas palavras do detetive deixaram Natalie

mais tensa. — Me explique exatamente como foi a última vez em que você a viu.

— Eu estava trabalhando com ela ontem à noite, e Shanon me ofereceu

uma carona para casa, como todas as noites — explicou a garota. — Me deixou

aqui e foi embora para a casa dela.

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— Ela disse que iria para algum lugar antes de ir para casa, ou encontrar

alguma pessoa? — continuou questionando o detetive.

— Não. Ela não costuma falar sobre a vida pessoal dela — disse Natalie,

que parecia estar muito nervosa.

— Você parece estar nervosa, senhorita Zeniek.

— Claro que estou nervosa! Você chega à minha casa, começa a me

interrogar e não me fala por quê.

— Ela está morta — informou o detetive.

—Morta? Shanon? — Natalie parecia estar em estado de choque, afinal, a

menos de um dia ela esteve com a colega de trabalho. E, pelo que o detetive

disse, ela pode ter sido a última pessoa a ter contato com a mulher.

— Isso mesmo, após deixar você em sua casa, ela foi morta em uma

estrada, a uns três quilômetros da casa dela.

— Outro ataque de animais? — perguntou a garota.

— Não. Dessa vez, alguém a atacou com um punhal. — E então Ramones

concluiu: — Se fosse um animal, eu não teria motivos para interrogá-la.

— Você não está querendo dizer que eu fiz alguma coisa com ela, está?

— Não, senhorita. Como eu te disse, apenas estou recolhendo os fatos. Se

bem que, ultimamente, você anda envolvida em bastantes problemas, não é?

— Mas eu não tenho culpa de nada. Não posso fazer nada se as coisas

estão acontecendo comigo.

— Realmente não pode. Mas, se eu precisar de mais alguma informação,

volto a te procurar. Se lembrar de algo mais, me ligue. Passar bem. — O

detetive se virou e caminhou em direção ao carro.

Natalie fechou a porta, horrorizada. Jonathan e Nick já deveriam estar

sabendo do que aconteceu. Ela ficou imaginando se todos poderiam estar

pensando que ela tinha feito alguma coisa. Pegou sua bolsa e decidiu ir para o

bar, mesmo não sabendo o que seria daquela noite após o assassinato da

colega de trabalho.

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Capítulo 17

MEDO e muito mistério rondavam a cidade de Polsher. Várias pessoas

estavam morrendo, algumas desaparecendo, ataques de animais jamais vistos

antes e uma população assustada.

Foi por conta de todos esses problemas e do anúncio da morte de Shanon

que o prefeito Golpher decidiu dar uma declaração em praça pública para os

habitantes da cidade.

Geralmente, Kelly acompanhava o pai em tais declarações, já que sua mãe

não estava mais presente, mas, nesse dia, o prefeito pediu para que a filha

ficasse em casa, pois estava com medo das represálias da população.

Antes que fosse para a reunião, Joseph ligou para o governador na capital,

a cidade de Janove, e perguntou o que poderia fazer e quais recursos seriam

liberados para aumentar a segurança de Polsher.

— Você sabe que não temos muito dinheiro para oferecer a Polsher, prefeito

— disse o governador.

— A nossa cidade cresceu mais de quarenta por cento nos últimos três

anos! Agora precisamos de ajuda para a proteção da população e você me diz

que não temos recursos? — O prefeito estava muito irritado. — Que tipo de

governo é esse?

— Você vai questionar o meu governo, Golpher? — O governador falou com

um tom nada agradável. — Bom, de qualquer forma, reconheço o esforço de

crescimento da sua cidade. Vou ver o que posso fazer.

— Muito obrigado, senhor governador, e desculpe-me pelo insulto.

— Fique tranquilo. Estarei enviando o relatório dos custos em trinta minutos.

Era claro que, no pouco tempo em que esse relatório seria enviado, as reais

burocracias demorariam muito mais. Portanto, o governador estava ajudando de

outra forma não muito lícita. O prefeito Golpher sempre foi muito correto em

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todas as suas ações, mas, dessa vez, mesmo sabendo que algo não estava

certo, teve de aceitar a oferta, visto que sua população precisava de ajuda.

E foi na grande praça do centro, próximo ao shopping, no Central Park, que

o prefeito fez sua declaração. No início, ele foi recebido por muitas vaias, a

população estava alvoroçada e havia mais de mil pessoas lá.

— Cidadãos de Polsher. Eu sei que estamos vivendo tempos difíceis como

nunca vivemos nesta cidade.

— Você não tem ideia do que é viver tempos difíceis, prefeito — gritou uma

voz no meio da multidão.

— Muito pelo contrário, todos sabem que, para chegar aonde cheguei, sofri

muito, e já perdi uma pessoa querida de forma trágica, que muitos de vocês

conheciam.

Naquele momento a multidão se calou. Era da sua esposa que ele falava. A

antiga prefeita da cidade, uma mulher que ajudou a reerguer Polsher de uma

maneira que ninguém poderia imaginar. Muitos diziam que Joseph só estava lá

por conta da mulher.

— Dessa forma, lembrando-se de como minha esposa tratava todos aqui,

eu não poderia deixar de fazer o que ela faria por Polsher.

— Queremos segurança, prefeito — disse outra voz no meio da multidão.

— Hoje, pela tarde, falei com o governador pelo telefone, e ele nos forneceu

verba para que reforcemos a segurança, entre outras melhorias, como a criação

da guarda florestal para cuidar das florestas e estradas próximas a elas.

Precisamos evitar o que aconteceu aqui, hoje. — Todos pareciam estar

contentes com a notícia. — Para isso, prometo que no máximo em três dias a

segurança de Polsher estará reforçada. Portanto, fiquem atentos e reforcem a

segurança de suas casas.

Assim todos ficaram mais tranquilos. Polsher era uma cidade bem

estruturada, que não tinha problemas nas áreas de saúde, transporte, ou outras

necessidades básicas, mas estava sofrendo muito com os atentados nos últimos

dias. Assim que a declaração acabou, todos foram para casa, onde ficaram mais

tranquilos, para contar a novidade às suas famílias.

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******

Enquanto o prefeito fazia a declaração na praça, Natalie estava no táxi indo

direto para o Avalon. A garota estava atrasada e não fazia ideia do clima no bar,

depois da trágica notícia.

Assim que chegou em frente ao Avalon, correu pela entrada dos fundos.

Naquele momento, a grade para a entrada dos funcionários estava aberta.

Assim que colocou os pés dentro do bar, assustou-se com uma cena que não

esperava ver.

No bar, com um copo de uísque nas mãos, estava Jonathan, e com uma

cara péssima. Nick também parecia estar totalmente abalado.

— Desculpem meu atraso, — disse Natalie em um tom bem baixo — mas o

detetive Ramones foi até a minha casa para me investigar sobre a morte de

Shanon.

Quando Natalie falou isso, os dois olhares foram para ela.

— Mas por que investigar? Você teve alguma coisa com isso? — perguntou

Jonathan, com um olhar de fúria que Natalie nunca tinha visto.

— Não, chefe, Shanon dava carona para Natalie todas as noites. Você se

lembra? — disse Nick

— Alguém já descobriu alguma coisa? — perguntou Natalie.

— Algumas coisas. — Nick olhou para Natalie, mostrando uma notícia no

celular. — Veja, o ex-marido dela, desde ontem à noite, está desaparecido. A

polícia desconfia dele.

— Meu Deus, será que foi ele que fez isso com ela? Mas por quê? —

perguntou Natalie assustada.

— O que eu vou fazer agora sem ela? — Jonathan parecia desesperado.

Havia exatos dez anos, ele abria o Avalon. E desde então, Shanon o

acompanhou, mesmo no início, quando o bar ainda era pouco frequentando.

Com tanto tempo juntos, ele via em Shanon uma irmã.

— Jonathan, eu imagino o que você está sentindo, mas a vida não pode

parar — disse Nick. — Shanon gostaria de ver este bar funcionando como

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sempre foi.

— Este bar não vai funcionar mais. Não sem ela. — Jonathan terminou de

beber toda a bebida que estava no copo. — Me coloca mais.

— Natalie, vem aqui — chamou Nick. — O Jonathan não está bem para

abrir o bar hoje. Já coloquei um cartaz na porta informando que estamos de luto,

e que o show de hoje foi transferido para o mês que vem.

— Você precisa de alguma ajuda, Nick? — perguntou a garota.

— Bom, eu dispensei o Big Mike, e liguei para que o G e o J não viessem

também. Mas tem isso aqui. — Nick pegou um papel atrás do balcão e entregou

para Natalie. — Estas são as compras que eram pra ser feitas pelo Jonathan,

mas ele não está em condições desde que recebeu a notícia.

— Eu devo imaginar como ele está sofrendo. — Natalie olhou para a cara

do chefe, e notou o quanto ele estava ferido.

— Bom, de qualquer forma, gostaria que você fosse comprar estas coisas.

O mercado fica a duas quadras daqui. Como só reabriremos na terça, até lá ele

vai estar descansado.

— Pode deixar, Nick, eu vou — disse Natalie, pegando a lista e o dinheiro

para a compra. — Volto logo.

E assim Natalie saiu para as compras. No caminho, lembrou-se de Shanon,

que parecia estar muito feliz na noite anterior. A garota não conseguia acreditar

que não veria mais a amiga no bar, a qual parecia insubstituível, e que, em

muito breve, outra pessoa estaria no lugar dela. Isso se Jonathan conseguisse

reabrir Avalon.

Quando Natalie chegou ao mercado, pegou o carrinho e não demorou muito

para que comprasse o necessário para a cozinha. Ela aproveitou e fez compras

para casa, pois estava preparando uma surpresa para sua mãe, um delicioso

café da manhã. Decidiu levar produtos diferentes, que nem sempre havia em

sua despensa. Dirigiu-se ao caixa, pegou a nota e o troco e, com as sacolas na

mão, voltou para o trabalho.

No caminho, Natalie ficou imaginando o que sua mãe iria dizer quando

descobrisse que a mulher morta trabalhava com ela. Com certeza, depois da

promoção, não deixaria que Natalie trabalhasse mais no bar. Mas ela preferiu

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não pensar no pior, e continuou andando.

Quando estava a uma rua para chegar ao Avalon, avistou um homem

correndo em um dos becos. Ele parecia estar fugindo. Quando Natalie olhou

para o fim da rua novamente, ficou assustada com o que viu: o mesmo homem

caído no chão com suas lindas asas brancas abertas e um pouco avermelhadas;

ele sangrava. Ele vestia calças claras, que não chegavam a ser brancas, estava

sem sua camiseta e não usava nada nos pés. Tinha pele branca, cabelos curtos

e claros, e seu olhar não era de alguém que estava sendo intimidado: transmitia

coragem, mesmo estando naquela situação. Aparentava não ter nunca baixado

sua guarda, enfrentando seu inimigo até o fim.

Natalie não conseguiu ver de quem o anjo estava fugindo, mas largou as

sacolas no chão e correu em sua direção; ela precisava ajudá-lo. Quando viu a

garota vindo em sua direção, e percebeu que ela o estava vendo, o anjo usou

suas forças para tentar se levantar. Naquele momento, o inimigo dele apareceu.

Ao vê-lo, o corpo de Natalie ficou paralisado. Era ele. O rapaz que a tinha

ajudado, aquele que não saía de sua cabeça, lá estava novamente.

Ele segurava o punhal negro nas mãos, o mesmo punhal que ele entregou

para o homem que roubou Paul. Estava pronto para matar o anjo.

Natalie não estava preparada para, novamente, ver um anjo ser morto. A

mesma cena do posto se repetiria.

— Pare! — gritou a menina, chamando a atenção de Carsten.

Quando o rapaz viu que ela estava à sua frente, não conseguiu mais chegar

perto do anjo. E assim que a vítima teve sua chance, mesmo machucada, abriu

suas asas brancas, manchadas de sangue, e voou.

Carsten não o perseguiu, pois estava sem reação. Não conseguia ao menos

pensar no que fazer, apenas em ver aquele rosto delicado novamente, que o

encantava de alguma forma, sem nem mesmo saber o porquê. O rosto de uma

humana, que, para os da espécie dele, eram tratados com total indiferença e

serviam apenas para os propósitos do submundo.

Natalie percebeu que o anjo já estava bem longe, e que, mesmo

machucado, conseguiu voar bem rápido. Olhou novamente para Carsten e

percebeu que, depois de toda aquela ação, da tentativa de matar o ser alado, só

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podia ser dele que o pai havia falado. Ele era aquele de quem ela deveria se

afastar, o portador da força negra.

Carsten ergueu uma de suas mãos para tentar falar com Natalie, mas a

garota o interrompeu:

— Fique longe de mim.

A garota virou as costas, correu até as sacolas que havia deixado no chão,

recolheu tudo e correu de volta ao bar. Assim que chegou, deixou as compras

sobre o balcão e disse a Nick que precisava ir embora. O rapaz nem teve tempo

de perguntar se ela estava bem, e Natalie já havia saído. No caminho até o

ponto, ela ficou olhando para todos os lados, com medo de o rapaz a estar

seguindo.

A imagem daquele rosto permaneceu em sua cabeça. Ela assimilou o rapaz

como um ser da escuridão, assim como seu pai havia dito. Mas, ao mesmo

tempo, Natalie se lembrava da cena dele a salvando. Tudo aquilo parecia ser

muito surreal. Um homem, que a ajudou em uma noite, tentando matar um anjo

que sangrava.

Naquela mesma hora, Carsten continuava no beco, parado na mesma

posição. Ele parecia não entender o porquê de tudo aquilo. Da mesma forma

que Natalie disse que a vida dela havia se tornado um inferno desde que ele

aparecera, a vida dele não era mais a mesma do momento em que ele a viu

naquele posto.

— O que acabou de acontecer aqui? — disse Victor, assim que caiu do céu,

junto a Katherine, bem atrás de Carsten. — Você deixou um anjo escapar por

conta daquela garota?

— Não me enche, Victor.

— Como assim não me enche, você viu o que acabou de acontecer? Você é

um demônio, caça anjos e deixou um deles escapar por uma humana? — Victor

insistia no assunto.

— Cala a boca. — Carsten caiu de joelhos no chão, a confusão em sua

cabeça aumentava cada vez mais, ele estava perdendo o controle de tudo.

Os três ficaram em silêncio. Victor estava com raiva, mas ele percebia que

aquilo já não estava no controle do companheiro. Por mais que ele tentasse

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evitar, existia algo que realmente o fazia perder sua personalidade.

— Você sempre foi o que de nós três não tinha pena dos anjos, via eles com

presas, hoje você o deixou escapar — continuou Victor.

— Foi como se ela tivesse roubado a minha atenção — Carsten estava com

a cabeça abaixada, tinha vergonha de olhar para os companheiros.

— Creio que eu tenho a solução. Reclusão — Katherine se referia àquela

sala negra e disse com total naturalidade, como se fosse algo que ela mesma

suportasse.

— Por que diz isso, Katherine? Vai contar para o ancião o que aconteceu

aqui? — Carsten se virou para a garota, a ameaçando, afinal todos tinham

segredos ali.

— Apesar de me enfraquecer lá dentro, todos nós estamos tomando

decisões erradas nesses últimos dias — continuou Katherine deixando os dois

desconfiados.

— Eu não sei o que está acontecendo comigo — gritou Carsten.

— Por isso eu digo que devemos todos voltar à reclusão, por pelo menos

alguns dias, até que comecemos a raciocinar novamente.

— Eu concordo — disse Victor. — Afinal, não é todo dia em que se perde

um anjo.

— Eu sei. Ele vai contar para os outros e eles virão em cima da gente, como

presas fáceis. — Carsten sabia que tudo aquilo iria acontecer, por isso assumiu

seu erro. — Eu concordo com a reclusão, mas, dias podem matar você. E o que

diremos ao ancião?

— Não se preocupem comigo, eu tenho um estoque reservado e sobre o

ancião, inventaremos uma desculpa — a ruiva parecia ter tudo planejado.

O portal de símbolos roxos apareceu sobre eles no céu. Os garotos tiraram

as camisas, deixando suas costas livres; Katherine usava uma blusa frente

única. Todos abriram suas asas negras e voaram em direção a ele,

atravessando seus corpos, os quais foram desaparecendo. Então, o beco se

tornou vazio e silencioso novamente.

Em poucos segundos, o beco foi tomado por uma leva de dez anjos, com

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suas majestosas asas brancas abertas. Todos pareciam procurar por rastros

daquele que tentou matar um deles, mas nada foi encontrado. Os anjos se

separaram e mais uma vez, o beco ficou silencioso.

******

Era manhã de domingo, e estava chovendo. Geralmente, manhãs chuvosas

deixariam qualquer pessoa preguiçosa. Mas Natalie estava empenhada em

deixar aquele dia o mais especial possível.

Assim que o despertador tocou, levantou-se, correu para o banheiro e, em

seguida, desceu até a cozinha para preparar o café da manhã de sua mãe. O

suco de laranja já estava pronto, e ela pegou no armário tudo o que havia

comprado no mercado.

Colocou os pães sobre a mesa, geleias, preparou algumas torradas, patê,

tudo de que sua mãe mais gostava. Separou os pratos e esperou, deitada no

sofá, até que Dorah acordasse e descesse para o café.

Nesse meio tempo, voltou a se lembrar do rosto de Carsten e daquele anjo

que seria morto.

— Por que ele estava matando um anjo? Que tipo de monstro ele é? —

Natalie tentava fazer várias associações com o que seu pai havia falado. —

Seres da escuridão são demônios, mas ele não se parecia com um demônio.

Carsten era um jovem bonito, pelo qual qualquer garota se apaixonaria.

Apesar de estar envolvido em tais obscuridades, Natalie negava que ele

pudesse ser um deles.

A garota não queria mais saber dele, pretendia apagá-lo da memória. Mas,

cada vez que tentava, a lembrança dele ia ficando mais forte, e a curiosidade de

saber o que e quem ele era aumentava cada dia mais.

Natalie escutou um barulho na escada. Era Gabriel descendo as escadas e

indo direto para a mesa do café da manhã. Quando seu irmão ia tocar em um

dos pães, ela o repreendeu:

— Ei! Pode parar. Espera a mamãe.

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— Por quê? Estou com fome.

— Você se esqueceu de que hoje é o aniversário dela? — Natalie lembrou o

irmão, que, pela cara que fez, com certeza já tinha se esquecido.

— Nossa, é verdade, eu tinha me esquecido mesmo. Você comprou um

presente?

— Sim, comprei, e fica tranquilo que eu coloquei o seu nome no cartão

também.

— Bom, podemos acordar a mamãe, assim ela virá logo. — Gabriel encheu

o pulmão de ar para dar um grito, quando foi interrompido pela irmã:

— Não se atreva a fazer isso. É o dia do aniversário dela, vamos deixá-la

dormir.

E assim ficaram os dois irmãos sentados no sofá, esperando por Dorah.

— Por que você acordou tão cedo hoje, que está chovendo? — perguntou

Natalie.

— Sei lá, estava sem sono e morrendo de fome. Se bem que a fome

continua. — Ele olhou para a cara da irmã, com a mão na barriga, fingindo que

não aguentava mais devido à fome que estava sentindo.

Um barulho veio do andar de cima. Mais do que depressa, os dois olharam

e viram as pernas de Dorah descendo as escadas.

— Feliz aniversário! — disseram os dois irmãos juntos.

— Que lindo! Vocês fizeram um café da manhã para mim?

— Na verdade foi a Natalie, mãe. Eu, como todos os anos, acabei

esquecendo. Você sabe como é, né? Escola, muitos livros para ler.

Natalie olhou para o irmão. Pretendia falar algo depois daquele comentário,

mas resolveu não dizer nada, já que ele tinha falado a verdade.

— Bem, então vamos comer — disse Dorah para os filhos.

Todos se sentaram à mesa e começaram a tomar o café da manhã. Tudo

estava muito bem preparado, o patê e a geleia eram caseiros, tudo preparado

por Natalie.

— Meu Deus! Essa geleia está uma delícia! Você quem fez, minha filha? —

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perguntou Dorah.

— Sim, mãe. Você gostou?

— Sim, está ótima. — Dorah pegou mais uma torrada e repetiu mais

algumas vezes.

— Eu gostei do patê — disse Gabriel. — Minha irmã até que tem alguns

dotes culinários.

— Eu sei me virar um pouco — Natalie ficou sem graça pelo comentário.

— Natalie, sei que não é hora de conversar sobre isso, mas eu fique

preocupada com o que aconteceu ontem. — Dorah se referia ao assassinato. —

Ela trabalhava com você?

— Sim, mãe. E o pior de tudo é que ela foi morta logo depois de me deixar

aqui em casa.

— Minha querida, eu não sabia disso, senão teria conversado com você

antes. — Dorah se levantou e foi dar um abraço na filha.

— Ainda bem que o prefeito declarou que, em três dias, a cidade estará

mais bem policiada. — Dorah não disse nada a respeito de a filha parar de

trabalhar, e Natalie nem tocou no assunto.

— Você vai ter de trabalhar o dobro agora — disse Gabriel.

Ao notar que seu irmão havia entrado no assunto que ela não queria

naquele momento, Natalie ficou irritada, mas não teve como fugir dele. Então

continuou dizendo:

— Então, o Jonathan ficou muito chateado pelo que aconteceu. Não sei se

vai ser fácil para ele abrir o bar novamente. Mas ele terá de achar uma

substituta, e que seja tão experiente quanto a Shanon.

— Com quem você vai vir embora agora? — perguntou Dorah.

— O Nick pode me deixar aqui, e eu posso ajudá-lo com a gasolina. —

Natalie tentava tranquilizar a mãe, para que ela não dissesse sobre parar de

trabalhar.

A conversa foi interrompida com o toque da campainha. Gabriel foi até a

porta e, quando viu um homem segurando um buque de rosas, logo disse:

— Mãe, acho que é para você.

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Dorah se levantou e foi logo até a porta, onde recebeu o buquê de flores. As

flores estavam lindas, todas abertas, e logo o cheiro das rosas se espalhou pelo

lugar. Dorah pegou o cartão que acompanhava as flores e o leu:

MÃE, NESTE DIA TÃO ESPECIAL PARA VOCÊ, QUEREMOS DIZER O QUANTO É

IMPORTANTE PARA NÓS. ESPERAMOS QUE ESTE SEJA MAIS UM DE MUITOS

ANIVERSÁRIOS QUE PASSAREMOS JUNTOS. BEIJOS, NATALIE E GABRIEL.

Dorah ficou emocionada. Enquanto sua mãe lia o cartão, Natalie

aproveitou para ir até o quarto e pegar a outra surpresa. Quando voltou,

disse:

— Espero que você goste do seu presente, porque deu muito

trabalho para achar e, principalmente, para que chegasse até suas mãos.

— Mais! Oh, minha filha, não precisava. — Dorah deu outro abraço

na filha. — Vem aqui, Gabriel. — Os três se abraçaram como uma família

feliz.

Quando Dorah abriu a caixa, aquela majestosa joia encantou seus

olhos. Era impossível descrever a emoção que ela sentia.

Natalie estava esperando que a mãe perguntasse como ela havia

comprado aquela joia tão cara, e pensando nas inúmeras respostas que

daria para Dorah. Mas, por incrível que parecesse, ela não disse nada.

Apenas agradeceu a filha e foi para o quarto guardar o presente e trocar

de roupa.

— Como você conseguiu comprar aquilo? — perguntou Gabriel,

espantado com o presente. — Você roubou de algum lugar?

— Você está louco? — Natalie pensou rapidamente em uma

resposta. — Eu comprei da Kelly, era uma antiga joia da mãe dela. Ela

sabia que eu queria dar algo especial para a mamãe, e então me vendeu

por um preço bem baixo.

— Ainda bem, porque eu me sentiria envergonhado de ter uma irmã

ladra — disse Gabriel, que riu e subiu para o quarto.

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Natalie estava com a consciência bem tranquila, porque sabia que

aquele presente era mais especial do que qualquer um que ela poderia

ter comprado, e fora comprado de forma estranha. Porém o que ela

realmente achou estranho foi sua mãe não ter perguntado nada. Mas isso

foi o melhor que poderia ter acontecido.

E assim o dia continuou. Natalie, Dorah e Gabriel saíram para

almoçar um pouco mais tarde a fim de comemorar o aniversário da mãe,

com direito a bolo e tudo mais.

******

— Finalmente você chegou — disse Reik olhando para a garota de

cabelos loiros. — Já estava achando que alguma coisa tinha acontecido.

Os dois estavam na mesma floresta, mas haviam subido o morro. A

vista do entardecer de Polsher era linda, e lá de cima eles podiam ver

toda a cidade.

— Por enquanto tudo sobre controle. — informou a loira, chegando

mais perto de Reik. — E agora, o que faremos?

— Faremos não, chegou a hora de você fazer, Serah.

— O que você quer que eu faça? — perguntou a garota curiosa pelo

que viria pela frente.

— Primeiro, eu quero que você tire sua roupa, somente a parte de

cima.

Serah usava uma blusa de cetim branco e calça jeans. Assim como

Reik pediu, ela tirou a blusa e o sutiã e ficou de costas para ele. Em suas

costas, uma linda tatuagem cobria toda a sua pele: eram duas enormes

asas, que pegavam das duas escápulas da garota até sua lombar.

— Você vai descer à Terra como uma humana. — As palavras de

Reik foram um choque para a garota.

— Você está me autorizando a descer como uma humana? Mas eu

me tornarei uma caída — disse a garota, que, apesar de gostar da ideia,

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sentia muito medo.

— Não se preocupe, eu estou autorizando. Não será como os outros

anjos infiltrados, será algo fixo, por um período de tempo.

— Mas, Reik, eu poderei ser rastreada se estiver vulnerável na Terra.

— Não, é por isso que eu pedi para que você tirasse sua roupa. —

Reik colocou uma de suas mãos bem no meio das costas da garota. —

Eu vou criar um bloqueio nas suas costas, e suas asas irão sumir por

exatos vinte e quatro dias.

— Eu não poderei voltar por vinte e quatro dias? — Ela parecia não

gostar dessa parte da ideia.

— Serah, você é a única que eu confio para essa missão.

— Eu sei disso, mas onde eu ficarei nesse período? — perguntou a

garota, em relação à casa, trabalho e vida. — Como eu devo me portar?

— Você deve estar o mais próxima possível dela, principalmente no

período da noite — Ele se referia a Natalie. — Portanto, você vai

trabalhar no bar. E não se preocupe, que eu resolvo tudo para que isso

aconteça.

— Tudo bem, eu já sei o que fazer. — Serah se preparou, para que o

bloqueio fosse criado, mas ela não imaginava o que fosse acontecer.

A mão de Reik, que estava nas costas dela, começou a brilhar.

Vários símbolos se formaram, e, assim que se juntaram, criaram uma

espécie selo. Quando estavam todos juntos, Reik disse apenas uma

palavra:

— Rekai! — Essa era a forma como eles chamavam o selo em suas

costas.

Serah começou a gritar. Suas costas doíam como se estivessem em

chamas, e à medida que a dor aumentava, a tatuagem das asas ia

desaparecendo. Quando já não havia mais desenho algum, a dor

também havia sumido, aliviando todo o mal-estar que ela estava

sentindo.

— Desculpe-me pela dor, mas agora nenhum dos demônios e nem

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mesmo os anjos podem te rastrear. — Reik entregou as roupas de Serah.

— Apenas eu saberei onde você estará. E, se precisar de alguma coisa,

eu também saberei, e mandarei os anjos para sua proteção.

— Tudo bem, eu já entendi. — Serah mexia suas costas, como se

estivesse estranha. Só assim ela conseguia perceber que a tatuagem de

asas era muito pesada, e agora ela se sentia mais leve. — Devo ir

agora?

— Não, ainda não. Apenas na segunda-feira você irá ao bar. O dono

estará lá, sozinho, e você irá conversar com ele. Vai dar tudo certo.

Serah virou-se para a Reik e disse:

— Mais alguma coisa que eu devo saber?

— Sim. Enquanto estiver sem suas asas, sua habilidade está

diminuída em setenta e três por cento.

— Setenta e três? — Serah ficou mais apavorada do que nunca. —

Mas isso é quase nulo. O que eu vou fazer se alguma coisa acontecer?

— Eu já te disse para não se preocupar com nada. — Reik olhou

para garota. — Afinal, na Terra você terá de se portar como uma

humana, e não pode usar suas habilidades, apenas se houver

necessidade extrema para isso.

— É por isso que eu devo utilizar o Rekai?

— Sim, para poder utilizar as suas habilidades em caso de

necessária e extrema urgência, sem ser rastreada por abrir suas asas.

— Vai ser a missão mais difícil que eu já realizei até agora.

— Lembre-se, Serah, mesmo fingindo ser uma humana, você não é

uma, e deve seguir todas as regras. — Reik se referia às regras entre os

anjos. — E por saber que posso contar com você é que a escolhi.

— Muito obrigada por confiar em mim — disse a garota sorrindo.

Assim que terminaram de conversar, os dois foram caminhando

floresta adentro, até que desapareceram no meio da mata.

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Capítulo 18

NOVIDADES era o que não faltava na vida de Natalie. E foi exatamente o

que ocorreu naquela terça-feira, quando ela chegou ao bar.

Jonathan estava abrindo o caixa, já que essa função ele não dava para

ninguém. Nick, como sempre, arrumava as mesas. Os dois pareciam bem

animados, deixando Natalie feliz.

— Nick, quando tivermos aquela banda de novo, poderíamos dar uma

cerveja para cada um, como pedidos de desculpas pelo sábado. O que você

acha? — Jonathan parecia querer agradar os clientes pelo acontecido no dia da

morte de Shanon.

— Gostei da ideia, chefe — respondeu o rapaz.

Apesar de ainda estar abalado pela morte de Shanon, Jonathan sabia que

tinha de continuar seu trabalho no bar; seu negócio não podia parar e sua vida

também não.

— Ei, Nick, vocês foram ao velório da Shanon? — perguntou Natalie, que

não compareceu porque achou que fosse muito familiar, já que foi feito na casa

da irmã.

— Apenas dei uma passada por lá, não conhecia ninguém da família,

apenas ela — disse o barman.

— Bom, é hora de voltar ao trabalho, porque hoje teremos muito, já que

somos apenas nós dois — disse Natalie.

Assim que Natalie disse isso, ela teve uma grande surpresa. Viu uma moça

loira, de cabelos lisos, que estavam amarrados iguais aos dela. Sua aparência

lembrava Natalie de alguma pessoa.

— Meu Deus, ela parece um...

— Um anjo, eu sei — disse Nick, interrompendo Natalie e olhando para a

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moça com cara de bobo. — Não que você não seja bonita também, mas ela...

— Eu sei, Nick, fica tranquilo — Natalie ria da cara que o rapaz fazia.

— Oi, você deve ser a Natalie, certo? — disse a moça loira.

— Sim, muito prazer, e você é?

— O prazer é meu, pode me chamar de Serah. — Não tinha como não

gostar dela, sua expressão era tão serena e simpática, que Natalie abriu um

grande sorriso para ela.

— Você salvou a minha vida hoje, já estava imaginando o quanto de

trabalho teria para fazer. — comentou Natalie, percebendo que aquela era a

nova contratada.

— Na verdade, ela salvou a nossa vida. — disse Jonathan. — Ela foi um

anjo que caiu do céu.

— Imagina. Eu apenas apareci no lugar certo, e no momento certo. — Após

dizer isso, Serah percebeu que falou bobagem, ao dizer que a morte de Shanon

foi algo certo. — Me desculpe, eu não quis dizer que...

— Fique tranquila, Serah, você apareceu no momento em que o Avalon

mais precisava de uma pessoa. — Jonathan elogiava a garota de todas as

formas. — Ainda mais de uma pessoa que parece estar tão disposta.

— Digamos que agora você tem duas mulheres dispostas aqui — disse

Serah se referindo a Natalie.

— Três, olha eu aqui, alegre também — Nick abriu um grande sorriso.

— Eu disse mulheres — Serah começou a rir do rapaz, que ficou um pouco

sem graça.

Serah havia aparecido no bar na segunda-feira, quando Jonathan ainda

estava pensando se voltaria abrir o estabelecimento ou não. Quando a loira

entrou, o rapaz levou um susto, pois não sabia do que se tratava. Foi quando ela

perguntou se estavam precisando de garçonete.

Ela contou ter chegado à cidade havia poucos dias, e estava procurando um

emprego. Como vira a porta dos fundos aberta, decidiu tentar. Jonathan,

naquele momento, pareceu enxergar uma luz no fim do túnel. Perguntou para a

moça se ela tinha experiência, e, depois de ter confirmado quase tudo que ele

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perguntara, ela teve a resposta: estava contratada e começaria no dia seguinte.

E foi assim que Serah veio parar no Avalon. Claro que tudo aquilo não era

uma mera coincidência, Reik já tinha planejado tudo, até mesmo pelo fato de

Jonathan estar no bar em plena segunda.

Todos voltaram ao trabalho, para que o bar pudesse novamente receber

seus clientes. As meninas terminaram de arrumar as mesas; Nick arrumava as

bebidas e Jonathan estava no caixa.

— Natalie, você se importa de ficar nas mesas hoje? — perguntou

Jonathan. — Quero que você ajude Serah, já que ela precisa pegar o jeito da

coisa.

— Está falando comigo como se eu não tivesse nenhuma experiência com

isso – disse a loira, dando uma piscadinha para o chefe. — Natalie, pode deixar

que eu não vou te encher, apenas se eu realmente precisar de ajuda.

— Já estou adorando trabalhar com você — disse a garota, mas, ao mesmo

tempo, lembrando-se da ex-colega. — Eu gostava de trabalhar muito com a

Shanon também, ela vai fazer muita falta.

— Você pode ter certeza de que ela está em um lugar bem melhor que nós.

— Serah tinha grande propriedade para falar sobre isso, afinal, ela era um anjo e

conhecia o lugar para onde as pessoas ―boas‖ iam.

— Você tem razão. — Natalie então pensou que, talvez quando chegasse

em casa, poderia tentar comunicação com Shanon, já que a ex-colega de

trabalho estava em outro plano, assim como seu pai.

Assim que o bar começou a funcionar, os clientes foram chegando. Muitos

perguntavam sobre Shanon, e as meninas falavam que não sabiam de muita

coisa, apenas o que saía no jornal, para evitar muita conversa. Outros diziam

que iriam sentir falta dela, mas, assim que eram atendidos por Serah, logo se

esqueciam da antiga garçonete.

E assim, a noite continuou com muito trabalho. As meninas não paravam um

minuto, assim como o bar. Para a situação ficar ainda mais apertada, os clientes

daquela noite faziam pedidos que não saíam com frequência, o que deixava Big

Mike doido na cozinha. Quem estava feliz com isso tudo era Jonathan, pois

estava tirando o prejuízo do sábado.

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******

Katherine, Victor e Carsten estavam dentro da sala escura, a chamada sala

de reclusão. Os três meditavam, tentando esquecer-se dos erros que haviam

cometido nos últimos dias.

Victor e Carsten já estavam em meditação completa. O silêncio da sala era

tanto que nem a respiração dos meninos era ouvida, pois, ao entrar nesse tipo

de estado espiritual, todos os órgãos do corpo paravam de funcionar (algo

impossível para os humanos).

Eles apenas absorviam as energias negras vindas da Terra, criadas através

de todas as maldades cometidas pelo ser humano, as quais, nos tempos atuais,

eram cada vez mais frequentes.

A única que ainda não estava adormecida era Katherine. Assim que

percebeu que os dois rapazes não podiam mais ouvi-la, ela se levantou e

lentamente foi caminhando em direção à saída. A ruiva conseguiu o que queria,

estava sozinha na Terra, e podia fazer o que quisesse sem o consentimento dos

companheiros. Como ninguém estava próximo a ela, decidiu partir. Assim, abriu

o portal acompanhada de Larxen.

Quando a ruiva chegou à Terra, naquela fazenda abandonada onde se

encontrou com Carsten e Victor por algumas vezes, lá esperou que a escuridão

da noite encobrisse o céu. Enquanto isso, conversou com o animal.

— Meu querido Larxen, você realmente acha que eu ficaria reclusa naquele

lugar, e sofrendo o que eu sofri da outra vez? — A ruiva se referia à vez em que

quase morreu pela falta de energia no corpo.

A grande pantera negra esfregava seu corpo nas pernas da ruiva, como se

estivesse contente com a presença dela naquele local. Larxen era um demônio

em forma de animal, e assim como todos os outros, gostava da maldade.

— Eu sei, também estou contente que iremos caçar lá fora. Assim, podemos

usufruir da energia deles só para nós.

Assim como Katherine, Larxen também precisava de energia para

sobreviver, mas a diferença era que a fera podia absorver essa energia dos

humanos dos quais se alimentava, que seria o suficiente. A ruiva precisava

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retirar essa energia dos anjos para sua sobrevivência, já que os humanos não

saciavam a sua fome.

— Preciso aproveitar para resolver algumas coisas esta noite, já que estou

com você, e você não fala.

Larxen deu um grande rugido. Se algum humano pudesse ouvi-lo,

certamente estaria fugindo nesse momento. Pelo que pareceu, o animal não

tinha gostado do comentário de Kath.

— Fique calmo, eu só estava brincando. Afinal, não farei nada de tão errado

assim hoje, pelo menos eu acho que não. — A ruiva deu um sorriso para o

animal. — Melhor seguirmos nosso caminho, pois temos muitas coisas a fazer.

Para começar, que tal um lanche?

******

Dentro do bar, os atendimentos não paravam. Para uma terça-feira, aquilo

não era nem um pouco comum e as meninas já estavam cansadas. A morte de

Shanon atraia a curiosidade de muitos para o estabelecimento.

— Natalie, a que hora podemos descansar? Eu estou absolutamente

acabada — comentou Serah. — Este lugar é sempre assim?

— Não. Hoje é uma noite excepcional, nunca tivemos uma terça assim

desde que comecei. — Natalie pegou alguns copos de uma mesa para levar ao

bar. — Se bem que faz pouco tempo que eu trabalho aqui.

— Ainda bem, porque se todas as noites for assim, amanhã eu peço minha

demissão — disse Serah brincando.

— Não fale isso nem de brincadeira, por favor. — Natalie não conseguiria

nem pensar em trabalhar sozinha em uma noite daquelas. — Aproveite seus

vinte minutos de descanso agora. Eu dou conta aqui; qualquer coisa, o Jonathan

me ajuda.

— Posso mesmo? – perguntou Serah sem acreditar que iria descansar. —

Muito obrigada, você é um anjo.

E assim, Serah decidiu tomar um ar e sair um pouco daquela loucura. Assim

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que chegou lá fora, começou a conversar sozinha:

— Como eu queria ter minhas asas agora e sumir daqui.

— Pelo visto você está gostando muito do trabalho novo, Serah. — Reik de

repente apareceu atrás dela.

— Reik, que bom que você está aqui. Eu quero ir embora — disse a menina,

desesperadamente. — Eu acho que nunca trabalhei tanto assim, nem quando

eu...

— Eu sei — interrompeu Reik. — Mas é necessário, e você sabe disso.

— Alguma informação extra que eu precise saber enquanto estive aqui? —

perguntou ela.

— Nenhum sinal do garoto, apenas da ruiva, e, ao que tudo indica, ela é a

mais perigosa deles. Portanto, tome cuidado. — Reik se referia a Katherine. — A

diferença dela e dos outros é que ela é muito experta. Não é fácil achá-la, e não

queremos começar uma guerra agora.

— Ela e todos os outros que estão espalhados por aí — disse Serah,

referindo-se aos outros demônios.

— Para isso temos todos os anjos que estão pela cidade — Reik estava

impaciente com alguma coisa. — Um dos anjos foi atacado por um deles ontem.

— E agora eles querem caçá-lo? — perguntou Serah.

— Exatamente.

— Pois deixem que façam. Dessa forma, todos os nossos problemas

acabam, e Natalie ficará salva dele. — Serah achava que o problema se resumia

em acabar com a vida de Carsten.

— Se matar o garoto fosse a solução, eu já teria feito isso há muito tempo.

As coisas mudaram — disse Reik provavelmente falando de uma nova missão

recebida.

Serah, com expressão de dúvida, cada vez entendia menos o que se

passava na cabeça de Reik.

— Serah, nem mesmo eu sei o porquê. — Reik colocou uma de suas mãos

no ombro da garota. — A única coisa que eu sei é que ele não pode morrer, pelo

menos, não agora.

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— E por que devemos afastá-lo da menina? — Já que eles não podiam

matá-lo, ela queria entender qual a relação dos dois.

— Devemos fazer isso por enquanto. Ela não está preparada ainda.

— Você diz em relação aos seus poderes? — perguntou Serah.

O médico sorriu e decidiu regressar de onde tinha vindo.

— A única coisa que eu te peço é que continue protegendo a Natalie. Se

precisar de qualquer coisa envie um sinal rápido e vários anjos estarão aqui, fora

os que estão disfarçados. — Em um rápido movimento, Reik desapareceu da

frente de Serah, que decidiu voltar ao trabalho, já que seus vinte minutos tinham

se esgotado.

Assim que voltou para o bar, era hora de Natalie descansar. Mas, ao

contrário dos outros dias, a garota dessa vez decidiu ir para frente do Avalon

respirar um pouco de ar. Assim que passou pelos seguranças, viu que a fila para

entrar estava grande, e que teria muito trabalho pela frente. Ela passou pelos

carros estacionados e foi para a calçada, perto da rua.

O barulho da música e das pessoas naquele local era mais baixo, onde ela

podia relaxar um pouco. Mas todas as vezes em que tentava relaxar, era

Carsten quem vinha visitar sua cabeça. De repente, o celular da garota começou

a vibrar. Era uma mensagem da Kelly:

JÁ ESTÁ SABENDO DA FESTA DE QUINTA-FEIRA NO AVALON? O DALTON

FECHOU O BAR PARA A CHEGADA DO IRMÃO DELE QUE ESTAVA MORANDO

FORA. ESTAREMOS AÍ TODOS JUNTOS. BEIJINHOS.

— Festa? — Natalie não sabia de festa nenhuma. Talvez Jonathan

tivesse se esquecido de avisar sobre a festa. Mas, de qualquer forma,

para ela não mudaria muita coisa, pois estaria trabalhando, apenas pelo

fato dela não poder festar com seus amigos.

Quando ela voltou de seu descanso, foi logo perguntando para Nick

a respeito da festa, mas o rapaz não sabia de nada também. Depois que

ele conversou com Jonathan, chamou a garota e disse:

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— Ele vai conversar com todos nós depois que o bar fechar.

— Maravilha! — Natalie sabia que a noite ia ser mais longa do que

ela pensava. — E lá vamos nós para a terça-feira mais longa da minha

vida.

— Da nossa — disse Serah, que ouviu a frase de Natalie.

Os clientes não paravam de chegar à medida que outros iam saindo

do bar. Natalie e Serah pareciam tão cansadas, que precisariam de mais

uns três intervalos.

E foi quase às onze da noite que a concentração de Natalie foi

tomada por uma confusão na porta.

— Eu vou entrar sim. Quem vocês pensam que são para me

impedir? — dizia uma pessoa do lado de fora. — Minha irmã trabalha aí

dentro, e eu posso entrar.

Quando Natalie escutou isso, imediatamente olhou para a porta, e,

para sua surpresa, viu Gabriel tentando entrar mesmo sem a permissão

dos seguranças. Mais do que depressa, para evitar mais problemas, ela

pediu para que Serah aguentasse um pouco, e foi até a porta. Para a

sorte da garota, Jonathan estava no banheiro e não viu aquilo.

— O que você pensa que está fazendo? — Natalie pediu licença

para os seguranças e foi para o lado de fora. — A mamãe sabe que você

está aqui?

— Tá vendo? Eu não disse que minha irmãzinha ia resolver isso? —

Gabriel olhou para os amigos dele que também estavam do lado de fora.

— Vamos, fala para esses brutamontes que nós podemos entrar.

— Gabriel, eu te fiz uma pergunta: a mamãe sabe que você está

aqui? — Natalie parecia muito irritada com tudo aquilo.

Gabriel chegou mais perto de Natalie e a abraçou. Queria falar algo

para a irmã mais de perto. Natalie sentiu um cheiro de álcool vindo do

irmão.

— Você está bêbado. — Ela se afastou. — Onde é que vocês

estavam? — perguntou ela olhando para todos os quatro meninos.

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— Fica tranquila. Já que você não vai nos deixar entrar, vamos para

outro canto. — Gabriel estava dando as costas para a irmã.

— Gabriel, pare agora onde você está! — Os quatro meninos

olharam para Natalie. — Que tipo de pessoas são vocês, e que idade

vocês pensam que têm para sair por aí essa hora?

— Estamos bem, irmã do Gabriel — disse um dos meninos.

— Escuta aqui, vou chamar um táxi para todos, e vocês vão para

casa imediatamente.

— Não precisa, eu vim dirigindo — disse outro menino que não

aparecia ter mais que dezesseis anos.

— Dirigindo? Vocês só podem estar malucos. — Natalie pegou o

celular e ligou para um taxista conhecido, pedindo para ele viesse o mais

rápido possível para o bar. — Se vocês vão, eu não sei, mas você vai,

Gabriel.

— Eu não vou a lugar nenhum — disse Gabriel, que parecia irritado.

— Eu não estou perguntando se você quer, estou afirmando que

você vai. Ou você prefere que eu chame a polícia, e você e seus amigos

terão de esperar na delegacia, até que os seus pais vão buscá-los,

principalmente a mamãe?

— Eu não posso chegar em casa desse jeito — disse o garoto,

falando sobre a bebida que ele tinha ingerido. — O que a mamãe vai

pensar?

— Conversa o mínimo com ela, fala que você está com sono e vai

pro quarto — disse Natalie, que, mesmo com raiva, tentava ajudar o

irmão.

— Melhor irmos para casa. Que vacilo, Gabriel — disseram os

meninos.

Gabriel ficou envergonhado, e assim que o táxi chegou, Natalie deu o

dinheiro para o rapaz e o endereço para levar o irmão para casa. Logo

depois ela voltou para o bar, para continuar seu trabalho.

O taxista seguiu em direção à casa da família Zeniek. Quando foi

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chegando, Gabriel disse:

— Você pode me deixar a uma quadra de casa, que eu não quero

que minha mãe veja que eu cheguei de táxi.

— Mas sua irmã pediu para que eu te deixasse em casa — disse o

taxista.

— Não me importa o que minha irmã disse, eu quero que você pare a

uma quadra de casa. — Gabriel estava agitado e muito nervoso.

Por se tratar de apenas uma quadra, o motorista não viu nenhum

problema. Mas deixou o garoto e decidiu ficar no carro esperando o

menino entrar na casa.

Assim que Gabriel começou a andar, foi surpreendido por Katherine,

que o estava seguindo desde o bar. Apenas o garoto conseguia enxergar

a ruiva.

— Noite difícil? — perguntou Katherine.

— Você não faz ideia. Odeio ter essa idade e ser tratado como irmão

menor irresponsável.

— Talvez sua irmã não esteja te dando o valor que você merece, ou

mesmo sua mãe. — Katherine, mais uma vez, estava fazendo aquilo que

não devia. Mas como dessa vez tinha certeza de que Carsten e Victor

não iram atrapalhar, não se importou. — Você deveria procurar pela sua

liberdade, ser o que você gostaria de ser.

— Liberdade com quinze anos? Como?

— Eu posso dar tudo que você quiser, mas você também precisa me

ajudar — disse Katherine.

— Escuta, quem é você? — O rapaz, mesmo alcoolizado, ainda

conseguia raciocinar.

— Alguém que sabe muito mais sobre você do que imagina. Alguém

que sabe que sua família te engana há muito tempo.

— Engana como?

Katherine chegou até o ouvido do rapaz, como se fosse contar um

segredo, colocou uma de suas mãos no ombro dele e disse algumas

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coisas.

O taxista, vendo que o rapaz falava sozinho, ficou preocupado e

decidiu ir de encontro a ele.

— Isso é mentira, não é? — falava Gabriel, com os olhos cheios de

lágrimas.

— Não, Gabriel, é a mais pura verdade. Agora você consegue

entender todas as coisas, não é?

Ao observar o taxista caminhando em direção a eles, Katherine partiu

pela rua lentamente com um sorriso maléfico. Não havia necessidade de

correr. Deixou que o garoto refletisse sobre o que ela havia dito a ele.

— Melhor você entrar, antes que sua querida irmã ligue e pergunte

sobre você.

Gabriel estava com os olhos cheios de lágrimas correu para casa e o

taxista, que estava do lado de fora, ficou sem entender nada.

— Esses jovens de hoje em dia estão cada vez ficando mais

malucos. Drogas, bebidas. Aonde esse mundo vai parar? — perguntava-

se o taxista.

Quando Gabriel entrou em casa, tentou passar direto por Dorah, que

estava na sala, mas assim que ela o viu, logo foi interrogando o filho:

— Filho, onde você estava? Estava preocupada com você.

— Estava em um churrasco na casa de uns amigos. — o garoto

tentava não olhar para a mãe.

— Poderia ter avisado, né? — disse ela toda preocupada.

— Pois é, mãe, poderia. — Gabriel foi direto para o quarto, onde

fechou a porta e deitou na sua cama.

Ele ficou pensativo, talvez fossem as palavras de Katherine que

tinham afetado a cabeça. Mas, pelo estado em que estava, talvez no

outro dia se esquecesse de tudo.

Do lado de fora da casa, ainda andando pela rua, Katherine

encontrou Larxen.

— Pronto, garoto. Um já foi, agora falta mais uma – disse ela,

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provavelmente se referindo ao que havia dito ao rapaz. — Já que eu não

posso matar humanos, vou destruir a vida dela de outra forma, talvez

mais lenta e dolorosa. — Larxen continuou caminhando ao lado dela. —

O que quer que ela esteja fazendo com o Carsten, vai pagar com muito

sofrimento. — E assim, rindo, a ruiva continuou andando pela noite.

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Capítulo 19

A FESTA que iria acontecer naquela noite no bar era para

comemorar a volta do irmão de Dalton. Natalie não se lembrava muito do

rosto do rapaz, sabia que ele fazia muito sucesso entre as meninas, na

época em que era mais jovem. Hoje, pelos cálculos da garota, como os

dois irmãos tinham oito anos de diferença, ele estaria com trinta anos, já

que Dalton tinha vinte e dois.

Jonathan já havia conversado com todos os funcionários do bar,

naquela terça-feira, e a disposição do local seria praticamente igual à dos

dias de show, com poucas mesas espalhadas pelo local. A decoração

ficaria a cargo de Lily e suas amigas, o que fez Natalie se lembrar de que

ela estaria lá e que, com certeza, iria aprontar alguma coisa.

A quarta-feira passou. E a manhã de quinta estava linda, com um sol

que fez todos os moradores de Polsher colocarem suas roupas de verão.

Naquele dia, Natalie havia acordado mais cedo do que o normal,

antes que o despertador tocasse. Quando viu o horário, tentou virar para

o outro lado da cama a fim de dormir novamente, mas por diversas vezes

se mexeu e não conseguiu. Assim, teve de se levantar de uma vez.

Gabriel, que tinha ido para a escola, deixou um recado em cima da

mesa, avisando que só voltaria à noite. Depois da noite de terça, esses

tipos de bilhete começaram a preocupar a garota, pois ela não sabia

dizer se o que aconteceu naquele dia fora algo repentino ou era algo

frequente.

Assim que foi até a geladeira, lá estava outro bilhete pregado, pedia

para Natalie abrir a porta da casa, era a letra de Dorah, fazendo-a

perceber que se tratava de algum tipo de surpresa. Assim ela o fez e

tomou um grande susto: havia uma moto estacionada na frente. A garota

se aproximou, olhou e percebeu que se tratava de uma moto nova.

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— Será que? — Natalie chegou a pensar que sua mãe quisera

substituir o carro pela moto, mas não fazia sentido algum.

Sem entender, ela pensou em ligar para a mãe, mas sabia que

aquele era o horário de reunião na empresa. Ela voltou para a cozinha,

decidiu tomar o seu café da manhã, e quando abriu a geladeira para

pegar um iogurte. Lá estava outro bilhete, que dizia:

GOSTOU DO PRESENTE, MINHA FILHA? A CHAVE ESTÁ NO APARADOR. ESPERO

QUE APROVEITE. UM BEIJO DA SUA MÃE QUE TE AMA.

— Presente? Meu?

Natalie, então, pegou a chave e foi correndo ver a moto. Natalie ficou

tão contente, mas, ao mesmo tempo, não queria que sua mãe se

preocupasse com aquilo. Desde que tirou sua licença para dirigir, ela

nunca pensou em comprar algum veículo, pois, até então, nem

trabalhava. E nem mesmo depois de começar no bar a garota havia

imaginado. Não precisava mais pedir carona para os seus amigos, o que

a fazia se sentir bem incomodada.

Natalie correu para pegar o telefone e ligar para Dorah, tinha até se

esquecido da reunião. Assim que a mãe atendeu, ela não sabia como

agradecê-la pelo presente. Lógico, como todas as mães, Dorah pediu

para que a filha tomasse muito cuidado, lembrou-a de que o capacete

estava no banco da moto e rogou para que Natalie nunca deixasse de

usá-lo.

Natalie desligou o telefone e logo contou para Kelly a novidade. A

amiga ficou muito contente, e disse que não via a hora de encontrá-la no

Avalon. As duas conversaram mais um pouco, e Natalie decidiu sair para

dar uma voltinha com a sua moto.

Lembrando-se das recomendações de sua mãe, ela colocou o

capacete, finalmente deu a partida e saiu para apreciar um pouco seu

bairro de uma maneira que ela ainda não tinha feito. Sobre aquela moto,

no calor do sol e com o vento, que batia contra o seu peito, Natalie sentiu

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uma sensação de liberdade como jamais havia sentido. Agora ela guiava

seu próprio caminho. E Natalie guiou durante um tempo até se acostumar

com o veículo. Assim que voltou para casa, almoçou sozinha e resolveu

tirar um cochilo.

No meio da tarde, Natalie ouviu a campainha tocar, sem fazer ideia

de quem poderia ser. Quando abriu a porta, teve uma surpresa: era

Serah.

— Desculpe incomodar, Natalie, mas o Nick me deu seu endereço e,

como é no bairro em que eu estou procurando uma casa para alugar,

resolvi dar uma passadinha aqui. Te incomodo?

— Não, eu só estava...

— Imaginei que estivesse dormindo — interrompeu Serah. — Mas,

se você quiser, posso esperar aqui fora.

— Não, pode entrar — disse Natalie, abrindo a porta.

E não demorou muito para que Serah, assim que entrou na casa,

olhasse todos os cantos, como se estivesse procurando alguma

anormalidade. Ela estava ali justamente porque havia sido informada de

que Katherine estava naquela região na noite passada, então resolveu

ver se estava tudo bem.

— Está tudo bem como você? — perguntou Serah.

— Está sim. Por quê? — Natalie parecia desconfiada daquilo. — Veio

fazer o que aqui, mesmo?

— Como eu estava te falando, eu estava procurando uma casa, e

como Nick passou seu endereço, resolvi dar uma passadinha aqui.

Talvez possamos ir juntas para o trabalho.

— Então, eu ganhei uma moto, e estava pensando em ir para o

trabalho com ela hoje — disse ela, tentando não ser indelicada, já que só

tinha um capacete e não poderia dar carona.

— Fique tranquila, eu também estou com a minha moto ali na frente.

— Serah não estava mentindo, ela realmente tinha chegado à casa de

Natalie com sua moto.

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— Você não estava morando em uma casa já? — perguntou Natalie.

— Na verdade, eu disse isso ao Jonathan, para que ele não

pensasse que eu só estava de passagem, mas estou em um hotel —

explicou Serah.

— Entendi.

Como faltava pouco tempo para que as duas precisassem ir ao

trabalho, ela pediu para que Serah esperasse na sala, vendo televisão.

Ofereceu um suco, mas a loira não aceitou, apenas ficou esperando a

garota se arrumar para ambas seguirem para o Avalon.

******

A noite havia apenas começando, e os convidados já chegavam.

Tudo estava planejado da seguinte forma: Nick e as meninas ficariam no

bar, cada convidado buscaria sua bebida lá, e, caso alguém solicitasse

algum tipo de comida, uma das meninas levava nas mesas. Nesses dias,

Jonathan reduzia seu cardápio de comida, para porções que eram mais

fáceis para preparar.

Grande parte dos convidados era de amigos antigos do irmão de

Dalton, então, Natalie praticamente não conhecia ninguém. Raramente

entrava uma pessoa conhecida da época de escola, e que Natalie

apenas cumprimentava de longe, pois não tinha muito contato.

Para algumas meninas, ver os antigos colegas de escola e estar

trabalhando em um bar, poderia ser uma vergonha, mas para Natalie

não. Ela gostava muito daquilo, das pessoas que estavam à sua volta.

Jonathan não precisou mudar a música do bar. O irmão de Dalton

gostava muito de rock, e como Lily havia ido à tarde resolver os últimos

detalhes da festa, disse que o som não precisava ser alterado. E foi

quando tocava uma das músicas de que Natalie gostava que Lily entrou.

— Eu gostava tanto dessa musica — disse Natalie para Serah.

— Como assim gostava?

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A loira olhou para ela sem entender nada, mas sua atenção foi

jogada para a porta. Lily estava entrando e, definitivamente, apesar da

sua cara antipática, ela estava linda. Seus longos cabelos loiros estavam

soltos, e não estavam lisos, mas ondulados; a maquiagem estava

perfeita, o que ressaltava a cor dos olhos da garota. Mas o que chamou

atenção foi a roupa: um vestido preto, bem curto, que se encaixava

perfeitamente no corpo dela, sapatos de salto bem fino, e algumas joias,

deixando-a linda.

Quando ela percebeu que Natalie estava olhando, deu uma voltinha,

como se quisesse mostrar alguma coisa para as amigas. Natalie pôde ver

que a parte de trás do vestido era toda aberta, deixando à mostra as

costas da garota.

Era difícil de admitir, mas Lily estava deslumbrante. O que Natalie

não sabia é se aquilo ia terminar com a chegada de Kelly.

— Que menina linda — comentou Serah.

— Tira esse uniforme e coloca um vestido daqueles para ver se você

não fica mais linda que ela. — Natalie estava comparando as duas, pois

Serah tinha um corpo lindo e também era loira.

— Isso não tenha dúvida, você também ficaria perfeita.

— O meu problema é que eu nunca usaria um vestido daquele.

— Eu quero uma Pink Dream — Lily estava na frente de Nick,

pedindo uma das bebidas mais caras do bar. Era uma mistura de vodcas,

que a deixava com a cor avermelhada, quase um rosa forte.

— Um minuto. — Nick passou o cartão da moça, preparou a bebida e

entregou. — Aqui está.

— Muito obrigada. Lindo e simpático como sempre. — Lily se virou e

foi curtir com suas amigas a festa.

— Você entende agora esse amor que eu sinto por ela? — perguntou

Natalie.

Serah concordou com a cabeça, e novamente sua atenção voltou-se

para a porta, quando outra loira entrou.

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— Hoje vai ser a guerra das loiras — disse Serah.

— Pode ter certeza de que vai — concordou Natalie.

Era Kelly quem estava na porta. Ela usava um vestido vermelho,

curto igual ao de Lily, mas a diferença era que o decote dela estava na

frente, descia quase próximo ao abdômen.

Atrás dela estavam Dalton e Paul, que a acompanhavam. Natalie

tentou ver se o irmão de Dalton estava ali também, mas o bar já estava

cheio e ela não conseguiu ver nada. Natalie foi surpreendida por Kelly,

que chegou dizendo:

— Procurando alguma coisa, monstrinha. — Kelly suspirou. — Você

não tem ideia de como ele é lindo.

— O irmão do seu namorado? — perguntou Natalie, reprovando a

atitude da sua amiga.

— Apenas o achei bonito, não me olha com essa cara. Afinal, eu

amo o Dalton.

— Essa é a Serah, ela é nova aqui — disse Natalie a apresentando

para Kelly.

— Muito prazer, sou a melhor amiga da Natalie. — Não tinha como

mudar o jeito de Kelly nesses momentos. — Onde será que ele está?

— Se você duas estão falando daquele loiro que acabou de entrar,

com toda certeza eu tenho de concordar, ele é lindo — disse Serah.

Lá estava ele. Camiseta branca, calça jeans preta, cabelo loiro-

escuro, quase raspado, os olhos azuis herdados da família e um corpo

que chamava a atenção de todas as garotas. Apesar de ter a idade que

tinha, ele aparentava ter, no máximo, uns vinte e cinco anos.

Assim que o rapaz entrou, ele acenou para Nick e foi cumprimentar

as pessoas que havia muito tempo ele não via.

— Você o conhece Nick? — perguntou Natalie.

— Sim, estudamos juntos na escola — respondeu o rapaz, que logo

foi atender algumas pessoas.

— Minha cunhadinha já está bebendo. — O irmão de Dalton chegou

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de repente, assuntando as meninas.

— Ainda não, estou apenas aqui conversando com a minha amiga —

disse Kelly apontando para Natalie.

— Muito prazer. Kyle. — O rapaz pegou a mão de Natalie e deu um

beijo.

E claro que, com a timidez da garota, imediatamente ela ficou

vermelha, mas se apresentou para ele também.

— E o que você está fazendo do lado de dentro do bar? — perguntou

o rapaz.

— Ela trabalha aqui, Kyle — disse Kelly, sem deixar que Natalie

respondesse.

— Hoje é dia de festa, você tem de festar com a gente, já que é

amiga da minha cunhadinha.

— Eu não posso, Kyle, estou trabalhando — disse Natalie.

— Bem, eu estou pagando esta festa e acho que tenho o direito de

escolher quem trabalha ou não, estou certo? Quem é seu chefe? —

perguntou o rapaz.

— Aquele que está no caixa é o chefe dela — disse Serah, tentando

ajudar a garota.

Kyle seguiu até o caixa e trocou meias palavras com Jonathan. E,

mais do que depressa, Jonathan fez um sinal com a mão para que

Natalie fosse para a festa.

— Tem certeza de que eu posso ir? — disse ela, perguntando para

Serah e Nick.

— Claro, aqui está tranquilo — respondeu Nick.

— Vai se divertir garota — disse Serah com uma piscadinha.

Natalie correu para os fundos do bar, onde deixou suas coisas. Foi

até a frente do espelho, e viu que estava de uniforme, lembrou-se de que

tinha uma blusa dentro do armário. Soltou o cabelo e trocou de blusa, e,

mais uma vez, não precisou muito para que ela ficasse linda.

Assim que Natalie voltou, Kyle ficou deslumbrado com a beleza da

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garota. Poucos detalhes diferentes e ela estava linda. O rapaz deu a mão

para a garota e a puxou para fora do bar, levando-a para junto dos

outros.

Quem não gostou de ver aquela cena foi Lily. Ela percebeu que o

irmão dava mais atenção para Natalie do que para ela e suas amigas, e

então resolveu puxá-lo para a rodinha delas. Não demorou muito para

que ele voltasse até onde Natalie estava e deixasse a irmã irritada

novamente, vendo aquela cena.

Lily teve uma crise de nervos, e resolveu sair do bar para tomar um

ar. Uma de suas amigas quis acompanhá-la, ela não quis que ninguém

fosse junto.

Assim que chegou do lado de fora, encostou-se a um carro com o

copo de bebida nas mãos, o qual, se ela tivesse um pouco mais de força,

poderia quebrar com a raiva que estava sentindo. Esse sentimento que

ela alimentava por Natalie parecia que nunca ia acabar. Ela decidiu tomar

toda a bebida de uma só vez.

— Tenso, não é? — Lily foi surpreendida por Katherine, que estava

bem do lado dela no carro, segurando uma capsula nas mãos.

— Quem é você? — perguntou a garota assustada, já que ninguém

estava do lado dela havia poucos segundos.

— Apenas uma amiga que percebeu sua irritação. Resolvi ajudar.

— Mas eu não preciso da ajuda de nin...

Katherine interrompeu a fala de Lily, apenas colocando a mão no seu

ombro. Naquele momento, a raiva da garota parecia ter triplicado, e Lily

se levantou seguindo direto para o bar.

— Dessa vez foi mais fácil do que eu pensei. Como esses humanos

são patéticos. — A ruiva desencostou do carro e seguiu andando pela

rua. — Tenho mais coisas para fazer. — Agora o show é deles.

Lily voltou ao Avalon e dirigiu-se para Natalie, a fim de tirar

satisfação. Queria saber por que ela estava ali.

— Você não faz parte da família — gritou Lily empurrando a garota.

— Você sempre gosta de estragar tudo.

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— Ei, ei. O que está acontecendo aqui, Lily? — perguntou Kyle,

percebendo a exaltação da irmã.

— E você fica fora disso.

— Escuta aqui, Lily, a Natalie não é obrigada a ficar ouvindo essas

coisas de você – disse Kelly defendendo a amiga. — Ainda mais porque

ela está no local de trabalho dela.

Dalton também tentou conter a irmã, mas foi empurrado, com uma

força que nem mesmo ele sabia que a irmã tinha.

— Se ela está no local de trabalho dela, ela que vá para trás do

balcão, que é de onde ela não deveria ter saído a noite toda. — Lily foi

em direção de Natalie. — Ela é uma empregada, tem que estar

trabalhando. Quem é o dono disso aqui? Quem deixou essa vagabunda

sair de trás do balcão.

Nessa hora, a festa praticamente já tinha acabado. Ninguém

conseguia mais prestar atenção em nada, a não ser na discussão.

Serah, que estava atrás do balcão, sabia que aquilo não era uma

atitude normal. Ela percebeu que Lily havia sido influenciada, mas não

podia fazer nada a respeito.

Kyle segurou a irmã pelo braço, tentando conter a raiva dela. Ele

chegou ao ouvido da irmã e disse alguma coisa, que pareceu acalmá-la,

fazendo-a começar a chorar.

— Dalton, leve-a para casa — disse Kyle. — E você, está bem,

Natalie?

— Sim, estou, não se preocupe — disse a garota envergonhada.

— Muito bem, pessoal, acho que a noite acabou. Peço desculpa a

todos pelo que minha irmã fez, mas não tenho mais clima para festar. —

Kyle encerrou, assim, a festa. — Kelly, você quer uma carona até em

casa?

— Não, acho que vou para minha casa, o clima na sua não vai estar

legal.

— E você, Natalie, quer uma carona para casa? — perguntou Kyle.

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— Eu preciso terminar de arrumar as coisas por aqui. De qualquer

forma, muito obrigada.

— Peço inúmeras desculpas pelo ocorrido. — Kyle estava

envergonhado.

Kelly ficou mais um tempo no bar com a amiga, viu que a hora já

havia passado e que, naquele momento, Kenedy provavelmente já

estaria dormindo. Então chamou um táxi para ir embora. As portas do bar

se fecharam e todos começaram a organizar a bagunça.

— Ela é sempre assim? — perguntou Jonathan.

— Desde que me conheço por gente — respondeu Natalie. — Lily

tem muita raiva de mim, achava que era coisa de criança, mas

definitivamente acho que ela ainda não cresceu.

— Bem estranha mesmo essa atitude, muito imatura — disse Serah.

— Fala isso para ela — respondeu Natalie.

— Bom, uma coisa é certa, a festa acabou e nós vamos embora mais

cedo hoje. — Nick parecia todo animado. — Alguém vai querer carona?

— disse, esperando que Serah respondesse que sim.

— Eu estou de moto — respondeu Natalie, agradecendo a carona.

— Eu também — disse Serah, deixando Nick desolado.

— Bem, já que estão todos motorizados, eu já vou. Amanhã é dia de

banda e não precisamos arrumar as mesas. Sendo assim, boa noite a

todos. — E o rapaz saiu.

— Ele até que é uma graça — comentou Serah a respeito de Nick.

Natalie deu um sorriso ao olhar a cara que Serah havia feito.

— Prontas, meninas? — perguntou Jonathan.

— Até amanhã, chefe — disseram as duas antes de partir.

Quando Natalie saiu, assim que chegou à sua moto e pegou o

capacete, viu que Paul a esperava do lado de fora.

— Paul, o que você faz aqui? — perguntou a garota.

— Nada, apenas esperei por você para saber se estava bem.

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— Não precisava fazer isso. Estou bem, sim. — Natalie chegou mais

perto do rapaz. — Eu já estou me acostumando com essas coisas da

Lily.

— Eu fiquei preocupado, porque parece que tudo está caindo sobre

você, ultimamente.

— Agradeço muito a sua preocupação. Vem aqui. — Natalie puxou o

rapaz e deu um grande abraço nele. — Te agradeço muito por ser meu

amigo.

— Imagina, não é nenhum esforço para mim.

— Bom, eu vou indo. Qualquer hora combinamos alguma coisa —

disse Natalie, que já estava com o capacete nas mãos. — Boa noite.

— Boa noite — respondeu o rapaz, que não sabia mais o que fazer

para tentar algo com ela.

Natalie pegou sua moto e saiu pela rua. Paul, por sua vez, pegou seu

carro e voltou para casa.

A essa altura, Serah já estava a caminho do hotel em que estava.

Quando parou a sua moto no meio do nada, onde não havia ninguém por

ali, ela desceu, tirou seu capacete e disse:

— Aquilo que aconteceu hoje não foi um mero ataque de raiva, estou

certa?

Reik apareceu do seu lado. Seu olhar estava sereno, como se

estivesse bem tranquilo, e nem um pouco preocupado com a situação.

— Ela se aproveitou da garota estar com raiva e decidiu fazer alguma

coisa, sem medir as consequências, o que resultou em nada.

Serah riu do comentário do médico.

— Você, pelo visto, está se adaptando bem à vida humana —

comentou Reik. — Até está achando os humanos bonitos.

— Preferia estar voando por aí, cumprindo minhas missões — disse

Serah.

— Falta pouco, eles estão quietos demais. Devem estar planejando

alguma coisa. — Reik se referia aos outros demônios. — Vamos esperar,

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apenas protegendo a garota.

— Ela está protegida. Fique tranquilo. — Serah voltou para sua moto

e antes de colocar o capacete perguntou. — Ela é pelo menos humana?

— Tente não ser tão curiosa. Existem coisas que nem mesmo eu sei,

apenas cumpro o que é ordenado.

Reik saiu andando, e Serah, com medo de perguntar mais alguma

coisa colocou seu capacete e continuou o seu caminho para o hotel.

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Capítulo 20

COMPRAS. Era o que Natalie pretendia fazer naquela quarta-feira,

depois de ter recebido seu primeiro salário, que não era muito, por ser

proporcional aos dias em que ela trabalhou no bar. Para quem nunca

havia trabalhado, já era alguma coisa, e ela finalmente estava contente

por adquirir suas coisas com o suor do seu trabalho.

Naquele dia, Dorah havia ligado para avisar que iria almoçar em

casa, então Natalie acordou mais cedo e esperou a mãe, assistindo à

televisão. Neste decorrer, Gabriel chegou e nem cumprimentou a irmã, foi

direto para o quarto. Depois daquele dia no bar, ele estava muito

estranho. Natalie não tinha conversado com o irmão desde então, apenas

via bilhetes que ele deixava avisando que ia de um lado para o outro.

Assim que Dorah chegou para o almoço, ela chamou Gabriel, que

demorou um pouco para descer. Na mesa, mãe e filha conversavam sem

parar, e o garoto não emitia nenhum som.

— Você está bravo, Gabriel? — perguntou Natalie.

— Não me enche — respondeu o garoto, que continuou comendo

sem dizer mais nada.

O clima da mesa não era dos mais felizes, e Dorah tentou de todas

as formas trazer ânimo àquela refeição.

— No fim da semana que vem, poderemos ver a casa nova. Acho

que os reparos já vão ficar prontos.

— Nossa, mãe, isso é ótimo. Estou ansiosa para saber como é —

disse Natalie toda animada.

— Você parece mais adolescente que eu — provocou Gabriel.

— Nossa, Gabriel, que mau humor é esse? — reclamou a irmã.

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— Eu já disse para não me encher. — Gabriel se levantou da mesa e

foi para o quarto, batendo a porta.

— Que falta de educação é essa, eu vou lá agora mesmo. — Assim

que Dorah se levantou, Natalie segurou a mão da mãe, e pediu para que

ela se sentasse.

— O que foi, minha filha? — perguntou Dorah.

— Precisamos conversar sobre o Gabriel.

Natalie contou sobre a noite do bar, e sobre ela achar que Gabriel

estava se envolvendo com coisas perigosas.

— É tudo culpa minha. Eu não consigo educar meu filho ficando o dia

todo fora de casa.

— Mãe, não é culpa sua. Ele não é nenhuma criança, tem de saber o

que é certo e errado. — Natalie segurou a mão da mãe. — E de uma

coisa eu estou certa, você não fez nada de errado.

— Você acha que eu devo conversar com ele? — pediu Dorah um

conselho para a filha.

— Acho que agora não é o momento, mãe. Ele não está a fim de

nada — disse Natalie. — Mas você poderia dar algumas tarefas para ele

fazer, a fim de ocupar mais o tempo dele.

— Ótima ideia, milha filha.

Assim que terminaram o almoço, Dorah voltou ao trabalho e Natalie

ficou com a louça. Terminando de arrumar tudo, ela ligou para Kelly, para

saber onde encontrar a amiga. As duas marcaram de se encontrar na

frente do shopping, mas dessa vez o grande Central Park não seria o

local das compras.

Assim que Kelly chegou, as duas caminharam pelo centro. Havia

muitas lojas fora do shopping e que, muitas vezes, eram mais baratas e

com opções mais bonitas.

— Você tem ideia do tipo de roupa que quer? — perguntou Kelly.

— Queria algumas roupas para sair, e umas calças para trabalhar.

— Bom, para sair eu tive várias ideias, e, querendo ou não, hoje você

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vai experimentar algumas peças que nunca imaginou usar. — Kelly

parecia estar mais empolgada que Natalie, o que deixava a amiga

apreensiva.

As duas entraram em uma loja, que não parecia muito chique, e nem

o tipo de loja em que Kelly compraria alguma coisa para ela. Mas tinha

uma grande variedade.

Quando uma atendente veio ajudar, Kelly logo disse:

— Assim que nós terminarmos eu te chamo, porque vamos provar

muitas coisas. Então, você ganha sua comissão.

Kelly não gostava de bajulação, e queria ficar bem tranquila para

pegar tudo de que precisava, sem ninguém do seu lado. E quando se

falava em compras, ela se virava muito bem.

A loira pegou algumas calças, algumas blusas, e sem que Natalie

percebesse, um vestido. Assim, as duas foram para o provador.

Algumas calças ficaram perfeitas no corpo dela, o que não era muito

difícil de acontecer, mas não foram todas que agradaram Natalie. O

mesmo aconteceu com as blusas, e ela escolheu algumas para comprar.

Quando a garota estava saindo do vestiário, Kelly entregou o vestido nas

mãos dela, e disse:

— Por favor, apenas prove.

— Mas, Kelly, você sabe que eu não...

— Apenas prove — disse Kelly, interrompendo a amiga, e a

empurrando de volta ao provador.

Natalie demorou um pouco, porque não estava acostumada com

vestidos. Mas, quando abriu o provador, imediatamente Kelly puxou o

amarrador dos seus cabelos, deixando-a com seus longos cabelos soltos.

Natalie estava linda, o vestido ficara perfeito em seu corpo, mas,

como ela não estava acostumada, a garota se sentiu incomodada com a

roupa, apesar de Kelly dizer que ela estava linda. Natalie não queria

gastar dinheiro com algo que ela não sabia se iria usar.

Quando as duas foram para o caixa, deram o nome da vendedora

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que as atendeu no início. Ela segurava o vestido na mão, e junto pegou

uma sandália.

— Kelly, eu não vou levar — disse Natalie a respeito do vestido.

— Eu sei. Você disse que não compraria, porque não sabia se iria

usar. Então quem vai comprar sou eu, de presente para você. E a

sandália vem de brinde.

— Eu não posso aceitar. Não é nem meu aniversário.

— Para de ser chata, e aceite meu presente.

Assim que terminaram as compras, as duas saíram pelas ruas do

centro de Polsher, falando de muitas coisas, lembrando-se de outros

acontecimentos. Kyle foi o assunto principal. Kelly disse que ele era um

rapaz muito misterioso, mas adorava contar as histórias de suas viagens.

Ela também disse que o chamaria para uma reunião na piscina na casa

dela, e queria que Natalie fosse.

Aproveitando o assunto sobre Kyle, Kelly decidiu ligar para Dalton e

encontrar os meninos em algum lugar. Trinta minutos depois, as meninas

estavam esperando em frente a uma sorveteria, quando Lily apareceu.

— Olha, que visão desagradável para acabar com meu dia — disse

Lily.

Desde o dia da festa do bar, as meninas não tinham encontrado Lily.

Aparentemente, por conta da confusão, ela tinha sumido por um tempo.

— O que você quer, Lily? — perguntou Kelly. — Arrumar confusão

novamente.

— Eu não sei do que todos vocês estão falando — disse a garota. —

Eu não arrumei confusão com ninguém. É um complô contra mim? Todos

falando dessa festa, como se eu tivesse sido culpada de acabar —

Aparentemente, Lily não se lembrava de nada que tinha acontecido

naquele dia.

— Quer dizer que você não se lembra de ter acabado com a festa do

seu irmão? — retrucou Kelly.

— Kelly, deixa pra lá. Não vale a pena — aconselhou Natalie.

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— Isso mesmo, não vale a pena eu perder meu tempo com vocês

duas — disse a garota indo embora. — Além de me provocar, ainda ficam

falando que eu estraguei a festa. Como pode? — E saiu andando sozinha

pela rua.

— Ou ela está fingindo, ou perdeu a memória — disse Natalie.

— Ou ela estava muito bêbada, ou está se fazendo de tonta —

comentou Kelly rindo.

— Você não presta, Kelly.

— Não mesmo. — A loira então avistou Dalton e Kyle, vindo em

direção das duas.

— Ladies, que prazer em revê-las — disse Kyle, sentando-se à

mesa.

Kelly e Dalton se beijaram e sentaram-se à mesa juntos.

— Podíamos fazer o mesmo, não acha? — comentou Kyle olhando

para Natalie. — Brincadeira, brincadeira. — deixando a garota vermelha.

— Kyle e suas brincadeirinhas com fundo de verdade — falou Dalton,

rindo do irmão.

— E então, meninas, o que contam de novo? — perguntou o irmão

mais velho.

— Estávamos planejando uma festa na piscina de casa. O que vocês

acham? — perguntou Kelly.

— Uma ótima ideia, desde que eu não precise ficar na água — Kyle

parecia estranho em falar sobre aquilo, já que a festa era na piscina, e

Dalton estranhou mais ainda.

— Como assim? Você que gostava tanto de água, o que aconteceu?

— perguntou Dalton.

— Alguns traumas, mas vamos mudar de assunto. Algum problema

naquele dia Natalie?

— Do bar? — perguntou a garota confusa pela mudança de assunto.

— Sim, do dia da briga.

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— Não, não teve problema nenhum. Afinal, foi só uma discussão.

— Vocês acreditam que a Lily apareceu aqui, e disse que não se

lembrava de nada? — contou Kelly.

— Acredito sim, ela até brigou comigo e o Kyle, porque ela afirmava

que não tinha feito nada daquilo, e que a gente estava defendendo a

Natalie. — Dalton olhou para Natalie, esperando sua reação.

— Agora a culpa é minha. Quando a Lily vai crescer e parar de me

perseguir?

— Quando nossos pais deixarem de mimar ela — disse Kyle a

respeito da irmã. — Eles tinham de mandar ela para uma viagem

internacional, para ver se ela aprende a viver, um pouco.

— Kyle aproveita e conta para as meninas sobre sua vida — pediu

Dalton.

E como Kyle adorava contar suas histórias, não ligou em começar.

Ele disse que, quando era mais jovem, com seus dezesseis anos, fez um

intercâmbio, que deveria durar um ano e acabou durando cinco. Nesse

período, ele sofreu um acidente de carro e quase morreu. Depois que

voltou, ficou mais um tempo em Polsher, e partiu para estudar fora.

Quando tinha vinte e quatro anos, ele parou de dar notícias para a

família. Foi quando seus pais ficaram preocupados e procuraram por

todos os hospitais. Kyle contou que, nesse período, viajou com os amigos

pelas geleiras e sofreu outro acidente esquiando. A neve chegou a

encobrir seu corpo. Ele foi dado como desaparecido e depois morto. O

rapaz, que por sorte não morreu, mas fora resgatado por populares da

região, tinha uma perna quebrada, e ficou na aldeia até a sua

recuperação.

— Que história, Kyle! — falou Kelly espantada.

— Pois é, e aqui estou eu, depois de tanto tempo. — Kyle parecia ter

contado a história mais normal do mundo.

— Quer dizer que, depois do acidente, desde os vinte e quatro anos

de idade, você não deu notícias para a família? — perguntou Natalie

espantada.

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— Nenhuma, e resolveu aparecer do nada — disse Dalton.

— Entendemos agora a quem a Lily puxou. — Kelly sorriu. — E

agora, pretende ficar aqui por muito tempo?

— Não, eu apenas vou ficar aqui por mais alguns dias. Depois, devo

voltar para as geleiras. Tenho uma vida lá, com o pessoal da aldeia.

E assim, todos ficaram conversando sobre outros assuntos. Kyle

sempre queria chamar mais a atenção do que todo mundo, com suas

histórias mais que malucas. Mas foi em uma de suas frases, que ele

realmente chamou a atenção de Natalie:

— Na aldeia, as pessoas costumavam dizer que eram protegidas por

anjos, e que os viam.

— Anjos? — Natalie ficou surpresa ao ouvir o rapaz falando sobre

aquele assunto. Kyle parecia ser a pessoa certa para conversar sobre

aquilo, já que aparentemente as pessoas da aldeia eram iguais a ela.

— Sim, anjos. — Kyle viu que a garota ficou incomodada, e resolveu

perguntar: — Por que você ficou assustada, Natalie, anda vendo anjos

por aí?

Todos caíram na risada, até que Natalie resolveu testar até onde

aquela conversa poderia chegar.

— Sim. Alguns protegendo as pessoas, outros sendo mortos por

demônios. Aliás, tem um bem atrás de você, Kyle.

Dalton e Kelly continuaram rindo, mas Kyle, no momento em que

ouviu o que Natalie disse, olhou para trás assustado.

— Estava brincado, Kyle, não precisa levar isso tão a sério. —

Natalie, apesar de estar rindo, percebeu que Kyle ficou assustado de

verdade.

— Bom, gente, eu tenho que ir, está quase na hora do trabalho, e

ainda preciso me arrumar.

— Nossa, monstrinha, já vai? — disse Kelly, espantada com o

horário.

— Pois é, a hora passou, e hoje com certeza tem muito trabalho no

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bar. —Natalie já foi levantando, e pegando suas coisas, para voltar até

onde deixou a moto.

— Bom trabalho, então — disse Dalton, com a mesma cara animada

de sempre.

— Obrigada. — Natalie percebeu que Kyle ainda estava estranho. —

Tchau, Kyle.

O rapaz levou um pequeno susto. Parecia estar pensando em várias

coisas naquele momento.

— Tchau, Natalie. — A garota já estava indo embora quando ele

respondeu. Se virou e deu uma piscada para ele.

E assim a tarde continuou. A noite também foi tranquila para Natalie

e todos no bar. Nada de diferente do normal aconteceu. Foram horas de

trabalho, mas Natalie nem se incomodava mais. No fim da noite, depois

de arrumar o bar, ela pegou sua moto e seguiu para casa. Assim que

chegou, tomou um banho e foi para a cama, mas estava sem sono.

Naquela tranquilidade, Natalie decidiu tentar contato com os

espíritos. Talvez ela conseguisse falar com seu pai, que havia algum

tempo não aparecia. A garota fechou seus olhos e pensou no rosto dele,

mas nada aconteceu. Novamente, com seus olhos fechados, lembrou-se

das conversas que teve com ele. Então, se lembrou de que seu abajur

estava aceso. Quando Natalie o apagou, começou a escutar algumas

vozes:

— Eu sabia que você viria. Você precisa me ajudar a terminar o

serviço — disse a voz de um homem.

— É uma pena que você não vai durar muito — agora, a voz de uma

mulher mais velha era escutada.

— Todos eles te querem, e nós também. — Todas as vozes

pareciam dizer palavras ofensivas, e Natalie acendeu a luz novamente.

— Eu não sou obrigada a ficar escutando esses mortos me

ameaçarem — disse a garota.

Ela virou de um lado, se cobriu e decidiu dormir. Mas, como já não

estava com sono, de certa forma a luz a incomodava. Então, decidiu

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apagar a luz novamente e as vozes recomeçaram:

— Você vai fugir?

— Que tipo de garota é você? Achei que fosse corajosa o suficiente

para me ajudar.

— Só não vale ficar com medo. — Todas as vozes começaram a

conversar ao mesmo tempo, o que deixou Natalie louca.

— Escuta aqui — disse Natalie. — Eu tenho esse estranho poder de

escutar vocês, e não vou deixar que vocês falem o que quiserem na

minha cabeça.

As vozes pararam de repente. Os dias passavam, e cada vez que

Natalie usava essa estranha habilidade, ela parecia ter um controle maior

sobre eles.

— Por favor, me ajude — pediu uma voz que, a princípio, não

parecia conhecida. — Você precisa ajudar meu filho.

Naquele momento, Natalie reconheceu aquela voz. Mesmo não

sabendo de quem era, aquela mulher sempre pedia a mesma coisa: que

ela ajudasse o filho, o qual Natalie não sabia quem era.

— Quem é o seu filho? Você precisa me dizer — perguntou Natalie.

— Foi tudo culpa minha, eu não devia ter feito o que eu fiz. Devia ter

protegido ele.

— Como você quer que eu o ajude? Onde ele está?

— Eu não sei. — A mulher parecia confusa, e apenas respondia

coisas sem sentido.

A única pessoa com quem ela conseguiu ter uma conversa normal,

até aquele momento, fora seu pai. Os outros nunca respondiam o que ela

queria, nem mesmo conseguiam seguir uma linha de raciocínio.

— Você é a única que pode ajudá-lo.

— Por que ninguém mais pode fazer isso? — perguntou Natalie.

— Ele não teve opção.

— Por que você não pode ajudá-lo? O que fizeram com você?

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— Eu não aguentei. Depois eles mataram todos.

Foi a primeira pergunta para a qual Natalie conseguia uma resposta.

A partir desse momento, ela tentou entrar mais nesse assunto.

— Quem são eles?

— Os que vieram da escuridão — disse a mulher.

Natalie se lembrou do que seu pai dissera sobre ela ter cuidado com

os que vieram da escuridão. Na mesma hora, a imagem de Carsten veio

à sua cabeça. Ela ficou imaginando se teria sido ele o responsável pela

morte dessa mulher, já que, naquela altura, ela não duvidava de mais

nada vindo do rapaz. Por conta das últimas atitudes dele, matar uma

família e ter feito algo ruim com a criança era bem possível.

— Apenas o ajude, ele não tem culpa do que tem feito.

— Você está falando do seu filho? — perguntou Natalie.

Naquele momento, não foi possível mais ouvir as vozes, inclusive a

da mulher, e Natalie ficou com mais dúvidas do que já tinha. Passados

alguns minutos, a garota foi ficando sonolenta, e quando estava quase

dormindo, outra voz desconhecida a novamente, dizendo:

— Seus amigos vão sofrer muito, e será tudo culpa sua.

Então, a casa da família Zeniek ficou silenciosa. Os rostos de Kelly,

Dalton, Paul, Nick, Serah e até mesmo da falecida Shanon passaram

pela cabeça de Natalie, tirando totalmente o sono dela.

******

Dentro da sala escura em que Victor e Carsten meditavam, nada era

ouvido. Porém, Carsten despertou assustado, sem entender por que o

teria feito daquela forma. Mesmo assim, percebeu que os outros ainda

estavam meditando, e permaneceu na mesma posição.

Naquele momento, apenas a respiração dele tomava conta do lugar.

Carsten sentia-se diferente e, depois de ter absorvido toda aquela

energia, precisava sair dali, precisava caçar. A raiva tomava conta do seu

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corpo, pois ele era movido pelas energias provenientes da maldade do

ser humano.

Em certo momento, quando sua fúria aumentou, percebeu que

apenas Victor estava ao seu lado. Não havia nenhum sinal de Katherine

no local, e a ideia da reclusão havia vindo dela. Então, Carsten saiu da

sala sem fazer barulho e, através do portal, decidiu ir atrás da garota.

Assim que chegou a Polsher, já estava anoitecendo. Carsten nem

mesmo sabia quantos dias haviam se passado, e o que teria acontecido

durante o período em que esteve fora. A reclusão servira para que,

dentro dele, as forças da escuridão tomassem força.

Carsten se direcionou ao bar Avalon, ele queria saber se a energia

absorvida na reclusão, fora o bastante para se livrar daqueles

sentimentos que outrora o incomodavam, mas foi de cima do telhado de

um galpão, que ele a viu. A vontade dele de caçar anjos, de concluir suas

missões e de buscar a fúria nas pessoas foi, então, encoberta. Natalie

estava chegando a pé, carregando sua bolsa, com seus cabelos

amarrados.

O rapaz não podia negar: quando a via, toda aquela energia negativa

era transformada em nada. O vazio dentro dele era preenchido por algo

estranho, que o machucava por dentro. Essa dor jamais sentida não o

fazia sofrer, mas seu corpo não a aceitava, e o rapaz não pretendia lutar

contra ela.

Ali ele ficou, até que o entardecer fosse coberto pela noite, à espera

daquela que havia mudado sua vida sem que ele nem mesmo soubesse

o porquê.

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Capítulo 21

SENTIMENTO. Uma palavra que pode ser expressa de várias

formas.

Naquela noite, dentro do Avalon, a raiva era um sentimento

inexistente. Todos pareciam trabalhar contentes, e o bar estava bem

cheio. Natalie permanecia no caixa, e Jonathan ajudava Serah. O chefe

estava bem agitado, e não conseguia ficar parado; então, decidiu trocar

de lugar com a garota.

Natalie estava contente por ficar no caixa, a garota estava muito

cansada, pois não dormira direito na noite anterior, depois da última

mensagem que tinha recebido. De qualquer forma, como lidaria com

dinheiro, tentou ficar o mais atenta possível. Não queria ter descontos em

seu próximo salário.

No intervalo de Serah, Nick aproveitou e foi falar com a loira. Ela não

queria ir para fora, então ficou dentro do bar com o rapaz.

— Noite tranquila, não é? — comentou o rapaz.

— Sim, apesar de estar cheio, não tivemos nenhum problema hoje —

respondeu Serah que já estava se acostumando com o movimento.

— Serah, escuta. O que você pretende fazer no domingo à noite? —

perguntou Nick.

— Neste domingo? — Serah era muito experta para saber o que o

rapaz queria. — Por quê? Quer me convidar para algum lugar?

— Como você sabia? — perguntou o rapaz, assustado.

— Vocês, homens, são muito previsíveis. — Serah olhou para

Natalie, que prestava atenção e deu uma piscadinha. — Mas vou deixar

algo bem claro, Nick, apenas uma saída de amigos.

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— Claro, com certeza — respondeu meio desapontado.

— Nesse caso, a Natalie poderia vir com a gente. — Serah se virou

para a garota. — Não é, Natalie?

Nick aproveitou que Serah ficou de costas para ele e fez um sinal

para que Natalie não aceitasse. A garota, para ajudar na investida dele,

piscou para o rapaz.

— Eu não posso, Serah. Combinei de sair com a Kelly, e não sei

aonde eles irão.

Nick suspirou aliviado. Serah virou rapidamente para ele e disse:

— Algum problema, Nick?

— Nenhum, apenas feliz por você aceitar sair comigo.

— E quem foi que disse que eu aceitei sair com você?

— Mas eu pensei que...

— Eu estou brincando. Domingo, às oito, pode ser? — interrompeu

Serah com um sorriso.

— Pode. Você quer que eu te pegue?

— No fim da noite combinamos isso — disse Serah, voltando ao

trabalho, pois seu tempo já tinha terminado.

Natalie olhou para Nick. Ele estava com uma cara tão boba, que

podia ser notada de longe. Parecia ser um rapaz muito legal, que merecia

alguém legal e bonita como Serah, por isso Natalie ficou feliz em saber

que ele estava contente.

A felicidade das pessoas à sua volta era muito importante para ela

naquele momento. Natalie preocupava-se que algo de ruim que pudesse

acontecer a qualquer um deles. A garota não queria mais receber

nenhuma notícia ruim, e sim que sua vida voltasse ao normal.

— Hora do intervalo — disse Jonathan, que já estava do lado da

garota. — Quem precisa de um descanso agora sou eu.

— Tudo bem. Eu preciso ir lá fora respirar um pouco de ar puro, e

alongar meu corpo. — Natalie se levantou e foi em direção à saída dos

fundos. Serah percebeu e ficou de olho.

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A noite estava bem tranquila. Poucos carros passavam pela rua, o

som da musica e das pessoas conversando era um pouco contido do

lado de fora.

Natalie fez o que realmente pretendia: alongou suas costas olhando

para o estacionamento na frente do bar. Ela respirou fundo o ar do lado

de fora e em frações de segundos seu coração disparou freneticamente.

Natalie não estava mais sozinha. Atrás dela, o homem que

incomodava seus pensamentos, aquele que fora um herói para ela no dia

do assalto, mas que demonstrara ser o pior de todos os bandidos disse:

— Que sentimento é esse? Quando estou perto de você, sinto como

se eu fosse outra pessoa.

Natalie imediatamente reconheceu a voz dele, mas, em choque, ficou

sem reação. Ela podia gritar e chamar a atenção dos seguranças, porém

não se moveu nem se virou para se certificar de que realmente se tratava

do rapaz que a atormentava.

— Desde o primeiro dia em que eu a vi, tinha certeza de que você

era diferente.

— Você quer dizer no posto de gasolina, não é? — Natalie quebrou o

silêncio, mas continuou sem nenhum movimento.

— Desde aquele dia eu sabia que você tinha me visto, mas até agora

não sei por quê.

— Eu também não sei, e, de verdade, desejaria nunca tê-lo visto. —

As palavras de Natalie eram firmes. Ela estava apreensiva, tinha milhões

de dúvidas sobre ele, e elas precisavam ser respondidas, aquela era sua

chance, mesmo que tivesse arriscando a sua vida.

— Por que você me salvou naquele dia? — perguntou a garota,

mantendo a calma.

— Eu não sei. Como eu disse, senti o seu medo, e foi esse medo

que me guiou até você.

— Eu só tenho visto você fazendo coisas erradas, você não é bom.

— Eu nasci da escuridão dos outros, das coisas ruins que os outros

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fizeram. Outros como você.

Natalie teve certeza: ele era aquele de quem ela deveria se afastar, o

ser da escuridão sobre o qual seu pai se referira. Mas, por algum motivo

que ela também desconhecia, havia algo dentro dela que não permitia

que ela fosse embora, algo que era mais forte que sua vontade.

— Então por que você me ajudou naquele dia? Por que não me

deixou lá? — Aquela ingratidão era proveniente do medo do

desconhecido.

— Meu corpo sente muita raiva, ódio, rancor, mas, quando estou

perto de você, esses sentimentos desaparecem.

Todas as dúvidas e lembranças que Natalie tinha do rapaz vieram à

tona em uma só pergunta:

— Quem é você?

Carsten ficou em silêncio. Se ele dissesse o que realmente era,

talvez ela nunca mais fosse querer vê-lo.

— Eu era algo muito ruim. Mas, depois de conhecê-la, não sei mais o

que eu sou.

A raiva que Natalie sentia naquele momento era enorme. Quando se

virou, percebeu que ele estava tão perto a ponto de seus corpos quase

se tocarem. Ela conseguia sentir a respiração dele, mas evitou olhar para

o seus olhos.

— Eu tenho medo de você — disse Natalie.

— Eu sei. Se eu fosse você, teria também. — O rapaz conseguiu,

mesmo de longe, escutar o coração da garota bater rapidamente.

— Você quase matou um anjo na minha frente.

— Então você também consegue vê-los?

— Sim, eu consigo ver todos vocês. Mas, como já te disse, eu

preferia não vê-los. — Natalie levantou a cabeça e olhou diretamente nos

olhos do rapaz.

— Se eu não o matasse, ele me mataria também. Essa guerra é

constante.

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Natalie não poderia entender aquilo. Como um anjo poderia querer

ferir alguém? As histórias que todos contavam eram de que os anjos

apenas guardavam os humanos, e praticavam o bem.

— Você está me confundindo. — Natalie não parava de encarar o

rapaz, e ele não tirava os olhos dela.

— Desde o primeiro dia em que eu te vi, você tem me perturbado

muito. — Os olhos de Carsten não podiam ser mais sinceros naquele

momento. — Eu sinto necessidade de tê-la perto de mim.

Natalie sentiu um frio correndo por todo o seu corpo. Aquele homem

à sua frente, há poucos segundos, havia dito que era feito de raiva, ódio

e rancor, e agora ele tinha necessidade de tê-la por perto, essa mistura

de sentimentos não fazia sentido.

— Isso que você quer tem a ver com um sentimento que, de acordo

com o que disse, não faz parte da sua existência.

— Eu sei. — Carsten abaixou a sua cabeça. Assim que a levantou,

disse algo que Natalie não pretendia ouvir: — A única coisa que faz parte

da minha existência, neste momento, é você.

Natalie ficou sem reação. Não conseguia dizer mais nada, e apenas

observava os olhos do rapaz. Ela sentiu a sinceridade daquelas palavras.

Seu coração, que já batia mais forte, acelerou mais ainda, fazendo-a

sentir algo que também nunca havia vivido antes.

— Por que, de uma hora para outra, esse medo que eu sentia por

você desapareceu? — ela o questionou em voz alta.

— Deve ser pelo mesmo motivo que você me faz ser diferente.

Nesse momento, a vontade que os dois tinham era a mesma: que

eles pudessem se tocar e sentir o corpo um do outro. Quando Carsten se

inclinou para beijá-la, algo o impediu. Sem conseguir ao menos tocá-la,

era como se a garota tivesse alguma barreira que não o deixava ficar

próximo dela.

— Por que eu não consigo te tocar?

— Eu não sei. — Natalie não entendia o que estava acontecendo.

Por mais incrível que parecesse, depois de tudo que ela tinha passado, o

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que a garota mais queria era que ele estivesse mais perto dela. —

Apenas me responda uma coisa: o que é você?

Carsten decidiu quebrar seu silêncio. Olhou novamente para os olhos

de Natalie, mesmo sabendo que aquele poderia ser o último olhar dela,

ele disse:

— Eu sou um...

— Natalie, você está bem? — perguntou Serah interrompendo a

situação, e fingindo que não estava vendo Carsten ali.

— Eu preciso ir — disse ela olhando para ele, e indo a direção a

Serah.

Nesse momento, Carsten tirou sua camiseta, abriu suas grandes

asas negras e voou. Natalie apenas sentiu um ar nas suas costas;

quando olhou para trás, ele não estava mais lá.

— Com quem você estava conversando? — perguntou Serah. —

Desculpa ser chata, mas seu intervalo já acabou. Antes que o Jonathan

percebesse, vim te chamar.

— Obrigada, Serah, mas eu estava apenas falando comigo mesma.

As meninas entraram para continuar o trabalho. Naquela noite

escura, lá estava Katherine observando tudo de longe. Talvez por

Carsten estar muito confuso em relação aos seus sentimentos, ele nem a

tivesse notado.

Sem pensar em nada, e com muita raiva, Katherine apenas abriu o

portal e, com suas asas, voou para dentro dele.

A ruiva chegou a um lugar escuro, um pouco diferente daquele em

que costumavam ficar quando estavam em reclusão. Dentro dessa sala,

que parecia muito fria e úmida, pequenas chamas clareavam o ambiente,

como se fossem chamas que pairavam no ar.

— Senhor, eu preciso falar com você — disse a ruiva para a

escuridão, sem enxergar nada, mas sabendo que alguém estava lá.

— O que você quer, Katherine? — Era a voz de um homem na

escuridão.

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— Ancião, eu gostaria de reportar algumas coisas.

O homem então chegou mais perto de Katherine. Ele usava um

capuz preto, que cobria parte do seu rosto, e um anel preto no dedo

indicador. Pelas suas mãos, era possível ver que ele aparentava ter mais

idade. Estendeu seu braço para Katherine e ela, no mesmo momento,

pegou sua mão e a beijou.

— Fale.

— É sobre Carsten. — E, sem pensar, ela contou tudo sobre ele. —

De uns tempos para cá, ele tem agido de forma errada, não cumprindo

suas missões, chegando a evitar a morte de um anjo.

— E teria alguma razão para que isso estivesse acontecendo? —–

perguntou o velho.

— Sim, uma humana. Desde que a viu, ele mudou. Eu já tentei de

tudo, mas não sei mais o que fazer.

— Onde ele está nesse momento? — O homem abaixou a cabeça

esperando a resposta.

— Ele deveria estar na reclusão, mas saiu antes do tempo e foi se

encontrar com a humana.

— Katherine! — Nesse momento, o ancião novamente ergueu sua

cabeça e deu um tapa na cara da ruiva. — Quem você pensa que é para

achar que pode me enganar?

— Você não acredita em mim?

O ancião riu e novamente deu outro tapa na cara de Katherine,

deixando-a no chão.

— Eu acredito em você. Tanto acredito, como sei que não só o

Carsten que anda fazendo coisas que não me agradam. Você e o Victor

também.

Katherine ficou assustada, sem saber ao certo do que ele estava

falando e quem tinha contado para ele.

— Matar uma humana, dar ordens ao Larxen, sair de uma reclusão,

ou melhor, fingir estar em uma. São algumas das coisas que também não

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me agradam.

— Mas, senhor...

— Cale a boca. Sem mais desculpas, Katherine. Fique sabendo que

eu sei tudo o que vocês fazem.

— Então, me diga, se você sabe tudo, por que o Carsten tem fascínio

por essa garota? O que ela é?

— Insolente. — O homem empurrou Katherine para longe sem tocar

nela. —Isso por enquanto não é de seu interesse, mas, assim que o

Carsten chegar, eu te digo o que fazer com ela. — O velho voltou a entrar

na escuridão. — Enquanto ele não volta, não quero que você saia daqui.

Se desobedecer mais uma ordem, as consequências serão as piores

possíveis.

******

Estava quase na hora de Natalie sair do trabalho. Naquele dia, ela

estava a pé, porque Kelly viria buscá-la.

Natalie tinha combinado de dormir na casa da amiga, algo que elas

sempre faziam antes de ela começar a trabalhar. Assim, as amigas

poderiam conversar bastante, já que fazia muito tempo que isso não

acontecia, porque Natalie sempre precisava interromper as conversar

indo para o bar.

Quando Kelly chegou, logo Natalie foi para o carro da amiga. As

duas pareciam bastante empolgadas.

De longe Serah olhava para a garota. Estava muito preocupada,

depois da cena que tinha visto. Àquela altura e devido à gravidade do

assunto, ela já tinha reportado tudo ao Reik, o qual pensou em tomar as

devidas providências, mas pediu para que Serah não fizesse nada, até

que fosse dada alguma ordem.

Com exceção da Monstra, todos já estavam dormindo na casa de

Kelly, já que era bem tarde da noite. Assim que Natalie entrou fez, a

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cadela fez uma festa para ela, pulando na garota. Natalie brincou um

pouco com ela e ambas foram para o quarto, onde comeram algumas

besteiras enquanto conversavam.

— Eu acho que o Kyle está a fim de você — disse Kelly, colocando

uma batata frita na boca.

— Nada a ver, Kelly, ele apenas é um cara simpático. — Natalie

também comeu uma batata. Depois disse: — Você e sua mania de

querer falar que os caras me olham. Até parece, né?

— E você e sua mania de achar que nenhum cara te olha. Ele não

para de falar de você.

— Bom, se o Kyle está a fim de mim eu não sei, mas achei que ele

ficou bem estranho quando eu falei dos anjos aquele dia.

— Eu também achei. — Kelly tomou um gole do seu suco. — Ainda

mais depois daquela história da neve, do pessoal da aldeia acreditar em

anjos.

— Talvez ele tenha se lembrado de alguma coisa de lá. — Natalie ia

tomar um gole de suco quando disse: — Kelly, você lembra o que eu te

disse aquele dia?

— Depende. Você me fala tantas coisas todos os dias. Do que

especificamente? — Kelly comeu mais algumas batatas, esperando que

Natalie falasse alguma coisa.

— Das coisas que eu andei vendo, do cara que eu te contei.

— Meu Deus, lá vamos nós de novo. O que aconteceu dessa vez? —

Kelly estava esperando que Natalie contasse mais alguma coisa absurda.

— Ele apareceu no meu trabalho hoje, novamente. Quando eu

estava no meu horário de intervalo.

— E o que ele fez com você dessa vez?

— Ele tentou me beijar.

— Quem? O cara que te salvou dos bandidos? — Kelly já estava

achando um absurdo ouvir tudo aquilo. — Eu te disse que você deveria

procurar um médico. Fez isso?

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— Kelly, você não está acreditando em mim, não é mesmo?

— Amiga, para e pensa em tudo que você está me dizendo, é muito

difícil alguém chegar até você e te contar que um homem matou outros

três para te salvar, e de repente esse mesmo homem aparece em um bar

e somente você consegue vê-lo. Agora, ele volta a aparecer e tenta te

beijar.

— Pois é, pelo visto eu terei de carregar tudo isso sozinha.

As duas ficaram em silêncio e logo decidiram dormir. O rosto de

Carsten não saiu da cabeça de Natalie, lembrando-se de todas as

palavras que ele havia dito. Depois de tudo aquilo, a única coisa que

Natalie aprendeu era que ela não entendia nada sobre os sentimentos, e

que aquele rapaz de cabelos negros e olhos sinceros só havia chegado

para atrapalhar ainda mais sua cabeça, fazendo-a não saber mais

distinguir o ódio e o amor.

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Capítulo 22

DOR. Era o que Katherine começou a sentir assim que o tempo foi

passando. Ela sentia-se muito mais fraca naquela sala do que no local

onde ficara em reclusão. De alguma forma, lá suas energias eram

absorvidas rapidamente, e a garota estava arrependida de ter feito o que

fez.

As horas foram passando e Katherine torcia para que Carsten

chegasse logo. Sabia que ele seria castigado assim como ela, mas

talvez, após isso, a ruiva seria solta.

Quando Carsten finalmente apareceu, foi chamado para ir à sala e

logo viu Katherine no chão. Mas, como estava diante do ancião, apenas

ficou parado esperando pelo velho.

— Onde você estava, Carsten? — perguntou da escuridão o velho.

— Caçando. — Carsten mostrou quatro cápsulas.

Realmente ele tinha caçado logo após conversar com Natalie.

Aquelas cápsulas, repletas de energia, eram de anjos. O rapaz já deveria

saber, ou pelo menos pressentir, que alguma coisa ruim estava para

acontecer.

— E antes de caçar, Carsten, o que você fazia na Terra? — O ancião

apareceu na luz e encarou Carsten fixamente, esperando que o rapaz

inventasse alguma história.

— Eu estava atrás de uma humana.

Para a surpresa de todos, inclusive de Katherine, Carsten tinha dito a

verdade. Por mais que soubesse das terríveis consequências, ele tinha

certeza de que algo pior poderia acontecer se ele mentisse.

— Que tipo de humana? — perguntou, curioso, o ancião.

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— Do tipo que me faz esquecer da minha existência. — Carsten

abaixou sua cabeça, não conseguia encarar o ancião.

O que ele havia dito era a mais pura verdade, porém nem ele mesmo

sabia explicar o porquê. O ancião, que parecia saber de tudo, não

esperava por aquela resposta.

Os humanos, tão insignificantes para eles, não tinham nenhum poder

para mudar a essência dos demônios. O ancião parecia estar curioso a

respeito de Natalie.

— Katherine, você também conhece essa humana? — perguntou o

velho.

— Sim.

— O que você acha que ela é? — A curiosidade do homem parecia

aumentar a cada momento.

— No início, achei que a garota fosse um anjo, por poder nos

enxergar. Mas depois percebi que ela não se parecia com um.

— Uma caída, talvez — afirmou o ancião.

— Se ela fosse uma caída, eu não teria motivos para mudar como eu

mudei. — Carsten disse isso, pois já estivera frente a frente com muitos

caídos e nada acontecera.

— Concordo. De qualquer maneira, você deveria se afastar dessa

garota, já que ela altera sua existência, como você está me dizendo —

falou o ancião.

— Ele não consegue. — Katherine olhou para o rosto de Carsten,

que continuava abaixando. — Victor e eu já tentamos por diversas vezes

mostrar que ele estava errado, mas ele sempre fugia e...

— Katherine, já chega. Não me interrompa mais — ordenou o velho,

interrompendo a garota.

— Perdão, meu senhor.

— Pelo que me parece, todos vocês têm cometido delitos

intoleráveis. — O ancião se referia a tudo aquilo que não dizia respeito às

missões dadas a eles. — Victor, pelo visto está na reclusão, e já assumiu

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seus erros. Katherine você assumiu sua culpa, e ficará aqui mais

algumas horas, pois eu sei a dor e sofrimento pelos quais você está

passando.

Katherine ficou assustada ao saber que ficaria naquela sala mais

algumas horas. Ela poderia morrer, já que a cada minuto suas energias

eram consumidas e a dor dentro do corpo era insuportável.

— Quanto a você, Carsten, vai me acompanhar. — O ancião chegou

próximo de Carsten. Sem tocar no rapaz, fez seu rosto se levantar

apenas com o poder da mente. — Eu realmente não sei nada a respeito

dessa garota, mas se não é um anjo, e muito menos uma caída, até que

eu descubra o que é, ela será tratada como uma humana. E ter relações

com humanos é extremamente proibido, uma das primeiras regras do

submundo.

Katherine percebeu, então, que sua atitude provavelmente tiraria a

vida de Carsten. Naquele momento, arrependeu-se profundamente, mas

de nada adiantaria, pois ela estava impossibilitada de fazer qualquer

coisa contra o que fosse acontecer.

— Eu não vou matá-lo, Carsten — disse o ancião, aliviando a culpa

de Katherine. — Você é precioso demais para morrer assim, mas não

posso deixar isso impune, portanto, você vai comigo para Mantros.

Katherine ficou apavorada. Mantros era o pior lugar do submundo,

onde os seres eram castigados e sofriam diariamente. A dor era o lema, e

ninguém permanecia um segundo dentro daquele lugar sem que

sofresse. Portanto, mesmo que Carsten fosse absolvido da morte, muito

pior seria estar em Mantros. Esse castigo seria uma maneira de fazê-lo

pensar duas vezes antes de qualquer outra ação que pudesse tomar

contra as leis do submundo.

O ancião voltou para as sombras, e o corpo de Carsten parecia ser

arrastado para dentro da escuridão. Antes que ele desaparecesse, com

um olhar de fúria, disse a Katherine:

— Está contente agora? E seu corpo foi sugado pelas trevas.

Mantros era um lugar no submundo como diversos outros: muito

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escuro e insuportavelmente quente, o chão era coberto de pedras que

queimavam os pés de quem por lá caminhavam. O calor do local fazia a

pele arder e se desintegrar, como se estivesse em chamas, poucos

segundos depois parecia se regenerar, apenas para que o sofrimento

fosse continuo.

Quando Carsten e o ancião chegaram, o rapaz já parecia se sentir

incomodado pelo calor, mas, por ser um demônio, ainda conseguia

aguentar mais que os humanos que iam para lá depois da morte. O

velho, por sua vez, não sentia absolutamente nada, parecia que estava

em um ambiente normal, graças ao seu tamanho poder.

— Tire sua camiseta, Carsten — pediu o ancião.

O jovem não hesitou. Sabia que estava errado, e que aquele castigo

era a única forma de purificar sua culpa e talvez se livrar daquela

angustia de nem mesmo controlar seu corpo quando estava perto da

garota.

Assim que tirou a sua camiseta, suas grandes asas negras se

abriram contra a sua vontade. Naquele momento, elas foram envolvidas

por finas correntes inquebráveis que surgiam do chão, como se saíssem

das pedras.

— Coloque esta venda. — O ancião entregou um pano preto para o

rapaz, e este, em seguida, colocou-o nos olhos.

Mais algumas correntes prenderam os braços e as pernas de

Carsten. O calor, que a princípio parecia algo suportável, aumentava

cada vez mais, e sua pele começou, então, a arder. A dor que ele sentia

era muito diferente da agradável dor de quando estava ao lado de

Natalie.

— Espero que o tempo em que ficar aqui o faça refletir sobre o que é

bom e o que é ruim para você. — O ancião virou as costas e foi

caminhando em direção à saída do local. — Eu não queria estar fazendo

isso com você, mas não posso te perder de forma alguma.

Carsten tinha um grande valor para o ancião, que achava aquela a

melhor forma de fazê-lo voltar ao normal.

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A pele de Carsten começou a doer e bolhas foram sendo formadas

nela. Estas, quando estouravam, pareciam agulhas entrando em seu

corpo. Mesmo sentindo aquela dor, o rapaz foi firme. Aguentava como se

uma parte dele quisesse realmente receber tal castigo; porém, mesmo

sofrendo daquela forma, e sabendo o porquê, o rapaz não conseguia tirar

Natalie da cabeça.

O ancião voltou para a sala onde estava Katherine. De tão cansada,

a ruiva estava caída no chão.

— Katherine, levante-se — ordenou o ancião.

Sem forças, Katherine tentou por três vezes se levantar, mas não

conseguiu. Sem paciência para esperar, usando suas mãos, o ancião a

levantou de longe. O corpo da ruiva parecia amolecido: ela estava

morrendo.

— Tome isso. — O ancião retirou a energia de uma das cápsulas que

Carsten havia trazido e entregou a Katherine. Em poucos minutos, a

garota voltou a ter forças, e pôde ficar em pé, sem a ajuda dele. —

Consegue falar comigo agora?

— Sim — disse a ruiva, ainda fraca.

— Eu sei que você errou, e que merecia ficar aqui mais tempo, ou

até mesmo morrer. Mas tenho certeza de que você não vai fazer mais

nada sem eu mandar.

— Com toda a certeza, senhor.

— Mas tem uma coisa que eu quero que você faça. — O ancião tirou

o capuz da sua cabeça, e agora seu rosto podia ser visto.

Katherine nunca havia visto o rosto do ancião. Coberto de rugas, ele

aparentava cansaço; seu olhar era frio, demonstrando não se importar

com ninguém.

— Quero que você mate essa humana. — aquela ordem do ancião

surpreendeu Katherine, mas, ao mesmo tempo, a deixou muito feliz.

— Agora? — perguntou a ruiva.

— Não quero que perca nem mais um segundo. — O velho colocou

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seu capuz novamente. — E não se importe com a luz do dia, você não

vai precisar de muita força para isso.

— Os anjos já devem estar preparados, e eles são mais fortes. —

Katherine se referia à força dos anjos, que se multiplicava durante o dia,

enquanto a luz do sol a enfraquecia.

— Use isto. — O velho entregou uma arma de fogo negra, adornada

com vários símbolos. — Um tiro certeiro e eles estarão mortos.

— Tem mais um problema, senhor. — O velho, que estava saindo,

parou e se virou para Katherine. — Eu não sei onde ela está.

— Dessa forma, eu sugiro que você parta imediatamente e a procure.

— Sem mais palavras, o ancião desapareceu.

À procura de Natalie, Katherine partiu. Ela sabia que precisava

cumprir a missão de qualquer forma. Direcionou-se aos lugares em que

ela poderia estar: sua casa, o bar Avalon e a casa de seus amigos.

******

Algumas horas antes, Kelly estava em casa quando recebeu a

ligação do seu pai, dizendo que precisava ir para Janove. Essa notícia a

deixou bem contente e a garota, mais do que depressa, ligou para seus

amigos. Era a ocasião perfeita para a festa na piscina que ela tinha

planejado havia algum tempo. O evento seria para poucos, e

imediatamente Kelly pediu que a cozinheira preparasse comida, que

Kenedy buscasse bebidas e o jardineiro limpasse a água.

Uma hora depois, lá estavam alguns deles à beira da piscina,

bebendo, comendo e rindo muito, principalmente das piadas de Dalton.

Paul, como sempre, era o mais quieto, apenas ria das piadas do amigo,

mas não arriscava contar nenhuma.

Depois de alguns minutos, Kyle chegou com Natalie. O rapaz decidiu

buscar a moça e depois prometeu levá-la ao trabalho. Paul, que não

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gostou nada da ideia, ficou todo enciumado, mas, ao contrário do que

Kelly dizia sobre Kyle, Natalie não o via de outra forma além de um

amigo, assim como ela também via Paul.

— Então, Kyle, não vai contar mais nenhuma história legal pra gente

hoje? — perguntou Kelly toda animada.

— Acho que o repertório do meu irmão já acabou — comentou

Dalton.

— Na verdade, tenho muitas histórias, meu irmão, mas algumas

delas são segredos de Estado — disse o rapaz rindo.

Nesse momento, Natalie pensou em milhares de coisas, já que

algumas de suas histórias também eram segredo — e mesmo que ela

contasse ninguém acreditaria, assim como Kelly não acreditou.

— Isso aqui é uma festa na piscina, ou na beira na piscina? —

perguntou Dalton, já tirando sua camiseta e ficando apenas de short.

— Eu concordo, meu amor, vamos para a piscina. — disse Kelly, que

usava apenas um vestido com seu biquíni por baixo. — Vamos, Natalie.

— Não, eu não trouxe meu biquíni — disse ela toda vermelha.

— Como assim, não trouxe biquíni para uma festa na piscina? —

Dalton tirou sarro da garota. — E você, irmão, vamos?

— Não, eu vou fazer companhia para Natalie. — Kyle parecia não

querer entrar na água também.

— Bom, se eles não vão, eu é que não vou ficar de fora. — E Paul

pulou também na água.

— Natalie, se você quiser, eu te empresto um biquíni. — Kelly

ofereceu a roupa para a amiga, mas tinha quase certeza de que ela não

aceitaria.

— Não, Kelly, daqui a pouco eu tenho que ir para o trabalho. Vim

apenas para fazer companhia a vocês.

Kyle se levantou para pegar mais cerveja. Sem que o garoto notasse,

Dalton saiu da piscina, pegou o irmão e, antes que ele pudesse fazer

alguma coisa, foi jogado dentro da água. O rapaz não parecia nada

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satisfeito com a brincadeira.

— Mas que droga, Dalton! Eu disse que não queria entrar na água —

gritou Kyle.

Dalton ficou totalmente sem graça, quando percebeu que o irmão

não havia gostado. Aliás, todos ficaram em uma situação muito chata.

Assim que Kyle saiu da piscina, sentou-se em uma cadeira de costas

para Natalie. O rapaz usava uma camiseta branca, a qual ficou

transparente depois que foi jogado na água, mostrando duas grandes

cicatrizes nas suas costas. Natalie ficou curiosa para perguntar como ele

as havia feito, mas achou melhor não dizer nada por conta da irritação.

Passados alguns minutos, todos estavam mais calmos, e Kyle

parecia se sentir mais à vontade. Foi nesse momento que Natalie decidiu

perguntar:

— Kyle, você não queria entrar na água por conta das suas

cicatrizes?

— Isso não é de sua conta, Natalie — respondeu o rapaz, bem

ríspido.

Natalie ficou um pouco constrangida pela resposta de Kyle, mas

depois, pensando melhor, percebeu que havia sido infeliz na sua

pergunta. Kyle, por sua vez, sentiu que havia sido bem mal-educado com

a garota e disse:

— Desculpe minha falta de educação, mas é que tem alguns

assuntos dos quais eu não gosto de lembrar. — Kyle virou sua cadeira

para a garota e os dois começaram a conversar. — Foi por isso sim. Eu

não gosto que os outros vejam essas marcas, são bem feias.

— Desculpe ter tocado no assunto, não foi minha intenção te

chatear. — Natalie estava arrependida. — Se não quiser mais falar sobre

isso, eu entendo.

— Não. Já que entramos no assunto, eu posso te dizer o que

aconteceu. Lembra-se do acidente que quase me matou?

Kyle começou a contar sobre o acidente para Natalie. Disse que,

assim que caiu, os esquis se quebraram e perfuraram suas costas. Ele

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não se lembra de como foi encontrado, mas apenas das pessoas da

aldeia comentando que ele havia passado por algumas cirurgias e

nenhuma das pranchas havia perfurado seus órgãos.

Natalie ficou espantada ao ouvir a história, e a maneira como o rapaz

havia sobrevivido àquela situação. Depois disso, ela perguntou sobre a

aldeia onde ele morou e os costumes que ele aprendeu com a população

local. Ficaram trocando ideias e rindo muito.

Paul, por sua vez, se viu em uma situação chata novamente. Dentro

da piscina, Dalton e Kelly se beijavam o tempo todo, e ali, sozinho,

enquanto Natalie e Kyle conversavam. Para o rapaz, aquela situação

estava deixando-o constrangido. Então, ele decidiu se pronunciar:

— Vamos comer, gente, essa água me deu fome.

Todos concordaram. Foram comer, beber e aproveitar algumas

horas. Após um tempo, Natalie viu no relógio que precisava ir embora,

era hora de entrar no Avalon. Kyle se propôs a levar a garota; Paul disse

que faria companhia aos dois e decidiu ir junto. Os três, então, saíram

para levar a garota ao trabalho.

Enquanto isso, Kelly decidiu tomar sol e bronzear sua pele clara.

Aproveitando que a namorada ia pegar uma cor, Dalton, que não gostava

muito dessa história, resolveu subir para o quarto dela e tirar um cochilo.

Os empregados, nessa hora, estavam dentro da casa, que era enorme,

fazendo seus afazeres, pois Kelly não gostava de ser incomodada nas

suas festinhas.

Caminhando pelos jardins da casa Katherine resolveu aparecer para

procurar por Natalie, já que tinha ido a todos os lugares e não a havia

encontrado. Assim que a ruiva percebeu que uma festa estava

acontecendo graças ao som alto que vinha da piscina, tinha certeza de

que Natalie estava por ali.

A ruiva então percebeu que a garota não estava ali, apenas sua

amiga estava. Sem perder tempo ela se aproximou da garota, mas foi

surpreendida por um ataque pelas costas, que a derrubou. Quando ela se

virou, viu um homem negro com belas asas brancas, um anjo que estava

ali para proteger Kelly.

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— Então, você já sabia? Mas pode ficar tranquilo, que não é a loira

que eu quero — disse Katherine.

— É melhor que você vá embora agora mesmo, ou será morta. — Os

anjos não eram como os demônios, não tinham sede pela caça, mas

matavam seus oponentes, caso precisassem proteger os humanos ou

alguns de seus companheiros.

— Calma, não precisa ficar zangado, é só uma visita. Mas, já que

você está sendo tão receptivo, por que não unir o útil ao agradável? —

Katherine pegou a arma que o ancião deu para ela e atirou contra o anjo,

que nem teve tempo de desviar do ataque.

O corpo dele trincou como vidro, o matando em instantes. Ao final,

quando já estava todo despedaçado, só havia sobrado apenas a cápsula,

onde toda a energia daquele anjo estava guardada.

Muitas vezes, Katherine se perguntava como a energia de um anjo,

que era tão bom, poderia fazer tão bem a ela. A essa questão apenas o

ancião tinha a resposta, mas ela nunca teve coragem para perguntar.

Depois de matar o anjo e se certificar de que ninguém mais

apareceria, ela resolveu chamar a atenção de Kelly, mostrando seu corpo

para a garota.

— Preciso fazer isso rápido, antes que outros anjos venham em

bando. Assim, não tenho chance com nenhum deles, graças à luz do sol

que me deixa mais fraca.

Vendo que havia champanhe na mesa, ela decidiu acordar a loira de

uma forma que a deixasse muito irritada. Pegou uma taça e jogou no

cabelo de Kelly que, imediatamente, acordou furiosa.

— Ei, o que você pensa que está... — Ao ver a ruiva, a garota

interrompeu a sua fala dizendo: — Quem é você? O que você está

fazendo na minha casa?

— Eu quero saber onde ela está? — disse Katherine, se referindo a

Natalie.

— Eu quero você fora na minha casa agora, senão eu vou chamar

os...

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Em um rápido movimento, Katherine pegou Kelly pela boca,

segurando-a pelo maxilar. Como a ruiva era um demônio, sua força era

imensa, e levantar Kelly não exigia muito esforço.

— Onde aquela sua amiga nojenta está? — perguntou ela com o

rosto bem próximo de Kelly. — Vamos, me diga. — Katherine jogou a

loira um pouco longe, e Kelly bateu suas costas no chão. — E sem gritar,

porque senão eu acabo com a sua vida bem rápido.

— O que você quer da Natalie? — perguntou Kelly, gemendo de dor.

— O que eu quero dela não lhe interessa. — Katherine foi se

aproximando da loira. — Carsten está sofrendo por conta dela, e ela vai

me pagar bem caro por isso.

Kelly não sabia de quem ela estava falando, e naquele momento não

tinha forças para lembrar-se das coisas que Natalie disse a ela.

— Vamos, garota, não tenho todo o tempo do mundo, logo aqueles

anjos imundos estarão aqui.

Kelly não acreditava que estava ouvindo aquilo. As coisas que

Natalie tinha contado a ela antes pareciam besteira, mas agora, com

essa garota na sua frente, faziam todo o sentido.

— Então é por isso que você está atrás da Natalie.

— Pelo horário eu já sei onde ela vai estar.

Antes que Katherine fosse atrás de Natalie, sem pensar na sua ação,

Kelly se levantou com as forças que lhe restavam e tentou atacar

Katherine. Apenas um tirou foi ouvido por todos, já que agora até mesmo

a arma de Katherine emitia som que pudesse ser ouvido por todos.

Dalton acordou assustado e foi correndo para a piscina. Ao ver sua

namorada no chão, toda ensanguentada, desesperou-se e gritou para os

funcionários dela:

— Chamem uma ambulância, rápido.

Não demorou muito para que a ambulância chegasse, e, junto com

ela, Kyle e Paul vieram correndo para saber o que havia acontecido.

— Eu escutei o tiro e, quando cheguei, ela estava no chão — disse

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Dalton chorando e abraçando o irmão. — Ela não pode morrer, Kyle, não

deixa ela morrer.

— Fica calmo, irmão, ela vai ficar bem. Eles já estão levando-a para

o hospital.

E assim Kelly foi levada pela ambulância. Os rapazes seguiram atrás,

no carro de Kyle. Enquanto isso, Dalton ligou para o celular do prefeito, a

fim de avisar o que tinha acontecido.

******

Natalie foi até o hospital assim que ficou sabendo da notícia.

Jonathan a liberou, vendo que o movimento do bar estava tranquilo

naquele dia. Nada ela podia fazer, apenas esperar com os meninos na

sala. Algumas horas depois, o prefeito chegou à sala de espera,

perguntando sobre a filha. Natalie, que estava mais calma, resolveu falar

com ele.

— Natalie, o que aconteceu com ela? — perguntou o senhor

Golpher.

— Nós não sabemos. Eu já estava no trabalho, e apenas o Dalton

estava lá quando ouviu o tiro e encontrou ela no chão.

— Meu bebê. Ela não pode me deixar, já perdi minha esposa.

O homem parecia chorar como criança, e Natalie o abraçou tentando

confortá-lo. Por se tratar da amiga, mesmo querendo ser forte, ela

começou a chorar também.

— Não se preocupe, ela é muito forte, vai dar tudo certo — disse

Natalie aos prantos.

O médico que estava atendendo Kelly chegou à sala e disse:

— Prefeito, que bom que você já chegou.

— Como ela está, doutor?

— No momento, ela se encontra sedada. Tivemos de fazer um

procedimento para a retirada da bala, que felizmente não atingiu nenhum

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órgão. Mas agora ela precisa se recuperar. Amanhã, provavelmente, ela

irá para o quarto, se não tiver nenhuma complicação durante a noite. —

O médico explicou tudo e complementou: — Ela é uma garota de sorte.

— Sim, ela é — disse o prefeito.

— Agora, uma pergunta: onde ela estava quando aquilo aconteceu?

— indagou o médico.

— Em casa, por quê? — respondeu Golpher.

— Em todos esses anos de trabalho, eu nuca vi um projétil daquela

forma, não sabemos nem identificar de que tipo de arma veio aquele tiro.

Natalie, ouvindo tais palavras, imaginou imediatamente que aquilo

poderia ter sido feito por alguma coisa que não era humana. Depois

daquela mensagem sobre seus amigos, a garota pensou que poderia

realmente estar acontecendo o que ela temia e, na mesma hora, o rosto

de Carsten veio à sua cabeça, fazendo-a pensar que ele teria sido o

culpado.

Natalie ligou para sua mãe para contar o que tinha acontecido, e

disse que ficaria no hospital esperando Kelly acordar. O prefeito, que não

podia fazer nada no momento, decidiu ir para casa e averiguar o que

aconteceu, e falou para Natalie também ir, mas a garota disse que não

sairia dali. Dalton também ficou no hospital, enquanto Kyle e Paul foram

para casa, mas pediram para ser avisados de qualquer notícia.

Durante a noite, Natalie não conseguiu dormir. Por diversas vezes,

foi até a máquina de café para se manter acordada. Dalton estava

dormindo, sentado em uma cadeira. E a noite mais longa da vida dela foi

passando aos poucos.

Quando a manhã chegou, o médico veio avisá-los de que Kelly iria

para o quarto. Natalie ligou para o senhor Golpher e para os meninos,

que logo vieram para o hospital. Assim que as visitas foram liberadas,

Dalton e o prefeito foram os primeiros a entrar. Logo depois, Natalie

pediu para que Kyle e Paul entrassem também. Ela queria ficar sozinha

com a amiga por alguns instantes, para ter a certeza do que havia

acontecido.

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Assim que foi a vez de Natalie, ela entrou no quarto e Kelly começou

a chorar.

— Meu Deus, Kelly, o que fizeram com você? — Natalie abraçou a

amiga com cuidado, com medo de encostar em algum dos curativos.

— Me perdoa — disse Kelly chorando. — Eu não acreditei em você.

Natalie percebeu do que a amiga estava falando, e então teve a

certeza de que não era um humano que tinha feito aquilo com ela.

— Foi ele, não foi? O cara de quem eu te falei por diversas vezes —

perguntou Natalie sobre Carsten.

— Não. Era uma mulher de cabelos vermelhos. Ela era muito forte,

diferente de qualquer outra mulher, e falou para mim algo a respeito de

um anjo.

— Sim, Kelly. Como eu tentei te avisar, eles existem, e eu posso vê-

los. Como, não me pergunte.

— Mas o que ela é? — perguntou Kelly. — Algum tipo de demônio?

— Eu não sei o que eles são. Mas não acho que eles sejam

demônios, eles são bonitos. — Natalie olhou para a amiga e disse: —

Está preparada para escutar tudo agora, e acreditar no que eu disser,

sem me achar uma louca?

— Estou sim, acredito em tudo o que você disser. Mas acho que vou

ficar louca também.

Natalie começou a contar tudo para a amiga, desde o dia do posto,

onde ela vira Carsten e Katherine, até a última vez em que se encontrou

com o rapaz. Falou sobre quando presenciou anjos matando um homem

de asas negras, e da vez que viu o rapaz de cabelos negros tentando

matar um anjo.

— Ela estava lá à sua procura. Disse que queria fazer você sofrer da

mesma forma que um cara estava sofrendo — explicou Kelly.

— Depois da última vez em que nos vimos, ele não voltou a

aparecer. Será que era dele que ela estava falando?

— Me lembro de que ela disse que o nome dele era Carsten — falou

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Kelly.

— Então, esse é o nome dele.

— Monstrinha, você tem que me prometer que vai ficar longe dele.

Eles são cruéis. Se fizeram isso comigo, imagina o que pretendem fazer

com você.

— Eu sei disso, e o que aconteceu com você foi culpa minha. Se ela

não estivesse atrás de mim, isso não teria acontecido.

— Não fique se culpando, só me prometa que não vai se envolver

com ele — pediu Kelly.

— Tudo bem, eu prometo.

As duas continuaram conversando por um bom tempo, até que

Natalie resolveu ir para casa. Precisava dormir um pouco, pois teria de

trabalhar naquela noite. Dalton ficou com Kelly no quarto até que o

prefeito fosse resolver alguns problemas; Logo, o senhor Golpher voltaria

para ficar com a filha.

Apesar da dor de ver a amiga daquela forma, a garota tinha a certeza

de que agora alguém acreditaria em tudo que acontecesse, e esse

alguém não poderia ser melhor do que sua amiga mais querida, Kelly.

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Capítulo 23

SONHOS. Eram o que Natalie não parava de ter, desde que havia

chegado em casa e conseguido pegar no sono. Muitos deles eram bons,

já que sua cabeça parecia aliviada, graças à conversa com Kelly.

O único detalhe que Natalie achou melhor não contar para a amiga

ainda era sobre a conversa com os mortos, era muita informação para

alguém que estava acamada.

Depois de um sono profundo, Natalie acordou e logo foi para a

cozinha tomar seu café da manhã. Assim que pegou um copo de suco na

geladeira, escutou um barulho vindo do andar de cima. Como ela estava

sozinha, ficou com medo, mas mesmo assim, ela resolveu investigar.

Depois do que acontecera com Kelly, a garota estava com medo de

um ataque dos mesmo que a machucaram.

A cada passo, o barulho parecia maior, dando a impressão de que

alguém batia com força no chão. Natalie estava tensa, suas mãos

estavam frias, como se o medo estivesse envolvendo seu corpo todo. Ao

ver a porta do seu quarto encostada, notou que as pancadas vinham

exatamente de lá.

Seus passos eram leves para que não pudesse ser ouvida. Chegou

próximo da porta, colocou a mão na maçaneta, mas não sabia se teria a

coragem necessária para abri-la. De repente, ouviu o gemido de alguém

que parecia sentir dor. Sem se dar conta do perigo que estava correndo,

Natalie abriu a porta rapidamente e se surpreendeu com o que viu.

Carsten estava no chão do quarto dela. Ele se debatia de dor, sua

pele estava toda queimada e suas lindas asas negras, destruídas.

Algumas correntes ainda estavam penduradas em seu corpo, fazendo-o

sentir mais dor. Sem pensar em nada, Natalie foi correndo na direção do

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rapaz.

— Fica aí – disse Carsten gemendo. — Essas correntes podem te

machucar.

— Mas eu preciso fazer alguma coisa. Deixa eu te ajudar.

— Você não tem como me ajudar. — Carsten rolou de um lado para

o outro. — Mas não é culpa sua, a culpa foi toda minha.

Natalie tentou tocá-lo, mas Carsten a evitou.

— Não tente me tocar. Você vai se queimar, sua tola.

— Carsten, você está assim por minha causa, eu sei disso. — Natalie

podia ver naqueles olhos negros o sofrimento.

— Eu já te disse, a culpa não é sua. Se existe algum culpado aqui,

sou eu. — Carsten tentou se levantar, mas quanto mais esforço ele fazia,

maior era a dor que sentia. — Eu estou apenas merecendo meu castigo.

— Mas por que você está sendo castigado? Me diga! — implorou

Natalie desesperada.

— Eu estou assim... — Sua fala era interrompida pela fumaça que

saía de dentro do seu corpo em chamas. — Eu estou assim por não

conseguir ficar longe de você.

Natalie ficou espantada com aquilo, mas não pôde fazer nada.

Apenas conseguiu ver aquele rapaz, sofrendo seus últimos momentos de

vida. De repente, o corpo de Carsten começou a se incendiar. O fogo

vinha de dentro, e cada pedaço daquele belo rapaz se tornava cinza. À

medida que ele ia desaparecendo, as lágrimas no rosto de Natalie caíam,

e tudo se tornou puro pó acinzentado.

Natalie se ajoelhou no chão, a garota tinha certeza dos seus

sentimentos. Ela sabia que, por mais que tentasse controlar o que estava

sentindo, aquele rapaz despertava algo diferente, algo que ela nunca

tinha sentido por outra pessoa, e que naquele momento se misturava

com a dor e tristeza consumindo seu coração.

Enquanto as lágrimas corriam no seu rosto, ela não tinha forças para

erguer a cabeça. Parecia que todas as suas forças haviam se esvaído.

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Porém todo aquele sofrimento foi interrompido quando Katherine

apareceu por trás dela.

— Está feliz pelo que aconteceu? — perguntou a ruiva

— O que você está fazendo aqui? — Natalie parecia estar muito

irritada por ver que Katherine estava no quarto dela. — Foi você quem

machucou a Kelly.

— A culpada por ele estar morto é você — Katherine ignorava a

garota.

Katherine caminhou lentamente até Natalie e a ergueu pelo pescoço.

— O que você acha garota, que ele estava te amando? — a ruiva riu

alto. — Assim como eu, ele era um demônio, e demônios não amam.

Katherine segurava uma faca negra e, em um rápido movimento,

atingiu a garganta de Natalie, que começou a sangrar lentamente. O

sangue escorreu pelo seu corpo, até que ele ficasse vermelho por inteiro.

Katherine estava contente por ver aquela pobre garota morrer na sua

frente.

— Pelo visto, você não era mais que uma humana. — Katherine se

referia à forma com que Natalie fora morta. — Eu só não entendo como

alguém como você pôde fazer o que fez com o Carsten.

Essas palavras fizeram Natalie acordar de um terrível pesadelo.

Depois de tantos sonhos bons, sonhar com a morte daquele rapaz e com

a sua própria morte não foi algo agradável. E, embora não soubesse

ainda o que ele era, aquele pesadelo a fazia realmente pensar se o

garoto poderia ser um demônio.

******

Dalton tinha acabado de sair do hospital, onde visitara Kelly. Seus

olhos pareciam conter muita fúria. Era quase fim da tarde, e ele não

pensava em outra coisa, a não ser descobrir quem era o culpado do

atentado contra a vida de sua namorada. Ele não sabia onde começar a

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procurar. Foi então que decidiu voltar até a casa dela.

Assim que chegou lá, viu que depois da análise da perícia, o local

estava limpo. A casa estava fechada, apenas o segurança rondava o

local. Este, como já conhecia Dalton, deixou que o rapaz entrasse com

uma desculpa qualquer.

Dalton não sabia o que fazer, nem ao menos o que ele estava

fazendo lá. Só pensava em vingança. Quando sua fúria chegou ao limite

do seu corpo e ele gritou, o segurança apareceu perguntando se estava

tudo bem. O rapaz ficou um pouco encabulado, mas disse que sim.

Um pouco longe dali, ao lado de Larxen, Katherine conversava

sozinha com o animal, como se estivesse mantendo um diálogo com ele:

— Parece que aquela menina tem mais sorte do que pensávamos. —

Disse a ruiva se referindo a Kelly. — Mas a hora dela está chegando.

Quando menos ela esperar, estará morta.

Katherine sentiu uma forte energia vindo de algum lado, uma fúria

que ela podia sentir a quilômetros.

— Parece que tem alguém precisando da nossa ajuda, Larxen. — A

ruiva passou a mão naquela pantera, acariciando sua cabeça. — Vamos

ver quem será.

Assim que chegou até o local do dia anterior, viu que o namorado da

garota, parecia não conter sua raiva, ela então percebeu do eu se

tratava.

— Larxen, parece que as coisas acontecem por acaso, esse é o

namoradinho da garota de ontem — Katherine pareceu pensar em algo.

— Já que ela conseguiu sobreviver, vamos matá-la de outra forma,

acabando com os sentimentos dela.

O animal então apareceu diante de Dalton. Os olhos do rapaz

pareciam não acreditar no que estavam vendo. Aqueles dentes afiados o

deixaram com muito medo, e ele sabia que se corresse seria pior.

— Bom apetite. — A ruiva se despediu do animal e saiu caminhando

sem que o rapaz a visse.

À medida que Larxen se aproximava, o garoto se afastava

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lentamente para não realizar nenhum movimento brusco. Pensou em

pedir ajuda do segurança, mas ficou com receio de ser atacado.

Larxen, por sua vez, o olhava com sede de sangue, ele podia

estraçalhar aquele rapaz em poucos segundos.

Com um movimento rápido das patas, Larxen atacou Dalton no

braço, ferindo o rapaz, que caiu, colocando logo sua mão por cima do

ferimento. Porém, antes que pudesse se levantar, foi novamente atacado

por Larxen, que ficou em cima dele, com seu rosto negro bem próximo ao

seu pescoço. Quando o animal se preparava para dar uma mordida

certeira, foi impedido por um anjo que o jogou longe.

Dalton, com seu braço machucado, viu tudo aquilo e acabou

perdendo a consciência, desmaiando em seguida.

O anjo encarava Larxen como se não estivesse com medo, mas

parecia não estar sozinho. Serah o acompanhava. Como seus poderes

estavam selados e, com a força que tinha, não podia ajudá-lo, ficou do

lado de fora. Então, mais do que depressa, Serah enviou um chamado a

outro anjo, e em alguns segundos ele estava lá auxiliando o rapaz.

Larxen era um animal muito esperto, e sabia que àquela hora sua

força ainda não era a mais forte, pois a noite estava apenas começando.

Como tinha a certeza de que outros anjos apareceriam em seguida,

decidiu partir, fugindo dos dois.

Assim que conseguiu entrar e despistar o segurança, Serah olhava o

rapaz caído no chão e pensava no que fazer. Foi então que, mesmo com

sua habilidade reduzida, ela colocou as suas mãos no braço dele,

curando aquela ferida em pouco tempo. O anjo que a acompanhava

perguntou o que ela faria com as lembranças dele.

— Você sabe que não temos habilidade para apagar a memória dele,

mas curando a ferida provavelmente achará que foi um sonho. — Serah

respondeu e terminou seu trabalho. O braço dele estava curado. —

Agora vamos, me ajude a colocar ele aqui na cadeira. Reik precisa saber

que as coisas estão ficando complicadas.

O anjo, que estava sem camiseta, abriu suas asas e voou pelo céu.

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Já Serah saiu andando, e quando o segurança não estava à vista, saiu

da casa de Kelly, pegou sua moto e foi em direção ao Avalon.

******

Katherine estava na sala do ancião à espera dele, pois teria de dar

satisfações sobre o trabalho ordenado por ele.

Depois da última conversa, ela sabia que não podia enganá-lo, já

que ele sabia de tudo que estava acontecendo. Apesar de não ser uma

humana, Katherine tinha alguns sentimentos próximos aos dos mortais,

como o medo. Era exatamente isso que ela sentia quando se lembrava

de que Natalie ainda estava viva.

Assim que o velho entrou, ela ficou mais nervosa e foi logo falando o

que tinha acontecido:

— Aconteceu um problema. Ela não estava no local, um anjo veio

ajudar a amiga dela e...

— Silêncio, Katherine — interrompeu o ancião. — Quer dizer que a

garota ainda está viva?

— Infelizmente sim, mas eu prometo que eu vou...

— Eu disse para você calar a sua boca. — O tom de voz do velho

estava alterado. — Se você não conseguiu completar uma missão tão

simples, como pretende completar outra de nível elevado?

Katherine preferiu ficar em silêncio para não ter sua atenção

chamada novamente. Mas lembrou-se do que havia acontecido e

resolveu falar:

— Senhor. — Sua voz era tremula. Ela não tinha certeza se o que

havia feito poderia provocar algo inconsequente.

— Pergunte.

— Com a arma que eu utilizei, consegui matar um anjo, mas eu

acertei outra coisa. — Katherine se referia ao tiro que ela havia dado em

Kelly.

— Em que, exatamente, você acertou, Katherine? — Depois da

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pergunta do ancião, ela não tinha mais certeza de que ele observava

tudo, ou fingia não saber.

Nesse momento, Larxen apareceu dentro da sala, interrompendo o

assunto, que acabou sendo esquecido logo depois. O animal parecia

agitado, e andava de um lado para o outro.

— Meu querido Larxen, o que aconteceu? — perguntou o ancião.

O animal olhou para o velho, como se quisesse falar alguma coisa.

Seus olhos transmitiam raiva, e sua respiração estava mais forte.

— Parece que você continua fazendo coisas que não são ordenadas,

Katherine.

— Mas eu faço isso para me vingar daquela menina.

— Eu sinto sua raiva, e sinto que você também não deve se

preocupar mais.

A ruiva ficou assustada com aquele comentário, e não sabia se ele

se referia a algo bom ou ruim. Mesmo com medo, ela decidiu ir adiante

com o assunto:

— O que você quer dizer?

— Quero dizer que, a essa altura, Carsten já deve estar consciente

das coisas que fez, e a garota não será mais nossa preocupação. — O

velho se virou e partiu para a escuridão, onde ela não poderia mais vê-lo.

— Portanto, deveremos retomar as missões em breve. Até lá, você e

Larxen devem agir juntos.

Depois que o ancião falou de Carsten, Katherine ficou curiosa para

saber como o rapaz estava.

— Eu posso vê-lo? — perguntou a ruiva.

— Você tem apenas dez minutos para ficar lá, seu corpo não vai

aguentar mais que isso. — O velho desapareceu na escuridão, e nada

mais pôde ser ouvido.

Katherine aproveitou a chance de ver Carsten e foi direto para

Mantros, onde o rapaz permanecia acorrentado.

Assim que a ruiva chegou, viu a situação do seu colega de caça. Ele

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estava todo ferido, e parecia morto. Seu corpo não se mexia e sua pele

estava completamente destruída.

Alguns segundos se passaram, e a pele dele começou a voltar ao

normal, como se estivesse se curando sozinha, para que logo depois

começasse a borbulhar novamente. Carsten não gemia mais de dor, pois

parecia que já havia se acostumado a sentir aquilo.

Katherine estava preocupada com ele, chegou a se aproximar do

rapaz, mas sua pele começou a arder também. Mesmo sentindo muita

dor, ela tentou se comunicar com ele:

— Carsten, você pode me ouvir?

O rapaz não esboçou nenhuma reação, continuando na mesma

posição em que estava.

— Eu sei que errei em ter falado com o ancião. — Katherine

continuava a conversar sem obter nenhuma resposta. — Você me

perdoa, não é?

— Katherine, — disse ele com uma voz totalmente fraca — você não

entende nada mesmo, não é?

— Você está bem? — Ela parecia preocupada, e ao saber que ele

estava acordado, animou-se em chegar perto dele.

— Eu pareço bem para você? — Ele levantou a cabeça e, com o

rosto todo queimado, olhou para a garota. — Se eu estou aqui, é porque

eu mereço.

— Então quer dizer que você sabe que errou, e não vai mais

procurar aquela...

— É melhor que você saia daqui, e não fale mais nada — o garoto

interrompeu a ruiva. — Não existe ninguém mais importante do que o

motivo da minha existência.

— Motivo da sua existência? — perguntou ela, sem saber do que ele

estava falando.

— Sim, o motivo da nossa existência, Katherine, a caça. — Carsten

dizia aquelas palavras com toda a frieza que ele podia ter.

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Parecia que o castigo estava realmente funcionando. Por isso o

ancião parecia tão tranquilo ao conversar com Katherine.

— Eu não vejo a hora de você e o Victor voltarem, assim poderemos

ser o que éramos antes.

— É melhor que você saia daqui. O único que merece esse castigo

sou eu, e logo você estará morta.

Katherine ouviu o conselho de Carsten e saiu de Mantros. Ela já

estava satisfeita de ter ouvido o que ouviu, e logo mais, quando a

escuridão voltasse à Terra, ela sairia com Larxen para caçar.

******

Natalie estava vendo televisão após o almoço, quando teve a ideia

de entrar um pouco no computador, coisa de que não gostava muito,

apesar da idade e de como tudo era voltado para tecnologia.

Quando ligou o computador, resolveu entrar em uma rede social para

ver quem estava on-line. Fazia muito tempo que ela não acessava essa

página, e algumas pessoas estavam conectadas (colegas do tempo da

escola, e outros da infância, que fazia muito tempo ela não via).

Paul a chamou e os dois teclaram sobre assuntos bobos, do

cotidiano, e logo ela foi enjoando de ficar na frente do computador. Vendo

que a garota não estava nem um pouco empolgada com o assunto, Paul

tentou uma investida um pouco diferente, chamando-a para sair com ele,

depois do trabalho.

Apesar de ser tarde, havia duas lanchonetes que ficavam abertas

durante a madrugada na cidade. Seus frequentadores eram as pessoas

que saíam de bares e baladas querendo comer alguma coisa.

A princípio, Natalie não gostou muito da ideia, pois ela imaginava

qual seria a intenção do rapaz. Mas, vendo que nos últimos encontros ela

não tinha sido muito legal com ele, aceitou.

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Capítulo 24

CULPA era o que Natalie estava sentindo antes de sair do trabalho.

Assim que as horas passavam, ela sabia que teria de encontrar o Paul, e

com toda a certeza passaria por mais alguns momentos constrangedores

na frente do menino, que era apaixonado por ela.

Aquela noite no bar havia sido menos cansativa que as demais para

todos. O movimento não fora dos melhores, porque estava chovendo, o

que desanimava um pouco as pessoas a sair de casa.

Apesar da chuva forte, Paul não desistiu de buscar Natalie no

trabalho. Qualquer outra pessoa pensaria duas vezes em continuar

tentando algo com ela, mas o rapaz gostava de Natalie desde os tempos

da escola.

Natalie nunca foi de dar bola para nenhum garoto na escola, ou em

qualquer outro lugar. Quando os meninos enchiam muito, ela logo se

irritava. Com Paul era diferente: por mais que o garoto insistia, ela o via

como um amigo. Então, para não se irritar, ainda mais por ele ser do

mesmo grupo de amigos dela, ela preferia, indiretamente, fazê-lo

perceber que não queria nada além de amizade.

Estava quase na hora de sair quando Natalie recebeu uma

mensagem dele, dizendo que já estava do lado de fora do bar esperando

por ela. Kelly também mandou uma mensagem tirando sarro da amiga, já

sabendo do encontro com Paul. Provavelmente, o rapaz deveria ter

comentado algo com Dalton, que contou para a namorada. Coisas de

amigo.

Assim que se despediu de todos, Natalie foi até o carro de Paul,

acompanhada por J, que a levou de guarda-chuva. Dentro do carro, o

rapaz cumprimentou a moça com um beijo no rosto e perguntou:

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— Aonde você prefere ir?

— Como nessa hora só temos duas opções, deixo você escolher.

— Então, vamos ao Parkers.

O rapaz seguiu até a lanchonete, que não ficava muito longe do bar.

Localizava-se em uma rua de Polsher, cheia de lojas e próximo a uma

casa noturna, frequentada por muitos jovens na cidade. Por isso o local

estava sempre cheio de gente durante a madrugada.

— Você já veio aqui? — perguntou Paul sobre a casa noturna.

— Não, até pouco tempo atrás eu não saia muito de casa, lembra?

— Bom, eu também não. — Não dava para saber se Paul falava a

verdade, ou se estava fazendo tipo só para encantar Natalie. Ele era um

rapaz que gostava muito de sair, às vezes com Dalton, ou com outros

amigos.

Quando eles chegaram ao Parkers, tudo estava bem tranquilo. O

rapaz escolheu a mesa, preferindo uma mais ao canto, e Natalie apenas

o acompanhou. Logo que sentaram, uma garçonete veio recolher os

pedidos. A garota preferiu uma água, não queria mais bebidas naquela

noite, Nick inventou uma bebida nova e ela acabara experimentando.

Paul ficou na cerveja.

— Finalmente você resolveu sair comigo, não é? — disse o rapaz,

enquanto esperava o pedido.

— Mas eu sempre saio com você, Paul.

— Comigo, com a Kelly, o Dalton, sempre tem alguém. Agora, só

comigo não aconteceu nenhuma vez.

— Eu também não sou muito de sair, desde a época da escola,

lembra? — Natalie tentou puxar um assunto diferente, com os

intermináveis assuntos da escola, que rendiam muito papo para a noite.

— Claro que eu me lembro. Você era a mais bonita da escola, e não

dava bola para ninguém.

— Claro que não. Haviam muitas garotas bem mais bonitas que eu.

— Natalie provavelmente se referia às garotas que adoravam se maquiar.

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— Além do mais, elas davam bola para os meninos, e era disso que

gostavam muito.

— Mas todos queriam você.

Natalie não se sentia à vontade em falar sobre essas coisas, pois

ficava constrangida. Por sorte a garçonete chegou com as bebidas,

evitando o primeiro momento constrangedor da noite.

— Você tem falando com a Kelly? — perguntou Paul.

— Pelo telefone ou por mensagem. Os dias estão bastante corridos.

— Natalie, na verdade, preferia deixar a amiga descansar, e evitava ir até

o hospital, porque Kelly não iria parar de perguntar coisas sobre anjos, às

quais Natalie não tinha respostas. — Dalton está com ela, mas essa

semana vou lhe fazer uma visita.

— Ainda estou assustado com tudo o que anda acontecendo nesta

cidade — disse Paul. — Minha mãe, esses dias, me tratou feito criança e

não queria me deixar sair, com medo de alguma coisa acontecer comigo.

— Ela só estava preocupada com você, apenas isso.

— Pois é. Para quem já sofreu um ataque, ela tinha de se preocupar

mesmo — Paul se referia à mãe.

— Por sorte, nenhum de nós sofreu algo mais grave.

Os dois continuaram conversando a respeito da cidade e dos tempos

antigos da escola. A noite continuou e o relógio indicava a Natalie que

estava na hora de ir para casa.

— Podemos ir, Paul? Já está tarde. Estou realmente cansada.

— Claro, sem problemas. Vou até o caixa pagar a conta e já te levo

para casa.

— Toma — disse Natalie, entregando dinheiro para ajudar com a

conta.

— De maneira alguma. Eu te convidei e você não vai pagar nada.

E assim aconteceu. O rapaz pagou a conta, foi até a mesa, e ambos

saíram em direção ao carro. A noite parecia terminar de uma maneira

agradável, sem nenhum constrangimento. Ao chegar em frente à casa de

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Natalie, o rapaz desligou o carro e disse:

— Bem, aqui estamos, né?

— Sim, aqui estamos. Muito obrigada. Boa noite, Paul. — Quando

Natalie ia descer do carro, Paul segurou a mão dela.

— Natalie, por que você é tão dura comigo?

— Paul, eu já te disse. Considero você como um amigo, e nada mais,

além disso.

— Mas, Natalie, você não me dá uma chance. Aliás, não nos dá uma

chance.

Natalie ficou pensativa, porque realmente o problema não era com

Paul, e sim com ela, que não conseguia se envolver com nenhum cara.

— A questão, Paul, é que eu não quero me envolver com ninguém

agora. —– Naquele momento, a imagem de Carsten veio à cabeça dela,

e nem mesmo ela entendeu o porquê. — Agora eu preciso ir.

Paul não soltou a mão de Natalie, e tentou dar um beijo na garota,

que desviou o rosto, irritada.

— Paul, não. Eu já disse que não vai acontecer. Desculpe-me. —

Natalie puxou sua mão e desceu do carro na chuva, que naquele

momento estava bem forte, e correu para casa. Quando entrou, ela foi

até o balcão da cozinha e ficou parada pensando. Para ela, Paul era um

cara legal, mas não conseguia ver nele mais que um amigo.

Do lado de fora, Paul ainda não havia ligado o carro, pensando na

besteira que tinha acabado de fazer. Para o rapaz aquele tinha sido o fim,

e Natalie não daria mais bola para ele. Apesar de ele ser bonito e poder

ter várias garotas a seus pés, ele queria Natalie, e sabia que não iria

parar de tentar. Mas havia passado dos limites, e depois disso não seria

mais fácil conquistá-la.

Ele ligou o carro e seguiu sem direção. Como a chuva havia

aumentado relativamente, ele foi devagar, e em vez de ir para casa,

seguiu até o campo de futebol da escola, um lugar que para ele era

calmo, onde poderia relaxar tranquilamente e pensar no que tinha

acabado de fazer.

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Quando lá chegou, desligou o carro e sentiu vontade de descer

naquela chuva, como se pudesse lavar sua alma. Sem pensar muito, foi

exatamente o que ele fez. Em poucos segundos, seu corpo estava

totalmente encharcado.

— Como eu sou burro — gritava o rapaz angustiado, no meio do

nada.

Todo esse sentimento ruim atraiu a presença de demônios, que,

como eram invisíveis aos olhos dos humanos, não foram visto por Paul.

Assim que o rapaz se acalmou um pouco e encostou-se ao carro, os

demônios se aproximaram dele, mas antes que pudessem tocar o rapaz,

foram interrompidos por Katherine:

— Vocês já podem ir, recebi a missão para cuidar desse

pessoalmente.

Os demônios sabiam que Katherine era uma das que recebiam

ordens diretas do ancião, e resolveram não contestar, apenas saíram de

onde o rapaz estava. Katherine aproximou-se de Paul. Quando menos

ele esperava, ela apareceu para o garoto e disse:

— Não fique triste, ela não vale a pena. — Os demônios sabiam

sempre os motivos pelos quais as pessoas sentiam raiva, angústia e

outros sentimentos ruins. — Você merece uma mulher de verdade.

Paul, que estava meio atordoado com a situação, não entendeu

muito bem o que estava acontecendo. Apenas olhou para Katherine, que

era uma mulher muito bonita, e ficou em silêncio.

— Você está se culpando, não é? — perguntou a ruiva. — Talvez, eu

possa te ajudar.

— Do que você está falando?

— Vem aqui.

Assim que Paul se aproximou, Katherine aproximou seus lábios aos

de Paul e o beijou lentamente, sentindo cada movimento e contato da

boca.

Em seguida, ela se soltou de Paul e limpou a sua boca, dizendo:

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— Que nojento! Não consigo entender como alguém consegue

querer beijar uma coisa dessas.

Paul não se movia, parecia uma estátua parada na chuva. Seu corpo

começou a tremer, e ele começou a caminhar na direção da escuridão.

Não falava nada, nem mesmo olhava para os lados, apenas para frente.

— Isso mesmo, faça o que você deve fazer. — Katherine olhou para

o rapaz, que seguia em direção a um dos grandes holofotes do campo,

ela não pretendia ir embora até que tudo estivesse feito.

Um anjo chegou para ajudar o rapaz, mas logo foi impedido pela

ruiva que o matou utilizando sua habilidade. Sem nem mesmo tocar na

criatura, ela absorveu toda a energia do corpo dele, inclusive a da

capsula, que caiu vazia do corpo do protetor após a morte.

Por conta do toque da ruiva, Paul se viu na obrigação de se

martirizar, ao ponto de não querer mais viver. Foi assim que, de repente,

já estava em cima de um dos holofotes. Naquele momento, ele tremia

muito e Katherine apenas o olhava de baixo. Quando menos a garota

esperava, o rapaz se jogou de uma altura de quinze metros.

Sem gritar, ou ao menos emitir qualquer tipo de som, o corpo dele se

chocou contra o chão. Como sua cabeça foi a primeira a bater, Paul nem

mesmo agonizou, e morreu no mesmo instante, sem sentir dor.

Katherine se aproximou do corpo do rapaz para se certificar de ter

realizado o trabalho.

— Perfeito.

A ruiva se afastou e foi caminhando para a escuridão, onde criou o

portal roxo, a fim de seguir para o seu repouso.

O corpo de Paul ficou estirado no campo, anjos que chegaram para

ajudar depois da morte do outro anjo, não podiam fazer mais nada.

No outro dia, quando a chuva tinha parado, o zelador da escola

encontrou o rapaz, chamou a polícia, e a notícia de espalhou por Polsher,

deixando a população mais uma vez em choque. Como era domingo, não

haveria aula, facilitando o trabalho dos policiais.

Até aquele momento, Natalie não sabia de nada. Ela ainda dormia, já

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que era domingo e na noite anterior, além de ter tomado muita chuva,

tinha chegado tarde em casa.

O sono de Natalie foi interrompido quando Dorah bateu à sua porta.

A garota acordou assustada, porque geralmente sua mãe a deixava

dormir até que seu sono acabasse, ainda mais em um domingo. A

senhora Zeniek entrou no quarto, dizendo:

— Minha filha, acorde. Tem gente à sua espera na sala, e parece

importante.

— Quem é? — Natalie esfregava as mãos nos olhos, ainda meio

sonolenta.

— O detetive Ramones.

Quando Dorah disse o nome do detetive, Natalie levou um susto,

porque cada vez que esse homem aparecia, alguma coisa de ruim havia

acontecido a alguns de seus amigos. Natalie se levantou da cama e, de

pijama, desceu as escadas, indo ao encontro do detetive, que estava na

sala.

Dorah acompanhou a filha, pois já estava sabendo da notícia, e ficou

com medo da reação de Natalie, já que Paul e ela eram amigos

próximos.

— Senhorita Zeniek, mais uma vez estou aqui para lhe fazer algumas

perguntas.

— Pois não, detetive. Em que eu posso ajudar? — perguntou Natalie,

sem saber do que se tratava a conversa.

— Quando foi a última vez em que esteve com seu amigo Paul? —

Naquele momento, os olhos de Natalie começaram a se encher de

lágrimas. Mesmo sem saber o que tinha acontecido, ela tinha a certeza

de que a vítima da vez era Paul.

— O que aconteceu com ele? — perguntou Natalie, desesperada.

— Calma, senhorita, eu ainda não disse nada. Como sabe que

alguma coisa aconteceu com o rapaz?

— Toda vez em que você vem me visitar, é para contar alguma coisa

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ruim sobre alguém que eu conheço. — Natalie estava chorando, e Dorah

se aproximou da filha, dando-lhe um abraço materno, que era a única

coisa de que ela precisava no momento.

— O senhor Paul foi encontrado morto no campo de futebol da

escola. A princípio, ele cometeu suicídio ontem de madrugada.

— Mas isso não é possível. Eu fui a uma lanchonete com ele ontem à

noite, e quando ele me deixou em casa estava bem. — Natalie se

lembrou do fim da noite, e da situação constrangedora formada por Paul,

mas, ao mesmo tempo, ela sabia que aquilo não era motivo para ele ter

tirado a própria vida.

— Então estamos chegando a alguma lugar. Você novamente foi a

última pessoa a ver o rapaz, antes de ele ser morto, ou melhor, de se

matar.

— O senhor está insinuando alguma coisa, detetive? — perguntou

Dorah. — Porque se estiver, eu sou a testemunha de que a minha filha

esteve ontem à noite aqui em casa, deixada por esse menino, e o que

aconteceu com ele depois não é culpa dela. — Dorah mentia, pois estava

dormindo quando Natalie chegou. Porém, ela sabia que a filha não tinha

nenhuma relação com aquilo.

— Eu não estou insinuando nada, apenas averiguando os fatos. — O

detetive deu um sorriso, e caminhou até a porta. — Bom, se você se

lembrar de mais alguma coisa, senhorita Zeniek, já tem meu telefone.

— Pode deixar — respondeu Natalie, aguardando o detetive sair da

sala. — Eu odeio esse homem — disse Natalie em voz baixa.

— Calma, minha filha. Agora me diga o que aconteceu ontem à noite.

— Dorah queria saber a verdade da boca de Natalie.

— Nada de mais, mãe. O Paul foi me buscar, saímos, comemos e,

quando ele me trouxe para casa, tentou me beijar, e eu o evitei. Apenas

isso. — Natalie tentou pensar em mais alguma coisa, mas realmente era

apenas aquilo que tinha ocorrido.

— Mas isso não foi motivo nenhum para ele ter feito o que fez. —

Dorah deu outro abraço forte na filha. — Não se preocupe, tudo vai ficar

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bem, e se esse rapaz fez alguma coisa, não foi culpa sua.

Arrasada, Natalie ficou pensativa e se lembrou da conversa que teve

com Paul na noite passada, sobre ninguém ter sofrido nada de mais

grave. No momento, o que não saía da cabeça dela era que aquilo não

tinha sido um acidente. Com toda a certeza, foi causado por aqueles que

vinham da escuridão.

Natalie ligou para Dalton. Ambos choraram ao telefone. Ele pediu

para a garota não contar nada sobre a morte de Paul para Kelly, já que

ainda estava em recuperação e precisava de muito repouso. Natalie

pretendia visitar a amiga naquela tarde e seguiu com os planos, ficar em

casa sozinha só seria pior.

******

Dalton aproveitou que Natalie estava no hospital com Kelly e foi para

casa tomar um banho, a fim de que pudesse voltar depois. Quando

chegou em casa, viu que Lily não estava lá, e Kyle estava deitado no seu

quarto.

— Como você está, irmão? — perguntou Kyle do quarto, quando

percebeu que Dalton estava na casa.

— Não muito bem, ainda abalado com a morte do Paul.

— É difícil de acreditar que ele tenha feito isso, não é? — Kyle se

levantou e foi até o irmão, dando nele um abraço bem forte. — Ele está

em um local melhor que nós, você pode ter certeza.

— Dizem que, quando você comete suicídio, vai para o inferno. —

Dalton lembrou-se do que sua avó religiosa dizia quando ele era criança.

— Se você realmente quiser tirar sua própria vida, com certeza, mas

existem casos que não é a sua escolha.

— O que você quer dizer com isso, Kyle?

— Nada não, histórias que a vovó contava. — Kyle bateu sua mão no

ombro de Dalton. — Acho melhor você tomar um banho, está com uma

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cara péssima.

— Pois é, devo voltar para o hospital, deixei a Natalie lá um pouco.

— Fique tranquilo, ela está em boas mãos. — Kyle puxou o irmão

novamente e deu mais um forte abraço, mas daquela vez parecia

diferente. Era como se fosse um abraço de despedida. — Você tem que

cuidar delas, viu?

— Da Kelly e da Natalie?

— Sim, das duas. Elas são muito importantes para você.

— Eu sei disso, irmão. Agora preciso tomar um banho.

Dalton foi até o banheiro tomar seu banho. Enquanto isso, Kyle

estava impaciente dentro do quarto. Segurava o celular nas mãos, como

se estivesse esperando uma ligação muito importante. Ele andava de um

lado para o outro, sempre olhando as horas no visor do celular, e assim

que este tocou, ele atendeu o mais rápido possível:

— Já estava na hora. Por que demorou tanto?

— Estivemos com alguns problemas aqui — dizia uma voz masculina

do outro lado da linha.

— As coisas por aqui estão saindo do controle. Mas ela está bem, só

não sei até quando. E eu preciso voltar o quanto antes.

— Sim, é exatamente por isso que eu estou te ligando.

— Onde você quer que eu espere? — perguntou Kyle.

— No mesmo lugar em que você chegou, está tudo limpo por lá. O

helicóptero estará chegando em quinze minutos.

— Não vou conseguir me despedir do meu irmão, preciso sair

imediatamente.

— A hora está chegando.

— Bem, eu estou indo para lá então. — Kyle conversava ao celular e

ao mesmo tempo arrumava sua mala.

— E quanto a ela, senhor?

— Ele está de olho nela, mas nada vai acontecer. Os anjos também

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estão de olho vinte e quatro horas. — Kyle pegou um papel e uma caneta

e começou a escrever um bilhete para o Dalton. — Bom, estou saindo.

— Ficarei aguardando.

Kyle terminou de escrever o recado. Antes que o irmão saísse do

banho e notasse sua presença, o rapaz colocou o bilhete na cama dele e

saiu.

Assim que Dalton saiu do banho, entrou em seu quarto e viu o

bilhete. Rapidamente, ele correu para o quarto de Kyle, mas o irmão não

estava mais lá. Dalton parecia inconformado, porque no momento em

que mais precisava da companhia do irmão, mais uma vez, ele o tinha

abandonado. O bilhete dizia o seguinte:

PRECISEI VOLTAR PARA A ALDEIA. ERA UMA EMERGÊNCIA, PEGUEI UM

HELICÓPTERO QUE ESTAVA À MINHA ESPERA. DESCULPE-ME TE ABANDONAR

NESTE MOMENTO. PEÇA DESCULPAS AO PAPAI, À MAMÃE E À LILY. AMO

VOCÊS. KYLE.

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Capítulo 25

O RETORNO de Kyle para aldeia era algo que Dalton não entendia,

principalmente em um momento tão ruim para ele. Kelly no hospital, o

amigo morto e o ataque misterioso que ele tinha sofrido. Tudo havia

deixado o rapaz muito mal.

Na segunda de manhã, ele tinha combinado de buscar Natalie para

que ambos fossem ao velório de Paul. Natalie estava preocupada, pois

não sabia o que as pessoas poderiam estar pensando dela, a garota

havia sido a última pessoa a se encontrar com Paul na noite do suicídio.

Quando os dois chegaram ao local, várias pessoas estavam reunidas

do lado de fora. O velório era realizado dentro de uma sala, no próprio

cemitério. De longe Dalton viu os pais de Paul, que não paravam de

chorar, principalmente a mãe dele, o clima era de enorme tristeza.

Um pouco mais afastadas estavam Lily e suas amigas. Quando a

loira viu Natalie de longe, não perdeu a oportunidade de provocar:

— Como ela tem a coragem de vir até aqui depois do que

aconteceu? — disse já sabendo do encontro de Paul na noite anterior. De

qualquer forma, falou aquilo apenas para as amigas, por respeito à

família do garoto.

Natalie apenas trocou olhares com Lily, que fez uma cara de irritação

e ao mesmo tempo um sorriso maldoso.

— Acho que sua irmã deve estar pensando que fui eu quem matou o

Paul — disse Natalie a Dalton.

— Fica tranquila, Natalie, nós sabemos o que realmente aconteceu.

Então não se preocupe.

— Com certeza ele está em um lugar muito melhor do que a gente.

— Você também acredita nisso? — Dalton se referia à conversa que

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teve com Kyle. – Meu irmão me disse que nem sempre as pessoas que

se suicidam vão para o inferno.

— É isso mesmo. — Natalie olhou para o amigo, imaginando mais

uma vez, que Kyle sabia demais sobre esses assuntos. — Por falar no

seu irmão, onde ele está?

— Ele se foi, Natalie. — Os olhos dele se encheram de lágrima

novamente. — Se não bastasse o Paul, meu irmão também partiu.

— Como assim, se foi? — Um gelo tomou conta do corpo de Natalie.

— Ele foi embora para a aldeia sem falar nada para ninguém, apenas

deixou uma carta dizendo que precisava ir urgente.

— Posso te falar uma coisa, Dalton? Você não vai ficar bravo

comigo?

— Claro que não, pode falar.

— Seu irmão é muito misterioso. — Natalie se referia a todas as

coisas que ele tinha contado, e principalmente as relacionadas aos anjos.

— Como é possível que ele tenha ido tão rápido, sem nem ao menos se

despedir.

— Pois é, o Kyle sempre foi um cara misterioso. É meio difícil de

entender o que ele planeja, mas logo ele deve entrar em contato.

— Assim como ele fez todo esse tempo em que esteve fora?

A conversa dos dois foi interrompida quando a mãe de Paul chegou

perto. Ela parecia ser uma senhora bem simples e humilde. Seus cabelos

pretos, com alguns fios grisalhos, estavam amarrados, e seu rosto

apenas transmitia muito sofrimento. Assim como todos que estavam no

local, ela não entendia o que havia acontecido com o filho.

Dalton deu um forte abraço nela, fazendo-a chorar novamente. Ela

sabia o quanto os dois eram grandes amigos.

— Meus sentimentos — disse Dalton, tentando confortá-la.

— Ele se foi, Dalton, meu pequeno se foi. — O sofrimento dela não

podia ser maior, Paul era o único filho do casal. — O que eu vou fazer

sem ele agora?

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Natalie não aguentou segurar, e estava chorando também. Ela se

lembrou do sofrimento de perder o pai e o multiplicou, pois perder um

filho com certeza era muito pior.

— Natalie, você também veio. — Ela abraçou a garota, com lágrimas

nos olhos. — Meu filho gostava muito de você, ele sempre me dizia que

um dia apresentaria a namorada dele para mim, e que estava

conquistando-a aos poucos.

A culpa que Natalie estava sentindo naquele momento se multiplicou

com o depoimento da mulher.

— Seu filho era um ótimo rapaz, ele vai fazer muita falta para todos

nós — disse a garota tentando amenizar o sofrimento de todos.

— É uma pena que vocês não poderão vê-lo pela última vez. — A

mãe de Paul se referia ao caixão, que estava fechado.

— Não se preocupe. Nós queremos guardar as boas lembranças

dele — falou Natalie.

— Guardar aquele sorriso, que só o Paul tinha no rosto —

complementou Dalton.

— Obrigada por vir. Com toda a certeza, Paul deve estar bem feliz

agora.

A mãe do garoto continuou cumprimentando todas as pessoas que

haviam chegado, e chorando muito a morte do filho.

O velório continuou, pessoas iam chegando e saindo, até que o

padre chegou ao local. Assim como em todos os lugares, ele deu a

bênção final para que a alma de Paul pudesse seguir em direção ao

Paraíso. O enterro aconteceu antes do almoço, regado a muita tristeza e

saudade.

Assim que tudo terminou, Dalton e Natalie decidiram ir para casa.

Eles caminhavam por um corredor largo, rodeado por árvores, o que

trazia uma sensação de tranquilidade. Uma leve corrente de vento

passou entre os dois, e Natalie pôde sentir que a alma de Paul estava

partindo dali, e que ele estava feliz.

De alguma forma, ela queria poder se comunicar com ele, mas não

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fazia ideia de como conseguiria, já que, por algumas vezes, também

tentou se comunicar com Shanon e não conseguiu.

— Natalie, eu preciso te perguntar uma coisa. — Dalton interrompeu

o caminho pelo corredor.

— Pode perguntar — disse Natalie, sem saber do que o rapaz estava

falando.

— Você se lembra daquela vez do acidente do posto, quando você

acordou e falava coisas sem sentido, como ter visto um anjo?

— Sim, eu me lembro. — Natalie estava mais confusa agora, já que

não fazia ideia da relação do que acontecera com a pergunta do amigo.

— Você não vai me dizer que viu um anjo também?

— Bom, na verdade eu não sei. Não contei isso para ninguém, nem

mesmo para meu irmão. Quando a Kelly já estava no hospital, eu decidi ir

para a casa dela, procurar algum indício de quem teria feito aquilo com

ela, tenho certeza de que vi um animal negro bem grande me atacando e

me ferindo no braço, depois eu vi um anjo me salvando. Mas logo eu

apaguei.

Ao ouvir aquilo, Natalie ficou totalmente espantada. Ela começou a

relacionar as coisas, principalmente o ataque dos animais em Polsher

nos últimos dias. Mas, para não aumentar mais a história, preferiu utilizar

a mesma tática que usaram com ela quando sofreu o acidente no posto

de gasolina.

— Dalton, acho que isso é loucura da sua cabeça. Você deve ter se

impressionado. — Apesar de saber que tudo era verdade, ela não podia

tentar explicar. Kelly já estava sabendo, e uma pessoa era o suficiente.

— Além do mais, como o ferimento do seu braço poderia desaparecer

assim?

— Você tem razão, acho que estou ficando maluco. Vamos embora.

— Os dois continuaram caminhando.

— Quando eu chegar em casa, vou ligar para a Kelly — disse

Natalie.

— Isso mesmo, preciso ir para casa primeiro. Então, aproveita e

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distrai ela, já que vou demorar um pouco para chegar ao hospital.

Os dois andaram juntos até a saída do cemitério, e foram para casa,

apenas deixando as memórias de Paul naquele local.

Assim que chegou em casa, Natalie imediatamente ligou para Kelly.

Ela precisava contar o que escutou de Dalton.

— Oi, monstrinha. Como foi no velório? — perguntou Kelly.

— O Dalton te contou? — questionou Natalie.

— Sim, e não se preocupe porque não vou ficar brava com você por

ter me escondido isso.

— Foi bem triste. A mãe dele estava arrasada — comentou Natalie.

— O Dalton também está bem mal com isso, quando ele me contou

não parava de chorar.

— Eu sei, eles eram muito amigos. Falando no Dalton, precisamos

conversar uma coisa sobre ele.

— Aconteceu alguma coisa? Ele está bem?

— Está sim, Kelly, daqui a pouco ele está indo para te visitar. —

Natalie deu uma pausa e pensou se realmente deveria falar alguma coisa

para a amiga. — Prometa que não vai perguntar nada para ele.

— Tá bom, eu prometo, mas conta logo.

— Hoje ele me contou umas coisas estranhas. Ele me disse que se

lembra de ter sido atacado por um grande animal negro, e que um anjo

veio salvá-lo.

— O quê? Quer dizer que ele também viu? — perguntou Kelly.

— Possivelmente sim, Kelly, mas eu disse que era apenas a

imaginação dele, e o fiz acreditar que ele estava ficando louco, assim

como vocês fizeram comigo.

— Acho que todos nós estamos ficando loucos — disse Kelly.

— É melhor que fique assim até nós descobrirmos o que realmente

está acontecendo.

— Pode ficar tranquila que eu não vou contar nada. Agora preciso

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desligar, que a enfermeira está aqui com os remédios.

— Tudo bem, amiga, assim que eu puder, vou fazer-lhe uma visita.

— Natalie desligou o telefone e sentou-se na cama.

Natalie ficou pensando em tudo o que estava acontecendo, e em

como as pessoas à sua volta estavam sendo afetadas. Ela também

imaginou onde poderia estar Carsten, que antes aparecia tão

frequentemente na sua vida, e agora havia decidido desaparecer dela

misteriosamente. Mesmo longe dela, as coisas ruins pareciam não ter

fim.

******

Carsten continuava em Mantros, ele sabia por que estava sofrendo, e

grande parte dele estava disposta a voltar a ser o que era antes. Porém

algo em seu íntimo poderia acabar com todos os planos do grande

ancião.

— Parece que você já está completamente recuperado, Carsten.

— Ancião — disse o rapaz, com as poucas forças que restavam.

— Ninguém teria sobrevivido há tantos dias aqui, e é por isso que

você se torna especial para todos nós.

— Eu preciso... sair... daqui.

— Não se preocupe, eu vim para tirá-lo deste lugar. Está mais do que

na hora de você voltar às suas missões.

O ancião levantou um de seus braços e as correntes que prendiam

as grandes asas negras de Carsten se soltaram; ele também pegou o

corpo do rapaz, que estava ajoelhado, visto que não tinha forças para se

levantar.

— Está na hora de mostrar aos anjos quem são os verdadeiros

governantes da Terra.

Aquelas fortes palavras fizeram Carsten olhar para o rosto do ancião,

e este, de alguma forma, parecia estar muito animado com a recuperação

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do rapaz.

— Carsten, em muito pouco tempo o renascimento vai acontecer, e

todos nós precisaremos estar juntos, principalmente você, que tem um

papel tão importante nisso tudo.

O ancião continuou andando lentamente, arrastando Carsten para

fora de Mantros. Ambos chegaram à misteriosa sala escura em que o

ancião ficava. O velho colocou Carsten no chão, onde o rapaz se mexia

muito pouco.

A pele de Carsten, que estava toda ferida, foi se curando aos

poucos. Os braços, as pernas, seu peito, a barriga e por último seu rosto

se curaram totalmente, mas o rapaz ainda estava fraco e não conseguia

se levantar do chão.

O ancião retirou de uma caixa onde ele guardava uma esfera

semelhante a uma cápsula, de cor diferente daquelas que eles

costumavam caçar quando matavam anjos. Esta era bem maior. Ao invés

de ser totalmente branca, a energia dentro dela tinha uma leve coloração

prata; não chegava a brilhar com a luz das velas, mas era possível notar

a diferença na tonalidade.

Daquela esfera, o ancião retirou a energia de que Carsten precisava.

O rapaz nunca havia sentido algo tão forte, uma energia tão poderosa,

como se suas habilidades triplicassem. Seu corpo estava mais veloz do

que o normal, e tudo dentro dele se multiplicou. A energia negra que o

tornava forte e vivo borbulhava por dentro. Porém o rapaz caiu no chão

como se lembrasse de alguma coisa.

— Aconteceu alguma coisa, Carsten? — perguntou o ancião.

— Não, eu estou bem, apenas recebi uma carga muito poderosa

dentro de mim — o rapaz pareceu estar melhor. — Eu preciso ir, não

posso desperdiçar essa energia toda, parado aqui sem fazer nada. Está

na hora de caçar.

— Acalme-se, você perdeu toda a noção do tempo. Ainda temos

algumas horas até que a noite cubra a cidade de Polsher, e finalmente

você possa voltar.

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— Onde está Victor? — perguntou Carsten.

— Ele ainda não acordou do retiro — respondeu o ancião. — Mas

Katherine está por aqui, e ela poderá te acompanhar.

— Eu não quero a companhia dela, Katherine não é o tipo de

companheira para a minha caça de hoje.

— Que assim seja. Se você deseja caçar sozinho, permitirei que faça

isso. Mas quero que você faça algo também. — O ancião surpreendeu

Carsten. Ele estava prestes a receber uma missão direta do governante

do inferno. — Quero que você mate aquela garota. Será a única prova de

que você realmente está mudado.

— Não se preocupe, a missão será concluída — disse Carsten,

sabendo exatamente de quem ele falava e retirando-se da sala onde eles

estavam.

Algumas horas se passaram até que a noite surgisse em Polsher.

Carsten já tinha partido para a Terra, sedento de vontade para caçar.

Naquela noite, ele queria não apenas um anjo, mas vários, para

experimentar toda aquela energia que ele sentia dentro dele.

Na sala escura, o ancião solicitou a presença de Katherine. Assim

que a ruiva chegou, ele apenas ordenou:

— Quero que você siga o Carsten sem deixar que ele a veja. Quero

ter certeza de que o castigo funcionou. Veja se ele realmente vai acabar

com a garota. Mas, repito, não deixe que ele a veja.

— Sim, senhor — disse a ruiva saindo da sala, correndo atrás de

Carsten.

Em Polsher, Carsten sentia a energia de humanos que pretendiam

fazer algo ruim. Ele sabia que se fizesse alguma coisa com eles, logo

vários anjos desceriam para protegê-los, e era nesse momento em que

ele pretendia caçá-los.

Não demorou muito para que ele encontrasse um rapaz aparentando

estar desanimado com sua vida, próximo a outro humano. Carsten

percebeu que o rapaz comprava uma grande quantidade de drogas, e

apenas ouviu a conversa dos dois.

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— Cara, tem certeza de que você quer tudo isso? Vai revender?

— Não. Consumo próprio.

— Isso vai matar você, meu chapa.

— Talvez seja isso que eu queira.

— Bom, se é assim, toma aqui. — O traficante entregou a droga,

pegando a quantia de dinheiro que não era pouca.

Assim que os dois estavam longe um do outro, o rapaz que havia

comprado as drogas foi para um canto. Ele abriu o embrulho, viu toda

aquela quantidade, mas lhe faltava coragem para usar.

— Por que eu fui comprar isso? O que eu estou fazendo comigo? —

questionava-se o rapaz.

— Você está apenas fazendo a coisa certa — disse Carsten,

aparecendo na frente do rapaz. — É melhor, assim você acaba com

todos esses problemas, e não vai mais ter com que se preocupar.

— Mas isso não é certo. Minha mãe e meu irmão mais novo, como

eles vão ficar sem mim?

— Eles ficarão bem, afinal você está sendo o problema para eles,

não é? — Carsten se abaixou na frente do garoto e colocou uma das

mãos em seu ombro. — Acho que agora você entendeu, não é?

— Sim, eu entendi o que você quis dizer. Agora entendo o que devo

fazer.

O garoto, então, pareceu querer usar toda aquela quantidade de

drogas. Carsten afastou-se dele e apenas observou o que ele faria. De

repente, um anjo vindo dos céus soltou um sopro de ar nas mãos do

usuário, impedindo-o de fazer uma besteira daquelas.

— O que você estava fazendo? — perguntou o anjo, que usava uma

calça clara, e estava sem camiseta, com suas grandes asas brancas

abertas.

Quando Carsten observou o anjo, ele imediatamente o reconheceu.

Tratava-se do mesmo que ele tentou matar, no dia em que Natalie o viu.

O anjo que estava na sua frente, pronto para morrer, conseguiu fugir.

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Agora eles se encontravam novamente, e dessa vez Carsten não

pretendia deixá-lo fugir.

— Pelo visto, o destino que vocês tanto falam, te colocou frente a

frente comigo novamente. — Disse Carsten ao anjo.

— Vamos, saia já daqui agora mesmo e pense nas suas ações —

disse o anjo ao rapaz. E virando-se para Carsten anunciou: — Eu não

sou mais aquele anjo fraco que eu era, estou muito mais forte agora.

— Que grande coincidência, eu também. — Carsten sorriu para o

anjo, e em seguida fechou o sorriso. — Mas tenho toda certeza de que

você não vai conseguir nem encostar um dedo em mim. — Carsten olhou

para o céu, mostrando ao anjo que já estava escuro, e que a noite o

deixava mais forte.

— Então você se esconde na noite. Acha mesmo que ela vai te

proteger?

— Eu não preciso de proteção alguma, consigo fazer o que eu quiser

sozinho.

Sem perder muito tempo, Carsten partiu para cima do anjo, e apenas

alguns gemidos podiam ser ouvidos.

Katherine, que observava tudo escondida atrás de um muro, sem

correr o risco de ser vista, só conseguiu ver o anjo em pé. A garota ficou

com medo, pois pensou que ele havia matado Carsten. Mas, após alguns

segundos, notou que o anjo sangrava e despedaçava como vidro.

Carsten aproximou-se do corpo apenas para apanhar a cápsula que

estava jogada no chão. O rapaz estalou o pescoço para se alongar,

percebendo o quão forte estava.

Mais que depressa, Katherine retornou para contar ao ancião que

Carsten finalmente estava de volta e concluindo suas missões, ela nem

mesmo esperou que o rapaz cumprisse sua missão principal, o deixando

sozinho.

Carsten, por sua vez, continuou caminhando pela região. Saltou para

os telhados, onde preferiu andar sem rumo, tentando encontrar outras

vítimas. Porém, inconscientemente, ele se aproximou do bar Avalon.

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Centenas de imagens atormentavam sua cabeça, e ele começou a sentir

algo estranho com relação aos seus sentimentos ao olhar para o lugar.

Como era segunda-feira, o bar não abria. A grande escuridão que o

fazia ser quem era o forçava a ir embora. Então, lembrando-se de tudo

por que havia passado em Mantros, Carsten decidiu deixar o lugar e

partir para a caça.

A noite continuou, e com o passar das horas as ruas se tornaram

frias e quietas. Apenas poucos escutavam os gemidos dos anjos sendo

mortos pela fúria de Carsten.

******

Na manhã seguinte, Dorah havia pedido licença do trabalho e

convidado seus filhos a fim de que pudessem, pela primeira vez,

conhecer a casa nova para onde eles se mudariam, após o fim da

reforma.

Natalie, que não trabalhava de manhã, apenas teve de acordar mais

cedo. Gabriel, que já acordava mais cedo todos os dias, não viu

problema, ainda mais porque faltaria na escola.

Apesar de o garoto estar bem afastado da família, por conta da

conversa que tivera com Katherine, ele deveria continuar fingindo.

Dorah havia comprado a casa em um condomínio fechado. Não era

caríssimo, como onde a maioria dos ricos de Polsher morava, mas

parecia seguro e bem aconchegante. Muitas crianças brincavam na rua e

alguns jovens, em uma quadra que pertencia àquele local.

— Pronto, aqui está a nossa nova casa — disse Dorah.

Natalie já ficou encantada com a entrada da casa. Alguns pintores

estavam finalizando alguns retoques, mas já era possível ver o quanto

ela ficaria bonita.

A casa tinha três garagens cobertas e parecia ser enorme. A porta de

entrada era bem grande, o jardim era lindo, com muitas flores de várias

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cores e tipos, que pareciam entrar em perfeita sintonia com o ambiente.

Natalie tinha a certeza de que esse era um dos motivos que fizeram sua

mãe escolher aquela casa.

Quando os três entraram, deram de cara com a grande sala, dividida

em três ambientes: um para receber visitas, outro para televisão e um

terceiro para a mesa de jantar. A cozinha também era bem espaçosa.

Ainda na área de baixo havia um dormitório, que Dorah pretendia usar

como escritório; nos fundos estava a piscina, uma churrasqueira e outro

quarto, que possivelmente poderia ser utilizado por visitas ou

empregados.

Quando chegaram à parte de cima, Dorah deixou que os meninos

escolhessem cada um o seu quarto. Eram três no total: uma suíte, que

todos já sabiam que seria de Dorah, e outros dois do mesmo tamanho.

Também havia um grande banheiro social. Um dos quartos tinha vista

para a frente da casa, enquanto os outros dois, para os fundos. Gabriel

escolheu aquele que ficava de frente ao dormitório da mãe, mas com a

janela para os fundos, dizendo que gostava mais de privacidade. Natalie

ficou com o outro.

Todos pareciam bem contentes com a casa nova, mas muita coisa

ainda precisava ser feita. Móveis novos seriam necessários por conta do

tamanho da nova residência, que era bem maior. Portanto, eles ainda

teriam de permanecer na antiga casa por mais alguns dias.

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Capítulo 26

FÚRIA era o que dominava Victor por dentro, e, enquanto ele estava

no retiro, cada vez mais esse sentimento crescia. O intuito de

permanecer no local era exatamente esse: a capacidade de

concentração de energia, a habilidade que cada demônio possuía e,

principalmente, a absorção de energia vinda dos humanos aumentava.

Quando um demônio saía do retiro, acordava com sede de caça.

Essa era a sensação que Carsten sentira quando saiu de Mantros,

movida pela falta do hábito e para mostrar ao ancião que a punição havia

funcionado de alguma maneira.

Victor já estava há vários dias ali. Ele não se mexia nem respirava. O

corpo dele era movido pelas pequenas quantidades de energia que

absorvia para sobreviver, e se tornar cada vez mais forte.

Enquanto os companheiros caçavam, cada um da sua maneira,

Victor ainda se preparava para acordar. Já fazia alguns dias que Carsten

saíra de Mantros. Todos os dias ele retornava com muitas cápsulas, e já

tinha mais do que provado que voltara a ser o que era antes.

Ele ainda não tinha cumprido a sua missão principal, mas como

estava sempre longe de Natalie, apenas se preocupando com a caça, o

ancião estava satisfeito, até aquele momento.

Foi naquele final de tarde em que Victor acordou lentamente do seu

retiro, depois de dormir por vários dias. Diferentemente de Mantros, onde

o demônio ficava quase sem forças, o retiro trazia muita energia, e Victor

já conseguia senti-la jorrando dentro de si, a ponto de explodir.

— Finalmente você está de pé, Victor — disse o ancião. — A noite se

aproxima, e chegou a hora de você me mostrar que esses dias aqui te

deixaram mais forte, e, principalmente, que você amadureceu.

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— Eu acordei para demostrar exatamente isso. Agora ninguém mais

pode me deter. — A autoconfiança dele agradava o ancião, que logo

pediu para que ele se preparasse para a caça.

— Carsten tem sido bastante útil, depois que ele saiu de Mantros.

— O quê? — Victor ficou assustado ao saber que Carsten esteve em

Mantros. Até onde o rapaz sabia, nenhum dos que foi para lá tinha saído

com vida.

— Sim, você sabe que ele é forte o suficiente para isso. E, pelo

menos agora, ele não está atrás de nenhuma humana. Recebeu o

castigo que merecia.

— E onde ele está agora? — perguntou Victor.

— Pelo que eu sei, hoje ele saiu de Polsher para caçar. — Depois de

uma pausa, o ancião disse: — Hoje eu sabia que você acordaria, e deixei

a cidade apenas para você. Nenhum outro demônio pode caçar em

Polsher.

— Quer dizer que todos os anjos que eu encontrar são meus? —

perguntou Victor.

— Exatamente isso. Agora se apresse, e não perca mais tempo.

Victor não perdeu tempo, e foi direto para a sala onde as armas eram

guardadas. Ele realmente queria ver quanto poder havia adquirido,

optando apenas por uma faca negra.

A faca, dentre todas as outras armas, era a de menor poder, e

necessitava de combate corpo a corpo. Determinadas armas, ao entrar

em contato com o corpo, espalhavam-se pelo interior, destruindo os anjos

facilmente.

Victor, que já estava preparado, dirigiu-se ao portal que o levaria a

Polsher. E, em menos de dez segundos, estava em cima de um prédio,

no centro da cidade, observando e sentindo a energia.

Uma das vantagens de se sair de um retiro era que a força sensitiva

(aquela utilizada para perceber a energia negativa dos humanos) ficava

mais aguçada. Então, um demônio podia encontrar anjos mais

facilmente.

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De alguma forma, Victor sentiu uma forte energia vinda de uma área

com grande concentração de matas, no norte de Polsher. O rapaz

imediatamente tirou sua camiseta, jogando-a no chão. Seu corpo, assim

como suas habilidades, também tinham evoluído; o garoto estava um

pouco mais forte do que o normal. As imensas tatuagens em suas costas

começaram a ganhar vida, e se tornaram grandes asas negras, as quais,

em um pequeno impulso, o ajudaram a voar em direção ao norte de

Polsher.

Perto de chegar às matas, a escuridão da noite ainda não tinha

aparecido completamente, e aquela imensa energia cada vez aumentava

mais. Victor percebeu que não eram simples energias, mas, sim,

provenientes de vários anjos reunidos. Ele não sabia o que eles estavam

fazendo no meio da mata. Poderia ser uma emboscada para atrair

demônios, ou algum tipo de reunião. Como Victor estava pronto para

testar seus limites, resolveu seguir em frente.

Dentro da floresta, os anjos não preparavam nenhum tipo de

ameaça. Eles haviam caçado alguém. No total eram sete anjos, e todos

se vestiam da mesma forma: calças claras e camisetas brancas abertas

nas costas para que suas grandes asas brancas pudessem se soltar

livremente.

— Finalmente pegamos mais um — disse um dos anjos, de cabelo

claro.

— Eu não posso acreditar que eles ainda existem — comentou outro,

de cabelos escuros. — Eles devem ser exterminados, assim como os

albinos.

— Quem foi que disse que os albinos estão exterminados? Fiquei

sabendo que outro grupo achou uma albina na semana passada —

pronunciou-se um terceiro anjo negro. Os outros três apenas seguravam

aquele que parecia ser um humano.

— O que eu não consigo entender é como esses aqui ficaram tão

fortes. Eles não poderiam ter tanto poder assim — disse o loiro.

— Não importa, é hora de acabar com a vida dele — disse o anjo de

cabelos escuros.

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Os três anjos colocaram as mãos no corpo do rapaz, criando uma

espécie de símbolo em seu peito.

— Em poucos segundos, o símbolo se encarregará da destruição. —

O anjo negro deveria estar falando da morte daquele que parecia ser

humano.

— Ei, acho que vocês estão muito ocupados com ele, e se

esqueceram da minha recepção.

Victor tinha chegado ao local sem que os anjos notassem sua

presença. Quando eles o viram, assustaram-se e em um momento de

bobeira deixaram que o homem, que estava caído, se soltasse e

corresse. O anjo de cabelo escuro correu atrás dele, enquanto os outros

se postaram em frente ao demônio. Este, por sua vez, movia apenas a

faca negra que empunhava nas mãos, fazendo-a rodopiar entre seus

dedos.

O homem que estava fugindo não se preocupou nem em olhar para

trás, apenas entrelaçava-se em meio às árvores, tentando vencer a

velocidade das asas do anjo. Até que ambos chegaram a uma área

aberta. Então o homem parou de costas para o anjo. Ele era careca,

branco e tinha olhos azuis, e o corpo todo definido.

— Desistiu de correr? — perguntou o anjo, parando e deixando suas

asas fechadas.

— Não. Esperei que você ficasse longe o suficiente dos seus outros

amigos para poder te matar.

— Então é isso que você deseja? — O anjo deu um passo à frente,

aproximando-se do homem. — Vocês agora querem nos matar?

— Não. Nós apenas queremos viver em paz, mas vocês não nos dão

escolha. — O homem deu dois passos para trás, tentando evitar

confusão. — Mas, pelo visto, vocês tentaram me matar, e ainda estão me

perseguindo. Ou seja, é matar ou morrer.

O anjo não esperou que o homem falasse mais nada, abriu

novamente suas asas e voou em direção a ele. Este, incrivelmente,

mesmo sabendo que ia ser atacado, nem se mexeu. Quando o anjo se

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aproximou, os dois sofreram um forte impacto e cada um deles foi jogado

para uma direção diferente, a vários metros de distância um do outro.

O anjo ficou caído por um tempo, levantando-se aos poucos; o

homem também conseguiu se levantar. Quando ambos estavam de pé, o

anjo deu um sorriso, dizendo:

— Vejo que não adiantou você querer me enfrentar. Elas já estão por

todo o seu corpo — ele disse, olhando para o peito do homem, que

estava sangrando, e segurando uma espécie de bolinhas prateadas. —

Quando elas entram em contato com o corpo, lá dentro vão se

espalhando até atingirem todos os órgãos.

O homem, que parecia estar sentindo cada bolinha dentro do corpo,

começou a rir e retribuiu o comentário:

— Parece que você está cantando vitória antes do tempo.

O anjo olhou para seu peito, e viu que também sangrava.

— Pelo visto pensamos o mesmo — falou o homem, segurando uma

bolinha negra.

— Como você conseguiu isso? — perguntou o anjo.

— Matando demônios, como vocês.

O corpo dos dois homens começou a brilhar ao mesmo tempo, e aos

poucos eles se despedaçaram feito vidro.

Enquanto isso, no meio da floresta, Victor estava frente a frente com

os outros anjos, um era negro e o outro loiro, ambos de cabelos

raspados, nenhum dos dois lados se pronunciava. Até que o silencio foi

quebrado:

— Você tem certeza de que vai enfrentar todos nós? — perguntou o

anjo loiro.

— Não — falou Victor, abaixando a cabeça. — Vou matar todos

vocês. —Levantou sua cabeça e partiu para cima de todos os anjos.

Lutavam a uma velocidade muito superior aos olhos dos humanos,

mas seus golpes, para eles, pareciam ser dados em câmera lenta.

Victor partiu para cima do anjo loiro e, com muita força, cravou a faca

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em seu peito, fazendo-o despedaçar. Em seguida, outros dois

apareceram para o ataque, um deles também era loiro, com longos

cabelos e o outro era oriental, cada um empunhando uma faca prateada.

O demônio desviou primeiro do oriental, depois de outro, até que

conseguiu golpear o loiro de cabelos longos pelas costas. Depois,

impulsionando seu corpo para cima, rapidamente com suas longas asas

negras desceu, atingindo o oriental no peito e fazendo com que os dois

se despedaçassem.

— Você se acha muito mais forte que a gente, não é? — perguntou o

anjo negro que ainda estava vivo. — Então, experimente isto!

Com uma enorme bola prateada nas mãos, ele atacou Victor, e esta

se dividiu em várias bolinhas. Para tentar se desviar do ataque, Victor

deu um salto para trás, e as bolinhas passaram por ele. Porém, uma

delas atingiu a ponta de sua asa, fazendo algumas penas caírem ao

chão.

Victor voou em direção ao seu oponente, pegou-o pelo braço e o

levou até o céu. Outros dois apareceram voando, em direção à briga.

Victor e o anjo negro trocaram socos, até que o demônio foi mais forte,

acertando-o abaixo do queixo com a faca, matando-o em seguida.

Os outros dois anjos surpreenderam Victor. Pegaram-no pela asa e o

jogaram violentamente ao chão. O demônio se levantou e, fingindo que

voaria para distrair seus oponentes, atirou a faca em um dos anjos,

acertando-o em cheio. Seu corpo se quebrou em vários pedaços.

Quando o último dos anjos desceu do céu e ficou frente a frente com

o garoto, sacou um revólver prateado. Victor foi surpreendido, pois não

tinha saída contra uma arma de fogo. Porém, antes que pudesse puxar o

gatilho, o anjo começou a se despedaçar e desmontou aos poucos.

Quando todos os pedaços de seu corpo jazeram no chão, foi

possível ver um homem vestido todo de branco, com uma ombreira

dourada e usando um capuz. Ele foi reconhecido por Victor, que ficou em

estado de choque.

— Vejo que você se assustou, garoto — disse o homem. Como

Victor não conseguia se mover nem falar nada, ele prosseguiu: — Eles

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mereceram a morte, por saírem para a caça sem prévia autorização. —

Referia-se aos anjos. — Agora, suma daqui antes que eu acabe com

você.

Para Victor, receber uma ordem dessas daquele homem foi algo

totalmente estranho.

— Você não ouviu o que eu disse? — gritou o homem.

Victor sentiu um grande poder, muito superior a de todos os anjos

que enfrentara, inclusive ao seu. Ele pôde confirmar aquilo de que

desconfiava: tratava-se de um arcanjo.

Mas o que o demônio não conseguia entender era por que ele o

deixava ir embora. Qualquer outro arcanjo o teria exterminado em poucos

segundos.

— Pegue suas coisas e desapareça daqui, antes que eu me

arrependa — ordenou o arcanjo.

Assim que voltou em si, decidiu sair dali. Abriu um portal, pegou as

cápsulas e logo se retirou, deixando a floresta silenciosa novamente.

— Você o matou? — questionou uma voz vinda de trás do arcanjo.

Pertencia a outro arcanjo, trajado da mesma maneira.

— Não. Um dos anciões apareceu e ele conseguiu fugir.

— Quer dizer que eles voltaram?

— Parece que sim. Logo teremos de descer todos para dar início à

verdadeira batalha.

— Estaremos preparados.

******

Depois de mais um dia de trabalho, Natalie chegava em casa para

um bom e longo descanso. Depois de tirar a blusa e calça, foi até seu

armário para pegar outro par de roupas íntimas, colocou sua toalha no

braço e seguiu em direção ao banheiro.

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— Você é muito linda — disse uma voz que assuntou a garota.

Natalie olhou para trás, mas não era ninguém, apenas as vozes que

a acompanhavam durante a noite. Do jeito que estava, apenas se enrolou

na toalha, fechou a porta e se sentou na cama para conversar com a voz.

— Quem é você? — perguntou Natalie.

— Eu precisei morrer para poder ver você assim.

Natalie percebeu que a voz era conhecida, mas preferiu conversar

mais um pouco para ter certeza de quem se tratava. Era uma das poucas

vezes em que ela conseguia manter uma conversa logo de início.

— Você me conhece há muito tempo? — perguntou a garota.

— Sim, mas queria ter a oportunidade de te conhecer melhor.

Natalie ficou totalmente paralisada. Aquela voz era de Paul.

Finalmente alguém com quem ela realmente gostaria muito de conversar

apareceu. Poderia, assim, descobrir toda a verdade.

— Paul, você está bem?

— Sim, agora eu estou muito bem.

— E onde você está? — perguntou para garantir que o que Dalton

tinha dito era verdade.

— Estou em um ótimo lugar, você não precisa se preocupar.

— É que muitas pessoas pensam que o inferno é o lugar para onde

vão as pessoas que cometem suicídio — explicou Natalie.

— A questão é que eu não cometi suicídio — Paul disse isso,

deixando Natalie ainda mais preocupada. — Eu estava muito chateado

pela situação que eu criei com você, mas não tiraria minha vida por isso.

— Então o que aconteceu?

— Foi um dos que vieram da escuridão. — Natalie ficou totalmente

transtornada com as palavras do rapaz. Agora, ela tinha certeza de que

se tratava de uma obra deles. — Você tem de tomar muito cuidado com

eles.

Natalie estava muito curiosa para saber de quem se tratava, mas

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tinha medo de ouvir a verdade, pois imaginou que Carsten poderia estar

por trás disso.

— Esses seres são ruins, Natalie. Eles não possuem amor, apenas

ódio e todo sentimento ruim que possa existir em uma pessoa — explicou

Paul.

— Paul, eu preciso te perguntar uma coisa. — Ela respirou e pensou

na melhor maneira de dizer, pois sabia por outras experiências que

qualquer pergunta malfeita poderia acarretar no desaparecimento da voz

do amigo. — Quem fez isso com você? Como ele era?

— Não era ele. Era uma mulher de cabelo vermelho como o fogo,

com um espírito negro.

A princípio Natalie ficou mais aliviada, mas depois se preocupou, pois

a agressora era a mesma que havia ido até o bar, e que ferira sua melhor

amiga. De qualquer forma, o medo de que Carsten fosse o responsável

desapareceu por um instante, até que Paul reafirmasse algo sobre eles:

— Não fique perto de nenhum deles, Natalie. Caso contrário, a sua

vida e das pessoas que você ama estarão correndo perigo.

Natalie sabia que eles não eram seres bons, nem mesmo Carsten.

Então, já que ele tinha respondido tudo o que ela queria saber, a garota

resolveu perguntar a Paul o mais importante:

— Paul, me responda uma última coisa: o que eles são?

A voz de Paul de repente sumiu, e nenhuma outra voz voltou a

incomodá-la durante muitas noites. Demorou um tempo até digerir tudo o

que ouvira. Mais uma vez, as pessoas vinham avisá-la para que não se

envolvesse com eles, e isso incluía Carsten.

O medo dela estava aumentando cada vez mais. Não por sua própria

segurança, mas pelas pessoas que ela mais amava. Natalie tinha medo

de ver mais alguém na mesma situação em que viu seu amigo naquele

cemitério.

******

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No dia seguinte, assim que Natalie entrou no bar, notou que Nick

estava um pouco estranho. O rapaz parecia distraído, e mal o bar abrira e

ele já tinha quebrado dois copos.

— Está acontecendo alguma coisa, Nick? — perguntou Natalie.

— Não. Só estou lembrando de algumas coisas. — Apesar de essa

desculpa não ter colado, Natalie preferiu não incomodá-lo mais.

— Tudo bem. Se precisar de algo, é só me falar.

Serah também não parava de observar o rapaz. Os dois já tinham

saído algumas vezes, mas ninguém sabia ao certo o que estava rolando

entre eles.

Todos continuaram seu trabalho normalmente. O bar estava indo

muito bem, e Jonathan até tinha pensando em alugar outro ponto maior,

mas esses eram planos futuros.

Serah saiu para o seu intervalo e preferiu ficar sozinha no

estacionamento, quando foi surpreendida por um anjo de cabelos

castanhos bem curtos e lindos olhos verdes, que chegou usando roupas

pretas. Pela reação da garota, não se tratava de nada grave. Ele não

parecia estar vestido com roupas de combate; aquela era apenas uma

visita de rotina, ou uma forma de passar algum tipo de informação. Mas,

de qualquer maneira, ela ficou intrigada por ele ter conseguido rastreá-la.

— Como você está, Serah? — perguntou o anjo.

— Eu estou bem. Mas como você...

— Reik me mandou — ele a interrompeu. — Eu precisava passar

uma mensagem importante para você.

— Que tipo de mensagem é essa?

— Eu recebi um chamado superior, mas Reik achou melhor transmitir

esse chamado diretamente para você.

— Que tipo de chamado? Quando vai acontecer?

— Bom, eu deveria ter vindo antes, mas Reik achou melhor te avisar

quase perto da hora. Ele sabe o quanto você é ansiosa.

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— Vamos, diga logo do que se trata.

— Está vendo? — O anjo sorriu, referindo-se à ansiedade dela. —

Trata-se de um de seus amigos terrestres, ele vai sofrer um acidente.

— Para o Reik ter te mandado, com certeza é a Natalie.

— Não, você está enganada. É o garoto do bar. — Depois das

palavras do anjo, Serah ficou mais assustada. Ela não podia imaginar o

que poderia acontecer com Nick. — Reik disse que se tratava de um

chamado especial.

— Um chamado especial vindo do Nick? — Serah não conseguia

entender o que era um chamado especial, e nem ao menos por que ele

viria de Nick. — Pode ficar tranquilo. Eu ficarei de olho nele e atenderei

ao chamado.

— Bem, mensagem entregue. Agora eu tenho de voltar ao trabalho.

— Bom trabalho, e obrigada — disse Serah, olhando para os lados

para ver se alguém estava por perto. Logo em seguida, a garota entrou

no bar.

Depois de Serah ter recebido a mensagem, não tirava mais os olhos

de Nick. A garota não sabia ao certo a hora que isso aconteceria, e,

dessa forma, precisava estar atenta a qualquer coisa diferente.

Quando o bar estava próximo de fechar, Natalie, Nick e Serah

estavam no estacionamento, prontos para irem para casa. Serah pegou

seu capacete e Natalie lembrou-se de que tinha largado o seu dentro do

seu armário, e correu para buscá-lo.

— Você está de moto hoje — afirmou Serah observando que Nick

tirava um capacete de dentro do banco de uma moto.

— Sim. Meu carro está no conserto, então peguei a moto do meu

irmão emprestada. — Nick vestiu seu capacete, subiu na moto e ligou o

motor. — Boa noite — disse ele ao sair.

— Boa noite — respondeu Serah, também seguindo o caminho (só

que, dessa vez, o mesmo de Nick).

Quando Natalie saiu do bar, viu que nenhum dos dois estava mais lá.

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Então, ela ligou sua moto e seguiu para casa.

Nick continuava seu caminho tranquilamente. Não corria muito, mas

estava a uma velocidade moderada, quando de repente um cachorro

atravessou a frente do rapaz, fazendo-o se desequilibrar. Após cair, foi

arrastado por vários metros, até que seu corpo ficasse estirado no chão.

Serah, que estava logo atrás, viu tudo aquilo, parou a moto e correu

em direção a Nick. Assim que chegou lá, percebeu que ele estava

inconsciente. Tirou o capacete do rapaz e viu que em seu rosto havia

alguns cortes. Serah colocou sua mão sobre o corpo dele, como se o

estivesse analisando.

— Dois ossos quebrados e alguns cortes. — Ela precisava ajudá-lo.

— Mesmo demorando muito mais que o normal, eu posso fazer alguma

coisa.

Serah colocou suas duas mãos sobre o peito de Nick, sem se

importar se alguém a visse fazendo aquilo, pronunciando várias palavras,

bem baixo, que não podiam ser compreendidas.

A rua estava bem tranquila, e ao longe Natalie se aproximava. Ao

perceber que se tratava da moto de Serah, ela logo parou. Pôde notar

que a amiga estava debruçada sobre alguém que permanecia no chão,

então ficou apenas observando. Natalie não conseguiu notar que se

tratava de Nick.

Depois de alguns minutos, Nick começou a se mexer. O rapaz ainda

gemia de dor, porque ela conseguira apenas fazê-lo recuperar a

consciência, e não curá-lo totalmente.

— Fique quieto, senão não conseguirei te ajudar — pediu Serah.

— Serah, é você? — Tentando recuperar a consciência, Nick, ainda

não conseguia distinguir quem estava à sua frente. — O que aconteceu

comigo?

— Eu disse para você não se mover. — Serah fechou seus olhos.

Concentrada, como se assim pudesse usar mais da sua força, chegou a

gritar para focalizar mais sua energia.

— Serah, o que você está fazendo? — perguntou Nick.

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— Requi. — Foi a palavra usada por ela para soltar uma habilidade,

possivelmente de cura.

Serah soltou suas mãos e caiu para trás. Nick, que parecia estar

bem, se levantou e ajudou a amiga, pegando-a pelos braços.

— Ei, você está bem? — perguntou o rapaz.

— Eu que deveria saber se você está bem.

— Sim, eu estou bem. Mas o que aconteceu?

— Nada demais, o importante é que você está bem, Nick. — Serah

se aproximou do rapaz e o beijou lentamente. Em alguns momentos, ela

parecia sorrir. Estava feliz por saber que ele estava bem.

Natalie, que observava tudo de longe, percebeu o que Serah havia

feito. Após reconhecer Nick e ver que ele estava bem, preferiu não

interromper. Sem ligar os motores, ela virou em direção contrária da rua e

foi empurrando a moto, até que pudesse ligá-la e ir para casa por outro

caminho.

Quando chegou à frente da garagem para guardar sua moto, abriu o

portão e foi surpreendida por quem não esperava encontrar.

Carsten correu para perto da garota e fez um sinal para que ela não

gritasse, já que não conseguia tocá-la. Sem entender o que estava

acontecendo, Natalie tentou manter a calma para não acordar sua

família, que não poderia fazer nada no momento.

— Você destruiu a minha vida, por sua causa eu sofri no inferno, eu

não tenho outra escolha a não ser acabar com você. Se eu não fizer

estarei morto. — As palavras de Carsten fizeram Natalie se desesperar,

ela conseguia enxergar a maldade no olho do rapaz, ele realmente

estava mudado.

Carsten segurou um punhal negro nas mãos e estava perto de usá-

lo, mas o medo da garota o fez parar, ele não conseguia seguir em

frente, por mais que tentasse não tinha mais controle sobre seu corpo,

mesmo com as trevas se manifestando.

Natalie, que estava entre a vida e a morte, não entendia o que estava

acontecendo.

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O punhal caiu no chão, aos poucos ele foi se afastando da garota.

Em vez de correr, Natalie ficou imóvel na frente dele. Sua respiração

estava trêmula, tinha medo de tentar qualquer coisa e ser ferida por ele,

ela não sabia o que pensar, até que uma frase mudou tudo:

— Eu senti a sua falta — disse Carsten surpreendendo a garota,

depois do que ele fizera.

Por mais que o medo falasse mais alto, todos os sentimentos

adormecidos em Natalie após o sumiço de Carsten voltaram de uma só

vez. Ele estava ali novamente e mesmo depois de tentar mata-la, alguma

conexão sem explicação a fez permanecer.

— O que você está fazendo aqui?

— Eu vim para te matar. — O rapaz não se movia. — Tentei, mas

não consegui, é mais forte do que eu.

Aquela atitude fez a garota tomar uma atitude drástica.

— Eu não quero ver você na minha frente, eu tenho medo de você e

dos seus amigos — disse a garota com o tom mais sério possível.

— Me desculpa. Eu não sabia o que estava fazendo, a raiva tomou

conta do meu corpo, eu não quero te fazer mal.

— Seus amigos machucaram minha melhor amiga, o namorado dela

e mataram o Paul.

— Quem fez isso com eles? — Carsten tinha certeza de que

Katherine era a responsável por tudo aquilo, mas ele queria ouvir da boca

de Natalie.

— Isso não importa agora. — Natalie parou por um instante,

pensando que não tinha de que dar nenhum tipo de satisfação para ele,

mas sua raiva era tanta que ela queria despejar nele tudo que estava

sentindo. — Ela é tão ruim quanto você — disse ela falando de Katherine,

o fazendo confirmar o que achava. — Vocês, como todos dizem, são

podres por dentro, preenchidos de tudo que é de ruim.

— Você tem razão — Carsten disse isso, surpreendendo a garota. —

Todos nós somos ruins, esse é o nosso instinto. Somos feitos de tudo o

que é ruim, de todo mal cometido pelas pessoas que vivem na Terra.

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Natalie não conseguia compreender o que ele dizia, mas, para ela

não importava, apenas queria seguir os conselhos dos seus amigos, ficar

longe deles, mesmo com uma parte do seu corpo dizendo que ela

precisava ficar, depois daquela noite ela não tinha mais escolha.

— Não vá — pediu Carsten.

— E por que eu deveria ficar?

— Eu prometo que nada de ruim vai acontecer a você e seus amigos

— disse ele olhando para os olhos dela.

— E por que eu deveria acreditar em você? Depois do que fez hoje,

acha mesmo que eu ainda devo confiar em você?

— Tem alguma coisa dentro de mim que faz querer que eu te proteja.

— Como você mesmo disse, Carsten, — ao dizer o nome dele,

Natalie entonou a voz e ele se surpreendeu, percebendo que a garota

sabia como ele se chamava — você é feito somente de coisas ruins.

Como você quer que eu acredite em você? Um homem que tentou matar

um anjo, veio para me matar e agora diz que quer me proteger.

— Natalie, eu sei que pode parecer estranho, e para mim também é,

mas eu me sinto diferente quando estou perto de você.

Natalie ficou em silêncio, mas os comentários de Paul, de seu pai, e

todas as ações que ela já tinha presenciado a impediam de acreditar

nele.

— Uma dúvida ainda me consome por dentro. — Natalie agora

queria saber toda a verdade, não se importando qual seria ela. — O que

é você?

— Você quer mesmo saber? — perguntou o rapaz, também sabendo

que poderia ser o fim.

— Quero. — Natalie estava preparada para ouvir qualquer coisa.

— Se eu te disser, você nunca mais vai querer olhar no meu rosto.

— Talvez seja a melhor coisa que eu vá fazer. — Era possível ver a

frieza em seus olhos, mas seu coração estava apertado e dizia o

contrário.

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— Eu sou... Eu sou... um demônio.

Aquela palavra era tudo, menos o que Natalie queria ouvir. Uma

palavra forte, da qual ela tinha medo desde pequena.

Quando Natalie caiu na real, ela percebeu que tudo que tinha

acontecido até agora fazia sentido. Por que ele caçava os anjos, por que

alguma coisa de ruim acontecia quando ele estava perto, como ele teria

conseguido matar três caras de uma só vez, entre outras coisas.

Um medo terrível preencheu todo o seu corpo. Ela finalmente sabia a

verdade, e entendia a razão de ter recebido o conselho de se afastar

deles, Natalie não queria ficar nem mais um minuto perto dele.

— Eu não quero que você volte a me procurar. Você não é bom para

mim nem para os que estão à minha volta.

— Por favor, entenda que...

— Não. Entenda que eu jamais ficaria perto de alguém como você.

Quer me proteger, mas pretende o que em troca? — Natalie se lembrou

das histórias que as pessoas mais velhas contavam: os demônios

ofereciam qualquer coisa em troca de favores.

— Natalie, mais uma vez eu te peço, não vá. Eu não quero nada em

troca.

Sem responder ao pedido dele, Natalie entrou com sua moto na

garagem. Carsten não se moveu nem ao menos tentou impedi-la. Assim

que fechou a porta, correu para dentro de casa, foi direto para seu quarto

e deitou-se na cama.

Lágrimas começaram a correr pelo rosto da garota. Ela segurava seu

travesseiro como se estivesse com muito medo, e totalmente insegura.

Aquela noite não seria tranquila como as outras, pois sentia receio até

mesmo de fechar seus olhos para dormir.

Imagens de pessoas especiais, como da sua mãe, de Kelly e do

falecido pai, tentavam confortá-la, afinal, era com essas pessoas que

Natalie se sentia segura. Uma segurança que, apesar de não ser física,

era espiritual, algo de que ela mais precisava naquele momento.

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Capítulo 27

CONSELHOS: o que Natalie mais precisava ouvir, após uma noite

como aquela. Sem conseguir pregar seus olhos por um instante, ela ficou

durante a noite toda agarrada em seu travesseiro, pensando em tudo que

tinha ouvido de Carsten, e em tudo pelo que ela já havia passado desde

que o vira pela primeira vez.

Assim que o dia amanheceu, Natalie se levantou, foi até o banheiro,

jogou água no rosto e escovou os dentes. Dorah, que estava se

arrumando para o trabalho, viu a filha e estranhou ela estar já acordada

tão cedo.

— Aconteceu alguma coisa, meu anjo? — perguntou Dorah.

— Não consegui dormir a noite toda, mãe. — Natalie olhou para

Dorah. — Queria te perguntar uma coisa.

— Claro, meu anjo, o que é?

— Se um dia você estivesse cara a cara com um demônio, — Natalie

começara a falar, e já assustava a mãe — acreditaria no que ele te

dissesse?

— Mas, minha filha, por que você está me perguntando isso?

— Nada de mais, apenas vi um programa de televisão e fiquei

intrigada com isso.

— Bom, eu nunca passei por uma situação dessas, e nem sei o que

faria. — Dorah não fazia ideia do que a filha estava passando, por isso

tentou ser o mais sutil possível. — Eu acho que não acreditaria, minha

filha. De acordo com meus conhecimentos, eles fariam tudo para te

ajudar, até te conquistarem completamente. Depois, tentariam de tudo

para destruir sua vida.

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— Foi o que eu imaginei que responderia. — Natalie deu um beijo

em Dorah, e foi para o quarto. — Vou tentar dormir um pouco.

— Durma com Deus, meu anjo. — Percebendo que aquele assunto

havia deixado a filha assustada, Dorah complementou: — Filha, lembre-

se de que demônios são seres da escuridão. Durante o dia eles não

aparecem.

Natalie sabia que isso não era verdade, mas lembrou-se de que

Carsten quase não aparecia durante a manhã, apenas no fim da tarde e,

na maioria das vezes, à noite. Mas ela também se lembrou de que a ruiva

havia atacado Kelly bem no meio da tarde. De qualquer maneira, Natalie

preferiu seguir o conselho da mãe: foi para a cama tentar dormir.

Assim que entrou no quarto, deitou-se na cama e se questionou em

voz alta:

— Será que ele estava falando a verdade? Mas por que aquela

mulher ruiva teria pedido para eu me afastar dele? — Várias questões

passaram pela cabeça de Natalie, e ela pensou que, depois da revelação

de Carsten, tudo ficaria mais claro. — O que acontece comigo quando ele

está do meu lado? — Foi a última pergunta que a garota fez, antes que

pegasse no sono.

Durante algumas horas, ela dormiu feito um anjo. Nenhum sonho ou

pesadelo, apenas paz e tranquilidade davam o descanso que ela

merecia, após ter tido mais revelações anteriormente.

Mas o sono tranquilo de Natalie fora interrompido pela campainha. A

garota não se levantou de imediato, esperando que a pessoa desistisse.

Mas parecia ser algo importante, pois a campainha insistiu por alguns

momentos.

Lutando contra o sono que ainda não tinha abandonado o seu corpo,

Natalie foi até a porta, descendo cada degrau da escada com cuidado

para não cair, já que ela ainda estava sonolenta.

Quando ela abriu a porta, ficou surpresa em receber uma visita que

havia muito tempo não aparecia. Era o Doutor Reik que estava

insistentemente apertando a campainha.

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— Doutor, o senhor por aqui?

— Natalie, me chame apenas de Reik, vamos evitar a formalidade

por um instante.

— Tudo bem. — Natalie parecia não entender nada, muito menos a

visita. — Veio para saber como eu estou?

— Na verdade, eu vim por um motivo mais importante. — Reik fez

um sinal perguntando se podia entrar. — Com licença.

— Fique à vontade. — Natalie apontou para o sofá na sala. — Você

aceita um suco?

— Não, obrigado, prometo não atrapalhar mais o seu sono.

A garota ficou surpresa por ele saber que ela estava dormindo, mas,

pela cara que ela estava não era difícil de adivinhar.

— Em que eu posso te ajudar? — perguntou ao médico.

— Hoje eu não estou aqui como médico, e nem para perguntar

alguma coisa sobre seu antigo tratamento. Vim porque me preocupo com

a sua vida.

— Minha vida? — Natalie não estava entendendo mais nada, pois se

sentia perfeitamente saudável. — Eu estou me sentindo muito bem —

disse ela sorrindo.

— Acho que nós dois sabemos do que eu estou falando. — Reik

parecia muito sério, o que fez Natalie esconder seu sorriso. — Sua saúde

está perfeita, mas a minha preocupação é com as suas companhias, em

especial, com a que te visitou esta noite.

Natalie ficou estática. Até aquele momento, ela achava que ninguém

tinha visto seu encontro com Carsten.

— Como você sabe disso? — perguntou, com uma expressão bem

séria.

— Eu sei de muitas coisas. Aliás, tenho te observado desde o

acidente no posto de gasolina.

— E, pelo que eu estou entendendo, tem me observado não como

médico, não é? — Natalie era muito esperta para saber que Reik não era

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um simples médico.

— Exatamente. Você não tem ideia do quanto é importante, e o

quanto é perigoso ficar perto daquele demônio por enquanto, ele ainda

não consegue se controlar.

— Como assim, por enquanto? — A garota estava tão nervosa, que

se levantou. — Antes de você continuar com isso, me diga o que você é.

Um anjo, um demônio, ou o quê?

— Não me pareço nem um pouco com os vindo do submundo, e

também não sou um anjo, mas posso te dizer que estou do lado que quer

te ajudar.

— Do lado do bem, você quer dizer? — Natalie estava confusa e ao

mesmo tempo furiosa.

— Diria que existem vários lados, Natalie, mas eu estou do lado que

quer sua proteção.

— E por que você quer tanto a minha proteção assim? — Natalie

percebeu que estava exaltada, e logo se sentou. — Pelo visto, os dois

lados querem me proteger.

— Ele ofereceu isso a você? — Reik ficou surpreso.

— Sim, é exatamente o que os demônios fazem: oferecem a

proteção e depois destroem a nossa vida, não é?

— Não. Esses são totalmente diferentes. — Reik não pretendia

conversar com Natalie sobre isso, mas já sabia que a cabeça dela estava

em total dúvida. Então, resolveu esclarecer algumas coisas: — Nenhum

deles oferece proteção aos humanos em troca de algo. Apenas dão força

e coragem para que vocês façam coisas que já têm vontade de fazer.

— Como assim? — perguntou Natalie.

— Se você está com vontade de fazer alguma coisa ruim, eles

apenas triplicam esse sentimento.

— Quer dizer que o Paul tinha vontade de se matar? — lembrou

Natalie do amigo.

— Não, Natalie, nesse caso foi diferente. Seu amigo estava chateado

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com ele mesmo, mas Katherine, a que o fez pular do holofote, criou um

motivo para que ele fizesse isso, o que é extremamente proibido entre

eles.

— Quer dizer que eles também têm regras? Isso é ridículo.

— Sim, todos nós temos. Mas, assim como os humanos, existem

anjos e demônios que tentam burlar essas regras, tornando-se rebeldes e

agindo por conta própria.

— O Carsten é um desses rebeldes?

— Existem coisas sobre ele que nem mesmo eu sei. — Reik pensou,

mas sabia que não podia falar tudo.

— O fato de ele salvar a minha vida?

— Sim, esse fato também. — Reik segurou as mãos de Natalie, e ela

sentiu uma energia muito boa. — Mas o melhor que você pode fazer é

ficar longe dele, para o seu próprio bem e de...

— E de meus amigos e familiares, eu já sei — disse Natalie,

interrompendo o médico.

— Isso mesmo, principalmente de seus amigos. — Reik apontou

para o colar que Natalie usava. — Porque você, por enquanto, está

protegida, e nenhum deles pode sequer tocá-la.

Natalie segurou o colar com que Dorah a havia presenteado.

— Este colar, Natalie, foi feito por um arcanjo. Ele te protege, e

enquanto você usa-lo, nenhum demônio pode encostar em você. — Reik

sorriu para a garota. — Mas nem mesmo eles sabem disso.

— Quer dizer que é por isso que ele não conseguiu tocar em mim —

concluiu Natalie a respeito de Carsten.

— Exatamente. Antes que sua mãe te desse este presente, ele já

havia sido abençoado.

— Eu não sei nem mesmo no que acreditar agora, são tantas coisas

acontecendo. — Natalie colocou as mãos no rosto, como se estivesse

pronta para chorar.

— Você ainda vai passar por muitas outras coisas — disse Reik se

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levantando. — Eu estarei por perto para te ajudar quando precisar, mas

você precisa ser forte.

— Acho que já estou sendo forte o suficiente.

— Sim, você está.

Natalie olhou para o médico e sorriu:

— De qualquer maneira, eu fico contente em saber que posso contar

com você, apesar de saber que não é mais meu médico.

— Exatamente isso. — Reik sorriu. — Existem outras pessoas, ou

melhor, anjos, que estão o tempo todo com você.

Natalie ficou surpresa, pois conseguia vê-los. Podia ser qualquer um,

mas, depois da noite anterior, ela já desconfiava de quem fosse.

— Me prometa uma coisa, Reik: não vai mais deixar nenhum dos

meus amigos ou minha família serem feridos.

— Eu farei o possível. — Reik se levantou e se dirigiu até a porta.

Antes que saísse, ele se virou para Natalie e voltou a repetir: — Afaste-se

dele por enquanto, pelo menos até que esteja preparada. — E saiu pela

porta afora.

Assim que Natalie fechou a porta, ela se sentiu um pouco mais

segura em saber da proteção de seu colar, e que Reik e outros anjos

estavam protegendo sua família e amigos. Porém, não conseguia parar

de pensar nas palavras que Reik mencionara:

Por enquanto? O que ele quis dizer com estar preparada? Pensou a

garota.

Natalie decidiu ir para o banho, e depois aproveitou para almoçar.

Gabriel novamente não apareceu para o almoço. Já havia alguns dias,

estava preocupada com o comportamento dele.

Depois que almoçou, decidiu ir até o hospital visitar Kelly. Afinal, elas

tinham muito o que conversar.

Chegando lá, encontrou Dalton no corredor. Assustada com o rapaz

do lado de fora, Natalie já imaginou que alguma coisa poderia ter

acontecido com a amiga.

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— Dalton, por que você está do lado de fora?

— O médico está fazendo a última visita de rotina para liberar a Kelly.

Acho que hoje ela já vai para casa.

Natalie abraçou o amigo, e estava bem feliz com a notícia.

— Natalie, ela está terminando de tomar um medicamento, e acho

que ainda vai demorar um pouco. Você pode ficar com ela? Preciso

resolver uns problemas.

— Claro, fique à vontade — disse Natalie sorrindo, e feliz por poder

ficar sozinha com a amiga.

— Amanhã o senhor Golpher já está de volta, e ele vai ficar alguns

dias com ela em casa — explicou o rapaz.

— Aproveita para descansar também — aconselhou a amiga.

— Claro, mas isso não é um problema. Eu amo essa menina e você

sabe disso.

Natalie ficou toda emocionada com a declaração de Dalton. Logo que

o rapaz saiu, o médico liberou a garota para visitas, e Natalie entrou

dando um abraço na em Kelly.

— Graças a Deus vou para casa, amiga. — Kelly parecia totalmente

aliviada. — Não aguento mais essa comida de hospital, já devo ter

engordado uns trinta quilos.

— Como você consegue ser tão exagerada? — Natalie estava

contente com a saída da amiga do hospital. — Precisamos conversar

bem sério.

— Quando você vem com esse olhar de seriedade, já sei que vem

bomba.

— Você se lembra do médico que cuidou de mim quando eu fiquei

aqui no hospital? — Natalie tinha certeza de que Kelly lembraria.

— Claro, o loiro bonitão. — Kelly sorriu, olhando para porta com todo

cuidado, com medo de Dalton ouvir. — Perguntei dele esses dias aqui.

As enfermeiras disseram que ele pediu transferência da cidade.

— Pois é. Ele não pediu. Apareceu hoje em casa para me visitar —

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disse Natalie. — E quer saber mais? Lembra quando eu te disse que

tinha visto ele aqui no hospital e mais ninguém viu?

— Lembro. Não vai me dizer que...

— Isso mesmo, ele também é um anjo, ou coisa do tipo.

— Mas, como eu consegui vê-lo da primeira vez? — perguntou Kelly.

— Da mesma forma que você conseguiu ver a ruiva no dia do

ataque, e seu namorado conseguiu ver o animal negro que ele falou.

— Ele te disse alguma coisa importante? — Kelly parecia curiosa e

atenta. Natalie, agora sim, estava satisfeita, pois tinha uma amiga que

acreditava em tudo o que ela dizia. — Vamos, Natalie, diga.

— Ele disse para eu me afastar do Carsten, pois ele é perigoso.

Entretanto, o médico disse que estaria nos protegendo.

— Grande novidade que aquele cara é perigoso. — Kelly apontou

para o soro que ela estava tomando, graças ao ataque da amiga dele. —

De qualquer forma, ele não apareceu mais mesmo, não é?

— Então, esse é o outro problema. Ontem à noite ele voltou a

aparecer. Primeiro tentou me matar, depois disse que me protegeria, e

não deixaria mais nada acontecer comigo — Natalie parecia falar sem

parar, queria contar tudo de uma só vez e se libertar daquela angústia.

— Matar? Proteger? E você disse isso para o médico, ou o que quer

que ele seja?

— Quase tudo, ele ficou todo confuso. Disse que os demônios não

tendem a proteger ninguém, apenas influenciar...

— O quê! — gritou Kelly. — Ele é um demônio?

— Kelly, fala mais baixo — disse Natalie diminuindo seu tom de voz.

— Sim, ele é, e provavelmente a que te atacou também. Ela é uma

rebelde. Não segue as regras.

— Monstrinha, eu juro que estou ficando louca. Peçam para alguém

me internar agora. — Kelly fechou seus olhos e estava totalmente

confusa.

Natalie continuou contando tudo para a amiga, pausadamente, da

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maneira como tudo aconteceu. Kelly demorou em entender e aceitar toda

a situação, mas depois o fez, mesmo muito confusa.

— O problema maior é que, sempre que ele está do meu lado, eu

sinto alguma coisa estranha dentro de mim — disse Natalie.

— Você só pode estar ficando maluca, não pode estar se

apaixonando por um demônio.

— Eu não estou apaixonada por ele. Como te disse, é algo estranho

que eu não sei explicar. — Natalie foi até a janela do quarto e olhou para

o céu, tentando buscar alguma inspiração divina. — O médico me disse

que eu não posso ficar perto dele por enquanto. Eu não consegui

entender esse ―por enquanto‖.

— Você não pode ficar perto dele nunca, monstrinha. Olha o que a

amiga dele fez comigo, imagina o que ele vai fazer com você.

— Você está vendo isso? — disse Natalie, mostrando o colar que

ganhou da sua mãe. — Reik me disse que ele é abençoado, e que

nenhum deles pode me tocar quando eu estou com ele.

— Então consegue um para mim. — Kelly não sabia em que

acreditar mais, mas, depois do que aconteceu, parecia que ela estava

acreditando em tudo.

— Eu não sei como essas coisas funcionam — disse Natalie

continuando a conversa.

As duas amigas continuaram conversando, até que a enfermeira

chegou para liberar Kelly do medicamento, para que finalmente pudesse

ir para casa. Dalton apareceu logo em seguida para levar a namorada

para casa.

Natalie foi para o trabalho. Assim que chegou ao bar Avalon, viu que

Nick estava totalmente inteiro, sem nenhum tipo de arranhão para quem

havia sofrido um acidente de moto. Mas a garota preferiu não comentar

nada, pois nem sabia se o rapaz se lembrava de alguma coisa. Ela queria

evitar chamar a atenção de Serah que estava arrumando as mesas,

depois da noite anterior, Natalie sabia que ela era uma das que Reik

mencionou.

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******

Algumas horas mais tarde, em um lugar bem longe do bar, Carsten

observava um anjo que ajudava uma jovem. Ele estava pronto para

atacar, quando foi surpreendido.

— Parece que nem mesmo você entende qual é a sua origem, não é

mesmo?

— Quem é você? — perguntou Carsten, virando-se rapidamente e

logo abrindo suas asas, como forma de intimidar o inimigo.

— Calma, acho que nem eu e muito menos você queremos algum

tipo de confusão, não é? — disse Reik, que usava roupas normais de

qualquer ser humano.

Assim que o viu, Carsten se sentiu intimidado, mas não baixou suas

asas.

— Você pode se acalmar, rapaz, não estou aqui para matá-lo. Se eu

quisesse isso, já teria feito há muito tempo.

O rapaz percebeu que ele falava a verdade. Sentiu um enorme poder

vindo do homem e baixou suas asas, escondendo-as novamente.

— O que você quer de mim? — perguntou Carsten.

— Apenas que você não volte a procurar a garota. — Reik referia-se

a Natalie.

— De que garota você está falando? — Carsten perguntou

ironicamente.

— Nós dois sabemos muito bem de que garota eu estou falando.

— Então é isso? Ela é uma de vocês, por isso eu me sinto todo

estranho perto dela. — Carsten tentava entender o que o tornava tão

mudado perto dela.

— Não, garoto, ela não é um anjo.

— Então por que você está protegendo ela?

— Isso não é de seu interesse — respondeu o médico, rispidamente.

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— E você acha que eu já não tentei? É muito mais forte do que eu e

da minha natureza obscura, como vocês mesmo dizem.

— Você tem de fazer isso por enquanto. É melhor para o seu bem e

para o bem da Natalie.

— Agora você está me dizendo que está preocupado com o meu

bem? — Carsten parecia irritado, e ao mesmo tempo confuso.

— Se você fizer isso, estará protegido por todos nós também.

— Eu não preciso da proteção de vocês. — Carsten olhou irritado

para Reik, e deu as costas para ele, de forma a não querer mais

conversa. — Quem vocês pensam que são para me dar ordens, e ainda

me oferecer proteção. Eu já tenho proteção dos meus companheiros.

— Muito em breve, eles vão querer matar você e a Natalie, se você

não se afastar dela. Portanto, fique longe dela, pelo próprio bem da

garota.

— Eu não preciso dos seus conselhos, eu mesmo vou protegê-la. —

Carsten nem sabia mais o que estava falando. Há alguns segundos, ele

estava pronto para matar um anjo, e agora estava dizendo que ia

proteger uma humana.

O rapaz saiu correndo do local onde estava. Ele não queria mais

ouvir o que Reik tinha a dizer, mas com certeza, depois dessa conversa,

ficara mais confuso do que antes, assim como Natalie também estava.

Já era madrugada quando isso aconteceu, e poucos segundos

depois que ele se foi, Reik recebeu a visita de Serah.

— Parece que ele não sabe o que está fazendo — disse a loira.

— Ele está muito confuso, e depois dessa reação, eu também estou.

— Quer dizer que você também não sabe o que está realmente

acontecendo?

— Existem coisas que nem mesmo nós, os arcanjos, sabemos. —

Reik era um dos arcanjos do céu, por isso Serah tinha tanto respeito por

ele.

— E o que devemos fazer? — perguntou a garota.

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— Devemos continuar tudo como está — explicou Reik. — As coisas

vão começar a piorar, e, se não tomarmos cuidado, a guerra vai começar

antes do que imaginávamos. Ontem quando os dois se encontraram, tive

que despistar os anjos que foram ordenados a protegê-la, mas não posso

continuar com isso.

— Eu compreendo, senhor.

— E o chamado de ontem, conseguiu resolvê-lo?

Serah sabia que o arcanjo conseguia ver e saber de tudo, mas não

entendia a pergunta dele.

— Pelo visto, vejo que sim. — Sorriu Reik. — Não se apaixone por

ele, Serah. Se você fizer alguma coisa, não poderei te salvar, e você

sabe disso.

— Eu entendo. — Constrangida, Serah se despediu do arcanjo, e

seguiu andando o caminho de volta até sua moto.

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Capítulo 28

AFETO. Foi assim que Natalie acordou naquele dia, com um beijo de

Dorah, representando o carinho que ela tinha pela filha.

A senhora Zeniek estava preocupada com o filho, que não tinha mais

uma relação familiar. Ela ficou do lado da cama e pediu uma opinião

sobre o garoto para a filha.

— O que você acha que eu devo fazer sobre o Gabriel, minha filha?

Isso está tirando o meu sono.

— Mãe, acho que está na hora de você ter uma conversa bem séria

com ele. — Natalie se levantou e ficou sentada, encostada na cabeceira

da cama. — Afinal, ele só tem quinze anos, e não pode ficar mandando

na vida assim.

— A culpa foi toda minha, eu não tenho tempo de educá-lo como eu

queria.

— Você já me disse isso antes, e eu já te falei que você está

enganada. — Natalie bateu de leve na cama, como se quisesse que sua

mãe sentasse na beirada. — Apesar da pouca idade para algumas

coisas, ele já é bem grandinho para saber se virar.

— Mas, então, o que eu faço com o seu irmão? — Dorah parecia

desesperada.

— Apenas o chame para conversar, e saber o que está acontecendo.

Tenho certeza de que ele vai dizer alguma coisa.

— Vou fazer isso — confirmou Dorah, que pretendia seguir o

conselho da filha.

— Por que não aproveita e faz isso agora, antes de ele sair?

— Porque ele já saiu, minha filha. Há dias que seu irmão sai antes de

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mim.

— Eu acho que quem está começando a ficar preocupada sou eu. —

Depois de tudo que Natalie tinha visto, e das coisas que estavam

acontecendo na cidade, e na vida dela, não era de se esperar que se

preocupasse. — Se eu falar alguma coisa, você sabe que não vai

adiantar. Então, é melhor esperar que você o faça, mãe.

— Assim que eu encontrar seu irmão, vou conversar com ele —

disse Dorah, levantando-se para ir ao trabalho. — Fique com Deus, meu

anjo. — Beijou a filha e saiu.

―Anjo.‖ Cada vez que Natalie escutava essa palavra, o frio que ela

sentia na barriga se espalhava em todo o corpo. E ela lembrava que

apesar de eles serem bons, existiam os inimigos, e um dos inimigos era o

homem em quem ela não parava de pensar.

Depois de um tempo, tentando dormir novamente, a garota não

conseguiu pegar no sono. Então, decidiu se levantar e fazer algumas

coisas.

Mesmo procurando se distrair, Natalie não parava de pensar no

medo que sentiu de Carsten naquela noite, principalmente depois de

saber o que ele era. Ela pediu para que o demônio se afastasse dela e

desejava que essas lembranças também dessem uma trégua.

Natalie pensou em Kelly, que, com toda certeza, deveria estar em

casa, descansando. A transmissão de pensamentos foi imediata, pois,

no momento em que Natalie pensou na amiga, o telefone tocou. Era a

loira que estava ligando.

— Você não vai acreditar, estava pensando em você agora — disse

Natalie.

— Espero que não seja com coisas estranhas e bizarras, eu estou

cheia disso. — Kelly parecia não aguentar mais aquela loucura. —

Monstrinha, em cinco minutos estou passando aí, fique pronta.

— Cinco minutos? — perguntou Natalie olhando para o pijama que

ainda estava vestindo. — Como? Passando onde? Você não deveria

estar descansando em casa? — Ela se lembrou que não fazia nem um

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dia que a amiga tinha saído do hospital.

— Preciso fazer compras, aliás, muitas compras. Esses dias no

hospital me fizeram perder um pouco de corpo, nada me serve. — Era

claro que Kelly estava exagerando, mas, conhecendo bem a amiga,

Natalie correu ao quarto para se arrumar. — E fique tranquila, não estou

dirigindo. — Provavelmente Kenedy estava no comando do carro. —

Faltam apenas quatro minutos, já está pronta?

— Quase — disse Natalie, tirando a roupa, com o telefone na orelha.

— Disso eu não duvido mesmo — respondeu Kelly rindo.

Natalie terminou de se arrumar bem rápido, colocou uma calça jeans

clara, sapatos baixos e uma blusa amarela meio solta no corpo, amarrou

seus cabelos e desceu.

Quando abriu a porta, Kenedy tinha acabado de estacionar. O

sincronismo das duas amigas continuava alto naquele dia. Assim que

Natalie entrou no carro, viu que Kelly estava deslumbrante, como

sempre.

— Uma cabelereira e uma maquiadora, foi isso que eu pedi para o

meu pai, antes de sair de casa — disse ela, jogando seus cabelos loiros

e volumosos. — Não poderia sair de casa do jeito que eu estava.

— Você realmente estava no hospital ontem? — Natalie não

acreditava no que estava vendo, e não conseguia mais associar a amiga

com aquela que estava internada, deitada e sem nenhuma maquiagem.

— Digamos que eu prefiro assim.

— E quem não prefere? — As duas amigas riram juntas. — Kenedy,

preciso de shopping.

O motorista, mais do que depressa, seguiu com as meninas para o

Central Park Shopping.

— Vim mais cedo, antes que você me fale que precisa ir trabalhar, já

que ainda é quarta-feira.

— Sim, teremos mais tempo hoje.

— Preciso comprar tantas coisas. — Como todas às vezes, Kelly

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estava sendo exagerada, mas aquilo não assustava mais a amiga.

Natalie apenas estava preocupada em não deixá-la fazer muito esforço.

Assim que chegaram ao shopping, as duas já foram direto à loja

favorita de Kelly, onde as vendedoras a conheciam pelo nome, o que

também não era muito difícil, pelo fato de ela ser filha do prefeito da

cidade.

Kelly pediu as novidades, e logo as vendedoras mostraram o que

tinha de mais novo e possivelmente caro, pois as peças eram lindas. A

garota, como sempre, queria levar todas, mas Natalie, sempre fazendo o

papel de amiga, dizia que algumas não tinham ficado boas para tentar

controlar o vício consumista dela.

— O que seria da minha vida sem você, amiga? — Kelly abraçou

Natalie com muita força. Natalie retribuiu com um sorriso, mas por dentro

pensava o mesmo, principalmente desde seu aniversário de dezoito

anos.

Assim que terminaram as compras, as meninas foram para a praça

de alimentação, onde se sentaram para decidir onde iriam comer.

— Depois de comer, poderíamos ir ao cinema, o que você acha? —

sugeriu Kelly. — O que está passando?

Natalie lembrou-se que da última vez em que elas foram ao cinema,

a sua vida se tornou um caos, e ao lembrar-se das companhias, ela

também ficou chateada.

— Paul estava com a gente naquele dia. — Os olhos de Natalie

começaram a brilhar.

— Não fica assim amiga. Melhor deixarmos o filme para outro dia —

disse Kelly, ao perceber que Natalie havia ficado chateada. — Bom, hoje

eu quero uma coisa bem calórica, de preferência um lanche, ou algo frito.

— Você só pode estar maluca, Kelly, acabou de sair do hospital, e já

está querendo comer isso.

— Desse jeito eu vou ficar doente de novo — reclamou a loira.

— Não, desse jeito você vai ficar saudável de novo — retrucou a

amiga.

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Enquanto esperavam o prato que pediram ficar pronto, elas

conversavam sobre outros assuntos, inclusive sobre Carsten, mas a

conversa foi interrompida quando o celular de Kelly tocou. Era Dalton.

— Oi, meu amor — disse ela toda contente, e logo fazendo cara de

preocupada. — Eu sei, mas eu precisava sair um pouco, e a Natalie está

comigo. — Parecia que ele estava brigando com ela, por ter saído de

casa e não seguido as recomendações médicas. — Sim. Você quer que

eu peça alguma coisa para você? — Dalton possivelmente estava

combinando de se encontrar com elas. — Você parece estranho.

Aconteceu alguma coisa? — Kelly escutou mais alguma coisa que ele

disse. — Tudo bem, eu te espero.

Assim que desligou o telefone, ela pediu para Natalie ir ao mesmo

restaurante pedir alguma coisa para o namorado, pois ele estava vindo

para o shopping. Claro que Natalie sabia que tinha de pedir algo mais

calórico para Dalton. Ela se levantou e seguiu até o restaurante.

Após alguns minutos, a comida das meninas já estava na mesa, e

Dalton, que morava perto do shopping, também já tinha chegado. O rosto

dele não estava legal, e Kelly, toda preocupada, perguntou o que estava

acontecendo.

— Primeiro Kyle, agora a minha irmã — disse Dalton.

— O que ela aprontou dessa vez? — perguntou Kelly.

— Desde ontem, ela não voltou para casa. Saiu com as amigas e

não retornou, e o pior é que as amigas dela falaram que ela não tinha

bebido.

— E o que vocês fizeram? — perguntou Natalie.

— Meus pais já foram até a polícia, e eu falei que ia procurá-la, mas

o detetive disse que era para deixar o trabalho para eles.

— Você acha que pode ter acontecido alguma coisa séria? — Natalie

ficou preocupada.

— Ultimamente, eu não sei mais o que achar.

Se Dalton estava assim, já era possível imaginar como estaria a

cabeça de Natalie, o desaparecimento de Lily podia ter ligação com os

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demônios.

Após o almoço, Dalton levou Natalie e foi para a casa de Kelly, já que

ele a convenceu a descansar. Porém, seu telefone não saiu da orelha,

comunicando-se com os pais.

******

Natalie estava atendendo o caixa do bar, porque Jonathan não havia

se sentido bem e deixara a chave do estabelecimento com Nick, a

pessoa em quem ele mais confiava ali. Naquele dia, intervalo seria uma

coisa praticamente impossível, o que deixaria todos cansados, pois

aqueles preciosos minutos faziam toda a diferença.

Para a sorte de todos, aquele dia havia sido atípico, e o bar não

estava cheio. O clima também não estava muito propício. Desde o fim da

tarde chovia muito em Polsher. Não eram pancadas de chuvas

passageiras, mas, sim, uma chuva que já durava algumas horas.

O problema é que, com a chuva, seria muito difícil de sair do bar para

descansar, e eles teriam de ficar por ali mesmo.

Ao contrário dos outros dias, assim que os clientes saíam,

dificilmente algum entrava. Nick resolveu ligar para Jonathan e explicou a

situação. O chefe chegou a brincar que o Avalon só fazia sucesso porque

ele estava lá dentro, e o barman concordou em tom de piada. No fim,

sugeriu em fechar mais cedo e liberar os funcionários até a meia-noite.

Depois dessa ótima notícia, as horas pareciam se passar mais rápido

que o normal.

Assim que os seguranças fecharam as portas, quando o último

cliente saiu, todos se preparavam para ir para casa. Entretanto, Natalie

continuava preocupada, já que estava de moto e teria de enfrentar a

chuva. Nick até ofereceu carona para as meninas, mas a garota, sabendo

que estava rolando algo entre os dois, e sem lugar para deixar a moto,

preferiu enfrentar a chuva. Chegaria ensopada em casa, então deixou

sua bolsa dentro do armário.

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E assim, a garota seguiu o caminho, mais devagar que o normal,

com medo de sofrer algum tipo de acidente. Enquanto guiava sua moto,

no meio de tanta água que caía em seu rosto, ela pensou que aquela

seria uma noite propícia para que os demônios tentassem algo.

Quando ela chegou na frente de casa, viu que tudo estava tranquilo,

não havia ninguém esperando por ela. Então, entrou na garagem e tirou

o capacete molhado. A luz estava apagada e, assim que a porta ia se

fechando a claridade da rua também foi acabando.

— Eu sei que você não quer que eu fique perto de você, mas não

grite, por favor — avisou Carsten dentro da garagem, evitando que, com

o susto, ela gritasse.

Natalie se assustou muito e por pouco não gritou. Naqueles

segundos, a única frase dita por Carsten que não saía da sua cabeça

era: ―Eu sou um demônio‖.

— Você ainda deve estar assustada pelo que eu disse, não é?

A garota permaneceu em silêncio, até que teve coragem de se virar e

olhar para o rapaz. Mesmo na penumbra, ela notou que ele estava seco,

então possivelmente já estava lá havia muito tempo. Logo, veio a

preocupação com a mãe e o irmão. Antes que ela corresse para dentro

de casa, perguntou:

— Há quanto tempo você está aqui?

— Poucos segundos. — respondeu o rapaz.

— Porque você não está molhado? — Notando a chuva que estava

do lado de fora, e a situação em que ela estava, Natalie não pôde evitar a

pergunta.

— Eu não vim pelo lado de fora. — explicou o rapaz. — Não tenho

costume de pedir para entrar.

Por alguns minutos os dois ficaram quietos, e os olhos foram se

acostumando com a mínima claridade do ambiente. Natalie decidiu

quebrar o silêncio:

— Você mata anjos. — disse ela com a voz tremula, ainda com medo

de quem estava a sua frente.

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— Infelizmente eu não consigo controlar isso, e preciso deles para

sobreviver. A energia que absorvo e a noite me fazem mais forte.

— Se a noite te dá energia, por que você tem que matá-los?

— Porque se eu não fizer isso, são eles que me matam — disse

Carsten, olhando para Natalie de maneira sombria. Parecia que aquela

aparência obscura se misturava a uma atitude tímida da parte dele.

— Além de matá-los, você destrói a vida das pessoas. — disse ela se

lembrando de tudo que ouvira.

— As pessoas não têm importância alguma para mim. — Carsten

mostrava a sua verdadeira natureza.

— Então, você faz o que aqui?

— Eu já te disse que eu não sei. — O rapaz de cabelos negros

parecia tão confuso quanto Natalie. — Por conta disso, eu já fui até

castigado, mas é muito mais forte que eu.

Natalie se lembrou dos dias em que ele estava desaparecido.

Possivelmente o rapaz se referia a esse período. Era disso que ele falava

quando tentou algo contra ela.

— Depois de todo aquele sofrimento eu pude perceber que, por

algum motivo, eu não consigo me esquecer de você. — Aquelas palavras

de Carsten fizeram Natalie parar de pensar em qualquer outra coisa. —

Você me faz querer ser diferente.

Sem palavras, a garota ficou olhando para o rosto do rapaz. Ela não

sabia como reagir nem o que falar. Apesar daquele olhar cruel, a garota

sentiu que ele falava a verdade.

Carsten aproximou-se de Natalie, dessa vez a garota não tinha como

evitá-lo, brigar com seu corpo naquele momento era inútil. O frio que ela

sentia havia se tornado quente, como se uma chama a queimasse por

dentro, sem machucar, apenas confortando seu coração.

O rapaz deu mais um passo, ficando bem próximo dela. Ele foi

inclinando sua cabeça para frente e para baixo, aproximando-se da boca

de Natalie. Ele era mais alto que ela. Ela, por sua vez, olhou para o rosto

dele, inclinando sua cabeça para trás. Sua boca estava na direção dele.

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Ela não sabia qual seria a sensação, mas queria senti-la, mesmo sem

saber se era certo ou errado. A única coisa que fez foi fechar seus olhos

e esperar o encontro dos lábios.

— Eu não consigo — disse Carsten, quebrando o clima formado.

Natalie ficou sem entender, recuperando a consciência que tinha perdido

naquele ato. — Tem alguma coisa que me impede de chegar até você.

A garota havia se esquecido do colar, e de como ele a protegia dos

demônios, assim como de Carsten. Ela podia tirá-lo, mas se o fizesse o

sentimento de estar condenando sua família e amigos pela sua ação a

martirizaria até o fim de sua vida.

— Você não pode me tocar. Isso está errado — disse ela. — Este

colar foi me dado por um arcanjo. Ele me protege de tudo que é ruim.

— Quer dizer que você também sabe sobre eles? — perguntou

Carsten, preocupado com o que Natalie estaria sabendo.

— Apenas sei o que eu vi até agora, e, na grande maioria das vezes,

você estava presente.

— Eu sei que você quer me evitar pelo que sou, mas quero te pedir

uma coisa. De forma alguma tire esse colar do seu pescoço, eu estarei

por perto te protegendo, mesmo contra a nossa vontade.

— Acho que eu e meus amigos já passamos por muitas coisas, eu

tenho medo do que possa acontecer.

— Eu sei o que eu causei por ter entrado na sua vida, de alguma

forma eu não quero que sofra mais, mas não me peça para ficar longe de

você.

Carsten apontou para a porta, estava na hora de ir embora. Assim

que o rapaz ficou do lado de fora, seu corpo começou a se molhar e seu

cabelo preto parecia estar mais escuro do que antes.

— Carsten — chamou Natalie. — Se eles souberem que você está

me vendo, o que podem fazer com você?

— Se eles me pegarem, eu posso ser jogado no pior lugar do

submundo, onde não há mais volta para aqueles que vão para lá. —

Natalie ficou assustada ao ouvir aquelas palavras do garoto. — Mas não

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se preocupe, não vou deixar que me peguem.

O rapaz saiu caminhando debaixo daquela chuva, sem abrir um

portal ou suas asas, pois não queria assustar a garota.

Cada vez o medo de Natalie por Carsten diminuía, mesmo sabendo

que ele era um demônio. Naquela noite ela se preocupou com ele, seu

coração bateu mais forte e por pouco ela não o beijou, quebrando todas

as promessas que havia feito de ficar longe dele.

Havia alguma coisa estranha com aquele rapaz. Mesmo ele sabendo

que poderia morrer, arriscava a sua vida, quebrava regras, já havia sido

castigado, tudo somente para vê-la.

Natalie, toda molhada, subiu as escadas para seu quarto, e antes

que fosse para o banheiro, olhou pela janela. No meio daquela chuva, lá

estava ele, olhando diretamente para a janela do quarto dela, para um

último contato, até que corresse e sumisse de sua vista.

******

Era um lugar muito diferente. Parecia um grande salão branco, do

piso até o teto, sem colunas para segurá-lo. Aquele ambiente trazia muita

paz, mas não haviam móveis. O silêncio daquela sala se comparava à

grande sala do retiro dos demônios, mas era o oposto dela, pois trazia

muita tranquilidade, ao contrário daquela escuridão que provocava medo

e desespero.

Bem no fundo da sala estava Reik, vestindo uma roupa branca que ia

até o chão. Usava um cinto dourado e, apesar de a roupa possuir um

capuz, ele não o usava na cabeça, mostrando seus cabelos loiros.

Estava quieto, sem se mover; parecia estar esperando alguém,

meditando.

Alguns minutos se passaram, e do outro lado da sala, bem no fundo,

outros dois homens vestidos da mesma forma que ele, um mais alto e o

outro da mesma estatura de Reik, mas usando os capuzes no rosto,

caminhavam em sua direção. Nem mesmo os passos deles eram

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ouvidos.

Na sala não havia janelas nem portas, sendo impossível descrever

de que maneira aqueles homens entraram.

Os dois continuavam caminhando, sem pressa alguma, lentamente.

Reik os observava, mas também continuava sem nenhuma reação,

apenas aguardando a aproximação dos dois. Quando ficaram frente a

frente, os outros dois ergueram suas cabeças, e conversaram:

— O que traz você à sala do silêncio? — disse o mais alto.

— Quero saber o que está acontecendo — Reik foi direto, contudo,

logo em seguida perguntou. — Por que ele é diferente dos outros?

— Vejo que você vai ficar sem a sua resposta, arcanjo. — O mais

baixo olhou para o mais alto, como se também esperasse uma

confirmação dele.

— Exatamente, nós também não temos essa resposta. O único que

saberia sobre isso já não está mais entre nós.

— A questão maior é, porque proteger um demônio? — perguntou

Reik.

— Algo está acontecendo entre eles, isso é claro — falou o mais alto.

— Eu pedi para que eles se afastassem, mas se viram novamente,

não estão conseguindo mais ficar longe um do outro, por mais que

tentem evitar. — Reik tentava com os companheiros entender o que

estava acontecendo. — Sabemos que ela é especial, mas e ele?

— Reik, não devemos contestar por mais estranho que seja, apenas

devemos nos focar na missão. — respondeu sabiamente o mais baixo.

— Receberam mais alguma ordem sobre o que fazer? — Reik queria

saber se alguma coisa tinha mudado.

— Não. A princípio, tudo deve continuar como estava antes. Ambos

devem ser protegidos — falava o mais alto.

— Os anjos me perguntam por que devemos protegê-lo, e eu não

tenho essa resposta. — falou Reik que parecia agitado.

— Eles devem esperar, afinal, necessitam seguir somente a missão

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que lhes foi passada assim como nós — comentou o mais baixo.

— Nós também temos as nossas preocupações, portanto, devemos

prosseguir — sugeriu o mais alto.

Os dois homens com capuz, definitivamente, eram arcanjos, já que

usavam a mesma roupa de Reik. Pela conversa, pareciam não estar tão

preocupados como Reik, mas, ainda assim, entendiam o desassossego

do arcanjo.

Assim que terminaram, os dois homens caminharam lentamente ao

outro lado da sala, e da mesma forma que chegaram, o silêncio

continuou.

Reik continuou sem se mover, até que no chão se formou um grande

símbolo branco. Nele o corpo do arcanjo começou a afundar, como se

fosse areia movediça, e vagarosamente foi sumindo até que o símbolo

desaparecesse.

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Capítulo 29

A REVELAÇÃO que Dorah esperava ouvir de Gabriel naquele fim de

tarde poderia assustá-la muito. Mas ela não sabia o que esperar do filho.

Dorah decidiu chegar mais cedo em casa, já que o garoto estava

evitando ao máximo o contato com a mãe e a irmã. Ela ficou na sala

esperando até que ele aparecesse, pois tal preocupação já tirava o sono

dela há dias.

Quando Dorah escutou o barulho da porta, sabia que se tratava de

Gabriel, então se levantou e esperou o filho entrar. Quando o garoto viu

que a mãe o esperava, tentou voltar para a rua, mas Dorah chamou a

sua atenção:

— Gabriel, chega de fugir.

— Eu não estou fugindo — disse o rapaz, voltando para dentro da

sala. — Apenas não estou a fim de ouvir nenhum sermão.

— E quem foi que disse que eu quero te dar algum sermão? Estou

precisando fazer isso? — perguntou a mãe, já notando que tinha algum

problema ali.

— Depois de ouvir o da Natalie, acho que vou ter de ouvir o seu

também — disse o rapaz, referindo-se ao dia em que a irmã o encontrou

no bar bêbado.

— Natalie é sua irmã, Gabriel, mas eu sou sua mãe. E se estiver

acontecendo alguma coisa, eu preciso saber.

— Muitas coisas, mãe, e acho que você deve saber do que eu estou

falando. – Dorah não fazia ideia do que Gabriel dizia, mas o rapaz

parecia muito sério, o que a deixou mais preocupada ainda.

— São drogas, meu filho? — Essa seria a primeira preocupação de

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todas as mães.

— Não, mãe, eu apenas bebi um dia desses, mas não são drogas,

nunca usei drogas — tranquilizou o rapaz, mas deixando-a mais curiosa

ainda. — São segredos.

— Segredos? — Dorah não poderia imaginar nenhum tipo de

segredo, já que a família para ela parecia muito unida. — Segredos seus,

meu filho? Se for, eu estou disposta a...

— Mãe! Para de ficar fingindo que você não sabe o que está

acontecendo — disse o rapaz.

Dorah ficou olhando para o filho, e continuava sem entender. Talvez

porque esse segredo era algo que ela não se importava, algo que nem

mais existia em seus pensamentos.

— Por que você nunca me contou antes? — perguntou Gabriel com

os olhos cheios de lágrimas. — É por isso que ela é mais especial do que

eu, não é? — Gabriel se referia a Natalie.

— Gabriel, se você está se referindo à sua irmã, você dois são

especiais da mesma forma para mim. — Dorah tratava os filhos da

mesma maneira, Natalie parecia mais próxima a ela, porque a filha se

aproximava mais da mãe do que o filho. — Eu realmente não sei do que

você está falando.

— Bem, mãe, então eu vou te refrescar a memória. Que tal você

voltar no tempo, e se lembrar do dia em que me pegou de algum

orfanato, ou das mãos de alguém?

Aquela frase tinha sido uma facada no peito de Dorah, ela nunca

imaginava que Gabriel poderia saber disso, já que a única pessoa que

sabia desse segredo era Laurence, e mais ninguém. Nem mesmo Natalie

tinha conhecimento de que o irmão era adotivo.

— A Natalie sabe disso? — perguntou Dorah.

— Você é que tem que me dizer, mãe.

— Gabriel, eu nunca contei isso para ninguém, apenas seu pai e eu

sabíamos disso. — Dorah também encheu seus olhos de lágrimas, e

Gabriel estava chorando. — Eu nunca tratei você e a Natalie de maneira

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diferente, porque vocês dois são meus filhos.

— Mentira! Ela sempre foi mais especial que eu, porque sempre foi

sua filha de verdade. — O rapaz, parecia muito irritado.

— Isso não é verdade, e você sabe disso — disse Dorah, tentando

se aproximar do filho.

Gabriel, em um ataque de desespero, sem saber o que estava

fazendo, correu para a porta e saiu pela rua. Dorah tentou impedir o filho,

mas não conseguiu.

A senhora Zeniek ficou desolada, não sabia o que fazer nem para

onde ir. Pensou em pegar a chave do carro e ir atrás dele, mas não

adiantaria muito, já que Gabriel estava com raiva e não iria conversar

com ela.

Ela foi para o sofá e chorou muito. Aquele segredo, guardado há

tanto tempo, agora havia vindo à tona. Dorah não conseguia imaginar

quem poderia ter contado aquele segredo. A princípio, ela pensou que

Natalie poderia ter escutado de alguma forma, mas sabia que a filha não

faria isso, e com certeza já teria vindo conversar com ela.

Aquela excelente mãe, que tratava os filhos da melhor forma

possível, agora parecia destruída. Dorah tinha se esquecido de todas as

coisas boas que ela teria feito para os filhos, sentindo-se derrotada.

Gabriel, por sua vez, apenas corria. Ele queria liberar sua raiva de

alguma forma, era isso que estava sentindo naquele momento. Mas, para

não fazer besteira, decidiu ir para um local onde pudesse ficar sozinho.

Para refletir, ele escolheu o campo de futebol onde costumava jogar com

seus amigos.

Cansado, Gabriel chegou e respirou bem fundo, e toda aquela raiva

se tornou puro sofrimento. O rapaz não sabia o que fazer nem como

reagir a toda aquela situação. Ele pensou em todos os ótimos momentos

que tivera com sua família, e a ótima educação que Dorah tinha lhe dado,

mas parecia que quando se lembrava de que elas não eram sua

verdadeira família, todas as boas memórias eram destruídas.

Sempre buscando por situações e pessoas semelhantes, lá estavam

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os que vinham da escuridão para tentar ajudar da forma deles. Como se

não bastasse a presença deles, justo quem não poderia ajudar aquele

rapaz apareceu: Katherine.

A garota era culpada de todo o problema dele, e mais uma vez usou

das suas táticas para se fazer de amiga e conselheira, e conseguir o que

queria do irmão de Natalie.

— Parece que você está chateado — comentou a ruiva assustando

Gabriel.

— É você — disse o rapaz, demonstrando que aquele não tinha sido

o segundo encontro dos dois. — Você tinha razão, ela não é minha mãe

e me enganou todo esse tempo.

— Tudo vai acabar bem, você vai ver. — A falsidade era uma das

maiores atribuições da ruiva. — As coisas nunca são como nós

esperamos, ainda mais nesse caso.

— Você diz isso, mas não está passando pelo que eu estou. Está

doendo muito — disse o rapaz colocando a mão no peito.

— Aí que você se engana. Eu vivi uma situação muito pior que a sua.

— Katherine abaixou a sua cabeça, como se estivesse triste. — Perdi

meus pais quando era pequena, e vivi em um orfanato durante muito

tempo. — Quem olhasse para ela daquela forma, poderia até acreditar na

história.

— Eu também perdi meu pai, quer dizer, o que eu sempre achei que

fosse meu pai. — Gabriel agora fazia associações com tudo que estava

acontecendo, como se todas as pessoas o tivessem enganado durante o

tempo todo.

— Gabriel, não fique assim, eu estou aqui para te ajudar, você se

lembra? — disse Katherine sorrindo para ele.

— E por que eu também deveria acreditar em você?

— Porque eu te disse a verdade. — De todas as formas a ruiva

queria convencer o rapaz, mas aquele também seria um trabalho difícil

para ela. — Você prefere acreditar em mim, que te disse a verdade que

você acabou de confirmar, ou em duas pessoas que mentiram para você

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a vida toda?

— Minha irmã não sabe de nada, não sei nem se ela também é filha

da minha mãe.

— Aposto que ela é filha, sim, pois elas são tão parecidas.

— Você conhece minha irmã? — perguntou Gabriel, surpreso com a

comparação de Katherine.

— Claro que sim. Como você acha que eu fiquei sabendo de toda

essa história, se eu não conhecesse a sua família?

— É verdade. — Katherine parecia mais tranquila com o rapaz, já

que ele concordara com ela. Então, fez outra pergunta que deixou a ruiva

totalmente sem resposta: — Como você ficou sabendo?

Antes que ela pudesse encontrar outra saída, eles receberam a visita

de outra pessoa. Victor caminhava lentamente em direção aos dois,

salvando Katherine daquela situação.

— Victor, você por aqui? — disse Katherine.

— Boa noite. — Naquele momento, a noite já começava a surgir, e

pelo tempo que os dois estavam juntos, já era para algum anjo também

ter aparecido. Mas, pelo sorriso de Victor, ele já havia se encarregado

disso. — Mandaram três.

— Três? Do que ele está falando? — perguntou Gabriel.

— Veja, Gabriel, deixa eu te apresentar, esse é meu irmão Victor. —

Katherine interrompeu o rapaz, e forçou-o a mudar de assunto.

— Oi — disse o garoto, abaixando a cabeça novamente, mostrando

que estava chateado.

— O que aconteceu com ele, Katherine? — perguntou Victor, sem

realmente saber o que estava acontecendo, mas entendendo o propósito

de Katherine.

— Problemas familiares — respondeu a ruiva.

— Todos nós passamos por isso, garoto. Veja nós dois.

— Sim, eu já sei, você e sua irmã perderam os pais cedo demais. Ela

já contou.

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Aproveitando que Gabriel estava com a cabeça abaixada, Victor

olhou para Katherine e deu um sorriso, parabenizando pela grande

história inventada pela ruiva.

— Gabriel, a partir de agora você tem que tomar cuidado — disse a

ruiva.

— Do que você está falando?

— Elas vão tentar te agradar de todas as formas, já que agora você

sabe, e vão querer te enganar, continuar o fingimento.

— Eu não vou permitir isso — disse o rapaz, erguendo sua cabeça.

— Muito pelo contrário, você deve fingir que está tudo bem —

aconselhou Katherine.

— E por que eu faria isso?

— Porque se não fizer, você vai para onde? Já pensou nisso? —

disse Victor, pensando mais rápido que Katherine.

— Isso mesmo, irmãozinho.

— Vocês têm razão, mas vai ser difícil agir da mesma forma que

antes.

— Gabriel, você não precisa agir da mesma forma que antes, apenas

aja naturalmente. E lembre-se: se alguma coisa acontecer, estaremos

aqui para te ajudar — falou Katherine.

— Se acontecer alguma coisa, como saberei onde vocês estarão? —

perguntou o rapaz.

— Você não precisa saber onde estamos. Nós chegaremos até você.

Assim como chegamos hoje. — Apesar de as palavras de Katherine não

fazerem sentido, o rapaz já tinha ouvido muita coisa para conseguir

pensar em algo. — Bom, precisamos ir, temos algumas coisas para fazer.

Pense no que eu te disse.

Gabriel ficaria pensando sobre aquilo não só aquela noite, mas

durante muitas outras. Katherine e Victor tinham conseguido exatamente

o que queriam: deixar o rapaz confuso cada dia mais. O propósito deles

não era claro, mas com certeza tinha alguma coisa a ver com Natalie, já

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que a garota era o alvo principal dos dois.

******

A casa já estava silenciosa quando Natalie chegou. Aparentemente

nada de estranho acontecera até aquele momento. Gabriel já havia

chegado, e Dorah também havia ido para a cama. Por não saber o que

tinha ocorrido, Natalie continuou sua rotina: foi para o quarto e se

preparava para o banho.

Quando saiu do banheiro, enrolada em uma toalha, pegou seu

pijama no guarda-roupa, sentou-se na cama e enxugou seus longos

cabelos. De repente, uma voz conhecida a interrompeu:

— Meu filho. Você precisa ajudá-lo.

Natalie reconheceu imediatamente aquela voz, que havia alguns dias

não a visitava. Aquela mulher, que pedia ajuda para o filho, mas que

nunca respondia às perguntas de Natalie, para que ela pudesse ajudá-la.

Nas últimas noites, Natalie conseguiu se comunicar com algumas

vozes, a de Paul, por exemplo. Então ela decidiu se concentrar e tentar

conversar com a mulher para poder finalmente ajudá-la.

— Me ajude, por favor. Ele não tem culpa do que está acontecendo

na vida dele — disse a mulher, repetindo a mesma frase várias vezes.

— Calma, vamos por partes. — Natalie tentou fazer a mulher se

acalmar, e quando disse isso, conseguiu o que queria. — O que está

acontecendo com o seu filho?

— Ele foi levado quando era uma criança — disse a mulher,

respondendo à pergunta de Natalie. — Ele não teve culpa de nada, os

culpados fomos nós.

— Primeiramente, me diga: culpada de que?

— Nossa cidade foi totalmente destruída. — A mulher não conseguia

seguir a mesma linha de raciocínio de Natalie, e às vezes respondia

frases soltas.

— Onde você morava quando isso aconteceu?

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— O nome da minha cidade era Amber. Mas ela foi queimada na

noite em que eles o levaram.

— Eles quem? — perguntou Natalie, já esperando uma resposta.

— Os que vieram da escuridão. — Era exatamente o que Natalie

estava pensando. Parecia que todos que se comunicavam com ela, de

alguma forma, tinham sofrido algo relacionado aos demônios.

— A senhora precisa me dizer o nome do seu filho.

— Eu não sei — disse a mulher, ficando em silêncio por alguns

segundos — Quando ele nasceu nós não tínhamos escolhido um nome

para ele. — Por mais um momento, ela não disse nada. — Ele foi

consumido pela escuridão.

— O seu filho? — Natalie ficou surpresa, e naquele momento queria

todas as informações necessárias, pois uma pessoa saberia de todas

essas respostas: Carsten. — Me conte como aconteceu, me conte tudo,

e eu te ajudarei a encontrar o seu filho.

— Eu não preciso que você o encontre — disse a mulher

surpreendendo Natalie. — Ele já te encontrou.

Naquele momento, Natalie ficou totalmente surpresa. De acordo com

a mulher, parecia que ela já conhecia o filho dela, mas ainda não fazia

ideia de quem era.

— Por favor, me diga o que aconteceu detalhadamente. Quem sabe

eu não posso te ajudar.

— A nossa aldeia precisava de um homem para substituir meu

marido. Um grupo de bruxas chegou para nos ajudar. — Agora, a

comunicação de Natalie e a mulher estava perfeita, e a garota escutava

atentamente ao que a senhora dizia. — Na noite em que ele nasceu, eles

vieram para buscá-lo, dizendo que era parte do trato. As bruxas tentaram

impedi-los, mas eles as mataram.

— A senhora também era uma bruxa? — perguntou Natalie.

— Não. Eu apenas fiz parte de tudo aquilo, mas não deveria. Se eu

não tivesse permitido aquilo, talvez meu filho estivesse livre da maldição.

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— Maldição? — Natalie ainda continuava confusa, apesar de já ter

várias informações valiosas que a ajudariam a tentar descobrir o que

havia acontecido com aquela mulher.

— Ele foi amaldiçoado pela escuridão, que o consumiu totalmente. E

tudo isso foi culpa minha.

— Qual é o seu nome, você pode me dizer?

— Doroth, e meu esposo se chamava Albert — disse a mulher com

voz chorosa. — Ele era um homem muito ruim, castigava as pessoas que

não seguiam seu comando, talvez seja por isso que o levaram.

— Fique calma. Pelo que me conta, você não teve culpa pelo que

aconteceu. — Natalie tentava confortá-la de alguma forma, mas sem tirar

a responsabilidade da mulher, já que ela poderia ter não permitido. — Se

ele era tão ruim, por que você estava com ele?

— Eu não sabia que ele era assim, ele me tratava muito bem.

— Se você me disse que seu filho já me encontrou, quer dizer que

ele está vivo. — Algo pouco provável nos últimos dias, já que Natalie,

ultimamente, via muita coisa que não era propriamente viva.

— Eu preciso ir, mas, por favor, salve meu filho. Você é a única

pessoa que pode fazer isso.

As palavras finais de Doroth deixaram Natalie pensativa. De alguma

forma ela queria ajudar, mas como não sabia quem era a pessoa, ainda

estava confusa. Poderia ser qualquer um que estava ao redor dela,

qualquer pessoa, anjo, demônio. Mas logo ela descartou a possibilidade

de ser qualquer um desses seres, já que a criança tinha saído da barriga

da senhora.

De qualquer maneira, ela tinha algumas informações com as quais

poderia iniciar uma pesquisa, como os nomes da cidade e da mulher.

Apesar da curiosidade, ela achou melhor deixar isso para o outro dia, já

que estava tarde e precisava dormir.

Antes de ir para cama, a garota foi até a janela para fechar a cortina

e dar uma última olhada na rua, Carsten não estava lá. Ela começou a

ficar preocupada, já que o rapaz havia contado do castigo que tinha

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recebido por causa dos encontros.

— Eu devo estar ficando louca mesmo, me preocupar com o castigo

que um demônio recebeu — disse Natalie, falando consigo mesma, e

dando uma última olhada na rua.

Então, finalmente, ela viu o que mais queria ver. Lá estava ele, o

lindo rapaz de cabelos negros e olhar misterioso. Ele vestia uma calça

jeans com pequenos rasgos e uma camiseta branca bem agarrada no

corpo definido. Caso alguém pudesse vê-lo, nunca suspeitaria, já que

para muitas pessoas ele era como qualquer rapaz bonito.

Mais do que depressa, Natalie correu em direção à garagem, pois

ficar na frente da casa dela seria muito arriscado. Como ninguém podia

vê-lo, todos poderiam achar que ela estaria louca, falando sozinha.

As portas da garagem estavam se abrindo, e Carsten passou por

debaixo delas, antes que se abrissem totalmente. Natalie apertou o botão

novamente para que se fechassem. Felizmente, aquela garagem não era

barulhenta para acordar todos na casa, ainda mais naquela noite, em que

as coisas tinham sido muito difíceis para Dorah.

Quando o rapaz se aproximou de Natalie, ela pôde vê-lo

perfeitamente, pois dessa vez as luzes estavam acesas. Por alguns

segundos, os dois apenas se olharam, parecendo analisar cada pedaço

dos seus rostos.

Carsten olhava fundo nos olhos de Natalie. Para o rapaz, aqueles

olhos eram perfeitos e transmitiam tranquilidade e sinceridade. Natalie

também o olhava nos olhos, mas, para ela, o olhar dele era misterioso e

transmitia a segurança que ela precisava sentir.

Natalie não sentia mais medo de estar com ele. De alguma forma,

Carsten transmitia a segurança que Natalie precisava nesses dias de

caos em que ela vivia, mesmo sabendo o que estava arriscando.

— Há quanto tempo você consegue ver os anjos? — perguntou

Carsten, quebrando silêncio.

Natalie não estava preparada para aquela pergunta, e demorou um

pouco para conseguir raciocinar sobre o que ele perguntava, afinal,

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estava mergulhada no olhar dele.

— Desde o dia em que eu te vi pela primeira vez, no posto de

gasolina.

Por incrível que pudesse parecer para o rapaz, desde aquele dia, em

que ele a viu pela primeira vez, também não conseguia mais ter sua

rotina normal.

— Antes disso, você encontrou com algum deles? O que eles fizeram

com você para te deixar assim?

— Assim como? — perguntou Natalie.

— Assim, me deixando confuso cada vez que eu olho para você. —

Apesar do misterioso olhar de Carsten, a sinceridade no tom de sua voz

era clara. — Cada vez mais eu sinto vontade de te ver, de ter você perto

de mim o tempo todo.

— Você precisa tomar cuidado, porque se for visto, eles podem te

matar.

— Não se preocupe. Para eles, eu estou caçando em outra cidade.

— E eles não podem te rastrear? — perguntou Natalie.

— Você se lembra que outro dia eu fui embora caminhando? —

Natalie afirmou com a cabeça que se lembrava. — Pois bem, eu poderia

ter ido embora de outra forma. Agora, não estou usando nenhuma de

minhas habilidades, e para chegar aqui, vim andando. Apenas, utilizei

minhas habilidades na cidade vizinha de Polsher.

— Quer dizer que eles só sabem onde você está se usar suas

habilidades?

— Sim. Por isso, antes de vir aqui, eu as usei na outra cidade para

enganá-los.

— Matando anjos? — perguntou Natalie, já esperando a

confirmação.

— Natalie, eu já te disse que se eu não fizer isso, eles me matam. —

Carsten sabia que aquilo não a agradava, mas ele não conseguia lutar

contra isso quando estava longe dela. — Fiz isso para poder te ver.

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Mais uma vez o silêncio e os sentimentos deram lugar às palavras.

Mas a garota não podia deixar aquela oportunidade passar, precisa tirar

dúvidas que rondavam a sua cabeça:

— O que são os demônios, já que eles não são como nós? Como

vocês são?

— Natalie, tem algumas coisas que você não precisa saber, pois só

te deixam mais confusa.

— Mas eu quero saber. — Natalie parecia ser insistente.

— Você quer dizer, como somos criados?

— Isso.

— Bem, já que você quer mesmo saber... — Carsten respirou e

começou a explicar tudo para a garota. — Somos criados através de

todas as energias ruins que os seres humanos produzem, como a raiva,

o ódio, a inveja, tudo isso produz a energia que nos cria.

— Ou seja, nós criamos vocês para que depois nos façam sofrer? —

perguntou Natalie indignada.

— Exatamente. — Carsten permaneceu calado, pois sabia que

aquela não era a única curiosidade de Natalie.

— E onde vocês recebem essa energia até se tornar o que são?

— Eu imaginava que ia me perguntar isso, mas essa resposta eu não

tenho. — disse ele. — Quando acordamos, já estamos grandes e dessa

forma que você me vê.

— Dessa forma tão parecida com um humano. — Natalie tinha suas

perguntas respondidas, mas ainda parecia confusa. — Aquele dia, no

bar, eu vi você e o outro igual a você, mas ele parecia mais jovem.

— Sim, ele é mais novo. Acordou um pouco antes de mim, por isso

tem a aparência mais jovem, e por isso é mais imaturo também.

— Vocês envelhecem?

— Sim, mas enquanto vocês, humanos, envelhecem todos os anos,

um ano de vocês é o que equivale a quase vinte para nós.

— Faz quanto tempo que você vive por aqui? — perguntou Natalie.

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— Em Polsher, apenas seis meses, mas faz três anos que eu acordei

— disse Carsten se referindo aos anos dos humanos.

Natalie poderia ficar horas fazendo perguntas à Carsten, mas teve

medo de ele se irritar. Então decidiu ficar em silêncio.

— Cansou? — perguntou Carsten, sorrindo sem mostrar os dentes.

— Do que você está falando?

— Estou perguntando se você se cansou de querer saber mais. —

Carsten não parecia nem um pouco se importar com as perguntas de

Natalie. Para ele o simples fato de estar com ela já o fazia se sentir

melhor. — No começo, quando eu estive pela primeira vez perto de você,

senti uma dor muito forte dentro de mim, algo que doía, mas não

machucava. Hoje eu ainda sinto isso, mas já me acostumei com essa dor.

— Só de estar perto de mim? — perguntou Natalie.

— Sim, e eu acho que essa dor é que te faz diferente. É o que me

faz querer te ver cada vez mais.

— Quer dizer que você gosta de sofrer?

— Como eu te disse, essa dor não me machuca, e mesmo que me

machucasse, já senti muita dor pior que essa. — Carsten deveria se

referir a Mantros. — Se for para ter você do meu lado, eu sentiria

qualquer dor necessária.

Era quase impossível de imaginar que um demônio usasse tais

palavras, que representavam carinho, preocupação e afeto.

Esses motivos é que deixavam Katherine e Victor irritados, pois

ambos conheciam a verdadeira face de Carsten. Um assassino de anjos

incomparável, alguém que já tinha feito muitos humanos sofrer das mais

diversas formas possíveis. Um jovem demônio que tinha o maior respeito

pelo ancião que o protegia, graças às suas ações passadas.

Todos esses feitos, a cada dia, eram apagados da memória dele,

pareciam não ter mais sentido. Cada vez que ele a via, a cada troca de

olhar com aquela garota, sua vida estava mudando completamente.

— Eu realmente não sei o que dizer. — Natalie segurou seu colar

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nas mãos como se fosse tirá-lo. Seu corpo pedia aquilo, era como uma

necessidade, ela precisava senti-lo.

— Não faça isso, Natalie. — disse Carsten, proibindo-a de tirar o

colar. — Eu acho que esse colar não tem somente o poder de te

proteger.

— O que você quer dizer? — perguntou Natalie soltando o colar.

— Nenhum dos demônios consegue te rastrear. Todos no início

achavam que você era um anjo, ou algo parecido. Portanto, eu acho que,

por conta desse colar, você também não pode ser rastreada.

— Mas naquele dia em que você me salvou, você disse que me

sentiu — disse Natalie.

— Sim, eu senti seu medo, mas não me pergunte como. Foi algo

diferente de rastrear um humano. — O rapaz foi até a porta da garagem e

apertou o botão para ir embora. — Essa dor que sinto, naquele dia, eu a

senti muito forte. — O rapaz continuou falando, e se dirigindo até a porta.

— Onde você está indo? — perguntou Natalie.

— Se eu ficar aqui mais um pouco, não conseguirei te proteger mais.

— Natalie não entendeu o que ele quis dizer.

— Se você disse que o colar me protege, do que você tem medo? —

perguntou a garota.

— De que eu peça para que você o tire.

Carsten se virou e saiu caminhando, sem se despedir de Natalie,

mas a deixando completamente sem reação.

A noite terminou, e Natalie foi dormir segurando o colar nas mãos,

pensando que deveria tê-lo tirado e feito o que tinha vontade.

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Capítulo 30

O BEIJO secreto de Nick e Serah, visto por Natalie naquela noite,

era lembrado pela garota todas as vezes que ela reparava na troca de

olhares dos dois.

Aquela noite seria perfeita, mas muito trabalhosa, pois era noite de

banda. Aliás, uma banda que tocava algumas músicas que Natalie

adorava ouvir, portanto ela estava animada. Mas, até que eles

começassem a se apresentar, os três teriam muito trabalho pela frente.

O bar já estava bem cheio, muitas pessoas já pediam suas bebidas,

na maioria das vezes cerveja, mas sempre Nick tinha de preparar alguns

drinks. Em um momento preparando um drink, ele notou que uma das

bebidas estava acabando, e que Jonathan tinha se esquecido de comprar

mais para estoque.

O chefe, evitando que saísse enquanto o bar estava cheio, pediu

para que Natalie fosse até o mercado para comprar mais três garrafas,

que eram o suficiente para a noite. A garota concordou, e disse que ia

rápido para não perder a banda.

— Você não quer que eu vá, Natalie? — perguntou Serah,

preocupada com a saída de Natalie.

— Não, pode ficar aqui, eu vou e volto bem rápido.

Serah não gostou muito, mas não podia falar nada para não dar na

cara a sua estranha preocupação. Ela temia pela proteção de Natalie, já

que os dias de caos que Reik havia comentado estavam se aproximando.

Qualquer coisa ruim que acontecesse com ela poderia atrapalhar os

planos que os céus tinham, mesmo ela não sabendo quais eram.

Assim que Natalie saiu do bar, caminhou em direção ao mercado,

que se localizava a poucas quadras dali. Como ainda faltavam trinta

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minutos para o estabelecimento fechar, ela se apressou.

A noite estava linda, o céu totalmente limpo, onde era possível ver

várias estrelas. A lua cheia iluminava as ruas de Polsher, principalmente

naquela área de galpões onde ficava o bar, tão mal iluminada. Natalie

teve alguns pensamentos bobos, como lembrar que em noites assim,

com uma lua tão bonita, os lobisomens apareciam. Claro que aquela

ideia era absurda, pois estes não existiam, pelo menos até agora ela não

tinha visto nenhum.

Natalie continuou seu caminho até o mercado, e quando estava a

duas quadras do local, viu um gatinho preto parado no meio do caminho.

— Ei, gatinho, dizem que se eu cruzar o seu caminho, terei grande

azar na minha vida. — Ela conversou com o gato, olhando para os lados,

com medo de alguém observar aquela atitude. — Fique tranquilo que eu

não acredito nisso. — Parecia que aquele gato acompanhava Natalie

com os olhos, mas ela nem deu bola e continuou andando.

Assim que chegou ao mercado, não perdeu tempo, foi até o

departamento de bebidas e pegou as três garrafas que Jonathan pediu.

Foi até o caixa, e, enquanto pagava, o dono já fechava as portas. Natalie

saiu do mercado com duas sacolas e seguiu o caminho para o bar.

Ela até pensou em cruzar os galpões para chegar mais rápido, mas

se a rua já estava meio escura, lá a escuridão era total, então ela preferiu

seguir o caminho normal. Quando cruzou uma das ruas, escutou o miado

de um gato. Mesmo sabendo que precisava chegar rápido ao bar, o

miado parecia vir de um animal desesperado. Lembrando-se do gato que

estava em seu caminho quando estava indo ao mercado, Natalie decidiu

entrar na rua paralela, que mais parecia um beco.

A garota olhou para os lados, o miado parecia cada vez mais alto,

mas ela não conseguia enxergar o animal. Viu que lá havia um grande

contêiner de lixo. Deixou as duas sacolas no chão e tentou abrir uma

grande lata de lixo, mas a tampa era muito pesada e a garota não

conseguiu.

— Droga, isso aqui está muito pesado. — O animal continuava a

miar. — Eu preciso pedir ajuda, não vou conseguir abrir isso sozinha.

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O miado do animal parou, ela imaginou que poderia ter acontecido

alguma coisa com o animal, e ficou desesperada. Empurrou com toda a

força a tampa do lixo, e quando estava próximo de abrir, ouviu um ruído.

Com o susto, soltou a tampa fazendo um grande barulho.

O beco, que ainda estava iluminado em parte pela luz da lua,

começou a ficar escuro, pois uma grande nuvem negra encobriu a luz do

luar. Natalie, assustada, pegou as duas sacolas e foi em direção à rua

principal.

Quando a garota estava chegando à saída, escutou novamente os

miados, mas, com medo de voltar, apenas parou e olhou para trás.

Continuou sem ver nada e, sem pensar duas vezes, decidiu sair dali.

Porém, de repente, ao se virar novamente, ficou de frente com um

grande animal negro que mais parecia um imenso gato.

Assustada, Natalie ficou paralisada, e no mesmo momento recordou-

se do animal que atacou Dalton. Dando pequenos passos para trás,

lembrou-se das palavras de Reik e da proteção do colar contra os vindo

da escuridão, mas não sabia se ele a protegia daquele animal.

— Isso mesmo, acabe com ela, Larxen — disse Katherine que estava

em cima de um dos galpões vendo tudo, com algumas capsulas de anjos

que acabara de matar a ruiva pretendia assistir a cena de camarote. —

Estraçalhe o corpo dessa garota, quero vê-la sofrer.

Ao perceber a movimentação da garota, Larxen começou a caminhar

em direção a ela, lentamente. Era possível ver o tamanho das garras de

suas patas e como ele estava pronto para atacar. O animal também

mostrava longos e afiados dentes.

O desespero começou a tomar conta de Natalie e a garota quis

gritar, mas ficou com medo de o animal a atacar. Ela recuou, mas sentiu

em suas costas as paredes do beco: tratava-se de um local sem saída.

Não havia o que fazer, e ela já imaginava que aquele seria seu fim.

Segurou bem firme as garrafas que havia comprado e pensou em jogá-

las nele, mas, tendo em vista o tamanho do animal, seria em vão.

Agachando-se no chão, Natalie não conseguia pensar em nada, a

não ser na sua família, em seus amigos e em Carsten. Ela se lembrou

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das palavras do rapaz: ―Alguma coisa dentro de mim faz querer que eu te

proteja‖. Era o que Natalie mais queria naquele momento, que ele

estivesse ali para protegê-la.

Ao perceber que a garota estava encurralada, Larxen parou, olhou

para seu rosto assustado e ficou em posição de ataque. Em um rápido

salto, o animal pulou direto no rosto de Natalie.

De olhos fechados, ela gritou e seu medo se multiplicou. Por um

minuto, achou que estava morta, mas, como não ouviu mais nada, abriu

os olhos. E o medo que consumia o seu corpo foi, então, substituído por

uma grande segurança ao ver as costas de Carsten. Lá estava ele, em

posição de ataque, olhando direto nos olhos de Larxen.

— Natalie, proteja-se. Quando eu mandar, você corre — disse o

rapaz, sem tirar os olhos do animal, que tinha sido arremessado para

longe.

— Eu estou com medo, Carsten. — Natalie se sentia frágil perto

daquele animal. – Me ajuda.

— Quando eu falar, você corre. — Carsten correu em direção a

Larxen e gritou: — Agora, Natalie, corre.

A garota correu em direção aos dois. Carsten segurava Larxen pelo

pescoço, mas o animal era muito forte. Com medo de passar entre eles,

Natalie parou do lado do rapaz.

— Eu estou segurando ele, anda! — Carsten lutava contra o animal.

— Eu não consigo, ele vai me atacar. — Natalie viu que a cabeça

dele estava na direção em que ela passaria. Mesmo o rapaz segurando o

animal, um ataque seria fácil.

Olhando para Natalie e Larxen, Carsten também não sabia o que

fazer. Ela era a mulher que estava fazendo sua cabeça pirar, e havia

mudado a vida dele em todos os sentindo. Aquele animal fora seu

companheiro durante muito tempo. O rapaz via-se em um impasse.

Debatendo-se contra o rapaz, Larxen o empurrou com força contra a

parede, e o mordeu no ombro, fazendo-o gemer de tanta dor.

— Agora, Natalie, corre — disse Carsten, aproveitando-se do

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momento.

Natalie também percebeu que este era o momento certo. Passou

pelos dois e correu em direção à rua. Quando Larxen percebeu, soltou-se

de Carsten e pulou em direção à garota.

— Desculpa por isso. — Carsten segurava o rabo do animal,

evitando que ele atacasse Natalie.

Larxen voltou-se em direção a Carsten com sua enorme boca cheia

de dentes afiados, e os dois caíram com muita força no chão.

Já na rua, Natalie pôde ver os dois caídos e, preocupada com

Carsten, que estava em baixo do animal, colocou as bebidas no chão e

correu em direção a ele, sem pensar se Larxen estava vivo ou não. Ela

ficou parada próximo aos dois, observando alguma movimentação.

Quando percebeu que o corpo de Larxen se mexia, a garota, então,

pensou no pior. O animal caiu para o lado, e Carsten pôde respirar

novamente, aliviado, mas ainda deitado.

Larxen estava estirado no chão, uma faca prateada estava cravada

no seu peito. Daquele local, uma pequena fumaça subia lentamente, que

depois foi aumentando, saindo também pelos ouvidos e boca do animal.

Ele estava queimando por dentro, e aos poucos seu corpo tornou-se

cinza.

Aquele imenso animal, que por várias vezes ajudou Carsten,

Katherine e Victor, estava morto, e pelas mãos de um deles, o seu

companheiro de caça. Carsten parecia arrasado. Ele sabia que não teve

alternativa, mas era como se ele tivesse matado um amigo.

— Maldita garota, você vai pagar por isso — Por mais que Carsten

tivesse matado o animal, Katherine botou toda culpa na garota,

multiplicando a raiva que já sentia dela. Logo a ruiva saiu do local, com

medo de ser vista.

— Você está bem? — perguntou Natalie, ajoelhando-se perto do

rapaz.

— Sim, agora acabou. — Carsten olhou para o lado e viu que o

corpo de Larxen havia se tornado pó. — Não tinha o que fazer, era ele ou

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você.

Natalie percebeu que o ombro do rapaz estava ferido. Tentou colocar

a mão nele, mas não conseguia tocá-lo. Sem pensar duas vezes, a

garota tirou o colar do seu pescoço.

— Natalie, não faça... — Carsten interrompeu sua própria fala,

quando, pela primeira vez, sentiu o toque de Natalie em seu corpo.

Mesmo sabendo que era perigoso ficar ali, pois usara sua força e

agilidade para atacar Larxen, e possivelmente outros demônios, inclusive

Victor, poderiam aparecer, ele não conseguia mais pensar ou dizer nada.

Apenas sentia aquelas delicadas mãos no seu corpo.

— Natalie, eu usei minhas habilidades. Nós precisamos sair daqui. —

Ele sabia que, se não saíssem dali, aquele poderia ser o último contato

dos dois. — Precisamos... — Natalie interrompeu o rapaz, colocando o

dedo na boca dele, como se pedisse para fazer silêncio.

Sem medo do que pudesse acontecer com os dois, Natalie olhou

para Carsten, aproximou-se e sentiu a respiração do rapaz aumentando

cada vez que sua boca chegava mais perto da dele. Foi então que ela os

sentiu pela primeira vez. Seus lábios eram macios e quentes, e à medida

que eles encontravam com os de Natalie, ambos ficavam na mesma

temperatura.

Apoiado em uma das mãos no chão, Carsten colocou a outra ao

redor do pescoço de Natalie, puxando-a para mais perto dele, finalmente

a beijando. Aquilo era o que os dois mais queriam, mesmo se evitando

por tanto tempo.

Ela finalmente estava sentindo o beijo de Carsten. Por ele ser um

demônio, para muitos, poderia ser uma das piores coisas do mundo, mas

para Natalie aquele era o melhor beijo que ela já tinha recebido em toda

a sua vida. Ela estava entregue àquela situação, e àqueles lábios.

O beijo de Natalie era diferente e sua boca era perfeita para ele.

Carsten sentia o coração dela batendo lentamente, tranquilo.

— Obrigada — disse ela parando o beijo e olhando-o nos olhos,

agradecendo por ter sido salva.

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Logo em seguida, Carsten voltou a beijá-la.

O mundo naquele momento estava parado para os dois. Ambos não

conseguiam sentir mais nada, a não ser o contato dos seus corpos e o

toque dos seus lábios.

Natalie encostou a cabeça no peito de Carsten e bem de longe sentiu

uma leve batida não regular. Ela tentou ouvir novamente, mas o demônio

a interrompeu.

— Natalie, eu jamais iria querer te soltar e te deixar ir nesse

momento — disse Carsten, olhando para ela. — Mas você precisa ir

antes que eles apareçam. É para a sua própria segurança.

— Eu sei. — Natalie deu mais um rápido beijo em Carsten e se

levantou.

— Coloque o colar de volta — lembrou o rapaz, já que ela parecia ter

se esquecido de que precisava dele para a proteção. — Por favor. —

Carsten se levantou e ficou próximo a ela e deu um último beijo na

garota, que ficaria na lembrança dele até que eles pudessem se ver

novamente.

Com o colar no pescoço, Natalie pegou suas sacolas e foi direto para

o bar. Apressou o passo, imaginando qual desculpa daria quando

chegasse lá. Pelo horário, pensou em dizer que o mercado já estava

fechado e ela teve de ir para outro lugar onde vendiam a bebida. Parecia

ser um desculpa boba, mas naquele momento não conseguia pensar em

mais nada, a não ser no beijo de Carsten e naquela batida ouvida em seu

peito.

Carsten não podia ficar mais nenhum segundo no beco. Todos já

deveriam saber que ele estava lá, e provavelmente que Larxen estava

morto.

— Você não tem para onde ir, não é? — Reik estava bem atrás do

rapaz e, pelo visto, tinha observado tudo o que tinha acontecido. — Eu te

disse que era para você se afastar dela, mas você não me ouviu.

Por conta da presença do arcanjo, os outros demônios não haviam

se aproximado antes. Eles deviam estar esperando que o arcanjo se

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retirasse dali.

— Eu já disse que não aceito ordens suas — disse Carsten.

— Eu não estou te dando ordens. Neste momento, apenas estou

preocupado com a segurança de Natalie e com a sua também.

— E por que você se preocuparia comigo? — perguntou o demônio.

Reik ficou em silêncio, pois não queria responder à pergunta de

Carsten.

— Eu apenas estou recebendo ordens. Você não tem para onde

correr. Eles vão atrás de você e, com certeza, tentarão matar você e a

Natalie.

— E o que você quer que eu faça? — Carsten também não sabia o

que fazer. Ele não estava arrependido do que havia feito, mas tinha medo

do que poderia acontecer com ela. — Você precisa ajudá-la.

— Ela estará protegida enquanto estiver com o cristal, e você sabe

disso. Quanto a você, se quiser ficar vivo, me siga.

— Eu não vou a lugar nenhum com você. — Carsten não queira a

ajuda de um arcanjo. Mesmo sabendo que não teria outra opção, seu

orgulho era maior que qualquer coisa.

Reik se aproximou do demônio e, em um rápido movimento, o pegou

pelo pescoço, deixando seus pés longe do chão.

— Escute aqui, se você e ela não fossem tão importantes, eu poderia

acabar com você agora mesmo. — Reik, sempre sereno, nunca pareceu

tão irritado como naquele momento. — Portanto, você virá comigo se

quiser que ela também fique viva.

Carsten percebeu que Natalie também poderia estar em perigo se

ele não fosse com Reik, mesmo sem saber para que lugar o arcanjo o

levaria.

— Existem dezenas de anjos a protegendo agora. — Provavelmente

Reik havia mandando um sinal para que os anjos não tirassem os olhos

de Natalie. — Você vai para um local aqui na Terra onde poderá ficar

longe da luz do sol, a qual te enfraquece, e também terá proteção para

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poder descansar.

Carsten parecia entender que a situação estava ficando cada vez

pior.

— Se você quiser a segurança dela e, claro, a sua também, faça o

que eu estou pedindo.

Carsten tirou a sua camiseta e abriu suas grandes asas negras. Reik

usava sua longa roupa branca, e não precisou tirá-la, pois esta tinha

grande abertura nas costas. Então, abrindo suas imensas asas brancas,

diferente dos anjos, as asas dele eram duplas, haviam duas de cada

lado, o deixando mais majestoso ainda.

— Ouvi dizer que você é rápido, não é? — perguntou Reik. — Sim,

essa é a minha habilidade.

— Muito bem, estão me siga. — Reik bateu suas asas e,

diferentemente dos outros anjos, tomou uma grande altitude em

milésimos de segundos. — Seja rápido para que ninguém o veja.

Mesmo usando sua habilidade, Carsten teve dificuldade para

alcançar a velocidade do arcanjo, mas conseguiu o acompanhar,

seguindo em uma direção desconhecida, onde os outros demônios não

pudessem fazer nada contra ele.

******

Naquele momento, a única coisa de que Natalie sentia falta era dos

braços de Carsten. Quando estava com ele, todo o medo e a insegurança

de ficar sozinha desapareciam. A garota queria que ele estivesse ali com

ela, mas sabia que era impossível.

Quando esteve com ele, por alguns momentos, Natalie conseguiu

sentir uma leve batida dentro do corpo do rapaz, como se existisse um

coração que lutava para viver. Como pensou que demônios como ele não

possuíam coração, achou aquilo muito estranho.

Desde que saiu do bar, ela percebeu que algo muito grave estava

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acontecendo. A cada canto que olhava, ela via muitos anjos parados que

a encaravam. Quando chegou em casa, pensou em ligar para Kelly e

contar o que tinha acontecido, mas achou melhor deixar para a manhã

seguinte.

Antes de se deitar, abriu as cortinas e olhou para a rua, para o

mesmo local em que Carsten estava na noite passada, mas somente

conseguiu ver vários anjos observando a sua casa.

Natalie fechou a janela, sentou-se na cama e começou a se

questionar entre o certo e o errado, entre a verdade e a mentira e,

principalmente, entre a razão e a emoção. Será que Carsten estava

realmente sendo sincero? Por que ela se sentia tão bem perto dele? Qual

o motivo de tantos anjos perto dela? Será que elas a protegiam de

Carsten, após tê-lo beijado? Onde ele estava?

Dificilmente ela conseguiria dormir naquela noite. Natalie precisava

de algum conselho. Queria poder contar com Dorah naquele momento,

mas até que sua mãe acreditasse em tudo e aceitasse a ideia de ela

estar com um demônio, seria tarde demais.

— Como eu queria poder falar com você, pai. — Ela se lembrou de

que poderia ter algum tipo de conselho paterno, mas não tinha certeza de

que Laurence apareceria, pois a última conversa dos dois tinha

acontecido havia muito tempo. — Eu preciso de você. Se puder me ouvir,

por favor, apareça.

O pedido de Natalie foi feito em vão; a voz de Laurence não pareceu

e muito menos a de qualquer outro morto. Ela estava sozinha naquele

momento tão difícil. Mesmo com tantos anjos do lado de fora, aquela

solidão era diferente; ela não se sentia segura nem por um segundo.

Sem saber o que fazer, Natalie se deitou na cama e agarrou um de

seus travesseiros bem forte, buscando alguma forma de conforto.

Lágrimas escorreram pelo seu rosto. Apesar de querer ser forte, ela sabia

que era fraca.

— Por que chora, meu anjo? — Aquela voz foi a melhor sensação

que Natalie poderia ter, desde que tinha sentido os lábios de Carsten.

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— Pai, que bom que você veio. — Natalie parecia chorar mais.

Mesmo sem ver o rosto do seu pai, sabia que ele estava ali para ajudá-la.

— Me diz, o que eu faço?

— Meu anjo, eu consigo sentir seu coração aflito. — Laurence estava

em outro lugar, talvez outra dimensão, mas a conexão que tinha com a

filha era muito forte. — Você está se sentindo culpada pelo que fez?

— Eu não sei. Para te falar bem a verdade, eu não sei se o que eu fiz

é certo ou errado — disse Natalie. — Para as pessoas à minha volta, com

certeza seria errado. E para você, pai?

— Natalie, se eu estivesse vivo, com toda certeza não deixaria que

você fizesse isso, para a sua proteção. — Laurence parou de falar por

um instante, deixando Natalie apreensiva. Então, decidiu continuar: —

Mas eu acho que seu coração sabe o que é certo e o que é errado.

— Meu coração está confuso. O que eu sinto por ele é diferente, é

estranho. — era como se ao mesmo tempo trouxesse conforto e

sofrimento. — Eu tenho medo da minha escolha, temo pelos meus

amigos, pela mamãe e o Gabriel.

— Eu não posso negar que eles correm esse risco — disse Laurence

temendo pela sua família. — Mas também te digo: não podemos mudar

nosso destino.

— Quer dizer que ficar com Carsten estava no meu destino? —

perguntou a garota sem ter conhecimento sobre essas coisas.

— Se aconteceu, provavelmente sim. — As palavras de Laurence

confortaram Natalie, que parecia mais tranquila. — A sua vida e daquele

rapaz, de alguma forma, estão ligadas.

— O que você acha que eu devo fazer agora?

— Minha filha, continue vivendo sua vida e esteja preparada para

tudo. — Assim como todos, menos Natalie, Laurence sabia que ela ainda

sofreria muito, e sentia muito por não estar do lado da filha como deveria

estar. — E procure por proteção. Acima dos anjos e arcanjos existe

alguém que é muito mais forte. Alguém que poderá te ajudar nos

momentos mais difíceis.

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Quando Laurence se referia à proteção, ele falava de Deus. Natalie

reconheceu que fazia muitos anos que não ia à igreja, e naquele

momento de caos aquela poderia ser uma das saídas: buscar por

proteção, e não simplesmente esperar que esta viesse até ela.

— Eu apenas quero que você fique bem — disse Laurence,

desaparecendo logo após.

— Obrigada, pai. — As palavras de Laurence tinham dado o devido

conforto que Natalie queria, então ela logo dormiu tranquilamente.

Natalie não conseguia esquecer-se daqueles lábios nem mesmo

durante o sono. Seus sonhos foram todos com aquele belo rapaz de

cabelos negros, que havia trazido um novo sentido para a vida dela.

Naquele momento, perto do bar, no mesmo beco em que tudo

aconteceu, estava Victor. Ele colocava suas mãos no chão no local onde

Larxen havia morrido, esperando sentir algo.

— Maldito. — Victor deu um soco no chão. Suas mãos tremiam de

raiva após saber da morte de Larxen. — Eu não acredito que ele fez isso

com você, Larxen.

O rapaz se levantou, olhou à sua volta e tentou procurar o rastro

daquele que tinha matado o seu melhor amigo.

— Ela foi a culpada novamente, Victor — disse Katherine

aparecendo.

— Como você sabe? — a fúria nos olhos do jovem demônio era

incontrolável.

— Eu o vi, ele o matou para protegê-la. — Katherine continuava

atiçando fogo, ela queria que Victor sentisse a mesma raiva que sentia da

garota, mas seus esforços foram em vão.

— Eu vou matar esse idiota — gritou Victor

Vendo que seu plano tinha dado errado Katherine tentou amenizar a

situação para o lado de Carsten.

— Você não sentiu a energia que estava com ele? Ele está com um

arcanjo, não conseguirá fazer nada.

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— Então, agora você está do lado dos anjos. — As majestosas asas

negras de Victor se abriram, e com um impulso ele estava no ar, olhando

para todos os lados. — Não será para sempre essa proteção, Carsten.

Uma hora a guarda deles vai baixar, e você me pagará muito caro.

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Capítulo 31

A PESQUISA que Natalie fazia em seu computador era sobre a

igreja principal da cidade de Polsher. Ela desejava saber em quais

horários ela ficava aberta para seguir o conselho que seu pai tinha dado

na noite anterior.

O site dizia que a igreja ficava aberta das oito da manhã às oito da

noite. Natalie teria todo o tempo para visitar, no meio da tarde, antes de ir

para o bar. Ela até poderia pedir a companhia da mãe, já que era sábado,

mas preferiu ir sozinha e ter aquele momento só para ela.

Havia alguns anos que Natalie não acompanhava mais sua mãe nas

celebrações. Dorah costumava chamá-la várias vezes, mas a garota

havia se afastado um pouco da igreja, porém, sem nunca deixar de

acreditar em Deus e conversar com ele. Nesses últimos dias, ela queria

muito obter respostas sobre tudo o que estava acontecendo. Queria

poder ouvi-lo e saber se o que estava fazendo era algo errado.

Natalie pegou sua moto e seguiu para a Catedral de Polsher, que

ficava no centro da cidade, próximo ao shopping. De longe ela conseguiu

ver o grande sino que tocava todos os dias às seis da tarde.

Assim que estacionou na porta da igreja, viu que algumas pessoas

saíam e outras entravam. Durante o dia, muitos visitavam a igreja para

agradecer e pedir suas preces. Gente de toda Polsher, que aproveitava o

horário de almoço, ou pelo menos o meio da tarde, para dedicar um

pouco do seu tempo dentro daquele local sagrado.

Assim que guardou seu capacete, Natalie olhou para todos os lados

e viu alguns anjos que a seguiam durante todo o dia. Apesar de saber

que era para sua própria segurança, aquilo já estava incomodando a

garota. Então, quis entrar o mais rápido possível na igreja, pensando que

aquele também deveria ser um local sagrado para os anjos.

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Ao subir os longos degraus da catedral, Natalie ouviu um barulho. A

princípio, achou que alguém havia caído, mas, quando olhou para trás,

viu três homens e suas grandes asas negras abertas. Apesar de a garota

não poder ser rastreada, a presença dos anjos chamava a atenção dos

três demônios para perto dela.

Natalie viu que os anjos já estavam descendo dos prédios de onde a

observavam, mas, devido à velocidade dos demônios, eles não

chegariam a tempo. Então, decidiu correr para dentro da igreja com toda

a velocidade que podia.

Um dos demônios bateu fortemente as asas para alcançá-la. Os

outros dois tentaram o mesmo, mas foram impedidos por quatro anjos,

que os seguraram pelas asas e logo em seguida os mataram com longas

lanças, as quais cresciam conforme os perfuravam pelas costas e

atravessavam seu corpo. Eles, então, viraram cinza.

O outro demônio estava próximo a Natalie, mas a garota conseguiu

ser mais rápida que ele. Finalmente, entrou na igreja e fechou a grande

porta que estava aberta, fazendo todos que estavam ali se virarem para

ela.

— Me desculpem, está ventando muito lá fora. — Natalie se afastou

da porta, caminhando de costas e observando se a porta não seria aberta

por ninguém.

Um homem que usava um roupão, possivelmente algum tipo de

missionário, ou algo parecido, olhou feio para Natalie. Como o dia estava

lindo e não parecia ter qualquer tipo de rajada de vento, ele foi em

direção à porta e a abriu.

— Não faça isso. — Quando Natalie tentou impedi-lo, já era tarde. O

demônio estava parado na frente da porta, com seu corpo paralisado. —

Ele vai entrar.

As pessoas continuavam encarando Natalie. Por um momento, a

garota se esqueceu de que apenas ela podia ver demônios ou anjos.

Envergonhada e com medo, apenas observou o homem de asas negras,

que continuava imóvel.

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Em uma fração de segundos, o corpo dele começou a expelir fumaça

e se tornou cinza. Conforme ele ia se despedaçando, pequenos dardos

prateados começaram a cair no chão. Os anjos o atacaram, impedindo

que ele tentasse qualquer coisa. Os três demônios estavam mortos.

Natalie ficou aliviada quando viu um dos anjos na porta. Ele era alto,

magro, tinha cabelos negros e, ao contrário do que os outros pensavam,

não era tão belo, mas seu um rosto era bem amigável. Nem todos os

anjos eram lindos e belos como diziam as histórias. Naquele momento,

isso era o que menos importava para Natalie, pois ele e os outros anjos a

tinham salvado.

— Eles não podem entrar aqui — tranquilizou o anjo, com um sorriso

no rosto. — Fique em paz. — Ele deu as costas para Natalie, enquanto

as suas asas se fechavam, formando as grandes tatuagens brancas nas

suas costas.

Ainda envergonhada, Natalie abaixou sua cabeça e seguiu para um

canto afastado das pessoas. Sentou-se no banco e observou toda a

igreja, olhando principalmente para o altar. As lembranças de quando

vinha com sua mãe para as celebrações voltaram à sua cabeça. Eram

tempos de tranquilidade em que ela não se preocupava com nada.

Natalie, em silêncio, juntou as mãos e começou a conversar com

Deus. Em sua oração, tentou obter respostas para tudo o que estava

acontecendo.

Se eu estiver fazendo alguma coisa errada, me mostre, orou Natalie.

— Vejo que você veio ao lugar certo para buscar respostas. — Reik

estava sentado ao lado da garota. O arcanjo chegou sem que ela

percebesse. — Às vezes, apenas assim eu também consigo obter as

respostas que eu quero.

— Foi o que eu pensei em fazer. — Natalie olhou para Reik e

novamente voltou às suas orações.

— Conselho de alguém especial? — perguntou o arcanjo.

— Muito especial.

Os dois ficaram em silêncio. Reik deixou Natalie terminar suas

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orações, sem interrompê-la novamente. Natalie parecia muito

concentrada. Não dizia uma palavra, apenas orava em silêncio. O arcanjo

apenas a observava.

— Você sabe se ele está bem? — Ela abriu os olhos e virou-se para

Reik, perguntando sobre Carsten, querendo saber alguma informação

dele.

— Sim, ele está bem, descansando. — Natalie ficou surpresa ao

saber que Reik sabia onde Carsten estava, e pareceu ficar um pouco

inquieta. — Eu o levei ontem à noite. — Confusa, Natalie não pode

acreditar que um arcanjo tinha ajudado um demônio, ainda mais depois

dele ter matado vários demônios. — Se ele voltasse para o lugar de onde

veio, a essa altura, estaria morto. Graças à ação de vocês dois.

— Por que você o está ajudando? — Natalie não conseguiu evitar

sua curiosidade.

— Porque é assim que tem de ser feito. — O arcanjo olhou para o

altar, onde havia uma imagem de várias nuvens representando o céu. —

Existem coisas que nem mesmo eu sei. Apenas recebo ordens, Natalie, e

a ordem agora é a proteção de vocês dois.

Natalie sabia que, mesmo que tentasse, não obteria respostas para

suas inúmeras perguntas, principalmente quando se tratava de Carsten.

Então, ela decidiu partir para algo que a estava matando por dentro.

— O que eu fiz é pecado? — Referia-se ao beijo, apesar de ele ter

sido o melhor beijo da sua vida.

— Do ponto de vista religioso, sim. Você beijou um demônio. — Reik

olhou para a garota, que parecia assustada e desapontada. — Do ponto

de vista infernal, para ele também foi um pecado. A questão, Natalie, é:

por que ele aceitou isso? — Ela não fazia ideia do que Reik estava

falando. — Demônios não beijam humanos, pelo menos não

apaixonadamente, como aconteceu.

— Quer dizer que você viu tudo.

— Se eu não tivesse visto e protegido vocês dois, mais uma vez eu

te digo, nem você nem ele estariam vivos.

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— Obrigada. — A garota pensou antes de perguntar, já fazia alguns

dias que aquela dúvida rondava sua cabeça. — O que é você? Acho que

mereço saber.

— Se isso é tão importante, digamos que sou aquele que em uma

hierarquia fico acima dos anjos.

— Um arcanjo? — Se espantou a garota recebendo de Reik uma

confirmação com a cabeça.

— Natalie, a partir de agora, lembre-se de que sua vida, que estava

confusa, vai se tornar um caos. — Reik nunca pareceu tão sincero ao

dizer aquelas palavras. — Eu avisei aos dois que vocês deveriam se

afastar, mas acho que tem algo mais forte acontecendo, esse deve ser o

motivo dos dois serem protegidos.

— Parece que quando mais tento ficar longe dele, mais nos

aproximamos – comentou a garota.

— Sim, eu também percebi isso. — Reik não estava surpreso.

— Sinto a falta dele Reik, é estranho. Tenho necessidade de estar do

lado dele.

Reik colocou a sua mão no ombro da garota, chegou perto do ouvido

dela e cochichou:

— Vou tentar ajuda-los. Agora, peça proteção para Deus, você vai

precisar dela, além da nossa.

Pelas palavras de Reik, Natalie estava perdida. Se tudo que tinha

acontecido anteriormente não chegava nem aos pés do que estava para

acontecer, ela não podia imaginar o que seria da sua vida quando essas

coisas começassem a vir à tona. De qualquer forma a garota parecia

mais tranquila, já que o arcanjo pretendia ajuda-la a ver o demônio.

Reik se levantou do banco e se virou para a saída dos fundos. Mas,

antes que o arcanjo se fosse, Natalie fez a última pergunta para ele:

— Demônios têm coração? — Surpreso, Reik não entendeu o motivo

daquela pergunta.

— Não. Por que a pergunta?

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— Porque eu ouvi o coração dele bater. — Reik ficou perplexo ao

ouvir aquela declaração. Apesar de não saber se acreditava, tentou

persuadir a garota.

— Deve ter sido outro barulho, Natalie. Definitivamente eles não têm

coração. — Reik seguiu o caminho até o fim de igreja, e Natalie o

acompanhou com os olhos. Quando ele chegou quase ao fim, gritou de

longe. — E não se esqueça de que ninguém pode me ver ou ouvir.

Quando Natalie percebeu, todas as pessoas olhavam para ela, que

parecia estar falando sozinha. Encabulada, ela preferiu se levantar e sair

da igreja. Aproveitando o dia, pensou em fazer uma visita para Kelly. As

duas precisavam conversar sobre o que estava acontecendo.

Natalie pegou sua moto e seguiu para a casa de sua amiga. No

caminho, reparou que os anjos continuavam protegendo-a, apenas

confirmando que seus dias seriam de caos e que precisaria da proteção

deles.

Assim que ela chegou à casa da loira, o segurança, que já conhecia

Natalie, deixou-a entrar. Kelly, logo que foi avisada da chegada da amiga,

desceu as escadas e foi recepcioná-la. A cachorrinha, Monstra, também

chegou pulando, lambendo a perna de Natalie e abanando o rabo. A

garota logo fez carinho para agradá-la.

— Precisamos ir para o seu quarto, você precisa saber o que

aconteceu. – As duas foram para o quarto de Kelly, onde começaram a

conversar sobre tudo.

Natalie contou sobre a visita do arcanjo, sobre o acidente do Nick, as

visitas de Carsten, o ataque de Larxen, confirmando que Dalton estava

falando a verdade sobre aquele dia, e, por último, sobre o beijo.

— Você o beijou? — Kelly, que antes estava empolgada, ficou

assustada. Sua melhor amiga tinha beijado um demônio, e isso

assustaria qualquer um. — Você só pode estar ficando maluca. Como

você foi fazer uma coisa dessas? E esse colar aí?

— Eu o tirei antes que acontecesse. — Naquele momento, ela havia

provado à amiga que estava ficando louca. Tirar a sua única proteção

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contra os demônios, e na frente de um demônio.

— Natalie, mas você nem sabia se ele te faria alguma coisa. Como

você pôde ser tão irresponsável?

— Kelly, já aconteceu. Agora não tem mais o que falar.

— E foi bom? — Como não tinha mais o que fazer, a loira decidiu-se

pelo papel de amiga e perguntar como teria sido o beijo entre os dois.

— Eu nunca senti uma coisa tão especial antes. — Natalie parecia

viajar novamente no beijo de Carsten, querendo se lembrar de cada

momento, para que pudesse contar com detalhes à amiga. — Foi o beijo

mais sincero que eu já recebi em toda a minha vida.

— Meu Deus, ele realmente é o cara. — Apesar da situação, Kelly

sorriu. — Porque, agradar você com um beijo, só pode ser o cara mesmo.

— Conhecendo bem Natalie, a loira sabia que a amiga não se dava muito

bem com esse tipo de situação.

— Hoje eu também fui à igreja, pois recebi um conselho do meu... —

Natalie não percebeu o que estava falando, e antes que interrompesse a

sua fala, já era tarde demais.

— Do seu o quê? Igreja? Desde quando você vai à igreja? — Kelly

sabia que havia algum tempo Natalie não seguia as doutrinas religiosas.

— Kelly. Eu preciso te contar outra coisa sobre a qual ainda não falei.

— Natalie sabia que Kelly não ia gostar de saber sobre o outro segredo.

— O que eu não estou sabendo ainda? — Justo como ela pensou, a

reação da amiga não foi das melhores.

— Desde o meu aniversário, eu consigo falar com pessoas que já

morreram.

— Eu preciso beber água, e acho que vou dormir. — Kelly olhou para

a cara da amiga com o maior olhar de desconfiança do mundo. —

Natalie, diga que você está brincando, e que eu não precisarei acreditar

mais nestas coisas.

— Infelizmente eu não posso mentir, é a mais pura verdade. —

Olhou para Kelly bem nos olhos para provar que estava falando a

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verdade. — Começou com pessoas desconhecidas, que eu nunca havia

visto na vida. Eram apenas vozes soltas, como se todas falassem juntas,

mas sem fazer sentido algum. Depois foi meu pai, uma mulher que eu

não conheço, e até com Paul eu já conversei.

— Quer dizer que ele te contou como aconteceu?

— Sim. Foi culpa de Katherine, a ruiva que provocou o seu acidente.

— Natalie, se eu não tivesse sido atacada por aquela mulher,

dificilmente acreditaria em tudo isso que estou ouvindo. — A loira parou

por um instante. Já que a amiga podia falar com pessoas que estavam

mortas, e essa novidade era incrível, ela poderia pedir um favor. — Você

consegue contato com a minha mãe? — A loira ficou totalmente

empolgada com aquilo.

— Infelizmente, não é assim que funciona. — Natalie desanimou

Kelly, que até ficou cabisbaixa. — Raramente foram às vezes em que eu

consegui contato com quem eu queria. Ainda não tenho esse tipo de

habilidade, mas parece que está evoluindo com o tempo. — Primeiro as

vozes soltas, depois pessoas conhecidas, agora diálogos, foi assim que

Natalie terminou de explicar para Kelly como tudo acontecia. — Uma

dessas pessoas com quem eu mantive diálogo me pediu para que eu

ajudasse o filho dela, que até agora eu não sei quem é. Ela me falou

algumas coisas, mas eu ainda não tive tempo de procurar pelas pistas

que ela me deu. Quer me ajudar?

Kelly, lógico, concordou na mesma hora, já que assim poderia

confirmar o que a amiga dizia, pois, mesmo mostrando que não estava

desconfiada dela, na realidade ela não conseguia acreditar em tudo.

Assim que as meninas começaram a pesquisa, foram a um portal de

buscas pela internet e digitaram o nome da cidade que a mulher tinha

dito a Natalie. O resultado da palavra Amber apareceu com muitas

variações, alguns sites falavam sobre aprovações, outros eram blogs,

mas todos com relação a nomes de garotas. Então, elas decidiram mudar

a pesquisa por ―cidade de Amber‖, e dessa vez os resultados foram

relacionados ao que elas esperavam.

O primeiro site da pesquisa não poderia ser mais intrigante, pois era

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da cidade de Polsher. Nele havia uma breve história de Polsher:

HÁ SETENTA ANOS, QUANDO OS PIONEIROS CHEGARAM ÀS TERRAS QUE

FUTURAMENTE SERIAM POLSHER, TIVERAM UMA SURPRESA. UM LUGAR

TOTALMENTE DEVASTADO POR UM INCÊNDIO, O QUAL TERIA DESTRUÍDO A

PEQUENA CIDADE DE AMBER EM 1600. AS CAUSAS SÃO DESCONHECIDAS. SABE-SE

APENAS QUE O FUNDADOR DA PEQUENA AMBER ERA O CORONEL ALBERT

BOULLAVIER, UM DOS ENCONTRADOS. HOJE, A FAZENDA DOS BOULLAVIERS

CONTINUA INTACTA, SENDO UMA DAS ÚNICAS LEMBRANÇAS DA ANTIGA AMBER

[...].

O texto era extenso, mas aquele pequeno pedaço já explicava

algumas coisas. Polsher era uma cidade construída sobre os destroços

da cidade de Amber, na qual a mulher vivia e de onde seu filho fora

levado, segundo o relato dela.

— Quer dizer que aquela velha fazenda ainda é ruína da antiga

cidade. — Kelly ficou impressionada com essa notícia, já que nunca teve

curiosidade o suficiente para saber qual era a origem da sua cidade.

— Kelly, ela me dizia a verdade. Todos foram mortos por um

incêndio, que, a princípio, fora causado pelos que levaram o filho dela.

— E você acha que esses que levaram o filho dela são os demônios?

— Kelly tentava desvendar o mistério.

— Eu não duvido de mais nada. — Natalie continuou a pesquisa,

mas dessa vez ela queria ir mais a fundo, e digitou incêndio na cidade de

Amber.

Alguns sites de pesquisadores apareceram, pessoas que não tinham

certeza do que estava acontecendo, mas abaixo elas viram um site que

as deixou curiosas, um que falava sobre demônios, e seres espirituais, e

era exatamente isso que as duas procuravam:

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HÁ QUEM NÃO ACREDITE EM DEMÔNIOS, MAS EXISTEM MUITAS PROVAS DE QUE

ELES EXISTEM E ESTÃO PROVOCANDO O CAOS NO MUNDO ATUAL. ANTIGAMENTE,

AGIAM DE FORMA ABERTA, MOSTRANDO-SE PARA A POPULAÇÃO. UM DOS

LUGARES ONDE ISSO ACONTECEU FOI A CIDADE DE POLSHER, NO SUL DO PAÍS,

QUE ANTIGAMENTE ERA CHAMADA DE AMBER.

A PEQUENA AMBER SOFREU UM ATAQUE DE DEMÔNIOS, QUE DESTRUÍRAM TODA A

CIDADE. ELES ROUBAVAM CRIANÇAS PARA OS CULTOS DE CRIAÇÃO E MATAVAM

TODA A POPULAÇÃO.

— Cultos de criação, só pode ser isso! Por esse motivo eles levaram

o filho dela. — Natalie parecia acreditar em tudo o que estava escrito

naquele site. Todas as informações batiam perfeitamente com o que

Doroth havia dito a ela. — Agora nós precisamos saber o que é culto de

criação.

— Natalie, pera aí. Você não vai acreditar em um blog desses, né?

— Kelly começou a procurar o nome do escritor, mas não encontrou em

lugar nenhum. — Tá vendo? O escritor é desconhecido, ou seja, não dá

para confiar.

— Você tem razão.

— Venha, vamos fazer um lanche, daqui a pouco você tem de ir para

o bar. — Kelly foi se levantando em direção à cozinha.

— Vai descendo que eu vou ao banheiro primeiro. — Natalie deu

uma desculpa para fazer uma última e rápida pesquisa.

Quando Kelly desceu as escadas, Natalie colou na página de busca

os termos ―culto de criação‖ e obteve os resultados que queria:

MUITOS DIZEM QUE O CULTO DE CRIAÇÃO ERA FEITO MUITO ANTIGAMENTE POR

DEMÔNIOS ANCIÕES, QUE PEGAVAM CRIANÇAS RECÉM-NASCIDAS PARA A CRIAÇÃO

DE NOVOS SOLDADOS. ESSES SOLDADOS SÃO CONSIDERADOS OS MAIS FORTES DO

SUBMUNDO.

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— Quer dizer que o filho dela pode ser um soldado. — Naquele

momento, Natalie não podia fazer mais nada. Assim que encontrasse

Carsten novamente, precisava perguntar a ele. — Talvez ele saiba me

informar o que sejam esses soldados.

— Natalie, vem! — gritou Kelly, lá de baixo.

— Já estou indo.

******

Faltavam cinco minutos para o final do intervalo de Natalie. Com o

Avalon bem cheio, todos concordaram em fazer apenas dez minutos de

pausa naquele dia.

A garota estava do lado de fora, entre as grades, olhando para os

lados e vendo que, em cada uma delas, havia três anjos que a

observavam, à espera de qualquer tipo de ataque. Ao mesmo tempo em

que ela se sentia protegida, faltava alguém: Carsten.

— Por que você está tão aflita? — Quando ela ouviu a voz dele, tirou

o colar no mesmo momento e o abraçou com muita força.

Ao verem aquilo, os anjos ficaram eufóricos, receosos por um ataque

a qualquer momento.

Carsten beijou Natalie novamente. Eles puderam sentir aquele beijo,

que, desde a noite anterior, não tinha se apagado de sua memória.

Ela se sentia segura nos braços dele, aqueles braços fortes que a

seguravam delicadamente, mas que, ao mesmo tempo, protegiam todo

seu corpo, de forma que nada pudesse tocá-la. Apenas ele.

Em contrapartida, Carsten gostava de protegê-la e, principalmente,

gostava de sentir o coração dela, que, sempre agitado, ficava mais calmo

ao encontro de seu corpo.

Ela colocou sua cabeça bem próxima do peito dele, pois queria ouvir

novamente as batidas. Ela apenas queria confirmar o que já sabia e

ouvira. E, como se esperava, bem baixo e bem lento, ela escutou aquele

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som. Um coração que parecia querer viver, lutando para sobreviver; uma

batida lenta, mas, ao mesmo tempo, forte.

— Carsten. — Disse ela olhando para os olhos dele. — O que você

sabe sobre o culto de criação? — Ela poderia ter questionado sobre o

coração dele, ou qualquer outra coisa, mas a pesquisa feita à tarde não

saía da cabeça dela. Como tinha prometido que seria a primeira coisa

que perguntaria quando o visse, ela o fez.

— Eu não sei muito sobre isso. Aliás, de onde você tirou essa

informação? — O rapaz parecia curioso, pois poucos sabiam sobre esse

culto. Na verdade, até mesmo eles só escutavam boatos sobre o

assunto, e nunca souberam da verdade.

— Quem são esses guerreiros poderosos que nascem através desse

culto? — Carsten percebeu que ela sabia mais do que ele imaginava.

— Bem, o que eu sei é que eles são extremamente poderosos, e que

possivelmente estão sendo treinados em algum lugar para a guerra que

está por vir. — Era exatamente o que Carsten sabia. — Agora, por que

essa pergunta?

Natalie pensou em contar para o rapaz sobre a sua habilidade, e já

que ele estava sendo sincero com ela, não viu problema algum:

— É que eu...

— Natalie, será que você poderia me cobrir agora? — Nick a

interrompeu, e distraiu o olhar dela.

Quando ela voltou seu olhar para Carsten, nem ele nem os anjos

estavam mais ao seu redor.

— Claro, claro. — Ela olhou para todos os lados, procurando por

algum vestígio dele. Parecia um pouco confusa, mas caminhou em

direção à porta e seguiu para o trabalho.

— Noite agitada hoje, não é? — Nick sorriu para ela.

— Muito, Nick, muito.

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Capítulo 32

DIA lindo fazia na cidade de Polsher, e apesar de o sol ainda estar

tímido no início da manhã, já dava para perceber que faria muito calor. As

pessoas sairiam de casa para visitar parques, praças, shoppings centers,

entre outras coisas que a população faz em um domingo ensolarado.

A maior parte da vegetação de Polsher era de mata fechada, mas as

árvores ficavam bem claras em dias ensolarados, formando uma linda

paisagem. No meio de uma dessas matas, em um local aberto, Reik e

Serah conversavam sobre a Natalie e o Carsten.

— A proteção continua aqui na Terra para os dois, mas você precisa

ficar atenta à Natalie. — O arcanjo caminhava como se estivesse

nervoso.

— Ela está segura, os anjos estão o tempo todo ao lado dela. —

Serah parecia apreensiva. Ela queria dizer algo, mas estava evitando a

todo o momento.

— Aconteceu alguma coisa, Serah? — Reik percebeu que havia algo

de errado.

— Eu estou começando a sentir as minhas forças retornando, mas

não quero mais que você aplique o...

— O Rekai — complementou Reik a respeito do selo nas costas da

garota. — Eu sei o quanto o selo é desconfortável. — Com um sorriso ele

complementou: — Não vejo mais razão para que ele seja colocado.

— Faltam poucos dias para que todas as minhas habilidades voltem.

Eu ficarei rastreável novamente.

— Não se preocupe. Logo eu precisarei de você com todas as suas

habilidades. — Reik parecia muito impaciente, e Serah notou.

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— Está acontecendo alguma coisa?

— Eu estou achando muito estranho que os demônios ainda não

tenham vindo atrás do Carsten. Eles devem estar planejando alguma

coisa. — Reik continuava escondendo o rapaz em algum lugar que

somente ele e alguns anjos sabiam.

— Os anjos não se sentem incomodados com a presença dele? —

perguntou ela, pois Carsten havia matado uma grande quantidade deles.

— Sim, mas Carsten sabe muito bem que está sob nossa proteção, e

teme que possa acontecer alguma coisa com ela. — Ele se referia a

Natalie. — Portanto, se ele tentar algo, o nosso trato está terminado.

— E como ele está se alimentando? — Carsten precisava dos anjos

e da força da noite para ficar forte, mas, como estava sem caçar, de

alguma forma Reik o estava ajudando. — Não me diga que você...

— Sim, Serah, é a única maneira. Eu estou doando um pouco da

minha energia para ele. — Reik nunca imaginou que um dia teria de

fornecer parte da sua energia para um demônio. Para os anjos,

especialmente os arcanjos, ajudar um demônio era o sinal de maior

desrespeito, mas, como foram ordens dadas, ninguém poderia dizer nada

a respeito.

— Se eles o levarem, o que pode acontecer?

— Como eu já te disse, existe algo muito especial sobre esse rapaz e

Natalie. — Reik continuou, porém sem revelar nada a respeito. Por

diversas vezes, ele falava sobre isso, levando a crer que poderia alterar o

curso da história da vida na Terra. — Provavelmente eles também têm

planos muito especiais para o Carsten. — Visto que os demônios ainda

não haviam tentado matar o rapaz, como fizeram com Natalie na Igreja.

— Por isso eu te peço, continue protegendo a garota, o risco maior é com

ela.

— Eu continuarei fazendo isso, e qualquer coisa eu entro em contato.

— Serah era muito fiel e responsável, pelo menos era o que Reik

imaginava, mas até mesmo ela tinha caído nas tentações humanas com

Nick.

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— Serah uma última coisa. — Reik olhou para a loira, como se fosse

dizer algo estranho. — Se um dia você descobrisse que um demônio tem

um coração, o que pensaria?

— Por que você está me perguntando isso? — Por um instante,

Serah imaginou que Reik estava falando sobre Carsten, já que esse

poderia ser um dos motivos pelos quais ele estava sendo protegido.

— Por nada, apenas Natalie me disse ter ouvido algo como uma

batida de coração vinda dele.

— E você confirmou isso? — Se a resposta de Reik fosse sim, Serah

ficaria totalmente surpresa, pois todos sabiam que demônios não tinham

coração.

— Sim, mas não consegui ouvir ou sentir nada.

— Ela deve ter imaginado coisas, ou ouviu seu próprio coração. —

Serah olhou para Reik, que ainda parecia transtornado com aquilo. Ao

ver o horário, ela sabia que precisava voltar, pois Natalie poderia acordar

a qualquer minuto. — Mais alguma coisa? — perguntou ela.

— Não se preocupe com ela hoje.

— Alguma coisa em especial? — disse, estranhando o comentário de

Reik.

— Sim, prometi a ela que a levaria até ele, existe uma coisa que eu

preciso descobrir também.

— Mas é extremamente perigoso. Eles podem ser mortos a qualquer

momento, ainda mais juntos, a proteção é muito mais difícil.

— Serah, como eu já te disse, os dias para Natalie ficarão mais

difíceis. E, como nós sabemos, nenhum ataque em massa será realizado

durante o dia. — Provavelmente os demônios não conseguiriam encarar

os anjos enquanto estivessem enfraquecidos. – Portanto, permiti que eles

passem esse dia juntos, que poderá ser o primeiro e último dia agradável

para ambos, eles estarão em um local seguro.

— Ela já sabe disso? — perguntou Serah.

— Ainda não, mas, a qualquer momento, os anjos estarão na porta

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da casa dela, convidando-a para um passeio.

— Na forma humana? E durante o dia?

— Sim. — Reik sorriu, sabendo que estava fazendo algo muito bom

para os dois, mas extremamente perigoso. — Eles receberam minha

autorização.

E assim aconteceu. No momento em que Serah e Reik conversavam,

um anjo estava na frente da casa de Natalie. Ele se parecia com um

humano.

Assim que tocou a campainha, não demorou muito para que Dorah

abrisse a porta e se deparasse com aquele rapaz. Como ela nunca o

tinha visto antes, logo perguntou:

— Posso te ajudar?

— Claro. Eu vim ver a Natalie — disse ele bem simpático.

— Natalie? E você quem é? — perguntou desconfiada.

— Um amigo dela. Me chamo Ernest. — Passar-se por um humano

era algo totalmente estranho para os anjos. — Muito prazer, senhora

Zeniek.

— Um momento que eu vou chamá-la. Acho que ela está no banho.

— Natalie já estava acordada, e também já tinha tomado seu banho.

Estava tranquilamente se arrumando no quarto, enrolada em uma toalha.

Por não conhecer o rapaz, Dorah o deixou do lado de fora. Então,

subiu as escadas e, como o banheiro estava aberto, bateu na porta do

quarto da filha.

Nesse momento, Gabriel saía de seu quarto, vestido para jogar bola.

O garoto tinha melhorado seu comportamento em relação àqueles dias,

mas ainda não estava como antes. Talvez ele apenas estivesse seguindo

o que Katherine havia dito. Dorah também tentava evitar o assunto com o

filho, talvez esperando que ele assimilasse tudo que acontecera.

— Bom dia — disse Natalie, abrindo a porta.

— Bom dia, minha filha. Tem um rapaz na porta que diz ter vindo lhe

fazer uma visita.

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— Uma visita? Rapaz?

— Se não me engano, ele disse que o nome dele é Ernest. — Natalie

achou estranho, afinal ela nunca ouvira falar de nenhum Ernest.

— Ele está te esperando do lado de fora.

Natalie rapidamente se arrumou, pois estava curiosa em saber quem

era. Desceu para ver de quem se tratava, quando chegou viu aquele

rapaz na porta. Sem entender muita coisa, perguntou:

— Quem é você?

— Vim a mando de Reik, ele quer que você me acompanhe.

Do lado de fora, outros anjos com as asas abertas mostravam que

Natalie podia confiar nele.

Enquanto os dois conversavam, Gabriel, segurando uma bola,

decidiu sair e deparou com aquele sujeito estranho. Quando o garoto

passou perto, o anjo sentiu algo muito estranho, uma energia que ele não

sabia ao certo de onde vinha. Alguma coisa estava errada com o irmão

da Natalie.

— Para onde vamos? — perguntou a garota.

— Encontrar o demônio. — O anjo não parecia concordar, mas

estava recebendo ordens.

— Minha filha, está tudo bem? — Dorah se aproximava perto da

porta, já que também não conhecia aquele rapaz.

— Sim mãe não se preocupe, é um churrasco do bar. — Natalie não

sabia o que a mãe tinha conversado com o anjo, mas arriscou, ela não

queria mentir, porém, não estava preparada para contar a verdade para a

mãe.

— Podemos ir? — Perguntou o anjo.

— Sim, estou pronta — disse Natalie com um sorriso no rosto.

— Bom divertimento para vocês. — Dorah sorria, como se estivesse

muito contente, ela estava vendo sua filha sorrir de verdade.

— Obrigado, tenha um bom dia senhora Zeniek — falou o anjo

educadamente.

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Assim que os dois saíram de casa, Natalie olhou para o anjo e, com

uma cara de desconfiança, perguntou:

— Por quê?

— Eu também não sei, apenas estou seguindo ordens.

Naquele momento Natalie sabia que Reik tinha atendido seu pedido.

Eles entraram no carro e seguiram o caminho, os outros anjos voavam a

fim de protegê-los no trajeto.

Durante todo o caminho o anjo não conversou. Natalie também ficou

quieta, queria saber para onde ele estava a levando. Depois de alguns

minutos, eles chegaram à frente de uma das grandes floresta que

rodeavam a cidade. Os dois desceram do carro e o anjo disse:

— É aqui, siga em frente — apontando para a floresta.

Natalie não entendia o motivo de ser ali o encontro, mas reparou

uma grande quantidade de anjos enquanto caminhava, como nunca tinha

visto antes. Eles estavam nas árvores, vigiando cada passo que ela dava.

Guiada pela presença deles, ela seguiu o caminho até chegar a uma área

grande, sem árvores. Não havia mais anjos naquele lugar, possivelmente

estavam ao redor, deixando os a sós.

Os olhos dela foram levados até aquele jovem demônio que estava

de costas, vestia calça jeans e uma camiseta xadrez vermelha.

— Carsten — chamou Natalie o fazendo virar.

— Estava esperando por você — respondeu o rapaz sorrindo.

Ambos caminharam até se aproximarem novamente, Natalie o

abraçou bem forte, sentindo aquela segurança que lhe faltava quando

estava longe.

— Você está bem? — perguntou a garota.

— Tirando a luz do dia que me incomoda um pouco, agora estou

muito bem. — O rapaz olhou para o céu, evitando com as mãos os fortes

raios que atravessavam as árvores. Ele estava um pouco ofegante.

— Você quer ir para a sombra? — perguntou ela, preocupando-se

com ele.

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— Não precisa, não fico tão fraco assim, e, se algo acontecer, seus

amigos me protegerão também. — Carsten riu, olhando a sua volta e

sentido a presença deles.

— Eu fico imaginando se a minha vida agora será sempre assim,

com todos esses anjos me perseguindo todos os dias — comentou

Natalie.

— Talvez, até que tudo se resolva. Existe alguma coisa sobre você

que deve ser muito importante para eles — mencionou Carsten.

— Sobre nós, Carsten. Afinal, você também está sob a proteção

deles. — Aquilo fazia todo o sentido, apesar de incomodar muito o rapaz.

— Bom, mas vamos deixar isso para lá. — Ele abaixou a cabeça,

como se alguma coisa o chateasse — Hoje poderá ser nosso único dia

assim, eu não sei quando eles resolverão vir atrás de mim, tudo parece

estranhamente calmo.

Natalie pareceu preocupada com a declaração de Carsten, mas

preferiu seguir o conselho dele e aproveitar o dia enquanto eles podiam.

O rapaz se aproximou dela, deu-lhe um beijo rápido e logo em seguida

sorriu.

Caminharam até um local repleto de árvores, onde havia várias

pedras grandes debaixo das sombras. Assim que se sentaram em uma

delas, Carsten respirou bem fundo como se estivesse bem cansado.

— Tem certeza que está bem? — Natalie parecia preocupada ao vê-

lo baixar a cabeça, como se estivesse fraco.

— Sim, apenas um pouco cansado. Mas aqui embaixo dessa sombra

eu ficarei bem. — Ele olhou para Natalie e viu sua preocupação. Então,

novamente a beijou. — Me sinto bem do seu lado.

— Eu também — concordou a garota.

— Natalie, eu queria te perguntar uma coisa. — Carsten olhou bem

nos olhos dela, querendo toda a sinceridade possível. — Por que você

me perguntou sobre o culto da criação?

— Bem... — Natalie sabia que era a hora de ela começar a abrir o

jogo com ele também, e que precisava contar sobre algumas habilidades

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que ela tinha. — Acontece que eu também tenho uma habilidade, não me

pergunte como. Eu posso falar com gente que já morreu. — Natalie foi

bem direta.

— Você o quê? — Carsten não estava acreditando no que ouvia. —

Você é o quê? Algum tipo de médium?

— Não! — disse ela rindo. — Eu apenas faço isso.

— E faz tempo?

— Desde meu aniversário, alguns dias depois que te vi no posto de

gasolina.

— Esse tipo de habilidade muitos demônios possuem. — Aquele

segredo de Natalie parecia ter abalado Carsten de alguma maneira. —

Você tem certeza de que nunca nada de estranho aconteceu? Não

conversou com ninguém estranho?

— Não estou te entendendo. — Natalie parecia confusa com aquelas

perguntas. — Sim, eu tenho certeza.

— Natalie, geralmente quando um humano tem esse tipo de

habilidade, é porque um ancião ofereceu isso em troca de algo. Mas você

não se parece com esse tipo de pessoa, e, aliás, não teria mais alma,

caso fizesse isso.

— Você só pode estar maluco. Você acha mesmo que eu ofereceria

algo pra ouvir os mortos? — Natalie não parecia gostar daquela

habilidade, afinal, realmente não tinha escolhido aquilo. Então, mudou de

assunto: — Bom, mas, na verdade, o que você queria saber era sobre o

culto da criação.

— Desculpe, mas é que nenhum humano poderia conversar com os

mortos, caso não tivesse algum tipo de ligação com ele. — O rapaz se

referia ao ancião.

— Acho que sou a primeira humana que não teve nenhum tipo de

relação com um ancião, ou quem quer que seja, mas que fala com os

mortos. — Natalie estava sendo bem irônica. E perguntou novamente: —

Você quer saber sobre o culto de criação ou não?

Carsten concordou em saber a respeito do culto e da conversa com

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os mortos. Natalie contou toda a história para o rapaz, e ele parecia bem

curioso. Depois, a garota contou sobre a pesquisa e sobre Amber.

Quando Natalie mencionou a fazenda, Carsten disse algo bem curioso:

— Existem alguns pontos de Polsher para onde vamos quando

precisamos recuperar nossas energias rapidamente. Eles são como

entradas para o submundo, e a fazenda dos Boullavier é uma delas. —

Isso não explicava muita coisa, mas fazia um pouco de sentido, já que a

mulher Doroth, por diversas vezes, havia dito que seu marido era um

homem muito ruim.

— Ela pediu para que eu procurasse pelo filho que eles haviam

levado dela. — Natalie reproduziu exatamente da forma que ela havia

dito. — Quando ela disse ―eles‖, eu acho que se referia a vocês.

— Eu desconheço totalmente essa história. Possivelmente, foi antes

de eu ter acordado. — De acordo com o texto da Internet, aquilo teria

acontecido havia quatrocentos anos.

Depois da conversa, os dois decidiram continuar caminhando, o que

dificultava o trabalho dos anjos que se locomoviam entre as árvores sem

serem ouvidos.

— Como você está? — Natalie se referia ao cansaço do rapaz.

— Eu estou me sentindo melhor. — Carsten não tinha nem reparado,

mas não estava mais ofegante, ou até mesmo se sentindo fraco. Sua

energia não era a mesma da noite, mas pelo tempo que estava sobre a

luz do dia, já deveria estar bem fraco. — Deve ser a sua presença. — O

rapaz tentou ser simpático com ela, fazendo-a se sentir bem.

O clima entre os dois estava ótimo, quando Carsten olhou pra o

pescoço da garota.

— Natalie, onde está o colar?

— Meu Deus! Eu me esqueci dele. Ontem, quando eu tomei banho,

tirei e não coloquei. — Carsten ficou extremamente preocupado.

— Me desculpa. — Natalie colocou a mão em seu pescoço, e

realmente sentiu que sem o colar ela estava desprotegida. — Assim que

eu chegar em casa, eu coloco o colar de volta.

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— O que você fez comigo? — Natalie olhou para o rapaz, sem

entender aquela pergunta. — Eu nunca, na minha vida, imaginei que

fosse me sentir assim por causa de alguém, que me preocuparia, ainda

mais por uma humana.

— Eu nunca imaginei que me sentiria assim por alguém também,

ainda mais por um demônio. — Ela diminuiu o tom de voz quando disse o

que ele era.

— Eu tenho medo de que alguma coisa aconteça a você, Natalie. Me

sentiria culpado pelo resto na minha vida.

— Eu também tenho esse medo.

Os dois sabiam do perigo que estavam correndo. Já haviam sido

avisados, por isso sentiam medo não pela sua própria segurança, mas

pela vida alheia.

Já passava da hora do almoço. A tarde dos dois continuou tranquila.

De qualquer maneira, eles tentaram aproveitar ao máximo aquele dia.

Depois de mais algumas horas, eles decidiram que era hora de partir.

O sol já estava desaparecendo. Natalie e Carsten novamente se beijaram

lentamente, sentindo aquele abraço forte.

— Poderemos ficar alguns dias longe um do outro, já que temos de

tomar cuidado — disse Carsten com a cabeça abaixada.

— Reik falou que iria te proteger.

— Hoje eu já fiquei exposto muito tempo. — Carsten tinha medo de

que os demônios estivessem tramando algo. — Se eles estiverem

planejando alguma coisa, é melhor que a atenção dos anjos esteja toda

em você. Cuidar de nós dois ao mesmo tempo pode ser perigoso,

especialmente para você.

— Fique bem, e tome muito cuidado com tudo. — Carsten se

despediu dela, evitando que a situação ficasse mais dolorosa do que já

estava. — O colar, não se esqueça de usá-lo. Coloque-o assim que

entrar.

— Pode deixar que eu não esquecerei. — Eles deram um último

beijo e Natalie foi em direção à saída da floresta, o coração da garota

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parecia apertar cada vez mais em deixa-lo para trás.

O anjo a aguardava, do lado do carro. Vendo que a garota estava

triste ele tentou animá-la:

— Você vai ficar bem, não deixaremos que eles se aproximem. —

Ele estava se referindo aos demônios.

Quando a garota chegou em casa e a porta se abriu, Dorah nem

esperou a filha entrar direito e já perguntou:

— Quem era aquele moço? Pode me contar.

— Apenas um amigo.

Com certeza Dorah não iria gostar dessa história, principalmente se

fosse contada de forma correta, e com todos os detalhes. A senhora

Zeniek não podia nem imaginar pelo que a filha estava passando, e

principalmente o que já tinha passado. Aquele dia ficaria marcado na vida

de Natalie como o último dia tranquilo da sua vida.

*****

— Confirmou o que queria? — perguntou Serah a Reik.

— Sim, de alguma forma ele esquece completamente da natureza

escura do lado dela.

— Você tem medo de que os demônios possam mata-la se

descobrirem que ela pode fazer isso?

— Sim, é exatamente isso que me assusta.

— O que acha que vai acontecer? — Novamente perguntou o anjo.

— Serah, estamos de frente a uma situação que jamais foi

enfrentada por nós. Em pouco tempo, uma guerra vai ocorrer e temo que

eles sejam a única esperança que nos resta.

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Capítulo 33

A MUDANÇA de comportamento de Victor, desde que ele descobrira

que Carsten tinha matado Larxen, era visível. O rapaz não via a hora de

sair para acabar com a vida do seu antigo companheiro de caça. Ele e

Katherine já estavam caçando em outras regiões há alguns dias, e

sempre acompanhados por outros demônios, pois o ancião sabia que se

os deixasse voltar para Polsher, eles poderiam matar Carsten.

Os planos para o demônio rebelde eram outros. Mesmo sabendo que

ele continuava a ver a humana todos os dias, e ainda por cima tinha a

proteção dos anjos e de um arcanjo, o ancião não podia deixar que ele

fosse morto. Contudo, notando a raiva do demônio mais jovem, ele

resolveu se manifestar:

— Victor, vejo que há alguns dias você procura vingança contra o

Carsten. — O ancião chegou à sala em que ele e Katherine

descansavam.

O rapaz, que estava sentado sobre os joelhos, abriu seus olhos.

Naquele momento, vendo que se tratava do ancião à sua frente, decidiu

manter a calma e não falar nada, pois, toda vez em que ouvia o nome do

seu antigo companheiro, ficava furioso.

— Apenas me diga: o que você vai ganhar com isso? — O ancião

parecia bem tranquilo.

— Como você mesmo disse, vingança. — O rapaz fechou um de

seus punhos com muita força, a ponto de explodir de raiva. — Ele matou

o Larxen, sem piedade alguma.

— É aí que você se engana. — Quando o ancião disse essas

palavras, Katherine também abriu seus olhos. — Ele sofreu, mas optou

pela garota.

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— Ele era amigo dele. — O rapaz já não falava mais baixo como

antes, deixando a raiva dominá-lo.

— Concordo que ele foi uma grande perda para todos nós. Ele era

muito fiel. — Larxen já estava havia muito tempo acompanhando os três.

— Mas, como ele, existem outros que podem servi-los.

— Acho que você não entende o vínculo que ele possuía comigo. —

Katherine segurou o braço de Victor, percebendo que ele já estava se

exaltando e perdendo o respeito pelo ancião. — Me desculpe por exaltar

a minha voz.

— Eu confundo esse vínculo com um sentimento dos humanos

chamado amor. — O ancião usou um tom muito pesado. — Temo por

você estar se tornando igual ao Carsten, sem nem ao menos perceber.

— Eu nunca me tornaria igual a ele — disse Victor.

— Demônios não sentem nenhum tipo de sentimentos, Victor,

apenas nascem para uma única função: lutar e servir ao grande mestre.

— O garoto ficou parado sem nenhum tipo de reação. — Se você

morresse hoje, aposto que Katherine nem ligaria. Estou enganado?

— Não, senhor, você tem toda razão. — Katherine, que estava em

silêncio até o momento, não teria coragem alguma de dizer algo ao

contrário, pois tinha muito medo do ancião e sabia do que ele era capaz

de fazer.

— O único erro de Carsten não foi matar Larxen, mas, sim, matar por

amor. — Quando disse a última palavra, o ancião cuspiu no chão. —

Esse erro deveria ser pago com a vida dele.

— É por isso que eu desejo matá-lo. — O rapaz estava convicto em

fazê-lo. — Deixe-me acabar com Carsten, por favor.

— As coisas não são tão simples assim. Se fossem, a essa hora ele

já estaria morto. — O mistério que rondava Carsten e Natalie era muito

grande e superava as barreiras do céu e do inferno. — Mas tem algo que

eu quero que vocês façam.

Os dois demônios ergueram a cabeça atentos, pois havia alguns dias

eles completavam missões bobas, assim como os outros demônios mais

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fracos. Nenhuma das missões tinha vindo diretamente do ancião, como

sempre acontecia.

— O que você deseja, meu senhor? — Katherine já ficou animada

em receber uma missão importante.

— Calma, Katherine. Quero que vocês dois realizem essa missão

juntos, para que nada dê errado desta vez. — Victor apenas ficou em

silêncio o tempo todo. — Quero que vocês matem a garota.

— O quê? — Victor não parecia entender aquilo. — Por que ela? Ela

é apenas uma fraca humana, que não dará nenhum trabalho para ser

morta.

— Vejo que você ainda é muito jovem, mas nunca imaginei que fosse

tão ingênuo assim. Se ela estivesse morta, Larxen estaria vivo. Foi por

conta dela que Carsten matou o seu companheiro, para defendê-la.

— Eu sei disso, mas, matando ela, não mudaria nada, e Larxen não

seria vingado.

— Victor, não seja bobo. Qual é a coisa mais importante para o

Carsten, hoje? — Katherine estava toda empolgada, e queria deixar o

companheiro assim, já que ver Natalie morta era a coisa que ela mais

desejava. — Se ela for morta, ele vai sofrer tanto, ou mais do que você

está sofrendo com a morte do Larxen.

— Se vocês continuam achando que será fácil matá-la, estão

completamente enganados. — O ancião surpreendeu os dois com o

comentário. — Vocês vêm caçando em outras regiões, e não estão

percebendo o que está acontecendo.

— Existe algo que nós não sabemos? — perguntou Katherine.

— Existe. Anjos e um arcanjo. — O ancião sorriu. — Ainda

continuam achando que é fácil?

Victor e Katherine nunca imaginaram que teriam de encarar um

arcanjo para matar uma humana. Os dois não paravam de pensar que,

para ela ser protegida por um arcanjo, deveria ter alguma importância

para os céus. Mas eles tinham medo de perguntar sobre isso para o

ancião, já que possivelmente aquele assunto não dizia respeito a eles.

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— Pois, agora que a noite está se aproximando, preparem-se. — O

ancião deu as costas para os dois e seguiu andando pela sala escura. —

E não me tragam desculpas, apenas boas notícias.

— Senhor, porque esperamos todos esses dias para matá-la? —

Victor não conseguia compreender os planos do ancião.

— Durante esse tempo, fingi que estava cego Victor, enquanto

Carsten dizia que estava apenas caçando em outros pontos, eu o

observei, queria saber o peso que aquela garota tinha sobre ele.

Digamos que fiquei muito impressionado, mesmo não sabendo o que ela

é. Nem mesmo os castigos de Mantros conseguiram evitar o desejo de

vê-la, é por isso que ela precisa ser morta. — O ancião acompanhava

cada detalhe dos seus demônios, era bem astuto e estrategista. — Não

me importo quantos dias levem, mas repito, não voltem sem ela.

Victor e Katherine seguiram para a sala das armas, escolhendo as

melhores para que pudessem enfrentar algo muito forte. Sabiam que

podiam morrer também, mas não podiam recusar uma ordem do ancião.

— Para descobrir o que estava acontecendo, ele deixou que Larxen

morresse — mesmo tentando conter a raiva, Victor não mensurava suas

palavras.

— Tentar enfrentar a fúria do ancião não vai trazer Larxen de volta,

só vai te prejudicar. Será que você não percebeu ainda? A verdadeira

culpada de tudo é aquela garota. Se não fosse por ela, estaríamos agora,

os três, saindo para caçar — lembrou a ruiva.

Katherine ficaria contente em ver a cabeça de Natalie fora do seu

corpo, pois o ciúme que ela sentia de Carsten com uma humana a

deixava completamente fora de si. Fazendo com que Victor sentisse a

mesma raiva da garota, facilitaria o trabalho dela.

******

A casa estava uma bagunça; caixas para todo o lado. Estavam no

fim de mês e a família Zeniek arrumava as coisas para a mudança. Era

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começo do dia, e todos ainda tinham muitos trabalhos pela frente, pois o

caminhão viria na manhã do dia seguinte para levar tudo.

Gabriel ficou no seu quarto com algumas caixas, e preferiu trabalhar

sozinho. Natalie seguiu os passos do irmão e começou a tirar as coisas

do seu quarto. Ela iniciou por sua gaveta, e, no meio de coisas inúteis

que aproveitou para jogar no lixo, ela encontrou várias lembranças.

Uma dessas lembranças foi uma foto que ela tinha de toda a sua

turma, quando estava na escola. Dentre os vários rostos, alguns eram

bem conhecidos, Dalton, Kelly e Lily. Nesse momento, Natalie pensou em

ligar para Dalton a fim de saber da irmã dele, mas ainda era muito cedo.

Outro rosto que chamou sua atenção foi do seu amigo Andrew

Rockenbach, um dos melhores amigos de Natalie, assim como Kelly.

Mas, uma pessoa em especial fez uma lágrima correr pelo rosto de

Natalie. Era Paul, que na foto estava sorrindo. A garota se lembrou do

último contato com o amigo, e do que ele disse a respeito da sua morte.

Toda vez em que pensava nisso, sentia muita raiva e se lembrava

daquela mulher ruiva, e do grande mal que já havia causado a ela e seus

amigos.

Natalie guardou a foto em uma caixa e continuou com a arrumação.

Outras fotos foram aparecendo, trazendo grandes recordações, como a

fotografia de Natalie quando pequena, no colo de Laurence. Lembranças

que nunca seriam apagadas.

— Filha, você precisa de mais caixas? — perguntou Dorah,

segurando duas caixas nas mãos.

— Não, mãe. Na verdade, nem usei as minhas direito. Eu estou aqui

vendo fotos antigas e lembrando-me de muita coisa. — Natalie mostrou a

foto com o pai para Dorah.

— Eu sei, mudanças são assim mesmo. Cada gaveta aberta, uma

nova lembrança. — Dorah se aproximou da filha e pegou a foto. — Foi

assim quando eu me casei com seu pai. Vir para esta casa, criar uma

vida nova, criar os filhos. E muitas lembranças ficarão aqui também.

— Eu sei, mãe, vivi minha vida toda aqui, praticamente nasci nesta

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casa. — Natalie se referia ao dia em que nascera, quando, depois de sair

do hospital, teria vindo direto para a casa onde morava havia dezoito

anos.

— Foi bem isso mesmo — confirmou Dorah.

Gabriel, que estava no seu quarto e ouvia a conversa, segurava um

porta-retrato e o deixou cair no chão. O rapaz ficou nervoso por ouvir

aquilo, sabendo que ele não tinha nascido naquele lugar, pois havia sido

adotado e mal sabia de onde vinha.

— Gabriel, tudo bem? — gritou Dorah do quarto de Natalie.

— Tudo — respondeu rispidamente o garoto e fechando a porta de

seu quarto em seguida.

— O que acontece com ele, mãe? Descobriu? — perguntou Natalie.

— Seu irmão andou descobrindo umas coisas, mas logo vai passar.

— Posso saber o quê? — Natalie estava curiosa.

— Minha filha, vamos nos preocupar com a mudança, depois

conversaremos sobre isso. — Apesar de ter deixado a filha curiosa,

aquele não era o momento certo para a tal conversa, por ser bem

delicada.

— Tudo bem — conformou-se Natalie.

Naquele momento em que Natalie ficou sozinha, a lembrança do

último dia, tão perfeito, que ela passara com Carsten, veio à sua mente.

Ela não tinha ideia de quando o encontraria novamente, nem se ele

estava bem. Apenas continuava vivendo das lembranças, e aguardava o

dia em que ele apareceria de surpresa, como nas outras vezes.

E assim, as duas continuaram a mudança, encaixotando tudo,

embrulhando as louças no jornal, entre outras coisas mais delicadas.

A equipe de mudança oferecia esse serviço, mas Dorah era muito

cuidadosa. Preferia fazer por conta própria, com medo de que alguma

peça se quebrasse, afinal, eram do seu jogo de casamento, e algumas

delas nunca haviam sido usadas.

Algumas horas se passaram e a família se reuniu para almoçar.

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Gabriel, como de costume, preferiu comer em silêncio. Mãe e filha

conversavam sobre coisas da vida, como o trabalho de ambas, entre

outros assuntos relacionados à mudança. Assim que terminou o almoço,

Gabriel disse que já tinha arrumado tudo e iria para o campo, não ficando

para ajudar com o restante.

Logo após o almoço a campainha tocou. Eram os rapazes da

mudança, assustando Natalie, pois a garota esperava que eles

aparecessem por lá apenas no outro dia.

— Olá, viemos pegar as mudanças. A senhora Zeniek se encontra?

— perguntou o rapaz.

— Sim, mas vocês não deveriam vir apenas amanhã de manhã? —

Pelo menos era essa a informação que Natalie tinha.

— Minha filha, eu me esqueci de te dizer, hoje eles vão desmontar os

móveis maiores para amanhã levar apenas as caixas.

— Você quer dizer o armário, a cama? Vamos dormir onde hoje? —

Natalie estava mais confusa do que todos.

— Se você quiser, eles podem deixar a sua cama, mas pensei em

deixar apenas o colchão por esta noite. Ou, se preferir, você pode dormir

na Kelly. — Dorah já tinha pensando em tudo. Coisas de mãe.

— Tudo bem, depois que eu sair do trabalho, vou até a casa da

Kelly. E amanhã de manhã volto bem cedo para terminar de ajudar —

disse Natalie, subindo para o seu quarto.

Enquanto os homens desmontavam os móveis da sala, ela

aproveitou para colocar suas roupas, que estavam no guarda-roupa,

dentro das caixas, para liberar o móvel.

Algumas horas se passaram e Natalie já estava com os minutos

contados para ir ao trabalho. Tomou um rápido banho, colocou uma

roupa que ela já havia separado das demais e despediu-se da mãe com

um beijo no rosto. Seria apenas uma noite que elas ficariam separadas.

Então, com sua moto, a garota foi para o Avalon.

Natalie tinha uma mochila nas costas e chegou quase em cima da

hora. Incrivelmente, apenas Nick, o cozinheiro e os seguranças estavam

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no bar. Jonathan e Serah ainda não tinham chegado.

Assim que entrou, Natalie cumprimentou o rapaz e foi para o armário

colocar a mochila.

— O que aconteceu com a Serah e o Jonathan? — perguntou ao

Nick, que estava no bar.

— Não faço a mínima ideia. — Quando cheguei, estava tudo

fechado, e nenhum dos dois me ligou.

— Que estranho, eu sempre chego depois.

— Bom, o Jonathan deve estar no mercado comprando alguma

coisa. Agora a Serah eu não faço ideia, mas isso me preocupa um pouco.

É claro que preocupa, pensou Natalie, que sabia do rapaz e da

moça. Na verdade, ela não sabia se eles ainda estavam tendo algo ou se

teria sido apenas um beijo naquela noite.

— Nick, posso te perguntar uma coisa? — Natalie estava disposta a

perguntar se os dois estavam saindo.

— Claro, o que é? — O rapaz virou-se para Natalie.

— Com licença, vocês dois, mas eu estou atrasada. — Serah entrou

meio apavorada, interrompendo a pergunta. Natalie não seria louca de

perguntar na frente de Serah. — Já sairemos — disse Serah para Nick,

fechando a porta de onde os armários estavam, pois iria trocar de roupa.

— Quer que eu saia também? — perguntou Natalie.

— Claro que não, pode acabar de se arrumar, afinal, mulheres se

ajudam nisso, não é? — Podia até ser, mas Natalie não tinha o costume

de ajudar ninguém.

Quando Serah tirou sua blusa, Natalie observou que a loira tinha um

grande desenho nas costas. Parecia um grande símbolo, que

aparentemente não tinha significado nenhum.

— O que significa essa tatuagem nas costas? — perguntou a garota

curiosa.

— Tatuagem? — Serah parecia espantada ao ouvir que Natalie

estava vendo algo.

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— Sim. Esse símbolo bem no meio das suas costas.

Serah ficou totalmente surpresa, Natalie conseguia ver o selo que

Reik tinha feito para a sua proteção. Possivelmente, aquele selo estaria

se quebrando, pois fazia quase vinte e quatro dias desde que Reik criara

a proteção na garota.

— Apenas uma tatuagem que eu fiz quando era mais jovem — disse

ela, tentando enganar Natalie.

— Entendi. — Natalie parecia se conformar com a resposta, mas

achou que deveria ir a fundo com a pergunta, deixando Serah bem tensa.

— Ela é bem grande, não é?

— Sim, foi bem dolorosa para ser feita. Eu me lembro. — Com um

sorriso sem graça, Serah colocou a camiseta de uniforme por cima,

tentando despistar Natalie.

— Por que você está mentindo para mim também? — Natalie

arriscou no comentário. — Aliás, por que todos mentem para mim?

— Porque assim será melhor, Natalie. — Serah desistiu de lutar, pois

ela percebeu que Natalie sabia de mais alguma coisa e não podia fazer

nada contra essa verdade. — Mas existem coisas que nem eu mesma

sei.

— Eu entendo, como a grande maioria de vocês.

— A única coisa que eu sei é que você e aquele rapaz estão

arriscando a vida de vocês e dos que estão a sua volta. — Serah tinha

pego no ponto mais fraco de Natalie. Falar de Carsten no momento em

que ela mais sentia falta dele

— Por que, Serah? Por ele ser um demônio? — Natalie falou

baixinho para que ninguém escutasse. — Ele está lutando contra o que é.

— A garota abaixou a cabeça, e a tristeza tomou conta do seu corpo.

— Eu realmente não sei o que está acontecendo com ele. Mas posso

te dizer que já o conheço há muito tempo. — Serah também tinha a

aparência jovem, mas não era tão jovem assim. — Ele já matou um

exército de anjos e fez muita gente sofrer, eu realmente estou tão

confusa quanto você.

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Natalie ficou pensando em tudo aquilo. Ela sabia que era verdade, e

esse foi um dos motivos que a fizeram ficar longe de Carsten no início.

Ela também sabia que estava se envolvendo com alguém que a qualquer

momento poderia agir por impulso, como um animal selvagem,

respeitando sua origem, mas ela estava disposta a continuar.

— Você é um anjo também? — Natalie foi bem direta.

— Como você sabe? — perguntou a loira assustada.

— Porque no dia em que o Nick sofreu o acidente de moto, vi que

você o curou.

— O que mais que você viu? — Serah estava assustada naquele

momento. Parecia que nem mesmo o fato de Natalie saber que ela era

um anjo a teria deixado tão preocupada quanto ela saber de algo mais.

— Vi que vocês dois estão apaixonados. — Natalie sorriu como se

estivesse feliz pelos dois, mas Serah fechou totalmente a cara.

— Você precisa me prometer uma coisa. — Serah se ajoelhou no

chão, deixando Natalie totalmente constrangida. — Me prometa que não

vai contar isso para ninguém, muito menos para o Reik.

— Levante-se, eu não vou contar nada para ninguém. Até hoje isso

ficou guardado comigo. Por que eu contaria? — perguntou a garota,

vendo que a loira estava preocupada.

— Anjos como eu não podem se relacionar com humanos, isso é

proibido, e podemos ser caçados e mortos pelos próprios da nossa

espécie. — Serah deixou Natalie totalmente preocupada. Ela não sabia

que existiam regras tão severas no céu. — Eles só não sabem o que eu

fiz, porque estou sem minhas asas para me rastrear.

Como poderia haver um anjo sem asas? Natalie não conseguia

entender isso, mas talvez essa fosse a explicação para o grande símbolo

nas costas dela.

— Essa tatuagem nas suas costas. É por isso que você não pode ser

rastreada?

— Você sabe sobre o selo? — Serah ficou sem reação. Ela não tinha

conhecimento do que Natalie sabia.

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— Não, apenas foi um palpite. Não sei quase nada.

— Natalie, saber demais pode te deixar mais confusa. Eu mesma sei

apenas o básico também. Nós, anjos, não ficamos sabendo de tudo.

— Somente o Reik, pelo que me parece, sabe de tudo. — Natalie

tentava cada vez mais ir a fundo à história.

— Vocês duas vão demorar muito? O bar já vai abrir. — Bateu Nick à

porta.

— Temos de ir. O mais importante é que você fique bem, e atenta

para tudo. — Serah colocou suas mãos nos ombros de Natalie. — Até

mesmo para o comportamento de Carsten, que ainda é duvidoso.

— Carsten?

— Não me entenda mal. Estou apenas pedindo para você ficar

atenta a qualquer mudança de postura ou temperamento dele, apenas

isso.

— Não se preocupe, Serah, não sei quando ele vai aparecer

novamente.

As duas resolveram sair, antes que Nick batesse à porta novamente

e Jonathan chegasse e visse tudo ainda desarrumado.

A noite foi agitada, e as garotas não tiveram tempo de conversar

mais. Jonathan tinha chegado para ajudar, aliviando mais o pessoal do

trabalho.

******

Quando chegou à casa de Kelly, Natalie já estava cansada. Queria

um banho e uma cama bem confortável para passar a noite. Além de ir

ao Avalon, ela tinha passado a manhã e parte da tarde encaixotando a

mudança, um trabalho que não era nada fácil.

Kelly, por sua vez, parecia muito animada. Assim que abriu a porta,

já foi levando Natalie para a cozinha, onde tinha pedido para a

empregada deixar um lanche preparado. Assim, as duas poderiam

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aproveitar aquele momento para conversar.

Natalie estava extremamente cansada, mas ultimamente tinha

passado pouco tempo com a amiga. Então, resolveu abrir uma exceção e

conversar sobre os mais diversos assuntos. Natalie sabia que aquela

madrugada seria longa.

— Me conta tudo e não me esconda nada — disse Kelly, que estava

curiosa para saber a respeito de Carsten. — Viu ele novamente, depois

daquele domingo? — As duas já tinham conversado sobre o dia que

Natalie havia tido com o rapaz, mas, para a tristeza de Kelly, a resposta

não foi positiva.

— Não faço ideia de onde ele esteja. — Aquilo realmente a

machucava, não saber ao menos onde ele estava naquele momento.

Nem mesmo a visita de Reik ela recebeu, já que ele teria a informação

que ela queria. — Hoje eu confirmei uma coisa, a Serah, é um anjo.

— Aquela loira? — Kelly se lembrava dela e ficou espantada com a

revelação — Existe alguém ainda normal nesta cidade?

— Eu e você ainda somos, amiga — disse Natalie, rindo.

— Sim, com certeza. Você falando com mortos, vendo anjos e

demônios o tempo todo, me diz que é normal?

Apesar de tudo que estava acontecendo, ela ainda se sentia uma

garota normal, que não tinha escolhido nada daquilo para ela. E, em

alguns momentos, nem mesmo ela reconhecia mais o que era ela.

— Você ficou chateada comigo? — perguntou Kelly, notando a feição

da amiga. – Eu não quis dizer isso por mal, Natalie. Eu só...

— Eu te entendo, Kelly — interrompeu Natalie — Qualquer um que

não estivesse no meu lugar pensaria da mesma forma. Eu apenas não

sei mais o que fazer, e tem momentos em que eu fico desesperada, olho

pela janela e vejo um monte de anjos me observando. Não sei quando

isso vai acabar.

Kelly ficou sem resposta, pois podia imaginar como a amiga estava

sofrendo com aquilo.

— Um dia você tem uma vida normal, e no outro começa a falar com

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mortos, começa a ver anjos, se apaixona por um demônio — lamentou-

se.

— Você acha que, se o deixasse, seus problemas acabariam? — Até

aquele momento, Natalie não havia pensando nisso. Deixar Carsten não

era mais uma opção.

— Seria a solução para os problemas. Mas, depois de tantas vezes

que eu tentei evitá-lo, você ainda acha que é fácil ficar longe dele? —

Kelly não tinha pensado por esse lado, e conseguia perceber o quanto

Natalie gostava de Carsten, mesmo sabendo do perigo que corria. — Eu

sei que posso estar sendo egoísta, já que outras pessoas sofreram por

conta disso. Bem, você é um exemplo disso. Mas a verdade é que só

essa ausência de tempo está me ferindo por dentro.

— Não fica assim. — Kelly abraçou Natalie bem forte, quando viu

que os olhos da amiga começaram a se encher de lágrima. — Fica

tranquila, que nada de ruim vai acontecer com você.

As duas terminaram de comer, e Natalie foi tomar um banho. Kelly

disse que iria esperar a amiga, pois queria pedir um favor. Aquela altura

da madrugada, Natalie não conseguia imaginar o que seria esse pedido,

mais preferiu relaxar no banho de banheira que a loira havia deixado

preparado para ela. Mesmo na casa nova, não tinha uma banheira

daquelas, então ela aproveitou o momento.

Depois que voltou para o quarto, Natalie olhou para Kelly, que

segurava uma foto nas mãos. E assim que viu a amiga entrando,

começou a chorar dizendo:

— Você precisa me ajudar, precisa conversar com ela. — Kelly

segurava a foto da mãe. Sabendo que Natalie podia conversar com

pessoas que já não estavam mais vivas, ela ainda tinha esperanças de

saber algo a respeito da mãe, apesar de a amiga dizer que não era tão

simples quanto ela pensava.

— Kelly, eu posso tentar, mas, como te falei, eu ainda não sei como

isso tudo funciona. Então pode ser que dê certo, ou não.

— Pelo menos tente — disse a loira.

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Natalie sentou na cama e segurou a foto da mãe de Kelly nas mãos.

Então, fechou os olhos e ficou pensando em algumas frases, algumas

perguntas, mas nada acontecia. Nas outras vezes, Natalie estava

sozinha, e quem puxava o assunto com ela primeiro eram os mortos.

— Kelly, me desculpe, mas eu realmente não sei como fazer isso. —

Natalie parecia se sentir culpada por não poder ajudar a amiga. — Eu

imagino o quanto deve ser difícil para você, eu também não tenho mais

meu pai.

— Mas você consegue pelo menos conversar com ele. — Kelly tinha

razão. Mesmo que Natalie conseguisse, não seria ela quem conversaria

com a mãe; apenas receberia mensagens ditas pela amiga. — Acho

melhor irmos para a cama.

— Sim, amanhã será um longo dia. Dorme com Deus, Kelly.

— Você também, monstrinha.

Natalie fechou os olhos e ficou pensando na amiga, e na vontade

que ela tinha de falar com a mãe, uma figura tão importante na vida de

uma mulher. Natalie não conseguiria imaginar como seria viver sem

aquela mulher, que ensinou tudo que ela precisava para ser o que era

hoje.

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Capítulo 34

As LÁGRIMAS que escorriam pelos olhos de Dorah naquela manhã,

por ver praticamente toda aquela casa vazia, remetiam às lembranças de

toda uma vida que ela teve com Laurence e seus filhos. Momentos bons

que a alegraram naquele lugar, outros ruins que a fizeram aprender

muitas lições, e um vazio muito grande quando Laurence se foi, mas que

logo fora preenchido pelos filhos, a única alegria que restava para aquela

mulher guerreira.

Logo de manhã, Gabriel acordou cedo e saiu de casa. Disse que

jogaria bola com os amigos, já que eles se mudariam para bem longe.

Dorah não tentou impedi-lo, apenas o lembrou de voltar até a hora do

almoço, porque eles iriam para a casa nova.

Eram oito e meia da manhã de um domingo nublado. O sol estava

todo coberto por nuvens negras de chuva, mas nenhuma gota caía sobre

Polsher, apenas uma escuridão na rua fazia o dia parecer noite. Dorah

ficou preocupada com o filho, porque aquela tempestade que estava por

vir poderia ser muito perigosa. Havia chegado de repente, e talvez

provocasse muitos estragos.

Um forte vento chacoalhava as árvores na rua, várias folhas e galhos

secos caíam, e os vizinhos fechavam as portas e janelas. Dorah correu

para o primeiro andar e viu se realmente tudo estava fechado. Apenas a

janela do banheiro estava aberta e ela logo se encarregou de fechar.

O telefone da casa tocou e ela desceu para atendê-lo. Eram os

homens da mudança dizendo que iriam esperar o tempo acalmar para

realizar o serviço. Dorah, muito paciente e vendo a situação, não se

importou. Ela preferia aguardar a ter todos os seus móveis molhados e

destruídos, pois seriam as únicas lembranças da casa antiga na nova

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residência, já que lá eles se misturariam com os móveis novos.

A senhora Zeniek sentou-se na sala, onde a televisão e o sofá ainda

estavam no mesmo lugar. Já que ela teria de esperar, preferiu ver

televisão e se distrair um pouco com a programação local. A grande

maioria dos canais falava da grande nuvem negra que cobria o céu de

Polsher, fato inusitado, pois não havia nenhuma tempestade anunciada

pela previsão do tempo dos últimos dias.

Do lado de fora, andando no meio da rua, estava Katherine.

Caminhava lentamente, e o tempo todo dava pequenas gargalhadas,

como se estivesse louca. Ela estava maquiada, como se fosse para um

evento importante. Usava um vestido preto bem apertado e curto, e

sandálias que a deixavam mais alta do que já era.

Ninguém podia vê-la, e no meio daquela escuridão e de toda aquela

ventania, seus longos cabelos ruivos voavam contra o vento. Conforme

balançavam, pareciam chamas que se alastravam pela rua, chamas que

estavam prontas para destruir tudo o que viesse pela frente.

Katherine era muito esperta. Na noite anterior, com todos os anjos

protegendo Natalie aonde quer que a garota fosse, seria impossível

chegar perto dela. Por isso, ela preferiu agir de manhã. Quando Victor

ficou na antiga fazenda para se recuperar, ela saiu novamente,

aproveitando que o sol estava coberto, fazendo-a se sentir bem, sem a

luz para incomodá-la.

Como o vento era muito forte, não havia ninguém nas ruas, e o

movimento dos carros era mínimo, visto que, além de tudo, era manhã de

domingo, e naquele horário muita gente ainda não havia saído da cama.

Katherine continuava sua caminhada pelo meio da rua, até que alguns

metros à frente avistou a casa de Natalie.

Katherine já esperava que, em alguns minutos, vários anjos

aparecessem para tentar matá-la, pois acreditava que Natalie estava

dormindo em sua casa. Mas ela estava preparada: suas mãos fechadas

seguravam algo que não dava para ser visto. Pelo seu rosto, a garota

não parecia nem um pouco preocupada com o que enfrentaria pela

frente.

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De repente, para a supressa de Katherine, três anjos loiros, dois

homens e uma mulher, caíram do céu como trovões, com suas longas

asas brancas, prontos para o ataque. Eles estavam ali para a proteção de

Dorah, pois ela estava sozinha em casa.

— Apenas três? Vejo que a proteção dela não é tão importante como

eu imaginava — Katherine zombou dos três, que estavam lado a lado e

prontos para atacar. Dois empunhavam pequenas facas prateadas na

mão, enquanto a do meio segurava uma espada não muito longa,

também prateada. — O que vocês acham que podem fazer com isso?

Vim preparada para mais de vinte e são apenas três, que pena.

O vestido que Katherine usava era todo aberto na parte de trás.

Então, suas grandes tatuagens negras começaram a ganhar vida e

aquelas belas asas negras ficaram abertas, esperando o ataque dos

anjos para poder reagir.

O anjo da esquerda, usando sua pequena faca e com um impulso

das asas, foi em direção a Katherine. Logo em seguida, o que estava à

direita repetiu o movimento do primeiro, e a que estava no meio deu um

impulso maior, passando pelos dois companheiros e se aproximando

mais rápido da ruiva, que estava a uns cinquenta metros deles.

Em vez de ir em direção a eles, Katherine voou para cima, deixando

os anjos passar por ela. Suas mãos agora estavam abertas, e a ruiva

desceu, ficando no mesmo lugar em que estava antes. Já no chão,

fechou suas grandes asas, como se a batalha já tivesse terminado.

Katherine se virou para os três anjos, que já se despedaçavam feito

vidro. Em um único ataque, ela havia acertado os três.

— Não tenho tempo para ver o fim de vocês, pois há outras coisas

para fazer. — Ela saiu andando em direção à casa de Natalie, segurando

um objeto nas mãos: um dardo parecido com aqueles usados em jogos,

mas menor e mais pontiagudo, todo negro. — Estes nunca falham em

grande quantidade. É uma pena que foram apenas três.

Dentro de casa, Dorah assistia a um seriado que passava pela

manhã em um dos canais pagos que ela assinava para os filhos. Como

se tratava de uma comédia, Dorah dava gostosas gargalhadas que

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podiam ser ouvida da rua, caso houvesse alguém.

Um grande trovão fez a energia da casa cair. A senhora Zeniek olhou

pela janela e viu que as luzes da rua, que já estavam acessas

automaticamente por conta da escuridão, também se apagaram. Tudo

ficou silencioso, e as árvores e seus galhos eram os únicos a emitirem

algum tipo de som.

Dorah pensou em pegar uma vela na cozinha, mas ela já tinha

encaixotado tudo. Então, cruzou os braços e sentou-se no sofá, à espera

do filho e da melhora no tempo.

Katherine, de alguma maneira, já estava na casa. Havia entrado sem

que Dorah percebesse e, quando se dirigiu para o quarto de Natalie, ficou

furiosa ao ver que a garota não estava lá.

Nesse momento, Dorah se levantou do sofá e foi para a cozinha.

Quando abriu a geladeira, viu que não havia mais nada. Então, sorriu e

depois fechou a porta.

Lentamente, Katherine descia as escadas depois de ter ouvido o

barulho da geladeira. Quando viu Dorah, seus planos mudaram. Ela era

do tipo de demônio que gostava de provocar sofrimento. Katherine se

materializou e apareceu para Dorah, que levou um susto quando viu a

ruiva na escada.

— Quem é você? — perguntou Dorah, toda assustada com a

presença daquela mulher desconhecida dentro de casa. — Saia já daqui,

senão eu chamo a polícia.

— Não será necessário. Daqui a alguns minutos eu vou sair, mas já

que está aqui, acho que devemos conversar.

— Eu nem mesmo sei quem é você. Por que iria gostar de ouvir

algo? — Ao mesmo tempo que era dócil, Dorah também sabia ser bem

durona quando necessário. — Vamos, eu disse para sair daqui. — Ela foi

até onde Katherine estava e a pegou pelo braço.

— Se eu fosse você, soltaria meu braço imediatamente. — Katherine

a empurrou, derrubando Dorah no chão. — Você vai ficar aí e escutar

tudo o que eu tenho para lhe dizer.

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— Eu não tenho nada para escutar de você, sua...

— É sobre a sua filha — disse Katherine, fazendo Dorah

imediatamente parar de falar. — Acho que a senhora não conhece muito

bem a filha que tem. Pelo que me parece ela não anda te contando tudo.

— Eu conheço minha filha muito melhor do que você, ou qualquer

pessoa.

— Será? — O olhar da ruiva era extremamente maldoso. — Sua filha

está brincando com fogo e logo será queimada.

— Do que você está falando?

Ao notar os olhos cruéis de Katherine, aquela conversa sobre inferno

fez com que ela segurasse um crucifixo que ela usava no pescoço, a

ponto de querer se defender daquele mal que ela sentia.

— O que você quer de mim? — perguntou Dorah, sentindo muito

medo.

— De você eu não quero nada. Apenas vim avisá-la sobre o que sua

filha esconde de você. Assim, quando ela estiver morta, você saberá a

causa da morte dela. — Katherine saiu de perto de Dorah, indo em

direção à porta de saída. — A sua querida filha se meteu em um lugar

onde jamais poderia ter entrado.

Quando a ruiva decidiu abrir a porta, Dorah levantou-se, foi até a

mesa da cozinha e rapidamente pegou uma faca que ela usava para

empacotar as coisas. Então, partiu para cima de Katherine, tentando

evitar qualquer mal contra a filha. Sabendo que não poderia ser atingida

por aquilo, a ruiva olhou para a mulher e apenas se desviou do golpe,

sem nenhum tipo de dificuldade, empurrando Dorah para o chão.

Dorah caiu de barriga para baixo. Katherine, com muita facilidade,

desvirou o corpo da senhora Zeniek e percebeu que a faca que ela

segurava estava cravada em seu peito. Ainda com vida, mas sem forças

para se levantar, Dorah pediu a ajuda para ruiva.

Na intenção de provocá-la mais na hora do sofrimento, Katherine se

abaixou, olhou bem nos olhos de Dorah e disse:

— Você acredita em demônios? — Em um último suspiro, Dorah

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perdeu todas as suas forças e uma lágrima saiu dos seus olhos e

escorreu até o chão. Naquele momento, o corpo dela não tinha mais vida.

A senhora Zeniek faleceu, levando com ela sua preocupação pela

segurança de Natalie.

Katherine ficou extremamente satisfeita com o que tinha acontecido.

Ela ainda precisava ir atrás de Natalie. Levantou-se sem mexer no corpo,

abriu a porta e novamente caminhou pelas ruas, sem que ninguém

pudesse mais vê-la. A ruiva abriu suas longas asas para voar até a casa

de Kelly, mas um raio negro caiu dos céus. No mesmo local, um grande

portal roxo foi se formando, e a ruiva se assustou.

— Eu juro que ela me atacou, não foi a minha intenção. — Katherine

parecia saber o que estava para acontecer e começou a se justificar. —

Por favor, não me castigue. — A ruiva entrou no portal e seu corpo

desapareceu como se tivesse sido sugado.

A rua da casa de Natalie continuava escura, mas o vento havia dado

uma trégua. Um pingo anunciou a chuva, que caía lentamente parecendo

lágrimas do céu.

Já em sua rua, Gabriel segurava uma bola debaixo do braço, e corria

em direção à sua casa, enquanto os grandes pingos de chuva atingiam

seu corpo. Eles eram fortes e, ao tocar seu corpo, chegavam a machucar,

fazendo o rapaz ir mais rápido. Quando ele chegou à frente da sua

residência, viu que a porta estava aberta, e imediatamente um

sentimento ruim tomou conta do seu corpo. Então, ele correu para dentro

de casa, se deparando com mãe no chão.

Gabriel ficou alguns segundos parado sem esboçar nenhuma reação.

Apesar de tudo o que Katherine tinha dito para ele, e da raiva que ele

sentia por Dorah ter escondido um segredo durante toda a vida dele,

naquele momento o sofrimento e a culpa tomaram conta de seu corpo.

Ele não tinha ideia de que perder a mãe e não aproveitar os últimos

momentos ao lado dela poderia ser tão doloroso. Arrependimento,

seguido de lágrimas, e um tremendo vazio.

— Mãe, me desculpa. — Palavras sinceras, mas que, naquele

momento, não adiantariam mais. Porém, onde quer que Dorah estivesse,

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ela teria ouvido o filho, e sabia o quão sincero ele estava sendo.

Gabriel voltou a si e não sabia o que fazer. Tinha vontade de correr,

fugir para algum lugar. Ele estava sozinho naquele dia chuvoso e escuro.

Olhando para o rosto da sua mãe, ele se a joelhou ao lado dela e por ali

ficou mais um tempo sem dizer nada.

Enquanto isso, na casa de Kelly, Natalie acordava de uma longa e

tranquila noite. Ela pensou em Dorah, deu um pequeno sorriso e

lembrou-se de que logo estaria na casa nova, ajudando a mãe com a

mudança.

— Bom dia, monstrinha — disse Kelly, na porta do quarto, ainda

usando pijama. — Me desculpa por ter insistido ontem à noite para você

fazer aquilo. — Kelly se referia à foto e à tentativa de contanto com a

mãe.

— Não se preocupe, amiga, eu entendo o quanto você queria isso.

Eu é que peço desculpas por não conseguir. — Natalie se levantou e

começou a dobrar os lençóis. Apesar de Kelly ter empregados, já era

costume da garota fazer isso pela manhã. — Te prometo que, assim que

eu apreender melhor como usar essa habilidade, tentarei um novo

contato com ela. — Kelly sorriu para a amiga que tentava animá-la.

As duas desceram para a cozinha a fim de tomar o café da manhã. A

mesa estava cheia, vários tipos de pão, geleias, doces e uma grande

jarra de suco de laranja.

— Estou com uma saudade de tomar o suco de laranja da sua mãe –

disse Kelly, olhando para aquela grande jarra de suco, que não chegava

nem aos pés do suco de Dorah.

— Assim que a casa nova estiver arrumada, eu te ligo, e você pode

tomar uma jarra inteira. — Natalie sorriu, sem imaginar que aquela

promessa não seria cumprida, pois nem chegaria a ir para a casa nova,

assim que recebesse a terrível notícia.

— Eu acho que você vai acabar não se mudando hoje, Natalie. —

Kelly olhou para a janela e não parava de chover por um instante.

— Talvez pare de chover daqui a algumas horas. Você sabe como é

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o tempo aqui em Polsher.

O telefone de Natalie começou a tocar. Ela o tinha deixado no quarto,

e saiu correndo para atender. Quando viu pelo visor que era de casa, ela

logo atendeu, dizendo:

— Estou esperando passar a chuva, mãe. Assim que acalmar, eu

vou para casa. É que eu estou de moto, e eu não trouxe...

— Sou eu, Natalie. — A voz de Gabriel não parecia nada animadora,

o que deixou a irmã preocupada.

— Aconteceu alguma coisa, Gabriel? — O garoto ficou em silêncio,

como se não conseguisse falar nada. — Gabriel, me diz alguma coisa. O

que aconteceu? — Ele começou a chorar, sem conseguir dizer uma

palavra.

— Natalie, a mamãe...

— O que aconteceu com a mamãe? — Natalie foi perguntando, mas,

ao mesmo tempo, já juntava suas coisas para ir para casa. — Me diga,

Gabriel!

— Ela está morta, alguém a matou.

Natalie parecia ter perdido os sentidos naquele momento. Soltou o

telefone das mãos e o coração dela, que estava tranquilo, começou a

acelerar desesperadamente. Ela pensou que o irmão poderia estar

enganado, mas, depois de tantas coisas ruins que já tinham acontecido,

não conseguia mais raciocinar direito.

— Aconteceu alguma coisa, monstrinha? — Kelly apareceu na porta

do quarto, vendo a amiga que estava parada e o telefone jogado no chão.

— Me fala alguma coisa, Natalie. Por que essa cara? — A loira pegou o

telefone no chão, mas a ligação já tinha caído, ou Gabriel já tinha

desligado.

— Minha mãe, Kelly, aconteceu alguma coisa com a minha mãe —

disse ela, chorando. — Eu não devia ter deixado ela sozinha, fizeram

alguma coisa com ela Kelly.

— Quem era no telefone? O que disse? — Kelly começou a se

preocupar com a amiga, que estava ficando pálida.

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— Era meu irmão... Ele... Ele... Ele disse que minha mãe... — No

meio de lágrimas, Natalie não conseguia falar, apenas soluçava muito.

Em uma reação involuntária, a garota pegou suas coisas e correu para a

moto.

— Natalie, você não pode sair nessa chuva. Volte aqui. — Kelly

tentou impedir a amiga, mas já era tarde. Natalie já havia ligado a moto e

seguido para casa debaixo daquela chuva, com sua roupa toda

encharcada e com o perigo de sofrer algum tipo de acidente. Enxergar já

era um trabalho difícil, ainda mais quando seus olhos estavam cheios de

lágrimas.

Na casa da família Zeniek, Gabriel ainda estava na mesma posição,

segurando o telefone nas mãos com sua cabeça baixa. Com os olhos

vermelhos de tanto chorar, ele olhou para Dorah. Não queria deixar a

mãe ali naquela posição, daquela maneira, mas não conseguia ficar mais

naquele local. Queria correr fugir da situação. Sem pensar, abriu a porta

e correu no meio da chuva, sem direção, deixando novamente a porta

aberta.

Natalie ainda estava um pouco longe. Tentava acelerar ao máximo

sua moto, aproveitando-se de que nas ruas não havia muitos carros.

Precisava apenas chegar em casa, ainda na esperança de poder ajudar a

mãe de alguma forma.

Quando ela chegou e viu que a porta estava aberta, tirou o capacete,

largou a moto, que caiu com força no chão, e correu para dentro de casa.

— Não, meu Deus! Minha mãe não.

A visão de Natalie, naquele momento, ficou ofuscada pelas lágrimas.

Ela se ajoelhou perto do corpo da mãe, colocou sua cabeça sobre a

barriga de Dorah e chorou muito.

— Mãe acorda, por favor, acorda. Não me deixa aqui sozinha — a

garota tentava algum movimento da mãe, mas era em vão. — Me

desculpa, foi tudo culpa minha, eu não podia ter deixado você ontem,

acorda mãe.

Ela se sentia culpada, pois por diversas vezes havia sido avisada de

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que se não se afastasse de Carsten, poderia perder as pessoas que mais

amava. A pessoa que ela mais amava estava naquele chão, sem vida.

— Por quê? Quem fez isso com você?

Aquela era a pessoa mais importante para ela, e mesmo sem saber o

que tinha acontecido, teve vontade de acabar com tudo, tirar sua própria

vida. Sabia que se não tivesse se envolvido com Carsten, nesse

momento, poderia chegar em casa e ver o sorriso de Dorah no rosto.

Ela não tinha contado a verdade para a mãe, e a relação das duas

sempre havia sido bem aberta, algo de amigas mesmo. Se ela pudesse

voltar atrás, ela contaria, mas agora já era tarde demais.

O coração de Natalie sangrava muito, e o que ela mais precisava era

de um abraço forte que pudesse conter toda aquela dor, ou pelo menos

amenizar o que ela sentia.

— Natalie. — Aquela voz apareceu no momento certo, no momento

em que ela mais precisava. Era Carsten atrás dela, na sala da sua

própria casa.

Quando ela o viu, se levantou e correu para os braços dele. As

lágrimas corriam sem parar. Carsten a teria abraçado bem forte, se ela

não estivesse usando o colar. Então, sem pensar, a garota tirou o colar,

jogou-o no chão e ele a abraçou. Natalie sabia que isso estava

acontecendo por conta desse rapaz, mas ela não tinha para onde correr

naquele momento, se sentia sozinha. O sofrimento tomou conta de todo

seu corpo.

— Eu sinto muito — disse o rapaz, tentando acalmá-la. Ele sabia

que, naquele momento, essa era a única coisa que podia fazer por ela.

— Carsten, por que eles fizeram isso com ela? Minha mãe não sabia

de nada, não teve culpa de nada.

— Natalie. — dessa vez, Reik também falava do meio da sala, ele

também podia sentir a dor da garota.

Por um momento, Natalie parou de sentir aquele abraço, afastando-

se de Carsten. Então, olhando para Reik, ela disse:

— O que vocês estão fazendo aqui? — perguntou ela desconfiada, já

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que havia vários dias eles tinham sumido, mas de repente voltaram a

aparecer. Natalie sentiu algo no braço e, quando olhou, ele estava

manchado de sangue, assim como as mãos de Carsten. — O que é isso?

— perguntou ela apontando para a mão dele.

— Natalie, não é o que você está pensando. — Um grande trovão

pôde ser ouvido na rua, deixando o clima mais tenso do que já estava. O

rapaz olhou para as mãos e tentou explicar a situação: — Eu apenas

tentei...

— Eu não acredito que você teve coragem. — Natalie não queria

ouvir o que Carsten tinha a dizer. Com a cabeça totalmente bagunçada,

ela não conseguia imaginar outra coisa. — Por que você fez isso? Como

você pôde deixar, Reik? — O rapaz tentou se aproximar dela, mas, a

cada passo que ele dava, ela se afastava.

— Natalie, você não sabe o que está dizendo. Eu não fiz...

— Cala a sua boca. — Uma mistura de dor e ódio consumiam

Natalie. — Eu deveria ter escutado as pessoas quando falavam de você,

eu nunca deveria confiar em um demônio, nunca. — Natalie saiu

correndo pela porta, voltando a se molhar e tentando levantar sua moto.

— Natalie, mas eu...

— Fique aqui — disse Reik, impedindo Carsten e ajudando a garota

a levantar a moto. — Natalie, você está nervosa. Entre e se acalme. —

Reik estendeu o braço para a garota, entregando o colar que ela havia

deixando no chão. A princípio, como estava com raiva, ela não quis pegar

o colar, pois era a única protegida, e todos à sua volta estavam

morrendo. Mas, como não sabia o que aconteceria dali para frente,

aceitou o colar das mãos do arcanjo.

— Você deveria proteger as pessoas que eu amo. Mas agora eu

entendo por que você o está ajudando. Você é igual a ele. — Natalie

subiu na moto, e seguiu debaixo de toda aquela chuva, deixando o

capacete cair no chão.

— Para onde ela foi? — perguntou Carsten.

— Deixe que ela vá, ela precisa pensar. Os anjos estarão atrás dela,

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nada de ruim vai acontecer.

— Mas ela está achando que eu fiz alguma coisa. Eu não faço ideia

de quem tenha feito isso. — Carsten sabia que ele não tinha culpa, mas,

ao mesmo tempo, sentia-se culpado por ter deixado aquilo acontecer.

— É claro que faz. Não consegue sentir a energia que ficou aqui?

— Katherine. — As mãos de Carsten se fecharam e ele esmurrou a

parede logo em seguida.

— Controle-se, rapaz, não vai adiantar nada agora. Precisamos

apenas ficar atentos para tudo.

Não tão longe dali, Gabriel estava sozinho no campo de futebol,

debaixo daquela forte chuva. Parecia morto, sem alma, perdido, sem ter

o que fazer.

— Vejo que você está sofrendo, rapaz. — Victor, que deveria estar

em repouso, sentiu que o rapaz estava sofrendo e, devido ao antigo

encontro que tivera com Gabriel, de alguma forma, sentiu que aquele era

o momento de agir com o rapaz. Mesmo arriscando durante o dia, ele,

assim como Katherine, aproveitou a escuridão da tempestade.

— Eu quero ficar sozinho — disse Gabriel, tentando evitar o rapaz.

— Lembra-se do que nós te falamos da outra vez? Que, quando

precisasse de ajuda, nós estaríamos aqui? — Victor também era esperto,

e sabia exatamente como chegar aonde queria. — Pois bem, estou aqui

para te ajudar.

— E como você pretende fazer isso? — perguntou Gabriel. — Minha

mãe está morta, eu estou sozinho, não tenho mais ninguém.

— Sim, eu sei disso, e eu sinto muito. — Victor não poderia ser mais

falso naquele momento. — Mas, lembre-se de que ela não era sua

verdadeira mãe. Talvez possamos encontrar a verdadeira. — Se ele

pensasse muito, talvez não conseguisse ser tão certeiro. — O que você

acha?

— Você consegue mesmo fazer isso por mim? — Gabriel estava

transtornado por dentro, não percebia nem o que estava falando.

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— Isso e muito mais. Venha, me acompanhe, temos muito o que

conversar.

Os dois caminharam debaixo daquela forte chuva. A cada passo,

Victor tentava colocar mais coisas na cabeça de Gabriel, tornando-o mais

vulnerável a tudo o que dizia.

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Capítulo 35

NO FUNERAL de Dorah havia muitas pessoas, gente que Natalie

não via faziam anos, e algumas que ela nem conhecia. Mas, dentre os

rostos conhecidos, estavam de seus amigos, principalmente Kelly, que

não saiu do seu lado em nenhum minuto, Dalton, que já estava havia

bastante tempo por ali, e o pessoal do bar, que não deixou de fazer uma

visita para a garota.

Apesar de a chuva forte da manhã ter dado uma trégua, à tarde, o

tempo ainda permanecia nublado e com uma pequena garoa. Muitos

utilizavam guarda-chuva para evitar que se molhassem. Kelly segurava

um deles sobre a cabeça dela e de Natalie.

Desde que o corpo da mãe havia chegado ao local, Natalie

permaneceu de cabeça baixa, sem falar com ninguém. O vazio havia

tomado conta de todo o seu corpo, e ela não tinha forças nem para falar.

Kelly sentiu a falta de Gabriel, que havia desaparecido desde a

manhã desse dia. Muitas pessoas até especulavam que o rapaz tinha

feito alguma coisa, já que nos encontros da Igreja Dorah vivia pedindo a

proteção do filho, o qual estava muito diferente nos últimos dias.

— Estou começando a ficar preocupada com você, Natalie. Me diga

alguma coisa. — Kelly tentou por diversas vezes animá-la. — Quer dar

uma volta, sair um pouco daqui?

— Como eu pude confiar nele? — Depois de tanto tempo, essas

foram as primeiras palavras ditas por Natalie, que possivelmente não

parava de pensar na cena vista naquela manhã. A pessoa em quem ela

estava aprendendo a confiar poderia ter feito algo tão terrível, como tirar

a vida de quem ela mais amava.

— De quem você está falando, Natalie? — Percebendo que Natalie

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falava de Carsten, Kelly perguntou bem baixinho para que ninguém

escutasse a conversa.

— Ele estava com as mãos sujas de sangue quando eu a encontrei.

— Ele estava lá? — A loira ficou totalmente surpresa.

— Ainda me abraçou. — Lágrimas começaram a cair do rosto de

Natalie.

— Que desgraçado! — Com raiva, Kelly disse em tom mais alto,

fazendo muita gente olhar para ela, deixando-a sem graça.

— Aconteceu alguma coisa, amor? — Dalton pareceu preocupado

com a reação da namorada.

— Não, não, eu só lembrei-me de uma coisa que me deixou irritada.

— Contar toda aquela história para Dalton não seria boa coisa. — Vou ao

banheiro, você fica aqui com ela.

Dalton não teve tempo de responder, Kelly já estava caminhando em

direção ao banheiro e deixando-o sozinho com Natalie. O rapaz ficou

sem reação, pois não sabia o que dizer a ela. Um pouco sem graça,

sentou-se ao lado de Natalie e tentou acalmá-la com algumas palavras:

— Não consigo imaginar o tamanho da dor que você está sentindo,

mas posso te dizer que meu coração está doendo de te ver assim,

Natalie. — Se ela estivesse consciente para ouvir, com certeza ficaria

emocionada. — Também estou triste, porque ainda não encontraram a

minha irmã. — Natalie prestou atenção no que Dalton havia dito. Ela não

se lembrava de que Lily estava desaparecida havia tanto tempo.

— Eu sinto muito por ela, Dalton. — Com as poucas energias que

restavam, ela tentou consolar o amigo, no momento em que mais

precisava ser consolada.

— Tudo vai ficar bem. Deus vai te confortar, Natalie, ele não vai te

abandonar. — As palavras de Dalton a fizeram pensar. Se Deus a

confortaria de alguma forma, por que, em vez de confortá-la, ele não a

teria protegido? Essa é uma das perguntas que todos fazem quando

algum ente querido morre, e não foi diferente com ela.

— Ele deveria tê-la protegido. — Quando Natalie disse isso, Dalton

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imaginou que ela estava falando de Deus. Mas, na verdade, ela pensava

em Reik, que havia feito a promessa de proteger todos que ela amava.

Carsten também tinha prometido a mesma coisa. — Mas ele não é tão

bom quanto parece. Deixou minha mãe morrer.

— Às vezes, nós não entendemos por que as coisas acontecem, mas

tudo tem um propósito bom de alguma maneira.

— Pronto, voltei. — Kelly já estava na frente de Natalie novamente.

Ela trazia um sorvete para a amiga, tentando de todas as formas mudar o

humor dela.

— Obrigada. — Natalie pegou o sorvete e o chupou. Mesmo que a

aparência dela não estivesse melhor, Kelly ficara mais feliz ao ver que a

amiga tinha gostado do presente.

Algumas horas se passaram, e o enterro de Dorah seria feito no fim

da tarde. Natalie, apesar de ainda falar poucas palavras, parecia estar

um pouco mais calma. Ela preferia ficar do lado de fora, pois não ver o

corpo sendo velado amenizava seu sofrimento.

Natalie olhou para os lados e observou que os anjos continuavam ao

seu redor. Depois de ver Reik naquela situação de manhã, a vontade que

ela tinha era de gritar para que todos sumissem da vida dela. Mas, se ela

o fizesse, provavelmente a chamariam de louca, já que não podiam vê-

los.

Jonathan, que conversava com Nick e Serah, decidiu falar com

Natalie. Vendo o sofrimento da garota, achou melhor que ela

descansasse por uns dias, pois não teria condição alguma de trabalhar

naquela situação.

— Eu posso trabalhar. Não se preocupe. — Natalie tentava dizer que

tinha condições. Ela sabia o quanto faria falta no bar, e estava

preocupada.

— Eu, como dono do bar, não quero que você vá, Natalie. Você

precisa descansar. — Jonathan estava bem sério, querendo dizer que

não haveria outra opção para ela. — Eu vou ligar para uma amiga que,

de vez em quando, trabalha no Avalon quando eu preciso. Ela pode te

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substituir por dez dias, não será problema algum.

Natalie não sabia se aguentaria ficar dez dias em casa. Talvez o bar

fosse um refúgio para ela. Dentro de casa ela não conseguiria ficar, pois

as lembranças de Dorah seriam muito fortes, e a casa estava fechada

para a investigação da polícia.

— Tudo bem, Jonathan. — Natalie estava desanimada demais, pela

sua voz era possível ver que ela não tinha forças.

— Fique bem e descanse, é para o seu próprio bem. — Após

conversar com ela, Jonathan voltou a ficar com os seus funcionários e

deixou Natalie com seus amigos mais próximos.

— Monstrinha, esses dias você vai ficar em casa. Vai ser melhor para

você.

— Kelly, eu vou aceitar. Acho que será melhor mesmo, obrigado —

agradeceu Natalie. — Mas eu preciso ir para casa e pegar algumas

coisas.

— Alguma notícia do Gabriel? — perguntou à loira.

— Não. Há pouco tentei ligar para o celular dele, mas deu caixa

postal. — Natalie tinha muitas preocupações na cabeça, e Gabriel era

mais uma delas. Depois de Lily ter desaparecido, agora era seu irmão

quem sumira. — Eu tenho certeza que ele não fez nada, ele nunca

tentaria machucar a nossa mãe.

Mais algum tempo se passou, e o velório foi chegando ao fim. Era o

momento de o padre dar a bênção. As lágrimas de Natalie, naquela hora,

comoviam a todos. Era a última vez em que veria sua mãe. Aquela

mulher, que não era apenas mãe, mas uma companheira, e

principalmente uma guerreira, pois criara os dois filhos de forma

excepcional.

O caixão foi fechado. Enquanto o corpo de Dorah era enterrado, as

lembranças permaneciam não só na cabeça de Natalie, mas na de todos

que conviveram com a senhora Zeniek. A filha pegou uma rosa e a jogou

assim que o corpo descia. Com a flor, mais lágrimas de profunda tristeza.

Natalie sabia que, a partir daquele momento, estaria sozinha, e não

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tinha ideia de como seria entrar naquela casa e saber que Dorah nunca

mais estaria lá. Ela teria de colocar em prática tudo o que a mãe ensinara

durante a vida, já que um dia isso iria acontecer naturalmente.

Assim que tudo estava terminado, muitos vinham dar um último

abraço em Natalie antes de partir. Quando a grande maioria se foi, Kelly

chamou a amiga para ir embora. As duas passariam na casa de Natalie

para pegar algumas roupas e, logo em seguida, iriam para a mansão,

onde se sentiria mais acolhida no momento em que mais precisava dos

amigos. Kelly já havia ligado para que a empregada preparasse algo leve

para o jantar. No caminho para a casa de Natalie, a garota tentou

novamente ligar para o irmão, mas a ligação caiu na caixa postal.

Quando as duas chegaram à frente da casa, Natalie teve um

pressentimento ruim ao se lembrar de tudo. A porta da casa estava

selada com faixas de segurança, e havia um policial do lado de fora.

Quando ele viu a garota se aproximar, disse para ela não encostar em

nada, evitando alguma alteração no local do crime.

Já dentro de casa, com a amiga, Natalie parou onde sua mãe havia

sido encontrada, lágrimas voltaram a correr pelo rosto da garota, ela não

queria, mas parecia impossível não se lembrar dela naquele estado.

Revivendo tudo aquilo de novo: olhou para frente e pôde ver Carsten se

aproximando, e em seguida Reik parado logo atrás. A garota sentia-se

tonta, mas Kelly estava ali para ajudá-la.

— Você está bem? — perguntou a loira.

— Sim, só tive lembranças de cena que vi hoje de manhã. Kelly o

que eu vou fazer sem ela?

— Amiga, eu sei o quanto é difícil, eu já passei por isso, o importante

agora é você descansar, não pensa no amanhã, pensa no agora — Kelly

tinha toda razão, mas sabia que mesmo conversando com a amiga, não

adiantaria muita coisa, afinal era muito recente — Então, vamos logo lá

em cima pegar suas coisas e sair daqui. — Kelly segurou Natalie pelas

mãos e as duas subiram as escadas.

Natalie entrou em seu quarto e olhou ao redor. Não sabia se

conseguiria voltar a dormir naquele local. Então, pegou algumas roupas

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nas caixas que usou para empacotar a mudança, colocou em uma

mochila e logo saiu de lá. Antes de descer, passou na frente do quarto de

Dorah, acendeu as luzes, mas, como tudo estava encaixotado, as

lembranças que poderiam ser dolorosas foram amenizadas.

Assim que saiu de casa, o policial que estava na frente da porta

entregou um papel para Natalie:

— Foi um rapaz que deixou aqui hoje pela tarde.

— Era meu irmão? — perguntou Natalie preocupada.

— Não. Ele ainda está sendo procurado, mas não há nenhum sinal

dele. — Os policias procuravam o garoto, pois ele era um dos principais

suspeitos do crime.

Mesmo sabendo disso, Natalie não podia dizer nada a respeito de

Carsten, pois ele não poderia ser visto pelos policiais, e ela poderia se

complicar. Dificilmente eles acreditariam nela.

Assim que entrou no carro, Natalie abriu a carta e logo foi ao final

dela para saber de quem era. A garota se surpreendeu, pois se tratava

de uma carta de Gabriel. Kelly pediu para que ela lesse em voz alta, já

que também estava curiosa por saber onde ele se encontrava. Então ela

começou:

NÃO SEI COMO EU PODERIA COMEÇAR ESTA CARTA, JÁ QUE, SE EU TE CHAMAR

DE IRMÃ, ESTARIA ME ENGANANDO MAIS DO QUE JÁ FUI ENGANADO.

Natalie parou e olhou para o rosto de Kelly com desconfiança.

DURANTE TODOS ESSES ANOS, A VERDADE FOI ESCONDIDA DE MIM.

POSSIVELMENTE, VOCÊ JÁ SABIA QUE EU ERA ADOTADO, E TAMBÉM NUNCA

ME DISSE NADA.

— Adotado? — Kelly ficou surpresa com a notícia. — Você sabia

disso?

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Natalie parecia tão chocada quanto a amiga. Apenas respondeu

negativamente com a cabeça, e continuou a leitura:

QUANDO VI A IMAGEM HOJE DE MANHÃ, DA NOSSA MÃE ESTIRADA NO CHÃO,

SOFRI MUITO, MESMO SABENDO QUE TODO ESSE TEMPO FUI ENGANADO.

AGORA VOCÊ NÃO TERÁ MAIS DE ME AGUENTAR COMO SEU FALSO IRMÃO,

POIS NÃO TEMOS MAIS NENHUMA LIGAÇÃO. SE BEM QUE NUNCA TIVEMOS.

— Meu Deus, Natalie, o que está acontecendo? — Para Kelly,

aquela notícia, em um dia daqueles, poderia ser pior do que qualquer

coisa.

POR ISSO, DECIDI IR EMBORA. VOCÊ FICARÁ MELHOR SEM MIM, E EU SEGUIREI

MEU CAMINHO. FIQUE BEM. GABRIEL.

Natalie não sabia o que pensar. Aquela carta revelava muita coisa

que ela não sabia, e seu irmão de quinze anos estava por aí perdido,

sem nenhum tipo de proteção.

— Natalie, de onde ele tirou toda essa história?

— Não faço ideia, e agora eu não tenho mais como perguntar para

minha mãe. — Natalie estava perdida, e definitivamente não era um bom

momento para ela encontrar uma resposta.

— Na verdade, tem. — Kelly sorriu. — Não agora, claro, mas quem

sabe mais para frente você não consiga comunicação com ela —

lembrou a amiga, tentando confortá-la de todas as formas.

Durante todo aquele dia, Natalie não tinha parado para pensar nisso.

Como ela conseguia comunicação com seu pai, poderia tentar se

comunicar com Dorah em algum momento, mas não seria naquele dia. A

única coisa que ela queria naquele momento era tentar dormir.

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******

— Parece que as coisas estão saindo fora do controle — disse

Serah, que estava conversando com Reik.

— Realmente, isso não estava planejado para acontecer. Ela agora

acha que o rapaz foi o causador de tudo. — Reik estava muito

preocupado com a situação.

— Onde ele está agora? — Era noite e, naquele momento, Carsten

poderia sair sem enfraquecer.

— Não quis sair do esconderijo, porque ele sabia que iria atrás dela

caso saísse.

— Agora seria o momento certo para que ela se afastasse dele

definitivamente. — Serah imaginou que seria algo perfeito, pois esse era

o plano desde o início: não deixar que os dois ficassem juntos. – Não

tivemos de fazer nada, assim ela terá tempo para se preparar como você

disse.

— Serah, as coisas mudaram. — A loira ficou atenta ao que Reik

tinha para dizer. — Longe eles parecem sofrer, temo que se fizermos

isso, será ao contrário, apenas retardará o progresso que ela já teve.

— Progresso? — Reik ficou em silêncio. — Já sei. Você não pode

me dizer mais nada, e eu ficarei novamente curiosa com tudo isso?

— Infelizmente, sim. — Reik virou as costas para ela como se

estivesse indo embora. — Vamos continuar com o plano.

— Mas agora que ela não vai mais ao Avalon, preciso continuar

indo? — Serah questionou Reik. — Sim melhor você continuar, para a

segurança dos que trabalham com você. E, durante esse período que

você estiver no bar, os outros anjos a protegerão. Mas quero que você

fique atenta, pois logo terá de desaparecer de lá e voltar às suas missões

normais. — Reik deu mais um passo, porém foi interrompido novamente.

— Queria te fazer uma última pergunta. — Serah não tinha certeza

se poderia, mas, depois de tanto tempo convivendo com Natalie, ela tinha

de saber aquilo realmente. — Se você prometeu protegê-la, por que

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deixou que a mãe dela morresse? — Ela sabia que Reik poderia ter

evitado o ocorrido, pois ele era um arcanjo, mas não o fez.

— Serah, existem coisas na vida que não possuem explicação

racional. A missão de Dorah aqui na Terra terminou hoje, e foi o melhor

para o momento.

— O melhor? — Serah não conseguia entender como uma garota

jovem como Natalie, que acabara de perder a mãe, poderia se sentir

melhor sem ela.

— Esse é o menor dos sofrimentos pelos quais Natalie vai passar.

Ela precisa aprender a ser forte para que consiga ficar viva. — Reik

nunca havia sido tão sério antes.

— Tudo isso por conta da escolha em ficar com Carsten?

— Isso não foi uma escolha, Serah, é o destino dela. — Sem dizer

nenhuma outra palavra, Reik caminhou em direção à mesma floresta

onde eles sempre se encontravam, e desapareceu no meio das árvores.

******

Kelly foi chamada por um dos empregados para receber alguém que

estava na porta. Enquanto isso, Natalie tomava seu banho, naquela

primeira manhã sem Dorah. A água do chuveiro descia pelo corpo e se

misturava às lágrimas que caíam pelo seu rosto. Ela não sabia como

seria sua rotina a partir daquele momento, e o que faria para superar

tamanha perda.

— Natalie, você tem visita. — Quando Kelly bateu à porta do

banheiro, o coração de Natalie bateu em desespero. Aquela visita

poderia ser qualquer pessoa, mas Carsten foi a primeira pessoa em

quem pensou. Se realmente o rapaz de cabelos negros estivesse ali, ela

não sabia qual seria sua reação.

— Eu já vou — disse Natalie, com um tom triste, mas tentando

disfarçar que estava chorando.

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A garota saiu do banho, e trocou-se lentamente para que tivesse

tempo de pensar como reagiria na frente do rapaz, já que tinha certeza

de que se tratava dele.

Assim que foi descendo as escadas, ainda com seus cabelos

molhados, foi recepcionada com uma condolência:

— Meus sentimentos, senhorita Zeniek. — Aquela voz era familiar.

Enquanto descia os degraus, pôde ver aquele sujeito barrigudo, com

suas mãos na cintura. Era o detetive Ramones, que estava de pé,

esperando-a.

— Detetive Ramones! — ela disse mais aliviada, por não se tratar de

Carsten. — Obrigada. — E agradeceu a condolência. — Em que posso

ajudá-lo?

— Sei que é um momento difícil, mas eu preciso te fazer algumas

perguntas. Você se importa em responder? — Para Natalie, aquilo foi

uma surpresa. Estaria o detetive imaginando que ela teria feito alguma

coisa com sua mãe? De qualquer forma, preferiu responder ao que o

detetive perguntou.

— Tudo bem. O que você gostaria de saber?

— Tudo. Do momento em que você ficou sabendo da morte da

senhora Zeniek até a hora em que encontrou o corpo dela.

— Bom, detetive...

Natalie começou a contar tudo o que sabia em meio aos prantos,

desde a ligação que havia recebido de Gabriel, até mesmo sobre entrar

em casa, encontrar a mãe naquele estado, e depois sair correndo em

desespero. Claro que preferiu esconder todos os detalhes sobre Carsten

e Reik.

— Você sabe que estamos procurando seu irmão por todos os

cantos. Ele é considerado o principal suspeito. Tem ideia de onde ele

esteja? — Aquela acusação, seguida da pergunta, fez Natalie pensar se

deveria mostrar a carta. Caso o fizesse, poderia complicar ainda mais a

situação do irmão, já que a descoberta de ser adotivo seria um grande

motivo para que ele fosse acusado.

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— Não. Desde aquela ligação, o celular dele está desligado. — disse

enxugando as lágrimas.

— Sim, nós já estamos tentando contato e pedimos rastreamento do

aparelho. — Ramones respirou bem fundo. Não parecia que as

perguntas terminariam por ali. — Quando você chegou ao local, lembra-

se de ter visto alguma faca ou algo parecido próximo ao corpo? —

Natalie novamente parou para pensar, e realmente não se lembrava de

ter visto nenhuma arma próxima ou no corpo da mãe. Mas, claramente,

recordava-se das mãos de Carsten sangrando.

— Não, detetive, apenas me lembro, como já te disse, de ter me

ajoelhado ao lado do corpo da minha mãe e de perceber que ela não

tinha mais vida. — Lágrimas voltaram a cair do rosto de Natalie, quando

se lembrou do estado em que sua mãe estava.

— E me diga mais uma coisa...

— O senhor não acha que já perguntou demais por hoje? — Kelly se

intrometeu na conversa, observando que Natalie já não estava mais

aguentando responder a nenhuma pergunta.

O detetive não gostou nem um pouco do tom usado pela loira, mas

achou melhor deixar para fazer mais perguntas outro dia.

— Bem, senhorita, você já tem meu cartão. Acho que sabe o que

fazer, se se lembrar de mais alguma coisa. — O detetive se levantou,

mas parou quando Natalie lhe disse:

— Se você souber de alguma coisa a respeito do Gabriel, por favor,

me ligue.

— Entraremos em contato — disse a loira, referindo-se a ele e toda a

equipe que estava envolvida no caso.

Assim que o detetive saiu, as duas amigas ficaram conversando

sobre o caso. Kelly já foi direto perguntando por que a amiga não tinha

mostrado a carta.

— Eu tenho certeza de que o Gabriel não fez nada, Kelly. A carta só

o deixaria mais encrencado. — Natalie tirou a carta do irmão que estava

no bolso da sua calça. — Apesar de tudo, ele ainda é uma criança.

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— O que você acha que aconteceu com a arma? — Kelly estava tão

curiosa quanto o detetive, mas, como já tinha mais informações, pois

sabia de Carsten, seria mais fácil entender as coisas.

— Eu realmente não me lembro de ter visto a arma, mas existem

duas pessoas que saberiam responder a isso — disse referindo-se a

Carsten e Reik. — Se é que posso chamá-los de pessoas.

— Melhor esquecermos isso por enquanto. — As duas se

levantaram, e mesmo Natalie não demonstrando interesse nenhum, Kelly

a puxou para a cozinha. — Vamos, você precisa comer alguma coisa.

O dia continuou. Na maior parte do tempo, Natalie parecia apática a

tudo, e não era por menos, pois as lembranças da sua vida agora

transitavam por sua cabeça. Ela estaria imaginando que sua mãe poderia

estar com seu pai naquele momento. Durante a noite, tentaria algum

contato com eles, mas não sabia em que momento faria isso, já que Kelly

estava com ela o tempo todo.

O dia foi passando e a noite foi chegando, sem nenhum sinal de

Carsten ou de Reik durante o dia todo. Apenas os anjos continuavam do

lado de fora a protegendo. Essa proteção a incomodava, mas ela sabia

que, além dela, Kelly também estaria segura.

Depois de jantarem e ver um pouco de televisão, Natalie fez um

pedido estranho para Kelly:

— Se você não se importar, queria dormir sozinha hoje. — Natalie

sabia que havia vários quartos vagos e que poderia ir para algum deles.

No início, Kelly ficou um pouco chateada, e ao mesmo tempo

preocupada, mas entendia que a amiga precisava ficar um pouco

sozinha, e não contrariou a vontade dela.

— Se durante a noite você precisar de alguma coisa, não hesite em

me chamar.

— Pode deixar, e obrigada por estar sendo tão boa quando eu mais

preciso.

— Monstrinha, amigas são para isso.

As duas ficaram vendo televisão mais um pouco, e quando Natalie

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decidiu ir para o quarto, Kelly também foi.

— Amanhã vamos fazer alguma coisa diferente — disse Kelly, antes

de entrar no quarto.

— Vamos ver — respondeu Natalie com cara de pouca empolgação.

Assim que entrou no quarto e fechou a porta, Natalie tirou do bolso

de fora da sua mochila uma foto que ela tinha pegado quando entrou em

seu quarto, em que toda a família estava reunida. Havia sido tirada dez

anos atrás, dias antes do fatídico acidente de Laurence.

Lágrimas deslizaram pelo seu rosto. Aquela família unida havia

acabado, e mesmo sabendo que ainda tinha seu irmão, ele estava

desaparecido. Natalie se sentiu sozinha, e a tristeza que a consumia a

fez lembrar-se de Carsten, alguém com quem ela queria muito estar em

um momento daqueles. Mas a garota logo retomou a consciência e disse

em tom baixo:

— Eu só posso estar ficando maluca! Não quero mais te ver por nada

neste mundo. Se não fosse por você, ela estaria viva.

Concentrando-se no rosto de Dorah, Natalie olhou fixamente para a

foto e, logo em seguida, fechou os olhos tentando buscar algum contato

com a mãe. O tempo foi se passando, e ela não recebia nenhum sinal,

nenhuma voz, nem dela nem de nenhuma outra pessoa.

Natalie apagou a luz do abajur, que estava acesa, e decidiu dormir.

Fechou seus olhos e as lembranças continuaram. Ela segurou com muita

força um travesseiro que estava ao seu lado, e começou a chorar

novamente.

— Não quero te ver assim. — Aquela voz, a voz que Natalie tanto

queria ouvir, de alguém que realmente pudesse lhe explicar o que estava

acontecendo. — Minha filha, não fique triste. — Era Laurence,

aparecendo no momento em que ela mais precisava.

— Pai, eu preciso tanto de você. — As lágrimas, que antes caíam

devagar, agora pareciam correr pelo rosto dela. O coração de Natalie

estava apertado, e a garota, desesperada, buscava por paz. — Por que

fizeram isso com ela? Como ele foi capaz?

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— Minha filha, as coisas acontecem por um único motivo. Tudo nesta

vida tem um propósito, uma razão.

— Por que ela? — Natalie não conseguia entender por que todos à

sua volta estavam morrendo. — Os anjos prometeram proteger todos ao

meu redor, e deixaram a mamãe morrer.

— Era o momento dela, assim como foi o meu momento há alguns

anos. — As palavras de Laurence não ajudavam a esclarecer as dúvidas

que Natalie tinha.

— Você conseguiu falar com ela? — Natalie queria saber se a mãe

estava bem, e como teria reagido a tudo aquilo.

— Natalie, sua mãe ainda está em transição, e isso pode demorar,

dias, meses, eu não sei te dizer. Mas, assim que ela estiver aqui, tentará

contato com você. — Natalie ficou, então, mais tranquila.

— Eu estou perdida, não sei como seguirei a minha vida.

— Você é forte, meu anjo, e com toda a certeza vai saber lutar contra

as coisas ruins e aproveitar o que há de bom. — Natalie prestou muita

atenção quando seu pai disse ―coisas ruins‖. Ela não sabia se estaria

preparada, caso outra tragédia acontecesse.

— Pai, quem matou a mamãe? — Apesar de as provas incriminarem

Reik e Carsten, a garota não estava segura sobre o autor do crime.

A voz de Laurence desapareceu e Natalie finalmente percebeu que,

quando o assunto era proibido, eles desapareciam. Ela imaginou que

talvez o pai não pudesse falar nada a respeito. Então, levantou-se, correu

para o quarto de Kelly e acordou a amiga com um forte abraço.

Assustada e sem entender nada, Kelly apenas retribuiu o abraço da

amiga.

******

Após levar do ancião um tapa, Katherine caiu no chão, mas não

tentou se levantar, pois poderia ser pior.

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— Quem você pensa que é, sua vagabunda? — O ancião estava tão

irritado que, se chegasse um pouco mais perto da ruiva, a mataria

facilmente — Mais uma vez agindo sem a minha permissão?

— Eu não...

— Cale a boca. — O lugar, que já era silencioso, ficou mais quieto

ainda. — Você é uma insubordinada. Achou que matando a mãe da

garota, a faria sofrer? — Katherine não disse uma palavra. — Realmente,

você conseguiu o que queria.

Victor que chegará a pouco, não dizia nada. Apenas ouvia o que o

ancião tinha para dizer. Apesar de não ter completado a missão, sabia

que não havia feito nada de errado.

— Você não mediu as consequências. — O ancião levantou sua mão

e jogou Katherine para longe, porém sem tocá-la. — Como você acha

que Carsten está neste momento? Acha que ele está feliz? Acha que ele

está com vontade de voltar para cá? Você é muito burra.

— Senhor — Victor quebrou seu silêncio — permita-me fazer uma

pergunta.

O ancião parecia estar impaciente e não disse nada, mas Victor

mesmo assim resolveu continuar:

— Por que existem tantos anjos protegendo essa garota? — O

ancião se acalmou e ficou pensativo.

— Aquela garota tem uma grande importância para o céu, e eu não

sei qual é. — Os anciões sabiam sempre de tudo, e esta era a primeira

vez em que eles viam um com dúvidas. — A mesma importância que

Carsten tem para nós. Além de poder afetar os demônios de alguma

forma.

— Será impossível chegar perto dela com tantos anjos, e até mesmo

um arcanjo — argumentou Victor.

— Eu concordo com você, achei que vocês conseguiriam, mas a

partir de agora eu os retiro desta missão, vocês falharam. — Katherine e

Victor se espantaram com aquela notícia. — Victor, você vai continuar

suas missões, mas longe de Polsher.

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— Sim, senhor.

— E você, Katherine, está terminantemente proibida de sair daqui. —

A ruiva ficou desesperada, pois quase morrera da última vez em que

ficara ali.

— Mas o senhor não...

— Eu te disse para calar a boca. — O ancião a jogou para mais

longe, deixando seu corpo estirado no chão.

— Desta vez, quem vai acabar com a vida daquela garota sou eu. —

Muito sério, não parecia que o ancião iria falhar, assim como seus

subordinados. — Nenhum anjo, ou até mesmo um arcanjo, vai me

impedir de realizar este trabalho.

— Pretende sair agora? — perguntou Victor, referindo-se ao meio da

madrugada.

— Não, amanhã à noite. Ainda tenho algumas coisas para fazer aqui.

Aproveite para descansar agora à noite, pois amanhã você também

deverá voltar a realizar as suas ações.

O ancião não parecia brincar. Quando disse que precisava preparar

algumas coisas, provavelmente estava se referindo ao exército de

demônios que reuniria para realizar aquela missão, afinal, sabia que

Natalie estaria bem protegida contra eles.

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Capítulo 36

A ESCURIDÃO dos olhos de Carsten e o vermelho do sangue em

suas mãos eram as únicas lembranças que Natalie tinha do rapaz. Saber

que ele era o causador da morte da pessoa mais importante da vida dela

a fazia acordar com lágrimas nos olhos. Confiar nele, quando todos

diziam que não o fizesse, e se decepcionar daquela forma havia instigado

na garota o pior dos sentimentos do ser humano: o ódio.

— Se eu pudesse olhar nos olhos dele, juro que faria de tudo para

matá-lo. — O olhar de Natalie transmitia a raiva que tinha dentro do

coração, deixando Kelly com muito medo. A loira nunca tinha visto a

amiga daquela forma.

— Natalie, você está com raiva neste momento. Se fizesse isso,

estaria se comparando a ele. — Kelly pensava que, se fosse com ela,

talvez agisse da mesma forma. — Tente esquecê-lo, vai te fazer melhor.

— Você acha que ele vai voltar a me procurar?

— Não sei. De acordo com o que você me falava, ele é muito

imprevisível, pode fazer qualquer coisa. — Kelly olhou para a amiga e

tentou mudar de assunto. — Vamos tomar o café da manhã.

— Se ele aparecer, o que eu faço? — Natalie segurou o colar que

Reik havia lhe dado e lembrou-se que, com ele, Carsten não podia fazer

nada contra ela. Porém, se o garoto estava com Reik, ela corria perigo.

— Acho que você tem de parar de pensar nisso. Você conheceu

esse cara há pouco tempo, e já estava apaixonada por ele. — Pela

primeira vez, Kelly disse algo que Natalie realmente precisava ouvir.

— Eu, apaixonada? Você só pode estar brincando. — Natalie não

aceitava o fato de estar apaixonada por um demônio, mas a realidade era

que ele não saía de seus pensamentos por nenhum minuto, até que a

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fatídica morte acontecesse.

— Eu acho que, por hora, você deve se esquecer de tudo e dar uma

volta comigo hoje. — Kelly já tinha sugerido isso na noite anterior, mas

como Natalie parecia totalmente desanimada, ela não sabia se a amiga

aceitaria. — E não adianta falar que não quer, porque senão eu te

arrasto. — A loira olhou para a amiga, e logo lágrimas escorreram de

seus olhos.

— Eu sinto tanto a falta dela, minha mãe era tudo para mim.

— Não pense nisso agora. Você sabe que ela era uma pessoa

maravilhosa, tenho certeza que está em um lugar melhor. Alias você não

precisa voltar para casa, pode ficar aqui o tempo que quiser — Kelly

falava a verdade, e não se incomodava nem um pouco de ter a amiga do

seu lado, já que a maior parte do tempo seu pai viajava e ela ficava

sozinha naquela imensa casa.

— Obrigada, mas eu preciso retomar a minha vida em breve. —

Natalie nunca gostou de se sentir dependente de alguém, e por mais

difícil que fosse a situação, ainda esperava conseguir superar a dor que a

consumia.

— Em breve. Você disse certo. Mas, hoje iremos dar uma volta, ver

gente, sair um pouco de dentro de casa. Você vai ver, vai te fazer bem.

As duas amigas desceram para o café da manhã, onde ficaram

sozinhas. Quando Natalie viu o suco sobre a mesa, imediatamente se

lembrou de Dorah e de como ela sentia prazer em preparar o delicioso

suco de laranja e receber inúmeros elogios. E o segredo daquele

delicioso suco, simples, mas inigualável, morreu com Dorah.

— Natalie, eu ainda não consigo entender como tudo isso aconteceu.

— Isso o quê? — A voz de Natalie era baixa e desanimada, não

parecia muito interessada no que a amiga tinha a falar.

— De você começar a ver anjos, demônios, falar com gente morta.

Já parou para pensar, porque você?

— Seria melhor que fosse eu no lugar da minha mãe, assim tudo isso

acabaria.

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— Você está louca, para de falar besteiras. — Kelly conseguia

entender parte do que se passava na cabeça de Natalie, pois, quando se

perde um ente tão querido, não se sabe o que fazer.

— Kelly, eu não tenho mais ninguém. Pai, mãe, irmão

desaparecido...

— Você tem a mim. — Kelly olhou nos olhos de Natalie,

demonstrando total companheirismo naquele momento.

— Esse é meu medo, de algo ruim acontecer com você também. —

Natalie sabia que todos à sua volta estavam sofrendo e não achava justo,

pois a culpa era dela. — Aliás, já aconteceu. Se vocês não tivessem

sorte, teriam tido o mesmo fim da minha mãe. — Novas lágrimas

desceram pelos olhos de Natalie. — Por isso, seria melhor que eu

estivesse morta, assim todos viveriam em paz.

— Eu não me importo de sofrer outra tentativa desses monstros,

desde que seja para proteger você. — Kelly fez Natalie parar para pensar

que estava sendo egoísta demais, mas decidiu ir em frente com seu

comentário. — Você já parou para pensar que meu pai nunca está aqui, e

que eu também não tenho mais mãe? Ou seja, você e o Dalton são

minha verdadeira família; portanto, não vou abandonar você.

Natalie percebeu que estava errada em deixar seu sofrimento se

tornar o mais profundo dos egoísmos. Ela sabia que a vida seria mais

difícil dali em diante, mas tinha a melhor amiga do seu lado e esperava

que daquela companhia pudesse reiniciar sua vida.

— Ontem, quando eu te abracei, havia acabado de conversar com

meu pai.

— Você conseguiu contato com ele? — Kelly estava espantada, pois

Natalie poderia ter alguma informação importante.

— Ele me disse que eu não vou conseguir conversar com ela, porque

minha mãe está em uma espécie de transição.

— Ele te disse se foi o Carsten quem a matou?

— Quando eu perguntei isso, ele desapareceu. Mas eu não tenho

dúvidas de que ele fez isso, Kelly, as mãos dele cheias de sangue não

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saem da minha cabeça. — Natalie não havia dado tempo para que o

rapaz explicasse o que realmente havia acontecido, mas, mesmo assim,

acreditava ser ele o assassino.

— Bom, acho melhor esquecermos tudo agora e nos arrumarmos

para sair. — Kelly continuava insistindo para que a amiga saísse.

— Tem certeza de que você quer sair? — Natalie não tinha ânimo

nenhum.

— Se não quer fazer por você, faça por mim. — Depois de tudo o

que Kelly tinha dito, Natalie não seria tão egoísta de não aceitar o

convite.

— Tudo bem, mas alguma coisa rápida. Quero voltar para casa. Pelo

menos, aqui, eu não vejo esses anjos me sondando.

As duas continuaram a tomar o café da manhã. Natalie tomou

apenas uma xícara de leite e comeu duas bolachas, enquanto Kelly

comeu uma fatia de pão, frutas, suco e muita geleia.

******

Na sala escura, Victor descansava, preparando-se para voltar à caça

durante a noite. Katherine permanecia no chão, da mesma forma em que

fora deixada na noite anterior. A ruiva sentia muita raiva e sua sede de

matança cada vez mais aumentava. Ela sabia que a culpada de tudo

estar acontecendo era Natalie, e, se a garota estivesse morta, Katherine

não passaria por toda aquela humilhação.

Em outra sala, diferente de todas, estava o ancião. Sentava-se bem

no centro, em uma grande mesa redonda iluminada por um candelabro

com várias velas acesas. O local não era tão macabro quanto os demais,

pois havia grandes tochas, mas nenhuma delas aclarava bem o

ambiente.

Vestindo um manto preto, alguns demônios adentraram na sala,

formando um círculo ao redor da grande mesa. Um deles, o único que se

manifestou perante o grande ancião, disse:

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— Senhor, você mandou nos chamar? — Parecia que ele respondia

pelos outros demônios.

— Sim. Chegou a hora de começarmos a agir — disse o ancião.

— Alguma coisa muito séria aconteceu? Havia muito tempo não

éramos chamados ao seu comando. — De alguma forma, aqueles

demônios eram diferentes dos demais. — Estávamos descansando. Em

que podemos servi-lo?

— Existem coisas estranhas acontecendo, e o chamado é porque há

urgência na situação. — O ancião ainda não tinha explicado nada, por

isso, o silêncio ainda reinava dentro da sala. — Quero que vocês matem

uma humana. — O único que falava com o ancião riu e perguntou:

— Perdão pela minha grosseria, mas o senhor nos chamou para

matar uma humana? — O demônio continuava sorrindo, até ser

interrompido pelo ancião, que o puxou com o poder da mente e o

arrastou sobre a mesa.

— Se eu os chamei aqui, é porque ela não é uma simples humana.

Essa garota está sendo protegida por anjos, em cem por cento do tempo.

— E por que os outros demônios não conseguem resolver o

problema com os anjos? — perguntou o homem com dificuldade.

— Existe um arcanjo no meio de tudo isso. — Aquelas palavras

deixaram o homem calado. Apesar de eles parecerem ser mais fortes que

os demônios convencionais, todos tinham medo dos arcanjos, por se

tratarem dos seres mais poderosos do céu. — Você são demônios que

receberam energia por mais tempo que os demais, por isso são mais

fortes. Dessa forma, peço que me acompanhem nesta missão.

— O quê? — O demônio ficou surpreso. — O senhor também vai?

— Eu quero tirar a cabeça dela com minhas próprias mãos. E,

quando fizer isso, vou trazer o Carsten de volta, nem que seja à força.

— Você não vai fazer nada, Sebastian. — Aquela voz assustou os

demais demônios, fazendo-os se ajoelhar perante aquele homem que

chegava lentamente na sala. Sua vestimenta era idêntica à do velho

ancião, mas usava longas ombreiras de algum tipo de metal, que, através

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da pequena luz, era possível ver serem da cor roxa. Sua postura era bem

ereta e, pelas mãos, a única parte visível de seu corpo, era possível notar

que se tratava de alguém jovem.

— Como você ousa pronunciar meu nome na frente deles? — O

grande ancião estava irritado com a situação.

— Esse é seu nome, não é? — A ironia na voz do homem que

acabara de chegar era notável. Rapidamente, usando o mesmo tipo de

habilidade do velho ancião, o homem retirou o demônio que ainda estava

sobre a mesa, fazendo-o se ajoelhar logo que chegou ao chão. Ele se

aproximou, sentando-se em uma das cadeiras bem em frente ao velho,

do outro lado da mesa. — Vejo que sua velhice já está começando a

afetar a sua cabeça. Onde está a famosa estratégia de batalha,

Sebastian? Vai atacar uma humana e começar uma batalha? Isso é tão

parecido comigo.

— Como você sabe sobre ela? — perguntou o ancião.

— Sebastian, depois de tantas falhas dos seus subordinados, o que

você acha que eu estou fazendo aqui? — Possivelmente, ele era mais

um dos grandes generais do inferno, e sentia que era hora de tomar o

comando. — Até que os outros retornem, eu estarei aqui para deixar

claro que tudo volte ao normal.

— Você não pode fazer isso. Eu sou o único que pode ordenar que a

guerra comece. Além do mais eu nunca deixaria você no comando, todos

sabem da sua insanidade — disse o velho ancião.

— E quem te falou que eu vou iniciar uma guerra? — O ancião mais

novo começou a rir. — Matar uma humana não é começar uma guerra.

— Você não vai fazer isso. Quem vai fazer sou eu — insistiu o velho.

— Eu vou matá-la e trazer Carsten de volta.

— Pobre Carsten, no meio de anjos, arcanjos e humanos, ele deve

estar sofrendo demais. — O jovem ancião se levantou e foi caminhando

lentamente em direção ao velho. — Agora, me diga, por que você acha

que eu sujaria minhas mãos com esse trabalho?

— O que você pretende fazer? — O velho também se levantou.

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— Primeiramente, te encaminhar para Solture, afinal seu estado está

deprimente. — Solture era o local para onde os anciões iam, a fim de

restaurar o corpo e a imagem, pois, diferentemente dos demônios, eles

eram extremamente fortes, mas envelheciam com o tempo. — Depois, eu

pretendo mandar esses demônios para matar aquela garota.

— E como você pretende encontrá-la? — perguntou o ancião,

referindo-se ao fato de Natalie não poder ser rastreada.

— Ela está sendo protegida por anjos, não está? Não acho que será

difícil encontrá-la.

— Depois do último ataque, eles se dividiram em vários grupos

espalhados pela cidade, dificultando a localização dela — explicou o

velho ancião.

— Pois bem, quero que todos vocês se unam com outros demônios

de porte menor e sigam para cada uma dessas localizações. — Apesar

de não parecer ser um plano inteligente, ressaltou: — Se não encontrá-la,

peço que voltem imediatamente. Eu não quero saber de batalhas inúteis.

— Vejo que você pretende tomar conta de todo o lugar. Acho que

você está começando a pensar, antes de agir — disse o velho.

— Até que o verdadeiro cavaleiro da guerra retorne, eu ficarei no seu

lugar. — O jovem ancião colocou uma de suas mãos no ombro do velho

se referindo a ele.

— Está tentando me persuadir? Isso não funciona comigo — o velho

ria.

— Não, Sebastian, apenas desejando um bom descanso. — O jovem

ancião olhou para todos os outros demônios e disse: — Chegou a hora

de partir. Cada um de vocês deve unir mais cinco demônios e rumar para

essas localidades.

— Mas agora, durante o dia? — perguntou o demônio que antes

estava sobre a mesa, assustado com a ordem.

— Não percam mais nenhum minuto. Menos você — disse o jovem,

apontando para um dos demônios.

Todos os demônios se levantaram e partiram para algum lugar do

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submundo, onde possivelmente acatariam a ordem do ancião jovem.

— Siga a amiga, consigo sentir ela daqui. — Aquela era a ordem

mais simples e inteligente. Já que Natalie não podia ser rastreada, eles

deveriam seguir Kelly, que, de alguma forma, era facilmente localizada.

Logo depois, o demônio também partiu para a missão.

— Essa missão me parece um tanto quanto suicida para eles, lutar

sem a sua presença — salientou o velho.

— E é. Apenas quero mostrar ao arcanjo, que não somos tolos

quanto ele pensa. — O jovem novamente riu. — Na verdade, o intuito

desta missão é outro, Sebastian, e em breve eu terei o resultado que eu

preciso.

O velho seguiu lentamente para a sala onde ficaria em repouso,

enquanto o jovem se sentou na cadeira que antes era de Sebastian.

******

Natalie não sabia onde Kelly a estava levando. Dessa vez, sem o

motorista, as duas saíram sozinhas com a loira dirigindo.

— Vai, monstrinha, melhora essa cara, quero te ver feliz.

— Vai ser difícil ficar feliz. Quando eu penso que já esqueci de tudo

que aconteceu, lembro da imagem da minha mãe caída no chão e fico

triste. — Natalie olhou para o lado de fora e viu os anjos acompanhando

seu percurso. Apesar de estarem com as asas fechadas, eles saltavam

de telhado em telhado, parecendo flutuar. — Como eu queria fechar

meus olhos e ter minha vida de volta, poder olhar para a rua e não ver

esses anjos todos me escoltando.

— Pelo menos eles estão te protegendo — disse Kelly.

— Queria que eles estivessem protegendo a minha mãe. — Natalie

encostou sua cabeça no vidro e fechou os olhos. Naquele momento, a

primeira coisa em que pensou foi em Carsten dizendo que a protegeria.

— Queria que ele estivesse protegendo ela, ao invés de matar.

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— Carsten de novo? — Kelly sabia que seria mais difícil Natalie

superar a morte da mãe do que a traição de Carsten. — Tenta esquecer

esse cara, ele não vale o seu sofrimento, Natalie. Se ele fez isso com a

sua mãe, os anjos vão te proteger dele também.

— Não se esqueça de que Reik também estava lá. E, até onde eu

sei, ele é quem comanda os outros anjos. — Natalie ficou pensativa. —

Como é que eu vou trabalhar com a Serah no bar, sabendo que ela é

uma subordinada do Reik?

— Não pensa nisso agora, você vai ter alguns dias de descanso.

Nada de ruim vai acontecer, você vai ver.

— Kelly, onde estamos indo? — Natalie percebeu que aquele

caminho era diferente de tudo por onde elas já haviam passado. — Achei

que iríamos ao shopping fazer compras.

— Não. Dessa vez nada de compras, pessoas, gente para olhar para

sua cara te questionando com os olhos. Vamos a um lugar tranquilo,

onde poderemos passar momentos agradáveis.

No local onde as garotam entraram havia uma grande placa com os

dizeres ―Parque Municipal Ecológico‖.

— Eu nunca imaginei que você pudesse me trazer em um lugar

assim. Não tem nada a ver com você.

— Eu posso te surpreender às vezes. — Kelly riu e parou o carro em

uma vaga no estacionamento. Como era meio da semana e, naquele

horário, a grande maioria das pessoas trabalhava, o lugar estava

praticamente vazio, com exceção de alguns visitantes que caminhavam

pelo local, com suas crianças ou carrinhos de bebê. — Os anjos estão

por aqui, ou você conseguiu despistá-los?

— Não consigo vê-los. Pode ser que estejam nas árvores, mas não

vou dar bola para eles. — O lugar era cercado por grandes árvores, e

uma pequena estrada coberta de ladrilhos direcionava o caminho que as

garotas deveriam seguir. — Achei que você tinha ligado para o Dalton vir

também.

— Não. Hoje a tarde é só nossa.

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No caminho, as duas amigas viram várias flores diferentes e diversas

espécies de insetos. Aquela era uma das partes de Polsher que tinham

mais vida. O caminho continuou, e o número de pessoas parque adentro

foi diminuindo, até que as meninas chegaram a um lugar lindo, com um

grande lago e uma pequena cachoeira, onde uma grande placa proibia o

nado para preservar a pureza da água e a beleza do lugar.

Natalie estava desanimada, mas seus olhos se encheram de energia.

Ela ficou totalmente feliz com aquela vista.

— Este lugar é lindo, nunca imaginei que dentro de Polsher pudesse

ter algo tão bonito. — Natalie encheu seus pulmões daquele ar puro, que

parecia deslizar pelas suas narinas, diferentemente do ar da cidade.

— Concordo, o lugar é lindo mesmo. — Kelly viu que do outro lado

do lago o caminho continuava. — Vamos, parece que tem mais coisas

por ali.

As duas continuaram caminhando. Deram a volta pelo lago e

entraram em um tipo de túnel longo, cercado de plantas por todos os

lados. Conforme elas caminhavam, avistavam uma forte luz e escutavam

o som de vários pássaros, até que chegaram a uma imensa área bem

aberta, cheia de plantas ao redor. Bem ao fundo havia um pequeno

palco, possivelmente utilizado para algum tipo de concerto, ou mesmo

em pequenas apresentações.

Para a surpresa das garotas, não havia ninguém ali. Natalie decidiu

olhar para cima e procurar algum dos anjos que a seguiam durante a

tarde, mas não conseguiu ver ninguém.

— Que tal se voltarmos para a cachoeira? Eu trouxe a câmera,

podemos tirar algumas fotos por lá. — Kelly estava totalmente animada,

pois as duas amigas não tiravam uma foto juntas havia muito tempo.

— Antes de irmos, vamos tirar uma foto aqui. Tente pegar o palco lá

no fundo — pediu Natalie.

— Desse jeito, segurando a câmera? Acho meio difícil, mas posso

tentar. — Kelly segurou a câmera e as duas juntaram seus rostos para

uma selfie. Após um flash rápido, as amigas olharam o visor para saber

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como tinha ficado a foto.

— Meu Deus! — A expressão de Natalie foi totalmente assustadora,

e a garota olhou rapidamente para trás, mas não havia ninguém lá.

— O que foi? Ficamos tão feias assim? — Kelly não entendia o que

estava acontecendo.

— Você não consegue ver? — perguntou Natalie, novamente com a

câmera nas mãos. — Tem alguém aqui na foto, bem atrás da gente.

Kelly ficou muito assustada, pois não conseguia vê-los, mas

acreditava na amiga. Natalie olhou para cima, mas ainda não havia

nenhum anjo, somente o limpo céu azul.

— Vamos, Kelly, temos de sair daqui o mais rápido possível.

As duas correram para o túnel, mas, ao se aproximarem da entrada,

Natalie segurou Kelly pelo braço. Ela conseguia ver um demônio de

capuz preto bem próximo a elas, com suas grandes asas negras abertas.

Quando tentou correr para os fundos, viu quatro deles com seus rostos à

mostra, um pouco mais distantes, também com suas asas abertas.

— Natalie o que está acontecendo? — gritou Kelly.

— Há cinco deles aqui, estamos cercadas. — Por mais que estivesse

nervosa, ela tentou acalmar a amiga que não via nada. — Fique calma,

logo os anjos chegarão.

O demônio sem capuz começou a rir e disse:

— Vocês são duas tolas, os seus anjos protetores foram mortos.

Apenas dois para proteger vocês! Os céus só podem estar brincando ou

você não tem mais nenhuma importância para eles.

O demônio podia estar falando a verdade, mas, naquela manhã, ela

havia visto vários anjos a seguindo, e não apenas dois como o demônio

dizia. Porém essa era a menor das preocupações, já que agora eles não

estavam ali.

— Como uma garota como você pode ter dado tanto trabalho assim,

de acordo com o ancião? — Natalie não sabia quem era o ancião e do

que ele estava falando. — Katherine foi uma fraca em não conseguir te

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matar. — Agora Natalie sabia do que ele estava falando, lembrando-se

da ruiva causadora de muitos problemas para ela.

— O que vocês querem de nós? — questionou Kelly, gritando, sem

nem mesmo estar vendo nada.

— Diga à sua amiga que dela não queremos nada, mas de você

queremos a vida.

Apesar de assustada, Natalie ficou mais tranquila em saber que a

amiga estaria segura. Para salvá-la e não ter mais ninguém querido

ferido, ela não hesitaria em se entregar a eles.

— Se vocês não a querem, deixem-na ir. Eu não vou fazer nada,

apenas a deixem ir.

— Eu não vou a lugar nenhum sem você — disse Kelly, segurando

bem firme a mão de Natalie.

Parecendo não querer papo, o demônio esticou suas longas asas

negras, como se quisesse tomar um impulso para atacar as duas garotas.

De repente, o som forte de cinco trovões pôde ser ouvido, levantando

poeira para todos os lados e fazendo as amigas tossir. Quando Natalie

conseguiu abrir os olhos, viu cinco anjos com suas lindas asas brancas

abertas, e um deles tinha um rosto conhecido.

— Serah! — Natalie ficou espantada ao ver a colega de trabalho ali,

com suas grandes asas abertas. Apesar de apresentar a mesma

coloração, as asas dela pareciam mais delicadas quando comparadas às

dos outros anjos. Já as dos demônios eram pontiagudas, dando um ar de

agressividade.

— Quando eu te mandar correr, você não pensa e faz o que eu

disser. — Serah estava muito séria diante da situação. — Você deve

correr para o túnel, e fugir o mais depressa possível.

— Vejo que os reforços chegaram — disse o demônio. — Acham

mesmo que podem nos deter? Eu guardei minhas habilidades há muito

tempo, e meu corpo está cheio delas. Não é porque o dia está claro que

vocês terão vantagem sobre mim.

— Eu também estive guardando meus poderes a algum tempo, e

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estou louca para utilizá-los neste lindo dia de sol. — Serah o provocava,

deixando-o com muita raiva. — Vocês não vão tocar um dedo nela, estão

ouvindo bem?

— Eu tenho muita pena de vocês. Todos lindos e de asas brancas,

pena que elas vão ficar sujas de sangue.

— Serah, deixem que me levem, eu não quero mais ver ninguém

sofrendo.

— Fique quieta, Natalie, você não sabe do que está falando. Se você

for morta, logo eles terão Carsten de volta.

— Eu não me importo com ele. Se não fosse por aquele demônio,

minha mãe estaria viva. — Natalie não se importava com mais nada, a

não ser com a segurança da sua amiga.

— Do que você está...

O demônio parado em frente à Serah partiu para o ataque, pegando-

a de surpresa. Os outros demônios também foram em direção aos outros

anjos, que os interromperam, também partindo para o ataque.

Tal situação era difícil de ser descrita. Enquanto os anjos lutavam

contra os demônios, as meninas se abaixaram tentando se proteger. Um

dos anjos foi jogado perto delas, e seu corpo começou a se despedaçar.

Natalie puxou Kelly e, ainda abaixadas, as duas caminharam em direção

ao túnel, tentado evitar que fossem atacadas.

Um dos demônios saltou, mas foi surpreendido por um anjo que batia

suas asas e atirava dardos prateados na direção dele. O corpo do

demônio caiu e se queimou, e assim que tocou o chão, se tornou cinzas,

espalhando-se pelo local.

Serah tentava deter o demônio de capuz, mas como tinha a

habilidade da cura, não conseguia conter os golpes dele facilmente, pois

este era mais forte que os demais. As meninas continuaram abaixadas,

mas foram percebidas pelo demônio que lutava com Serah. Em um

movimento rápido e certeiro, com sua força, ele empurrou Serah contra

as meninas, fazendo com que o corpo do anjo se chocasse com elas, as

derrubando violentamente.

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— Finalmente. — disse o demônio sorrindo. — Agora acabem logo

com esses anjos, e matem a garota.

— Natalie. — Serah olhou para a garota no chão e viu que seu colar

não estava em seu pescoço, com a força do impacto ele tinha

arrebentando e caído em algum lugar. — Natalie, corre agora. — Serah

bateu suas asas e voou em direção ao demônio, empurrando-o para

longe da entrada do túnel. — Agora!

Desesperadamente, Natalie se levantou e correu em direção ao

túnel. Quando olhou para trás, viu que Kelly estava caída no chão, e

provavelmente desmaiada. Ela decidiu voltar para pegá-la, quando um

anjo apareceu na sua frente, impedindo-a de prosseguir.

— Natalie, corre, eu estou mandando. Nós cuidaremos dela. —

Serah gritava e ao mesmo tempo tentava se defender dos ataques do

demônio.

— Você acha mesmo que vai sobreviver para salvá-la? — perguntou

o demônio, rindo dela.

O anjo que estava na frente de Natalie foi surpreendido por um

ataque pelas costas que o fez despedaçar. Assustada, Natalie não

pensou duas vezes antes de correr para o túnel. A garota corria e olhava

para trás com medo de que fosse seguida pelo demônio. Como o local

era comprido e estreito, cabiam no máximo duas ou três pessoas. Sendo

assim, as asas do demônio não passariam por ali e ele teria de vir

correndo.

Assim que chegou do outro lado, próximo ao lago, Natalie diminuiu a

velocidade e conferiu se realmente estava sozinha e segura por ali. Ao

perceber que não havia ninguém, correu em direção à saída do lugar,

mas o demônio de capuz, que lutava contra Serah, apareceu voando e a

arremessou violentamente em direção ao lago. Natalie fechou seus

olhos, como se daquela forma pudesse evitar a dor do impacto, e

esperou até que seu corpo se chocasse na água.

Como Natalie não havia sentido nada, ficou com medo de abrir os

olhos, pois pensou que estava morta. Quando o fez lentamente,

assustou-se ao ver o demônio que a tinha atacado queimando até a

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morte. Natalie, então, notou que seus pés estavam sobre a água, e seu

corpo flutuava. Braços a rodeavam pela sua cintura.

— Você está bem? — Aquela era a voz que a garota tanto gostava

de ouvir no passado, mas que agora causava nela ódio e arrepios.

Sem coragem para olhar para trás, mas com toda a certeza de que

era Carsten quem a segurava, Natalie não hesitou em pedir:

— Me coloca no chão.

— Essa não é a melhor maneira de agradecer por eu ter salvado a

sua vida. — Era estranho ouvir, de quem acreditava que havia matado

sua mãe, um pedido de agradecimento por salvar a vida dela.

— Se você não me colocar no chão, eu vou gritar.

— Eu não posso te colocar no chão, você está em perigo.

Precisamos sair daqui imediatamente. — Antes que Natalie pudesse

dizer mais alguma coisa, Carsten bateu suas grandes asas negras e

voou em direção ao céu azul. Natalie sentia medo, pois já estavam a

vários metros do chão, e cada vez ficava mais alto.

— Segure-se em mim, antes que você caia desta altura. — Apesar

de não querer e evitar ficar ao lado dele, Natalie estava com medo e logo

se segurou no pescoço dele.

Quando eles já estavam em uma altura relativamente alta, mesmo

com medo de olhar para baixo, Natalie viu o quanto as pessoas estavam

pequenas e as casas pareciam miniaturas. Ela localizou o parque, mas

era muito longe para que pudesse enxergar algo.

— Segure-se no meu pescoço com força. Vou te pegar no colo,

assim eu posso voar para longe. — E assim Carsten fez: pegou Natalie

no colo e bateu fortemente suas asas, levando-a para algum lugar longe

dali.

No caminho, Natalie pôde notar que Carsten estava sem camiseta.

Suas longas asas negras abertas eram pontiagudas e se pareciam com

grandes laminas. Quando a garota encostou em uma delas, sentiu que,

apesar da aparência, elas eram macias. Embora achasse que ele não

havia sentido o toque, foi surpreendida pelo comentário do demônio:

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— Não são brancas, mas são grandes iguais às dos anjos. – Natalie

voltou a segurar o pescoço dele, sem dizer uma palavra. — Desculpa por

não estar presente nestes dias, mas achei melhor deixar você sozinha.

De qualquer forma, durante todo esse tempo estive te observando de

longe. — Para ela, saber que ele estava por perto todos aqueles dias

deixava-a mais irritada. — Natalie, você ainda não está achando que eu...

— Eu quero voltar para o chão — disse ela interrompendo o

demônio.

— Calma, já estamos chegando a um local seguro, onde não há

demônios por perto. — Na verdade, havia um demônio: ele, e isso a

incomodava de certa maneira.

Chegaram a um parque, onde havia crianças brincando, cujo no

terreno encontrava-se um pequeno lago cheio de patos. Assim que os

dois colocaram os pés no chão e Natalie sentiu o solo novamente,

Carsten continuou segurando Natalie bem forte.

— Se você não me soltar agora, eu vou gritar. — Ela ameaçou o

rapaz, deixando-o confuso.

— Calma, eu já vou te soltar. Mas antes precisamos caminhar juntos,

sem que você me solte. Já se esqueceu de que ninguém pode me ver

nem ouvir? — Natalie não havia esquecido. — Quando você está comigo,

tocando em mim, você também não pode ser vista e ouvida. — Disso ela

realmente não sabia. — Você acha que eu sairia voando por aí, expondo

você para os outros? — A garota continuou em silêncio.

Carsten e Natalie entraram em uma floresta, cuja mata era fechada.

O garoto bateu o pé no chão, abaixou-se e abriu um alçapão de madeira.

Suas asas foram se encolhendo à medida que as penas iam se juntando.

Estas pareciam entrar na pele do rapaz, até que todas desapareceram,

formando uma bela tatuagem negra.

— Entre — disse ele.

— Eu não vou entrar aí com você.

— Isso não é um pedido, Natalie, entre agora. — Carsten a puxou

pelo braço.

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— Me solta, você está me machucando. — Natalie tentava se soltar

dele, mas a sua força nem se comparava à do demônio.

— Você está ficando maluca? Você não está usando seu colar e

quer ficar aqui fora, depois de tudo o que aconteceu? — Natalie não tinha

pensado naquilo. — Até que todos voltem, você vai ficar aí dentro. Assim,

não pode ser rastreada.

Mesmo a contragosto, Natalie entrou. Por dentro, diferentemente do

que se podia pensar, o local era bem grande. Havia uma cama no canto,

vários livros em uma estante e um grande espaço que mais parecia uma

academia onde treinos seriam realizados. Apenas uma vela ao lado da

cama iluminava todo lugar.

— É aqui que eu fico quando não estou com você. Neste local

nenhum demônio pode me encontrar, pois é protegido por algum tipo de

magia. Apenas Reik e alguns anjos sabem onde eu fico. — Estar com

Carsten e ouvir o nome do Reik deixava Natalie mais irritada do que

antes.

— Eu quero ir para casa. Você pode me deixar sair? — Natalie

tentava olhar para os olhos dele, mas não conseguia. Nem mesmo

observar o rapaz sem camiseta e perceber o corpo definido que ele tinha,

que chamava sua atenção, pois ela não queria saber de nada a respeito

dele.

— Não, até os outros chegarem.

— Eu quero saber se a Kelly está bem. — Natalie pensou na amiga e

na situação em que ela a tinha deixando.

— Se eles estiverem vivos, provavelmente chegarão com ela

também. — O ―se‖ da frase não era bom de se ouvir. Naquele momento,

Kelly poderia estar morta e Natalie se sentiria mais uma vez culpada. E

sem a presença da amiga, ela não saberia o que fazer.

— Temos de ir atrás dela. — Natalie parecia desesperada.

— Você não escutou o que eu disse? Você vai ficar aqui até eles

chegarem. — O olhar de Carsten não estava tranquilo dessa vez. O

garoto parecia irritado com a insistência de Natalie. — Por que você está

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me evitando?

— Você ainda me pergunta, depois do que você fez? — Natalie

pensou em partir para cima dele, mas sabia que não poderia fazer nada.

— Eu não fiz absolutamente... — Duas batidas no alçapão

interromperam a conversa dos dois. Ao abrir, viram Serah, com o corpo

todo machucado, e outro anjo, também machucado, que a acompanhava.

Natalie, que estava atrás de Carsten, vendo-o subir pelas escadas,

pôde notar que, nas suas costas largas e resistentes, estavam

desenhadas as grandes tatuagens de asas negras.

— Somente nós dois conseguimos sair de lá — disse Serah,

deixando Natalie completamente assustada ao saber que Kelly não

estava ali. — E como ela está? — perguntou Serah.

— Comigo, totalmente estranha.

— Natalie. — A voz de Kelly acelerou o coração de Natalie, fazendo-

a subir as escadas desesperadamente. Assim que viu a amiga, correu e

a abraçou bem forte.

— Kelly, estou feliz que você está bem. Eu achei que você...

— Achou que ia se livrar de mim? Esses demônios vão precisar de

muito para conseguir fazer alguma coisa. — Kelly nem notou que Carsten

estava a seu lado, mas, quando o viu, ficou totalmente vermelha.

— Precisamos ir embora — disse Natalie.

— Natalie, apenas tome cuidado — pediu Serah.

— Você está maluca? — perguntou Carsten, que parecia assustado.

— Como pode deixar que ela se vá? Não viu que ela está sem a

proteção?

— Meninas, vocês podem ir. — Assim que Serah disse isso, as duas

começaram a caminhar. — Eu acho que o seu carro deve estar na frente

do parque. Pedi para que o trouxessem, e fiquem tranquilas que os anjos

estão acompanhando vocês.

— Você acha que os anjos vão conseguir protegê-la? Você viu o que

aconteceu hoje, por pouco ela não morre. — Carsten acreditava que os

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demônios podiam rastreá-la sem o colar. Assim, ela seria facilmente

morta, com outro ataque daqueles.

— Não se preocupe, Carsten. Porque você não tenta senti-la? —

sugeriu Serah.

O rapaz fechou os olhos, mas logo os abriu.

— Por que eu não consigo rastreá-la? Ela está sem o...

— Sem o colar? Não é o colar que evita que ela seja rastreada, ele

só a protegia de seres como você. Natalie não pode ser rastreada.

— Mas como?

— Não me pergunte isso, porque eu também não sei. — Talvez Reik

soubesse disso, mas não havia contado a ninguém.

— Serah, assim que eles descobrirem, vão ficar loucos atrás dela.

— Sim, nós já sabemos. Agora eu preciso ir, afinal, vim para ajudá-la.

Quem ajuda você é o Reik; nós, anjos, não temos nada a ver com isso.

— Serah, assim como os outros anjos, não gostava dessa ideia, pois

Carsten já havia matado vários da espécie dela.

Assim que Serah foi embora, Carsten se fechou em seu esconderijo,

sentou-se na cama e ficou pensativo. Ele se lembrou do assassinato da

mãe de Natalie, quando a garota o havia visto com as mãos

ensanguentadas. Agora, após a reação dela, Carsten tinha certeza de

que Natalie pensava ter sido ele o assassino de sua mãe.

Carsten se levantou. Queria correr atrás dela e dizer que não tinha

culpa de nada, mas sua consciência achou que aquele não era o melhor

momento. Então, decidiu esperar a noite chegar. Antes de se deitar,

pegou de dentro de um pequeno baú uma cápsula, daquelas obtidas

após caçar anjos, e absorveu a energia necessária para se recuperar da

batalha. Em seguida, deitou-se na cama, apagou a pequena vela e

descansou.

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Capítulo 37

A VERDADE era que Natalie estava mais assustada do que Kelly.

Presenciar aquela batalha e voar nos braços de Carsten era algo de que

ela jamais esqueceria. A garota queria esquecer o rapaz e tudo aquilo

que a fazia tê-lo na memória. Apesar de ter salvado a vida dela, para

Natalie, ele continuava sendo um assassino, o que a fazia não querer vê-

lo de forma alguma.

— Melhor ficarmos em casa hoje. Tenho alguns filmes aos quais

ainda não assisti. — Kelly segurava alguns discos em formato blu-ray

para que elas pudessem escolher. — Já liguei para o Dalton, mas parece

que amanhã ele vai com os pais a uma cidade vizinha. Disseram ter

alguma informação de Lily por lá.

— Acho muito estranha essa história dela. Depois de tudo o que

anda acontecendo, você não acha que algum demônio possa ter feito

algo de ruim?

— Eu não duvido de mais nada, monstrinha.

Dentre os filmes que Kelly segurava, alguns eram comédia,

suspense, romance, aventura e até terror.

— Suspense e terror eu descarto. Depois do que vivemos hoje,

chega de coisas que dão medo — disse Natalie, pois o terror que viveu

naquela tarde estava vivo em sua memória.

— Você tem razão, acho melhor partimos para o romance, ou para a

comédia. — Kelly riu, e foi para a cozinha preparar pipoca.

— Kelly, você se importa se eu tomar um banho rápido antes de a

gente ver o filme?

— Claro que não. Enquanto isso, vou terminando as coisas aqui.

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Enquanto Natalie subia para o banho, Kelly ficou na cozinha

preparando a pipoca.

O interfone da casa tocou e Kelly levou um susto, sem imaginar

quem poderia ser àquela hora. Quando atendeu, era apenas o segurança

perguntando se estava tudo bem. A garota não estranhou a pergunta,

pois fazia parte da rotina dele ligar enquanto havia luzes acesas, e elas

estavam sozinhas em casa. Quando Kelly colocou a pipoca no micro-

ondas, a campainha tocou. Estranhando ninguém da portaria ter avisado,

a garota foi até a porta e, pelo olho mágico, pôde ver um homem de

costas. Com medo, e como não sabia quem era, ela não abriu e, pelo

interfone, chamou o segurança. Assim que pegou o interfone nas mãos,

foi surpreendida.

— Não grite, eu apenas quero vê-la. — A voz vinha de trás dela, já

dentro da casa. — Por favor, largue esse aparelho.

Qualquer pessoa gritaria neste momento, mas a loira ficou com muito

medo, colocou o interfone no gancho novamente e foi se virando

lentamente.

— Onde ela está? — Como Carsten continuava sendo um demônio,

tratava Kelly de forma ríspida, pois não se dava bem com humanos.

Longe de Natalie, ele se portava da forma como sua natureza mandava.

— Ela não quer ver você, é melhor que você vá embora. — Kelly não

sabia o perigo que estava correndo, pois não imaginava o que ele

poderia fazer, e antes só havia escutado a amiga falar bem dele.

— Ela precisa me ver. Natalie acha que eu matei a mãe dela.

— E não foi o que aconteceu? — Kelly questionou o rapaz, deixando-

o furioso.

— É claro que não! Se eu quisesse matar as pessoas de quem ela

gosta, a essa hora você já estaria morta. — Aquele tom de ameaça

deixou a loira assustada. — Eu preciso falar com ela.

— Você não acha que ela passou por muita coisa hoje? Se você

realmente diz que não fez, é melhor que volte outra hora. Ela não está

bem para recebê-lo.

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— Eu preciso explicar o que aconteceu.

— Carsten, eu não te conheço, e, pelo que sei, os seres da sua

espécie não prestam, assim como sua amiga. — Carsten sabia o quanto

Katherine já tinha prejudicado Natalie e os amigos dela. — Mesmo não

querendo, vou te dar um conselho. Se você realmente sente alguma

coisa pela Natalie, afaste-se dela. Minha amiga está sofrendo muito, e

não quer te ver, ela não perdeu somente um amigo, perdeu a mãe.

Carsten parou por um momento, pensativo. Apesar de querer estar

ao lado de Natalie, pois ela fazia muito bem para ele, tinha noção de que,

depois de se aproximar da vida dela, tudo se tornou um caos. E, se não

fosse por ele, os amigos e a mãe dela ainda estariam vivos. Então,

acabou assumindo parte dessa culpa.

— Kelly, quem está aí com você? — gritou Natalie, do andar de cima.

Carsten olhou para loira e fez um sinal para que ela ficasse em

silêncio.

— Não é ninguém, apenas a televisão, Natalie. — Kelly olhou para o

demônio. Ao escutar a voz da amiga, ele havia ficado diferente. Sua

expressão, antes maligna, parecia serena, como a de um anjo.

— Vou trocar de roupa e já desço.

— Eu acho melhor você ir agora — pediu Kelly em tom bem baixo

para que Natalie não ouvisse.

— Eu irei, não quero que ela fique pior do que já está. Mas, antes de

ir, gostaria que você dissesse a ela que eu não vou abandoná-la jamais.

Eu preciso dela.

— Pois é, Carsten, se ela não achasse que você é um assassino,

provavelmente precisaria de você também neste momento. — As

palavras de Kelly tocaram Carsten. Apesar de ele querer reverter a

situação, sabia que não conseguiria fazer nada a respeito, a não ser

tentar descobrir a verdade.

Sem dizer mais nada, ele saiu pela porta. Logo em seguida, Kelly a

fechou. Para ela, estar frente a frente com um demônio, assim como tinha

estado com Katherine, ainda era assustador.

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— Pensei que você dissesse que a televisão estava ligada. — Kelly

levou um susto com a presença de Natalie.

— Você não faz ideia de quem estava aqui neste exato minuto.

— Eu sabia que tinha alguém aqui. Por que você mentiu para...

— Carsten. — Aquele nome, quando pronunciado, fazia o coração de

Natalie acelerar bem rápido.

— O que ele estava fazendo aqui? — Natalie ficou surpresa com a

visita dele na casa de sua amiga.

— Ele queria falar com você.

— Como ele tem coragem, depois do que fez? Só porque me ajudou

hoje, não quer dizer que eu vou voltar a vê-lo.

— Ele me disse que não teve nada a ver com o que aconteceu. —

Kelly apenas disse o que o rapaz havia pedido.

— Ele é um mentiroso. Se não fosse por ele, minha mãe estaria viva.

— Os olhos de Natalie começaram a se encher de lágrima.

— Fica tranquila, ele se foi e não vai voltar a aparecer hoje. — Kelly

abraçou a amiga bem forte. Depois de soltá-la, olhou para seu rosto

rindo. — Comédia, né?

As duas ficaram vendo filme até tarde, comendo pipoca. Por algumas

vezes, Natalie pensou em Carsten, lembrando-se dele salvando sua vida

naquele dia.

******

No bar Avalon, longe dali, Nick trabalhava com Jonathan e a

substituta de Natalie. Todos estavam desesperados e atrapalhados para

atender os clientes, que não eram poucos naquela noite. Então,

possivelmente, não haveria intervalo para nenhum deles.

— Você conseguiu falar com a Serah, Nick? — perguntou Jonathan,

enquanto pegava a bandeja com as cervejas.

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— Não. O celular dela não atende. Eu não sei o que está

acontecendo também.

— Era só o que me faltava, agora: ela desaparecer. — Jonathan não

tinha ideia de que era exatamente isso que estava prestes a acontecer,

pois os poderes dela tinham voltado e a garota estava totalmente ligada à

proteção de Natalie.

— Quando a Natalie volta? — perguntou Nick.

— Dei uma semana de folga para ela, por conta do que aconteceu

com a mãe, mas já estou praticamente me arrependendo de ter feito isso.

A correria não era somente no bar, a cozinha estava cheia de

pedidos, que faziam Big Mike ficar bem atarefado. Havia fila do lado de

fora, esperando por mesas.

— Acho que você deve colocar em prática a ideia de mudar para um

local maior, ou aumentar este — aconselhou Nick, quando Jonathan

voltou com mais pedidos.

— Quem sabe para o próximo ano. Ainda preciso fazer algumas

pesquisas e cálculos e, claro, contratar mais gente, porque, com certeza,

não daremos conta com o número que temos.

— Calma, Jonathan, é só uma fase. Logo tudo vai voltar ao normal.

— Nick, além de ser um excelente funcionário, era um grande amigo de

Jonathan.

A noite continuou. Como todos os dias de trabalho no Avalon, os

clientes foram chegando, enquanto outros iam embora, até o bar ficar

vazio e eles finalmente puderam fechar as portas.

A garçonete, amiga de Jonathan, já havia finalizado o expediente e

Nick terminava de ajudar nas últimas coisas, antes que pudesse fechar o

bar. Enquanto ele terminava de limpar as mesas e guardar tudo o que

ainda estava sobre elas, Jonathan contava o dinheiro. J e G estavam

dentro do bar, e começavam a recolher as cadeiras.

O celular de Nick começou a tocar. Quando ele viu o número, ficou

um pouco agitado, pois aquele contato o deixava nervoso.

— Eu já volto. Ligação importante, pessoal. — Ele caminhou para o

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lado de fora do bar, evitando que os outros pudessem ouvir o que ele

tinha para falar. — Pode falar.

— Está na hora de você voltar. — A voz, do outro lado da linha,

surpreendia Nick com aquele pedido.

— Mas por quê? Aconteceu alguma coisa? — Nick parecia curioso

com aquela ordem.

— Ainda não, mas, se ficar aí, pode acontecer alguma coisa bem

grave com você. — Nick era um cara tranquilo, mas parecia haver alguns

mistérios por traz da sua tranquilidade.

— Quanto tempo eu tenho? — perguntava o rapaz, que abandonaria

tudo para partir.

— Amanhã de manhã você deve pegar o ônibus das oito horas e vir

direto. — Pelo que Nick percebeu, era mais urgente do que ele

imaginava. Sabia que se dissesse a Jonathan que iria embora, o seu

grande amigo ficaria muito chateado.

— Uma última pergunta: tem alguma coisa a ver com o bar? — Nick

se preocupava com o seu ambiente de trabalho.

— Sim, Nick, mas não se preocupe, porque enviaremos uma equipe

para tentar ajudar. Só acho que você não pode se arriscar mais. — A

pessoa parecia séria e sem intenção de aceitar qualquer tipo de mudança

no plano.

— Tudo bem, partirei amanhã de manhã.

Assim que desligou o telefone, Nick voltou para o bar. Estava triste e

ao mesmo tempo preocupado.

— Aconteceu alguma coisa, Nick? — Jonathan notou a preocupação

do garoto, e não sabia o que fazer para ajudá-lo.

— Não é nada. Agradeço por perguntar e obrigado por tudo. —

Aquelas pareciam as palavras finais de Nick para Jonathan, que ficou

sem entender o que estava acontecendo.

******

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— Boa noite, monstrinha. Espero que hoje você consiga dormir bem.

— Kelly logo apagou a luz do quarto, já que, depois da inesperada visita,

as duas haviam resolvido dormir juntas.

— Boa noite. Não sei se vai ser fácil, mas tentarei dormir bem.

As amigas fecharam os olhos e tentaram dormir. Kelly ainda estava

assustada. Fazia alguns dias que não via Dalton, quase morrera ao lado

da amiga e hoje teria visto o demônio causador de toda aquela confusão

na vida de Natalie.

Natalie, por sua vez, pensava em Dorah. Ela tentou esquecer-se de

tudo e de todos, o que praticamente parecia impossível, pois o dia havia

sido bem tenso. Ela conseguiu focar suas lembranças apenas na

saudade que sentia da sua mãe, e dos momentos bons que elas

passaram juntas.

Quando Natalie estava quase pegando no sono, uma voz a

surpreendeu:

— Minha filha, você pode me ouvir? — Era a voz de Dorah.

Finalmente a voz que ela tanto queria escutar. Rapidamente ela se

levantou, olhou para a cama de Kelly e viu que a amiga já estava

dormindo.

Sem acordar a loira, Natalie se levantou e foi para o quarto onde

havia dormido na noite passada. Naquele momento, não sabia se tinha

realmente escutado a voz da mãe ou se tudo não passava de

imaginação, confusão do inconsciente, já que todos os pensamentos

eram voltados à Dorah.

— Mãe, se foi você quem me chamou, eu estou aqui e posso te ouvir

— disse a garota, bem baixo, para não acordar ninguém. Mas o silêncio

da casa continuou, e ela não ouviu mais nada. — Por favor, converse

comigo, eu preciso ouvir a sua voz novamente, sinto muito sua falta.

— Então, é verdade que você pode me ouvir. — A voz de Dorah fez

o coração de Natalie acelerar. Agora ela tinha certeza de que sua mãe

estava tentando se comunicar com ela. — Seu pai me disse, mas eu já

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havia tentado.

— Mãe, você está bem? — Foi a primeira pergunta que veio à

cabeça de Natalie.

— Sim, agora eu estou. Demorei um tempo para achar a saída

daquele lugar escuro, mas eu encontrei a luz — disse Dorah.

— Me perdoa mãe, foi tudo culpa minha, não podia deixar que você

sozinha naquele dia — ela tentava segurar o choro, pois não queria que

Kelly acordasse.

— Meu anjo, se eu soubesse que você estava passando por tudo

isso, tentaria te ajudar.

— Eu sei. Me desculpa não ter contato tudo para você, mas eu achei

que não fosse acreditar em mim. O papai já sabia de tudo, conseguia

conversar com ele todas as noites, ele me dava alguns conselhos quando

podia. Ele está ai com você?

— Sim. É muito bom ter o seu pai de volta, mas eu me preocupo com

você e com o Gabriel. Como ele está? — Pelo que parecia, Dorah não

sabia nada sobre o filho. Natalie pensou muito no que dizer, mas decidiu

revelar a verdade.

— Depois do que fizeram com você, ele fugiu. — Dorah ficou em

silêncio, já que ela sabia qual era motivo da fuga do garoto. — Mãe, o

Gabriel me falou algumas coisas que eu não entendi, sobre ser adotado.

Isso é verdade?

— Minha filha, não vejo por que esconder isso de você, e quero que

ajude seu irmão. Depois que nasceu, não consegui mais ter filhos, mas

seu pai e eu queríamos outra criança. Então, entramos para a fila de

adoção e encontramos seu irmão bem pequeno. Você ainda era

pequena, por isso não percebeu nada.

— Mas por que vocês decidiram esconder isso dele e de mim?

— Para que não acontecesse o que aconteceu. Você sabe do

temperamento do seu irmão. Tínhamos medo. Então, decidimos criar

vocês dois da mesma forma, assim não haveria diferença em nada.

— E realmente não houve. — Natalie se lembrava da mesma criação

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dada aos dois, do mesmo amor e carinho. — Você sempre foi a melhor

mãe do mundo.

— Você precisa ajudar seu irmão. Precisa encontrá-lo, antes que

seja tarde demais.

— Tarde demais para quê? — perguntou Natalie, com medo de que

algo pior pudesse acontecer ao seu irmão. Mas, infelizmente, o silêncio

voltou a rondar a casa.

Natalie teve medo de Dorah desaparecer antes que pudesse

perguntar o que havia realmente acontecido. Então, consumida por uma

sensação gélida, a garota sentiu um grande vazio. Porém, ela voltou a

escutar a voz de Dorah.

— O que te aflige, minha filha?

— Que bom que você ainda não foi. Sinto um vazio tão grande sem

você aqui. Durante minhas conversas com o papai, e dependendo do que

eu perguntava, ele ia embora, como se não pudesse responder.

— Eu ainda não sei como tudo isso funciona. Estou achando

maravilhoso poder falar novamente com você, meu anjo. — Dorah se

sentia extremamente maravilhada.

— Bom, eu queria te fazer uma simples pergunta. — O coração de

Natalie começou a disparar, pois aquele era o momento de saber a

verdade. Se ela ainda tivesse dúvidas, tudo seria esclarecido. A garota

tremia ao lembrar-se dele segurando-a no céu de Polsher, com suas

lindas asas negras, protegendo-a contra o demônio; dos momentos que

eles passaram juntos e das suas mãos ensanguentadas, enquanto o

corpo de Dorah estava no chão. — Foi o Carsten que fez isso com você

mãe?

Novamente o silêncio, e Natalie começou a ficar desesperada. Ela

precisava daquela resposta para ficar bem, precisava saber a verdade, e

somente Dorah tinha aquela resposta.

— Por favor, não me deixe sem saber isso. Não me abandone agora.

— As lágrimas caíram no rosto de Natalie. Ela tinha medo daquela

resposta, mas se sentiria pior se continuasse com aquela dúvida.

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— Ela queria te matar, e eu a protegi.

— Ela? Quer dizer que ele não fez... — Natalie sentia seu coração,

sua respiração, seu pensamento, tudo congelar.

— Eu não sei dizer se ele estava lá, minha filha, depois que eu tentei

atacá-la. Ela disse que a mataria, me jogou no chão e a faca que eu

segurava me perfurou. — Dorah explicou a situação, com base no que se

lembrava até aquele momento.

— Katherine! Então, ele não teve... Mas por que ele estava... —

Natalie estava confusa, mas certa de que estava cometendo um erro com

Carsten. Sentia ódio de Katherine, pois ela era a única culpada da morte

de Dorah e de muitas outras coisas que haviam acontecido nos últimos

dias. — Obrigada por me contar isso, mãe.

A voz de Dorah não estava mais no local. Talvez fosse exatamente

para isso que ela teria aparecido para a filha.

Natalie, que estava completamente confusa naquela noite, agora

parecia ter as ideias mais claras. A saudade de Dorah só aumentou, mas

ela só tinha que agradecer a mãe. Agora ela precisava fazer algo:

encontrar Carsten e pedir desculpas.

******

Ainda no chão e quase sem energias, Katherine lutava para

sobreviver, sem fazer ideia do que aconteceria com ela, pois o velho

ancião havia dias não aparecia. Victor, por sua vez, só voltava para

descansar e já saía à caça em outras cidades.

— Então, você é a rebelde? — Mesmo sem forças, Katherine tentou

ver quem estava falando com ela. A voz não era conhecida e a falta de

luz na sala não ajudava, ainda mais porque o homem usava um grande

capuz.

— Mestre? — Ainda com a voz bem fraca, a ruiva achou que se

tratava do velho ancião. A roupa era bem parecida, mas a postura do

homem era diferente, parecia ser de alguém mais jovem.

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— Apesar de estar me confundindo, agora você pode me chamar de

mestre, pois sou eu quem está no comando.

Do outro lado da sala, enquanto os outros demônios continuavam

dormindo, os olhos de Victor se abriram.

— Que bom que você também está acordado, meu rapaz. — O novo

ancião havia percebido que Victor estava acordado, o que deixou o

demônio assustado, pois não havia feito nenhum barulho. — Quero que

vocês dois me acompanhem.

O ancião se virou e foi caminhando para a saída do local. Victor se

levantou e o acompanhou rapidamente, sem olhar para Katherine. A

ruiva, que não tinha forças para se levantar, foi se arrastando pelo chão,

sentindo-se totalmente humilhada.

Após alguns minutos na grande sala com a mesa redonda, Victor

estava em pé ao lado do ancião, esperando a chegada de Katherine, que

demorou um pouco a chegar.

— Quando uma ordem é dada, tente ser rápida e obedecê-la

conforme solicitada. — O ancião já sabia da rebeldia da ruiva e quis

provocá-la, mostrando que não estava de brincadeira.

— Me perdoe, mas eu não...

— Eu não quero desculpas, Katherine — ele a interrompeu, impondo

total respeito naquele ambiente. — Vocês dois tinham grande confiança

de Sebastian, o antigo ancião. Essa confiança se perdeu durante as

missões que receberam. — Victor, como quase todas as vezes, apenas

escutava sem falar nada. — Eu vos digo uma coisa, se desrespeitarem

alguma ordem minha, ou ao menos tentarem fazer algo diferente do que

eu mandei, serão caçados e mortos imediatamente.

— Sim, senhor. — Victor foi o único a responder. Katherine não pôde

dizer uma só palavra, uma vez que suas energias tinham se esgotado

após ter se rastejado até aquela sala.

— Acho deprimente ver um demônio em um estado desse. —

Erguendo uma de suas mãos em direção a Katherine, o ancião a

levantou com a força da mente, colocando-a de pé. Uma fumaça negra,

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que saiu de suas unhas, entrou pelas narinas dela, enchendo-a de

energia. — Isso vai lhe ajudar a se manter de pé e responder as minhas

perguntas, até que possa voltar a caçar.

— Sim, senhor — respondeu a ruiva, agora com as energias

renovadas.

— Victor, eu quero que você volte a agir em Polsher, mas sua

principal missão é ir até o bar em que a garota responsável pela

insolência de Carsten trabalha. Lá, eu quero que você destrua tudo e

todos; não quero ver ninguém vivo. — Apesar de não entender o motivo

da missão, Victor não teve a ousadia de questionar. — Você, Katherine,

quero a cabeça da garota. — As palavras do ancião deixaram a ruiva

ansiosa, já que não havia conseguido completar aquela missão. —

Escute bem, não me importo que precise matar outros para que isso seja

feito, mas quero a cabeça dessa humana.

— Sim, senhor.

Ambos já tinham a missão de que precisavam, e agora somente

esperariam a noite chegar para começa a cumpri-la. Mas, antes que os

dois saíssem, o ancião foi direto ao ponto com Katherine.

— Não ouse voltar para cá sem a cabeça dela. Caso contrário, eu

terei a sua cabeça.

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Capítulo 38

O ATAQUE que Natalie havia sofrido no dia anterior e as palavras de

Dorah faziam a garota perceber que Carsten falara a verdade sobre

protegê-la. Por conta disso, Natalie meditou naquele dia.

A garota precisava avisar a amiga sobre a decisão que havia

tomado, mesmo a loira sendo contra. Então, esperou Kelly acordar.

— O quê, Natalie? Mas você ainda não pode fazer isso. Como é que

vai conseguir...

— Kelly, o aluguel da casa já acabou e eu não tenho dinheiro para

pagar outro. Aliás, várias coisas já foram levadas para a casa nova. E

minha mãe já tinha deixado o condomínio pago por três meses, e a

mudança também.

— Então o que você pretende fazer na casa antiga ainda? — Kelly

estava assustada, pois se preocupava com a saúde mental de Natalie. A

casa velha, onde tudo havia acontecido, não traria boas recordações.

— Só por essa noite. Preciso pegar as coisas e amanhã de manhã já

vou para a casa nova.

— Mas você sabe que pode ficar aqui, quanto tempo precisar, não

precisa mudar.

— Eu sei disso. Mas não acho justo, mesmo você sendo minha

amiga, que eu viva à sua custa. Preciso me virar também. — Natalie

sabia que ficar sozinha na casa antiga seria a única saída para que dois

demônios aparecessem, Carsten e Katherine.

— Essa decisão é sua, mas você sabe que pode contar comigo, não

é? — Kelly abriu um sorriso enorme para a amiga, ainda mais quando

percebeu que ela já estava bem melhor.

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— Ontem minha mãe apareceu. — Kelly ficou espantada com a

notícia. — Ela me disse que Carsten é inocente, não foi ele o culpado da

morte dela. A ruiva, por causa dela minha mãe morreu.

— Aquela desgraçada. Quando ela vai parar? — Kelly ainda sentia

algumas dores que a faziam lembrar-se de Katherine.

— Acho que quando ela morrer ou me matar.

— Isso não vai acontecer, Carsten não vai deixar.

— Disso eu já não sei, porém, como nós sabemos, ele é um

demônio, e não sei se posso confiar inteiramente nele. — Natalie parecia

ter recuperado o seu raciocínio da melhor forma possível.

— Monstrinha, você não está pensando em ir para a casa para

chamar a atenção daquela ruiva, está?

— Não, prometo que vai ser bem rápido. — Natalie não queria

preocupar Kelly, se o fizesse estaria arriscando a vida dela.

— Tem certeza de que você não quer companhia? — perguntou

Kelly.

— Eu preciso enfrentar isso sozinha. De qualquer forma, muito

obrigada por tudo que você está fazendo por mim.

*****

Assim que chegou, lembrou-se de quando era pequena, correndo na

frente da casa, vendo Dorah e Laurence atrás dela se divertindo. Um

pouco maior, ela enxergava Gabriel ainda no colo; depois, brincando com

o pequeno irmãozinho, fazendo-o rir. Natalie havia nascido ali, onde

vivera os melhores momentos da sua vida.

Ao abrir a porta da frente com a chave reserva, ela viu aquele lugar

vazio e triste. Não se parecia mais com sua casa, era outro lugar,

diferente. A garota começou a reviver o passado e a cena de sua mãe

morta, caída no chão, repetiu-se. Carsten chegando com as mãos

ensanguentadas ainda a deixava confusa. Se já sabia que ele não fizera

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nada com Dorah, por que estava daquela forma?

Natalie nunca o tinha deixado explicar o que aconteceu. Agora que

ela sabia a verdade, queria entender tudo. O que exatamente ele e Reik

estavam fazendo lá? O que acontecera quando os dois chegaram? Mas

não fazia ideia de onde Carsten estava.

Natalie observava as paredes, o chão e os cômodos. Quando viu

uma caixa sobre a mesa da cozinha, ficou curiosa em saber do que se

tratava, pois ela estava aberta. Dentro dela havia alguns álbuns antigos

da família, coisas que possivelmente Dorah estava organizando antes do

acontecido. Muito daquilo que a garota não se lembrava, agora estava se

tornando mais forte.

O tempo foi passando e, a cada página do álbum que ela folheava,

aumentava o sofrimento por não ter os pais por perto. Lágrimas caíam

pelo rosto de Natalie.

— Queria ter vindo antes. — Aquela voz, totalmente diferente quando

estava ao lado dela, fez Natalie se levantar. Ela correu na direção dele,

dando-lhe um forte abraço.

— Que bom que você está aqui. Eu precisava...

— Eu sei, eu sei. — Carsten a abraçou, como se aquele abraço

representasse toda a proteção que ele prometera à garota. — Eu senti

que você estava sofrendo. Mesmo não querendo me ver, eu precisava

estar aqui.

— Me desculpe, eu fui uma idiota. Eu pensei que você...

— Que eu tivesse feito aquilo com a sua mãe — interrompeu Carsten

novamente. — Não tiro a sua razão de imaginar que eu poderia fazer

algo daquele tipo, mas, Natalie, eu prometi protegê-la, bem como as

pessoas a quem você ama. Eu não teria motivos.

— Carsten, eu não sabia o que pensar. Todos viviam me dizendo

para tomar cuidado e não confiar em você, e, sendo um demônio, a

qualquer momento poderia trair minha confiança.

— E eles tinham razão por lhe dizer isso. Se fosse com qualquer

outra pessoa, eu faria exatamente o que eles disseram. Mas era você.

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— Então me diga. — O olhar de Natalie parecia mais sério do que

nunca. — Por que comigo é diferente? Eu sou apenas uma humana igual

a todos os outros.

— Natalie, se eu soubesse lhe responder, ou ao menos controlar o

que eu sinto por você, já estaria bem longe. Talvez, eu evitaria tudo o que

está acontecendo com você.

— Eu não quero você longe de mim. — As palavras de Natalie

fizeram Carsten paralisar. Ele estava sofrendo ao vê-la evitando sua

presença naqueles dias, mas, agora, parecia que sua vida solitária

voltava a ser preenchida. — O que eu mais quero é você aqui comigo. —

Os olhos de Natalie encheram-se de lágrimas.

Carsten se aproximou da garota e a puxou para mais perto dele,

dando-lhe um abraço caloroso que fazia todo o sofrimento de Natalie ir

embora.

— Natalie, ontem, quando eu conversei com a sua amiga, percebi

que dentro de mim ainda existe muita coisa ruim. Por pouco, se eu não

me controlasse ou pensasse em você, poderia ter feito algo muito ruim

para ela.

— Por que você diz isso? — Natalie ficou assustada com o

comentário, mas não se afastou dele.

— Nós, demônios, nunca permitiríamos que um humano nos dessem

ordens como ela fez ontem, me mandando ir embora e deixando você em

paz. — Carsten largou Natalie e se afastou um pouco, dando as costas

para a garota. — Em alguns momentos, tenho medo disso que eu tenho

dentro de mim acabar, e fazer algum mal para você. Até mesmo porque

eu não entendo como isso acontece.

— Você tentou perguntar algo para o Reik?

— Sim, mas existem muitas coisas obscuras até mesmo para ele. —

Carsten estava sendo sincero, pois Reik não fazia ideia do que acontecia

com os dois. — Um dia ele chegou a colocar a mão no meu peito para

sentir meu coração, e eu comecei a rir.

— Ele fez isso porque eu contei para ele que eu ouvi seu coração

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bater. — Carsten se virou novamente para Natalie, como se ela tivesse

falado alguma coisa muito esquisita.

— Isso é impossível. Nós, demônios, não temos coração. Apenas os

humanos possuem, e o os anjos também. — Natalie havia escutado

claramente, naquele dia, que o coração de Carsten batia lentamente,

como se quisesse sobreviver. — É por isso que eu tenho medo do que

possa acontecer. Eu não tenho um coração para sentir amor; aliás, eu

nem sei o que é sentir isso.

— Eu concordo, é difícil associar a palavra demônio com amor, mas

você se preocupou comigo, e de alguma forma veio até mim, porque

sente alguma coisa. Isso é coisa de humanos, coisa de quem tem um

coração. — As palavras de Natalie pareceram atingir Carsten

diretamente.

Carsten sentiu uma forte dor na cabeça. Então, ele se ajoelhou no

chão, como se algo muito forte quisesse fazer parte dele. Natalie foi em

direção ao rapaz, ajoelhou-se perto e o abraçou bem forte, retribuindo o

gesto de carinho.

— Carsten, você está bem?

— É muito confuso, Natalie. Eu nunca tive a curiosidade de saber

como tudo por dentro de nós funcionava; apenas sei que somos movidos

por essa energia negra da qual te falei. Mas agora essas dúvidas surgem

e eu nem mesmo sei quem sou eu.

— Você é um ser mais especial. Apesar de tudo o que aconteceu, se

não fosse por você, eu já estaria morta.

Natalie segurou a cabeça do rapaz, levantou-a diretamente para seu

rosto e olhou para ele. Sua boca ficou na direção da dele. Lentamente,

ela foi se aproximando e sentindo aqueles quentes e macios lábios mais

uma vez. Ela não se lembrava de como era forte a sensação daquele

beijo. Carsten a confortava, a fazia se esquecer de tudo que ela tinha

vivido naqueles dias.

Para ele, era como se estivesse fazendo algo muito errado, mas que

trazia o maior prazer que um demônio poderia sentir. Para alguém que

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vinha da escuridão, era até mesmo melhor que matar um anjo.

Naquele momento, ela percebeu novamente a tímida batida dentro

do peito do rapaz. Senti-la mais uma vez não poderia ser coincidência.

Vendo que ele já estava muito confuso, preferiu não dizer nada.

— Um demônio sabe o que é sentir felicidade, mesmo que ela venha

através de algo considerado por vocês como mau. E uma coisa eu posso

te dizer, estar com você me faz feliz, Natalie, de uma maneira diferente.

— As palavras soaram com total sinceridade.

Os dois se levantaram e, com outro forte e demorado beijo, ficaram

por ali no meio da sala, por mais alguns minutos. Natalie interrompeu o

beijo para perguntar sobre o que ainda a incomodava:

— Por que suas mãos estavam sujas de sangue naquele dia?

— Quando Reik e eu chegamos à sua casa, vimos o corpo da sua

mãe naquela situação e imaginávamos que ainda poderíamos fazer

alguma coisa. Retirei a faca que estava cravada no peito dela e o Reik

até tentou curá-la, mas já era tarde demais.

— Mas, então, por que quando eu cheguei vocês não estavam lá?

— Exatamente para você não pensar que nós fôssemos os culpados.

Quando Reik percebeu que você estava chegando, pediu para que eu me

afastasse, mas não adiantou muito.

— Mas agora está tudo bem. Pelo menos eu já sei quem é a

culpada. — Natalie sabia que seu sofrimento ainda a estava consumindo.

Estava aliviada por saber que Carsten não tinha culpa. — E minha mãe

também está bem.

— Como você sabe? — perguntou ele. — É verdade, eu quase me

esqueci, você consegue falar com as pessoas que já se foram — disse

ele, lembrando-se, antes que ela pudesse responder.

Natalie pegou a mão de Carsten e o puxou para o pequeno sofá de

dois lugares da sala, onde se sentou com ele. Logo os dois se deitaram,

com os corpos bem próximos, ela na frente e ele atrás. Era o abraço mais

carinhoso que Natalie poderia receber naquele momento.

E foi ali, deitados, que ambos fecharam os olhos. Natalie acabou

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caindo no sono, mas ele apenas ficou de olhos fechados, como se

estivesse meditando no submundo. Contudo, sabia que não poderia se

entregar totalmente àquela meditação, pois a qualquer momento eles

poderiam ser atacados por um forte grupo de demônios, mesmo tendo

proteção dos anjos do lado de fora.

Natalie continuou junto dele por algumas horas. Apesar de ter

dormido na casa de Kelly todas as últimas noites, a garota continuava

cansada. Parecia que seu sono não era tão tranquilo quanto aquele.

Quando o dia já havia sumido, Carsten abriu os olhos e a casa

estava totalmente escura. Para ele o escuro era bem familiar, mas o

garoto ficou com medo que Natalie pudesse acordar assustada. Tentou

levantar sem acordá-la, quando sentiu seu corpo forte, como se estivesse

na sala escura recebendo energia, durante o dia todo.

— Carsten, é você? — A voz tímida e cansada de Natalie chamando-

o pelo nome mostrou que ela já estava acordada.

— Sim, sou eu. — O rapaz acendeu as luzes da casa. Ele se sentia

estranho; havia algo diferente dentro de seu corpo. — Natalie, eu...

Ao olhá-la, ele parou de falar. O jovem rosto com o qual ele mais se

importava nos últimos dias estava ali, diante dele. Era difícil de acreditar

que ele dormira ao lado dela, algo que nunca imaginou que faria com

alguém, pois os demônios eram solitários.

— Você está sentindo alguma coisa? — perguntou Natalie, olhando

para o rapaz e vendo que algo o incomodava.

— Não tem nada de errado, apenas me sinto muito forte. — Aquilo

parecia ser diferente, e ele parecia confuso.

— E não era para estar? — perguntou Natalie.

— Se eu estivesse na sala escura, ou onde o Reik me deixou, era. —

Natalie não sabia o que era a sala escura nem sabia o que acontecia

dentro da sala em que esteve com ele, depois do ataque. — Eu apenas

estou aqui com você. Era para eu me sentir muito fraco, mas, enquanto

estivemos abraçados, era como se eu recebesse uma energia, tal qual a

vida nas cápsulas que o Reik me dava.

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— Cápsulas? — perguntou Natalie curiosa. — Cápsulas de quê?

Anjos?

— Sim. As cápsulas dos anjos contêm grande quantidade de

energia, como se fosse o núcleo deles. E assim vamos sobrevivendo.

— Reik estava matando outros anjos? Para te dar energia? —

Natalie parecia assustada com aquilo.

— Não! Ele me dava cápsulas normais, talvez criadas com sua

própria energia. Mas, mesmo assim, ainda não me deixavam tão forte

como eu estou agora.

— Isso quer dizer que, se você se sente forte ao meu lado, não

precisa mais matar os anjos? — perguntou Natalie, que não gostava

daquilo.

— Até eu entender por que isso acontece, e se vai durar por muito

tempo, sim, eu posso. — Carsten nunca imaginou falar algo assim algum

dia. — Se bem que faz algum tempo que já não venho fazendo isso. E,

mesmo se eu fizesse, seria morto, já que tenho um arcanjo no meu pé.

— Fico feliz em saber disso, e em ver que está bem forte. Eu quero

te ajudar no que for preciso, afinal, você já me salvou várias vezes. Mas

não sei como.

— Fique tranquila. Neste momento, estou pronto para defendê-la de

quem quer que seja. Mas, se continuarmos em Polsher, isso será muito

difícil.

— Eu não tenho para onde ir, e não posso deixar meus amigos aqui.

E meu irmão também está desaparecido, não sei o que vou fazer.

— Natalie, seu irmão... — Carsten parou por um momento. Ele não

sabia até onde poderia ir com o comentário. Parecia saber de alguma

coisa bem séria. – Seu irmão seguiu para um caminho que não pode

mais voltar.

— Caminho? Do que você está falando? Como sabe disso? —

perguntou a menina, levantando-se do sofá e indo em direção ao rapaz.

— Natalie, acalme-se. Eu não sei onde seu irmão está. Reik me

disse que ele foi visto com alguns demônios, mas depois disso ninguém

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mais o viu.

— Meu Deus! Gabriel! Ele estava tão perdido. — Natalie colocou sua

mão no rosto, desesperada.

— Por isso eles se aproveitaram da situação: seu irmão, fraco,

desiludido. É quando nós aproveitamos para agir.

— Eu preciso encontra-lo, minha mãe ficaria muito preocupada se

soubesse. — Claro, Dorah ficaria muito preocupada com o filho, mas,

àquela altura, já deveria estar sabendo de tudo.

— No momento, não há nada que você possa fazer, Natalie. Apenas

espere. Nem mesmo eu posso fazer nada, pois eles também estão à

minha procura. — Carsten se referia a outros demônios. — Agora

precisamos ficar tranquilos e nos preocupar com a nossa proteção, e

principalmente com a sua. — O olhar de Natalie ficou focado no que

Carsten pretendia dizer. — Eu não sei onde Katherine está, mas, assim

que ela te encontrar, vai tentar te matar novamente.

******

Longe dali, Jonathan não parava de ligar para o celular de Nick. O

rapaz ainda não havia aparecido para o trabalho, mas mal sabia o chefe

que ele não voltaria mais.

— O que eles querem? Que eu trabalhe sozinho? — As portas do

Avalon não se abriram naquela noite, pois a amiga de Jonathan

contratada não compareceu, e nem Nick, que nunca se atrasava.

Do lado de fora, o estacionamento estava vazio. Assim que os

clientes iam chegando, os seguranças avisavam que, naquela noite, o

bar estaria fechado, antes que tivessem o trabalho de descer do carro.

Jonathan sabia que, para o negócio, aquilo era péssimo, mas não tinha

outra saída.

Será que eu devo incomodar a Natalie?, pensou o dono do

estabelecimento, não querendo perder os clientes.

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Um dos clientes se aproximava do bar, caminhando lentamente.

Tratava-se de Victor. Como não poderia voltar sem que tivesse cumprido

a missão, ele decidiu seguir em frente, e assim que se encontrou com os

seguranças, foi logo perguntando:

— Boa noite, cavalheiros. Vejo que o bar está fechado, mas eu

preciso falar com uma de suas funcionárias.

J e G não pareciam estar com cara de muitos amigos. Eles não eram

de falar muito e apenas proibiram a passagem do rapaz. Sabiam que não

havia mais ninguém dentro do bar, a não ser Jonathan e o cozinheiro.

— Vejo que vocês vão tentar me impedir, mas não acho que essa

seja uma atitude muito inteligente. — As grande asas de Victor se

abriram, e os dois seguranças, pela primeira vez, demonstraram medo.

— Acho que agora vocês entendem por que não podem me impedir, não

é?

Atrás de Victor mais dois demônios apareceram para ajudá-lo. O

garoto parecia não precisar de ajuda, mas seria bom, pois provavelmente

os anjos viriam.

— É hora do show começar.

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Capítulo 39

A FUGA que Carsten pretendia com Natalie não era bem-aceita pela

garota. Mesmo sabendo que seu irmão não voltaria, ela não poderia

simplesmente abandonar sua vida e partir para o desconhecido com o

demônio. Mas, em contrapartida, se ficasse ali, ela e seus amigos

poderiam sofrer novos ataques.

— Se você não quer ir comigo, pelo menos não podemos ficar nesta

casa. É muito óbvio, ela vai te procurar aqui.

— Eu sei disso. E essa é realmente minha vontade, Carsten, acabar

com a vida dela, já que ela acabou com a da minha mãe.

— Natalie, não seja boba. — Carsten segurou nos ombros da garota,

como se quisesse fazê-la acordar daquela ideia maluca que ela teve. —

Como você acha que pode atingi-la? Ela é muito poderosa, e as

habilidades de Katherine são terrivelmente cruéis.

— Habilidades? — perguntou Natalie.

— Sim, todos os demônios e anjos possuem uma habilidade

específica. A de Katherine é absorver a vida, por isso, se ela ficar longe

da escuridão por muito tempo, pode morrer bem mais rápido do que eu.

Ela tem a necessidade de buscar essas energias.

— Então é por isso que está atrás de mim?

— Claro que não, ela está fazendo isso por minha culpa.

— Carsten, se todos têm habilidades, qual é a sua? — Como ele

nunca havia feito nada de diferente, a não ser abrir suas grandes asas e

demonstrar sua incrível habilidade de luta, Natalie estava muito curiosa.

— Você se lembra quando aqueles bandidos te roubaram? Foi a

minha habilidade que me fez chegar tão rápido a você. Eu consigo ser

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mais rápido que qualquer anjo ou demônio, só perdendo para os arcanjos

— explicava o demônio. — Por isso eu te digo, Natalie, vamos sair daqui.

Podemos seguir rapidamente para algum lugar seguro, e ninguém vai

perceber.

— Tudo bem, eu só preciso...

— Silêncio — Carsten interrompeu a garota, parecendo sentir alguma

coisa muito forte por ali, uma energia que continha muito ódio. — Natalie,

vamos precisar ser muito rápidos, ela está aqui.

— Katherine? — perguntou a menina.

O demônio apenas respondeu com a cabeça. Apesar de sentir a forte

energia de Katherine, ele não sabia ao certo onde a ruiva estava. Como

tal energia era muito agressiva, ela havia se espalhado pela casa toda.

— Quando eu contar até três, você vai para a porta, e não olhe para

trás. Apenas corra o máximo que puder, para sua direita, na rua. Eu te

pego logo atrás, tudo bem? — Natalie assentiu com a cabeça. Apesar de

querer acabar com Katherine, ela sabia que não conseguiria. — Um,

dois, três, agora.

Natalie correu em direção à porta, que estava sem as chaves.

Rapidamente a abriu, e deu de cara com a ruiva de cabeça abaixada.

— Natalie, volta! — foi o que Carsten gritou. Mas Katherine foi mais

rápida e empurrou a garota com muita força, fazendo-a bater contra a

parede do outro lado da sala. A garota, então, caiu sem consciência.

— Sua maldita! Como você foi capaz de fazer isso? — A fúria de

Carsten impressionou até mesmo Katherine, que convivera com o rapaz

por muito tempo. — Eu vou acabar com você.

— Carsten, como você pode achar que vai acabar comigo? Após

tanto tempo longe do inferno, acha mesmo que tem energia o suficiente

para isso?

— Eu não só tenho energia para isso, como vou fazer você pagar por

tudo o que fez. — O rapaz partiu para cima de Katherine, mas ela foi

mais rápida, abriu suas grandes asas e desviou do ataque dele.

Nenhum dos dois estava sendo visto por ninguém, pois não queriam

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chamar a atenção dos humanos, fazendo anjos entrarem no meio

daquela briga.

— Nós poderíamos estar todos juntos, eu, você e Victor. Mas, por

conta dessa humana nojenta, você se tornou esse ser desprezível.

— Você não sabe do que está falando. Não consegue entender o

quanto ela é especial.

— Não se preocupe. Assim que eu acabar com você, eu vou atrás

dela, e minha faca vai dizer o quanto ela é especial por dentro. —

Katherine retirou a faca da cintura, provocando mais o rapaz.

Não suportando aquela provocação, Carsten tirou sua camiseta,

amarrou-a na cintura e abriu suas grandes asas negras. Em seguida,

voou para cima da ruiva.

— Vejo que você não aprende. Ainda prefere usar essas roupas sem

abertura nas costas. — Katherine desviou do ataque de Carsten, pois ele

não havia usado sua habilidade.

— Katherine, eu te digo mais uma vez, se não for embora, vou

acabar com você. — Como os dois haviam sido companheiros por muito

tempo, apesar da raiva que ele sentia por ela, Carsten estava evitando

um ataque certeiro que pudesse matá-la.

— Carsten, sou eu quem te digo pela última vez, enquanto eu não

tiver a cabeça dessa vagabunda, não saio daqui. — Carsten encarava

Katherine com muita raiva, mas ela não deixava transparecer nem um

pouco de medo.

Do lado de dentro, Natalie permanecia caída na sala, mas aos

poucos começou a retomar a consciência. Ainda sem conseguir enxergar

direito, olhou para os lados à procura de Carsten, mas não o encontrou

em nenhum lugar. Ouviu uma gritaria do lado de fora, e aos poucos foi

reconhecendo a voz de Katherine e de Carsten. A princípio, pensou em

correr para lá, mas se fosse a pé, com certeza Katherine a veria; então,

pegou o celular dentro do bolso e ligou para Kelly.

— Monstrinha, você está bem? — perguntou Kelly, já que a amiga

não tinha ligado durante o dia todo.

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— Eu estava, mas agora preciso da sua ajuda. – Natalie falava bem

baixo para que não pudesse ser ouvida. — Katherine e Carsten estão

lutando do lado de fora. Ela está aqui para me matar, e eu preciso de

ajuda para sair daqui.

— Calma, eu estou indo para aí, não tira esse celular da mão —

disse Kelly.

— Não. Se você vier na frente da casa, ela vai te ver.

— Então, o que você quer que eu faça? — perguntou.

— Venha para cá o mais rápido possível, mas me espera na esquina

com a avenida. — Natalie se referia a uma avenida a três quadras da

casa dela. — Quando você estiver chegando, me liga e eu vou correndo

para lá.

Do lado de fora a briga continuava. Katherine atacava Carsten com a

faca negra, mas o rapaz a segurou pelos pulsos.

— Katherine, você não enxerga que está fazendo tudo errado?

— Errado? — A ruiva riu e insanamente disse — Desde quando

matar uma humana é errado? E desde quando viver com anjos é certo?

Beijar uma humana é certo? Atacar uma companheira é certo? Matar o

Larxen foi certo? Hein, Carsten?

— Se você sentisse ao menos o que eu sinto, talvez soubesse que

está fazendo algo muito errado.

— Se eu sentisse o que você sente pela garota, ou por qualquer

outro humano, preferiria estar morta a fazer o que você tem feito. —

Katherine conseguiu se soltar do rapaz, e o jogou para o chão. Carsten,

usando sua habilidade, caiu de pé, e olhou para onde a ruiva estava. —

Eu sempre gostei de você, e sempre me importei com você, e hoje te vejo

como um inimigo.

— Gostar? Se importar? Para quem tem tanto ódio, acho que você

está começando a se confundir.

— Você já perdeu totalmente a cabeça, Carsten. Não sabe mais o

que está falando. — Enquanto Katherine falava, mais dois demônios

apareceram atrás de Carsten. — Você dois, entrem na casa e peguem a

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garota. Mas não a matem, pois eu quero ter este prazer.

— Katherine, não se atreva a fazer isso! — gritou o rapaz.

— Eu já me atrevi a fazer muitas coisas que eu não podia, mas,

desta vez, tenho o total apoio do submundo. Andem, façam o que eu

mandei.

Quando os dois demônios partiram para a casa, Carsten não teve

outra escolha a não ser usar sua habilidade. Com toda a velocidade

necessária, entrou na frente dos dois demônios, impedindo a passagem

deles.

— Natalie, se você estiver me ouvindo, não saia de dentro de casa

— ele gritava, sem nem ao menos saber se ela estava acordada.

Do lado de dentro, Natalie ouvia as instruções de Carsten, que agora

eram diferentes. Mas, àquela altura, Kelly já estava a caminho, e ela não

sabia o que fazer. Confusa, ela correu para o primeiro andar, onde olhou

pela janela do seu quarto para ver o que estava acontecendo. A garota

viu Carsten impedindo a entrada de dois demônios, mas não conseguia

ver Katherine.

A caminho da casa de Natalie, Kelly e Dalton seguiam no carro do

rapaz, a toda velocidade.

— Que bom que você chegou bem na hora, eu já estava ficando

nervosa — disse a loira ao namorado, que não estava entendendo nada.

— Mas por que você me disse que Natalie está em apuros? —

perguntou o rapaz.

— Por nada, só precisamos ajudá-la.

— Não, Kelly, você tem de me dizer o que está acontecendo. Essa

sua cara de assustada não parece nem um pouco normal.

— Tudo bem. — Ela havia decidido contar o que estava

acontecendo. Não teria tempo para dizer tudo, mas resolveu começar por

um ponto que com certeza Dalton entenderia, ou pelo menos assim ela

esperava. — Você se lembra do dia em que achou que foi atacado por

um animal negro?

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— Sim, eu estava bem confuso — Dalton conversava e se

concentrava na direção.

— Não, você não estava.

— Como assim? Claro que eu estava, imagina um animal negro

daquele tamanho. Você acha que...

— Dalton, me escuta — Kelly aumentou o tom de voz, e estava bem

séria, fazendo o rapaz prestar atenção no que dizia. — Aquele animal era

um demônio, assim como a garota que me atacou naquele dia. E assim

como a que matou Paul, a mãe da Natalie, bem como a que está

tentando matar a minha amiga agora. Por isso precisamos chegar logo.

— Dalton ficou sem reação. Parecia acreditar e, ao mesmo tempo, achar

que tudo aquilo era uma verdadeira loucura. — Eu sei que parece

estranho ouvir tudo isso, mas é verdade. E precisamos chegar lá o mais

rápido possível.

Se ele havia acreditado, a loira não sabia, mas Dalton percebeu a

gravidade da situação e aumentou a velocidade. Vendo que estavam

próximos da avenida onde havia marcado com Natalie, Kelly mandou

uma mensagem para amiga.

Natalie recebeu a mensagem no mesmo momento, mas não sabia o

que fazer para conseguir chegar até o local combinando, pois a porta

estava bloqueada.

Naquele momento, uma forte tempestade cheia de raios e trovões

que se formava, abafava o som da briga, evitando que os vizinhos

percebessem o que estava acontecendo.

Vendo que Natalie observava pela janela e que Carsten estava

ocupado, Katherine decidiu mudar seus planos. Foi em direção ao quarto

da garota, quebrando a janela com muita violência e jogando Natalie para

trás.

Quando percebeu que a ruiva havia invadido a casa, Carsten não

pensou duas vezes: partiu para cima dos dois oponentes, com uma faca

prata em cada mão. Essas armas eram letais para os demônios, pois

pertenciam aos anjos.

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— Natalie, saia daí agora, a porta está liberada — gritou, fincando a

faca nos dois demônios.

A garota se levantou e correu em direção à porta do seu quarto.

Como Katherine não conseguia usar suas asas naquele local pequeno,

não possuía muita vantagem sobre a garota. Mas, rapidamente, pensou

em agir. Jogou sua faca em direção a Natalie e apenas o grito da garota

pôde ser ouvido. Do lado de fora, Carsten ficou desesperado e correu

para ajudá-la.

— Você está bem? — perguntou o rapaz, vendo o braço de Natalie

ensanguentado. A faca havia pegado de raspão, apenas cortando a

garota. — Usa isso aqui. — Carsten rasgou sua camiseta e deu para que

Natalie colocasse no braço. — Pressione com muita força.

Nenhum sinal de Katherine foi ouvido. Mas a ruiva ainda estava por

ali, o rapaz conseguia sentir sua presença.

— Olha para mim. — Carsten segurou o rosto de Natalie. — Corra o

mais rápido possível, entendeu? Não olhe para trás, eu vou cuidar dela.

— E, com um rápido beijo, ele se despediu da garota. — Tome cuidado.

Natalie começou a chorar, mas ela sabia que teria de ser forte

naquele momento, por Carsten e por seus amigos, e principalmente pelas

pessoas que haviam morrido por culpa dela.

— Tente encontrar Reik ou Serah, e peça ajuda. Somente eles

podem te ajudar neste momento. — Carsten seguiu até a porta e viu se o

caminho estava limpo. Com um sinal, indicou que Natalie corresse.

A garota não pensou duas vezes, enxugou suas lágrimas e correu o

mais rápido que podia, seguindo o caminho até a avenida, como havia

combinado com Kelly. Mas, no meio na rua, foi surpreendida por

Katherine.

— Aonde você pensa que vai, sua desgraçada? — A ruiva partiu

para cima de Natalie. Porém, antes que pudesse pegar a garota, ficou

paralisada.

— Agora, Natalie, vai! — Carsten havia levantado voo e atirado

alguns dardos negros em Katherine. Por isso, a ruiva estava imóvel.

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Natalie, então, pôde correr pelas três quadras.

— Por quê? — perguntou a ruiva.

— Eu apenas queria te paralisar, Katherine, eu não quero te matar.

— Carsten não saiu do seu lugar, e Katherine continuava ali, olhando

para ele. — Se eu quisesse te matar, os dardos prateados já a teriam

transformado em pó.

— Seria mais fácil que você fizesse isso, pois voltarei para o

submundo e serei morta pelo ancião. — Katherine tinha medo de que

alguma coisa pudesse acontecer com ela, mas, aos poucos, seu corpo foi

voltando ao normal.

— Você não precisa fazer isso, Katherine. Eu escolhi outro caminho,

e estou livre deles.

— Não seja idiota, Carsten, você só não foi caçado ainda porque tem

alguma coisa muito importante para eles. Caso contrário, você já estaria

morto. — Katherine dizia a verdade, e por mais assustador que pudesse

ser, ele não parecia ter medo de nada.

— Então, que eles e até mesmo você venham me pegar. Eu não

pretendo voltar.

— O que essa nojenta fez com você? — perguntou Katherine

gritando. Praticamente, todos os seus movimentos já haviam voltado.

Carsten aproveitou o momento e voou em direção a qual Natalie foi.

Mas, assim que chegou na avenida, tomou outra direção para despistar

Katherine. Quando a ruiva retomou o controle do próprio corpo, foi atrás

do garoto.

Enquanto isso, Natalie já estava no carro com Dalton e Kelly, mas

não conseguia dizer uma só palavra. Ainda recuperava o fôlego da

corrida. Dalton era o que menos entendia a situação, pois toda aquela

história o tinha deixado perdido.

— Me diga, você está bem? — perguntou Kelly.

— Eles estavam lutando. — Natalie, mais uma vez, respirou

fortemente. — O Carsten apareceu. — Mais uma forte respirada.

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— Calma, Natalie, respira primeiro, e no caminho para casa você me

conta o que aconteceu.

— Não! — Dalton levou um grande susto com o grito de Natalie e

quase saiu da pista. — Precisamos encontrar a Serah. Vamos para o bar,

ela deve estar lá.

— Serah? Por que devemos encontrá-la?

— Quem é Serah? — perguntou Dalton.

— Ela é um anjo — disse a loira, deixando-o mais confuso.

— Precisamos encontrá-la. Se voltarmos para sua casa, seremos

facilmente caçados.

— Falando em anjos, onde eles estão agora? — perguntou Kelly.

— Eu não sei. Katherine não veio sozinha, deve haver muitos

demônios na cidade, por isso precisamos encontrar Serah.

Os três então seguiram o caminho para o bar, pois Natalie não fazia

ideia de onde ela poderia estar, se não, Avalon.

******

Na grande sala branca, Reik estava em pé, bem no centro. Do lado

dele havia mais quatro homens vestidos da mesma forma, com suas

longas roupas brancas. Possivelmente eram os outros arcanjos.

— Vejo que o ataque realmente começou. Os anjos já estão lutando.

Precisamos estar preparados — disse um deles.

— Não acho que todos nós precisaremos nos deslocar para a Terra

— outro disse. — Afinal, somos cinco. Apenas um de nós consegue

resolver o problema, não sinto a presença dos anciões.

— Eu vou. — Reik era o único dos cinco que podia ser reconhecido.

Apesar de usar a mesma roupa que cobria o rosto, permanecia com o

rosto erguido, enquanto os outros estavam de cabeça baixa.

— Eu concordo com Reik. Acho que ele é o mais apropriado para

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isto, pois sabe exatamente o que está acontecendo — disse um deles.

— O importante é que a menina seja salva. Essa é a missão que foi

dada a nós cinco — manifestou-se o outro arcanjo.

Apenas três conversavam. Os outros dois, que estavam bem à frente

de Reik, permaneciam em silêncio.

— Algum de vocês já sabe o porquê dessa missão? Por que essa

menina precisa ser salva? — perguntou o arcanjo que estava do lado de

Reik.

— Existe uma ligação muito forte de Natalie e Carsten. Por isso,

precisamos protegê-los — disse Reik. — Mas eu também não sei qual o

motivo dessa relação, e o que ela tem de tão importante.

Quando Reik disse isso, um dos arcanjos que estava a sua frente,

ergueu um pouco a cabeça, desconfiando que Reik sabia muito mais do

que aparentava, mas ele preferiu não dizer mais nada.

— Pois bem. Acho que todos concordam que Reik deva descer

novamente e tentar resolver a situação. Não acho que seja a hora dos

cinco arcanjos do céu entrarem em batalha, afinal, não podemos nos

precipitar. O céu precisa da nossa proteção também.

Todos os cinco arcanjos concordaram com a cabeça. Reik, mais que

rápido, ajoelhou-se perante os outros e pediu a licença para se retirar da

reunião, entrando em um grande portal, onde se dirigiu à Terra.

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Capítulo 40

A DESTRUIÇÃO causada pelos demônios na vida de Natalie e de

seus amigos poderia ser irreversível. Depois do ocorrido, ela sabia que

ninguém mais teria uma vida normal, e que dificilmente as pessoas

conseguiriam dormir tranquilas sem pensar no que estaria do lado de fora

de suas casas, e até mesmo o que poderia acontecer dentro dos seus

quartos.

As notícias na televisão, pessoas cometendo crimes, tudo isso agora,

para eles, era obra dos demônios, seres que estavam ali somente para a

destruição da vida, da esperança e do amor.

— Será que ele está bem? — perguntou Natalie sobre Carsten,

pensando no que Katherine, insana, poderia ter feito.

— Fique calma e não pense nisso agora. Ele deve estar bem, e

agora você tem de se preocupar com você — disse Kelly, tentando

tranquilizá-la. — Nesse momento, precisamos apenas pedir ajuda da sua

amiga loira; nenhum lugar é seguro mais.

— Kelly, tem alguns momentos em que você parece tão madura.

Obrigada por me ajudar. — Natalie sorriu.

— Apesar de todos me acharem fútil, eu sei quando preciso crescer

rapidamente. Minha mãe me ensinou isso

— Espero que essa amiga de vocês esteja realmente lá, já que ela

parece ser a única esperança — disse Dalton, que continuava

concentrado no volante. — Se bem que eu não consigo entender essa

história de anjos, demônios... Preferia ter imaginado que estava ficando

louco, quando fui atacado por aquele animal.

— É, Dalton, eu também preferia que nada disso tivesse acontecido,

desde aquele dia, no posto. Queria ter uma vida normal, como todas as

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outras pessoas, e principalmente que vocês não sofressem com isso. Por

minha causa, eu transformei a vida das pessoas que mais amo em um

caos, e isso me dói muito. — Os olhos de Natalie estavam brilhando,

parecia querer chorar, mas ela precisava ser forte, e as lágrimas apenas

a deixariam mais fraca. Ela respirou fundo, como se toda a coragem que

ela precisasse agora estivesse no seu corpo, e segurou nos dois bancos

da frente. — Não podemos ficar parados. Já que não podemos fazer

mais nada, temos de achar os aliados que possam.

Dalton pisou fundo no acelerador. Eles queriam chegar logo ao bar e

procurar por Serah, que, àquela altura, já estaria trabalhando. Não muito

longe, era possível ver uma grande movimentação parecendo vir do bar.

O trânsito estava impedido.

— Alguma coisa está acontecendo — disse Natalie, que parecia

sentir tratar-se de algo ruim. — Pare ali. — Natalie apontou para uma

vaga que estava na rua e Dalton estacionou o carro. — Vamos,

depressa.

Os três abriram as portas do carro e correram em direção ao bar. À

medida que eles se aproximavam, muitas pessoas ao redor do local

dificultavam a passagem deles. Dois grandes caminhões do corpo de

bombeiros faziam o trabalho de controlar as chamas que consumiam o

bar. Natalie se enfiou no meio das pessoas, deixando Kelly e Dalton para

trás. Ela não pensou em nada, apenas em saber se todos estavam bem.

Quando conseguiu se aproximar do local, a única imagem que pôde

presenciar era de destruição. Ao lado, ajoelhado no chão, estava Big

Mike chorando. Ele não se conformava em ver tudo destruído.

Natalie, que estava atrás do cordão de isolamento, tentou

ultrapassar, mas foi impedida por um policial.

— Me deixa passar, eu trabalho aqui. — A garota olhou para o

cozinheiro e gritou o seu nome. Vendo que o homem havia olhado para

ela, o policial deixou que Natalie passasse.

— Natalie, está tudo destruído, tudo queimado. O que nós vamos

fazer? — Ele estava acabado, ferido por dentro. Aquela era a vida dele, e

que agora estava transformada em cinzas.

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— O que aconteceu? — perguntou ela ajoelhada ao lado do

cozinheiro.

— O bar não ia abrir esta noite, o Nick não apareceu, você estava de

licença e o Jonathan não sabia o que fazer. — Ele tentava falar,

enquanto enxugava as lágrimas nos olhos. — Eu escutei vozes, parecia

que os seguranças estavam brigando com alguém. Fiquei com medo de

sair. Eu nunca gostei de me envolver nessas brigas, por isso quase não

saía de dentro da cozinha.

— Mas, então, você acha que é essa pessoa que fez tudo isso? —

Natalie já estava desconfiada.

— Quando eu decidi sair da cozinha, não consegui ver mais

ninguém, mas o incêndio já havia começado.

Um carro se aproximou do local, interrompendo a conversa dos dois.

Aquele carro era grande e preto e as siglas que ninguém gostava de ver.

Não se tratava de uma ambulância, que tenta salvar as pessoas com

chances de sobreviver, mas, sim, daquele que levava os corpos dos que

já não estavam mais entre nós.

Natalie acompanhava o carro entrando no local de marcha a ré. Seus

olhos estavam estagnados, enquanto imagina quem entraria ali. Por mais

que ela pudesse receber a resposta do cozinheiro, preferiu não

perguntar.

Dois homens desceram do carro e pegaram duas macas, indicando

haver mais de um corpo no local. Eles esperaram o sinal dos bombeiros,

avisando que o fogo já estava controlado, e entraram para retirar os

corpos.

— Você disse que o Nick não estava no bar? — perguntou ela com a

boca tremendo.

— Sim, ele desapareceu ontem, sem nenhum aviso. — Big Mike

olhou para Natalie assustado. — Você acha que ele pode ter feito isso?

— Claro que não, ele nunca seria capaz — ela respondeu com tanta

convicção, pois sabia quem eram os culpados daquilo, ou pelo menos

tinha a certeza de se tratar de um demônio. Só não sabia se eles tinham

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feito aquilo por culpa dela, ou se estavam atrás de outras pessoas. O

desaparecimento de Nick era algo também misterioso.

Os dois homens retiraram o primeiro corpo, coberto por um lenço

branco, e pelo tamanho dele parecia ser um dos seguranças. Natalie e

Big Mike choraram ao ver aquela cena, principalmente ele, que conviveu

tanto tempo com aqueles brutamontes. Assim que colocaram o primeiro

corpo no carro, voltaram para o bar, onde ficaram mais alguns minutos.

Então, retiraram o segundo corpo. Era do mesmo tamanho que o

primeiro, do outro segurança.

Para Natalie, ficou apenas a lembrança dos dois seguranças, com

aquelas caras bravas, mas que, ao mesmo tempo, pareciam ser ótimas

pessoas. Apesar de quase não trocar palavra nenhuma com eles, se

lembraria dos olhares e acenos entre eles.

— Cadê o Jonathan? — Natalie perguntou sobre o chefe, que não

estava lá dentro.

Natalie não esperou a resposta do cozinheiro, e foi atrás de um

policial, ou de algum homem do corpo de bombeiros. Quando encontrou

um, foi logo perguntando.

— Tem mais alguém lá dentro? — perguntou a garota.

— Não, somente os dois corpos foram encontrados — respondeu o

policial, que parecia não dar muita bola para a garota, tendo em vista que

todos estavam meio eufóricos.

— Mas e o dono do bar? — insistiu a garota.

— Eu já te disse que não tem mais ninguém lá dentro. — O policial

olhou para Natalie e a pegou pelo braço. — Vamos, garota, você não

pode ficar aqui dentro, essa é uma área restrita.

— Mas eu trabalhava aqui...

— Eu já disse que você não pode ficar aqui.

— Muito pelo contrário — disse uma voz atrás dos dois. — A

senhorita Zeniek deve ficar aqui, tenho algumas perguntas para ela. —

Natalie reconheceu rapidamente a voz do detetive, e aquilo não era um

bom sinal. Mais uma vez, ela estava no local onde não deveria estar. —

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Eu já disse, deixe a senhorita Zeniek ficar.

Então, o detetive virou para a garota e disse:

— Em vez de você me fazer perguntas, quem quer te perguntar

algumas coisas sou eu. — Natalie parecia irritada com tudo aquilo que

tinha acontecido.

— Acho que você está se exaltando demais, mocinha. Pelo visto

alguma coisa aconteceu aqui, e você pode me passar algumas

informações, não acha?

— Bem que eu queria. Mas, para sua informação, eu acabei de

chegar aqui.

Kelly e Dalton, que conseguiram se aproximar do local, apenas viram

a amiga conversando com o detetive.

— Acho que ela está em apuros. Esse detetive acha que ela está

envolvida em alguma coisa — disse Kelly.

— Ele precisa perguntar para saber a verdade. Essa é a função dele

— comentou Dalton.

— O problema é que ele nunca vai saber da verdade, porque,

mesmo que soubesse, não acreditaria.

— É, realmente eu ainda estou custando a acreditar.

Ambos conversavam bem baixo para que ninguém escutasse, pois

estavam na cena do crime e qualquer comentário poderia torná-los

suspeitos.

— Meus amigos estão comigo. Viemos apenas visitar uma amiga que

trabalha no bar, porque eu, se o senhor se lembra, estou de licença pela

morte da minha mãe, que ainda não foi desvendada. — Apesar de saber

o que tinha acontecido, para a polícia, a morte de Dorah ainda era um

mistério. Natalie, naquele momento, só queria provocar o detetive.

— Eu não me esqueci, não. Aliás, estamos trabalhando nisso

também. Mas me parece que as coisas nesta cidade estão muito

estranhas, mocinha. — Natalie ficava furiosa quando o detetive a tratava

daquela maneira, como se ela fosse uma adolescente, contudo, sabia

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que poderia se encrencar seriamente, caso continuasse provocando o

detetive. — Vamos fazer o seguinte, senhorita, você me responde a

algumas perguntas e depois pode ir embora.

— Agora? — perguntou ela, querendo sair rapidamente dali, já que

Serah não estava lá e era ela quem eles deveriam procurar.

— Não, agora eu preciso entrar e ver o que posso recolher de

informações. Depois de interrogar o cozinheiro, que estava na cena do

crime, falarei com você, não saia daqui.

Natalie sabia que ficaria ali por mais um bom tempo, então foi para

perto de Kelly e Dalton. Observou que o detetive havia mandado um dos

policiais ficar de olho nela para que a garota não fugisse.

— Acho que não vamos a lugar nenhum, agora — disse Dalton.

— Ele insiste em querer me incriminar de alguma forma.

— Eu não posso tirar a razão dele, monstrinha. Afinal, você estava

na grande maioria das cenas em que esse homem investigou — disse

Kelly, tentando acalmar a amiga, que estava preocupada.

— Mas o que eu vou falar para ele? Já que não faço a mínima ideia

do que aconteceu aqui. Garanto que, se fosse eu quem fizesse as

perguntas, elas teriam muito mais fundamento.

— Não temos o que fazer, a não ser esperar — disse Dalton,

olhando para o relógio.

A noite continuou, e os três ficaram ali esperando que o detetive

investigasse a cena, e logo depois o cozinheiro. Os curiosos foram logo

se dispersando e o local foi ficando mais tranquilo, pois não tinha mais

nada para se ver por ali.

— Bem, senhorita, acho que agora podemos conversar — disse o

detetive para Natalie, que já esperava por mais de vinte minutos. —

Primeiramente, o que você estava fazendo aqui?

— Eu já te disse, estava aqui para visitar uma amiga. Precisava falar

com ela, e de longe eu vi a fumaça. Então, estacionamos o carro a

alguns metros e viemos andando para cá. Depois disso não sei de mais

nada, apenas algumas coisas que o Big Mike me falou. — A garota

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acompanhava o detetive, que caminhava para longe dos dois amigos

dela.

— E o que exatamente ele te disse? — perguntou o detetive.

— Mas o senhor já não perguntou para ele? — Natalie pareceu um

pouco ríspida no comentário.

— Vejo que a senhorita, depois de tantas vezes, ainda não entendeu

o propósito do meu trabalho. — O detetive parecia ter perdido a paciência

com a garota. — Mas posso te explicar novamente. Aqui eu pergunto, e

você responde.

— Ele estava trabalhando, e ouviu uma discussão. Disse que,

quando saiu da cozinha, viu o local pegando fogo, e Jonathan, nosso

chefe, não estava mais lá. É só isso que eu sei.

— Quem mais trabalha no bar? Onde estava sua amiga? —

perguntou o detetive.

— Além dos seguranças e do Big Mike, eu, o Nick, que era barman, e

a Serah, que também era garçonete. Mas eu não faço ideia de onde ela

esteja.

— E você fazia o que no bar?

— Isso realmente é importante? — perguntou Natalie sem entender

mais nada.

— Apenas responda as perguntas, senhorita.

— Eu trabalhava como garçonete também, e às vezes no caixa,

quando o movimento estava mais tranquilo.

— Mexia com dinheiro?

— Acho que você já tem a resposta, detetive.

— E recebeu todo o pagamento direitinho? — O detetive tentava

especular se Natalie não teria algum motivo para ter feito aquilo.

— Você está especulando que eu...

— Calma, Natalie. O detetive apenas faz o trabalho dele — disse

uma voz, vindo de trás.

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— E o senhor, quem é? — perguntou o detetive, virando-se para

aquele homem loiro.

— Reik! — Natalie não esperava vê-lo naquele momento. Ele estava

vestido normalmente, como um ser humano.

— Agora eu me lembro, o médico que saiu da cidade sem deixar

nenhuma pista. Você o conhece, senhorita? — perguntou o detetive

olhando fixamente para Natalie.

— Sim, ela me conhece. — Reik colocou a mão no ombro do detetive

e disse: — Deixe que ela se vá, porque ela não tem nenhuma relação

com o que aconteceu aqui. E tente procurar o verdadeiro culpado.

— Bom, senhorita Zeniek, eu terminei por hoje. Acho que o doutor

tem toda a razão. — Parecia que Reik tinha colocado nele o efeito

contrário que os demônios provocavam. Ao invés de incentivar o cinismo

e a provocação do detetive, ele reverteu todas essas atitudes.

Natalie saiu andando sem entender nada e foi ao encontro de Kelly e

Dalton, que estavam atrás da faixa de contenção. Reik acompanhou a

garota.

— Você o hipnotizou? — perguntou ela.

— De maneira alguma, Natalie, eu nunca faria isso. Apenas o

tranquilizei para que ele te deixasse em paz. — Reik olhou para o céu. —

A noite já chegou e vocês não podem ficar por aí, andando sem rumo.

— Viemos atrás da Serah — disse Kelly.

— Quem é ele? — perguntou Dalton, que já estava se sentindo a

pessoa mais perdida do momento.

— Depois te explicamos, Dalton. — Natalie não podia perder mais

tempo. — Já que encontramos você, acho que podemos pedir a sua

ajuda.

— Onde está o Carsten? — O arcanjo parecia que tinha problemas

mais importantes para resolver, e não estava prestando muita atenção

nas palavras de Natalie.

— Nós também não sabemos. Katherine nos atacou, e depois disso

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eu não o vi mais. — Natalie se esquecera dele por alguns instantes, mas

agora tinha mais uma coisa para pensar. — Precisamos de ajuda. Se

você não pode nos ajudar neste momento, pode ao menos me dizer onde

podemos encontrar a Serah?

— Claro, ela está atrás de vocês. — Reik disse olhando para a loira,

que realmente estava atrás deles.

Natalie se virou e correu para os braços da colega de trabalho.

— Você viu o que aconteceu aqui, Serah? — perguntou Natalie. — O

Jonathan e o Nick sumiram.

— Eu sei disso, mas, neste momento, você tem outras preocupações

— tentou explicar.

— Você acha que eu não vou me preocupar com eles? O Nick

desapareceu, Serah. — Natalie olhou para ela, como se quisesse dizer

que ele foi alguém importante para ela.

— Eu preciso ir agora. Você cuida de tudo aqui, Serah? — perguntou

o arcanjo.

— Sim, senhor.

Em um rápido instante, Reik caminhou um pouco. Sem que ninguém

percebesse, ele desapareceu.

— Obrigada por quase me entregar — disse Serah a respeito de

Nick. — Eu realmente não sei onde eles estão, mas não recebemos

nenhum sinal de que eles estavam em perigo.

— Como não estavam em perigo, se o bar pegou fogo? — Natalie

não conseguia entender.

— É muito complicado para eu te explicar agora. E, neste momento,

vocês precisam se esconder.

— E onde poderíamos nos esconder, já que eles podem acabar nos

encontrando facilmente? — Kelly parecia indignada com a sugestão de

Serah.

— Igreja. Vocês precisam encontrar alguma Igreja. Dentro delas os

demônios não podem entrar, então, somente lá estarão seguros. —

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Serah olhou para o céu. — Apressem-se, antes que eles cheguem e eu

não possa fazer mais nada.

— Aonde você vai? — perguntou Natalie.

— Vou ficar na retaguarda de vocês, mas, como disse, sozinha eu

não posso fazer nada. Estou esperando mais anjos chegarem.

— Agora eu percebi que os anjos que ficavam à minha volta não

estão mais aqui.

— Natalie, eles já foram mortos. Os demônios só se afastaram por

conta de Reik, e por isso que eu te digo, peguem o carro e saiam daqui

imediatamente.

As palavras de Serah pareceram preocupantes. Os três correram

para o carro e não pensaram duas vezes, antes de procurar a Igreja mais

próxima do local em que eles estavam.

— Vamos para a catedral, é o único lugar mais perto daqui — disse

Dalton.

— Será que está aberta? — perguntou Natalie.

— Se não estiver, nós arrombamos — respondeu Dalton.

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Capítulo 41

O DESESPERO de Natalie dentro do carro, olhando para todos os

cantos, não era maior do que o de Kelly e Dalton. A garota, pelo menos,

podia ver o que estava acontecendo. Para eles, era como se estivessem

guiando por um caminho escuro, sem nenhuma pista do que estava para

acontecer.

— Eles não estão mais nos vigiando — disse Natalie, preocupada e

atenta com todos os detalhes.

— De quem vocês estão falando? — perguntou Dalton, que estava

fixo na direção do seu carro importado, pois este era mais rápido que os

outros.

— Acho melhor você ir mais devagar, Dalton. Se a polícia nos parar,

não teremos como explicar que estamos sendo perseguidos por

demônios.

— Você acabou de dizer que eles não estão mais nos vigiando —

comentou o rapaz.

— Ela estava falando dos anjos, que deveriam estar nos protegendo,

ou melhor, protegendo a Natalie. — Kelly sabia que Natalie era quem

importava para os anjos, e que possivelmente, em um ataque, eles não

seriam protegidos.

— Kelly, eu pedi a proteção de vocês também. — Natalie tentou

corrigir a amiga. — Você não se lembra daquele dia no parque quando

quase morremos? Serah te protegeu.

— Vocês quase foram mortas? Quando vocês acharam que iam me

contar? — A cada momento, Dalton se surpreendia mais com os relatos.

— Na verdade, eu não queria envolver ninguém nessa loucura, mas,

se eu não falasse para Kelly, ficaria louca.

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— Você se esqueceu da parte que somos amigas e não temos

segredos, monstrinha?

Dentro do carro, todos ficaram em silêncio. O único barulho ouvido

era do motor do carro. O pensamento das meninas era um só: aquele

poderia ser o último momento em que passariam juntas, devido à

gravidade situação.

— Eu só quero dizer que...

— Que te amo — disse Kelly, completando a fala de Natalie.

As duas começaram a chorar. Aquela amizade de tantos anos, se

dependesse das duas, não terminaria nunca. Era muita cumplicidade

para acabar em tão pouco tempo.

— Meninas, chegamos. — Dalton avisou as garotas ao avistar a

grande catedral de Polsher, que parecia estar fechada, devido ao horário.

As luzes do local a iluminavam, assim como os degraus que levavam até

a porta.

Dalton estacionou o carro bem em frente à Igreja, e os três subiram

as enormes escadas correndo, tomando todo o folego que tinham.

Natalie continuava olhando para os lados, tentando enxergar demônios

ou anjos ao redor da igreja, mas nada via.

— Está fechada! — A porta da Igreja estava fechada. Natalie tentou

bater para que alguém escutasse, mas as longas portas de madeira

antiga eram tão duras que mal faziam barulho quando a garota batia.

— Precisamos achar outra entrada — sugeriu Kelly.

— Alguma saída de emergência ou algo parecido. — Dalton ia correr

até a lateral da Igreja para tentar achar qualquer coisa que se parecesse

com uma saída de emergência.

— O que faremos agora? — perguntou Natalie.

Um grande barulho de explosão interrompeu os três, que logo

olharam para a rua e viram seu carro em chamas. Pensaram que algo

tivesse caído do céu, atingindo o veículo com toda a velocidade. Uma

fumaça negra saía do carro, mas, logo esta foi desaparecendo. Natalie foi

a única que pôde perceber que se tratava de um demônio, mas não de

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qualquer um. Ele era o amigo de Carsten, Victor.

— Ora, ora, que sorte a minha de estar no bar quando vocês

conversaram com aquele anjo — disse Victor, referindo-se a Serah,

quando presenciava todos os acontecimentos que ele mesmo tinha

causado.

— Foi você! — Natalie o acusava pelo que tinha acontecido no bar.

— Só queria me divertir um pouco, e encontrar aquele anjo que

vocês estavam conversando por lá. Porém, infelizmente, ela não estava

no estabelecimento. — Victor sorriu. — Mas para que matar um simples

anjo, se eu tenho a chance de acabar com a humana que todos os

demônios procuram, ainda mais quando você foi o motivo pelo qual

Larxen está morto?

— Natalie, o que está acontecendo? — perguntou Kelly, que não

conseguia ver com quem ela estava conversando.

— Tem um demônio na nossa frente, foi ele quem destruiu o carro do

Dalton — explicou a garota, que segurava bem firme a mão de Kelly.

— Meu pai vai acabar comigo — Dalton se referia ao carro.

— Vamos acabar logo com isso, garota, eu não tenho mais tempo

para perder. — Os olhos de Victor estavam avermelhados naquele

momento. — Se seu namoradinho estivesse aqui, eu acabaria com ele

também, e terminava esse serviço de uma vez por todas.

— Não seja por isso, Victor, eu estou aqui. — Carsten estava atrás

do garoto.

— Carsten! — Natalie ficou muito feliz ao vê-lo naquele momento,

pois ela e seus amigos estavam encurralados.

— Ele também está aqui? — perguntou Kelly.

— Natalie, sai daqui agora com seus amigos. Muitos curiosos virão

por conta da explosão. Eles não podem nos ver, mas podem vê-los. —

Provavelmente, se as pessoas chegassem, pensariam que os culpados

pela explosão do carro seriam eles, e o último lugar onde precisariam

estar agora era em uma delegacia. — Corram e procurem outra igreja.

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— Sim, ele está. Precisamos sair daqui imediatamente, e encontrar

outra Igreja — avisou Natalie, a única que podia ouvi-lo naquele

momento.

— Mas onde vamos encontrar uma igreja por perto? — perguntou

Kelly.

— Eu já sei — disse Dalton. — Quando eu era pequeno, brincava em

uma capela que ficava no meio do bosque. Era bem antiga, a primeira de

Polsher, que nunca foi destruída por se tratar de um patrimônio histórico.

— Dalton começou a descer as escadas. — Não fiquem paradas, não é

longe, precisamos correr agora.

— Vocês não vão a lugar nenhum. — Victor tentou bloqueá-los, mas

foi impedido por Carsten.

— Victor, deixe-os ir. Isso aqui é entre você e eu — disse Carsten,

segurando o braço do demônio.

Os três correram. Logo em seguida várias pessoas foram chegando

ao local; depois, o corpo de bombeiros também apareceu para controlar

as chamas. Os dois demônios continuavam lá, pois ninguém podia vê-

los. Eles se encaravam sem dizer nada. Carsten parecia tranquilo, mas

os olhos de Victor agora estavam mais vermelhos do que antes. Ele

sabia que ninguém poderia impedi-lo, e aquele era o momento certo de

matar Carsten.

— Victor, precisamos sair daqui imediatamente — disse Carsten. —

Essas pessoas não têm culpa de nada. — As pessoas em volta, que

observavam o trabalho dos bombeiros, não conseguiam vê-los nem ouvi-

los, mas caso houvesse luta por lá, Carsten sabia que poderiam se ferir

drasticamente.

— Essa garota te transformou totalmente. Agora você está se

preocupando com esses humanos!

— Não seja ridículo. — Carsten revidou o comentário do seu antigo

companheiro, mas nem mesmo ele sabia o porquê de tal preocupação.

Na verdade, a única humana importante para ele era Natalie. — Se

acontecer qualquer coisa aqui, infringiremos outra regra.

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Carsten se lembrou de que, se aparecesse para os humanos, ou se

os prejudicasse de forma não autorizada, poderia receber castigos

pesados (ir para Mantros, por exemplo, local mais temido pelos

demônios).

— Depois de tudo o que você fez, ainda tem medo de ser julgado

pelos anciões? — Victor riu. — Eu também não tenho nada a perder,

Carsten. Se for mandado para Mantros depois de te matar, vou morrer

satisfeito. — Naquele momento, Victor abriu suas asas, demonstrando

que não estava para brincadeiras e intimidando o inimigo para luta. —

Tudo por culpa dela, tudo por culpa dessa humana. Por que você se

transformou nesse idiota?

Carsten não respondeu à provocação de Victor. Ao invés de abrir

suas asas a fim de batalhar com o antigo companheiro, usou sua

velocidade e correu para longe daquelas pessoas. Vendo que o rapaz

estava fugindo, Victor bateu suas asas e voou atrás dele. Com a batida

delas, um forte vento atingiu os curiosos, os quais acharam tratar-se

apenas de uma forte rajada. Para o demônio, aquele fora o impulso para

iniciar uma batalha mortal.

******

— Estamos quase chegando — gritou Dalton, que corria na frente.

Mesmo sendo o único que conhecia o caminho, o rapaz teve

dificuldades devido à escuridão da noite. E eles não tinham uma lanterna

ou algo que pudesse iluminar o caminho no meio da mata.

— Kelly, você está bem? — perguntou Natalie, que caminhava sem

enxergar muita coisa.

— Sim, estou logo atrás de você. Sorte que você está utilizando essa

blusa branca, assim posso te ver. — De fato, a blusa branca (bem básica,

como sempre) que Natalie vestia ajudou Kelly naquela corrida.

— Eu consigo ver, está logo ali na frente. — Dalton finalmente deu

uma notícia boa para as meninas, e a melhor parte dela era que,

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aparentemente, não havia ninguém por perto.

— Espero que essa capela também sirva como uma Igreja — disse

Natalie, já que o local estava abandonado havia anos.

— Ela nunca foi mexida, então, possivelmente ainda continua sendo

um local sagrado. Se esse for o motivo para que tenham nos mandando

para uma igreja com certeza estaremos protegidos — tranquilizou Dalton,

mas o rapaz nem ao menos sabia contra o que precisavam de proteção.

— Vamos logo. — Natalie tentava abrir a porta do local. — Está com

cadeado.

— O que vamos fazer? — perguntou Kelly.

— Espere um momento. — Com dificuldades, Dalton procurava no

chão algo que pudesse ajudá-lo a abrir o cadeado. Finalmente, encontrou

com os pés uma grande pedra e, com ela, após bater com força no

cadeado algumas vezes, conseguiu abri-lo. — Vamos, agora podemos

entrar.

Dentro do local era impossível ver um centímetro à frente, mas,

mesmo assim, eles fecharam as portas, evitando que alguém entrasse.

— Eu não consigo ver nada. Vocês estão bem? — perguntou Kelly,

que parecia estar incomodada com algo no seu braço.

— Espere, eu trouxe o celular. — Dalton tirou seu aparelho do bolso

na tentativa de iluminar o local.

Com a claridade, Kelly pôde ver diversas teias de aranha em seu

braço. A garota, então, começou a gritar, mas logo Natalie colocou a mão

em sua boca.

— Fique quieta, temos de ficar em silêncio.

— Tem um monte de teia de aranha no meu braço. — Ela estava

com medo do local estar infestado de aranhas.

— Este local está fechado há muito tempo. — Danton abraçou a

namorada, tentando protegê-la de alguma forma. — Pelo momento, acho

que a melhor coisa a fazer é ficar aqui dentro e esperar por alguma

ajuda.

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— O problema é que ninguém sabe onde estamos. O único que pode

nos achar é o Reik. — Disse Natalie.

— Eu também posso, alias todos nós demônios podemos.

Aquela voz vinha do lado de fora, reconhecida por Natalie na mesma

hora: era Katherine, que, aparentemente, podia ser ouvida por todos.

— Quem está aí? — perguntou Dalton.

— Estão todos reunidos do lado de dentro. Está na hora de sair para

brincar Natalie — Katherine estava sendo mais irônica do que de

costume. — Uma pena não poder entrar, nunca me dei bem com locais

sagrados. — Realmente, dentro da capela eles estavam protegidos da

ruiva.

— Ninguém vai sair daqui, sua assassina — Natalie gritava de raiva.

— Sua mamãe deve estar aflita no céu. Ou será que ela está no

inferno? — provocou a ruiva.

— Ela era muito boa para estar no mesmo lugar do qual você veio, e

de onde jamais deveria ter saído. — A garota sabia que, mesmo se

tentasse, não tinha forças para lutar contra a ruiva, e deveria ficar ali

dentro esperando pela ajuda de alguém.

— Natalie, você deveria vir aqui fora conversar comigo. Tenho

certeza de que posso te mandar para junto da sua mãe. — Natalie

acabaria com todos os seus problemas, e principalmente com os que ela

havia provocado para seus amigos se seguisse a sugestão da ruiva.

— Nem seja louca de pensar em uma coisa dessas — disse Kelly,

pois a amiga havia ficado em silêncio. — Ela está apenas te provocando,

não deixe que ela...

— Cala a sua boca, sua humana ridícula. Se não fosse por você, eu

nem os teria encontrado. — Nenhum dos três entendeu o que Katherine

havia dito, e por que razão Kelly fora o motivo de ela estar por ali. — Não

importa o quanto eu tenha de esperar por vocês. Ficarei por aqui, e uma

hora vocês sairão.

— Logo os anjos estarão aqui, eu tenho certeza disso. — Natalie

sabia que quando eles corriam perigo, os anjos os ajudavam. Pelo

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menos, era isso que a garota esperava que acontecesse naquele

momento tão crucial.

******

Carsten parou em um local, esperando que Victor pudesse alcançá-

lo.

— Por que decidiu me esperar se você podia fugir, Carsten? Por

acaso você, além de traidor, se tornou maluco? — ironizou Victor ao

aterrissar, mantendo suas asas abertas.

— Você queria me enfrentar, não é? Pois bem, aqui estou eu. —

Carsten nunca quis enfrentá-lo, mas sabia que precisava distraí-lo para

que Natalie e seus amigos pudessem encontrar ajuda.

— Eu nunca vou te perdoar pelo que você fez com o Larxen. Ele não

tinha culpa de nada, apenas estava recebendo uma ordem.

— Ele ia matar a Natalie, por isso eu a defendi. — Em voz alta, o

rapaz defendia a humana como se fosse algo comum na sua vida. — Ela

é apenas uma humana inocente.

— O quê? Você quer me falar em proteção de humanos inocentes,

sendo que já prejudicou a vida de milhares deles? — Victor tinha razão, e

qualquer desculpa que Carsten desse não seria aceita pelo amigo, pois,

antes de conhecer Natalie, ele era o pior de todos os demônios. — Pode

dizer que está diferente e que quer protegê-la por algum motivo que nem

mesmo você deve saber, mas a sua origem e o seu passado não serão

apagados tão fácil.

— Eu sei muito bem disso, Victor, e quando precisar ser julgado por

tudo que eu fiz, eu serei. A minha origem e o que eu sou não mudaram.

Continuo sendo um demônio, mas não permitirei que faça nada contra

ela.

— Será mesmo? Você conseguiria matar um anjo? — Victor deu

alguns passos na direção de Carsten enquanto falava. — Você não pode

nem ao menos dizer que é um demônio. Se existisse uma raça para os

que desertaram do inferno, você seria o primeiro dela, assim como os

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caídos. — Os caídos de que Victor falava eram os anjos que preferiram

voltar a viver junto aos humanos, mas que, assim que desciam à Terra,

eram mortos. Hoje, os que restam vivem escondidos entre os humanos.

— Não me compare com esses sujos — disse Carsten, com um olhar

tenebroso. — Eu continuo sendo o que eu sou, querendo vocês ou não.

— Claro que você continua. Para mim, você continua sendo um

traidor, que matou Larxen sem piedade alguma, e terá que pagar por

isso.

Victor rapidamente partiu para cima usando agora apenas seus

próprios punhos para atacá-lo. A habilidade de força do demônio era

mais poderosa do que qualquer arma, e ele atingiu o rosto de Carsten,

jogando-o para bem longe. Carsten abriu suas asas para amortecer a

queda do outro lado.

— Está doendo? — perguntou Victor, quando viu Carsten colocando

a mão no rosto.

— O que você tem nos seus punhos?

— Já que minha habilidade é baseada na força, criei um dispositivo

para me ajudar nestes momentos. Essa arma é chamada Larxen, em

homenagem ao meu único e verdadeiro companheiro. — Em uma das

mãos de Victor havia uma luva com dentes afiados.

— Você não consegue lutar sem nenhum tipo de arma, sempre foi

um moleque covarde. — As palavras de Carsten provocavam o jovem

demônio de todas as formas, e a cada momento a raiva que ele sentia se

multiplicava.

Victor não conseguiu esperar mais uma provocação, e novamente

atacou Carsten. Já no chão, e sem reagir, o garoto recebia inúmeros

golpes no rosto com muita brutalidade.

— Por que você não reage? — perguntou Victor, enquanto batia em

Carsten.

— Eu mereço, pelo Larxen — disse Carsten, com muita dificuldade,

conforme levava as pancadas.

— Mesmo nesta situação, você consegue continuar arrogante. Você

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merece a morte, Carsten.

— Talvez, Victor. — Carsten conseguiu escapar do garoto, lançando

nele alguns dardos negros. Estes o feriram nas coxas, e conseguiram

fazê-lo paralisar da cintura para baixo. — Só que não desta vez. Espero

que você tenha se sentido vingado, pois é o máximo que vai conseguir

chegar do meu corpo.

— Só me sentirei vingado quando eu te matar. — Victor não

conseguia se mover, mas seus olhos expressavam a fúria de, mais uma

vez, se sentir humilhado. — Katherine, neste momento, já deve ter

conseguido matá-la.

— Katherine nem ao menos sabe onde ela está. — Carsten estava

convicto sobre aquilo.

— Aquela amiga dela. Acho que você também consegue senti-la,

não é?

— Kelly! — Espantado, Carsten parecia ter sentindo Kelly de alguma

forma, e levantou voo com suas asas. Porém, antes que pudesse sumir,

foi atingindo nas asas por um dardo negro lançado por Victor. Mesmo

paralisado, o garoto havia conseguido atacá-lo. Logo em seguida, Victor

caiu no chão sem consciência quando Carsten o atingiu com outro dardo

enquanto caia.

Carsten tentava levantar voo, mas suas asas machucadas não

permitiam que ele pudesse voar. Sabendo que o local poderia estar

infestado de anjos e demônios, decidiu caminhar em meio à floresta,

seguindo o rastro de Kelly. Sua velocidade tinha sido afetada pelos

dardos de Victor.

******

Enquanto os dois demônios estavam lutando, Katherine continuava

suas provocações do lado de fora da capela:

— Imagina que lindo, Natalie. Quando você vier aqui fora, toda a

família Zeniek estará reunida, menos o seu irmão bastardo, que está

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desaparecido. — Natalie escutava toda aquela fala quieta, mas, se

tivesse forças o suficiente para encarar a ruiva, com toda certeza já

estaria do lado de fora.

— Cala a sua boca. — Natalie não conseguia mais ouvir a voz de

Katherine. — Você só está assim, porque perdeu, Katherine. O Carsten

nunca mais vai ser o que era antes. — Kelly não conseguia entender por

que Natalie agia daquela forma, mas, de qualquer maneira, a garota

havia conseguido o que queria.

— Sua vadia, vou acabar com a sua vida. — Katherine ficou furiosa,

pois Natalie conseguira atingir seu ponto fraco.

Naquele momento, mais demônios apareceram por lá, mas dessa

vez não eram poucos. Eram por volta de vinte, empunhando diversas

armas nas mãos, alguns com espadas, facas, dardos; outros estavam de

mãos vazias, pois, por conta de suas habilidades, não precisavam de

armas. Katherine tirou de dentro da sua calça de couro um revólver preto,

raro entre os demônios, de alto poder de destruição.

— Que bom que vocês chegaram. Já que ela não vai sair dali de

dentro, podemos, quem sabe, obrigá-la a sair — disse a ruiva.

— Quem sabe podemos incendiar o lugar — sugeriu um dos

demônios, preocupando os jovens do lado de dentro.

— Eles querem colocar fogo na capela. Apesar de o lugar ser

protegido, vamos morrer asfixiados se continuarmos aqui. — Kelly

parecia preocupada e abraçou fortemente Dalton.

— Não. Vocês não vão.

— Reik! — Aquela voz trouxe um imenso conforto para Natalie. Ela

sabia que a qualquer momento alguém viria.

O arcanjo abriu a porta da capela e disse, olhando para o céu:

— Lusitah. — O escuro céu da floresta se iluminou, como se a luz da

lua tivesse se intensificado. Pelas frestas das paredes de madeira da

capela, era possível ver a quantidade de demônios (pelo menos para

Natalie). Kelly e Dalton somente conseguiam ver a ruiva, que se

mostrava.

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Diante daquela luz, vários anjos foram descendo do céu, em grande

quantidade também. Eles empunhavam armas, assim como os demônios,

mas alguns deles usavam arcos automáticos, lançando deles flechas em

alta velocidade.

— Eles cuidarão dos demônios do lado de fora. Vocês dois precisam

imediatamente sair daqui e partir para um local seguro. — Reik referia-se

ao casal. — Enquanto a você, Natalie, deve partir com Serah e os outros

anjos assim que eles chegarem.

— Eu não vou a lugar algum — disse a garota, sem nem mesmo

saber para onde iria. — Não vou deixar meus amigos aqui. Eu os envolvi

nisso tudo, não posso simplesmente fugir e deixá-los nesta situação.

— Não é uma escolha. Você precisa fazer isto, antes que eles a

matem. — Reik parecia bem sério nas suas palavras.

Do lado de fora, os demônios começaram a atacar os anjos. O

barulho era ensurdecedor, uma mistura de sons de armas se chocando e

gritos. Natalie estava bastante incomodada com aquilo, mas, mesmo

assim, continuou a argumentar:

— Eu não me importo de morrer, desde que eles fiquem em

segurança. Não vou sair daqui sem eles.

— Não seja tola, você não faz ideia da importância que tem para o

céu — gritou Reik.

— Eu não me importo com nada Reik, apenas quero que meus

amigos saiam daqui com vida — exigiu a garota.

— Eu prometo que os protegerei. Agora, por favor, faça o que eu

estou te pedindo. Quando Serah chegar...

Gritando, Natalie interrompeu Reik. Ela colocou a mão na cabeça,

como se uma dor insuportável a estivesse consumindo aos poucos. Era a

mesma sensação de quando havia visto Carsten e Katherine pela

primeira vez no posto de gasolina, a mesma dor.

— Natalie, o que está acontecendo? — perguntou Reik.

A garota caiu no chão, perdendo os sentidos.

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Capítulo 42

A GUERRA acontecia do lado de fora da capela. Vários anjos e

demônios se matavam e Katherine ainda tentava achar um meio de

incendiar a igreja mas era sempre interrompida por anjos, que, quando se

aproximavam dela, eram mortos por sua arma letal.

Dentro da capela, Natalie começou a acordar, mas parecia estar em

outro lugar. Nenhum de seus amigos, nem Reik, ou até mesmo os anjos

e demônios que lutavam do lado de fora estavam lá. Tudo parecia bem

silencioso, era possível apenas ouvir os pássaros e o som do vento

balançando as folhas e galhos das árvores. Via somente a luz do dia, que

iluminava a floresta.

— Natalie, onde você está? — Aquela doce voz não podia ser de

mais ninguém, senão da mãe de Natalie. Dorah estava do lado de fora

chamando pela filha.

— Mãe, é você? — Natalie saiu em disparada para fora da capela.

Quando chegou, parou, olhou para os lados e não viu nada.

— Sim, nós estamos aqui, seu pai e eu. — Naquele momento, o que

Natalie mais precisava era do carinho de quem mais a amava. Ela estava

sozinha, escutando a voz dos seus pais, mas não conseguia vê-los.

— O que aconteceu comigo? Eu morri? — A garota só conseguia se

lembrar da forte dor que havia sentido na cabeça, antes de parar naquele

lugar. — Eu quero vê-los.

— Estamos aqui, meu amor. — Era a voz de Laurence.

Quando ela olhou para a direção de onde vinha a voz, conseguiu

avistar dois vultos, mas uma forte luz a impossibilitava de continuar

olhando para frente.

— Eu não consigo vê-los — disse Natalie, cobrindo os olhos.

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— Estamos bem aqui, na sua frente. — Dorah tentava chamar a

atenção da filha.

— Acho que ela ainda não consegue nos ver, ela vai evoluir aos

poucos. — Laurence se referia a essa estranha habilidade que Natalie

tinha.

Depois de sentir essa mesma dor no posto de gasolina, aos poucos

ela foi conseguindo ouvir as vozes, mas havia demorado um pouco para

que ela finalmente conseguisse a comunicação. Dessa vez, a dor criara

uma nova habilidade: Natalie poderia vê-los, contudo, parecia muito cedo

para que isso pudesse acontecer.

— Eu não posso vê-los, mas posso ouvi-los e senti-los aqui perto. —

Natalie continuava cobrindo os olhos, com medo de prejudicar sua visão.

— Minha filha, queríamos tanto estar com você. — Dorah se

preocupava com Natalie. — Mas hoje estamos aqui por um único motivo:

queremos te dar um conselho, como todos os outros que já demos na

sua vida.

— Você é nosso anjinho, assim como Gabriel. — Laurence queria

ressaltar que, por mais que Gabriel não fosse filho biológico deles,

continuava sendo um querido filho.

— Eu não sei mais o que fazer. Minha vontade era de me entregar

para aquela mulher e deixar que todos vivam em paz.

— Natalie, não faça isso, se você se entregar para ela, não só seus

amigos, mas todas as pessoas sofrerão nas mãos dos demônios. —

Dorah parecia saber de algumas coisas. — Você pode parecer apenas

uma menina, mas é muito mais do que isso. Você é a salvação de todos.

— Salvação? — Aquela palavra sempre fora muito forte para Natalie.

Para ela, salvar era sinônimo de ajudar, e essa sempre foi uma das

características de Natalie, ajudar os outros. Muitas vezes, a garota

pensava mais nas pessoas do que nela mesma. Dessa vez, teria de

pensar não somente em seus amigos. Como sua mãe dissera, ela era a

salvação de tudo. — E quanto ao Carsten? Por que ele? Por que um

demônio? — Eram tantas perguntas, mas Natalie tinha medo de ficar

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novamente no silêncio quando estas não pudessem ser respondidas.

— Você também é a salvação dele, Natalie. — Dessa vez, o silêncio

veio seguido de uma frase que substituiria todas as suas dúvidas por

uma dúvida muito maior.

— Quer dizer que eu preciso salvar humanos e demônios? Como?

Dorah e Laurence ficaram em silêncio, eles não podiam responder

aquela pergunta, no momento certo Natalie saberia o que fazer.

— Quando os seus olhos abrirem novamente, e você voltar para o

seu posto, faça o certo, mas nunca deixe que a escuridão vença. — Esse

foi o último conselho de Laurence, pois parecia que agora a conversa já

teria ido longe demais. Qualquer coisa que fosse dita por eles poderia

prejudicar as futuras conversas.

— Lembre, meu anjo, nós sentimos muito orgulho do que você fez

até agora, e sempre te amaremos. — Dorah também deixou sua última

mensagem.

— Pai, mãe, não vão, por favor. Eu preciso de vocês aqui comigo,

para acalmar meu sofrimento. Eu sinto muita falta de vocês dois.

— Natalie, você é mais forte do que pode imaginar — disseram os

dois juntos.

Aquela forte luz se apagou, e quando Natalie abriu seus olhos, não

conseguiu ver mais nada. Em poucos minutos, uma forte dor de cabeça a

fez perder todos os sentidos novamente.

— Veja, ela está se movendo — disse Dalton, chamando a atenção

de Kelly e Reik, enquanto pegava seu celular que vibrava no bolso.

Naquele momento tão critico, Dalton recebeu uma mensagem. Se

fosse de qualquer outra pessoa ele não leria, mas era do seu irmão, Kyle:

DALTON, EU PRECISO QUE VOCÊ FAÇA UMA COISA MUITO IMPORTANTE. TRAGA

NATALIE PARA JANOVE. ELA VAI FICAR BEM AQUI. FAÇA DE TUDO PARA QUE

ELA VENHA PARA CÁ. DESCULPE MAIS UMA VEZ POR TER DESAPARECIDO.

KYLE.

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— O que tem em Janove? — perguntou Dalton, fazendo Reik olhar

para ele com desconfiança.

— Esquece isso agora e ajuda aqui, Dalton — pediu a namorada,

vendo o estado em que amiga se encontrava.

— Me desculpe. — O rapaz, que tinha mais força, ajudou Natalie a

se sentar no chão, já que Reik não havia se movido para isso.

— Você está bem? — perguntou o arcanjo.

— Sim, só um pouco zonza — respondeu a garota, colocando a mão

na cabeça.

Do lado de fora, a guerra estava ficando mais pesada. Novos anjos e

demônios chegavam para se enfrentar e o barulho aumentava,

assustando todos do lado de dentro.

— Eu fiquei preocupada. Parece que você apagou igual àquela vez

no posto — lembrou Kelly.

— Sim, foi exatamente daquela forma, e acho que pelo mesmo

motivo. — A atenção de Reik foi chamada novamente. Ele não tinha

certeza do que Natalie sabia, ou o que realmente havia acontecido, mas

deu um palpite:

— Sua habilidade está evoluindo.

Reik se aproximou de Natalie e deu a mão para que ela pudesse se

levantar com a ajuda dos amigos.

— Por quê? — Essa era a pergunta que mais intrigava Natalie, e seu

olhar para Reik parecia tão fixo naquele momento. Ela não aceitaria

qualquer informação, a não ser a resposta para essa pergunta. — Me

diga, por que eu tenho essas habilidades, e por que eu sou a salvação?

— Salvação? Quem te falou a respeito disso? — Reik parecia

preocupado com essa informação, sobre a qual ninguém sabia, a não ser

os arcanjos, e até mesmo eles ainda tinham dúvidas sobre isso.

— Como você mesmo disse, meus poderes estão evoluindo, e com

eles eu venho descobrindo coisas. — Natalie queria ir mais fundo. —

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Pelo que eu estou percebendo, eram segredos até então. Segredos

sobre mim.

— Quem te falou sobre isso? — Reik queria descobrir quem mais

sabia sobre essas informações. Natalie não contaria, pois, como ainda

tinha dúvidas a respeito de onde eles estavam, poderia prejudicá-los.

— Vocês não acham que poderiam conversar sobre isso mais tarde?

Tem uma guerra acontecendo lá fora — pediu Kelly, que tremia a cada

grito dado pelos anjos e demônios.

— Eu exijo, Reik, que você me diga agora o motivo de eu ter esses

poderes. — Nunca Natalie pareceu tão séria.

— Finalmente você chegou — disse Katherine do lado de fora,

interrompendo a explicação de Reik. — O meu companheiro favorito, com

a melhor habilidade para este momento tão esperado.

Katherine conversava com um demônio do lado de fora. Ele usava

roupas pretas de borracha, seu rosto era coberto por uma máscara do

mesmo material, e apenas era possível ver suas mãos, que pareciam ter

cicatrizes provenientes de queimaduras de terceiro grau. Conforme ele

movimentava uma das mãos, faíscas apareciam, como se um isqueiro

estivesse sendo utilizado.

— Queime tudo, coloque este lugar abaixo, nem que você precise

matá-los antes de mim — pediu Katherine. — Mas, se não for pedir

muito, me deixe acabar com a vida daquela garota.

Em um movimento, de uma de suas mãos, era possível ver uma

espécie de lança-chamas. Então, ele atirou fogo ao redor da capela,

fazendo uma forte fumaça levantar.

— Agora, vamos esperar que esses humanos nojentos saiam.

Principalmente você, garota insolente. — Katherine, não fazia ideia do

perigo que corria, porque Reik estava do lado de dentro, e em um

simples ataque poderia matá-la.

— Por que você não faz alguma coisa? — perguntou Kelly, aflita,

para Reik, vendo aquela fumaça entrando e a parede em chamas.

— Eu não posso mata-la. Existe um trato que deve ser mantido —

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respondeu Reik, que parecia pressentir uma energia muito poderosa. —

Vocês precisam sair daqui agora.

Reik ficou dentro da capela e liberou o caminho das chamas para os

três saírem, mas logo foram surpreendidos pela imagem de destruição na

floresta. Várias árvores estavam caídas, e muitas armas jogadas pelo

chão; alguns anjos podiam ser vistos se despedaçando pelos ares,

enquanto demônios se tornavam cinzas. A batalha entre anjos e

demônios continuava, e eles não sabiam para onde correr.

— Acho que vocês estão apressados demais — A ruiva que estava

atrás deles, segurou Natalie pelo cabelo, Kelly tentou impedi-la,

segurando seu braço, mas foi arremessada para longe. — Você não

aprende garota. — Dalton correu para ajudar a namorada que estava no

chão.

— Está vendo tudo isso? — A ruiva segurava Natalie pelos cabelos,

virando seu rosto para a direção que era queria. — Tudo isso está

acontecendo por sua culpa. Todos esses lindos anjos estão morrendo,

porque você decidiu se envolver com um dos nossos.

— Você sabe que isso não é verdade. — Natalie criou toda a

coragem do mundo, mesmo sabendo que poderia morrer nas mãos de

Katherine a qualquer momento. — Você sabe que tudo isso só começou

porque esse alguém era a pessoa que você amava.

— Do que você esta falando? — Katherine jogou Natalie no chão,

deixando-a virada de frente para ela. — Nós, demônios, não amamos.

Esse é um sentimento puramente humano, extremista. Eu cansei de ouvir

sua voz falando besteiras, está na hora de morrer.

Um dos anjos tentou proteger Natalie, indo diretamente em direção à

Katherine, mas, assim que se aproximou, foi atacado pelo demônio

flamejante, que o destruiu lançando chamas nele.

— O que você acha que está fazendo? — Aquela voz vinha de trás

de Katherine.

Quando a ruiva olhou para trás, o seu parceiro incendiário tinha uma

lança atravessada no peito e seu corpo já estava se tornando cinzas. Era

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Serah quem o atacara, com suas lindas asas brancas abertas, prontas

para a batalha.

Havia um anjo nas costas de Katherine e um arcanjo à sua frente.

Natalie permanecia no chão, e perto dela estavam Kelly e Dalton.

— Eu não tenho medo de vocês, não tenho nada a perder.

— Não se preocupe. Assim como seu amigo, você também não terá

mais chances de retornar ao inferno. — Serah parecia bem séria e estava

disposta a enfrentar a ruiva com todas as suas forças, mesmo não tendo

habilidades de luta avançada e estando em desvantagem, já que era

noite.

As asas de Katherine se abriram, e ela partiu para cima de Serah,

atingindo-a com um soco na barriga usando toda sua a força. O anjo,

mesmo sentindo muita dor, ergueu a cabeça e olhou para a garota.

Tentou pegar do chão a lança usada para matar o demônio das chamas,

mas, antes que conseguisse, a ruiva a pegou pelo braço. Serah, que era

rápida, conseguiu se esquivar e, com o auxilio das asas, impulsionou-se,

jogando Katherine no meio das chamas.

— Já era mais do que na hora. — Sem que ninguém percebesse,

Reik estava do lado de fora. — Pegue esses jovens e tirem eles daqui,

Serah. É uma ordem.

Sem ter tempo para pensar, a loira ajudou Natalie a se levantar e foi

caminhando na direção oposta de onde a luta acontecia. Dalton também

estava ajudando Kelly a caminhar, pois, com o impacto, seu corpo estava

todo dolorido. Reik não acompanhou os jovens. Apenas observava a

guerra entre os anjos, e, pelo que parecia, não podia fazer nada.

— Vocês estão bem? — perguntou Serah, que não parava de

caminhar.

— Sim. Como você conseguiu fazer aquilo? — Natalie sabia da

desvantagem dos anjos durante a noite, e não conseguia entender como

ela teria dado aquele golpe.

— Quando você quer justiça, busca forças de onde nem imaginar ter,

e aquele ser da escuridão merecia aquilo havia algum tempo. — As duas

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riram.

De repente, Serah parou, como se suas pernas estivessem sem

movimento algum.

— Natalie, corre. — A loira caiu no chão, empurrando Natalie para

que fugisse com seus amigos.

Katherine, logo atrás, havia lançado dois dardos nas pernas de

Serah, impossibilitando-a de se mover. A ruiva aproximou-se do anjo e,

logo que chegou, segurou a cabeça de Serah. Em sua mão direita, um

novo dardo que pretendia enfiar na cabeça da loira.

Natalie foi mais rápida. Em vez de fugir, correu em direção de

Katherine e pulou sobre ela, mas Katherine largou Serah que estava

imóvel e segurou a garota pelo rosto com uma de suas mãos que estava

livre, sem esforço algum.

— Finalmente você está onde eu mais queria, e da forma que eu

mais queria. Agora você vai entender por que deveria ter medo de mim.

Natalie tentava se mexer, mas não conseguia. Sem conseguir

movimentar as pernas, Serah tentou bater as asas, mas Katherine atirou

outro dardo em uma delas, fazendo a loira permanecer no chão.

— Eu cuido de você depois. Primeiro tenho que lidar com essa

humana insolente.

A ruiva começou a utilizar sua habilidade na garota, assim que

começou a adquirir a força vinda do corpo de Natalie, sentiu algo

diferente.

— Isso é melhor que absorver a energia de um anjo. É por isso que

ele ficou encantando por você. Que tipo de energia é essa? — A pele de

Natalie começou a ficar branca, e a garota rapidamente perdeu todos os

sentidos. Seu corpo estava mole, era como se sua vida estivesse sendo

toda transferida para o corpo da ruiva. — Finalmente estou acabando

com você, e da melhor forma possível. Depois só preciso arrancar a sua

cabeça.

******

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Não muito longe dali, Carsten continuava a caminhar lentamente

devido aos seus ferimentos.

No momento em que Natalie estava perdendo sua vida, ele sentiu

um aperto muito forte no peito, algo que só havia sentido quando sabia

que ela estava correndo perigo. Ele tinha de usar suas energias para

ajudá-la da maneira mais rápida possível, mas, na velocidade em que

estava, era impossível que conseguisse se encontrar com ela.

— Reik, se você estiver me ouvindo, ajude a Natalie. Eu não vou me

perdoar se ela morrer. Isso é tudo culpa minha.

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Capítulo 43

A MORTE de Natalie era uma questão de segundos. Quase não

existia vida naquele corpo; sua alma estava prestes a encontrar seus

queridos pais. Katherine finalmente poderia se sentir poderosa e

completa, por destruir quem estava em seu caminho e, finalmente,

completar sua missão.

A energia que Natalie emitia quando estava em apuros não era mais

sentida por Carsten. Ele ainda estava longe e seu corpo sentia as dores

da briga com Victor. Era o fim dela, e não havia mais nada que pudesse

fazer, mas, mesmo assim, ele continuou a caminhar pela floresta a fim de

seguir a energia de Kelly, a única que ele ainda conseguia rastrear.

Carsten tentou se esforçar para continuar o caminho. Mesmo sem

esperanças, ele queria ao menos se vingar e destruir quem tinha

acabado com a vida dela.

— Eu juro que vou acabar com quem fez isso com você.

Somente um demônio poderia estar sugando aos poucos a vida de

Natalie daquela maneira, e a única capaz de fazer aquilo era Katherine.

Para Carsten, qualquer tipo de consideração que ele ainda tivesse por

ela seria esquecido naquele momento. Ele se sentia arrependido por não

ter matado a ruiva.

******

— O que você está fazendo com ela? — Kelly tentou ajudar, quando

viu a amiga naquela situação, mas Dalton, percebendo o perigo que a

namorada poderia correr, a segurou pelo braço.

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— Você não pode fazer nada, Kelly. Ela vai te matar se você for lá

perto.

— Mas ela vai matar a Natalie. — A loira parecia desesperada, e

queria correr o risco, porém Dalton era forte e a segurou o máximo que

pôde. — Se você não me soltar, eu nunca vou te perdoar.

— Se eu te soltar, eu nunca mais vou me perdoar. — Dalton puxou

Kelly para perto do seu peito, e a loira começou a chorar sem parar. — A

única que podia fazer alguma coisa por ela era Serah, mas ela não

estava nada bem.

— Ela vai matar a todos nós, Dalton.

— Claro que não — a ruiva riu. — Hoje eu vou ser uma alma

caridosa. — Katherine sorriu. — Eu consegui o que eu queria, não tem

mais nada que eu possa querer.

O céu continuava iluminado pela magia de Reik até mesmo onde

eles estavam. Aos poucos, uma grande sombra começou a cobrir o corpo

de Katherine; sem que ela percebesse, Reik já estava atrás dela. A ruiva

só teve tempo de largar o corpo de Natalie no chão. Quando se virou, as

grandes asas de Reik a puxaram para perto dele, encobrindo totalmente

seu corpo. Agora, era possível apenas ver as costas do arcanjo, e suas

grandes asas.

Kelly soltou-se de Dalton e foi correndo ajudar a amiga que estava

caída no chão, puxando o corpo dela para longe das asas de Reik.

— Você se acha superior a qualquer um, demônio? — Reik nunca

havia se mostrado tão sério como naquele momento. Dentro de suas

asas, o arcanjo colocou Katherine cara a cara com ele. A ruiva sentia

muito medo, era a primeira vez em que estava tão próxima de um dos

seres mais poderosos do céu.

— Ela já está morta, você não pode mais fazer nada, essa...

— Cale-se, demônio. — Depois da ordem do arcanjo, Katherine

parecia ter perdido a voz. — Se eu não tivesse uma ligação tão grande

com essa garota, para saber onde ela estava, e demorasse mais alguns

minutos, talvez ela não tivesse mais chances. Mas você não sabe de

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nada, nem ao menos o que vai acontecer com você.

— Você está me ameaçando? — Katherine parecia querer intimidá-

lo. Provavelmente, naquela situação, seus pensamentos já estavam fora

do controle.

— O que está acontecendo? — Kelly observava aquelas enormes

asas que encobriam os dois, mas sem entender.

— Essa é a forma usada para eles conversarem em segredo,

intimidando o inimigo — Serah explicou. — Os arcanjos possuem asas

poderosas. Nem que ela quisesse sair dali agora não conseguiria,

nenhum demônio pode.

— Ele precisa ajudá-la, Serah, fala para ele. — Kelly estava em

desespero.

— Eu não sei se ele conseguirá, mas te garanto que fará tudo que

estiver ao seu alcance.

— Não, demônio, eu não faço ameaças. Você termina a sua

existência aqui, hoje — continuou Reik.

— Se fizer alguma coisa comigo, vai quebrar o trato dos arcanjos e

dos anciões. — Katherine continuava na tentativa de intimidá-lo.

De alguma forma, Katherine havia descoberto sobre o trato, um

antigo segredo dos arcanjos e anjos, mas nunca revelara a ninguém,

nem mesmo para seus companheiros.

— O trato prevê que nenhum arcanjo do céu e nenhum ancião do

inferno poderá matar anjo ou demônio de nível inferior ao nosso. — Reik

parou seu comentário e percebendo que Katherine parecia debochar de

seu comentário, o arcanjo aumentou o tom de voz e prosseguiu: — A

regra é bem clara, não fala nada sobre caídos que infringiram as leis do

Céu ou demônios condenados, infratores das leis do Inferno. — O

arcanjo percebeu o desespero da ruiva.

Katherine estava condenada, o próprio ancião a mandou para a

missão porque sabia que ela tinha mais serventia para o inferno. Reik

compreendia que a morte dela não traria problemas para ele e aos outros

arcanjos. Para o arcanjo, quem importava naquele momento era Natalie.

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— Você não pode fazer isso comigo. A culpada foi ela, foi ela quem

se envolveu com um de nós — implorava o demônio.

Reik colocou sua mão no peito de Katherine, dando início a um dos

seus poderosos golpes, e quando estava para pronunciar algo, ficou

completamente assustado. O arcanjo podia ouvir uma leve batida no

peito da ruiva, indicando que ainda havia vida dentro daquele corpo: era

o coração dela. Até onde ele sabia os demônios não possuíam vestígio

de vida, mas, naquele momento, passou a acreditar em Natalie quando a

garota havia dito ter ouvido o coração de Carsten. Agora ele conseguia

entender muito do que antes não compreendia.

— Você não pode morrer. Eu não sei o que aconteceu, mas não era

para você se tornar isso. — Reik olhou para os lindos olhos de Katherine,

e ainda com sua mão sobre o peito da garota, usou uma de suas

habilidades: — Lukima! — disse o arcanjo.

Uma forte luz brilhou dentro do corpo de Katherine. As grandes asas

do arcanjo se abriram, e todos do lado de fora puderam ver o corpo da

ruiva flutuando, como se estivesse sendo controlado por ele. Reik ergueu

a outra mão, e pela boca de Katherine uma fumaça negra com alguns

traços brancos saía lentamente. O corpo da ruiva já estava totalmente

controlado, como se ela não tentasse resistir. Até que seus olhos se

fecharam.

Da mesma forma que ela havia absorvido a energia que dava vida ao

corpo de Natalie, Reik retirava tudo o que a deixava de pé, até mesmo a

energia que a ruiva havia roubado.

— Pronto — disse Reik, depois que toda aquela fumaça havia saído

do corpo dela. — Você, levante a Natalie para mim, imediatamente.

Depois, preciso que a segure com muita força, até que ela se acalme.

Seja forte, ela vai precisar muito de você — pediu o arcanjo para Dalton.

Sem entender nada, o rapaz foi em direção ao corpo de Natalie.

Então, pediu para que Kelly ficasse calma e deixasse que ele a pegasse;

depois, a levantou da forma que o arcanjo pudesse tê-la na sua frente.

— Eu já cuido de você. — Reik colocou Katherine no chão

cuidadosamente, como se estivesse preocupado com ela, e olhou para o

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corpo de Natalie. Então, apontou a mão que continha a energia absorvida

de dentro de Katherine e disse: — Lukimia. — O arcanjo estava usando

outra técnica, uma nova palavra. Toda aquela energia agora entrava no

corpo morto de Natalie.

Depois de toda a fumaça negra e branca entrar no corpo dela, em

uma fração de segundos, a garota começou a ganhar cor novamente.

Estava voltando a ser como era e suas mãos se moviam aos poucos.

— Serah, ela está viva, a mão dela está se mexendo — disse Kelly

pronta para ir até a amiga, que ainda tinha esperanças, mesmo que elas

parecessem esgotadas.

— Kelly, fique onde está. — Serah gritou, e Kelly parou onde estava.

Dalton parecia ter dificuldades em conseguir segurar a garota. Em

uma fração de segundos, ela não parecia ser a mesma pessoa; seu

corpo estava forte, e segurava o braço do rapaz com as unhas. Tentava

se soltar de todas as maneiras possíveis. Os olhos dela estavam

brancos, e ela começou a gritar. O rapaz, que a todo custo a mantinha

presa em seus braços, se assustou.

— Vocês não vão conseguir nos vencer — disse Natalie em meio aos

gritos. Sua voz estava estranha. Ela não parecia mais ser mesma garota

calma, que dificilmente levantava a voz para seus amigos.

Reik apenas observou, já sabendo que aquilo estava para acontecer,

e não fez nada para impedir. Aquela situação durou mais alguns

segundos, mas logo depois Natalie parou de gritar e desmaiou.

— Natalie. — Kelly correu em direção à amiga.

— Kelly, acalme-se, está tudo bem. — Serah ainda estava no chão,

mas observou tudo atentamente.

— Mas ela está...

— Sim, ela vai demorar um pouco para acordar — disse Reik. —

Porém, pelo que me parece, ela foi mais forte do que eu imaginava.

Cuidem bem dela.

O arcanjo se aproximou de Serah, levantou sua mão para ela e

rapidamente a curou. Suas técnicas eram avançadas e não demorava

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muito para que ele pudesse curar qualquer ser.

— Quero que você os ajude a sair daqui o mais rápido possível, e

parabéns pela missão. — Mesmo sabendo que não havia completado a

missão corretamente, ela ficou feliz com o elogio. Tudo tinha sido como

planejado.

Reik fechou suas asas e ficou ao lado do corpo de Katherine. Kelly e

Dalton, que segurava Natalie no colo, seguiram para outra direção,

acompanhando Serah, que agora caminhava perfeitamente pela frente,

com suas asas abertas, com medo de um novo ataque.

— Você tem um coração. — O arcanjo olhou para a ruiva que estava

deitada no chão. — É totalmente diferente de todos os demônios que eu

já enfrentei até hoje. Pelo que me parece, você não escolheu isso para

sua vida, e merece uma nova chance.

Dessa vez o arcanjo colocou as duas mãos na direção do corpo de

Katherine. Ele estava preste a utilizar a sua técnica mais poderosa, e em

alto e bom som disse apenas uma palavra:

— Dômina.

******

Um pouco longe dali, os três jovens seguiam Serah por um caminho

desconhecido. Nem mesmo Dalton, quando criança, havia brincado

naquelas regiões.

— O que ele fez com ela? — perguntou Kelly, ainda curiosa em

saber da amiga, que estava desmaiada. — Ela vai ficar bem?

— Uma pergunta de cada vez — disse Serah, que parecia tranquila,

bem ao contrário de Kelly. — A técnica daquele demônio era rara. Ela

podia sugar a vida de qualquer ser, e foi o que ela fez com Natalie, sugou

a vida dela até a morte.

— Quer dizer que ela estava morta naquele momento? — Dalton

ficou surpreso com aquilo.

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— Sim, estava. — Todos ficaram espantados com o comentário do

anjo. — Morta, sem vida, mas ainda tinha sua alma presa ao corpo.

Geralmente, os humanos, depois de mortos, ainda permanecem com

suas almas dentro do corpo por quase duas horas. Assim, quando Reik

tirou a energia do corpo do demônio, conseguiu devolver ao corpo dela,

fazendo-a voltar à vida.

— Mas por que Natalie agiu daquela forma? — perguntou Kelly. —

Ela não parecia minha amiga; estava cruel, agressiva.

— Junto com a vida de Natalie foi devolvida toda a energia negra que

estava no corpo daquele demônio. — Serah parou por um momento, pois

algo a intrigava. Depois, prosseguiu: — Mas, de acordo com as minhas

experiências, não era para ela ter eliminado tão fácil toda essa energia

negra. Precisaria de algum tipo de ajuda, ou até mesmo passar por um

tipo de exorcismo.

— Eliminado? — Kelly parecia feliz, mas, ao mesmo tempo, curiosa.

— Sim. Isso que me intriga a respeito da Natalie. Ela está livre de

qualquer energia negativa, conseguiu se libertar sozinha, era como se

toda a força negra estivesse destruída dentro do corpo dela.

— Ela vai demorar a acordar? — Dalton olhava para Natalie, que

estava em seus braços sem se mover. Seu corpo estava quente,

diferentemente do momento em que ele a segurou como Reik havia

pedido.

— Ela já está bem, mas está muito fraca para que acorde. Seu corpo

ainda precisa se acostumar com a vida novamente — explicou o anjo.

Eles continuaram o caminho em silêncio, pensativos pelo que

ocorrera durante aquela noite. A iluminação que Reik criara estava se

distanciando deles, e o local se tornava cada vez mais escuro.

— Você não consegue iluminar este lugar? — perguntou Kelly para

Serah, já que ela também tinha habilidades.

— Sim, não tão forte quanto Reik, mas eu consigo. Só que se eu

utilizar essa habilidade, ficarei muito fraca, e caso algum demônio

apareça, não terei como ajudá-los. Minha energia já foi drasticamente

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reduzida durante a luta contra os demônios, e a noite também me

enfraquece.

— Parece que tem alguma coisa ali na frente. — Dalton tinha

avistado uma espécie de chalé no meio da floresta. — Será que tem

alguém ali?

Kelly bateu à porta várias vezes, mas estava trancada e ninguém

respondeu.

— Espere um momento, acho que o lugar está vazio há algum

tempo. — O anjo pegou a maçaneta e abriu a porta com muita facilidade,

sem danificar nada, deixando que Dalton entrasse primeiro com Natalie.

— Lusitah — disse Serah em voz baixa, fazendo uma pequena luz

iluminar o lugar.

Parecia um local uma vez já habitado, mas havia muito tempo estava

fechado. Talvez fosse uma casa onde os donos passassem férias. Os

móveis estavam todos cobertos, e muita poeira e teias de aranha pelas

paredes e teto. Kelly tirou um dos lençóis de um sofá e pediu para que

Dalton colocasse Natalie deitada.

— Ela vai ficar bem, fiquem tranquilos — disse Serah. Ela decidiu

ficar do lado de fora, caso alguma coisa acontecesse.

— Monstrinha, por favor, fique bem logo. Fiquei com tanto medo que

alguma coisa acontecesse com você. — Kelly se ajoelhou do lado da

amiga, segurando a mão dela.

— Ela sofreu muito durante todos esses dias. Eu tenho muita pena

dela. — Dalton então se lembrou da mensagem que havia recebido do

seu irmão. — Kelly, dentro da capela, meu irmão me mandou uma

mensagem pelo celular.

— Kyle? — Ela estranhou que ele tivesse mandado mensagem, pois

o rapaz havia sumido. — Era sobre a Lily?

— Não, ele pediu para que a gente levasse a Natalie para Janove.

— Janove? Mas essa é a capital. Então ele está lá? — perguntou

Kelly.

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— Acho que sim, mas o que mais me intriga é saber por que ele quer

que Natalie vá para lá.

— Depois de tudo que anda acontecendo, eu não sei mais no que

pensar, ou no que acreditar. Só sei que qualquer lugar é melhor para

Natalie, do que esta cidade. Assim que ela acordar, vamos dar essa ideia

para ela.

— Ela não vai a lugar nenhum. — Aquela voz que entrava pela porta

surpreendeu a todos. Era Carsten, todo ferido. — O que aconteceu com

ela?

— A sua amiga... — disse Kelly referindo-se a Katherine.

— Aquela maldita. — Carsten ficou nervoso, e Serah pôde sentir sua

energia negra vibrar, uma raiva descontrolada. — Eu vou matar aquela

desgraçada.

— Não precisa se incomodar, o Reik já deu um jeito nela — avisou

Serah.

— Como você sabia que estávamos aqui? — perguntou Kelly.

— Eu não devo nenhuma satisfação a você. — Carsten foi ríspido

com Kelly. Nesses momentos, ele demonstrava ainda ser um demônio.

— Controle seu instinto, demônio, ela precisa da nossa ajuda agora,

e qualquer informação é importante. — Serah conversava com ele, mas,

ao mesmo tempo, olhava pela porta, buscando a segurança do local.

— Não foi a energia dela que eu rastreei. Foi a dessa garota — disse

ele, apontando para Kelly. — Há algum tempo, ela vem liberando uma

forte energia.

— Que energia? — Kelly já tinha escutado Katherine falar sobre isso,

mas não entendia o que estava acontecendo com ela.

— Eu não consigo sentir nada — disse Serah.

— Essa energia é negra, somente nós demônios podemos senti-la.

— Carsten não parava de olhar para Natalie e ver o estado em que ela

estava. — Não sei dizer o que está acontecendo, só sei que, por conta

disso, consegui chegar até vocês.

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— Ela está ali. — Algumas vozes foram ouvidas do lado de fora.

Eram alguns demônios que tinham encontrado eles.

— Pode deixar comigo, vocês ficam aqui dentro cuidando dela —

pediu Serah.

Carsten logo se levantou para acompanhar o anjo na batalha. Ele

queria proteger Natalie a todo custo, porque se sentia culpado por não

estar com ela quando ela mais precisou.

— Aonde você pensa que vai nesse estado? — Serah ficou bem

próxima do demônio, encarando-o firmemente. Ela não tinha medo. —

Você não está em condições para lutar.

— Eu sei disso. — O olhar frio de Carsten mostrou que, se ele não

estivesse preocupado com a segurança de Natalie, poderia matar Serah

naquele momento. — Use isto. — Ele entregou uma arma de fogo

prateada, possivelmente dada por Reik. Serah sabia que, como aquela

era uma das armas mais poderosas, naquele momento seria totalmente

útil. Sem ela, dificilmente teria chance contra os demônios.

O anjo saiu da cabana, abriu suas asas e partiu para cima dos

demônios, sem piedade, apenas com o intuito de completar a sua

missão: proteger Natalie.

Kelly correu e fechou a porta, mesmo sabendo que não adiantaria.

Aquela garota, que sempre tivera tudo às mãos, por conta do dinheiro da

sua família, havia mostrado que podia ser forte, assim como Natalie e os

outros. Então, lutou até o fim para proteger sua melhor amiga.

— Apesar de conhecer muito pouco sobre os humanos, agora eu

entendo por que vocês sofrem tanto. — As palavras de Carsten fizeram

Dalton e Kelly prestar atenção nele. — Vocês sofrem porque amam, e eu

nunca saberia interpretar isso.

— Você já sabe, Carsten. Se não soubesse, não estaria aqui para

ajudá-la. — Kelly sorriu. — Mesmo você não sabendo o que é, e não

sabendo como interpretar, acho que, de alguma forma, você aprendeu

algo novo.

— Cara, pega ela e vai embora daqui. Vocês precisam sair de

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Polsher agora, esse lugar está acabando com ela — disse Dalton,

enquanto escutava os tiros do lado de fora.

— Polsher não é mais um local seguro para Natalie — disse Kelly. —

Ela vai me fazer muita falta, mas tenho certeza de que vou voltar a vê-la.

— Janove, vocês precisam seguir para Janove. Lá é um local seguro.

— Dalton tirou o celular do bolso e colocou no bolso da calça de Carsten

— Quando vocês chegarem por lá, ligue para o número da última

mensagem: é meu irmão, ele vai ajudar vocês.

Carsten fez um sinal de confirmação com a cabeça e pegou com

cuidado Natalie nos braços. Ela ainda estava desmaiada, mas o rapaz

decidiu caminhar com ela evitando usar suas habilidades, para que não

fosse encontrado pelos outros demônios.

— Janove é muito longe. — Eram seis horas de viagem de Polsher

para a capital, de ônibus. Mesmo que Carsten pudesse usar suas asas,

era inviável e perigoso, tendo em vista as condições em que Natalie

estava.

— Eu posso ajudar. — Kelly tirou do bolso de trás um cartão de

crédito, algo que ela não vivia sem. Apesar de todos os seus documentos

e outros cartões terem sido destruídos dentro do carro, ela sempre

estava prevenida. — A senha é 4657. Use para comprar as passagens

de ônibus, e para o que vocês precisarem. Agora, tire-a daqui.

— Ela ficará bem, eu prometo. — Carsten não perdeu mais tempo, e

saiu de dentro da cabana com Natalie no colo. Em meio a tiros e mais

tiros, o rapaz tentou caminhar o mais rápido que podia, mesmo com suas

limitações.

Kelly e Dalton também saíram da cabana, correndo para outra

direção, pois Serah estava cuidando dos demônios. Os dois sabiam que

seriam interrogados por Serah, e acharam melhor evitar a situação, já

que ela tentaria impedir Carsten.

Depois de algum tempo, a floresta estava silenciosa novamente.

Serah, que estava bastante cansada, voltou para dentro da cabana e viu

que ela estava vazia. O anjo abriu suas asas e voou na intenção de

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encontrar alguém.

******

Próximo à capela destruída, a guerra continuava, e anjos e demônios

estavam matando sem piedade.

Mesmo sabendo que Natalie não estava mais ali, e que podiam se

retirar da batalha, os anjos se defendiam dos ataques dos demônios, os

quais pareciam sedentos pela caça a todo custo.

Muitos anjos estavam caídos, assim como alguns demônios se

rastejavam pelo chão, e não demorava muito tempo para que seus

respectivos inimigos os matassem sem piedade. Era uma batalha sem

fim. A todo o momento, novos anjos e demônios chegavam. Era

impossível saber quantos demônios já estavam mortos, pois seus corpos

se tornaram pó. Apenas as cápsulas dos anjos mortos estavam

espalhadas pelo chão.

— Parem agora. — Aquela voz forte e poderosa fez anjos e

demônios interromperem a batalha.

Reik estava parado no meio de todos eles, com suas asas fechadas.

Os demônios observaram aquele homem, mas não o reconheceram, e

decidiram continuar.

— Acho que vocês não entenderam, demônios. — As grandes asas

de Reik se abriram emitindo um som muito alto, mostrando a todos que

se tratava de um arcanjo.

Os demônios ficaram instáveis. Mesmo em grande número, sabiam

que poderiam ser mortos rapidamente, não importava quantos mais

viessem.

— Já chega. — Aquela outra voz, que agora vinha de perto da

capela destruída, fez os demônios que ainda insistiam no ataque ficarem

quietos. — Eu acho que não preciso dizer mais nenhuma vez que essa

batalha termina aqui. — O ancião que havia ordenado para que Katherine

e Victor completassem suas missões estava diante de Reik e dos seus

subordinados.

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— Anjos, retornem. A guerra terminou. — Aquela era uma ordem

direta de Reik, e deveria ser respeitada imediatamente.

Todos os anjos apenas confirmaram com a cabeça. Haviam

entendido a ordem e partiram voando para o céu, sem hesitar. Aqueles

que estavam machucados eram acolhidos por outros da mesma espécie,

e levados também. Todos os demônios apenas observavam a situação,

mas não ousavam se mexer próximo ao ancião, que aguardava a partida

dos subordinados de Reik.

— Neste momento, eu poderia acabar com você facilmente — disse

o ancião, ao observar que todos os anjos já não estavam mais ali.

— Sim, você poderia tentar, mas acho que não é o que deseja no

momento. — Reik encolheu suas asas, que logo sumiram no meio das

suas costas. — Começar uma guerra não é a mesma coisa que uma

pequena batalha como essa. — Pelo que parecia, aquela batalha, aos

olhos do arcanjo, não chegava perto da guerra que poderia ser iniciada.

— É claro que eu sei. — Com uma de suas mãos, o ancião acenou e

ordenou que os demônios também ficassem longe dali. Ele queria

conversar com o arcanjo sozinho.

— Eu não tenho nada para falar com você, apenas vim para terminar

com isso. — Reik quis dizer que Natalie havia sido salva e Katherine não

estava mais ali para tentar matá-la.

— Terminado? — O ancião, que usava um capuz preto para cobrir o

rosto, sorriu ironicamente. — Depois de você e sua protegida terem feito

a cabeça de um dos meus demônios, ele ter se virado contra nós, e

principalmente depois de você ter matado a minha querida Katherine,

acha mesmo que tudo isso terminou?

— Querida Katherine? Vocês anciões nunca vão mudar, continuam

sarcásticos. A ruiva já não tinha mais esperança de vida. E, pelo que te

conheço, você mesmo deve ter condenado o demônio, estou certo?

O ancião ficou em silêncio por um tempo, e Reik decidiu fazer o

mesmo, apenas observando a reação dele. Mas então, o arcanjo

resolveu se pronunciar:

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— Como eu já disse, apenas vim terminar esta batalha. E esta

conversa também termina aqui.

Em um rápido movimento, o ancião se aproximou do arcanjo. Os dois

ficaram tão próximos, que era possível ouvir a respiração um do outro.

— Isso está apenas começando, Reik. — Sua aparência irônica se

transformou em medonha e assustadora. O ancião falava bem sério. —

Me diga, pois anda me deixando muito curioso. Por que ela é tão

importante para vocês?

— Isso não te interessa. — Reik sabia muito. Algumas coisas ele

mantinha em segredo até mesmo para anjos e outros arcanjos. Talvez

realmente soubesse por que Natalie era tão especial, mas nunca falaria

com o ancião a respeito disso.

— Vocês ousaram nos desafiar. Eu não vou descansar até que

descubra por que ela é tão importante, e principalmente trazer o Carsten

de volta.

— Agora sou eu quem pergunto: por que ele é tão importante para

vocês? — Reik sabia do coração de Carsten e Katherine, mas ficou com

receio de comentar com o ancião.

— Você consegue ter senso de humor, Reik. Acho que ambos temos

segredos agora. — Novamente o ancião sorriu. — Logo, nos

encontraremos novamente, nem que seja para o velório da sua querida

protegida. Eu não vou descansar até que ela esteja morta.

— Isso nós veremos em breve. — Um imenso portal se abriu. Reik

estava pronto para partir, mas, antes que entrasse nele, disse: — Antes

que a verdadeira guerra comece, você saberá a importância dela, e qual

é o propósito dessa garota para o mundo. — Logo em seguida, Reik

entrou no portal e desapareceu da floresta, deixando o ancião sozinho.

O local parecia quieto e seguro, e o ancião ficou sem se mover, como

se estivesse aguardando alguém.

— Vocês, venham aqui, agora. — Alguns demônios que estavam

escondidos no local se aproximaram do ancião. — Vocês se esconderam

bem, mas ele sabia o tempo todo que estavam aqui. — Os demônios

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pareceram surpresos. — Ele é um arcanjo, não se trata dessas criaturas

fracas do céu.

— Para onde devemos ir? Eles não estão mais na floresta — disse

um dos demônios ao ancião, provavelmente se referindo a Natalie e

Carsten.

— Eu quero que vocês os sigam, mas não façam nada até que eles

estejam longe de Polsher. — O ancião parecia saber da fuga. — E

quando vocês conseguirem pegá-lo, porém, deixem a garota viva. Eu não

quero arrumar problemas agora. Apenas tragam o Carsten de volta, ele

está machucado e não será difícil.

— Mas, senhor, nós não sabemos como encontrá-los. Há algum

tempo ele não usa a habilidade dele — disse o mesmo demônio.

— Mesmo sem ele usar as habilidades e tentando esconder suas

asas, eu consigo, facilmente, achá-lo, e penso que ele se esqueceu

disso.

O ancião continuou explicando o que eles deveriam fazer, e como

encontrá-los. Reforçou as ordens aos demônios, aproveitando o cansaço

dos anjos e a possível distração para proteger Natalie.

— Agora vão, não percam mais tempo.

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Epílogo

O tempo em Polsher começou a mudar, e a linda noite de estrelas se

tornou uma imensidão de nuvens negras. Logo em seguida começou a

chover, parecia que Deus chorava pela perda de tantos anjos abatidos

naquela batalha.

Carsten continuava caminhando com Natalie em seus braços no

meio da floresta, até chegar ao acostamento de uma estrada cercada por

florestas, coisa comum em Polsher. Ele não reconheceu o local, e não

poderia usar suas asas machucadas para visualizar a região do alto. E se

assim o fizesse, seria facilmente rastreado por outros demônios.

O demônio estava cansado, mas, para sua sorte, a noite ainda lhe

dava a força de que precisava para continuar a sua jornada. Com medo

que fossem vistos por alguém, já que a garota estava em seus braços

toda ferida, e para se proteger da chuva, o rapaz decidiu voltar para a

floresta e ficar sob uma grande árvore.

— Você vai ficar bem. — Carsten colocou Natalie no chão com

cuidado, para não machucá-la, e ficou de joelhos ao lado dela. — Tudo

isso é culpa minha. Se eu não tivesse seguido você, talvez nós dois

estivéssemos salvos agora. Mas nem eu consigo entender por que você

me faz ficar assim.

Natalie começou lentamente a mover suas mãos e a cabeça.

— Natalie, você está bem? — Carsten parecia animado ao perceber

que ela estava se movendo, mas, ao mesmo tempo, preocupava-se com

a saúde dela.

— Kelly, eu...

— Ela não está aqui, Natalie, apenas eu estou aqui. — O rapaz

parecia um pouco desapontado, pois ela estava chamando a amiga ao

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invés dele.

— Carsten. — Os olhos dela se abriram rapidamente, como se

estivesse bem assustada.

— Você está bem? — Ao contrário de abraçar a garota,

demonstrando estar contente por ela estar acordada, Carsten a olhou

fixamente. O demônio não conseguia agir como os humanos, e quando

isso acontecia, Natalie conseguia sentir seu coração bater.

— O que aconteceu? – Com a voz fraca, Natalie olhava para o rapaz,

que estava com os cabelos molhados. – Onde estamos?

— Muita coisa aconteceu. Me perdoa. — Ele abaixou a cabeça,

envergonhado. — Eu prometi te proteger, mas não consegui. Por pouco

você...

— Carsten, eu estou bem. — Natalie interrompeu o rapaz, notando

que ele se sentia culpado por não cumprir a sua promessa.

— Ela quase matou você. Se não fosse o Reik, você estaria morta.

— Katherine? — perguntou Natalie, imaginando a situação. — O que

aconteceu?

— Eu não sei muito bem, mas pode ficar tranquila, porque ela não

vai mais te incomodar.

— Você a matou?

— Não. Como eu te disse, não consegui chegar a tempo. Apenas

senti que sua vida havia acabado, depois retornado de forma agressiva,

e, por fim, novamente sumido. — Carsten se levantou e ficou de costas

para Natalie, como se tivesse envergonhado. – Foi o Reik quem a matou

e salvou a sua vida.

— Carsten. — Natalie tentou se mover, mas seu corpo ainda doía

muito. Ela gemeu, fazendo o rapaz se aproximar dela novamente,

ajoelhando-se. — Você me salvou da forma que me prometeu — disse

ela olhando para os olhos dele. — Se você não tivesse chegado tão

rápido na Igreja, possivelmente eu nem teria chegado ao meio da

floresta. Portanto, você me salvou.

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— Mas, Natalie, eu prometi que... — Natalie colocou seu dedo nos

lábios do rapaz, fazendo um sinal de silêncio. Ela não queria que ele

dissesse mais nada, e logo em seguida beijou o rapaz levemente,

finalizando aquele assunto. Para ela, as pessoas que haviam prometido

protegê-la tinham cumprido a missão.

— Foi difícil encontrá-los. — Serah caminhava na direção deles,

assustando Carsten. Ele abriu suas asas, mesmo machucadas, e gemeu

de dor. — Você só pode estar brincando! Feche essas asas agora. —

Embora não suportasse a ideia de fazer o que o anjo pedia, Carsten

sabia que estava correndo um grande risco, e fez o que foi solicitado.

— O que você está fazendo aqui? — perguntou o rapaz.

— Reik me disse onde vocês estavam. A ligação dele com a Natalie

é muito grande. — Serah segurava em suas mãos algumas roupas. —

Vocês não vão sair daqui dessa forma, não é? — Ambos estavam

bastante feridos e com suas roupas rasgadas.

— Que bom que você está aqui. Queria te dar um abraço agora, mas

não consigo me mover — disse Natalie a Serah.

— Calma, vim aqui para resolver isso também. — O anjo pediu para

que Carsten se afastasse de Natalie, colocou suas mãos no peito da

garota e disse algo na língua dos anjos: — Requiem — Natalie parecia se

contorcer, pois seu corpo estava sendo curado de dentro para fora. Para

Serah aquela magia era muito poderosa, talvez a mais forte que ela

possuía.

— O que você está fazendo com ela? — Carsten achou que Serah a

estivesse machucando.

— Afaste-se — pediu o anjo em voz alta. Tirando as mãos de cima

da garota, ela perguntou: — Sente-se melhor?

Natalie agora movimentava seus braços e pernas, como se, em um

passe de mágica, ela estivesse totalmente curada. Essa era a magia

mais poderosa dos anjos de cura.

— Você utilizou a mesma mágica no Nick, não é? — lembrou a

garota da vez em que vira o acidente do garoto.

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— Nós não chamamos de mágica, esse é o meu dom. — explicou o

anjo. — Tome. — E entregou as roupas para os dois. — Troquem-se,

porque a ajuda já chegou.

— Natalie, — Kelly apareceu correndo, e logo abraçou a amiga —

você está bem?

— Sim, que bom ver você. — Natalie ficou extremamente contente

em ver que ela também estava bem. — Eu estava preocupada.

— Nós também. Tentamos despistar todos para que vocês

pudessem fugir, mas imaginamos que seria complicado — disse ela se

referindo à fuga da cabana.

— Como eu já falei para a sua amiga, vocês têm de confiar na gente.

Reik sabia onde encontrar vocês. Eu conversei com ele sobre Janove, e

ele achou uma excelente ideia vocês saírem de Polsher.

— Em Janove existem demônios poderosos, completando suas

missões — informou Carsten, que conhecia a capital.

— Existem anjos e arcanjos também. — Serah sabia o que eles

estavam fazendo.

— Kyle também está lá, ele pode ajudar vocês — lembrou Kelly.

Carsten saiu de perto das garotas para que pudesse trocar de roupa,

e deixou Natalie fazendo o mesmo. Quando o rapaz voltou, usava um

jeans básico, claro, uma camiseta branca e um par de tênis vermelho

com alguns detalhes brancos. Natalie estava vestindo jeans escuro, uma

camiseta preta, tênis branco, e Serah não havia se esqueceu do

prendedor de cabelo.

— Eu tento ajudar, e vocês acabam com o visual dela — disse Kelly,

vendo as roupas trazidas pelo anjo.

— Chega de enrolação, vocês precisam seguir para a rodoviária.

Aproveitem agora que tem um ônibus saindo à meia-noite. Se

conseguirem pegá-lo, estarão em Janove logo de manhã — informou o

anjo. — E você, cuide dela. — Serah olhou para o Carsten, confiando no

demônio.

— Você não precisa me pedir isso — disse ele, dando as costas para

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ela.

Natalie deu um forte abraço em Serah e a agradeceu pela ajuda,

seguindo em direção ao carro onde Dalton os aguardava ansiosamente.

Os quatro partiram para a rodoviária, que não era muito longe dali.

O local era simples, visto que a cidade não precisava de uma

rodoviária muito grande. A chuva ainda estava muito forte, e o ônibus em

que eles viajariam já estava estacionado.

— Vamos logo. Onde está o cartão que eu te dei? — Carsten retirou

do bolso e deu para Kelly. Então, a garota comprou a passagem dos

dois, pois ainda havia vários lugares sobrando. — Pronto, agora é só

embarcar — disse ela, com os olhos cheios de lágrimas, entregando as

passagens.

— Achei que não fosse me despedir de você — disse Natalie,

também com os olhos cheios de lágrimas.

— Cuide bem dela, rapaz. — pediu Dalton inesperadamente, mas

com medo da reação do demônio.

Carsten apenas olhou para ele, com pouca importância, já que era

apenas um humano falando.

— Kelly, quero te pedir uma coisa. — Natalie andou em direção ao

ônibus, já que o motorista havia feito a última chamada para o embarque.

— Procure o Gabriel para mim, por favor, e me avise de qualquer

informação. E, Dalton, cuide dela.

— Pode deixar — respondeu o rapaz. — Vocês também, se cuidem.

E se encontrar meu irmão, diga que eu o amo muito. — Ela respondeu

com um sinal de cabeça.

— Os anjos estarão acompanhando vocês, podem ficar tranquilos —

disse Serah.

Os dois entraram no ônibus e encontraram seus assentos. Natalie se

sentia mal por estar dentro de um veículo que a levaria para longe da sua

cidade, dos seus amigos. Mesmo sabendo que aquela não era mais a

vida que costumava ter, que ficando ali tudo seria diferente, pois sua

família não estava mais com ela. O único conforto: estar fazendo isso

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com Carsten ao seu lado.

— O que faremos quando chegarmos lá? — perguntou Carsten.

— Você disse que já esteve em Janove. Conhece bem a cidade? —

Natalie nunca tinha estado na capital.

— Sim, conheço bastante, não tão bem como Polsher, mas consigo

me virar muito bem na capital.

— Assim que chegarmos, ligamos para o Kyle, irmão do Dalton.

— Por que devemos confiar nesse cara? — perguntou Carsten

desconfiado.

— Eu não sei, mas, desde que eu o vi, sabia que tinha algo especial

nele. E algo me diz que ele vai nos ajudar — explicou Natalie.

— Eu espero que você tenha razão. Estaremos sozinhos em Janove,

e aquela cidade é perigosa o suficiente para acabar com nós dois.

— O importante é que estamos juntos — disse Natalie.

— Não. O importante é que você está bem — completou Carsten,

dando outro beijo rápido em Natalie.

Cansado, Carsten encostou sua cabeça na poltrona. Natalie, por sua

vez, encostou a sua no ombro dele, e ambos seguiram aquela viagem

chuvosa.

O motorista do ônibus estava tomando todo o cuidado, pois, além de

estar chovendo muito e a visibilidade estar péssima, era noite, o que

dificultava mais ainda a viagem. A possibilidade de acidentes era muito

maior e ele redobrava a atenção.

A princípio tudo correu muito bem. Depois de quase uma hora de

viagem, a chuva acalmou um pouco, as luzes de dentro do ônibus já

estavam apagadas e todos dormiam normalmente. Menos Carsten, que,

por mais que estivesse cansado, ficara pensando em tudo o que estava

acontecendo na vida dele, e no que teria provocado na vida daquela

garota, que agora estava deitada em seu ombro, buscando por proteção

de alguém que sempre fizera muito mal aos humanos.

Ele abriu um pouco a cortina da janela do ônibus e ficou observando

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a chuva que batia no vidro. De repente, algo rápido e grande passou bem

do lado de fora, deixando-o atento. Carsten sentiu uma forte energia

negra rodeando o ônibus. Logo, mais energias estavam no local.

— Natalie, acorda — pediu o rapaz, chamando a atenção da garota,

que aos poucos abria seus olhos. — Os demônios nos seguiram. — Os

olhos dela se abriram rapidamente.

— Como você sabe? Onde eles estão? — Ela parecia desesperada.

— Se segura em mim agora. — Essas foram as últimas palavras de

Carsten.

O ônibus, que não estava em velocidade alta, capotou, como se

tivesse sido empurrado com força. Por algumas vezes, rodopiou, fazendo

todos os passageiros se chocarem violentamente entre as poltronas e o

teto, até que parou de lado, no meio da estrada deserta, devido ao

horário do acidente.

Natalie estava desmaiada, e não havia sinal algum de Carsten dentro

do ônibus. Várias pessoas estavam mortas, e outras apenas gemiam de

dor. A cena era aterrorizante em meio às poltronas espalhadas pelo local.

Algumas janelas se quebraram com o impacto, e a chuva invadia o

local. As gotas caíam sobre o rosto de Natalie, mas, por sorte, não havia

nenhuma poltrona sobre ela, já que muitas se despregaram do assoalho.

A garota foi despertando, assim que a água caía. Seu corpo estava todo

dolorido.

— Carsten — ela chamou com dificuldade, sem saber que ele não

estava mais ali dentro.

Assim que conseguiu se virar, olhou para os lados. Pegou o celular

do bolso, que ainda funcionava, e, em meio àquela escuridão, iluminou o

local tentando encontrar a saída de emergência do teto. Mas ela somente

conseguia ver os corpos das pessoas. Muito assustada, Natalie

procurava por Carsten, mas não o encontrava em lugar algum.

A garota finalmente conseguiu ver a trava vermelha da saída de

emergência, e, com muita dor, puxou a maçaneta, abrindo-a. Segurando-

se nas poltronas, mesmo com toda aquela água que caía, ela conseguiu

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sair de dentro do ônibus. Após muito esforço, Natalie se deitou na lataria.

Estava cansada e com os olhos fechados, mas criou forças para se virar

e continuar.

Quando a garota finalmente abriu os olhos, tomou um susto. Algo

passava por cima dela. Era impossível ver alguma coisa naquela

escuridão, mas ela sabia do que se tratava, já que por diversas vezes ela

os viu frente a frente.

Assustada, a garota se levantou com muita dificuldade e foi se

arrastando, lentamente, por cima do ônibus, tomando muito cuidado para

não cair em uma das janelas quebradas. Sentiu uma forte dor na barriga

e colocou suas mãos sobre ela. Quando pensou em desistir, criou forças

e continuou caminhando, até que chegou à frente do ônibus.

Por sorte, um dos faróis não havia se quebrado com o impacto, e

Natalie pôde ver o corpo de Carsten no chão, que não se movia. Por um

momento, ela pensou o pior, achou que ele poderia estar morto. A garota

queria descer, mas não conseguia, pois era muito alto.

Natalie estava desesperada. Precisava fazer qualquer coisa, nem

que precisasse arriscar a vida. Ela olhou para as rodas do ônibus e

pensou em descer por ali, pendurando-se em uma delas. Com mais

esforço, ela foi em direção às grandes rodas e tentou se equilibrar. Seu

corpo doía muito, e por mais que tentasse várias posições, a dor era

enorme. Qualquer movimento que ela fizesse lhe trazia muito sofrimento.

Segurando bem firme, Natalie conseguiu finalmente se agarrar, e foi

descendo lentamente. Em poucos segundos a chuva aumentou, e, por

conta da água, Natalie escorregou, caindo e batendo as costas. A altura

não era tão grande, mas a dor que ela já sentia havia se multiplicado.

Agora estava no chão, gemendo de dor.

Ainda se arrastando, Natalie foi em direção ao rapaz, mas parou,

quando viu vários demônios ao redor do corpo dele se aproximando

lentamente. Alguns seguravam cápsulas de anjos, os quais haviam sido

mortos na tentativa de salvar Natalie.

— Carsten! — Natalie gritou o nome dele, mas era tarde demais. Os

demônios o pegaram pelo braço, e o garoto não demonstrava resistência,

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pois estava inconsciente. Eles apenas queriam levá-lo. Mesmo que

quisesse ajudar, a única coisa que ela poderia fazer, naquele momento,

era observar a cena e sentir as lágrimas do seu rosto se misturarem à

chuva gelada daquela madrugada.

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A CURA

Um conto do universo Além do Céu e do Inferno

A TRANSIÇÃO pareceu difícil para aquela garota, aliás, garota não,

agora ela já se tornara um anjo, um dos milhares de anjos que pertencem

ao reino do céu. Isso só aconteceu, porque ela aceitou se tornar um

deles. Porém, o que ela não sabia é que aquele era apenas o início de

todas as provações que teria que viver.

O treinamento durou muito tempo, afinal, aprender a conviver com

seu novo dom e, principalmente com suas asas, era um trabalho bem

difícil. Talvez a pior parte tenha sido aprender a entender os humanos, já

que eles eram seres que tinham total liberdade para viver. Muitos deles

nem ao menos imaginavam o que poderia vir após a vida na terra.

Aquele anjo agora sabia. Escolheu ser protetora dos seres que

habitam a imensidão da Terra, um lugar que está repleto de seres bons e

ruins, de criaturas sobrenaturais que os olhos humanos não podem ver.

Um planeta visitado diariamente por demônios caçadores de vida,

alegria, felicidade e, principalmente, caçadores de anjos.

Esse era o lugar que Serah deveria visitar todos os dias da sua vida,

atrás de pessoas que precisassem de ajuda, e sempre atenta em não ser

mais uma vítima dos demônios.

— Parece que você está nervosa Serah, não vejo motivos para isso,

o Chronos nem enviou o seu chamado ainda — dizia um anjo que

conversava com a loira, a respeito de uma espécie de máquina que

informava o destino e a missão a ser seguida na Terra.

Chronos era uma máquina que aparentemente parecia humana, mas

era muito mais que isso. Vinte e quatro horas antes de algo acontecer

com algum humano na Terra, um dos anjos era solicitado, e a missão

que era dada àquele anjo. Não poderia ser substituída ou repassada para

outro anjo. Quem escolhia a missão era um mistério, muitos anjos

acreditavam ser obra de Deus, mas nenhum deles sabia ao certo.

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Acreditavam que os arcanjos saberiam a resposta, entretanto ninguém

perguntava, talvez por falta de coragem, ou apenas era algo com que

eles não se importavam.

Serah era um anjo muito lindo. Assim como todos eles, não possuía

nenhum tipo de imperfeição no corpo. Tinha longos cabelos loiros, olhos

claros e uma aparência tranquila, apesar de estar apreensiva à espera de

o Chronos chamar seu nome.

— Temos que ficar em frente do Chronos o tempo todo? —

perguntou a loira.

— Claro que não, você pode fazer o que quiser, saberá quando ele

chamar por você. Não se preocupe como, você vai saber na hora.

Serah parecia mais tranquila, mas assim que ela resolveu sair de

perto da grande máquina, sentiu suas costas arderem feito fogo. Pelo fino

tecido da sua blusa, era possível ver que grandes tatuagens, em formato

de asas, brilhavam nas suas costas. Talvez aquele fosse o sinal que o

outro anjo dissera que ela deveria seguir na direção do Chronos.

Assim que ela se aproximou daquela grande máquina, não sabia ao

certo o que fazer, então tentou observar os outros anjos que chegavam a

todo instante. Para eles parecia algo muito fácil, pois demoravam poucos

segundos para seguir suas missões. Serah olhou para todos os cantos

tentando encontrar algum botão ou alguma fenda que pudesse receber o

tal pedido, mas nada aconteceu. Foi quando um anjo chegou a seu lado

e disse:

— Feche os olhos e você receberá a sua missão. Somente você

saberá para onde será guiada.

Sem duvidar, ela fechou os olhos diante daquela grande máquina, e

foi exatamente como o anjo falara. Ela sentiu um forte calor dentro do

corpo, e, naquele momento, tudo foi revelado na cabeça do anjo, a

mensagem era clara, sabia exatamente o que tinha que fazer e a quem

visitar.

Serah deveria ir atrás da sua protegida e ficar observando-a durante

as vinte e quatro horas, já que era o prazo que ela tinha para salvar sua

humana do que estava por vir.

Por fim, a garota decidiu partir, seguiu para a grande porta, local de

onde os anjos partiam para Terra. Abriu suas majestosas asas, nas quais

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suas tatuagens se transformaram e desceu até a Terra. O voo foi

tranquilo e, como se esperava, após tantos treinamentos, ela teve uma

aterrisagem perfeita.

Serah não sabia nada da sua protegida, apenas que era uma garota

que se chamava Alana. Serah não tinha recebido sua missão, por

exemplo, não sabia de que a garota deveria ser salva.

O lugar em que ela estava era maravilhoso, rodeado de grandes

árvores, a sua frente um imenso lago cuja água parecia pura e cristalina,

mas como ainda era manhã no mundo dos humanos, uma pequena

neblina o cobria. Um pouco mais distante, Serah pôde ver um pequeno

farol que parecia não funcionar mais e, do outro lado, uma casa.

Sentada na varanda estava uma garota.

Aquela linda garota de cabelos escuros chamou a atenção do anjo,

seu rosto era lindo, mas extremamente triste. Ela usava um vestido

branco curto e uma blusa de frio. Era início da manhã, e o frio matinal

dominava o ambiente.

Serah fora avisada de que saberia a hora exata de ajudar a garota,

era como um sentido extra que seria aguçado previamente.

E assim as horas foram passando. O anjo se aproximou da garota, já

que não poderia ser visto por ela, mas não notou nada de diferente nas

primeiras horas. A garota parecia morar sozinha. Ela não tinha telefone,

computador, nada que a fizesse se comunicar com outras pessoas.

Serah chegou a pensar que ela estaria fugindo de alguém, que seria uma

má pessoa, mas ao mesmo tempo pensou que seria insano se tivesse

recebido a primeira missão do Chronos de proteger uma bandida, ou

assassina.

— O que você esconde garota? — falou consigo mesma, já que não

podia ser ouvida. — Em um lugar tão lindo, de que eu preciso te salvar?

Foi então que Serah viu Alana de joelhos no chão. Ela não poderia

fazer nada a respeito, pois, não estava na hora, e, para ajudar a garota

naquele momento, deveria se mostrar para ela, e isso era expressamente

proibido. O anjo ficou observando e seu desespero aumentou ainda mais,

quando viu Alana cuspindo sangue.

Agora tudo parecia mais claro, Serah precisava salvar Alana de uma

doença, mas sua expressão de dúvida era visível. No longo treinamento

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que teve, Serah aprendeu a lutar contra demônios, a usar suas

habilidades para salvar pessoas de acidentes, entre outras coisas, mas

nunca aprendeu a curar alguém de doença alguma. Ela não sabia o que

fazer. Para ela, aquela já era uma missão perdida, já que não poderia

salvar Alana. O problema é que ela teria que ficar ao lado da garota

durante as vinte e quatro horas, teria que vê-la morrendo aos poucos,

sem poder fazer nada.

Alana se levantou, pegou um pano para limpar o sangue no chão e,

logo depois, foi até seu quarto. Serah, por sua vez, a acompanhou e viu

quando a garota se ajoelhou do lado da cama e, com as mãos juntas

como se fosse começar uma oração, disse:

— Senhor, eu sei que tenho muito pouco tempo de vida, mais traga-o

para mim, não deixe que eu morra sem a presença dele, não deixe que

esse câncer me leve embora, sem que o Tobias esteja a meu lado.

*****

A oração de Alana era clara, ela queria morrer ao lado de alguém,

mas Serah não sabia quem era Tobias. O anjo então deduziu que achar

esse homem poderia ser a sua missão, já que, até aquele momento, era

a única pista que possuía.

Depois de orar, Alana se deitou para repousar e logo pegou no sono.

Serah decidiu andar pela casa e procurar pistas sobre o tal Tobias, mas a

única coisa que encontrou foi uma foto do rapaz. Ele era do tipo comum,

cabelos curtos escuros, olhos castanhos. Na foto, estava abraçando

Alana e, como ambos estavam sentados, ela não conseguiu definir a

estatura do rapaz.

— Só com essa foto eu não vou conseguir encontrar esse cara —

disse para si mesma. — Nunca imaginei que minha primeira missão

pudesse ser tão complicada assim, como encontrar uma pessoa que eu

nem mesma conheço.

O anjo decidiu ir para o lado de fora da casa e teve a ideia de

procurar o rapaz no local, mas preferiu usar o céu como território de

busca. Suas lindas asas se abriram, era a primeira vez que ela as usava

na Terra. A sensação de senti-las sobre a brisa terrestre parecia

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diferente. Serah logo subiu e começou a varredura por toda região,

procurando pelo homem da foto.

— Se ele estiver por aqui vou encontrá-lo. Preciso fazer isso, antes

que seja tarde demais, e minha primeira missão esteja perdida.

O anjo ficou por mais de duas horas procurando pelo homem da foto,

mas aquele local parecia ser tão isolado que encontrar qualquer pessoa

era uma tarefa quase impossível mesmo tentando duramente. Serah

decidiu voltar e ver como Alana estava. Quando se aproximou da casa, o

anjo viu um carro estacionado na frente do portão.

Assim que desceu, o anjo recolheu as asas e correu para dentro da

casa. Em seguida, para o quarto de Alana. Serah viu o homem da foto

sentado na beirada da cama, lágrimas escorriam de seus olhos, ele

segurava firmemente a mão de Alana que parecia dormir profundamente.

— Estou aqui, meu amor, estou a seu lado e não vou sair daqui de

maneira alguma. — Serah era um anjo, foi treinada para controlar todos

seus sentimentos, por isso, naquele momento, não esboçou nenhuma

emoção. — Eu não deveria ter saído daqui, eu tinha que ter ficado aqui.

— Fico feliz que esteja. Com a voz bem fraca, Alana conseguiu

responder a Tobias e, com um pequeno sorriso no rosto, fez o rapaz

abraçá-la.

— Por que Deus deixou que isso acontecesse com você? O que

você fez de mal para as pessoas? — Tobias parecia não se conformar

com a doença de Alana.

Serah observou toda a situação, analisando todos os detalhes. Mas

agora, com Tobias ali, sua cabeça conseguia entender menos ainda qual

era a sua verdadeira missão na Terra. Ela sabia que a partir do Chronos,

teria apenas vinte e quatro horas para analisar tudo e enfim armar seu

plano para ajudar o humano. O único problema é que, para ajudar Alana,

ela teria que saber ao menos por onde começar.

Seus pensamentos foram interrompidos quando Alana novamente

cuspiu sangue no chão do quarto.

— Precisamos levar você para o hospital, amor. — Tobias ameaçou

levantar da cama, mas foi interrompido quando Alana segurou nos seus

braços.

— Eu só preciso ficar com você. — disse a garota.

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— Meu Deus, eu preciso de ajuda, mande um dos seus anjos para

ajudar a minha princesa, por favor, ela pode morrer, eu não posso ficar

sem ela. — naquele momento Alana voltou a dormir.

Seria aquele o sinal de Serah? O anjo que Tobias pediu a Deus

estava ali na sua frente, mas ela não podia ajudá-lo. Se ela aparecesse

naquele momento poderia ser castigada, ou até mesmo perder seu cargo

de anjo. No entanto, se aquele homem pedia a Deus por um anjo, e se

ela estava ali, não havia motivo algum que a fizesse ser castigada, pelo

menos foi o que ela pensou.

— Se eu aparecer para eles, o que eu posso fazer? — se questionou

o anjo. — Eu poderia levá-la para um hospital. Com as minhas asas,

chegaríamos mais rápido, mas o desejo dela é ficar com ele. Se ela

morresse longe dele, eu estaria destruindo isso, até mesmo a vontade

dele. Por outro lado, se eu não fizer nada, ela vai morrer.

Em um ato de desespero, Serah resolveu aparecer para Tobias e, de

alguma forma, tentar ajudá-los. Em seus treinamentos, ela havia

aprendido várias técnicas de cura, mas sabia que nenhuma delas poderia

curar uma doença terminal.

Quando Tobias viu o anjo, sua expressão mudou totalmente, ele

parecia estar espantado, não por ver um anjo a sua frente, até porque

Serah estava com suas asas recolhidas, fazendo com que ela se

parecesse com um humano.

— Você, aqui? — Serah se assustou com as palavras de Tobias. Ele

parecia conhecê-la. — Mas, como é que você pode estar...

— Precisamos ajudá-la, não temos tempo a perder. — disse Serah

interrompendo o rapaz.

— Não, você não pode estar aqui, você está morta, isso não pode

estar acontecendo, você veio para pegá-la, mas ela não tem culpa de

nada, o culpado de tudo sou eu, sai daqui Serah, ela não pode ir, você

não pode tirar ela de mim.

Desesperado, Tobias empurrou Serah violentamente. Ela não reagiu,

pois estava completamente transtornada com as palavras do rapaz.

Sem pensar duas vezes, Serah correu e, do lado de fora, abriu as

asas e decidiu sair de perto da casa. Foi para o meio da mata e ali ficou

por alguns minutos sem dizer absolutamente nada, apenas pensava em

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tudo que havia ouvido. Aquele homem a conhecia, mas ela não se

lembrava do rosto dele, muito menos do motivo pelo qual ele parecia

sentir medo dela.

— Você descumpriu uma regra Serah, deverá voltar imediatamente

para o céu — o silêncio foi interrompido pela voz de um anjo que estava

acompanhado por muitos outros.

— Serah, está na hora de voltar.

— Não, eu não posso voltar, aquele homem me conhecia. Como

algum homem na Terra poderia me conhecer, ainda mais na minha

primeira missão, não posso voltar até descobrir o que está acontecendo.

— Você está desrespeitando uma ordem, anjo?

— Sim, essa missão foi dada para mim com algum propósito, e eu

preciso descobrir qual é esse propósito, principalmente, quando estou

envolvida nela, como poderia voltar para o céu e ficar tranquila, sabendo

que alguém aqui na Terra sabe meu nome e passou por alguma situação

comigo. Ele disse que eu estava morta, por que eu não me lembro de

nada disso?

— Você precisa voltar com a gente, Serah, caso contrário, teremos

que avisar o arcanjo Reik de que se nega a retornar, e será caçada e

morta por desrespeitar uma ordem do céu — o anjo parecia muito sério

nos seus comentários. — Quer saber o que acontece com um anjo que

morre?

— Eu não quero saber nada. Apenas diga ao arcanjo Reik que

mande me matar, mas que espere até que eu descubra a verdade. Não

vou fugir, estarei aqui esperando, mas não sairei daqui até descobrir

tudo.

Imediatamente todos os anjos saíram do lugar através de um portal.

Serah decidiu voltar a casa, mas então percebeu que nem todos haviam

voltado. Um deles que estava com o rosto coberto se aproximou da

garota sem dizer uma palavra, colocou a ponta do seu dedo na testa de

Serah e logo depois desapareceu.

Uma forte dor percorreu a cabeça de Serah. Ela se ajoelhou e, de

repente, imagens começaram a surgir na sua frente. Não eram apenas

imagens, era como se o local em que ela estava se tornasse um grande

holograma. Foi quando uma pessoa em especial chamou a atenção de

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Serah: era Alana. Linda e saudável, ela parecia feliz, seus lindos olhos

brilhantes iam ao encontro de Tobias que chegara de algum lugar.

— Que saudade que eu estava de você. — disse o rapaz, abraçando

Alana e rodopiando com ela.

— Achei que você não fosse mais vir me ver, por que demorou

tanto? — perguntou a moça.

— Eu estava conversando com ela, terminei tudo, mas ela não

aceitou. O problema é que eu não consigo mais levar isso, eu precisava

acabar tudo, precisava ficar com você.

— Às vezes, sinto que isso que estamos fazendo parece ser tão

errado. — disse Alana.

— Não, o que estava errado, era meu envolvimento com ela.

Começou errado, eu nunca a amei, não da forma que eu amo você.

Quando existe um amor de verdade, o coração percebe. Eu estava com

ela, porque minha família queria, mas não porque eu quisesse, é

diferente meu amor.

— E como ela ficou? — perguntou a moça.

— Isso não importa mais meu amor, o que importa é que agora

seremos eu e você, só nós dois.

Serah observou que Tobias pegava alguma coisa no bolso, era seu

celular. Quando o rapaz atendeu, seu rosto logo mudou.

— Ela estava vindo atrás de mim, perdeu o controle do carro e...

— Tobias, o que aconteceu com ela? — perguntou Alana vendo o

desespero do rapaz.

— Ela está morta, Serah está morta, Alana.

*****

A expressão no rosto de Serah era confusa, um misto de raiva e

conflito. Ter as suas memórias de volta de uma hora para outra a fizeram

ficar paralisada, pensativa e, por mais que ela tentasse colocar todas as

ideias na cabeça, era impossível descrever tamanha indignação. Hoje

Serah era um anjo que não se lembrava nada de seu passado até

aquele momento, e agora teria que compartilhar duas vidas em um

mesmo corpo.

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— Tobias, ele era meu namorado? Alana era minha melhor amiga?

— as memórias voltavam na velocidade de uma bala atravessando a

cabeça do anjo. — Mas por que eles fizeram isso comigo? Por que eles

me traíram?

As asas de Serah se abriram novamente e com toda força o anjo

socou o chão, fazendo com que um barulho espantasse os pássaros do

local. Ódio, um sentimento tão humano percorria o corpo de Serah que

não imaginaria sentir algo assim novamente.

— Eu vou acabar com eles, vou destruir a vida dela, ou melhor, vou

deixar que ela morra lentamente assim o sofrimento dele vai durar mais.

Ver um anjo desejando tudo isso, era algo incomum, mas dentro dela

não havia nada além de raiva.

— Reik! — gritou o anjo. — Se eu vou morrer, venha me matar logo,

essa missão acabou, eu não tenho mais nada para fazer aqui.

Suas asas se recolheram em formato de grandes tatuagens nas

costas e, como se tivesse perdido suas forças, Serah caiu e, aos prantos,

ficou ali por mais algumas horas como se fosse uma estátua no meio

daquela floresta.

*****

Tobias tentava fazer alguma coisa para reanimar Alana que não se

movia mais. Seus batimentos estavam bem baixos, ela estava partindo,

fazendo-o ficar desesperado.

— Senhor, porque não me escuta? Manda seu anjo me ajudar, faz

um milagre na vida dela, por favor, eu lhe imploro — em meio a palavras,

lágrimas continuavam a cair no rosto do rapaz.

Distraído, Tobias olhou para porta, e a imagem de Serah voltou a sua

cabeça. Então, como um milagre, ele a viu novamente, porém, dessa

vez, não como uma inimiga que veio tentar tirar a vida de sua amada;

mas sim, um anjo que veio salvá-la.

— Eu não acredito que eu fiz isso. Era ela, Serah, o anjo que eu pedi

a Deus, estava aqui pra me ajudar, e eu a rejeitei. Perdoe-me, Serah, por

favor — Tobias se levantou, segurou a mão de sua amada. — Eu já volto

meu amor, aguente mais um pouco, eu vou voltar com ajuda.

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O rapaz correu para o lado de fora e olhou para todos os lados,

tentando procurar Serah, mesmo sem nenhum vestígio da presença do

anjo. Ele precisava encontrá-la, ainda existia dentro dele um sinal de

esperança.

— Serah! — gritava o rapaz. — Perdoe-me, eu sei que errei, mas eu

preciso da sua ajuda. Serah! — aquele grito ecoou por todos os lados. À

medida que o vento soprava, o som da voz de Tobias se espalhava por

toda floresta como um grande eco até chegar aonde precisava.

Serah que continuava na mesma posição abriu os olhos e as asas,

quando escutou voz de Tobias. Dessa vez, não era a humana que

aguçava os sentimentos; e sim, o anjo.

— Tobias! — Serah voou com suas longas asas brancas, até

encontrar o rapaz que a esperava na frente da casa.

Assim que pousou ao lado do rapaz, os dois se encararam por

alguns segundos que, para Serah, pareciam uma longa eternidade.

Aquele ódio, aquela raiva estavam sendo mortos dentro do corpo do anjo,

e a vontade de fazer o bem sobressaiu.

— Vamos, precisamos ajudá-la. — Serah fechou suas asas e correu

para o quarto de Alana, mas percebeu que a moça estava mais debilitada

do que imaginava.

— Eu não consigo curar a doença dela Tobias, mas posso tentar

recuperar seus batimentos. Você precisa levar a Alana para algum

hospital próximo.

— Se você é mesmo um anjo, você pode curá-la. Deus faz milagres

na vida das pessoas e ele mandou você para fazer esse milagre, você

precisa salvá-la Serah.

— Mas eu não sou Deus — gritou Serah.

— Sou apenas um anjo que nem ao menos sabe qual é a sua

verdadeira missão aqui.

— Você pode curar a Alana, eu sei disso — Tobias continuava

insistindo.

A tatuagem de Serah começou a brilhar, pareciam luzes de neon. Ela

tentava aplicar uma das técnicas de cura que aprendeu nos seus

treinamentos:

— Requi! — disse o anjo em voz baixa.

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O corpo de Alana se movimentou. A habilidade do anjo estava se

manifestando, e logo os batimentos voltaram ao normal.

— Essa técnica de cura a fará ficar viva por mais tempo, mas não

consegue destruir o tumor. Esse tumor foi causado por algo que Alana

guarda dentro dela, algum tipo de culpa e, se ela não se livrar dessa

culpa, eu não poderei ajudá-la. Tenho mais algumas horas aqui até que

meu tempo se encerre, por isso não conseguirei ficar curando-a —

explicou Serah.

— Você não entende, não é? — perguntou Tobias.

— Do que você está falando?

— Por que você resolveu voltar para ajudar Alana? Você não se

lembra de nada?

— Eu me lembro de tudo, de como morri em um acidente vindo atrás

de você — Serah pareceu bem firme em sua resposta.

— Então por que você voltou para ajudar? Não sente raiva de mim e

dela?

— Sim e muito, mas isso foi antes, eu não poderia deixar que essa

raiva me consumisse, eu fiz uma escolha, Tobias, e essa escolha foi

ajudar as pessoas, eu não poderia lidar com esses dois sentimentos ao

mesmo tempo.

— Então você agora entende, não é? — perguntou Tobias, deixando

Serah confusa. — Você entende de onde veio esse tumor. Alana nunca

se perdoou pelo que fez com você, mesmo eu tentando explicar que a

culpa era minha, por permitir que aquele falso amor que vivíamos,

continuasse. Ela nunca conseguiu ficar tranquila, pois, sabia que o

sofrimento causado às nossas famílias e principalmente à sua, pela sua

morte, era parte causado pelo nosso amor.

— Tobias, isso já não tem mais importância agora — disse o anjo.

— É claro que tem importância. Será que você ainda não consegue

enxergar que a cura é você?

Tudo começava a fazer sentido depois das duras palavras de Tobias.

Ficou claro qual era a missão de Serah. Tudo o que aconteceu estava

programado para acontecer, ela tinha feito tudo da forma que precisava

fazer. Aquele anjo trazendo todas as lembranças. Agora tudo estava

claro na cabeça de Serah, a missão dela era curar Alana. Não havia,

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porém, nenhuma habilidade ou remédio que tornasse isso possível, ela

era a cura.

— Serah, perdoe-me — segurando a mão do anjo, com a fraca voz,

Alana fez o pedido que poderia mudar tudo.

Ligada aos sentimentos humanos e ao desejo de salvar sua antiga

amiga e concluir sua missão, Serah olhou para a garota e disse:

— Eu lhe perdoo — Alana sorriu e novamente dormiu. — Perdoo-lhe

também Tobias e desculpe-me por ter sido tão cega e nunca ter

enxergado a verdade.

O anjo se levantou e caminhou até a porta, Tobias a seguiu:

— Os batimentos dela voltaram ao normal. Em algumas horas ela vai

acordar. O tumor desapareceu, creio que conseguimos o milagre que

você pediu a Deus — explicou o anjo caminhando.

— Serah! — Tobias chamou a atenção da moça.

— Obrigado por ser nosso milagre.

Serah sorriu e voou em direção à floresta. Ela estava sentindo uma

sensação estranha, mas era algo bom como se finalmente tivesse

concluído sua missão. Entretanto, agora o anjo precisava encarar seu

castigo. Como prometeu, voltou ao local em que encontrou os anjos e ali

ficou aguardando.

— Bem vinda — Serah foi surpreendida pelo grande arcanjo Reik.

— Reik, estou pronta para receber meu castigo. Eu descumpri a

principal regra de todas, mostrei-me para aqueles humanos.

— Como você está se sentindo Serah?

— Feliz e ao mesmo tempo aliviada.

— Essa felicidade tem a ver com você ter completado a sua missão.

— Não, eu estou feliz porque finalmente tirei um peso das minhas

costas que até então eu não sabia que existia, sinto-me mais leve —

disse o anjo sorrindo.

— Quando você morreu havia muita raiva em seu coração, a mesma

raiva que você sentiu quando Tobias a empurrou. Mesmo escolhendo ser

um anjo e se esquecendo da sua vida humana, o seu interior ainda

precisava ser limpo, e só você poderia fazer isso. — Reik explicava,

enquanto Serah prestava atenção em cada detalhe.

— Assim como todos os outros anjos que guardam mágoas, sua

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primeira missão foi curar isso, mas você mesma deveria descobrir como

fazê-lo. No momento em que você ouviu a voz de Tobias lhe chamando,

o desejo de ajudar se sobressaiu dos demais. E saiba que esse é o maior

desejo do Céu, o desejo de fazer o bem, o desejo de ajudar o próximo.

Ele tem um nome simples, um nome que apenas os humanos de bom

coração conhecem, ele se chama amor.

— Mas eu desrespeitei uma ordem, mereço ser punida.

— Sim, você realmente desrespeitou uma ordem, mas não será

punida, pois você concluiu sua missão inicial com êxito, e apenas duas

pessoas a viram. Já pedi para que outros anjos os fizessem se esquecer

de tudo.

— E agora o que vai acontecer comigo?

— Agora eu tenho uma pergunta para lhe fazer — Reik colocou um

de seus dedos na testa de Serah.

— Você deseja manter essa memória do que aconteceu aqui viva, ou

deseja apagá-la para sempre?

— Eu desejo apagá-la para sempre. Agora eles terão a vida deles e

eu terei a minha, ajudando outras pessoas que precisarem.

— Que assim seja feita a sua vontade — Reik apenas pressionou a

cabeça do anjo, e parecia que Serah havia se esquecido de tudo.

— Parabéns por completar sua missão, anjo, e bem vinda a minha

equipe principal de anjos.

— Muito obrigada.

—- Continue seguindo os desejos do Chronos e esteja preparada,

pois em alguns anos terrestres precisarei de você para uma missão muito

importante.

— Posso saber qual é essa missão?

— Ainda não. Só posso lhe dizer que tem a ver com proteger uma

garota e com o futuro da raça humana na terra.

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DAN VECCHI

Danilo Vecchi é professor, formado em administração de empresas.

Nasceu em Londrina, mas hoje vive na cidade de Londres no Reino

Unido. Sempre muito ligado ao mundo fantasioso dos livros e jogos.

Decidiu exteriorizar em uma obra, o mundo de anjos e demônios

presente em sua mente, graças ao incentivo de alguns alunos, nos

intervalos de suas aulas. Além do Céu e do Inferno é o primeiro livro de

uma saga, e sua estreia literária.