alderi souza de matos panorama da história da igreja

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Panorama da História da Igreja Alderi Souza de Matos Introdução Como o título indica, este é um curso panorâmico sobre a história da igreja cristã. Como tal, ele não visa estudar essa história em profundidade, e sim abordar os contornos mais amplos desse vasto assunto, para que, posteriormente, o aluno possa pesquisar com maiores detalhes quaisquer tópicos específicos do seu interesse. O propósito do curso é familiarizar os participantes com os principais personagens, eventos e movimentos da longa e rica história do cristianismo, no desejo de que esse estudo possa ser ao mesmo tempo uma fonte de informação, desafio e inspiração para a vida cristã. Além desta introdução, o curso constará de dez aulas, sendo três para o período antigo, duas aulas para cada um dos períodos subseqüentes (medieval, Reforma e moderno/contemporâneo) e uma sobre a América Latina e o Brasil. Cada aula será acompanhada de leituras complementares indicadas pelo professor. Além dos testes simples de avaliação para cada aula, haverá quatro provas de múltipla escolha, ou seja, uma para cada semana de aula. A presente aula introdutória consta dos seguintes pontos: 1. O que é história 2. Definições básicas 3. Importância da história da igreja 4. Períodos em que se subdivide a história da igreja 5. Bibliografia básica 1. O que é história O termo "história" vem do grego historía, que significa pesquisa, informação ou narração e já nos tempos antigos era usado para indicar a resenha ou narração dos fatos humanos. Hoje, o termo tem dois aspectos básicos: (1) os próprios fatos, isoladamente ou em conjunto (em alemão, Geschichte) e (2) o conhecimento dos fatos, ou a ciência que disciplina 1

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Panorama da História da Igreja

Alderi Souza de Matos

IntroduçãoComo o título indica, este é um curso panorâmico sobre a história da igreja cristã. Como tal, ele não visa estudar essa história em profundidade, e sim abordar os contornos mais amplos desse vasto assunto, para que, posteriormente, o aluno possa pesquisar com maiores detalhes quaisquer tópicos específicos do seu interesse. O propósito do curso é familiarizar os participantes com os principais personagens, eventos e movimentos da longa e rica história do cristianismo, no desejo de que esse estudo possa ser ao mesmo tempo uma fonte de informação, desafio e inspiração para a vida cristã.

Além desta introdução, o curso constará de dez aulas, sendo três para o período antigo, duas aulas para cada um dos períodos subseqüentes (medieval, Reforma e moderno/contemporâneo) e uma sobre a América Latina e o Brasil. Cada aula será acompanhada de leituras complementares indicadas pelo professor. Além dos testes simples de avaliação para cada aula, haverá quatro provas de múltipla escolha, ou seja, uma para cada semana de aula.

A presente aula introdutória consta dos seguintes pontos:1. O que é história2. Definições básicas3. Importância da história da igreja4. Períodos em que se subdivide a história da igreja5. Bibliografia básica

1. O que é históriaO termo "história" vem do grego historía, que significa pesquisa, informação ou narração e já nos tempos antigos era usado para indicar a resenha ou narração dos fatos humanos. Hoje, o termo tem dois aspectos básicos: (1) os próprios fatos, isoladamente ou em conjunto (em alemão, Geschichte) e (2) o conhecimento dos fatos, ou a ciência que disciplina esse conhecimento (Historie). Para este segundo aspecto, usa-se com freqüência o termo "historiografia."

Outra maneira de encarar o assunto é considerar quatro sentidos em que se pode entender a história (observe que todos começam com a letra "i"):

IncidenteIncidente ou evento é todo e qualquer acontecimento. Por sua própria natureza, todo incidente é absoluto e ocorre somente uma vez. É impossível que se repita exatamente em todos os seus pormenores.

Informação São os elementos que nos fornecem dados sobre o incidente, tais como documentos, objetos ou depoimentos orais.

Investigação  Investigação ou pesquisa é a busca de respostas para as perguntas "o quê", "quem", "quando", "onde" (os dados).

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Interpretação

É a busca dos porquês, do significado dos dados. A atitividade de interpretação é inevitável, porque os incidentes já não são diretamente acessíveis, mas somente através de indícios, de informações indiretas. Toda interpretação é relativa, porque todo intérprete é limitado por um maior ou menor número de condicionamentos. É impossível uma plena objetividade e imparcialidade. No entanto, as contínuas pesquisas vão fazendo surgir certos consensos entre os estudiosos sobre um grande número de fatos e interpretações.

2. Definições História : é o registro interpretado do passado humano socialmente relevante, com

base em dados organizados que são obtidos através do método científico a partir de fontes arqueológicas, literárias ou vivas.

História da igreja : o historiador Earle E. Cairns define a história da igreja como "o relato interpretado da origem, progresso e impacto do cristianismo sobre a sociedade humana, baseado em dados organizados e reunidos pelo método científico a partir de fontes arqueológicas, documentais ou vivas" (O Cristianismo Através dos Séculos, 14).

Observação: As fontes mais comuns da história da igreja são documentais, que podem ser de dois

tipos: primárias e secundárias. Fontes primárias são documentos produzidos pelos próprios personagens e movimentos da história. Por exemplo, a Epístola de Paulo aos Romanos, a Didaquê, o Credo Niceno, as Noventa e Cinco Teses de Lutero. Fontes secundárias são análises posteriores dos estudiosos, como os livros de história da igreja mencionados na bibliografia que está no final desta aula. As fontes primárias não precisam ser antigas; às vezes são bastante recentes, como a declaração conjunta de católicos e luteranos sobre a justificação pela fé, publicada em 1999.

3. Importância da história da igrejaUma questão que se pode levantar é: Por que, afinal, estudar a história da igreja? É isso realmente necessário e prioritário para o cristão? Quais os benefícios que se poderiam auferir desse estudo? 

Uma das razões mais importantes para o estudo da história é o caráter histórico da revelação bíblica e da obra redentora de Deus. Boa parte da Bíblia contém relatos históricos, como o Pentateuco e os chamados livros históricos, desde Josué até Ester. Um dos maiores livros do Novo Testamento, Atos dos Apóstolos, é inteiramente dedicado ao registro de eventos da igreja primitiva. Além disso, a Escritura nos fala de um Deus que, além de ser transcendente, é também imanente, ou seja, comunica-se e relaciona-se com os seres humanos, entrando na história humana e atuando na mesma. Toda a Escritura dá testemunho dessa verdade. O evento máximo dessa manifestação de Deus na história foi a encarnação do Verbo, o Filho de Deus (ver João 1.1,14; Gálatas 4.4; 1 Jo 4.9,10,14).

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Assim, a história da igreja implica em uma determinada filosofia da história. Para os cristãos convictos, a história tem um sentido dado por Deus. Essa história é linear, tendo um princípio e um fim, sob a direção providente e soberana do Senhor da história. O primeiro autor a articular uma filosofia cristã da história foi Agostinho (354-430), em sua magnífica obra A Cidade de Deus (De Civitate Dei). No ano 410, os visigodos saquearam Roma. Os pagãos alegaram que essa tragédia ocorreu porque os romanos haviam abandonado a antiga religião dos deuses e abraçado o cristianismo. A pedido de um amigo, Agostinho dispôs-se a rebater essa acusação e isso resultou na referida obra.

Para ele, a história consiste na interação de duas sociedades antagônicas, a cidade de Deus e a cidade terrena. A primeira consiste de todos os seres humanos e celestiais que estão unidos no seu amor a Deus e buscam somente a sua glória. A cidade terrena é composta dos seres que amam somente a si mesmos e buscam somente a sua própria glória. O curso da história humana dirige-se para a cruz e a partir da cruz. A graça que dela flui opera dentro da igreja cristã, o corpo visível de Cristo. Fortalecidos pela graça divina, os cristãos colocam-se ao lado de Deus no conflito contra o mal, até que a história alcance a sua consumação no retorno de Cristo.

Além desse aspecto bíblico e teológico, a história da igreja tem um valor prático como fonte de informações sobre uma infinidade de assuntos que não encontramos em outros lugares. Todas as mudanças que têm ocorrido na igreja ao longo do tempo nas áreas administrativa, doutrinária, litúrgica e devocional são estudadas na história da igreja, bem como um grande número de instituições, movimentos e subdivisões do cristianismo. A história da igreja nos fala sobre métodos missionários, estilos de pregação, hermenêutica e interpretação bíblica, atitudes para com dinheiro e os bens materiais, prática da beneficência, relações da igreja com o estado e com a sociedade. Ela ajuda-nos a entender como surgiram os grupos cristãos atuais com suas características distintivas.

Finalmente, há também um elemento bastante pessoal. A história da igreja é a nossa história, tem a ver com a nossa identidade (quem somos e de onde viemos), quer no sentido espiritual, quer no sentido cultural, pois o cristianismo foi um poderoso elemento formativo do Ocidente como um todo e da América Latina em particular. Além disso, o estudo da história ajuda-nos a compreender a nossa herança cristã, dá-nos um senso de continuidade com o passado e proporciona edificação e inspiração. Finalmente, é fonte de solenes advertências quanto aos erros de igrejas e cristãos individuais, incentivando-nos à humildade e tolerância.

4. Períodos da história da igrejaPara facilidade de estudo, a história da igreja é dividida em períodos, os quais, por sua vez, estão subdivididos em unidades menores. Essa divisão é relativa, variando de acordo com os critérios de diferentes estudiosos, mas facilita a compreensão de um tema que é tão vasto e complexo. A classificação abaixo é aquela que seguiremos no presente curso:

A Igreja Antiga (30-590 DC = depois de Cristo)

A igreja apostólica (30-100)

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A igreja "católica" (100-313)A igreja imperial (313-590)

A Igreja Medieval (590-1517)

A igreja no início da Idade Média (590-1073)A igreja no apogeu da Idade Média (1073-1294)A igreja na época do Renascimento (1294-1517)

A Reforma Protestante (1517-1648)

A Reforma na Alemanha e SuíçaA Reforma na Inglaterra, Escócia, França e HolandaA Contra-Reforma e a Reforma Católica

A Igreja Moderna e Contemporânea (1648-2000)

Racionalismo e reavivamentos (1648-1789)O grande século das missões (1789-1914)O século XX

  Não poderíamos falar da história da igreja sem abordar de maneira especial o nosso continente e o nosso país. Assim, concluiremos este curso com alguns dados básicos sobre a história do cristianismo na América Latina e no Brasil.

5. BibliografiaComo fontes para estudos e pesquisas complementares, sugerimos as seguintes obras em português.

Bettenson, Henry, Documentos da Igreja Cristã (São Paulo: ASTE, 1967); 3ª ed. revista, corrigida e atualizada (São Paulo: ASTE/Simpósio, 1998). Uma ótima coletânea de fontes primárias dos diferentes períodos da história da igreja.

Cairns, Earle E., O Cristianismo através dos Séculos: Uma História da Igreja Cristã (São Paulo: Vida Nova, 1988). Uma das melhores histórias da igreja em um só volume disponíveis em português.

Dowley, Tim, ed., Atlas Vida Nova da Bíblia e da História do Cristianismo (São Paulo: Vida Nova, 1997). Belíssima edição em cores, com excepcional qualidade gráfica. Útil também para o estudo da história bíblica (Velho e Novo Testamentos).

González, Justo L., Uma História Ilustrada do Cristianismo, 10 vols. (São Paulo: Vida Nova). Os dois volumes da edição em inglês foram transformados em dez pequenos volumes na edição portuguesa. Agradável de ler.

Neill, Stephen, História das Missões (São Paulo: Vida Nova, 1989). Uma das melhores abordagens de um aspecto específico da história da igreja. O autor foi missionário na Índia e na África.

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Nichols, R. H., História da Igreja Cristã, 5ª ed. rev. (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1981). Obra mais modesta que as anteriores, mas ótima para quem está começando a estudar a história da igreja. O autor é presbiteriano.

Tucker, Ruth A., "... Até aos Confins da Terra": Uma História Biográfica das Missões Cristãs, 2ª ed. (São Paulo: Vida Nova, 1996). Contém biografias de missionários destacados que trabalharam nas mais diferentes regiões do globo. Inclui um capítulo especial sobre o Brasil.

Walker, W., História da Igreja Cristã, 2 vols. (São Paulo: ASTE, 1967). Obra excelente, mas um tanto desatualizada. A edição mais recente em inglês, revista por três outros autores (Norris, Lotz e Handy) e lançada em 1985, ainda não foi publicada em português.

Williams, Terri, Cronologia da História Eclesiástica em Gráficos e Mapas (São Paulo: Vida Nova, 1993). Os ótimos gráficos permitem visualizar facilmente alguns dos temas mais importantes da história da igreja.

Christian History – periódico trimestral em inglês publicado por Christianity Today (Carol Stream, Illinois). Publicação dirigida primordialmente a leigos, contendo ilustrações e gráficos bastante úteis. Os artigos são escritos por autoridades reconhecidas. Cada número é dedicado a um personagem ou movimento específico (o último número trata de Agostinho). Para maiores informações, visite www.christianhistory.net.

Essa é apenas uma pequena amostragem do grande número de obras disponíveis em nosso idioma, para não mencionarmos outras línguas, como o inglês e o espanhol, onde a variedade é muito maior. No decurso das aulas, forneceremos outras indicações bibliográficas sobre temas ou períodos específicos.

Implicações PráticasComo se viu acima, o estudo da história da igreja pode ser altamente benéfico para o cristão, dando-lhe em primeiro lugar uma melhor compreensão da atuação de Deus na vida do mundo. A história não é um conjunto de acontecimentos aleatórios, sem rumo, mas revela, por trás de eventos muitas vezes confusos e aparentemente desconexos, o propósito providencial de Deus.

Além disso, o conhecimento da história auxilia os cristãos e as igrejas a terem maior consciência de sua identidade e da sua missão no mundo. Seja como fonte de inspiração ou de advertência, o conhecimento da caminhada da igreja na terra permite que os cristãos definam melhor as suas prioridades e estejam alerta contra erros e tentações já enfrentados no passado.

O Período Apostólico (Primeiro Século)

A. Contexto: O Mundo em que Surgiu a Igreja

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O cristianismo não surgiu em um vácuo, e sim em um contexto histórico e social específico. É importante conhecer o ambiente em que surgiu o cristianismo, ambiente esse que influenciou a igreja e também foi eventualmente influenciado por ela. Esse ambiente era definido por três grandes culturas ou civilizações.

(1) Os gregos:No quarto século antes de Cristo, Alexandre, o Grande (356-323 AC) conquistou um vasto império que ia desde os Balcãs até a Índia. Essas conquistas promoveram uma ampla difusão da língua e cultura gregas (helenização) em toda a região oriental do Mar Mediterrâneo, no Oriente Médio e no Egito. Quando Alexandre morreu aos 33 anos, o seu império foi dividido entre os seus generais, dois dos quais ficaram com as terras bíblicas. A Síria coube a Seleuco e seus descendentes (os selêucidas) e o Egito a Ptolomeu. A Palestina sofreu fortemente as influências helenizantes dessas duas dinastias. Especialmente influenciados foram os judeus que viviam fora da Palestina, na Diáspora (= dispersão), especialmente no Egito. Muitos deles, falando apenas o grego, não mais podiam ler as suas Escrituras na língua original. Com isso, o Velho Testamento precisou ser traduzido para o grego, tradução essa que recebeu o nome de Septuaginta (LXX). Essa foi a Bíblia dos primeiros cristãos. Como uma versão popular do grego, o koiné (= comum), era a língua mais falada em torno do Mediterrâneo, o Novo Testamento eventualmente foi todo escrito nesse idioma.

Além da contribuição linguística, os gregos também legaram ao mundo antigo a sua riquíssima reflexão filosófica e toda uma cosmovisão (maneira de ver o mundo e a vida) gerada por essa reflexão. Algumas das principais correntes filosóficas foram as de Platão, Aristóteles, dos estóicos e dos epicureus. Vários conceitos dessas escolas eram bastante difundidos quando surgiu o cristianismo. Por exemplo, o contraste entre a verdadeira realidade (o mundo das idéias ou das coisas espirituais) e o mundo material das sombras (um pálido reflexo das realidades eternas). Outro conceito muito difundido era o de que, assim como o corpo tem uma alma, também o mundo é governado e mantido coeso por uma alma racional, o Logos, do qual cada alma humana é uma centelha. Encontramos referências a esses movimentos e a esse vocabulário em algumas passagens do Novo Testamento como João 1:1,14; Atos 17:18; Fp 4.11,13; Hebreus 8:5; 10:1. A filosofia solapou a crença nas velhas religiões, mas não ofereceu uma alternativa satisfatória para as necessidades espirituais das pessoas.

(2) Os romanos:Se a contribuição dos gregos foi nas áreas linguística, cultural e filosófica, os romanos deram notável contribuição ao mundo em que surgiu o cristianismo nos aspectos político, jurídico e administrativo. O Império Romano emergiu um pouco antes da era cristã, quando Otaviano foi aclamado como César Augusto, tornando-se o primeiro imperador dos romanos (27 AC-14 DC). Os romanos, com seu vasto império, abrangendo muitos povos e culturas, imprimiram no mundo antigo o conceito de uma unidade que transcendia a diversidade. Nesse aspecto, havia um interessante paralelo com a igreja cristã, que sendo uma só, era composta de uma grande variedade de pessoas. Através da sua legislação avançada, de seu exército e de suas instituições, os romanos criaram um ambiente de ordem e segurança como nunca se vira nas terras em torno do Mediterrâneo. A "pax romana"

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permitiu que as viagens, tanto marítimas como terrestres, se tornassem mais rápidas e seguras, o que certamente veio a facilitar a difusão do cristianismo.

No aspecto religioso, o Império Romano era caracterizado por uma grande diversidade de opções. Havia em primeiro lugar a religião tradicional e familiar dos deuses greco-romanos. Além disso, estavam florescendo no primeiro século as chamadas "religiões de mistério", que comunicavam suas verdades mais profundas somente aos iniciados (cultos esotéricos). As principais eram a religião de Cibele (vinda da Ásia Menor), de Ísis e Osíris (do Egito) e de Mitra (da Pérsia). O mitraísmo tornou-se especialmente popular no exército romano. Finalmente, havia o culto imperial ou estatal de Roma, com freqüência voltado para a própria pessoa do imperador, culto esse que tinha um elemento fortemente político, como símbolo da unidade do império e da lealdade ao mesmo. A recusa obstinada em participar desse culto traria sérias conseqüências para os cristãos.

(3) Os judeus:Sem dúvida, a principal matriz do cristianismo foi o judaísmo, em cujo seio nasceu. Na época de Cristo, a Palestina estava sob dominação romana. No segundo século antes de Cristo, as atitudes despóticas de um rei selêucida, Antíoco Epifânio, haviam provocado a revolta dos macabeus (167 AC). Então, por cerca de um século os judeus gozaram de independência política, até que, no ano 63 AC, os exércitos romanos, sob o comando do general Pompeu, conquistaram a Palestina. Por conveniências políticas, os romanos permitiram que a região fosse governada por reis vassalos, não-judeus, os Herodes.

O judaísmo era caracterizado pela existência de várias correntes. Havia os saduceus, que controlavam o templo e eram colaboradores dos romanos. Os líderes religiosos mais identificados com o povo eram os fariseus e os escribas, caracterizados pela mais estrita obediência à lei. Havia também grupos menores, periféricos e radicais, como os zelotes e os essênios (da comunidade de Qumran, junto ao Mar Morto). Sobre alguns desses grupos, ver Mc 12.18; At 23.7-8. O judaísmo caracterizava-se pela centralidade do templo e da lei, pelo rígido monoteísmo e por uma forte esperança escatológica. Na Diáspora, onde era lida a Septuaginta (o VT em grego), muitos gentios se aproximaram do judaísmo, sendo conhecidos como "prosélitos" (convertidos plenos) e "tementes a Deus" (simpatizantes). Muitos deles eventualmente abraçaram o cristianismo, como vemos em Atos dos Apóstolos.

O cristianismo, como um movimento surgido no seio do judaísmo, recebeu muitas coisas importantes do mesmo. Em primeiro lugar, seus primeiros seguidores, todos eles judeus. Depois, as Escrituras Hebraicas, a fé monoteísta, os elevados preceitos éticos. Finalmente, o culto cristão e o sistema de administração da igreja também foram inspirados pelas práticas judaicas, especialmente através da notável instituição que era a sinagoga.

B. Jesus e o Surgimento da IgrejaNão vamos entrar em muitos detalhes nesse aspecto, em parte por causa da limitação do nosso tempo, e em parte porque se trata de um tema familiar para os que conhecem o Novo Testamento. Além disso, esse tópico é estudado em outras matérias, como introdução bíblica. Para maiores informações, o aluno pode consultar a obra de Robert H. Gundry, Panorama do Novo Testamento (Edições Vida Nova) e outras obras congêneres.

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Obviamente, os nossos pressupostos religiosos afetam profundamente a maneira como encaramos a pessoa de Jesus Cristo. Muitos historiadores o vêem meramente como um judeu carismático e perspicaz que questionou o status quo, acabou sendo morto por causa disso e mais tarde foi divinizado pelos seus seguidores. Para nós, os cristãos, ele é o próprio Filho de Deus, que veio ao mundo enviado pelo Pai com o propósito expresso de reconciliar os seres humanos com Deus. Os evangelhos nos falam das circunstâncias do seu nascimento e pouco dizem sobre a sua infância e mocidade. O enfoque principal está sobre o seu ministério de três anos, iniciado quando ele estava com trinta anos de idade (Lucas 3.23).

Seu trabalho foi tríplice: proclamar o reino de Deus, ensinar (nas sinagogas e outros lugares) e curar os enfermos e aflitos. O reino por ele anunciado tinha como ponto central a sua própria pessoa e ensino, e, em particular, a sua morte e ressurreição. Ele reuniu em torno de si um grupo de seguidores e especialmente doze homens aos quais treinou e enviou a pregar, designando-os como continuadores da sua missão (João 20.21). Ele deixou aos seus seguidores os seus ricos ensinos e apenas duas ordenanças: o batismo com água para simbolizar a purificação dos pecados e uma refeição de pão e vinho representando o seu corpo e o seu sangue, ou seja, o seu sacrifício. Ele não deixou nenhuma organização básica, sistema doutrinário bem definido ou livros sagrados.

Após a sua morte e ressurreição, os seus seguidores foram revestidos com o Espírito Santo e comissionados a pregar as boas novas de Cristo e sua salvação até os confins da terra (Atos 1.8). Por ocasião do Pentecostes, a comunidade inicial em Jerusalém era composta de 120 pessoas (Atos 1.15). Logo, através da pregação de Pedro e dos demais apóstolos, esse número cresceu dramaticamente, não somente naquela cidade, mas em outras partes da Palestina. Essa pregação acabou resultando em duas dificuldades. Primeiro, a oposição das autoridades judaicas, na forma das primeiras perseguições. Segundo, o problema mais explosivo do que fazer em relação aos gentios que estavam aceitando a nova mensagem. Seria preciso que eles cumprissem a lei mosaica além de crerem em Cristo? Seria preciso que primeiro se tornassem judeus para depois se tornarem cristãos? O relato da conversão de Cornélio mostra como era forte a resistência dos judeus à recepção de gentios na igreja (Atos 10).

Esse problema foi tratado e resolvido satisfatoriamente no assim chamado Concílio de Jerusalém, descrito em Atos 15. Bastava que os gentios crêssem no Senhor Jesus; ao mesmo tempo, deviam evitar certas práticas com o objetivo de terem comunhão com os seus irmãos judeus, que tinham escrúpulos quanto a questões alimentares e outras. Essa decisão abriu as portas para que o cristianismo deixasse de ser uma simples seita judaica e se tornasse um movimento mais abrangente, aberto a pessoas de todas as raças e culturas. A igreja primitiva destacava-se pela igualdade entre os seus membros, um código de ética baseado no amor, serviço mútuo, principalmente aos necessitados, e a pregação incessante da morte redentora e da ressurreição de Cristo.

Por cerca de quinze anos, a igreja de Jerusalém ocupou a liderança do novo movimento. Posteriormente, a comunidade de Antioquia da Síria passou a exercer esse papel. Em Antioquia, pela primeira vez o evangelho foi pregado deliberadamente aos gentios e os

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discípulos também pela vez primeira foram chamados de "cristãos". Essa cidade tornou-se o centro de um poderoso esforço missionário transcultural que levou a mensagem cristã a muitas regiões importantes do Império Romano. Um personagem central desse esforço foi um judeu chamado Saulo.

C. A Contribuição de PauloO apóstolo Paulo foi o vulto mais influente dos primeiros tempos da igreja. Convertido no famoso episódio da estrada de Damasco (Atos 9.1-19), ele passou de perseguidor da igreja a ardoroso pregador do evangelho. Um testemunho da sua importância é o fato de que metade dos livros do Novo Testamento estão diretamente ligados a ele. Atos dos Apóstolos tem-no como principal protagonista. Quase dois-terços do livro dedicam-se a descrever detalhadamente as suas viagens missionárias, através das quais ele plantou igrejas em vários centros estratégicos da Ásia Menor (Antioquia da Pisídia, Galácia, Éfeso) e da península grega (Filipos, Tessalônica, Corinto). Mais do que qualquer outro, Paulo contribuiu para imprimir sobre a igreja a consciência do caráter universal da fé cristã.

Outra notável contribuição de Paulo foi literária e teológica. No sentido de orientar, advertir e incentivar as igrejas que resultaram do seu ministério, ele escreveu muitas epístolas, várias das quais foram preservadas e incluídas no Novo Testamento. Outras quatro cartas também preservadas foram enviadas a colaboradores seus (Timóteo, Tito e Filemom). Finalmente, Paulo escreveu uma extraordinária carta a uma igreja fundada por outros cristãos, em Roma. Como o apóstolo queria apresentar-se a essa igreja que não conhecia, para que ela o encaminhasse a outros pontos do Império Romano (Romanos 15.22-24), ele sentiu a necessidade de expor mais plenamente as suas convicções e o evangelho que pregava. O resultado foi um documento de grande complexidade e beleza que revelou outro aspecto da contribuição de Paulo: sua profunda e criativa reflexão teológica sobre a realidade de Cristo e suas implicações para o crente, para a igreja e para a sociedade.

Finalmente, Paulo destacou-se como polemista, lutando pela integridade da doutrina cristã, especialmente quanto à pessoa e obra de Cristo. Nesse esforço, ele enfrentou uma longa luta contra os judaizantes, os cristãos hebreus ainda fortemente ligados à lei e às tradições judaicas, especialmente no que diz respeito à circuncisão (ver Gálatas 1.6-9; 2.3; 4.9-11). Paulo também voltou-se, pelo menos em uma de suas cartas (Colossenses), contra uma heresia sincrética de tipo gnóstico que aparentemente considerava Cristo como parte de uma hierarquia de seres celestiais e apelava tanto para costumes judaicos quanto para práticas ascéticas e um conhecimento especial.

D. A Experiência da PerseguiçãoNo decurso do seu trabalho, Paulo defrontou-se de maneira crescente com a realidade da oposição contra o cristianismo. As primeiras manifestações de intolerância contra os cristãos haviam ocorrido ainda na Palestina, por parte do Sinédrio e dos Herodes. Entre os primeiros mártires contavam-se Estêvão e Tiago, o irmão de João (ver Atos 7.58-59 e 12.1-2). Posteriormente, à medida que a fé cristã se difundia pelo Império Romano, os discípulos continuaram a sofrer a oposição dos judeus e também agora da parte de gentios, cujos deuses eram negados pelos cristãos. Mas a primeira perseguição "oficial" romana contra os cristãos só veio a ocorrer no reinado de Nero, por volta do ano 64. Essa perseguição teve conexão com um grande incêndio que destruiu boa parte da cidade de Roma. Sob a suspeita

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de haver ordenado o incêndio, Nero culpou os cristãos da cidade e os maltratou cruelmente, conforme a interessante descrição de Tácito, um autor daquela época.

Ainda no primeiro século (c. 95), outro imperador, Domiciano, perseguiu os cristãos da Ásia Menor, diante de sua recusa de participar do culto imperial. Essa perseguição é o pano de fundo do exílio de João na ilha de Patmos e do livro do Apocalipse. Nos séculos seguintes, a igreja haveria de sofrer ataques muito maiores, aos quais voltaremos nas próximas aulas. Essa experiência gerou entre os primeiros cristãos uma verdadeira glorificação do martírio como uma experiência altamente desejável e honrosa para um seguidor de Cristo.

E. O Fim da Era ApostólicaA década de 60 foi especialmente importante para a igreja primitiva. Nessa década, morreram os últimos dos apóstolos originais de Cristo, à exceção de João. Segundo a tradição praticamente unânime da igreja antiga foi nessa época que morreram martirizados os dois apóstolos mais destacados, Pedro e Paulo. Essas mortes teriam ocorrido no contexto da perseguição promovida por Nero, na cidade de Roma.

Outro evento de grande magnitude foi o declínio do cristianismo judaico em virtude do cerco e eventual destruição de Jerusalém. Quando o cerco começou, no ano 66, os cristãos hebreus fugiram da cidade e foram para Pela, no outro lado do rio Jordão. Ali, com o passar dos anos, esses judeus-cristãos, separados do restante da igreja, desenvolveram características peculiares, vindo mais tarde a desaparecer nas brumas do tempo. Conhecidos como "ebionitas", eles articularam uma posição teológica acerca de Cristo conhecida como adocionismo. Jesus teria sido um mero homem que foi adotado por Deus como filho por ocasião do seu batismo. Essa posição seria mais tarde defendida por outras pessoas no cristianismo antigo.

A destruição de Jerusalém contribuiu decisivamente para a emancipação definitiva da igreja em relação ao judaísmo. Nas primeiras décadas, muitas pessoas ainda podiam pensar que os cristãos eram um grupo ou seita dentro do judaísmo. Essa identificação às vezes ajudava e às vezes prejudicava os cristãos. Após a revolta dos judeus e a conseqüente punição dos romanos, ficou cada vez mais claro que o judaísmo e o cristianismo eram religiões bastante distintas.

No final do primeiro século, o cristianismo havia se difundido amplamente em muitas regiões do Oriente Médio e da Europa e estava se preparando para a sua grande conquista poucos séculos depois: o Império Romano. As igrejas ainda reuniam-se em residências particulares e salões públicos; só mais tarde seriam construídos os primeiros templos. Havia dois tipos de líderes: aqueles que possuíam certos dons, como os profetas e mestres, e líderes mais formais, eleitos pelas comunidades, como os presbíteros ou bispos (Atos 20.17,28; Tito 1.5,7) e os diáconos.

Havia dois tipos de cultos aos domingos: um culto matutino centrado na pregação da Palavra e um culto vespertino com ênfase sacramental. Em conexão com o mesmo, os cristãos realizavam uma ceia comunitária denominada "agape" (=festa do amor), na qual era celebrada a Ceia do Senhor. No final do século o agape caiu em desuso e a Santa Ceia

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passou a ser celebrada no culto matutino. Os primeiros cristãos causaram grande impacto na sociedade greco-romana em virtude de seu amor mútuo, coragem e elevados padrões éticos. Eles separavam-se firmemente das práticas pagãs (idolatria, imoralidade), mas ao mesmo tempo insistiam em ter uma participação construtiva na sociedade, esforçando-se por cumprir os seus deveres cívicos e ser bons cidadãos.

F. Cronologia Básica

Ano Evento

30 Morte, ressurreição e ascensão de Jesus

30-44 Liderança da igreja de Jerusalém

35 Conversão de Saulo

41-54 Reinado de Cláudio

44-64 Liderança da igreja de Antioquia

46-48 Primeira viagem missionária de Paulo

49 Concílio de Jesuralém

50-52 Segunda viagem missionária

51 Judeus (e cristãos) expulsos de Roma (Atos 18:2)

53-57 Terceira viagem missionária

54-68 Reinado do Nero

59-62 Prisão de Paulo em Roma

64 Incêndio de Roma (martírio de Paulo e Pedro?)

66 Revolta judaica; cristãos de Jerusalém fogem para Pela

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70 Destruição de Jerusalém e do templo

81-96 Reinado de Domiciano

90-95 João em Patmos, Apocalipse

95 Epístola de Clemente aos coríntios

Implicação PráticaO cristianismo surgiu de maneira extremamente modesta, mas tinha dentro de si um grande potencial para a transformação do mundo. Esse potencial resultava da sua origem divina e do caráter do seu fundador. Não devemos desprezar "o dia dos humildes começos" (Zc 4.10), porque é assim que com muita freqüência Deus escolhe agir.

O cristianismo permanece de pé ou cai dependendo das convicções que temos sobre os seus fundamentos. Para os cristãos conscientes, estes fundamentos são o eterno propósito de Deus Pai, a obra redentora do Filho e o direção do Espírito Santo. Crendo nessas verdades, os primeiros cristãos impactaram o seu mundo. Nós somos chamados a fazer o mesmo na nossa geração.

 A Igreja “Católica” (100-313)

IntroduçãoA igreja cristã experimentou importantes mudanças nas últimas décadas do primeiro século. Essas mudanças foram tanto de caráter teológico quanto institucional. Um dado significativo é que temos poucas informações sobre esse período (anos 70 a 95). Nenhum documento importante dessa época chegou até nós. Quando os documentos reaparecem, a partir do ano 95 (ano aproximado da perseguição de Domiciano), nos deparamos com uma igreja mais organizada e centralizada administrativamente, bem como com ênfases teológicas um tanto diferentes daquelas do Novo Testamento. São os primórdios do surgimento da igreja “católica.” O chamado “velho catolicismo” é uma referência à igreja pré-constantiniana, ou seja, anterior ao imperador Constantino (ano 313), cujas ações decisivas analisaremos na próxima aula.

A. A Igreja “Católica”No segundo século, diante de crescentes problemas internos (diversidade teológica, heresias) e desafios externos (acusações, perseguições), a igreja sentiu a necessidade de definir mais claramente a sua identidade institucional e teológica. O objetivo visado era a obtenção de maior unidade estrutural e uniformidade doutrinária. Desse processo resultou a igreja “católica”.  

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A expressão “igreja católica” é encontrada pela primeira vez numa carta escrita pelo bispo Inácio de Antioquia à Igreja de Esmirna, por volta do ano 110. A palavra vem do grego katholikos e significa geral, universal (de kata = “de acordo com” + holos = “o todo”). A partir do segundo século, a expressão foi utilizada para designar a igreja verdadeira, apostólica e ortodoxa, em oposição aos movimentos dissidentes, aos grupos heterodoxos ou heréticos.

A igreja católica caracterizava-se pelos seguintes elementos de unidade e identidade:

>     O bispo monárquico: ao contrário do primeiro século, em que cada igreja tinha vários bispos ou presbíteros, agora cada igreja passou a ter um só bispo, com autoridade sobre os presbíteros e os diáconos. Para isso, deu-se ênfase à idéia de sucessão apostólica. Os bispos tornaram-se os guardiães da unidade e ortodoxia da igreja. O crescimento da importância dos bispos eventualmente deu grande destaque aos bispos das cidades mais importantes, especialmente o de Roma. >   A regra de fé: as verdades fundamentais da fé cristã passaram a ser claramente expressas na forma de credos “trinitários”. Essas declarações de fé tinham fins didáticos/catequéticos, confessionais/litúrgicos e apologéticos. Encontramos alguns exemplos antigos dessa regra de fé nos escritos de Irineu (ver adiante). À medida que o tempo passou, os credos foram ficando mais extensos e complexos, até chegarmos aos séculos IV e V com suas sofisticadas formulações credais. >    O cânon do Novo Testamento: a formação do cânon consistiu na definição da literatura cristã tida como divinamente inspirada e, portanto, normativa para a vida e a fé da igreja. Inicialmente foram reunidos os quatro evangelhos e as epístolas paulinas, o livro de Atos dos Apóstolos servindo como ligação entre ambas as coleções. Por último, foram acrescentadas as epístolas gerais (Hebreus a Judas) e o Apocalipse. Os critérios de inclusão no cânon foram os da apostolicidade, ortodoxia e aceitação geral. Alguns livros levaram mais tempo para ser aceitos do que outros.

B. Os Pais ApostólicosO final do primeiro século e o início do segundo marcam também o início da era dos pais da igreja. Trata-se dos antigos autores cristãos que com seus escritos instruíram as igrejas, articularam a doutrina cristã e combateram desvios teológicos do seu tempo. Eles podem ser entendidos como os campeões ortodoxos da igreja e os expositores da sua fé. O estudo dos pais da igreja geralmente é designado por dois termos correlatos: patrística e patrologia. A patrística refere-se ao estudo do pensamento dos pais, da sua teologia, e a patrologia é o estudo histórico dos próprios personagens e da sua obra. 

O conjunto dos primeiros escritos cristãos posteriores ao Novo Testamento é conhecido pelo nome de “pais apostólicos.” Eles são designados de “apostólicos” porque surgiram pouco depois dos apóstolos e revelam uma certa conexão com eles. É importante observar que a expressão “pais apostólicos” não designa somente indivíduos, mas também documentos anônimos. O período aproximado em que foram produzidos vai de 95 a 150 DC.Os pais apostólicos não contêm nenhuma teologia elaborada. São antes declarações simples

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e piedosas das verdades fundamentais da fé, ditadas principalmente por um interesse pastoral. As principais características desses autores e documentos são as seguintes:

NOS DOCUMENTOS DOS PAIS APOSTÓLICOS HAVIAAusência de elaborações filosóficas.

Grande reverência pelo Antigo Testamento.

Interpretação tipológica (e alegórica) das Escrituras.

Familiaridade com as formas literárias do Novo Testamento.

Preocupação pastoral e prática: exortação à paz, unidade e pureza da igreja; ênfase ao episcopado; celebração do martírio.

A maior parte dos pais apostólicos é constituída de literatura epistolar, ou seja, cartas. Dois deles correspondem a outros gêneros, um à literatura apocalíptica e outro à literatura catequética. A relação completa é a seguinte: >  Clemente de Roma (c. 30-100), um dos bispos da igreja de Roma, escreveu em nome da

sua igreja à igreja co-irmã de Corinto, exortando os crentes a serem submissos aos seus presbíteros. Essa epístola, conhecida como I Clemente, foi escrita por volta do ano 95.

>  Inácio, o bispo de Antioquia da Síria, foi condenado à morte por volta do ano 110 e levado a Roma para ser executado. Durante a viagem, escreveu cartas às igrejas de Eféso, Magnésia, Trales, Roma, Filadélfia, Esmirna e a seu colega Policarpo. Preocupações dominantes: o martírio iminente do autor, a unidade da igreja e os movimentos heréticos e cismáticos.

>  Policarpo (c. 70-155), bispo de Esmirna, escreveu uma carta aos filipenses por volta de 110, contendo exortações práticas. Policarpo foi martirizado no reinado do imperador Antonino Pio.

>  Papias (c. 60-c.130), bispo de Hierápolis, na Frígia, escreveu “Interpretações dos Ditos do Senhor”, sobre a vida e as palavras de Cristo. Essa obra só é conhecida através de trechos preservados por Irineu de Lião e Eusébio de Cesaréia.

>  Epístola de Barnabé (c. 130): escrita por um cristão anônimo de Alexandria, afirma a suficiência de Cristo em relação à lei de Moisés; utiliza amplamente tipologia e alegoria.

>  O Pastor, de Hermas (c. 150): baseado no Apocalipse, tem um objetivo moral e prático, dando ênfase ao arrependimento e a uma vida de santidade.

>  II Epístola de Clemente aos coríntios (c. 150): não foi escrita por Clemente, nem é uma carta, e sim um sermão ou homilia do segundo século.

>  Didaquê ou O Ensino dos Doze Apóstolos (2° séc.): é um manual de instrução para a igreja, abordando ensinos éticos, normas litúrgicas, os oficiais da igreja e questões disciplinares. É muito útil para o estudo da igreja sub-apostólica.

>  Epístola a Diogneto (c. 200): foi escrita por um autor anônimo a um destinatário desconhecido (tutor de Marco Aurélio?). Tem caráter apologético (=defesa racional do cristianismo) e às vezes é incluída entre os pais apologistas (ver adiante).

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Os alunos que desejarem ler na íntegra, em português, esses importantes escritos, poderão encontrá-los na Coleção Patrística (São Paulo: Paulus Editora), vols. 1 e 2.

C. Desafios EnfrentadosComo já foi apontado, a igreja desde cedo defrontou-se com formidáveis desafios, tanto dentro de suas fileiras quanto fora das mesmas.  1.   Desafios internos: os principais desafios internos do segundo e terceiro séculos foram

algumas interpretações da fé cristã consideradas heterodoxas pelo grupo majoritário. As principais foram as seguintes:

      >Docetismo: era o entendimento de que Jesus Cristo não havia de fato assumido uma

natureza humana, corpórea. Antes, ele tinha apenas uma aparência de humanidade (daí, docetismo, do grego dokéo = parecer), sendo uma espécie de fantasma ou aparição. Essa posição já é condenada nas epístolas joaninas (ver 1 João 4.2; 2 João 7). As cartas de Inácio de Antioquia contêm muitas condenações do docetismo.

      >Gnosticismo: foi uma filosofia religiosa de natureza altamente especulativa que surgiu no primeiro século, mas tornou-se uma grande ameaça para o cristianismo majoritário a partir de meados do século II (c. 130-160). Partindo de uma concepção dualista acerca do mundo (espírito x matéria), propôs uma reinterpretação radical da fé cristã, negando doutrinas como a criação, a encarnação e a ressurreição. A salvação vinha através do conhecimento (gnosis) acerca da verdadeira origem e destino da alma. Esse conhecimento mais profundo era transmitido somente aos iniciados. Havia várias modalidades de gnosticismo (sírio, egípcio, judaizante).

      >Marcionismo: Márcion foi um cristão do Ponto, na Ásia Menor, que chegou a Roma

por volta do ano 144. Partilhando da cosmovisão gnóstica, ele propôs uma descontinuidade radical entre a velha e a nova dispensação (o cristianismo não tinha nada em comum com o judaísmo, sendo uma religião inteiramente nova). Assim sendo, ele rejeitou por completo o Velho Testamento e o seu Deus, Jeová, tido como uma divindade inferior, o criador da matéria. Em contraste com Jeová (um ser justiceiro e vingativo), o Deus verdadeiro, o Pai de Jesus Cristo, é um Deus plenamente amoroso e perdoador, que não condena ninguém. Portanto, no fim todos irão se salvar. Márcion foi o primeiro indivíduo na história da igreja a elaborar uma lista de escritos cristãos normativos. O seu cânon continha apenas o evangelho de Lucas e as cartas de Paulo às igrejas (sem as pastorais), tendo excluídas as suas referências ao Velho Testamento. O cânon marcionita forçou a igreja a elaborar a sua própria lista de livro autorizados, ou seja, o Novo Testamento.

      >Montanismo: esse antigo movimento de natureza entusiástica ou carismática,

autodenominado “nova profecia”, surgiu na Frígia, Ásia Menor, na década de 170. Foi iniciado por um cristão chamado Montano, que era acompanhado de duas profetizas, Priscila e Maximila. Montano considerava-se o instrumento especial do Paracleto (o Espírito Santo) e anunciou o iminente fim do mundo e a descida da Nova Jerusalém em sua região, a Frígia. O montanismo foi um protesto contra o crescente mundanismo da

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igreja e, devido a seus rigorosos padrões morais, atraiu a simpatia do grande intelectual cristão Tertuliano, sobre o qual falaremos adiante.

      >Monarquianismo: no segundo século houve intensa reflexão sobre a teologia do Logos

(Cristo como o Verbo) e suas implicações. Vários pensadores cristãos, na ânsia de defender a convicção básica do monoteísmo ou a unidade do Ser Divino (daí, “monarquia”, isto é, governo de um só), acabaram por negar a divindade ou a personalidade distinta do Filho e do Espírito Santo. Houve duas manifestações básicas: (a) Monarquianismo Dinâmico: afirmava que Jesus era um homem comum que foi adotado por Deus na ocasião do seu batismo, sendo revestido do poder divino (daí, “dinâmico”, de dynamis = poder). Essa posição, abraçada pelos ebionitas e por Paulo de Samósata, também é chamada de adocionismo. (b) Monarquianismo Modalista: afirmava que Pai, Filho e Espírito Santo são três modos ou manifestações sucessivas (não simultâneas) do único Deus. Também é conhecido como sabelianismo, por causa de um de seus defensores (Sabélio). Uma variante dessa posição é o patripassianismo, a noção de que o próprio Pai sofreu na cruz (defendida por Práxeas e Noeto).

2.   Desafios externos: no segundo e terceiro séculos, além dos questionamentos internos, o

jovem movimento cristão enfrentou formidáveis ameaças externas. Em primeiro lugar, houve o recrudescimento das perseguições por parte do Império Romano. A bem da verdade, é preciso observar que, com algumas exceções, essas perseguições não foram contínuas nem generalizadas. As causas iam desde as habituais alegações de incesto (por causa da ênfase no amor fraternal), canibalismo (por causa da Ceia do Senhor) e ateísmo (pela negação dos deuses), até acusações mais especificamente políticas de subversão, falta de patriotismo e deslealdade ao império, principalmente em virtude da recusa dos cristãos em participar do culto imperial.

Duas perseguições intensas, mas localizadas, ocorreram nos reinados de Marco Aurélio e Sétimo Severo. A primeira atingiu as igrejas de Lião e Viena, na Gália, no ano 177; a segunda abateu-se sobre o Egito e Cartago nos anos 202-206. Alguns mártires famosos foram Justino, Potino, Blandina, Perpétua e Felicidade. Muito mais grave foi a perseguição geral movida pelo imperador Décio em 250-251. Decidido a impor em todas as regiões o culto imperial, Décio exigiu que todos tivessem um certificado de sacrifício (libellus). Muitos cristãos foram martirizados e outros conseguiram sobreviver aos maus tratos (os confessores). Muitos outros negaram a fé: alguns simplesmente ofereceram o sacrifício e ficaram conhecidos como sacrificati; outros, os libellatici, compraram certificados falsos. Passada a perseguição, muitos desses relapsos procuraram reingressar na igreja, gerando um sério problema pastoral para os bispos.

Em dois longos períodos de paz no terceiro século (206-250 e 260-303), a igreja experimentou um crescimento sem precedentes. Finalmente, no início do quarto século, ocorreu a última e a maior de todas as perseguições, sob os imperadores Diocleciano e Galério (303-311). Foram publicados editos ordenando em toda parte a destruição das igrejas e de cópias das Escrituras. Os cristãos que entregaram essas cópias ficaram conhecidos como traditores (= traidores). Dessa época data o cisma donatista, no norte da África. Os cismáticos, dentre os quais um certo Donato, alegaram que uma determinada

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consagração episcopal foi inválida porque um dos bispos consagrantes teria sido um traditor. O cisma donatista durou mais de um século, criando uma igreja paralela à igreja católica.

Outro desafio externo enfrentado pela igreja na era anterior a Constantino foram os ataques de ilustres intelectuais pagãos como Luciano de Samosata, Galeno e Celso na segunda metade do século II, e Porfírio, no terceiro século. Numa época em que o cristianismo crescia a olhos vistos e incomodava seriamente o paganismo, esses homens cultos escreveram obras influentes em que os cristãos eram acusados de serem ignorantes, supersticiosos e inimigos da cultura e do conhecimento.

D. A Defesa da FéRapidamente surgiram no seio da igreja respostas de pensadores cristãos a esses desafios. Os defensores intelectuais do cristianismo no segundo e terceiro séculos ficaram conhecidos como os apologistas e os polemistas. 1.      Os apologistas (de apologia = discurso de defesa) surgiram um pouco depois dos pais

apostólicos, já estudados nesta aula. Quase todos viveram na segunda metade do segundo século. Suas características gerais são as seguintes: eram convertidos do paganismo ou do judaísmo, enfrentaram ataques externos, usaram principalmente o Antigo Testamento, defenderam ou explicaram o cristianismo e utilizaram formas literárias apologéticas ou dialógicas. Dirigiram os seus escritos às autoridades, bem como a judeus e a intelectuais pagãos, defendendo os cristãos das muitas acusações que lhes eram feitas.

      >Os apologistas foram os seguintes: Quadrato, Aristides, Justino Mártir, Taciano, Atenágoras de Atenas, Teófilo de Antioquia, Melito de Sardes e Hegésipo. O mais destacado deles foi Justino Mártir (100-165), um filósofo cristão que viveu em Roma e escreveu duas apologias e o Diálogo com Trifão, o Judeu. Taciano, seu discípulo, escreveu uma harmonia dos evangelhos, o Diatessaron, e um Discurso aos Gregos. Atenágoras escreveu a belíssima Súplica pelos Cristãos e Teófilo produziu a longa apologia A Autólico. Algumas dessas obras podem ser encontradas na já mencionada Coleção Patrística, vols. 2 e 3.

2.   Os polemistas: outro grupo de defensores da fé foram os chamados polemistas, que

viveram no final do segundo século e primeira metade do terceiro. Em geral, tiveram maior estatura intelectual que os apologistas e foram mais agressivos do que eles em seus escritos (daí “polemistas”, do grego pólemos = guerra). Alguns deles dirigiram-se contra intelectuais pagãos; mais comumente, porém, voltaram-se contra falsos ensinos dentro da igreja. Esses pais da igreja viveram em três regiões distintas do Império Romano: Gália, Cartago (norte da África) e Egito. Os mais importantes foram Irineu de Lião, Tertualiano, Cipriano, Clemente de Alexandria e Orígenes. Outros menos conhecidos foram Hipólito, Júlio Africano e Gregório Taumaturgo.

      >Irineu (c.135-c.200) foi bispo de Lião, no sul da Gália (atual França), e escreveu em

grego uma monumental obra contra os gnósticos, intitulada Contra as Heresias. Quase na mesma época viveu em Cartago, uma colônia romana no norte da África, Tertuliano (c.160-c.220), o primeiro escritor cristão a utilizar o latim e por isso chamado de “pai da

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teologia latina”. Entre suas obras polêmicas, destacam-se Prescrição aos Hereges, Contra Márcion e Contra Práxeas, na qual antecipou a doutrina da trindade. No final da sua vida, aderiu ao movimento montanista. Outro importante escritor de Cartago foi o bispo Cipriano (c.200-258), que ressaltou a importância do episcopado e morreu como mártir. Em Alexandria, no Egito, foi fundada uma famosa escola catequética que teve como seus grandes líderes Clemente de Alexandria (c.150-c.215) e o extraordinário Orígenes (c.185-c.254), o mais influente pensador cristão do seu tempo e autor da obra Dos Primeiros Princípios, a primeira teologia sistemática, e de uma obra polêmica, Contra Celso, além de muitíssimos outros livros.

E. A Vida da IgrejaNo início do quarto século, o culto cristão estava mais formalizado e dotado de uma liturgia elaborada, principalmente no que concerne à celebração dos sacramentos. O batismo era precedido de uma longa preparação, o catecumenato, e geralmente ocorria na Páscoa ou no Pentecostes. Podia ser ministrado por imersão ou por efusão (água derramada sobre a cabeça). Já havia se difundido a convicção de que esse rito literalmente purificava os pecados da pessoa batizada. A santa ceia ou eucaristia havia se tornado a principal celebração cristã, sendo entendida como um sacrifício. Portanto, os seus oficiantes eram vistos como sacerdotes distintos dos demais cristãos, os leigos. A organização da igreja havia se tornando fortemente hierárquica, sob a firme liderança dos bispos. No final desse período, os cristãos também começaram a construir os seus primeiros templos. Em Roma, os cristãos reuniam-se nas catacumbas, locais onde também sepultavam os seus mortos.  

No final do período que estamos estudando (início do quarto século), o cristianismo já estava firmemente implantado em várias regiões do norte da África, inclusive o Egito, bem como na Síria, Armênia, Mesopotâmia, toda a Ásia Menor, a península grega, Itália, sul da Gália e sul da Espanha. Também já havia cristãos ao sul dos rios Reno e Danúbio e até mesmo na longínqua Britânia. Em outras palavras, a fé cristã já havia alcançado quase todas as regiões do vasto Império Romano e no oriente ultrapassava as suas fronteiras. Não houve missionários famosos nesse período: a fé era difundida pelos cristãos comuns em seus contatos com outras pessoas e povos. A igreja era composta de indivíduos de todas as classes sociais, desde escravos até nobres.

Implicações PráticasEsse foi um período heróico da igreja antiga, em que os cristãos procuravam viver a vida cristã e testemunhar acerca da sua fé em meio a circunstâncias freqüentemente adversas. Sua coragem e coerência no meio das perseguições e perplexidades do seu tempo nos inspiram e motivam a “viver de modo digno do evangelho” e a “lutar juntos pela fé evangélica” (Filipenses 1.27) nos dias atuais.

O esforço tanto dos grandes intelectuais cristãos quanto dos crentes comuns dos primeiros séculos, no sentido de comunicar as suas convicções aos seus contemporâneos e dar uma contribuição construtiva à sua sociedade, nos desperta para as grandes oportunidades e responsabilidades que temos em nossa geração.

A Igreja Imperial (313-590)

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1. A Grande TransiçãoNo ano 313, ocorreu um evento extraordinário que mudou drasticamente os rumos da história da igreja. Esse evento foi o decidido apoio do imperador Constantino ao cristianismo. Constantino havia começado a governar em 308, mas só em 312 ele conseguiu vencer o seu rival Maxêncio, na batalha da Ponte Mílvia, perto de Roma, tornando-se o único imperador da parte ocidental do império. Pouco antes da batalha ele tivera o famoso sonho em que viu as duas primeiras letras do nome de Cristo em grego (χρ = chi-rho) e as palavras “Com este sinal vencerás”. No ano seguinte, ele e Licínio, o dirigente da seção oriental do império, se encontraram e promulgaram um decreto que ficou conhecido como Edito de Milão. Esse famoso decreto legalizou o cristianismo, fez cessar as perseguições e deu ampla liberdade religiosa a todas as pessoas. 

Constantino passou a fazer generosas concessões à igreja e seus líderes, em termos de doação de propriedades, isenção de tributos e outros privilégios. Um importante cronista dessa época foi Eusébio de Cesaréia, que escreveu História Eclesiástica (300-325), a primeira história da igreja. Em troca dos benefícios concedidos à igreja, Constantino sentiu-se no direito de intervir em questões eclesiásticas, como no caso da controvérsia ariana, que veremos a seguir. Começou assim o complexo e por vezes tumultuado relacionamento entre a igreja e o estado que dura, de uma forma ou de outra, até os nossos dias. Na segunda metade do século IV, o imperador Juliano (361-63), cognominado “o apóstata” por ter abandonado a fé cristã, fez a última tentativa de restaurar o paganismo. Duas décadas depois, o imperador Teodósio I (379-95), um espanhol, tornou o cristianismo “católico” a religião oficial do Império Romano (ano 380). No século seguinte, o Império Romano ocidental (latino) entrou em declínio acentuado. No ano 476, o general germânico Odoacro destronou Rômulo Augústulo, o último imperador do ocidente. No oriente grego, o império continuou a existir por muitos séculos, tendo sua capital em Constantinopla ou Bizâncio e sendo conhecido como Império Bizantino. Um notável líder desse império foi Justiniano (527-565).

2. A Controvérsia Ariana (4o. século)Por volta do ano 318, Ário, um presbítero de Alexandria (Egito), começou a ensinar que Cristo, o Filho de Deus, foi criado pelo Pai antes da existência do mundo, sendo portanto inferior ao Pai, mas superior aos seres humanos. Esse ensino gerou uma enorme controvérsia em toda a igreja. Constantino, temendo pela estabilidade política do império, convocou um concílio de bispos para resolver essa e outras questões. O Concílio de Nicéia, na Ásia Menor, reuniu-se em 325, sendo presidido pelo próprio imperador. Depois de muitas discussões, o concílio aprovou um credo, o Credo de Nicéia, que afirmou a divindade de Jesus Cristo e condenou as posições arianas. Uma palavra importante e controvertida dessa declaração foi homoousios, isto é, “consubstancial”. Cristo partilha da mesma substância que o Pai. Estava assim definida a doutrina da trindade, ou seja: o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três “pessoas” que compartilham da mesma “substância” ou essência divina, sendo, portanto, um só Deus.  Mais tarde, sempre por razões políticas, Constantino e seus filhos apoiaram a posição condenada, o arianismo, gerando grande problemas para a igreja, até que, como vimos

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acima, o imperador Teodósio oficializou o cristianismo trinitário, niceno. No ano seguinte, Teodósio convocou o Concílio de Constantinopla (381), que reafirmou plenamente as decisões do Concílio de Nicéia. Esse concílio aprovou um novo credo que expandiu as declarações de Nicéia e afirmou explicitamente a divindade do Espírito Santo (Credo Niceno-Contantinopolitano). Na grande luta em defesa das decisões de Nicéia, destacaram-se quatro importantes pais da igreja oriental: Atanásio (328-373), bispo de Alexandria, que escreveu as obras Sobre a Encarnação do Verbo e Discursos Contra os Arianos (e foi exilado cinco vezes por causa de suas posições), e três bispos e teólogos da Ásia Menor, conhecidos como os três capadócios: Basílio de Cesaréia (†379), Gregório de Nazianzo (†c.389) e Gregório de Nissa (†c.394).

3. As Controvérsias Cristológicas (5o. século)No século V foi discutido um novo problema teológico: como se relacionam as duas naturezas de Cristo, a divina e a humana. Havia duas posições divergentes. Uma delas era representada pela Escola de Alexandria, surgida no terceiro século. Os alexandrinos eram adeptos do método alegórico de interpretação das Escrituras, procurando ver no texto significados ocultos, místicos. No que diz respeito a Cristo, entendiam que o Verbo uniu-se à carne, sendo uma pessoa plenamente integrada. Acentuavam, pois, a divindade de Cristo, em detrimento da sua humanidade. Desse raciocínio, resultaram duas posições que foram condenadas pela igreja. Apolinário de Laodicéia afirmava que Jesus era uma combinação de alma divina (ou Logos = Verbo) e corpo humano. Eutiques, um monge de Constantinopla, afirmou que as duas naturezas fundiram-se em uma só, a divina (daí o nome dessa posição: monofisismo = uma só natureza).  Do outro lado estava a Escola de Antioquia, surgida no século IV. Essa escola dava mais ênfase ao sentido literal da Escritura, evitando a interpretação alegórica. Afirmava que Cristo tinha uma plena natureza divina e uma plena natureza humana. O problema estava na tendência de dividir em duas a pessoa de Cristo. A posição clássica foi defendida por Nestório, patriarca de Constantinopla (428-431). Ele afirmava com tanta ênfase a distinção das duas naturezas que dava a impressão de ensinar que havia duas pessoas em Cristo (divina e humana). Por isso, enquanto os alexandrinos afirmavam que Maria era theotokos = “portadora de Deus”, Nestório dizia que ela era somente christotokos = “portadora ou mãe de Cristo”.

Nestório encontrou um adversário extremamente agressivo na pessoa de Cirilo, patriarca de Alexandria (412-444). Para tentar resolver a disputa, foi convocado o Concílio de Éfeso (431). As posições eram tão antagônicas que os dois grupos tiveram de reunir-se separadamente e excomungaram um ao outro. Finalmente, o imperador Teodósio II interveio, tomou o partido de Cirilo e baniu Nestório. Vinte anos depois, o imperador Marciano convocou o importante Concílio de Calcedônia (451) para resolver a questão de uma vez por todas. A célebre Definição de Calcedônia afirmou a plena divindade e a plena humanidade de Cristo, duas naturezas em uma só pessoa divino-humana. Contribuiu para essa decisão um documento enviado pelo bispo de Roma, Leão I (440-461), conhecido como o Tomo de Leão. Adotando uma posição intermediária entre Alexandria e Antioquia, o Concílio de Calcedônia condenou formalmente as três posições mencionadas acima: apolinarianismo, eutiquianismo e nestorianismo.

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4. Invasões Germânicas e MissõesNo século IV, vários povos que habitavam a Europa oriental começaram a invadir o Império Romano ocidental. Em 378, os visigodos derrotaram e mataram o imperador Valêncio. Poucas décadas depois, sob o comando de Alarico, saquearam a própria cidade de Roma (410). Também invadiram a Gália e o sul da Espanha. Os famigerados vândalos invadiram a Gália, a Espanha e o norte da África, e saquearam Roma em 455. Outros invasores foram os hunos, vindos das estepes da Ásia central e comandados pelo célebre Átila, “o flagelo de Deus”. Também foram importantes as ações dos anglos e saxões, que invadiram a Britânia (Inglaterra) no ano 449. Esses e outros povos eventualmente deram origem às modernas nações européias.

Alguns desses povos já haviam sido cristianizados quando invadiram o Império Romano. Foi o caso dos godos do baixo Danúbio ou visigodos, que foram evangelizados por Ulfilas (c. 311-383), cuja mãe era daquele povo. Ulfilas traduziu as Escrituras para a língua gótica e, sendo um adepto do arianismo, transmitiu essa concepção da fé aos visigodos. Na França central, um dos primeiros missionários foi

Martinho de Tours (†397) e a Irlanda foi evangelizada por Patrício (c.415-c.493), a partir de 460 (início do cristianismo celta). A primeira nação germânica a abraçar o cristianismo católico, ou seja, trinitário, foram os francos, mediante a conversão do rei Clóvis em 496. Sua esposa, Clotilde, já era uma cristã. Até 590, a maior parte das tribos germânicas havia deixado o arianismo em favor do catolicismo. Na Escócia, foi muito atuante o irlandês Columba (c.521-597), que, acompanhado de monges celtas, fundou um influente centro missionário na pequena ilha de Iona (557). Esse centro enviou missionários à Escócia, Inglaterra, França, Alemanha e Suíça. 

5. Quatro Grandes VultosOs séculos IV e V são chamados a “idade de ouro” dos pais da igreja. No final do século IV e início do V viveram quatro líderes e escritores cristãos especialmente importantes. Dois deles foram notáveis pregadores, um no ocidente latino e o outro no oriente grego. O primeiro foi Ambrósio, bispo de Milão (374-397), no norte da Itália, que ficou conhecido pela maneira corajosa como enfrentou o imperador Teodósio por causa de um massacre ocorrido em Tessalônica. O outro foi o não menos ousado João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla (397-407), o maior pregador da igreja antiga e por isso mesmo apelidado de Crisóstomo, ou seja, “boca de ouro”. Por causa de sua pregação profética, foi banido pela imperatriz Eudóxia e morreu no exílio. 

Os outros dois vultos eminentes do período foram Jerônimo e Agostinho. Jerônimo (331-420) foi o maior erudito da igreja ocidental antiga. Depois de muitos estudos, no oriente, tornou-se secretário do papa Dâmaso, que o incentivou a fazer uma nova tradução da Bíblia para o latim. Passou os últimos trinta e cinco anos de sua vida num mosteiro em Belém, onde escreveu seus comentários bíblicos e concluiu a tradução da Vulgata Latina, a Bíblia oficial da Igreja Católica. Agostinho (354-430) converteu-se em Milão em 386, influenciado pela pregação de Ambrósio, e tornou-se bispo de Hipona, no norte da África, em 395. É considerado o maior dos pais da igreja e muito influenciou os reformadores protestantes. Das 94 obras que escreveu, as mais conhecidas são as Confissões e A Cidade de Deus, esta última já referida na aula de introdução. Agostinho lutou fortemente contra os

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cismáticos donatistas e contra Pelágio, um monge inglês que afirmava que o homem nasce essencialmente bom e é capaz de fazer o bem sem o auxílio de Deus. Agostinho, ao contrário, afirmou que o ser humano está morto no pecado e, portanto, a salvação provém inteiramente da graça de Deus, sendo concedida apenas aos eleitos.

6. A Vida CristãNo período antigo surgiu uma instituição que haveria de tornar-se imensamente importante na história posterior da igreja: o monasticismo. Desde os primeiros séculos, muitas pessoas sentiram a necessidade de viver uma vida de renúncia e total consagração a Deus, inspiradas por passagens do Novo Testamento como a história do moço rico (Mateus 19.21; ver também Lucas 14.33). Os primeiros monges surgiram no terceiro século e viviam sós nos desertos. Os mais conhecidos desses antigos “eremitas” (de éremos = deserto) ou anacoretas (de anachorein = afastar-se) foram Antônio ou Antão, no Egito (†356), e Simeão Estilita, na Síria (†459). Este último foi chamado de estilita porque viveu trinta anos em cima de uma coluna (em grego, stylos).

Ao mesmo tempo, surgiu uma nova modalidade, o monasticismo comunitário, que veio a tornar-se predominante tanto no oriente como no ocidente. Esses monges eram chamados de cenobitas (de koinós bíos = vida comum). O primeiro cenóbio foi fundado por Pacômio (†346), no Egito. Dois grandes líderes monásticos foram, no oriente, Basílio de Cesaréia, e no ocidente, Bento de Núrsia (c.480-c.550). Este último escreveu a famosa regra beneditina, que por séculos orientou a vida dos mosteiros. A regra disciplinava a vida diária dos monges em torno de três atividades: devoção, estudo e trabalho. Muitos dos personagens que já vimos foram monges, submetendo-se aos três votos clássicos de pobreza, castidade e obediência.

No período que estamos estudando, o culto cristão tornou-se fortemente estruturado, com liturgias e orações formais. Deu-se grande ênfase à música, com coros, cânticos e antífonas. No século IV, foi composto o Te Deum (= A ti, ó Deus), um dos hinos litúrgicos mais conhecidos. O culto tornou-se solene e impressionante e também a arquitetura religiosa, com o surgimento das majestosas basílicas. Intensificou-se o culto aos santos, os antigos mártires da igreja, bem como a Maria, especialmente após as controvérsias cristológicas, que deram ênfase a Maria como theotokos, a portadora ou mãe de Deus. Também popularizaram-se as peregrinações a lugares considerados santos e a veneração de relíquias.

7. Organização EclesiásticaEsse período testemunhou o crescente fortalecimento dos bispos e dos concílios em que se reuniam. Os bispos das capitais provinciais passaram a ser chamados de metropolitanos (arcebispos). Os bispos das igrejas mais importantes e antigas – Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém – receberam o título de patriarcas. Outra característica marcante do período foi a afirmação da supremacia dos bispos de Roma. Isso resultou de um longo processo em que esses bispos foram fazendo reivindicações cada vez mais ousadas sobre sua autoridade.  

Os principais fatores que contribuíram para o surgimento do papado foram: a insistência no primado de Pedro (Mateus 16.17-19), que teria sido o primeiro bispo de Roma, e a alegação de que essa autoridade foi transmitida aos seus sucessores; o suposto martírio de Pedro e

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Paulo em Roma; a importância da cidade e da igreja de Roma; as declarações de governantes em apoio às pretensões papais; a rápida aceitação dessa autoridade no ocidente, devido à falta de concorrentes; o declínio do Império do ocidente, tornando a igreja a instituição mais importante da sociedade; a habilidade de muitos bispos de Roma como teólogos, administradores e promotores da obra missionária. O fato é que no século V houve a aceitação geral do primado de Pedro, sendo Leão I (440-461) considerado o primeiro papa no sentido pleno da palavra. Essas reivindicações encontraram forte resistência no oriente, sendo um dos fatores da futura separação entre as igrejas oriental (ortodoxa) e ocidental (católica).

Implicações PráticasEmbora o texto da aula não fale muito sobre o assunto, uma das características da igreja antiga foi o profundo interesse pelas Escrituras. Pais da igreja como Irineu, Orígenes, Jerônimo e Agostinho dedicaram as suas vidas ao estudo reverente da Palavra de Deus. Teodoro de Mopsuéstia (c.350-428), da Escola de Antioquia, é considerado o maior exegeta da igreja antiga. João Crisóstomo destacou-se pelas suas pregações profundamente bíblicas, expositivas. E outros ainda, como vimos, dedicaram-se à tarefa de traduzir as Escrituras. Que o seu exemplo nos estimule a valorizar a Palavra e interpretá-la de modo equilibrado. Ao estudar este período, podemos ficar perplexos diante do surgimento de crenças e práticas que não nos parecem corretas. Ficamos nos perguntando porque Deus permitiu que as coisas tomassem certos rumos. A história da igreja é importante porque mostra os acertos e os erros da igreja em sua caminhada no mundo. Nós também cometemos erros e temos as nossas próprias divergências teológicas. Precisamos pelo menos entender como certas coisas aconteceram, mesmo que não concordemos com elas. Por outro lado, seria um erro nos concentrar nos desvios e esquecer as coisas positivas. Os reformadores protestantes do século XVI souberam valorizar as contribuições positivas da igreja antiga.

A Igreja no Início da Idade Média (590-1073)

Inicialmente, cabem duas observações sobre o título desta aula. Primeiro, o mais correto seria dizer “A igreja na primeira metade da Idade Média”, pois o período indicado é de quase quinhentos anos. Segundo, o ano do final do período é um pouco diferente do que foi colocado na Introdução (1054). No final da aula, vocês verão por quê. A Idade Média, que tem esse nome por estar entre a Idade Antiga e a Moderna, com freqüência tem má reputação como a “idade das trevas”. Muitos acham que foi uma época em que só houve ignorância, superstições e retrocesso. Todavia, esse longo período da história também teve coisas muito apreciáveis, especialmente na sua segunda metade, como veremos na próxima aula. O início da Idade Média coincide com o pontificado do grande bispo de Roma que foi Gregório Magno (590-604), considerado um dos “doutores da igreja,” ao lado de Ambrósio, Jerônimo e Agostinho. Ele foi o primeiro monge a tornar-se papa. Foi um homem de grande integridade pessoal e um notável administrador cujas ações aumentaram o poder temporal do papado, ampliaram a ação missionária da igreja (como veremos adiante) e influenciaram o monasticismo e a liturgia católica (“canto gregoriano”). Gregório escreveu uma obra de teologia prática, Livro do Cuidado Pastoral, um manual de

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aconselhamento que foi muito utilizado durante toda a Idade Média. Cerca de trinta anos após a sua morte, houve um acontecimento de grande importância que afetou profundamente o cristianismo. 1. O Surgimento do IslamismoEsse acontecimento foi o surgimento, na Península Arábica, de uma combativa religião rival do cristianismo. O islamismo foi fundado por Maomé (†632), um mercador de Meca, na atual Arábia Saudita, que em suas viagens teve muitos contatos com judeus e cristãos, sendo por eles influenciado em suas concepções religiosas. Uma dessas influências foi o rígido monoteísmo que caracteriza o islã, que significa “submissão” à vontade de Deus (Alá). Seu livro sagrado, o Corão, faz muitas referências ao Velho Testamento e considera Jesus um dos profetas de Deus, sendo Maomé o último e principal deles. O grande feito de Maomé foi unir as tribos árabes, que antes eram politeístas e viviam guerreando entre si, em torno dessa nova religião monoteísta.

Empolgados com a sua nova fé, a partir de 632, o ano da morte de Maomé, os exércitos muçulmanos começaram a conquistar todo o norte da África e o Oriente Médio. Foi uma trágica perda para o cristianismo, pois essas regiões tinham tido florescentes centros cristãos desde os primórdios da história da igreja. Entre os lugares conquistados estavam a Numídia, onde viveram Tertuliano, Cipriano e Agostinho; o Egito, lugar da Escola de Alexandria, com seus grandes luminares, Clemente e Orígenes; e a Síria, onde havia florescido a Escola de Antioquia. Em 711, os maometanos atravessaram o Estreito de Gibraltar e invadiram a Península Ibérica (Espanha). Aliás, Gibraltar significa “rocha de Tarik”, numa referência ao comandante dos exércitos invasores. Assim, teve início uma presença muçulmana na Espanha que haveria de durar por muitos séculos. Em seguida, os mouros atravessaram os Pirineus e entraram na França, mas foram finalmente derrotados pelo rei Carlos Martelo em Tours, em 732.

2. Atividade MissionáriaA primeira metade da Idade Média caracterizou-se por intensa atividade missionária. Foi nesse período que completou-se a evangelização ou cristianização da Europa, principalmente no norte e no leste. Como vimos na aula anterior, em 449 os anglos e os saxões haviam invadido a Britânia ou Bretanha. A população local, os bretões, foi expulsa para o ocidente da ilha. Os bretões eram cristãos (celtas), mas os invasores ainda eram pagãos. O papa Gregório I viu nisso uma grande oportunidade missionária e enviou para lá, em 597, um monge chamado Agostinho, acompanhado de 40 outros monges. Eventualmente, houve a conversão do rei Etelberto de Kent, cuja esposa, Berta, havia se convertido anteriormente. Agostinho tornou-se arcebispo de Cantuária (Canterbury). Com isso, passaram a coexistir na Inglaterra dois tipos de cristianismo: o antigo cristianismo celta e agora o catolicismo romano. A situação foi resolvida em 663, quando o Sínodo de Whitby unificou o cristianismo inglês sob a autoridade do papa.

Assim como no século VI Columba havia fundado o centro missionário de Iona, no século VII Aidano fundou um centro semelhante do outro lado da Escócia, em Lindisfarne. Porém, o mais extraordinário missionário irlandês foi Columbano (†c. 614), que pregou na França, na Alemanha e na Suíça, chegando até o norte da Itália. Na Frísia (atual Holanda) trabalhou Willibrord, que tornou-se arcebispo de Utrecht em 695, e na vizinha Germânia (Alemanha)

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o inglês Bonifácio (680-755), o maior missionário do seu tempo. A Dinamarca e a Suécia foram evangelizadas pelo francês Ansgar (801-865), “o apóstolo do norte”. Já os primeiros missionários aos eslavos (Morávia) foram os gregos Cirilo e Metódio, no século IX. Em todo esse longo período de desbravamento, os mosteiros realizaram um admirável trabalho nas áreas de missões, cultura e beneficência.

3. O Império dos FrancosJá vimos que os francos foram a primeira tribo germânica a abraçar o cristianismo católico, sob a liderança do rei Clóvis. Esse rei iniciou a dinastia dos merovíngios, que foi suplantada no século VIII por uma nova dinastia de líderes franceses, os carolíngios, o primeiro dos quais foi Pepino de Heristal. Como vimos acima, seu filho Carlos Martelo (714-41) derrotou os muçulmanos na batalha de Tours. O filho deste, o rei Pepino, o Breve (741-68), conquistou muitas terras no norte da Itália e as cedeu à igreja, dando origem aos estados papais, que haveriam de perdurar até o século XIX. O próximo governante, Carlos Magno, que reinou de 768 a 814, foi o maior monarca do período inicial da Idade Média. Coroado imperador pelo papa Leão III, em Roma, no natal do ano 800, ele passou a governar o Sacro Império Romano. Promoveu a cultura, no que ficou conhecido como o Renascimento Carolíngio, protegeu e controlou a igreja, e ajudou os papas. Após a ruína do antigo Império Romano, esse foi o primeiro governo da Europa ocidental capaz de impor ordem e paz e desenvolver a civilização.

4. O Império GermânicoApós a morte de Carlos Magno, seus filhos não conseguiram manter o império unido. O centro do poder deslocou-se um pouco para leste, para o território da atual Alemanha, onde Oto I, o Grande (936-73), inspirado em Carlos Magno, foi coroado imperador pelo papa em 962. Surgiu assim o Sacro Império Romano Germânico, que foi o principal poder político da Idade Média e, por incrível que pareça, subsistiu até 1806! O império chamava-se sacro ou sagrado por ser cristão, abençoado pela igreja, e romano porque foi entendido como o ressurgimento do antigo império dos romanos. Esse império com freqüência teve uma relação tumultuada com a igreja, interferindo nos seus assuntos internos, inclusive na escolha dos papas. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se a ideologia de que o reino de Deus tinha dois representantes no mundo, o império e a igreja.

5. Personagens e ControvérsiasComo os períodos anteriores, também este teve vários personagens de destaque. Na Espanha, viveu o bispo Isidoro de Sevilha (c.560-636), considerado por muitos estudiosos o último dos pais da igreja ocidental. Na Inglaterra, viveu o monge conhecido como Venerável Beda (c.673-735), autor da importante obra História Eclesiástica do Povo Inglês. João de Damasco (c.675-749), outro destacado personagem desse período, é considerado o último e mais importante dos pais da igreja oriental. O inglês Alcuíno (735-804) foi conselheiro e uma espécie de ministro da cultura do imperador Carlos Magno. O período também foi marcado por algumas controvérsias teológicas das quais participaram indivíduos com nomes estranhos. Ratramno (†856) e Gottschalk (†868) defenderam a doutrina de Agostinho sobre a predestinação, sendo que o último foi preso e condenado, morrendo depois de vinte anos na prisão. Rabano Mauro (†856), João Scotus Erígena (†c.877) e Hincmar (†882) atacaram essa doutrina. Por sua vez, o monge beneditino

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Pascásio Radberto (†860) defendeu a presença real de Cristo na eucaristia (transubstanciação) contra Ratramno e Rabano Mauro.   6. A Igreja OrientalA começar do período antigo, a igreja grega ou oriental foi enfraquecida pelas lutas teológicas, cismas e invasões muçulmanas (os árabes chegaram às portas de Bizâncio em 673). A igreja também sofreu por causa de suas estreitas ligações com o Império Bizantino. Os imperadores geralmente controlaram a igreja, fenômeno esse que ficou conhecido como cesaropapismo. Entre 726 e 843 ocorreu a célebre “controvérsia iconoclástica”, na qual vários imperadores tentaram impedir sem sucesso o uso e veneração dos ícones (quadros de Maria e dos santos). Como já foi apontado, o maior teólogo da igreja oriental foi João Damasceno, falecido em 749 e considerado um doutor da igreja. Inicialmente, ele serviu na corte de um califa islâmico; depois, abandonou esse serviço para ingressar em um mosteiro. Ele produziu uma teologia considerada normativa para a igreja oriental. Desde os primeiros séculos manifestaram-se diferenças crescentes entre a igreja romana/ocidental e a igreja grega/oriental. Além do aspecto geográfico, linguístico e político, havia as diferenças mais profundas de cultura e mentalidade. Os gregos eram mais filosóficos, especulativos, daí a sua predileção por temas abstratos como o ser de Deus. Os romanos tinham mentalidade mais prática, daí seu interesse por áreas como a eclesiologia. Outro motivo para afastamento foi a palavra filioque (= “e do Filho”). O Credo de Constantinopla (381) dizia que o Espírito Santo procede do Pai. O III Sínodo de Toledo, em 589, acrescentou a referida palavra ao credo. Na década de 860, o papa Nicolau I e Fócio, o patriarca de Constantinopla, excomungaram-se mutuamente por esse motivo. O problema maior sempre foi a reivindicação de autoridade universal pelo bispo de Roma. A ruptura final entre as duas igrejas ocorreu em 1054, quando Leão IX excomungou o patriarca Miguel Cerulário e este anatematizou o papa. De todo esse longo processo, resultou a Igreja Ortodoxa Grega, distinta da Igreja Católica Romana.

7. Decadência e Reforma do PapadoDo final do século IX até meados do século XI, o papado tornou-se um joguete nas mãos de poderosas famílias romanas (como os Theophylact, os Crescentii e os Tusculani), experimentando a maior decadência da sua história. Todavia, a partir da fundação do Mosteiro de Cluny (910), na França, surgiu um partido reformador que eventualmente moralizou a alta administração da igreja. Esse movimento promoveu a reforma dos mosteiros e lutou contra a simonia (compra e venda de cargos eclesiásticos; ver Atos 8:18), o nicolaísmo (casamento dos sacerdotes; ver Ap 2:6,15) e as investiduras leigas, ou seja, a interferência dos príncipes na eleição e consagração dos bispos. A reforma do papado começou com Leão IX (1049-54) e seu hábil conselheiro Hildebrando (c.1023-1085). No pontificado de Nicolau II, foi decidido que a eleição dos papas seria feita somente através do colégio de cardeais (1059). Finalmente, em 1073 o próprio Hildebrando foi eleito papa, adotando o título de Gregório VII.

8. E as Escrituras?Na Idade Média, as Escrituras eram lidas habitualmente apenas nos mosteiros, sendo pouco acessíveis para o povo. Havia várias razões para isso: a Bíblia só existia em latim, não tendo ainda sido traduzida para os diversos idiomas da Europa; não havia ainda a imprensa, o que fazia com que as cópias da Bíblia tivessem de ser escritas à mão, tornando-as muito

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caras para a maior parte das pessoas; além disso, a igreja não tinha interesse em que as Escrituras estivessem nas mãos das pessoas comuns, por temer que fossem interpretadas de maneira divergente do ensino da igreja, gerando idéias “heréticas”. Todavia, foi muito importante o trabalho dos monges no sentido de preservar e reproduzir os antigos manuscritos bíblicos, o que faziam com muita arte e esmero. Além dos copistas peritos em caligrafia havia os iluministas, ou seja, os indivíduos que ilustravam os manuscritos com belos desenhos conhecidos como iluminuras. Em termos de hermenêutica ou interpretação bíblica, continuou-se a usar o método alegórico (a busca de sentidos ocultos no texto), surgido nos primeiros séculos da história da igreja. O peso da tradição eclesiástica (os ensinos dos escritores da igreja, dos concílios e dos papas) foi se tornando cada vez mais influente para a fé e a prática da igreja.

Implicações PráticasO surgimento do islamismo e os danos que causou ao cristianismo mostram outro tipo de desafio que os cristãos têm enfrentado em toda a sua história: a realidade de outras religiões e o desafio missionário que representam. Como vimos, a parte inicial da Idade Média não foi só um período de perdas, mas de ganhos: perdas no norte da África e Oriente Médio, mas ganhos no norte e leste da Europa, através dos esforços missionários empreendidos. Os problemas enfrentados e vitórias alcançadas nos dão importantes lições ao nos depararmos com os mesmos desafios em nossos dias.

A história desse período também nos mostra o alto preço que a igreja pode pagar ao relacionar-se muito estreitamente com o estado. Essa relação quase sempre corrompe a ambos, embora quem mais perca seja a igreja, que não tens fins primariamente políticos, e sim espirituais. Não é desejável que a igreja esteja alheia às questões políticas ou sociais, mas que, a partir de uma postura de independência, exerça uma influência salutar sobre as instituições políticas, especialmente na área crucial da ética.

A Igreja na Idade Média Posterior (1073-1517)

Devido à grande quantidade de informações sobre este importante e longo período, iremos dividi-lo em duas partes: O Apogeu da Idade Média e A Época do Renascimento.

I. O Apogeu da Idade Média (1073-1294)

1. O Auge do PapadoHildebrando, a quem nos referimos no final da aula passada, tornou-se papa com o título de Gregório VII (1073-85) e adotou como lema do seu pontificado as palavras de Jeremias 48.10a. Ele foi um papa reformador que lutou contra a corrupção dos clérigos, as investiduras leigas e a simonia (ver aula anterior). Como o imperador alemão Henrique IV (1056-1106) insistisse em nomear os bispos no seu território, Hildebrando o excomungou. Enfraquecido politicamente, Henrique foi encontrar-se com o papa no castelo de Canossa, nos Alpes, em que este achava-se hospedado (ano 1077). Depois de bater à porta por três dias, vestido como um penitente e caminhando descalço na neve, Henrique foi perdoado e teve anulada a sua excomunhão. Novamente fortalecido, o imperador enviou um exército a

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Roma e prendeu o papa. A controvérsia das investiduras só foi resolvida na Concordata de Worms (1122), entre o papa Calixto II e o imperador Henrique V.

Outro papa que lutou contra a simonia foi Alexandre III (1159-81). O rei Henrique II da Inglaterra não queria abrir mão da prerrogativa de nomear os bispos. Isso fez com que o seu opositor, Thomas Becket, arcebispo de Cantuária, fosse assassinado (1170). O papa obrigou o rei a fazer uma penitência pública pelo assassinato. Todavia, o maior dos papas medievais foi Inocêncio III (1198-1216), o primeiro a usar o título “Vigário de Cristo”. Ele nutriu a visão de uma sociedade cristã unificada sob a liderança do papa (o conceito de “cristandade”). Inocêncio reorganizou a igreja através do 4° Concílio Lateranense (1215) e enfrentou com êxito o rei francês Filipe Augusto e o rei inglês João Sem Terra, que se viu forçado a aceitar uma constituição, a Magna Carta. Esses episódios nos mostram como era tumultuada e nociva a relação entre a igreja e o estado.

2. As CruzadasAs cruzadas foram guerras promovidas pela cristandade ocidental contra o islamismo, de 1095 a 1291. Tiveram diversas causas, religiosas, políticas e econômicas, mas o objetivo declarado era libertar a Palestina, o berço do cristianismo, das mãos dos maometanos. A primeira cruzada foi pregada pelo papa Urbano II em Clermont, na França, em 1095, sob o lema Deus vult! (“Deus o quer”). Depois de muita violência, os cruzados estabeleceram um reino cristão em Jerusalém (1099-1187). A “cruzada das crianças” (1212) envolveu milhares de adolescentes, a maior parte dos quais morreram ou foram vendidos como escravos. Os cruzados mais famosos foram os reis Frederico Barba Roxa (1152-90), Ricardo Coração de Leão (1189-99) e Luís IX (São Luís, 1226-70). Esse período viu o surgimento de ordens militares como os hospitalários, os templários e a ordem teutônica. Na mesma época, teve continuidade a reconquista da Península Ibérica e ocorreu o surgimento de Portugal como nação independente (1147-1249). As cruzadas produziram muitos efeitos negativos, entre os quais uma duradoura antipatia entre os dois grupos envolvidos, o que muito dificultou as missões dos cristãos aos muçulmanos.

3. O EscolasticismoO escolasticismo foi um movimento intelectual e teológico que resultou da introdução da filosofia de Aristóteles na Europa através dos árabes e judeus da Espanha. Essa filosofia, com sua visão ordenada e sistemática do mundo, afetou todas as áreas do pensamento, contribuindo para o chamado renascimento do século XII (1050-1250). A filosofia e a lógica aristotélicas também afetaram fortemente a teologia cristã. Os primeiros teólogos escolásticos foram os seguintes: Anselmo (1033-1109), arcebispo de Cantuária, chamado o “pai do escolasticismo”; sua obra principal foi Cur Deus Homo?, um tratado sobre a encarnação. Pedro Abelardo (1079-1142), brilhante professor da Universidade de Paris que escreveu a obra Sic et Non. Bernardo de Claraval (1090-1153), influente líder, pregador e místico, tido como o pai do misticismo medieval. Pedro Lombardo (1100?-1160?), chamado “o mestre das sentenças” por causa da sua obra Quatro Livros de Sentenças, um texto padrão de teologia por vários séculos no qual ele defendeu os sete sacramentos. O século XII também marcou o surgimento das primeiras universidades, tais como as de Paris, Montpellier, Cambridge, Oxford, Bolonha, Modena e Régio. Nelas estudava-se filosofia, direito, medicina e teologia, a “raínha das ciências”. Outra contribuição do período foi a esplêndida arquitetura gótica das catedrais.

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4. Movimentos dissidentesOutro aspecto desse período de efervescência foi o surgimento de alguns movimentos dissidentes no sul da França que despertaram forte oposição da Igreja Católica. Um deles foi o dos cátaros (em grego = “puros”) ou albigenses (da cidade de Albi), surgidos no século XI. Caracterizavam-se por um sincretismo cristão, gnóstico e maniqueísta, com um dualismo radical (espiritual x material) e extremo ascetismo. Foram condenados pelo 4° Concílio Lateranense em 1215 e mais tarde aniquilados por uma cruzada. Para combater esses e outros hereges, a Inquisição foi oficializada em 1233.

Outro movimento foi liderado por Pedro Valdo ou Valdes († c.1205), de Lião, cujos seguidores ficaram conhecidos como “homens pobres de Lião”. Tinham um estilo de vida comunitário, ensinavam as Escrituras no vernáculo (enfatizando o Sermão do Monte), incentivavam a pregação de leigos e de mulheres, negavam o purgatório. Condenados pelo Concílio de Verona em 1184, foram muito perseguidos, refugiando-se em vales remotos e quase inacessíveis dos alpes italianos. Mais tarde abraçaram a Reforma Protestante, sendo assim uma das poucas igreja protestantes anteriores à Reforma do Século XVI.

5. Ordens ReligiosasA segunda metade da Idade Média também viu o surgimento de novas ordens religiosas como os cistercienses (de Citeaux, na França), em 1098. Em um século, os chamados “monges brancos” criariam 530 mosteiros. Todavia, duas outras ordens surgidas no século XIII se tornariam muito mais conhecidas. Trata-se das “ordens mendicantes” (frades), com sua ênfase na educação como instrumento de conversão do mundo. A primeira foi a dos franciscanos, fundada pelo italiano Francisco de Assis (c.1181-1226) e aprovada oficialmente em 1210. Os “frades menores” tinham inicialmente um ideal de renúncia e pobreza (Mt 19:21), e visavam a conversão dos muçulmanos. Dedicavam-se à caridade, à pregação e ao estudo. A outra ordem foi a dos dominicanos, organizada pelo espanhol Dominic de Guzman (c.1170-1221) e aprovada em 1216. Esses frades pregadores tinham como alvo inicial converter os albigenses e outros grupos. Posteriormente, sua forte ênfase inicial na pregação e no estudo foi substituída pela preocupação com a ortodoxia e isso os levou a se envolverem com a Inquisição.

6. O Apogeu do EscolasticismoOs grandes teólogos escolásticos foram os dominicanos Alberto Magno (c.1200-1280), Tomás de Aquino (c.1225-1274) e Meister Eckhart (c.1260-1327), e os franciscanos Boaventura (c.1217-1274), Duns Scotus (c.1265-1308) e Guilherme de Ockham (c.1285-1349). O maior de todos sem dúvida foi Tomás de Aquino, procedente de uma família nobre italiana. Aquino foi o maior teólogo medieval e os seus ensinos (o tomismo) são a doutrina oficial da Igreja Católica. Escreveu a famosa Suma Teológica, na qual dá ênfase aos conceitos duplos de fé e razão, graça e natureza, bem como aos sacramentos. Foi canonizado em 1323 e declarado como “doutor da igreja” em 1567.  

7. Vida e CultoA sociedade medieval possuía uma estrutura hierárquica e rígida composta de três grupos principais: os que trabalham (servos), os que oram (religiosos) e os que guerreiam (nobres). Imperava o sistema feudal de senhores e vassalos. Ao mesmo tempo, estava surgindo uma

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economia baseada no lucro, o que conflitava com o antigo ideal de pobreza. A religiosidade popular dava grande ênfase aos sacramentos, especialmente da eucaristia e da penitência (e as indulgências), bem como às esmolas, jejum e orações. Muitos buscavam um contato mais pessoal com Deus pela união da alma com Ele (místicos) ou o cultivo da vida devocional interior. Havia muita ansiedade por uma espiritualidade mais profunda, o que nem sempre podia ser suprido pela igreja, envolvida que estava com tantos interesses seculares e mundanos.

II. A Época do Renascimento (1294-1517)

1. Os Estados NacionaisA igreja não vivia em um vácuo, mas sim em um contexto político e social mais amplo com o qual tinha múltiplas interações. No final da Idade Média, houve o surgimento dos chamados “estados nacionais”, as modernas nações européias, o que representou uma grande ameaça às pretensão do papado. Na Alemanha (Sacro Império Romano), Rudolf von Hapsburg foi eleito imperador em 1273. Em 1356, um documento conhecido como Bula de Ouro determinou que cada novo imperador seria escolhido por sete eleitores (quatro nobres e três arcebispos). Havia descentralização política, isto é, o poder dos príncipes limitava a autoridade do imperador, e forte tensão entre a igreja e o estado.

Na França, houve o fortalecimento da monarquia com Filipe IV, o Belo (1285-1314). Esse rei enfrentou com êxito o poder da igreja e dos papas e preparou a França para tornar-se o primeiro estado nacional moderno. Na Inglaterra, o parlamento reuniu-se pela primeira vez em 1295. Esse país teve um grande rei na pessoa de Eduardo I (†1307), que subjugou os nobres e enfrentou com êxito o papa na questão de impostos.

2. O Declínio do PapadoEste período começa com o pontificado de BonifácioVIII (1294-1303), um papa arrogante e ambicioso que entrou em confronto direto com o rei Filipe IV acerca de impostos e da autoridade papal. Bonifácio publicou três famosas bulas: Clericis Laicos, na qual reclama que os leigos sempre foram hostis ao clero; Ausculta Fili (“Escuta, filho”), dirigida ao rei francês, e Unam Sanctam (1302), denominada “o canto do cisne do papado medieval.” Irritado com as ações papais, Filipe enviou suas tropas, o papa foi preso e faleceu um mês após ser libertado.

Seguiu-se um período de crescente desmoralização do papado. Clemente V (1305-1314), um papa francês, transferiu a Cúria, ou seja, a administração da igreja, para Avinhão, ao sul da França, no que ficou conhecido como o “Cativeiro Babilônico da Igreja” (1309-1377). Em toda parte cresceram as críticas às extravagâncias e ao luxo da corte papal. João XXII (1316-1334) mostrou-se eficiente na cobrança de taxas e dízimos para cobrir essas despesas. Finalmente, ocorreu o chamado “Grande Cisma”, em que houve dois e posteriormente três papas rivais em Roma, Avinhão e Pisa (1378-1417). Diante dessa situação constrangedora, surgiu em toda a Europa um clamor por “reformas na cabeça e nos membros.”

3. O Movimento Conciliar

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Durante o “Grande Cisma”, cada papa considerou-se o único legítimo e excomungou o rival. Assim, houve a necessidade de um concílio para resolver a crise. O Concílio de Pisa (1409) elegeu um novo papa, mas os outros dois recusaram-se a ser depostos, resultando em três papas ao mesmo tempo. João XXIII, o segundo papa pisano, convocou o Concílio de Constança (1414-1417), que depôs os três papas, elegeu Martinho V como único papa, decretou a supremacia dos concílios sobre o papa e condenou os pré-reformadores João Wycliff, João Hus e Jerônimo de Praga. O Concílio de Basiléia (1431-1449) reafirmou a superioridade dos concílios. Finalmente, o Concílio de Ferrara-Florença (1438-1445) tentou a união com a Igreja Ortodoxa (frustrada pela conquista de Constantinopla pelos turcos em 1453) e reafirmou a supremacia papal. Essa tentativa fracassada de tornar a igreja mais democrática e governá-la através de concílios ficou conhecida como conciliarismo.

4. O RenascimentoNo final da Idade Média houve um extraordinário movimento intelectual e artístico que é conhecido como Renascimento ou Renascença (c.1350-1550). Duas características desse movimento foram a forte valorização do ser humano (humanismo) e a fascinação com as obras artísticas e literárias da antigüidade greco-romana. O renascimento começou na Itália (Roma, Florença) com Petrarca e Bocácio, no século XIV. Seus artistas mais conhecidos são Leonardo da Vinci (1452-1519), autor da fachada da basílica de São Pedro e da “Última Ceia”; Rafael Sanzio (1483-1520) autor de madonas; e Michelangelo Buonarroti (1475-1564), que pintou a belíssima Capela Sistina e esculpiu as famosas estátuas da “Pietá” e de “Moisés.”

O interesse pelas obras da antigüidade levou ao estudo da Bíblia nas línguas originais pelos chamados humanistas bíblicos. Os principais deles foram o italiano Lorenzo Valla (†1457), estudioso do Novo Testamento; o inglês John Colet (†1519), estudioso das epístolas paulinas; o alemão Johannes Reuchlin (†1522), notável hebraísta; o francês Lefèvre D’Étaples (†1536), tradutor do Novo Testamento; e o holandês Erasmo de Roterdã (1466?-1536), “o príncipe dos humanistas”, que publicou uma edição crítica do Novo Testamento grego com uma tradução latina, talvez a obra mais importante publicada no século XVI, que serviu de base para as traduções de Lutero, Tyndale e Lefèvre e muito influenciou os reformadores protestantes. Esse retorno às Escrituras muito contribuiu para a Reforma do Século XVI.

5. Primeiros Movimentos de ReformaNos séculos XIV e XV surgiram alguns movimentos esporádicos de protesto contra certos ensinos e práticas da igreja medieval. Um deles foi encabeçado por João Wycliff (1325?-1384), um sacerdote e professor da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Wycliff atacou as irregularidades do clero, as superstições (relíquias, peregrinações, veneração dos santos), bem como a transubstanciação, o purgatório, as indulgências, o celibato clerical e as pretensões papais. Seus seguidores, conhecidos como os lolardos, tinham a Bíblia como norma de fé que todos devem ler e interpretar.

João Hus (c.1372-1415), um sacerdote e professor da Universidade de Praga, na Boêmia, foi influenciado pelos escritos de Wycliff. Definia a igreja por uma vida semelhante à de Cristo, e não pelos sacramentos. Dizia que todos os eleitos são membros da igreja e que o seu cabeça é Cristo, não o papa. Insistia na autoridade suprema das Escrituras. Hus foi

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condenado à fogueira pelo Concílio de Constança. Seus seguidores ficaram conhecidos como Irmãos Boêmios (1457) e foram muito perseguidos. Foram os precursores dos Irmãos Morávios, que veremos posteriormente, outro grupo protestante cujas raízes são anteriores à Reforma do século XVI. Outro indivíduo incluído entre os pré-reformadores é Jerônimo Savonarola (1452-1498), um frade dominicano de Florença, na Itália, que pregou contra a imoralidade na sociedade e na igreja, inclusive no papado. Governou a cidade por algum tempo, mas finalmente foi excomungado e enforcado como herege.

6. Movimentos DevocionaisAlém dos movimentos que romperam com a igreja, houve outros que permaneceram na mesma por se concentrarem na vida devocional, sem críticas aos dogmas católicos. Um deles foi o misticismo, bastante forte na Inglaterra, Holanda e especialmente na Alemanha (Reno). Os principais místicos dessa época foram Meister Eckhart (†1327); Tauler (†1361) e os “Amigos de Deus”, Henrique Suso (†1366) e mais tarde o célebre teólogo e líder eclesiástico Nicolau de Cusa (1401-1464). O misticismo dava ênfase à união com Deus, ao amor, à humildade e à caridade, e produziu uma belíssima literatura devocional.

Outro importante movimento foi a Devoção Moderna, que manteve-se forte durante todo o século XV. Suas ênfases recaíam sobre a espiritualidade, a leitura da Bíblia, a meditação e a oração. Também valorizava a educação, criando ótimas escolas. Foi um movimento leigo, para ambos os sexos, e também exerceu grande influência sobre os reformadores protestantes. Os participantes eram conhecidos como Irmãos da Vida Comum. A obra mais importante e popular produzida por esse movimento foi o belíssimo livreto devocional A Imitação de Cristo (1418), escrito por Thomas à Kempis.

7. Situação GeralO final da Idade Média for marcado por muitas convulsões políticas, sociais e religiosas. Entre as políticas destacou-se a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre a Inglaterra e a França, na qual tornou-se famosa a heroína Joana D’Arc. Houve também muitas revoltas camponesas, o declínio do feudalismo, a expansão das cidades e o surgimento do capitalismo. No aspecto social havia fomes periódicas e o terrível flagelo da peste bubônica ou peste negra (1348). As guerras, epidemias e outros males produziam morte, devastação e desordem, ou seja, a ruptura da vida social e pessoal. O sentimento dominante era de insegurança, ansiedade, melancolia e pessimismo. Isso era ilustrado pela “dança da morte”, gravuras que se viam em toda parte com um esqueleto dançante.

Na área religiosa, houve a erosão do ideal da cristandade ou “corpus christianum”, a sociedade coesa sob a liderança da igreja e dos papas. A religiosidade era meritória, com missas pelos mortos, crença no purgatório e invocação dos santos e Maria. Ao mesmo tempo, havia grande ressentimento contra a igreja por causa dos abusos praticados e do desvio dos seus propósitos. Isso é ilustrado pela situação do papado no final do século XV e início do século XVI. Os chamados papas do renascimento foram mais estadistas e patronos das artes e da cultura do que pastores do seu rebanho. A instituição papal continuou em declínio, com muitas lutas políticas, simonia, nepotismo, falta de liderança espiritual, aumento de gastos e novos impostos eclesiásticos. Como papa Alexandre VI (1492-1503), o espanhol Rodrigo Borja foi um generoso promotor das artes e da carreira dos seus filhos César e Lucrécia; Júlio II (1503-1513) foi um papa guerreiro, comandando pessoalmente o

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seu exército; Leão X (1513-1521), o papa contemporâneo de Lutero, teria dito quando foi eleito: “Agora que Deus nos deu o papado, vamos desfrutá-lo.”

Implicações PráticasQuando olhamos para a Idade Média, temos a tendência de considerá-la um período pouco edificante para nós, como herdeiros da Reforma. Vemos uma igreja marcada por doutrinas e práticas estranhas, em virtude do seu afastamento das Escrituras e do excessivo apego a tradições, bem como uma igreja contaminada por uma relação viciada como o estado e excessivamente envolvida com interesses não-espirituais. Todavia, seria um erro achar que a igreja medieval nada tem a ver conosco. Se desprezamos esse período, cortamos a nossa ligação com a história da igreja e temos de admitir que por cerca de um milênio não houve um corpo de Cristo na terra. Por trás da instituição eclesiástica e de suas estruturas nem sempre saudáveis, havia manifestações de um cristianismo bíblico, de uma piedade autêntica, de amoroso serviço a Cristo e ao próximo, de missões transculturais bem-sucedidas. As igrejas evangélicas atuais também têm as suas falhas, na forma de divergências doutrinárias, ensinos questionáveis, ética nem sempre coerente, fracassos morais de líderes destacados. Obviamente, também apresentam aspectos muito positivos e edificantes. Vistas em suas principais características, como nossas igrejas serão avaliadas pelas gerações futuras?

A Reforma Protestante (1517-1648) – 1ª Parte

1. AntecedentesVimos no final da aula anterior alguns elementos que caracterizavam a sociedade européia às vésperas da Reforma. Havia muita violência, baixa expectativa de vida, profundos contrastes sócio-econômicos e um crescente sentimento nacionalista. Havia também muita insatisfação, tanto dos governantes como do povo, em relação à igreja, principalmente ao alto clero e a Roma. Na área espiritual, havia insegurança e ansiedade acerca da salvação em virtude de uma religiosidade baseada em obras, também chamada de religiosidade contábil ou “matemática da salvação” (débitos = pecados; créditos = boas obras).

Foi bastante inusitado o episódio mais imediato que desencadeou o protesto de Lutero. Desde meados do século XIV, cada novo líder do Sacro Império Romano era escolhido por um colégio eleitoral composto de quatro príncipes e três arcebispos. Em 1517, quando houve a eleição de um novo imperador, um dos três arcebispados eleitorais (o de Mainz ou Mogúncia) estava vago. Uma das famílias nobres que participavam desse processo, os Hohenzollern, resolveu tomar para si esse cargo e assim ter mais um voto no colégio eleitoral. Um jovem da família, Alberto, foi escolhido para ser o novo arcebispo, mas havia dois problemas: ele era leigo e não tinha a idade mínima exigida pela lei canônica para exercer esse ofício. O primeiro problema foi sanado com a sua rápida ordenação ao sacerdócio.

Quanto ao impedimento da idade, era necessária uma autorização especial do papa, o que levou a um negócio altamente vantajoso para ambas as partes. A família nobre comprou a autorização do papa Leão X mediante um empréstimo feito junto aos banqueiros Fugger, de Augsburgo. Ao mesmo tempo, o papa autorizou o novo arcebispo Alberto de

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Brandemburgo a fazer uma venda especial de indulgências, dividindo os rendimentos da seguinte maneira: parte serviria para o pagamento do empréstimo feito pela família e a outra parte iria para as obras da Catedral de São Pedro, em Roma. E assim foi feito. Tão logo foi instalado no seu cargo, Alberto encarregou o dominicano João Tetzel de fazer a venda das indulgências (o perdão das penas temporais do pecado). Quando Tetzel aproximou-se de Wittenberg, Lutero resolveu pronunciar-se sobre o assunto.

2. Martinho Lutero (1483-1546)Martinho Lutero nasceu em 1483 na pequena cidade de Eisleben, na Turíngia, em um lar muito religioso. Seu pai trabalhava nas minas e a família tinha uma vida confortável. Inicialmente, o jovem pretendeu seguir a carreira jurídica, mas em 1505 defrontou-se com a morte em uma tempestade e resolveu abraçar a vida religiosa. Ingressou no mosteiro agostiniano de Erfurt, onde dedicou-se a uma intensa busca da salvação. Em 1512, tornou-se professor da Universidade de Wittenberg, onde passou a ministrar cursos sobre vários livros da Bíblia, como Gálatas e Romanos. Isso lhe deu um novo entendimento acerca da “justiça de Deus”: ela não era simplesmente uma expressão da severidade de Deus, mas do seu amor que justifica o pecador mediante a fé em Jesus Cristo (Rom 1.17).

No dia 31 de outubro de 1517, diante da venda das indulgências por João Tetzel, Lutero afixou à porta da igreja de Wittenberg as suas Noventa e Cinco Teses, a maneira usual de convidar-se uma comunidade acadêmica para debater algum assunto. Logo, uma cópia das teses chegou às mãos do arcebispo, que as enviou a Roma. No ano seguinte, Lutero foi convocado para ir a Roma a fim de responder à acusação de heresia. Recusando-se a ir, foi entrevistado pelo cardeal Cajetano e manteve as suas posições. Em 1519, Lutero participou de um debate em Leipzig com o dominicano João Eck, no qual defendeu o pré-reformador João Hus e afirmou que os concílios e os papas podiam errar. Em 1520, a bula papal Exsurge Domine (= “Levanta-te, Senhor”) deu-lhe sessenta dias para retratar-se ou ser excomungado. Os estudantes e professores da universidade queimaram a bula e um exemplar da lei canônica em praça pública. Nesse mesmo ano, Lutero escreveu várias obras importantes, especialmente três: À Nobreza Cristã da Nação Alemã, O Cativeiro Babilônico da Igreja e A Liberdade do Cristão. Isso lhe deu notoriedade imediata em toda a Europa e aumentou a sua popularidade na Alemanha. No início de 1521, foi publicada a bula de excomunhão, Decet Pontificem Romanum. Nesse ano, Lutero compareceu a uma reunião do parlamento, a Dieta de Worms, onde reafirmou as suas idéias. Foi promulgado contra ele o Edito de Worms, que o levou a refugiar-se no castelo de Wartburgo, sob a proteção do príncipe-eleitor da Saxônia, Frederico, o Sábio. Ali Lutero começou a produzir uma obra-prima da literatura alemã, a sua tradução das Escrituras.

3. A Reforma na AlemanhaA partir de então, a reforma luterana difundiu-se rapidamente no Sacro Império, sendo abraçada por vários principados alemães. Isso levou a dificuldades crescentes com os principados católicos, com o novo imperador Carlos V (1519-1556) e com o parlamento (Dieta). Na Dieta de 1526, houve uma atitude de tolerância para com os luteranos, mas em 1529 a Dieta de Spira reverteu essa política conciliadora. Diante disso, os líderes luteranos fizeram um protesto formal que deu origem ao nome histórico “protestantes”. No ano seguinte, o auxiliar e eventual sucessor de Lutero, Filipe Melanchton (1497-1560),

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apresentou ao imperador Carlos V a Confissão de Augsburgo, um importante documento que definia em 21 artigos a doutrina luterana e indicava sete erros que Lutero via na Igreja Católica Romana.

Os problemas político-religiosos levaram a um período de guerras entre católicos e protestantes (1546-1555), que terminaram com um tratado, a Paz de Augsburgo. Esse tratado assegurou a legalidade do luteranismo mediante o princípio “cujus regio, eius religio”, ou seja, a religião de um príncipe seria automaticamente a religião oficial do seu território. O luteranismo também se difundiu em outras partes da Europa, principalmente nos países nórdicos, surgindo igrejas nacionais luteranas na Suécia (1527), Dinamarca (1537), Noruega (1539) e Islândia (1554). Lutero e os demais reformadores defenderam alguns princípios básicos que viriam a caracterizar as convicções e práticas protestantes: sola Scriptura, solo Christo, sola gratia, sola fides, soli Deo gloria. Outro princípio aceito por todos foi o do sacerdócio universal dos fiéis.

4. Ulrico Zuínglio (1484-1531)Ulrico Zuínglio recebeu uma educação esmerada, com forte influência humanista. Inicialmente, foi sacerdote em Glarus (1506) e em Einsiedeln (1516). Influenciado pelo Novo Testamento publicado por Erasmo de Roterdã, tornou-se um estudioso das Escrituras e um pregador bíblico. Com isso, foi chamado para trabalhar na catedral de Zurique em 1518. Quatro anos mais tarde, surgiram as primeiras divergências com a doutrina católica. Zuínglio defendeu o consumo de carne na quaresma e o casamento dos sacerdotes, alegando não serem essas coisas proibidas nas Escrituras. Ele propôs o princípio de que tudo devia ser julgado pela Bíblia. Em 1523, houve o primeiro debate público em Zurique e a cidade começou a tornar-se protestante. O reformador escreveu os Sessenta e Sete Artigos – a carta magna da reforma de Zurique – nos quais defendeu a salvação somente pela graça, a autoridade da Escritura e o sacerdócio dos fiéis, bem como atacou o primado do papa e a missa. Esse movimento suíço, conhecido como a “segunda reforma”, deu origem às igrejas “reformadas”, difundindo-se inicialmente na Suíça alemã e no sul da Alemanha. Em 1525, o Conselho Municipal de Zurique adotou o culto em lugar da missa e em geral promoveu mudanças mais radicais do que as efetuadas por Lutero.

Como estava acontecendo na Alemanha, também na Suíça houve guerras entre católicos e protestantes. Em 1529, travou-se a primeira batalha de Kappel. No mesmo ano, a Dieta de Spira mostrou aos protestantes a necessidade de uma aliança contra os seus adversários. Para tanto, era necessário que resolvessem algumas diferenças doutrinárias. Isso levou ao Colóquio de Marburg, convocado pelo príncipe Filipe de Hesse. Luteranos e reformados concordaram sobre a maior parte das questões doutrinárias, mas divergiram seriamente sobre o significado da Santa Ceia. Em 1531, Zuínglio morreu na segunda batalha de Kappel.

5. Os Reformadores Radicais (Anabatistas)O terceiro movimento da Reforma Protestante surgiu na própria cidade de Zurique. Em 1522, homens como Conrado Grebel e Félix Mantz começaram a reunir-se com amigos para estudar a Bíblia. Inicialmente, eles apoiaram o obra de Zuínglio, mas a partir de 1524

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passaram a condenar tanto Zuínglio quanto as autoridades municipais, alegando que a sua obra de reforma não estava sendo profunda o suficiente. Por causa de sua insistência no batismo de adultos, foram apelidados de “anabatistas”, ou seja, rebatizadores, sendo também chamados de radicais, fanáticos, entusiastas e outras designações. Por causa de suas atividades de protesto, nas quais chegavam a interromper cultos e celebrações da ceia, os líderes anabatistas sofreram punições de severidade crescente. Em 1526, Grebel morreu em uma epidemia, mas seu pai foi decapitado, Mantz foi afogado e outro líder, Jorge Blaurock, foi expulso da cidade.

O movimento logo difundiu-se nas vizinhas Alemanha e Áustria e em outras partes da Europa. Um importante líder em Estrasburgo foi Miguel Sattler (c.1490-1527), que presidiu a conferência de Schleitheim (1527), na qual os anabatistas aprovaram a Confissão de Fé de Schleitheim. Essa confissão definiu os princípios anabatistas básicos: ideal de restauração da igreja primitiva; igrejas vistas como congregações voluntárias separadas do Estado; batismo de adultos por imersão; afastamento do mundo; fraternidade e igualdade; pacifismo; proibição do porte de armas, cargos públicos e juramentos. Os anabatistas foram os únicos protestantes do século XVI a defenderem a completa separação entre a igreja e o estado.

Os anabatistas adquiriram uma reputação negativa por causa de acontecimentos ocorridos na cidade de Münster (1532-1535). Influenciados por Melchior Hoffman, que anunciou o fim do mundo e a destruição dos ímpios, alguns anabatistas implantaram uma teocracia intolerante naquela cidade alemã. Finalmente, foram todos mortos por um exército católico. Já na Holanda, o movimento teve um líder equilibrado e capaz na pessoa de Menno Simons (1496-1561), do qual vieram os menonitas. Outro líder de expressão foi Jacob Hutter (†1536), na Morávia. Os menonitas e os huteritas viviam em colônias, tendo tudo em comum (ver Atos 2.44; 4.32). Cruelmente perseguidos em toda a Europa, muitos deles eventualmente emigraram para a América do Norte.

6. João Calvino (1509-1564)João Calvino nasceu em Noyon, no nordeste da França. Seu pai, Gérard Cauvin, era secretário do bispo e advogado da igreja naquela cidade; sua mãe Jeanne Lefranc, morreu quando ele ainda era uma criança. Após os primeiros estudos em sua cidade, Calvino seguiu para Paris, onde estudou teologia e humanidades (1523-1528). A seguir, por determinação do pai, foi estudar direito nas cidades de Orléans e Bourges (1528-1531). Com a morte do pai, retornou a Paris e deu prosseguimento aos estudos humanísticos, publicando sua primeira obra, um comentário do tratado de Sêneca Sobre a Clemência.

Calvino converteu-se provavelmente em 1533. No dia 1º de novembro daquele ano, seu amigo Nicholas Cop fez um discurso de posse na Universidade de Paris repleto de idéias protestantes. Calvino foi considerado o co-autor do discurso e os dois amigos tiveram de fugir para salvar a vida. Calvino foi para a cidade de Angouleme, onde começou a escrever a sua obra mais importante, Instituição da Religião Cristã ou Institutas, publicada em Basiléia em 1536 (a última edição seria publicada somente em 1559). Após voltar por breve tempo ao seu país, Calvino decidiu fixar-se na cidade protestante de Estrasburgo, onde atuava o reformador Martin Butzer (1491-1551). No caminho, ocorreu um episódio marcante. Impossibilitado de seguir diretamente para Estrasburgo por causa de guerra entre

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a França e a Alemanha, o futuro reformador fez um longo desvio, passando por Genebra, na Suíça francesa. Essa cidade havia abraçado o protestantismo reformado há apenas dois meses (maio de 1536), sob a liderança de Guilherme Farel (1489-1565). Este, sabendo que o autor das Institutas estava de passagem pela cidade, o “convenceu” a permanecer ali e ajudá-lo.

7. A Reforma em GenebraLogo Calvino e Farel entraram em conflito com os magistrados de Genebra e dois anos depois foram expulsos. Calvino seguiu então para Estrasburgo, onde passou os três anos mais felizes e produtivos da sua carreira (1538-1541). Naquela cidade ele pastoreou uma igreja de refugiados franceses, casou-se com a viúva Idelette de Bure (†1549), lecionou na academia de João Sturm, participou de conferências religiosas ao lado de Martin Butzer e publicou algumas obras importantes, entre elas a segunda edição das Institutas e o Comentário de Romanos, o primeiro dos muitos que escreveu.

Eventualmente, os magistrados de Genebra insistiram no seu retorno. Calvino aceitou com a condição de que pudesse escrever a constituição da Igreja Reformada de Genebra. Essa importante obra, as Ordenanças Eclesiásticas, previa quatro categorias de oficiais: pastores, encarregados da pregação e dos sacramentos; doutores para o estudo e ensino da Bíblia; presbíteros, com funções disciplinares; e diáconos, encarregados da beneficência. Os pastores e os doutores formavam a Companhia dos Pastores; os pastores e os presbíteros integravam o Consistório, uma espécie de tribunal eclesiástico. Calvino teve um relacionamento tenso com as autoridades municipais até 1555. No final desse período, em 1553, o médico espanhol Miguel Serveto foi condenado e executado por heresia. Calvino teve uma participação nesse episódio, lamentada por seus herdeiros, o que não anula a sua grande obra como reformador, escritor, teólogo e líder eclesiástico. Em 1559, um ano especialmente significativo, o reformador tornou-se cidadão de Genebra, fundou a sua Academia, embrião da Universidade de Genebra, e publicou a última edição das Institutas.

A visão do reformador francês era tornar Genebra uma cidade-cristã-modelo através da reorganização da igreja, de um ministério bem preparado, de leis que expressassem uma ética bíblica e de um sistema educacional completo e gratuito. O resultado foi que Genebra tornou-se um grande centro do protestantismo, preparando líderes reformados para toda a Europa e abrigando centenas de refugiados. O calvinismo veio a ser o mais completo sistema teológico protestante, tendo por princípio básico a soberania de Deus e suas implicações, soteriológicas e outras. Foi essa a origem das igrejas reformadas (continente europeu) ou presbiterianas (Ilhas Britânicas). Os principais países em que se difundiu o movimento reformado foram, além da Suíça e da França, o sul da Alemanha, a Holanda, a Hungria e a Escócia.

Calvino também notabilizou-se como um erudito bíblico. Escreveu comentários sobre quase todo o Novo Testamento e os principais livros do Antigo Testamento. Seus sermões e preleções também expuseram amplamente as Escrituras. Além disso, escreveu muitos opúsculos, tratados e cartas. Mas a maior das suas obras são as Institutas, nas quais ele expôs todos os aspectos da doutrina cristã, apelando às Escrituras e ao testemunho dos antigos pais da igreja. Em muitas de suas obras se vê uma mão que sustenta um coração, e

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ao redor as palavras Cor meum tibi offero Domine, prompte et sincere (“O meu coração te ofereço, ó Senhor, de modo pronto e sincero”).

Implicações PráticasOs reformadores não estavam buscando inovar, mas restaurar antigas verdades bíblicas que haviam sido esquecidas ou obscurecidas pelo tempo e pelas tradições humanas. Sua maior contribuição foi chamar a atenção das pessoas para a importância das Escrituras e seus grandes ensinos, especialmente no que diz respeito à salvação e à vida cristã. Para que as igrejas evangélicas atuais possam manter-se fiéis à sua vocação, é preciso que julguem tudo pelas Escrituras, acolhendo o que é bom e lançando fora o que é mau. Os reformadores nos mostraram que o critério da verdade não são os ensinos humanos, nem a experiência espiritual subjetiva, mas o Espírito Santo falando na Palavra e pela Palavra.

Reforma e Contra-Reforma (1517-1648) – 2ª Parte

1. A Reforma na InglaterraVários fatores contribuíram para a introdução da Reforma Protestante na Inglaterra: o anticlericalismo de uma grande parcela do povo e dos governantes, as idéias do pré-reformador João Wycliff, a penetração de ensinos luteranos a partir de 1520, o Novo Testamento traduzido por William Tyndale (1525) e a atuação de refugiados que voltaram de Genebra. Todavia, quem deu o passo decisivo para que a Inglaterra começasse a tornar-se protestante foi o rei Henrique VIII.

Henrique VIII (1491-1547) começou a reinar em 1509. Sendo muito católico, em 1521 escreveu um folheto contra Lutero que lhe valeu o título de “defensor da fé.” Era casado com a princesa espanhola Catarina de Aragão, viúva do seu irmão, que não conseguiu dar-lhe um filho varão, mas somente uma filha, Maria. Henrique pediu ao papa Clemente VII que anulasse o seu casamento com Catarina para que pudesse casar-se com Ana Bolena (Anne Boleyn), mas o papa não pode atendê-lo nesse desejo. Uma das principais razões foi o fato de que Catarina era tia do sacro imperador germânico Carlos V. Em 1533, Thomas Cranmer (1489-1556) foi nomeado arcebispo de Cantuária e poucos meses depois declarou nulo o casamento do rei. Em 1534, o parlamento aprovou o Ato de Supremacia, pelo qual a Igreja Católica inglesa desvinculou-se de Roma e o rei foi declarado “Protetor e Único Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra.” O bispo John Fisher e o ex-chanceler Thomas More opuseram-se a essas medidas e foram executados (1535); os numerosos mosteiros do país foram extintos e suas propriedades confiscadas (1536-1539). Nos anos seguintes, Henrique ainda teria outras quatro esposas: Jane Seymour, Ana de Cleves, Catarina Howard e Catarina Parr.

Henrique morreu na fé católica e foi sucedido no trono por Eduardo VI (1547-1553), o filho que teve com Jane Seymour. Os tutores do jovem rei implantaram a Reforma na Inglaterra e puseram fim às perseguições contra os protestantes. Foram aprovados dois importantes documentos escritos pelo arcebispo Cranmer, o Livro de Oração Comum (1549; revisto em 1552) e os Quarenta e Dois Artigos (1553), uma síntese das teologias luterana e calvinista. Eduardo era doentio e morreu ainda jovem, sendo sucedido por sua irmã Maria Tudor (1553-1558), conhecida como “a sanguinária”, filha de Catarina de Aragão. Maria

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perseguiu os líderes protestantes e muitos foram levados à fogueira. Os mártires mais famosos foram Hugh Latimer, Nicholas Ridley e Thomas Cranmer. Muitos outros, os chamados “exilados marianos”, foram para Genebra, Estrasburgo e outras cidades protestantes.

Com a morte de Maria, subiu ao trono sua meio-irmã Elizabete I (1558-1603), filha de Ana Bolena, em cujo reinado a Inglaterra tornou-se definitivamente protestante. Em 1563 foi promulgado o Ato de Uniformidade, que aprovou os Trinta e Nove Artigos. O resultado foi o acordo anglicano, que reuniu elementos das principais teologias evangélicas, bem como traços católicos, especialmente na área da liturgia. Além dos anglicanos, havia outros grupos protestantes na Inglaterra, como os puritanos, presbiterianos e congregacionais. Os puritanos surgiram no reinado de Elizabete e foram assim chamados porque reivindicavam uma igreja pura em sua doutrina, culto e forma de governo. Reprimidos na Inglaterra, muitos puritanos foram para a América do Norte, estabelecendo-se em Plymouth (1620) e Boston (1630), na Nova Inglaterra. Outro grupo protestante inglês foram os batistas, surgidos a partir de 1607 sob a liderança de John Smyth e Thomas Helwys. Este fundou em 1612 a primeira igreja batista geral.

No século XVI, no contexto da guerra civil entre o rei Carlos I e um parlamento puritano, foi convocada a Assembléia de Westminster (1643-1649). Essa célebre assembléia elaborou uma série de documentos calvinistas para a Igreja da Inglaterra, entre os quais a Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Breve, que se tornaram os principais símbolos confessionais das igrejas reformadas ou presbiterianas.

2. A Reforma na EscóciaO protestantismo começou a ser difundido na Escócia por homens como Patrick Hamilton e George Wishart, ambos martirizados. Todavia, o presbiterianismo foi introduzido graças aos esforços do reformador John Knox (†1572), um discípulo de Calvino que, após passar alguns anos em Genebra, retornou ao seu país em 1559. No ano seguinte, o parlamento escocês criou a Igreja da Escócia (presbiteriana). Knox fez oposição tenaz à rainha católica Maria Stuart (1542-1587), prima de Elizabete, que viveu na França (1548-1561) e voltou à Escócia para tomar posse do trono. A aceitação do protestantismo ocorreu no contexto da luta pela independência do domínio francês. Alguns anos mais tarde, Maria Stuart teve de fugir e buscar refúgio na Inglaterra, onde foi executada por ordem de Elizabete em 1587.

Foi na Escócia que surgiu o conceito político-religioso de “presbiterianismo”. Os reis ingleses e escoceses sempre foram firmes defensores do episcopalismo, ou seja, de uma igreja governada por bispos. A razão disso é que, sendo os bispos nomeados pelos reis, a igreja seria mais facilmente controlada pelo estado e serviria aos interesses do mesmo. À luz das Escrituras, os presbiterianos insistiram em uma igreja governada por oficiais eleitos pela comunidade, os presbíteros, tornando assim a igreja livre da tutela do estado. Foi somente após um longo e tumultuado processo que o presbiterianismo implantou-se definitivamente na Escócia.

3. A Reforma na FrançaO movimento reformado francês surgiu na década de 1530. Inicialmente tolerante, o rei Francisco I (1515-1547) eventualmente mostrou-se hostil contra os reformados. Henrique II

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(1547-1559) foi ainda mais severo que o seu pai. Em 1559 reuniu-se o primeiro sínodo nacional da Igreja Reformada da França, que aprovou a Confissão Galicana. Em 1561, havia duas mil congregações reformadas no país, compostas de artesãos, comerciantes e até mesmo de algumas família nobres, como os Bourbon e os Montmorency. Os reformados franceses, conhecidos como huguenotes, estavam concentrados principalmente no oeste e sudoeste do país, e recebiam decidido apoio de Genebra. Ao norte e leste estava a facção ultra-católica liderada pela poderosa família Guise-Lorraine.

No reinado de Francisco II (1559-1560), os Guise controlaram o governo. Quando Carlox IX (1560-1574) tornou-se rei, sendo ainda menor, sua mãe Catarina de Médici assumiu a regência, mostrando-se inicialmente tolerante para com os huguenotes. Tentando conciliar as duas facções, ela promoveu um encontro de católicos e protestantes, o Colóquio de Poissy, em 1561. Com o fracasso desse encontro, houve um longo período de guerras religiosas (1562-1598), cujo episódio mais chocante foi o massacre do Dia de São Bartolomeu (24-08-1572). Centenas de huguenotes achavam-se em Paris para o casamento da filha de Catarina com o nobre protestante Henrique de Navarra. Na calada da noite, os huguenotes foram assassinados à traição enquanto dormiam, entre eles o seu principal líder, almirante Gaspard de Coligny. Nos dias seguintes, muitos milhares foram mortos no interior da França. Mais tarde, quando o nobre huguenote tornou-se rei, com o título de Henrique IV, ele promulgou em favor dos seus correligionários o Edito de Nantes (1598), concedendo-lhes uma tolerância limitada. Esse edito seria revogado pelo rei Luís XIV em 1685, dando início a um novo período de duras provações para os reformados franceses.

4. A Reforma nos Países BaixosOs Países Baixos eram parte do Sacro Império Germânico e depois ficaram sob o domínio da Espanha. Durante o reinado do imperador Carlos V, surgiram naquela região luteranos, anabatistas e principalmente calvinistas, por volta de 1540. Desde o início foram objeto de intensas perseguições, tendo a repressão aumentado sob o rei Filipe II (1555) e o governador Duque de Alba (1567). A revolta contra a tirania espanhola foi liderada pelo alemão Guilherme de Orange, grande defensor da plena liberdade religiosa, que seria assassinado em 1584. Eventualmente, os Países Baixos dividiram-se em três nações: Bélgica e Luxemburgo (católicas) e Holanda (protestante).

A Igreja Reformada Holandesa foi organizada na década de 1570. No início do século XVII surgiu uma forte controvérsia por causa das idéias de Tiago Armínio. O Sínodo de Dort (1618-1619) rejeitou as idéias de Armínio e afirmou os chamados “cinco pontos do calvinismo”, cujas iniciais formam em inglês a palavra “tulip” (tulipa):

T Total depravity Depravação total  U Unconditional election Eleição incondicional 

L Limited atonement Expiação limitada  I Irresistible grace Graça irresistível

P Perseverance of the saints Perseverança dos santos  

5. A Contra-Reforma

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Ao analisarem as ações da Igreja Católica Romana após o surgimento do protestantismo, os historiadores falam em dois aspectos: Contra-Reforma e Reforma Católica. O primeiro foi o esforço da Igreja Romana para reorganizar-se e lutar contra o protestantismo. Essa reação ocorreu tanto no plano dogmático quanto político-militar. Já a Reforma Católica revelou a preocupação de corrigir certos problemas internos do catolicismo em resposta às críticas dos protestantes e de outros grupos.

Foram vários os elementos dessa reação. Na Espanha, houve notáveis manifestações de uma rica espiritualidade mística, cujos representantes mais destacados foram Teresa de Ávila e João da Cruz. Além do misticismo espanhol, outro sinal da revitalização católica foi o surgimento de várias ordens religiosas, das quais a mais importante foi a Sociedade de Jesus, fundada pelo espanhol Inácio de Loiola (1491-1556) e oficializada pelo papa em 1540. Além dos votos usuais de pobreza, castidade e obediência aos superiores, os jesuítas faziam um voto adicional de submissão incondicional ao papa. Seu objetivo era a expansão e o fortalecimento da fé católica através de missões, educação e combate à heresia. Os jesuítas exerceram forte influência sobre governantes e contribuíram decisivamente para a supressão do protestantismo em várias regiões da Europa, como a Espanha e a Polônia.

O instrumento mais eficaz tanto da Contra-Reforma quanto da Reforma Católica foi o Concílio de Trento, que reuniu-se em três séries de sessões entre 1545 e 1563. Seus decretos rejeitaram explicitamente as doutrinas protestantes e oficializaram o tomismo (a teologia de Tomás de Aquino), a Vulgata Latina e os livros denominados apócrifos ou deuterocanônicos. Outros instrumentos da Contra-Reforma foram o Índice de Livros Proibidos (Index Librorum Prohibitorum, 1559) e a Inquisição, especialmente em suas versões espanhola e romana. Como expressão do dinamismo católico nesse período, as ordens dos franciscanos, dominicanos e jesuítas realizaram uma grande obra missionária no Oriente e nas Américas.No território do Sacro Império, os conflitos entre católicos e protestantes continuaram por muitas décadas, atingindo o seu auge na tenebrosa Guerra dos Trinta Anos, que envolveu metade do continente europeu. Essa guerra terminou com a Paz de Westfália (1648), que fixou definitivamente as fronteiras político-religiosas da Europa e marcou o final do período da Reforma.

Implicações PráticasA história da Reforma nem sempre é agradável e inspiradora. Por causa das profundas conexões entre elementos religiosos e políticos, esse período foi marcado por muita violência em nome da fé. Porque a religião é uma coisa muito importante para as pessoas, as paixões que desperta podem se tornar terrivelmente destrutivas. Os erros cometidos nessa área por diferentes grupos nos séculos XVI e XVII nos servem de advertência e de estímulo para a prática da caridade cristã e da tolerância, conforme o exemplo de Cristo. Podemos, sem abrir mão de nossas convicções, respeitar os que pensam diferente de nós.

Ao mesmo tempo, nos impressionamos com o heroísmo de tantos irmãos nossos da época da Reforma, que por causa de sua fé enfrentaram muitas provações e até mesmo mortes cruéis. O evangelho já não exige esse tipo de sacrifício da maioria dos cristãos do Ocidente, mas isso não significa que estamos livres de grandes desafios. São outras as maneiras pelas quais a nossa fé é testada no tempo presente. Viver de acordo com os princípios e os

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valores do Reino de Deus continua sendo uma prova difícil, mas necessária, para todos os cristãos.

Racionalismo e Reavivamentos (1648-1789)

Este período estendeu-se por quase um século e meio, desde a Paz de Westfália até o importante marco histórico e ideológico que foi a Revolução Francesa (1789). O período foi caracterizado por um poderoso fenômeno cultural e filosófico, o Iluminismo, com todo o seu questionamento de antigos pressupostos e a criação de uma nova cosmovisão, o que representou um formidável desafio para o cristianismo. A Igreja Católica dessa época é caracterizada como “tridentina” (referente a Trento) e “ultramontana” (= além dos montes, isto é, os Alpes, numa referência à autoridade suprema do papa). Era uma igreja mais estruturada, conservadora e militante. Entre os protestantes essa foi uma época de grande vitalidade, que se manifestou especialmente nas áreas da espiritualidade e missões.

1. OrtodoxiaO período da Reforma foi marcado pela preocupação dos diferentes grupos em definir com precisão as suas posições teológicas. Como já foi visto, a Igreja Católica explicitou mais plenamente os seus dogmas no Concílio de Trento (1545-1563). Os anglicanos aprovaram o Livro de Oração Comum (1549-52) e os Trinta e Nove Artigos (1563), e os luteranos aprovaram a Fórmula de Concórdia (1577). Por sua vez, os calvinistas, além dos muitos documentos confessionais que elaboraram no século XVI, articularam novas definições doutrinárias no Sínodo de Dort (1618-1619) e na Assembléia de Westminster (1643-1649). Por causa dessa preocupação com a definição e defesa da correta doutrina, o século XVII é referido como o período do “escolasticismo protestante” ou da “ortodoxia protestante”. Essas designações geralmente têm uma conotação depreciativa, apontando para o suposto formalismo e frieza espiritual desse período, o que não é de todo incorreto.

2. RacionalismoO século XVII também testemunhou o surgimento de uma nova atitude intelectual em reação ao dogmatismo e intolerância que muitos percebiam no cristianismo, tanto católico quanto protestante. Esse movimento começou com os humanistas (como Erasmo de Roterdã) e floresceu no período de 1650 a 1800, a chamada “era da razão”, que marcou o início do período moderno. As principais ênfases do racionalismo foram a liberdade e dignidade humana, a investigação científica, o questionamento da autoridade e o ceticismo. Seus representantes mais conhecidos foram os filósofos René Descartes (†1650), John Locke (†1704), George Berkeley (†1753) e David Hume (†1776), bem como o cientista cristão Isaac Newton (1642-1727). Outro nome dado ao movimento é Iluminismo (em inglês Enlightenment e em alemão Aufklarung), que revelou um esforço consciente de aplicar a lei da razão aos vários aspectos da vida individual e coletiva.

Curiosamente, apesar de todo o seu ceticismo, os iluministas tinham um religião, o deísmo, também denominada religião natural ou racional. Seu credo era constituído dos seguintes elementos: crença em Deus (Criador e Ser Supremo), valores éticos, bondade humana, progresso, recompensa ou punição futura, suficiência da razão e tolerância religiosa. Por não aceitarem um Deus imanente, que se relaciona com o mundo, os deístas negavam os

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conceitos de providência, revelação e encarnação. Também negavam a trindade (Cristo foi apenas um grande mestre) e os milagres.

Os principais deístas foram ingleses, alemães e especialmente franceses como Voltaire (†1778), Rousseau (†1778) e os enciclopedistas. Vários líderes da independência norte-americana também foram deístas, como Benjamin Franklin (†1790), Thomas Jefferson (†1826) e John Adams (†1826). O grande filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) também pertence a este período, embora não tenha sido um deísta. Ele afirmou que Deus não pode ser conhecido, mas a sua existência é exigida pela razão prática. Kant deu grande ênfase ao conceito ético do imperativo categórico.

3. AlemanhaNos séculos XVII e XVIII houve diversas reações contra o escolasticismo luterano, o tradicionalismo e a interferência política na vida da igreja. Um exemplo disso foram os místicos e músicos como Johann Sebastian Bach (†1750). Todavia, o grande movimento de revitalização espiritual ocorrido no luteranismo alemão foi o pietismo. O iniciador do movimento foi o pastor Philip Spener (1635-1705), que em 1670 começou a promover reuniões domésticas para meditação e oração. Em 1675, Spener publicou a obra Pia Desideria (= “desejos piedosos”), na qual defendeu a necessidade de reformas na igreja e deu ênfase à devoção pessoal e a atividades em pequenos grupos. August H. Francke (1663-1727), seu discípulo, tornou a cidade de Halle em um grande centro do pietismo (1692), criando um orfanato, um hospital, escolas e imprensa.

O movimento desde o início preocupou-se com missões e ampliou a sua influência através de amplos contatos internacionais. Um personagem chave atingido pelo pietismo foi o conde Nicolau Ludwig von Zinzendorf (1700-1760). A comunidade cristã estabelecida em sua propriedade (Herrnhut) recebeu um grupo de morávios e deu origem à Igreja Morávia, da qual Zinzendorf foi o primeiro bispo. Eventualmente, os morávios foram para a Pensilvânia, nos Estados Unidos. O pietismo deu grande ênfase à devoção pessoal, à experiência e aos sentimentos, em contraste com a ortodoxia, credos e ritual. Também enfatizou a necessidade de conversão pessoal, o sacerdócio universal dos crentes, o estudo das Escrituras e um cristianismo prático (beneficência, missões). Outras ênfases foram a união dos cristãos, a escatologia e o milenarismo. Apesar de sua insistência nos sentimentos e na experiência religiosa, o pietismo não desprezou o conhecimento, produzindo intelectuais respeitados como o historiador da igreja Gottfried Arnold (†1714) e o erudito bíblico Johann A. Bengel (†1752).

4. InglaterraNa Inglaterra ocorreu um acentuado declínio do anglicanismo no século XVII, em virtude do controle estatal e da influência do secularismo e do deísmo. No século seguinte, houve um movimento de revitalização liderado por herdeiros dos puritanos. Os chamados “evangélicos” acentuavam a conversão pessoal, a salvação pela graça e a moralidade, revelando em tudo uma clara ênfase calvinista. Alguns personagens destacados foram Henry Venn (†1797), William Romaine (†1795) e o grande autor de hinos John Newton (†1807). Uma característica do movimento evangélico foi exatamente a rica produção de músicas sacras.

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Outro notável movimento de revitalização do protestantismo inglês foi o metodismo, criado pelo ministro anglicano John Wesley (1703-1791). John, seu irmão Charles e alguns amigos fundaram o “clube santo” de Oxford para o cultivo da vida espiritual. Depois de uma experiência missionária fracassada na América, Wesley retornou à Inglaterra, foi influenciado por morávios e teve a célebre experiência de conversão na Rua Aldersgate (1738). Logo depois, foi a Herrnhut e conheceu Zinzendorf. Tornou-se então um grande pregador, evangelista, escritor e organizador. Na teologia, afastou-se do calvinismo que há muito vinha sendo influente no seu país e adotou uma posição arminiana, dando ênfase à salvação universal, salvação livre, salvação certa, salvação plena, bem como à inteira santificação. Outra figura notável foi o calvinista George Whitefield (1714-1770), inicialmente um companheiro de Wesley. Destacou-se como extraordinário pregador e evangelista, fazendo várias viagens à América do Norte e influenciando o Grande Despertamento (1740).

5. MissõesOs séculos XVI e XVII testemunharam intensa atividade missionária transcultural por parte da Igreja Católica, especialmente na Ásia e na América Latina. No Oriente, os principais missionários foram os jesuítas. No Japão, um grande pioneiro foi Francisco Xavier (†1552), o “apóstolo” das Índias (1542) e do Japão (1549); nesse país, o cristianismo experimentou grandes perseguições após 1587. Na China trabalhou Mateus Ricci (†1610), cujos métodos missionários produziram muita controvérsia e a acusação de sincretismo. Na Índia destacou-se Roberto de Nobili (†1656), que trabalhou entre os brâmanes. O trabalho missionário sistemático nas Filipinas começou com o padre Legaspi em 1564.

Devido a uma série de circunstâncias, os protestantes pouco fizeram em termos de missões aos pagãos nos séculos XVI e XVII. As primeiras sociedades missionárias protestantes foram a Companhia para a Propagação do Evangelho na Nova Inglaterra (1649), a Sociedade para a Promoção do Conhecimento Cristão (SPCK, 1698) e a Sociedade para a Propagação do Evangelho em Regiões Estrangeiras (1702). Outro esforço pioneiro foi a Missão Dinamarquesa-Halle, uma associação entre luteranos pietistas e o rei da Dinamarca. Essa missão enviou Bartolomeu Ziegenbalg (1683-1719) e Henrique Plütschau (1678-1747) como missionários à Índia. A Bíblia em tamil foi publicada em 1728. Hans Egede (†1758) foi missionário na Groenlândia. Todavia, o movimento missionário protestante só teria início com o pastor inglês William Carey (1761-1834), tido como o “pai das missões modernas”, e a Sociedade Missionária Batista, criada em 1792.

6. A AméricaOs primeiros colonizadores ingleses da América do Norte foram os anglicanos que fundaram Jamestown, na Virgínia, em 1607. Alguns anos depois, chegaram a Plymouth, Massachusetts, os peregrinos do navio Mayflower (1620), que eram puritanos separatistas. Outro grupo de puritanos, esses não-separatistas, fundou Salem e Boston em 1629-1630. Até 1640, cerca de vinte mil puritanos iriam para a Nova Inglaterra, fundando a Igreja Congregacional. Os batistas estabeleceram-se na pequena colônia de Rhode Island, cuja capital, Providence, foi fundada por Roger Williams (†1683). Os presbiterianos escoceses-irlandeses fixaram-se em grande parte nas colônias centrais (Nova Jersey, Pensilvânia, Virgínia). Sob a liderança de Francis Mackemie, foi fundado o Presbitério de Filadélfia em 1706; o Sínodo de Filadélfia surgiu em 1716 e a Assembléia Geral em 1788. Os metodistas

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foram organizados em 1773 por Francis Asbury. Os quakers e outros refugiados religiosos radicaram-se na Pensilvânia, colônia fundada por William Penn em 1682. Os católicos concentraram-se em Maryland, colônia criada por Lord Baltimore.

Os calvinistas foram pioneiros em diversas áreas da vida religiosa das Treze Colônias. O primeiro missionário aos indígenas foi John Eliot (1604-1690), pastor congregacional em Roxbury, Massachusetts. Eliot traduziu o Novo Testamento para a língua algonquim, tradução essa que foi a primeira nas Américas. Na ilha de Martha’s Vineyard trabalharam entre os indígenas várias gerações da família Mayhew (1646-1806). Outro famoso missionário aos índios norte-americanos foi o jovem David Brainerd, falecido em 1747.

O maior fenômeno religioso das Treze Colônias foi o Grande Despertamento (1727-1743). Alguns de seus líderes iniciais foram o reformado holandês Theodore Frelinghuysen e o presbiteriano William Tennent. Porém, seus maiores expoentes foram o evangelista George Whitefield, já mencionado, e Jonathan Edwards (1703-1758), pastor congregacional em Northampton, Massachusetts. Edwards notabilizou-se por suas análises e descrições extremamente perspicazes do avivamento e é hoje considerado um dos maiores teólogos norte-americanos.

7. Igreja OrtodoxaA igreja grega ou oriental sofreu um duro golpe com a queda de Constantinopla, em 1453. Seu único teólogo notável por dois séculos foi Cirilo Lucar (†1638), que sofreu influências calvinistas e foi condenado pelo Sínodo de Jerusalém (1672). Esse sínodo afirmou posições semelhantes às do catolicismo tridentino. A igreja ortodoxa da Rússia foi controlada e oprimida pelos czares (= césares), especialmente os Romanovs. O Patriarcado de Moscou foi criado em 1588. A igreja russa revelou duas tendências opostas: de um lado, rigidez e formalismo (discutiu-se se o sinal da cruz devia ser feito com dois ou três dedos); de outro lado, reavivamento e vitalidade (misticismo, influência do pietismo alemão). Um grupo interessante de igrejas do Oriente Médio e do leste europeu são os uniatas, igrejas orientais que se uniram a Roma, mantendo características próprias.

Implicações PráticasUm aspecto interessante da história da igreja é o seu movimento pendular, ou seja, de ação e reação. Isso fica bem claro neste período, em que uma ênfase inicial no intelecto e na razão (ortodoxia, racionalismo) gerou uma reação oposta centrada na experiência e no sentimento (pietismo, avivamentos). Todavia, esses elementos não precisam ser opostos, irreconciliáveis. É possível, e mesmo desejável, ser um cristão fervoroso, piedoso, e ao mesmo tempo valorizar a cultura e o intelecto, pois Deus é o autor de ambas, a razão e a emoção, e devemos cultuá-lo e servi-lo com essas duas dimensões complementares da nossa personalidade.

Os grandes avivamentos deste período revelam outra realidade importante. A genuína experiência religiosa transcende o plano pessoal e individual para alcançar e beneficiar toda a sociedade. Pietistas, evangélicos, metodistas e outros grupos acentuavam a necessidade de conversão e comunhão com Deus, mas também se envolveram amplamente em atividades como educação, ação social e missões. É esse o modelo abrangente de vida e testemunho cristãos que precisamos incentivar em nosso país.

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Os Séculos Dezenove e Vinte Esta aula está subdividida em duas partes: O Século XIX e O Século XX.

A. O Século XIXEm certo sentido, o século XIX começou com a Revolução Francesa (1789-1795), que por sua vez inspirou-se, pelo menos em parte, na Revolução Americana (1776). Essas revoluções popularizaram conceitos políticos que eventualmente seriam adotados por quase todas as nações do hemisfério ocidental, entre os quais a separação entre a igreja e o estado e a liberdade de consciência e religião.

1. A Igreja CatólicaA Revolução Francesa foi um rude golpe contra a Igreja Católica. Influenciados pelo racionalismo, os revolucionários pretenderam eliminar o cristianismo na França: templos foram destruídos e muitos sacerdotes foram mortos. Na “era napoleônica” (1795-1815) a igreja tornou-se novamente oficial (1801-1805), mas sujeita ao Estado. Em 1809, Napoleão entrou em Roma e anexou os estados papais.

A igreja reagiu fortemente contra o ideário da revolução. A ordem dos jesuítas, que havia sido suprimida em 1773 pelo papa Clemente XIV, foi restabelecida em 1814. O papado experimentou um acentuado fortalecimento, que chegou ao seu ponto mais alto no pontificado de Pio IX (1846-1878), o mais longo da história dos papas. Pio proclamou o dogma da imaculada concepção de Maria (1854) e publicou a encíclica Quanta Cura (= “quantos cuidados”) em 1864. A encíclica veio acompanhada de um apêndice, o Syllabus, contendo uma longa série de ataques às liberdades modernas (separação entre igreja e estado, educação leiga, democracia, ideais republicanos) e a instituições como a maçonaria e o protestantismo. Pio também convocou o Concílio do Vaticano (1869-1870), que proclamou o dogma da infalibilidade papal.

Após uma longa luta, a Itália foi unificada em 1861. A cidade de Roma e os antigos estados papais, que a igreja havia controlado desde a época de Pepino, o Breve, no século VIII, foram anexados em 1870. O papa tornou-se o “prisioneiro do Vaticano” e só bem mais tarde a igreja aceitou a nova situação. Na Alemanha, a Velha Igreja Católica rejeitou os decretos do Concílio Vaticano I (1873). O pontificado de Leão XIII (1878-1903) foi um período menos conturbado.

2. O Protestantismo EuropeuNa Alemanha, houve um avivamento no início do século XIX em torno de movimentos como o confessionalismo, o pietismo e a “missão interior”. Foi criada uma nova igreja nacional em 1817, no tricentenário da Reforma, unindo luteranos e reformados. Deu-se muita ênfase à reflexão bíblica e teológica. Em 1900 havia 62% de protestantes e 36% de católicos. Na França, as principais igrejas eram a reformada e a luterana. Em 1900, havia cerca de 650 mil protestantes, que eram bastante influentes na vida nacional. A vida religiosa era vigorosa e havia dinamismo nas áreas da evangelização, ação social, missões e educação teológica.

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Na Holanda, a Igreja Cristã Reformada (livre) separou-se da velha Igreja Reformada. Em 1900, cerca da metade da população estava filiada às igrejas reformadas. Na Suíça, a proporção de católicos e protestantes era igual à do século XVI, havendo 3/5 de protestantes. Em 1874, a constituição federal consagrou a plena liberdade de culto, cada cantão tendo a sua própria igreja ou igrejas. Em 1920 seria criada a Federação Eclesiástica Suíça, composta de igrejas cantonais e algumas igrejas livres. Na Escandinávia, a Igreja Luterana continuou a ser a igreja oficial. No final do século XIX, os seguintes países também tinham maioria evangélica: Estônia, Lituânia, Letônia e Finlândia (luteranos). Havia minorias protestantes expressivas na Checoslováquia, Hungria, Romênia e Rússia.

3. InglaterraNa Inglaterra anglicana houve três grandes movimentos religiosos no século XIX.O “movimento evangélico” foi uma conseqüência do reavivamento do século anterior, abrangendo a ala evangélica da Igreja Anglicana (“low church”) e algumas igrejas livres. O movimento deu grande ênfase à piedade pessoal, ao serviço cristão e a missões, exercendo grande influência. Entre as suas contribuições estão a Escola Dominical, iniciada por Robert Raikes (1735-1811), e o combate ao tráfico de escravos, liderado pelo político William Wilberforce (1759-1833). Os evangélicos produziram notáveis líderes e pregadores como Charles Simeon (1759-1836), pastor em Cambridge; Robert Murray M’Cheyne (1813-1843), na Escócia, falecido com apenas trinta anos; e o batista reformado Charles H. Spurgeon (1834-1892). No início do século, foi pastor em Londres o controvertido presbiteriano escocês Edward Irving (1792-1834), tido como um precursor do movimento carismático.

O “movimento liberal” revelou preocupação teológica (sob influência alemã), vigor intelectual, interesse de relacionar a fé com todas as áreas da vida e integridade ética. Seus grandes representantes foram os bispos J.B. Lightfoot (†1889) e B.F. Westcott (†1901). Por sua vez, o “movimento anglo-católico”, centralizado em Oxford, deu ênfase a questões como sucessão apostólica, o magistério da igreja, sacramentos e ritual. John Henry Newman (†1890) e outros anglicanos publicaram os Folhetos Para os Tempos Atuais (1833-1841), expondo as suas idéias. Muitos cléricos aderiram à Igreja Católica, inclusive Newman, que tornou-se cardeal.

A segunda metade do século XIX é conhecida como a “era vitoriana” (da rainha Vitória), caracterizada pela revolução industrial e pelo colonialismo. Ao longo do século surgiram na Inglaterra novos grupos como os Irmãos de Plymouth ou Darbistas (c. 1830) e o Exército da Salvação (1878). Em 1900, as igrejas livres tinham tantos membros quanto a igreja oficial.

4. Estados UnidosAs Treze Colônias norte-americanas alcançaram a sua independência em 1776 e a Constituição Americana foi aprovada em 1789, consagrando a separação entre a igreja e o estado e a plena liberdade religiosa. Isso, associado à grande diversidade religiosa, resultou no fenômeno do denominacionalismo. Alguns anos mais tarde, teve início o Segundo Grande Despertamento (1801), que produziu o crescimento dramático de muitas denominações, especialmente batistas e metodistas, e o surgimento de movimentos como os

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“camp meetings” (acampamentos avivalísticos) e as sociedades voluntárias (abolicionismo, educação, missões). Algumas décadas depois, o problema da escravidão levou a divisões de igrejas e à Guerra Civil (1861-1865). Dois evangelistas destacaram-se ao longo do século: o controvertido Charles G. Finney e especialmente Dwight L. Moody (1837-1899). O século XIX também viu o surgimento de novos grupos religiosos como os Discípulos de Cristo (1832), Mórmons (1830), Adventistas (1843), Ciência Cristã (1875) e Testemunhas de Jeová (1884).

5. Missões ModernasO século XIX foi, no dizer do historiador Kenneth S. Latourette, “o grande século das missões”. Um importante pioneiro foi William Carey (†1834) e a sua Sociedade Missionária Batista (1792). Várias outras agências foram criadas nos anos seguintes, como a Sociedade Missionária de Londres (1795), interdenominacional; a Junta Americana de Comissionados para Missões Estrangeiras (1810), congregacional; e a União Missionária Batista Americana (1813), com a qual trabalhou Adoniram Judson (1788-1850). O início do século também marcou o surgimento da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (1804) e da Sociedade Bíblica Americana (1816). Alguns dos grandes missionários do período foram David Livingstone e Robert Moffat (África Central), Robert Morrison e Hudson Taylor (China), Guido Verbeck (Japão) e John Paton (ilhas do Pacífico).

B. O Século XXO início do século XX testemunhou a bárbarie da I Guerra Mundial (1914-1918) na Europa cristã. Em 1926, teve início na Alemanha derrotada a ascensão do nacional-socialismo (nazismo). Hitler tornou-se ditador em 1933 e alguns anos depois deflagrou a II Guerra Mundial (1939-1945). As décadas seguintes foram marcadas pela “guerra fria”, um período de constante tensão ideológica e militar entre o Leste e o Ocidente. Os anos 50 e 60 viram o fim do colonialismo na África e na Ásia.

1. A Igreja CatólicaNa Europa, ocorreu a separação entre a igreja e o estado em antigos países católicos como a França (1905) e a Espanha (1931-39, 1978). Na Itália, Benito Mussolini tomou o poder em 1922 e assinou uma concordata com o papa Pio XI em 1929 mediante a qual foi criado o pequeno Estado do Vaticano. A igreja experimentou avanços nas áreas política, educacional, intelectual, social e missionária. Houve o surgimento de novos centros de religiosidade popular, como Lourdes, na França, e Fátima, em Portugal. Uma das personalidades católicas mais famosas do século XX foi Agnes G. Bojaxhiu (1910-1997), mais conhecida como Madre Teresa de Calcutá, fundadora da Ordem das Missionárias da Caridade (1950).

Um evento marcante foi o Concílio Vaticano II (1962-1965), convocado pelos papas João XXIII (1958-1963) e Paulo VI (1963-1978). Esse concílio adotou importantes medidas de renovação litúrgica e de aproximação com outros grupos cristãos. Na esteira do Vaticano II, surgiram dois movimentos católicos com tendências opostas: a renovação carismática nos Estados Unidos e a teologia da libertação na América Latina, que teve como um de seus expoentes o sacerdote brasileiro Leonardo Boff. O século XX terminou com o pontificado do papa polonês João Paulo II, eleito em 1978, que fez uma reafirmação dos valores

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tradicionais do catolicismo. João Paulo é um fervoroso devoto de Maria – seu escudo pontifício ostenta a letra “M” e as palavras “totus tuus” (= todo teu).

2. A Igreja OrtodoxaDurante boa parte do século, a Igreja Ortodoxa experimentou estagnação na Europa oriental e crescimento nas Américas, devido à imigração. Por suas ligações com o czarismo, a Igreja Russa foi alvo da fúria da Revolução Comunista (1917): muitas igrejas e mosteiros foram destruídos e inúmeros sacerdotes foram executados. Vasili B. Tikhon (†1925), o metropolitano de Moscou, protestou contra as perseguições. Ortodoxos, católicos e batistas do leste europeu resistiram contra o marxismo-leninismo. Nessa resistência, notabilizou-se o escritor e dissidente cristão Alexandr Solzhenitsyn, que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1970 e escreveu a obra Arquipélago Gulag. Em 1989 ocorreu um dos eventos mais marcantes do século: a “queda do muro de Berlim”, sinalizando a derrocada do comunismo e o fim da União Soviética. A Rússia e outros países da região passaram a usufruir de liberdade religiosa, o que levou a um ressurgimento da Igreja Ortodoxa. Atualmente os ortodoxos estão novamente cultivando relações estreitas com os governos e reivindicando a imposição de restrições às missões protestantes, especialmente pentecostais, que estão trabalhando ativamente no leste europeu.

3. ProtestantismoA Alemanha foi palco de acontecimentos especialmente dramáticos devido ao surgimento do nazismo. Em 1921 havia sido criada a Federação das Igrejas Evangélicas, envolvendo a maioria dos protestantes e também algumas igrejas livres. Boa parte dos protestantes, os chamados “cristãos alemães”, apoiaram o regime nazista. A “igreja confessional” opôs-se ao regime, sofrendo a repressão do mesmo. O líder mais destacado desse movimento foi o pastor e teólogo Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), que envolveu-se com a resistência contra o regime e foi executado em um campo de concentração pouco antes do final da II Guerra Mundial. Outro crítico do nazismo foi o notável teólogo suíço Karl Barth (1886-1968), o criador da neo-ortodoxia e autor da monumental Dogmática Eclesiástica.

Nas primeiras décadas do século o movimento missionário continuou com todo o seu ímpeto. Dois grandes líderes americanos de missões foram o presbiteriano Robert Elliott Speer (1867-1947) e o metodista John Raleigh Mott (1865-1955). Desde meados do século XIX, os protestantes europeus e norte-americanos vinham realizando grandes conferências missionárias que produziram uma aproximação cada vez maior entre as igrejas. Em 1910, realizou-se em Edimburgo, na Escócia, a Conferência Missionária Mundial, que acabou sendo o berço do movimento ecumênico. A conferência resultou na criação do Concílio Missionário Internacional (1921), que eventualmente deu origem ao Conselho Mundial de Igrejas, fundado em Amsterdã em 1948. Uma personalidade de grande destaque no cristianismo europeu foi o literato e apologista cristão C. S. Lewis (1898-1963).

Nos Estados Unidos, o início do século XX testemunhou o surgimento de um dos fenômenos mais extraordinários da história do cristianismo: a eclosão do movimento pentecostal. O pentecostalismo derivou do movimento de santidade (“holiness”), um fruto do metodismo. Os pioneiros pentecostais foram os pastores Charles F. Parham (†1929) e seu discípulo William Seymour (1870-1922), líder do avivamento da Rua Azusa (1906), em Los Angeles, considerado o marco inicial do movimento. Entre as primeiras denominações

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pentecostais estão a Igreja de Deus, de Cleveland (1906), as Assembléias de Deus (1914) e a Igreja do Evangelho Quadrangular (1927), fundada pela evangelista Aimee Semple McPherson (†1944). O pentecostalismo difundiu-se rapidamente por todo o mundo e hoje congrega a maioria dos protestantes em muitos países, como o Brasil. Os anos 60 veriam o surgimento do movimento carismático, que foi a manifestação de fenômenos pentecostais nas igrejas protestantes históricas e no catolicismo dos Estados Unidos.

O dinâmico protestantismo norte-americano continuou a produzir novas ênfases e movimentos, como foi o caso do Evangelho Social, capitaneado pelo pastor Walter Rauschenbusch (1861-1918). Um importante livro ligado ao movimento foi Em Seus Passos (1896), de Charles M. Sheldon. Outro grupo expressivo e influente do protestantismo norte-americano são os conservadores. Nos anos 20 ocorreu a célebre controvérsia entre fundamentalistas e modernistas, que afetou principalmente os presbiterianos. Duas das personalidades religiosas mais destacadas do século XX foram os pastores batistas Billy Graham, o maior evangelista do século, e Martin Luther King Jr. (1929-1968), líder da luta pelos direitos civis dos negros.

Outro fenômeno religioso marcante do século XX foi o acentuado declínio do cristianismo no hemisfério norte, especialmente na Europa ocidental, e o seu enorme crescimento no hemisfério sul, o chamado “terceiro mundo”, ou seja, na América Latina, África e Ásia. É especialmente significativo o crescimento do cristianismo na África, com o surgimento das chamadas “igrejas africanas independentes”. Na América Latina, a continuarem as atuais taxas de crescimento, dois países terão  maioria protestante no século XXI: Guatemala e Porto Rico. Vejam-se alguns dados estatísticos sobre a evolução numérica do cristianismo no século XX:

Filiação por Bloco Eclesiástico (em milhões)1900 1970 1997

Católicos Romanos 266 689 992Protestantes 134 288 426

Ortodoxos 116 147 215Outros 9 74 238

Filiação por Continente (em milhões) 1900 1970 1997

África 9 119 310América do Norte 60 173 203

América Latina 60 268 451

Ásia 20 90 299

Europa 369 494 527Oceania 4 15 20

Implicações PráticasOs séculos XIX e XX foram marcados pelo surgimento de muitas ideologias e filosofias que representaram um enorme desafio para o cristianismo. Entre elas se destacam, no

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aspecto político, o marxismo, o socialismo e o comunismo; no campo filosófico, o positivismo, o agnosticismo e o existencialismo; na área da ciência, o evolucionismo e a psicanálise freudiana. Presentemente, vemos o crescimento de uma cosmovisão denominada “pós-modernismo”, com toda a sua ênfase no subjetivo e sua tendência para o relativismo, principalmente nos campos da ética e da religião. O conceito de valores ou verdades absolutos vem sendo cada vez mais questionado. Isso exige dos cristãos um renovado compromisso com a fé cristã histórica, ao mesmo tempo que procuram dar respostas para os problemas e indagações deste final de milênio.

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