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11 K K K alagatos alagatos alagatos alagatos alagatos, Revista de Filosofia do Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE Fortaleza, v.1 n.1, Inverno 2004, p. 11-36. The non-sense of a social revolution with a political soul, Marx- July, 31, 1844, hermeneutics beyond modernities Alberto Dias Gadanha 2 RESUMO O objetivo do texto é explicitar a argumentação do artigo de Karl Marx, “Glosas Críticas à Margem do Artigo: ‘O Rei da Prússia e a Reforma Social. Por um prussiano’ ”. O artigo, publicado nos números 63 e 64 no Jornal Vorwäts! de 7 e 10 de Agosto de 1844, é uma crítica de Karl Marx à posição Arnold Ruge, expressa no número 60 do mesmo jornal. Enquanto Ruge defende a atitude repressora, tomada pelo rei da Prússia, contra os tecelões revoltados; Marx compreende a Revolta dos Tecelões da Silésia, como a quebra do ciclo vicioso de ampliação da miséria e da violência sociais a que estão submetidos tais trabalhadores. Ele destaca que os tecelões buscaram, pela revolta, a supressão de sua alienação, do isolamento de sua própria comunidade, comunidade da qual seu próprio trabalho os separa. A emancipação humana é, para Marx, o objetivo que dá consistência à revolta de trabalhadores, a sua alma social; enquanto a alternativa defendida pela política moderna aceitaria “uma revolução social com alma política” (GC § 71). A instituição vigente poderá até considerar a miséria social um desconforto, mas sua alteração estaria subordinada à alma 1 Texto apresentado no I. 0 Encontro Nacional do GT Ética e Cidadania “Ética Direitos Humanos e Cidadania”. Associação Nacional da Pós Graduação em Filosofia - ANPOF, Recife – de 10 a 13 de Dezembro de 2001. 2 Professor de Filosofia, Centro de Humanidades, Universidade Estadual do Ceará - UECE. O NÃO-SENSO DE UMA REVOLUÇÃO SOCIAL COM ALMA POLÍTICA, MARX – EM 31 DE JULHO DE 1844, UMA LEITURA ALÉM DE MODERNIDADES 1

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The non-sense of a social revolution with a political soul,

Marx- July, 31, 1844, hermeneutics beyond modernities

Alberto Dias Gadanha 2

RESUMO

O objetivo do texto é explicitar a argumentação do artigo deKarl Marx, “Glosas Críticas à Margem do Artigo: ‘O Rei daPrússia e a Reforma Social. Por um prussiano’ ”. O artigo,publicado nos números 63 e 64 no Jornal Vorwäts! de 7 e 10de Agosto de 1844, é uma crítica de Karl Marx à posição ArnoldRuge, expressa no número 60 do mesmo jornal. Enquanto Rugedefende a atitude repressora, tomada pelo rei da Prússia, contraos tecelões revoltados; Marx compreende a Revolta dosTecelões da Silésia, como a quebra do ciclo vicioso de ampliaçãoda miséria e da violência sociais a que estão submetidos taistrabalhadores. Ele destaca que os tecelões buscaram, pelarevolta, a supressão de sua alienação, do isolamento de suaprópria comunidade, comunidade da qual seu próprio trabalhoos separa. A emancipação humana é, para Marx, o objetivoque dá consistência à revolta de trabalhadores, a sua alma social;enquanto a alternativa defendida pela política moderna aceitaria“uma revolução social com alma política” (GC § 71). Ainstituição vigente poderá até considerar a miséria social umdesconforto, mas sua alteração estaria subordinada à alma1 Texto apresentado no I.0 Encontro Nacional do GT Ética e Cidadania –“Ética Direitos Humanos e Cidadania”. Associação Nacional da Pós Graduaçãoem Filosofia - ANPOF, Recife – de 10 a 13 de Dezembro de 2001.2 Professor de Filosofia, Centro de Humanidades, UniversidadeEstadual do Ceará - UECE.

O NÃO-SENSO DE UMA REVOLUÇÃO SOCIAL COM ALMA POLÍTICA, MARX – EM 31 DE JULHO DE 1844, UMA LEITURA ALÉM DE MODERNIDADES1

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.política. O poder político e não a resolução da miséria social,é a prioridade. A retórica de quem não admite a revoluçãodos trabalhadores cai na armadilha de seu próprio não senso,porque o poder político, a estabilidade institucional, ocapitalismo moderno ou pós-moderno são os própriosprodutores da miséria e violência sociais.

PALAVRAS-CHAVES: Miséria social; capitalismo;inteligência política; emancipação humana; revolução.

ABSTRACT

Develop the internal dynamics of Karl Marx’s article “CriticalNotes on the Article ‘The King of Prussia and Social Reform.By a Prussian”, published in August 7-10, 1844, is the aim of thisdissertation. Marx understands the workers’ uprising in Silesiaas a break of the vicious cicle of poverty and violence underwhich they have been living. Marx highlights the revolution asthe way to transcend the disasterous isolation of men from theircommunity, their human nature, community from which theworkers have been separated by their own labor. This revolutionwould be actual only if the human emancipation was its aim. Thehuman emancipation is the social soul required by a truerevolution. The alternative supported by the modern politics,would accept a “social revolution with a political soul” (GC §71); it means, some social problems could be managed, but onlyunder the control of the political soul. Priority is the politicalpower, not the solution of social ills. The rhetoric whose don’taccept the workers’ revolution, falls in the trap of their own nonsense, the establishment’s security, because the priority of politicalpower of the modern or pos-modern capitalism is indeed thecause of the social poverty and violence.

KEY-WORDS: Social misery; capitalism; politicalinteligence; human emancipation; revolution.

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1. INTRODUÇÃO:

Da ampliação da miséria social e da violência àalternativa revolucionária

O objetivo do texto é tornar explícita a dinâmica daargumentação do artigo de Karl Marx “Glosas Críticas àMargem do Artigo: ‘O Rei da Prússia e a Reforma Social.Por um prussiano’”. O artigo, publicado nos números 63 e 64no Jornal Vorwäts! de 7 e 10 de Agosto de 1844, é uma crítica deKarl Marx à posição que Arnold Ruge, expressa no número 60 domesmo jornal. Enquanto Ruge defende a atitude repressora, tomadapelo rei da Prússia, contra os tecelões revoltados; Marx compreendea Revolta dos Tecelões da Silésia, como a quebra do ciclo viciosode ampliação da miséria e da violência a que estão submetidos.

A emancipação humana é o objetivo que dá consistência àrevolta, esta não se restringiu a uma alteração política, a uma trocado controle do ciclo produtor da miséria social. Marx afirma o“quanto é racional uma revolução política com alma social”(GC§71)3 . A alma social, o objetivo social, é o elemento ontológicofundamentador da teleologia revolucionária, é o elemento que dágarantia ética à alteração institucional. Marx destaca que ostrabalhadores buscam a supressão do isolamento da “...comunidade,da qual seu próprio trabalho o separa, que é a sua própria vida, avida física e intelectual, a moralidade humana, a atividadehumana, o prazer humano, a natureza humana.” (GC § 66)

A contraposição oficial à revolta apresenta argumentosque, ainda hoje, fazem parte da retórica alternativa à

3 “GC”, será a abreviação utilizada para A citação do artigo de Marx,acima referido. O símbolo § indica o parágrafo em que se localiza acitação. Os detalhes bibliográficos das traduções utilizadas constamdas Referências Bibliográficas ao final do texto.

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.emancipação dos trabalhadores. Marx desconstrói os argumentosoficiais, pois estariam fundados na aceitação institucional do podervigente como prioridade social. O ardil que as modernidadespretendem manter, está expresso por Ruge ao consideraraceitável, “uma revolução social com alma política” (GC § 71).A instituição vigente poderá até considerar um desconforto amiséria social, mas a sua alteração estaria subordinada àestabilidade institucional do vigente, à estabilidade do ciclo viciosode ampliação da miséria e da violência. A retórica alternativa àrevolta dos trabalhadores cai na armadilha de seu próprio nãosenso, a estabilidade institucional do vigente moderno, por serele mesmo, o produtor da miséria e violência.

A argumentação marxiana é construída porcontraposições. Enquanto Ruge para amenizar as críticasendereçadas ao rei, desclassifica a atitude revoltosa dostecelões, Marx considera esta sublevação de trabalhadorescontra o ciclo de ampliação da miséria social como umaverdadeira revolução. Marx expõe a contraposiçãofundamental do texto entre a continuidade do ciclo deampliação da miséria social vigente e a possibilidade deemancipação humana dos trabalhadores. A revolta dostecelões é o caminho para se afastar a continuidade do não-senso humano fundamental da civilização moderna entrepor um lado, a miséria material e espiritual da subordinaçãode quem trabalha e por outro, a opulência material e adesintegração humana de quem se usufrui desse trabalho.

Enquanto Ruge procura justificar as atitudes do rei,de continuidade institucional, Marx desmonta seusargumentos mostrando que esses ardis fundados eminteligência política e afãs da vontade, não são suficientespara se contrapor à revolta dos trabalhadores. A alternativa

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institucional do capitalismo à revolta não conseguiu cobrir porsuas realizações e por suas promessas civilizatórias, o que Marxconsidera como certeza, a construção da emancipaçãohumana a partir da revolta. Marx, pela certeza de que, arevolta faz parte da construção da emancipação dostrabalhadores, vai comparar a consistência desta revolta com ainconsistência da alternativa construída pela inteligênciapolítica à revolta dos tecelões representada por Ruge.

Ruge insiste que a Alemanha chegou ao que chegou,à sublevação, porque não tinha desenvolvido uma devidainteligência política, não tinha desenvolvido a harmonia dapolítica. A harmonia ao todo é a representação da política,para Ruge. Mostrar a inconsistência da alternativa políticaà Revolta dos Tecelões da Silésia vai perpassar todo estetrabalho de Marx, contrapondo-se a Ruge, justamenteporque ele procura mostrar o institucional vigente, o políticocomo o consistente, como o todo harmônico.

Tanto a consistência da revolta como a inconsistênciada alternativa à revolta, Marx as trabalha em dois níveis, onível fático e o nível essencial. O nível fático refere-se acomo os fatos ocorreram, o nível das contingências e o nívelessencial, refere-se à consistência verbal – conceitual. Aonível dos fatos, Marx vai descrever a ineficácia dasassistências sociais à miséria pela Inglaterra e pela França.Enquanto o nível aqui denominado de essencial vai constarda análise da fundamentação do Estado e da possibilidadede a Administração do Estado dar conta da miséria geradapelo sistema do qual ela administração faz parte. Enquantoa nível fático, é exposto, a maneira como a miséria foi tratadana Inglaterra e França, instituições de reconhecidodesenvolvimento político. Estes dois aspectos o fático e o

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.essencial fazem parte do todo, da situação analisada, isto é atotalidade como Marx a considera. A partir desta análise detotalidade Marx apresenta, já em 1844, a compreensão da políticaenquanto instrumento de emancipação humana. A certeza dapossibilidade da emancipação humana, da alteração da instituiçãoutilizando-se da inteligência política. Política é negativa, enquantopor si não é teleológica, teleológica é a emancipação humana. Apolítica, o institucional político é meio para se efetivar valoressuperiores ao próprio poder: o humano, a vida humana, aemancipação humana. A política, a institucionalização, o instituídosão os meios, o homem se sobrepõe ao cidadão, “[...] assimcomo o homem é mais amplo que o cidadão e a vida humana émais ampla que a vida política” (GC § 66).

A argumentação de Marx em primeiro lugar seconcentra em desmontar as propostas da alternativa política,de alternativas defendidas por Ruge e por toda a instituiçãopolítica vigente, é a defesa da possibilidade de encontrarsaída para as situações angustiantes do ciclo de ampliaçãoda miséria e da violência que fundam-se na manutençãoinstitucional do vigente prussiano, moderno ou pós-moderno. Aproveitando o direcionamento deixado pelaargumentação de Ruge, de que “num país apolítico, como aAlemanha, é impossível fazer ver que a miséria parcial dasregiões industriais seja uma questão de interesse universal,e ainda mais um prejuízo causado a todo o mundocivilizado”. (GC § 2) Marx expõe a inconsistência socialdas situações existenciais inglesa e francesa, consideradaspela inteligência política como alternativa à revolta. Para,em seguida, demonstrar conceitualmente que a alternativaà revolta fundada numa inteligência política também éinconsistente. Diante da inviabilidade da alternativa à revolta,

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tanto da perspectiva fática, quanto da conceitual, Marxpoderá, então, apresentar o inverso, a consistência da revolta.

A revolta social foi demonstração de uma atitudeproletária alemã consistente, foi uma reação processada com“valentia, reflexão e resistência”. Valentia porque além deserem enfrentados os policiais regionais, essa tropa foireforçada, pela repressão militar do rei. Reflexão porque osrevoltosos atingiram, não só os inimigos visíveis, osindustriais, mas igualmente, os inimigos ocultos, osbanqueiros. Resistência porque além de enfrentarem doisataques pesados, puderam compreender que a violência porparte do Estado, fortificaram-lhes ainda mais, porquetiveram a consciência que a fúria de Golias era a medida desua insensatez, flanco exposto à argúcia de Davi. A revoltafoi consistente do ponto de vista existencial, fática, foi umareação prática à miséria; foi igualmente consistente, do pontode vista conceitual, porque foi expressão de coerência emrelação ao todo social, porque foi fundada naquilo que opróprio todo social está fundado, no processo deemancipação humana.

A argumentação do artigo de Marx é umaapresentação dos ardis da modernidade em seu esforçopara manter a organização capitalista da produção comoo limite possível da criação humana em organizaçãosocial. Ardis da modernidade que por permaneceremsendo as artimanhas para manutenção da situação deservidão do trabalho consideram qualquer alteração nãopermitida pela hegemonia vigente, como terrorismo. Damodernidade e das modernidades constam estasarmadilhas liberais da subjetividade finita a si mesma edeterminante do social. Marx compreende a alteração

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.social ocorrida na Silésia, como um levante detrabalhadores desesperados pelas condições de suasobrevivência que já estavam miseráveis com emprego,e que seriam pioradas com a implantação das novasmáquinas. A sua revolta foi contra as condições que jábatiam à sua porta, como elementos da miséria presentee da miséria a ser piorada. Foi revolta social, para alémdas modernidades que se caracterizam pela hegemoniada subjetividade individual, pela autonomia liberal nocontrole do processo e dos resultados da produção.

Conforme a inteligência política, o momentocivilizatório do capital pode significar avanços sociais, masserão implementados somente se subordinados àsinstituições políticas, por isso Ruge procura fazer passarcomo legível, como discursável, como palavraconsistente, uma revolução social com alma política. Nãosenso da modernidade, significa que não se pode alteraro ciclo vigente de ampliação da miséria, sem se alterar aorganização social vigente, moderna, que cumpre, queefetiva sua dinâmica, a acumulação da riqueza porrestritas subjetividades controladoras do poder políticovigente e da ampliação da injustiça pelas restantessubjetividades.

2. O ciclo vicioso de ampliação da miséria e da

violência sociais

2.1 A miséria está socialmente posta

A miséria de que trata Marx neste artigo é a misériasocial, a miséria produzida pela organização da produçãosocial. Não se trata da miséria resultante de catástrofes

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4 Estado moderno e o mundo mercantil moderno, são hipócritasantíteses cristãs porque o estado moderno, salvaguardaria a cidadaniae direitos, enquanto que o mundo mercantil moderno, área da efetivaçãosócio-econômica do próprio estado faz prevalecer outros valores queos da justiça, cidadania e direitos das subjetividades. Estas instituiçõesfundadas em valores do protestantismo cristão, determinantes doMercado, deixariam de ser hipócritas, se pudéssemos admitir que odestino e os valores das individualidades estariam a salvo nas mãosdeterminantes do Mercado, como sugere Adam Smith ao afirmar quehaveria uma mão invisível que harmonizaria os indivíduos ao lutarempor seus interesses individuais, ou como preferem simbolizar osdefensores civilizados de um neoliberalismo, que sempre haverá aunificação dos fractais em dispersão.

naturais ou genéticas, mas se trata de situações em que asubjetividade humana fez-se presente para criá-la e mantê-la. A miséria é resultado da natureza anti-social desta vidacivil, da organização social da produção capitalista:

[...] conseqüências que resultam da natureza anti-social destavida civil, desta propriedade privada, deste comércio, destaindústria, desta pilhagem recíproca das múltiplas esferas civis.Com efeito, este esquartejamento, esta baixeza, esta escravidãoda sociedade civil constituem o fundamento natural sobre oqual repousa o estado moderno, do mesmo modo que asociedade civil da escravidão é o fundamento natural do estadoantigo. A existência do estado e a existência da escravidãosão indissociáveis. O estado antigo e a escravidão antiga, -francas antíteses clássicas, não eram tão ligados um ao outrocomo o são o estado moderno e mundo mercantil moderno -hipócritas antíteses cristãs4 (GC § 44).

A miséria que Marx cita é a miséria inglesa e francesa,a inglesa que ele diz estar universalizada e a francesa queincomoda até o desenvolvimento democrático

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.revolucionário de Robespierre:. “E’ assim que Robespierrenão vê, na extrema pobreza e na extrema riqueza, senãoum obstáculo para a democracia pura”. (GC §45) Marxcita Inglaterra e França por serem os países da “civilização”européia mais aperfeiçoados politicamente, que para Rugeera o critério responsável pela desvalorização cultural daAlemanha, a falta de politicidade moderna. A misériainglesa, estar socialmente posta, está evidente nas seguintescitações:

O ar puro, o bom ar, que é a atmosfera pestilenta dossubsolos ingleses! Grande maravilha da natureza que sãoos fantásticos farrapos dos miseráveis ingleses, que sãoas peles murchas e enrugadas das mulheres minadas pelotrabalho e pela miséria; que são as crianças, as estendidaspelas pilhas de imundices e as abortadas, fruto dasobrecarga de trabalho na monotonia mecânica dasfábricas! Fascinantes são os últimos detalhes da práticacomo a prostituição, o assassinato e a forca! (GC § 17)

Esta parte da sociedade está mais desamparada naAlemanha do que na Inglaterra e na França? Pode estarmais embaraçada do que esteve, por exemplo, aInglaterra onde se erigiu o embaraço como sistema? Sehoje as revoltas operárias estouram por toda Inglaterra,a burguesia e o governo não estão aí menos atrapalhadosdo que no último terço do século XVIII. Para tirá-losdo embaraço, só há a força material; mas, como a forçamaterial diminui à proporção que aumentam opauperismo e a compreensão do proletariado, oembaraço inglês cresce necessariamente, em proporçãogeométrica. (GC § 48)

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2.2 Exigência social de revolta contra a miséria

A miséria socialmente posta, primeiro momento dociclo que vai despertar nos trabalhadores o segundo momento,o momento da revolta contra a situação social que lhe deixaneste estado. A revolta dos tecelões da Silésia caracteriza-secomo exigência social de revolta contra a miséria.

Não só se destroem as máquinas, estas rivais dosoperários, mas ainda os livros de contabilidade, os títulosde propriedade e, enquanto todos os outros movimentosestavam em primeiro lugar voltados unicamente para oinimigo visível, o senhor de indústria, este movimento sevolta, ao mesmo tempo, contra o banqueiro, o inimigooculto.” (GC §54)

2.3 Exigência política de violência contra a revolta

Assim como a violência da revolta dos trabalhadoresfoi uma exigência social devido à degradação de vida que ostecelões experimentavam, a violência dos trabalhadores é umaameaça ao poder político vigente, por isso diante da violênciatrabalhista, o Estado vai igualmente utilizar a violência. Aviolência do estado contra os trabalhadores é uma exigênciapolítica.

E os fracos tecelões, tendo vencido o primeiro choque,foram esmagados após este golpe, por uma tropareforçada. [...] Assim, então, num país onde os banquetescrepitantes de torradas e champanhe liberais - recordemo-nos do banquete de Düsseldorf - provocam um decretoreal, por meio do qual nenhum soldado foi necessáriopara reprimir as aspirações de toda a burguesia liberal àliberdade de imprensa e a uma constituição; num país

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.onde a obediência passiva está na “ordem do dia”, nessepaís, a obrigação de empregar a força armada contra osfracos tecelões não seria um acontecimento, umacontecimento aterrorizador? (GC §4)

Desta maneira o Ciclo da Miséria e da Violênciacompleta aqui o seu segundo e terceiro momentos. A exigênciasocial de revolta contra a miséria, segundo momento e oterceiro, a exigência política de violência contra a revolta,correspondem à violência do Estado contra os tecelões daSilésia que se rebelaram contra as causas de sua própriamiséria. Complementam-se assim os três momentos do ciclovicioso de ampliação da miséria e violência sociais, a saber: oprimeiro, a violência da miséria sobre os trabalhadores, osegundo, a violência dos trabalhadores contra a organizaçãoinstitucionalizada da produção e o terceiro, a repressãoviolenta do Estado contra os trabalhadores, tendo comoresultado a ampliação continuada deste ciclo vicioso demiséria e de violência sociais.

3. A inconsistência existencial e a incoerência

essencial da alternativa política à proposta da revolta

Marx para conseguir explicitar a não-efetividade daspropostas alternativas à revolta dos tecelões da Silésia vairecuperar para os leitores alemães que haviam lido o artigode Ruge, em primeiro lugar, que a Inglaterra e a França,países desenvolvidos econômica e politicamente, nãoconseguiram resolver com um mínimo de universalidade ejustiça a situação dos miseráveis que as suas economiasgeraram. Esta é a inconsistência fática, existencial da

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alternativa política à revolta realizada pelos trabalhadores.Em segundo lugar explicita a incoerência social congênitado estado, que está à mercê de quem controla a sociedadecivil que lhe cria as dificuldades para sua própria gerência.A produção capitalista cria a miséria e encarrega o Estadode mascará-la. Sob a ameaça de que se ele não auxiliar amanter o paradoxo da miséria necessária ao sistema, estarácondenando-se ao suicídio.

3.1 Inconsistência existencial e da alternativa política: as experiências inglesa e francesa

Ruge considerava a caótica situação econômico-social alemã como resultado da pouca inteligência políticaalemã como resultado da pouca integração política dostrabalhadores. Entende-se integração política como asubmissão à política hegemônica. Ruge vai colocar na bocado rei que as causas da miséria econômica e social alemã daépoca, não é propriamente a estrutura econômica dasociedade civil, e a estrutura política da organização doEstado, mas simplesmente uma deficiência administrativano âmbito do Estado e uma falta de generosidade doscristãos de boa vontade, no âmbito da sociedade civil. “[...]o rei considera (essa situação alemã) como falta deadministração ou de beneficência” (GC §2)

Boa parte do texto vai mostrando os esforços daadministração pública em resolver a miséria intolerada. AAssistência Social a operários indigentes da Inglaterra seexpandiu numa rede mista de funcionários do Estado e decidadãos espalhados por todo o território nacional queprestaram assistência social durante dois séculos. Esta

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.organização estatal e da sociedade civil era responsável pelasinstâncias de decisão e de operação assistenciais. A assistênciachegou a uma repercussão territorial e monetária tão grandeque chegou a ser denominada de o Ministério do Pauperismo.A organização teve orçamento anual equivalente ao que aFrança gastava com suas forças armadas, época em que osdeputados resolveram colocar a mão nesse dinheiro. Comoo Parlamento conseguiu transferir esses recursos das mãosdo Ministério do Pauperismo para poder exercer o seu direitode decisão democrática da casa do povo?

A retórica parlamentar inglesa e a antevisão de umorçamento mais recheado, temperado com algumasinformações pseudo-científicas ou enciclopédicaspossibilitaram aos nobres parlamentares a edição de uma“Nova Leis dos Pobres” de 1834, uma alteraçãoorçamentária, que por um passe de mágica transformou osmiseráveis de objeto de cuidado ministerial em criminososcondenados disciplinarmente. Os parlamentares conseguiramevocando a teoria de Malthus, liberar o Estado e o excedentede produção da obrigação de cuidar de seus mal-feitos,abandonando os miseráveis à sua própria sorte, e à própriarapinagem dos muitos miseráveis espalhados pelas cidades.

Quanto ao pauperismo em geral, seria, segundo a teoria deMalthus, uma lei eterna da natureza: [...] ‘Tudo o que podeentão o estado fazer, é abandonar a miséria à sua própriasorte; tudo mais pode, sim, é facilitar a morte dosmiseráveis.‘(Malthus) A esta teoria filantrópica o ParlamentoInglês alia a opinião de que o pauperismo é a miséria cujaculpa cabe aos próprios operários, que não se deve, portanto,prevenir como uma desgraça, mas que é necessário, aocontrário, suprimir e punir como um crime. ( GC§ 28.)

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A Inglaterra, portanto, tentou, em primeiro lugar, acabarcom o pauperismo pela beneficência e por medidasadministrativas. Ela viu, em seguida, no crescimentoprogressivo do pauperismo, não a conseqüência necessáriada indústria moderna, mas antes o resultado da taxa inglesapara os pobres. O que se atribuía recentemente à falta debeneficência, atribui-se de agora em diante a um excesso debeneficência. Enfim, considerar-se-á a miséria como culpados miseráveis e, devido a isto, pune-se a miséria por meiodela mesma. (GC§ 30)

Esta administração renunciou acabar com a causa dopauperismo por meios positivos; ela contenta-se, com acaridade policial, em lhe cavar uma tumba toda vez queaparecer na superfície do país oficial. Longe de ir alémdas medidas de administração e beneficência, o estadoinglês voltou-se para muito aquém delas. Ele nãoadministra mais do que uma espécie de pauperismo, opauperismo que, por desespero, deixa-se prender eencarcerar. (GC§ 31)

A França, país da inteligência e da capacidade políticas,representava devido a Convenção, o máximo da energia política,do poder político e da inteligência política. No entanto a suacapacidade política de emitir decretos foi proporcional à suaincapacidade de efetivá-los, de modo que: a Convenção teveum momento de coragem ao decretar a supressão dopauperismo, “[...] Qual foi a conseqüência deste decreto daConvenção? Houve um decreto a mais no mundo e um anodepois mulheres famintas cercavam a Convenção.” (GC §38).

Estamos expondo neste item a inconsistência dastentativas político-institucionais para resolução da misériasocial, isto é, como os Estados se detiveram em medidas

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.administrativas lenitivas, incapazes de solucionar ou mesmocompreender a miséria em sua abrangência universal. Asexperiências inglesa e francesa, são apresentadas por Marxcomo o testemunho da ineficácia dos lenitivosadministrativos contra o pauperismo, da ineficácia da açãosocial do Estado diante da miséria que a própria instituiçãoeconômica-política produz: “[...] os Estados [...] eles semantiveram em medidas de administração e de beneficênciae muitas vezes, estiveram aquém da administração e dabeneficência.” (GC§40) No caso inglês, o parlamentoconseguiu uma manobra macabra para acabar com aassistência social que perdurava por mais de dois séculos:“Esta administração [...] ela contenta-se, com a caridadepolicial, em lhe cavar uma tumba toda vez que a misériaaparecer na superfície do país oficial.” (GC §31)

Há sim a consciência de que a miséria importuna asociedade, visto que tanto na Inglaterra quanto na França segastaram muitos recursos para atender a miserabilidade, noentanto um membro do legislativo francês na empolgação deum elogio a Napoleão deixou escapar a seguinte pérola:“Nossos passos não serão mais incomodados pela desagradávelimagem das enfermidades da vergonhosa miséria.” (GC §35)5

Napoleão demonstra ser muito enérgico aodemonstrar a sua vontade política:

Napoleão quis acabar, de uma só vez, com a mendicância.Encarregou seus serviços públicos de preparar planos

5 Rubel, 1962 p. 1587. O tradutor francês afirma: “Proudhon citamediante J. Droz, Économie politique [...] 1829. Napoleão teria tidoeste propósito: ‘Deste modo, eu preservarei os ricos do infortúnio dosmendigos e da imagem desagradável das enfermidades’, etc.”

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para a erradicação da mendicância em toda a França.Com a demora do projeto, Napoleão perdeu a paciênciae escreveu a Crétet, seu ministro do Interior,ordenando-lhe suprimir a mendicância no prazo de ummês. Diz ele: “Não se pode, de modo algum, passarnesta terra sem nela deixar traços que recomendemnossa memória à posteridade [...]. Não me peçam maistrês ou quatro meses para conseguirem informações.Vocês têm jovens auditores, sábios prefeitos, instruídosengenheiros de pontes e estradas; movimentem tudoisso e não se adormeçam no ordinário trabalho dosescritórios. (GC§ 34)

Em alguns meses, tudo fora realizado. Promulgadaem 5 de Julho de 1808, uma lei suprimiu amendicância. De que maneira? Por meio dosDepósitos (albergues) que se transformaramrapidamente em penitenciárias em que, em poucotempo, o indigente só entrava após ter passado porum tribunal correcional.(12) Todavia o senhorNoialles du Gard, membro do corpo legislativo,exclamou: “Reconhecimento eterno ao herói queassegura refúgio para a indigência e subsistência paraa pobreza. A criança não será mais abandonada, àsfamílias pobres não fal tarão recursos parasubsistência nem para os operários, encorajamento eocupação. Nossos passos não serão maisincomodados pela desagradável imagem dasenfermidades da vergonhosa miséria.” (13)

A última frase, pelo seu cinismo, é a única verdade destepanegírico. (GC §35).

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.3.2 Incoerência congênita da alternativa política à proposta da Revolução dos trabalhadores

Após a exposição das experiências inglesa efrancesa que, existencialmente, não deram conta damiséria gerada em sua organização social, Marx vaidesenvolver o outro aspecto, o essencial. Apesar de quea miséria não tenha sido resolvida praticamente pelossistemas políticos administrativos dos países maisdesenvolvidos, poderão os miseráveis ter esperançasde que um dia poderiam alcançar as prometidasbenesses que o sistema econômico-liberal promete àssubjetividades? Este aspecto foi acima denominado denível essencial, enquanto que as experiências francesae inglesa complementariam o nível fático, existencial.Sob o aspecto do essencial, Marx vai demonstrar a“impotência congênita do Estado” para resolver aspróprias contradições que o sustentam.

O estado não pode admitir nem mesmo suprimir acontradição que o sustenta e que o fundamenta. A contradiçãoé interna ao próprio estado, o seu funcionamento depara-sesempre entre a contradição “entre o papel e a boa vontade daAdministração de um lado, seus meios e seu poder,do outro” (GC§44). Na organização capitalista daprodução, ao Estado caberia a responsabilidade pelaesfera do público, no entanto o que poderíamosconsiderar como público se a determinação teleológicada produção liberal é o outro do trabalho, o privado.

A impotência é a lei natural da administraçãodo estado, a impotência congênita do estado é a

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incoerência congênita da alternativa política à propostade revolta dos trabalhadores. O estado burguês é pordefinição, incapaz de solucionar a miséria social. Alémde Marx mostrar a contradição interna do próprio estado,podemos atualizar a questão dizendo que a administraçãosimplesmente não tem recursos suficientes para exercerfunção social. Os recursos que o estado recebe é umaparte da mais-valia recolhida dos trabalhadores; supondoque a miséria criada socialmente seja pelo menos igualà mais-valia retida pelo negócio capitalista, nunca oestado terá recursos suficientes para combater a misériaque sua parceira, a instituição econômica capitalista,deixa para trás, como um rastro de prejuízos e de malesna sociedade. A contabilidade do estado capitalista nuncapoderá ser uma contabilidade social. O profissionalismocontábil serve só de uma viciosa prestação de contas aocapital do seu acúmulo proporcional a miséria quesocialmente se alastra. Marx mostra o própriodespropósito do estado: “[...] o estado não pode suprimira contradição entre o papel e a boa vontade daAdministração de um lado, seus meios e seu poder, dooutro. A contradição interna do estado está fundada nacontradição da sociedade civil”.

A menos que se suprima a si mesmo, o estado nãopode suprimir a contradição entre o papel e a boavontade da Administração de um lado, seus meios eseu poder, do outro. Ele repousa sobre estacontradição. Ele é fundado sobre a contradição. Eleé fundado sobre a contradição entre a vida pública ea vida privada, entre os interesses gerais e osinteresses particulares. (GC§44)

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.O Estado moderno é ineficaz no tratamento daampliação, sem limites, da miséria social porque elemesmo é inconsistente: “Pode o estado proceder deoutro modo? O estado não descobrirá jamais, ‘no estadoe na organização da sociedade’, a causa da misériasocial.” (GC §41) A impotência do Estado é congênitaporque ele não tem coerência própria, sua ação estásubordinada à organização vigente da produção, àhegemonia do capital, que ao controlar a vontadepolítica e o Estado, controla igualmente a miséria socialcom seu tempero especial, mantendo a miséria cadavez mais subordinada, cada vez mais miserável: “Porconseqüência, a Administração deve limitar-se a umaatividade formal e negativa, pois seu poder páraprecisamente lá onde principia a vida civil.” (GC §44)

3.3 Quanto mais um país é político, tanto menos está

disposto a buscar no princípio do estado, a razão da miséria social

Quanto mais o estado é potente, quanto mais um país épo lítico, tanto menos está disposto a buscar no princípiodo estado, - isto é, na organização atual da sociedade, daqual o estado é a expressão ativa, consciente e oficial -, arazão das males sociais e a compreender-lhes o princípiogeral. (GC§ 45)

A inteligência política é precisamente inteligênciapolítica porque pensa no interior dos limites da política.Quanto mais ela é viva e penetrante, tanto menos é capazde apreender a natureza da miséria social.

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Se o Estado não consegue controlar sua miséria a“pão e água”, ou mais generosamente recalcar os miseráveisa “pão e circo”, ele parte para a violência e para a repressão,como foi o massacre dos trabalhadores alemães: “O rei daPrússia não é nada original nesta ocorrência, como não o éem todos os seus outros atos, ele tomou propriamente oúnico caminho que um chefe de estado poderia escolher.”(GC § 33)

O Estado, não tendo condições para enfrentar amiséria, utiliza a violência contra os revoltados queexpuseram, às claras, sua impotência. A perversidade desua violência com os mais desprotegidos será proporcionalà ameaça a que ele estiver exposto. A violência institucionalsó será institucional enquanto houver essa defasagem depoderes, por que se houvesse equilíbrio de forças, a violêncianão seria impune com o violento, porque o outro lhe dariao troco, como é o caso das guerrilhas e do terrorismo;infames, sob a perspectiva do establishment, do institucionalvigente. A impotência operacional, fática e essencial doEstado dará o grau de sua violência corporal e psicológica;repressão e recalcamento nas palavras de Eugène Enriquez;espelhos de sua covardia, contra os trabalhadores. Marxdemonstra a fragilidade efetiva do Estado diante dostrabalhadores, apesar da violência que ele tem para sifranqueada. Por ele ser impotente para resolver os malessociais, a sua sobrevivência exige a repressão de quem lhedemonstre ou exponha tal fragilidade. Qualquer alteraçãoinstitucional sempre será castigada. A estabilidade e avigência do poder se encarregam de afastar o perigo derevelar sua própria nudez.

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.4. Consistência da revolta dos Tecelões da Silésia,

alternativa social

Atentos, tanto ao controle imediato da rebeliãoquanto às conseqüências que a revolta de trabalhadorespudesse representar para o poder estabelecido na Prússia,os vigilantes institucionais procuraram desclassificar asituação trabalhista alemã como uma sublevação não–representativa dos interesses gerais. A sublevação silesianaseria uma insensatez de uma parcela de desajustados. Noentanto, Marx demonstra o valor universal da revolta, aalteração social a ser continuada a partir deste passo valente,refletido e resistente, dado pela revolta dos tecelõessilesianos. A Revolta dos Tecelões é expressão, símbolo daforça que os trabalhadores podem representar para a suaprópria emancipação humana.

4.1 A revolta dos Tecelões da Silésia, uma revolução social

A superioridade desta revolta, em relação aosmovimentos trabalhistas da época e contemporâneos, está naoposição direta, clara, incontida e violenta contra a sociedadeda exploração do trabalho, e não simplesmente contra aspolíticas de um partido capitalista a ser substituído por outro,cuja inteligência estaria voltada simplesmente para acontinuidade da ordem social antiga, com um invólucro políticonovo para a mesma resultante capitalista, a misériaconcretamente universalizada.

A orientação político-comunicativa, a preocupaçãodo reinado com a opinião pública, logo após cumprir o

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decreto do massacre dos trabalhadores-heróis, procurou darrecomendações diplomáticas gerais à nação alemã, de que haviauns insensatos perturbando a ordem produtiva. No entanto aestratégia comunicativa do establissement não terminou suatarefa, mantendo uma fachada diplomática e civilizada, ela partiupara uma retórica mais agressiva, ameaçou afogar em sanguequalquer trabalhador ainda rebelde ou que não tivesse sidoconvencido pela mídia diplomática ou mesmo que ainda nãotivesse sido vergado pela agressão de sua força. O sangue jáhouvera escorrido na repressão, não seria de se espantar, queo Estado não prevenisse os restantes, tanto os insatisfeitos comoos conformados, com mais ameaças. As ameaças foram sérias.“Serão afogadas em sangue e na incompreensão, todas asrevoltas que eclodirem deste isolamento funesto dos homensseparados da comunidade.” (GC §58)

No entanto Marx comenta que a violência que ameaçaser intensa, que cala o corpo atingido, pode purificar espíritosque reconhecerão a covardia de tal agressão e a artificialidadede suas ameaças. Por isso Marx diz: “O ‘prussiano’ deveriaentão dizer: o afogamento em sangue afogará a não-inteligênciae fará a inteligência retomar seu fôlego”. (GC § 62)

Marx adverte que o caminho vislumbrado pelosheróis tecelões não foi completado pela revolta. A guerracontinua, apesar de as ameaças da violência estatal estaremclaras, apesar de suas fraturas institucionais estaremexpostas. A inconsistência existencial e a incoerênciacongênita da organização capitalista moderna ou pós-moderna da produção estão evidentes. Esta é a covardiaem que o Estado está fundado, esta é a fundamentação daviolência estatal, esta é a fundamentação do monopólio estatal

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.da violência que a ele está franqueada. Eis evidente a injustiçaque fundamenta nossas instituições capitalistas. Os heróissilesianos fizeram seu papel e esperam seu caminho sercontinuado. Esperam, há muito, já se passaram mais que centoe cinqüenta anos. As ameaças da covardia vêm dandoresultado; no entanto; a fragilidade institucional daorganização capitalista da produção não diminuiu. A espadada contradição da instituição global paira com sua pontadirecionada para a cabeça de Dámocles, de Bush ou de Blairou mesmo de quem ainda pretenda remediar este irremediável.

A operação da revolta dos tecelões demonstra paraos trabalhadores que o ciclo vicioso de sua miséria só podeser alterado pelo próprio trabalhador, o prejudicado maiordeste ciclo. A continuidade da revolta exige mais valentia,mais reflexão e mais resistência ainda. A sua saída é aquelaque o capital sempre procura lhe ocultar e impedir de saber.

4.2 Política revolucionária e emancipação humana

Em contraste com a inconsistência fática e essencialda organização moderna ou pós-moderna do capital, a Revoltados Tecelões da Silésia revelou consistência fática, porqueperturbou a ordem estabelecida e revela igualmente coerênciainterna, porque é uma luta política com fundamentação humana,emancipação dos trabalhadores, “é racional uma revoluçãopolítica com alma social” (GC §71). Se na observação sobre ainjustiça no controle da violência, ressaltamos a covardia daagressão de Golias contra Davi, aqui apresentamos a revoltados trabalhadores como a estratégia política fundada nateleologia da sociabilidade, observável na revolta dos tecelõesda Silésia, como a busca da emancipação humana.

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Ora, sem revolução, o socialismo não pode tornar-serealidade. Este ato político lhe é necessário na medidaem que ele tem necessidade de destruir e de dissolver.Mas, quando começa sua atividade organizadora,quando se manifesta seu próprio objetivo, sua alma, osocialismo rejeita seu invólucro político. (GC §71).

A comunidade humana não é uma simplesformalidade da associação, não é uma multidão desnorteadapela incerteza de consenso político abstrato, bem ao gostode republicanos pós-modernos. A consistência dacomunidade humana está na relação recíproca com ateleologia da emancipação humana efetivada na produçãopelo trabalho. Forma e conteúdo são preenchidos pelareciprocidade entre emancipação humana e comunidadehumana. A revolução social situa-se numa perspectiva dotodo, humano, universal aberto aos humanos concretos, nãoao todo político, universal abstrato, ao gosto de Ruge e doardil das modernidades. O todo da emancipação humana,teleologia da revolução marxiana, se dá na organização daprodução pela comunidade. O objetivo social, emancipaçãohumana é concretizado na comunidade, efetivação socialpela organização administrativa e política comunitária esocial. A política é política, regras de organização, sesubordinada ao social, isto é, subordinada à concretude dassubjetividades sociais; subordinada à eticidade, à efetivaçãodo ser social. Política é política se subordinada àemancipação humana em processo, no processo de produçãoda comunidade humana, e tal teleologia está para além daspretensões econômico-sociais modernas ou pós-modernas.

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.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MARX, Karl. Kritische Randglossen zu dem Artikel: “DerKönig von Preussen und die Sozialreform. Von einemPreussen”. MARX - ENGELS Werk. Band 1. [Berlin, DietzVerlag, 1983.]

_____________ . Gloses critiques en marge de l’article:“Le roi de prusse et la reforme sociale. Par un prussien.”.Maximilien Rubel. In: MARX, Karl. Oeuvres -Philosophie. Paris: Editions Gallimard, 1962.

_____________ . Critical Marginal Notes on the Article:The King of Prussia And Social Reform. By a Prussian.Martin Milligan - Barbara Ruhemann, Collected Works, NewYork, International Publishers, 1975.