alabardas, espingardas.pdf

5
-- ---- -- m CULTURA A Ultima causa deSaramago 0 Nobel portugues escreveu Alabardas. Alabardas, Espingardas, Espingardas, nos seus ultimos meses de vida, um livro inacabado que chegara as livrarias no proximo dia 23. A VI SAO ja leu este inedito sobre armas e violencia, escrito com a ironia humanista de Jose Saramago. Revelac;oes sobre esta «Salva» de despedida POR SILVIA SOUTO CUNHA Jose Saramago Al abardas .. _. '-""*"*"- =:: ... Alabardas Porto Editora, 136 pags., €15,50 0 livro apresenta tres capftulos. nove notas retiradas do Caderno de Jose Saramago ( datadas ent re 15 de agosto de 2009 e 22 de fevereiro de 2010), dez ilustra<; oes de Gunter Grass (Nobel da literatura em 1999), e dois posf<kios impactantes: Um Livro lnacabado, uma Vontade Firme. da autoria do poeta espanhol e ensafsta Fernando Gomez Aguilera; e Tambem Eu Conheci Artur Paz Semedo, um relato- -homenagem escrito pelo jornalista italiano Roberto Saviano 90 VIsAO 18 DE SETEMBRO DE 2014 <<AFI NAL, TALVEZ AINDA VA ESCREVER OU- TRO LIVRO. Uma velha minha (porque nunca houve uma grev'e numa fa- brica de armamento) deu pe a uma ide ia complementar que, precisamente, permi- tira o tratamento ficcional do tema. Nao o esperava, mas aconteceu, aqui sentado, dando voltas a ou dando-me ela vol- tas a mim.» Jose Saramago escrevia estas notas no Caderno ( na verdade, no seu com- putador portatil) a 15 de agosto de 2009. Es- cassos meses ap6s terminar Caim, romance com «tempestuosas consequencias», o es- critor acendia, assim, outro rastilho - dis- tante dos temas biblicos, e em paisagens crivadas por balas e outras impias inven- E regista outra frase: «0 gancho para arrancar com ahist6ria ja o tenho e dele falei muitas vezes: aquela bomba que nao che- gou a explodir na Guerra Civil de Espanha, como Andre Malraux conta em L'Espoir. >> E uma hist6ria verdadeira, a que os jornais da decada de 30 deram a da bomba na Extremadura contra as tropas da Frente Popular (a de partidos de esquerda espanh6is, criada em 1936, que venceu as antes do golpe de Estado que conduziria a guerra civil): 0 dispositive nao explodiu devido a urn ato de sabotagem,

Upload: ppablo-lima

Post on 26-Dec-2015

155 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Alabardas, Espingardas.pdf

-- ------------~--------------

m CULTURA

A Ultima causa

deSaramago 0 Nobel portugues escreveu Alabardas. Alabardas, Espingardas, Espingardas, nos seus ultimos meses de vida, um livro inacabado que chegara as livrarias no proximo dia 23. A VI SAO ja leu este inedito sobre armas e violencia, escrito com a ironia humanista de Jose Saramago. Revelac;oes sobre esta «Salva» de despedida POR SILVIA SOUTO CUNHA

Jose Saramago Alabardas .. _. '-""*"*"- =:: ...

Alabardas Porto Editora, 136 pags., €15,50 0 livro apresenta tres capftulos. nove notas retiradas do Caderno de Jose Saramago ( datadas entre 15 de agosto de 2009 e 22 de fevereiro de 2010), dez ilustra<;oes de Gunter Grass (Nobel da literatura em 1999), e dois posf<kios impactantes: Um Livro lnacabado, uma Vontade Firme. da autoria do poeta espanhol e ensafsta Fernando Gomez Aguilera; e Tambem Eu Conheci Artur Paz Semedo, um relato­-homenagem escrito pelo jornalista italiano Roberto Saviano

90 VIsAO 18 D E SETEMBRO DE 2014

<<AFI NAL, TALVEZ AINDA VA ESCREVER OU­

TRO LIVRO. Uma velha preocupa~ao minha (porque nunca houve uma grev'e numa fa­brica de armamento) deu pe a uma ideia complementar que, precisamente, permi­tira o tratamento ficcional do tema. Nao o esperava, mas aconteceu, aqui sentado, dando voltas a cabe~a ou dando-me ela vol-tas a mim.» Jose Saramago escrevia estas notas no Caderno ( na verdade, no seu com­putador portatil) a 15 de agosto de 2009. Es­cassos meses ap6s terminar Caim, romance com «tempestuosas consequencias», o es­critor acendia, assim, outro rastilho - dis­tante dos temas biblicos, e em paisagens crivadas por balas e outras impias inven­~oes. E regista outra frase: «0 gancho para arran car com ahist6ria ja o tenho e dele falei muitas vezes: aquela bomba que nao che­gou a explodir na Guerra Civil de Espanha, como Andre Malraux conta em L'Espoir.>> E uma hist6ria verdadeira, a que os jornais da decada de 30 deram aten~ao, a da bomba lan~ada na Extremadura contra as tropas da Frente Popular (a coliga~ao de partidos de esquerda espanh6is, criada em 1936, que venceu as elei~oes antes do golpe de Estado que conduziria a guerra civil): 0 dispositive nao explodiu devido a urn a to de sabotagem, ~

Page 2: Alabardas, Espingardas.pdf
Page 3: Alabardas, Espingardas.pdf

CULTURA LIVROS

,.. tendo-se encontrado no seu interior urn pa­pel com a mensagem «esta bomba nao re­bentani». Duas semanas depois, Saramago corrige a memoria: afinal, nao conhecera esse detonador narrativo atraves da letra de Malraux nem tao-pouco de Hemingway em Por Quem os Sinos Dobram. Mas a ideia do romance disparara ja, ganhando !on jura no pensamento, e ate L'Espoir tern urn Iugar nos tres capitulos ineditos deixados pelo Nobel portugues, e agora revelados.

0 titulo, esse, demorou seis meses a ser encontrado, saltitando ent re Belona ( o nome da deus a roman ada guerra) ou Produ­tos Belona S.A. (a fabrica de armamento cen­tral na narrativa), ate Sararnago assestar a pontaria em Alabardas, Alabardas, Espingar­das, Espingardas - urn verso de Gil Vicente na tragicomediaAuto da Exortaqao da Guer­ra. A VISAO, Pilar del Rio, mulher do escri­tor e «presidenta>> da Funda~ao Jose Sara­mago, explicita a liga~ao: «Que Gil Vicente esteja numa obra de Jose Saramago integra uma forma de este en tender o trabalho que inclui o respeito por aqueles que fizeram grande literatura em portugues. Os casos mais evidentes, ainda que haja nurnerosas referencias em todos os seus livros, sao Ca­rnoes, ern Que Farei Com Este Livro?; Pessoa, em 0 Ano da Morte de Ricardo Reis; Almeida Garrett, na epigrafe de Levantado do Chao; e o Padre Antonio Vieira, em Viagem a Portu­gal, em cujo arranque e homenageado ... Nao e de estranhar que encerre a sua obra corn Gil Vicente.»

Peoes em posi~ao Pode dizer-se que, a maneira vicentina, tarnbem ha farsas, tragedias e cornedias de enganos em Alabardas (Porto Editora). Saramago da-nos a conhecer urn homem obcecado por armas, e uma mulher que as despreza com igual paixao. Marido e mulher separados por profanissimos mecanismos e engatilhadas convic~oes. 0 «grande so­nho profissional» de artur paz semedo (as minusculas sao de Samarago), homem cin­zento que «jamais disparou urn t iro, nao e sequer ca~ador de fim de semana», traduz­-se em ser nomeado «responsavel pela fatu­ra~ao de uma das sec~oes de armas pesadas em vez da miu~alha das muni~oes para ma­terialligeiro». Entre outros prodigies letais, os «morteiros de goela aberta» ou as «lan~a­deiras de mfsseis do tipo orgao de estaline», le-se, eram «O maior prazer que a vida lhe podia oferecer». A par da preciosa cole~ao de fi lrnes de guerra - «Urn autentico curso

92 VISAO 18 DE SETEMBRO DE 2014

de estado-maior», atira Saramago com fina ironia. Felicia, a protagonista (antagonista) feminina, e pacifista, desafiadora. U rna Eva que ajudara a plantar a semente da duvida no abotoadoArtur. «Felicia e, no seculo XXI, Blimunda [herofna de Memorial do Conven­to]», define Pilar del Rio. «E a mulhervalen­te, ousada, que desencadeia a a~ao e man­tern a coerencia. Provoca, a partir dos seus

'Senti vertigens ao ler Alabardas porque sabia que, quando chegasse ao final, era verdadeiramente o Jim', confessa Pilar del Rio

tra~os distintivos, mas e irma da Maria Sara, de Hist6ria do Cerco de Lis boa, das rnulheres de A Jangada de Pedra, de Maria Madalena, do Evangelho Segundo Jesus Cristo, da mulher do medico, de Ensaio sobre a Cegueira, e das mulheres de Levantado do Chao», defende a tradutora e jornalista.

Saramago desenhou ainda outros perso­nagens para estas trincheiras: o adminis­trador-delegado eo pai, capitalistas teme­rosos da «tranquilidade social» reinante que, ruminam, «nunca e de fiar»; e Arsenio e Sesinando, Eucha e Estica respeitosos das minudencias burocraticas e da sabedoria popular. Paz Semedo, nome que e todo urn programa (paz sem me do) , ira vasculhar os arquivos contabilisticos da Belona S.A. em busca da verdade: a fabrica vendeu arrnas aos intervenientes das guerras na decada de 30? Houve gente a praticar o «crime de

' lesa-economia» de sabotagem de obuses? E Felicia que lhe recorda, a queima-roupa,

l

que«( ... ) os ditadores so us am a caneta para J assinar condena~oes a morte.>> 0 narrador, ,.. •

I

Page 4: Alabardas, Espingardas.pdf

[.CULTU~_) LIVROS

Pre-publica~o Primeiros paragrafos do ultimo livro «0 homem chama-se artur paz semedo e trabalha ha quase vinte anos nos servic;os de faturac;ao de armamento ligeiro e munir,;:oes de uma hist6rica fabrica de armamentci conhecida pel a razao social de produc;oes belona s.a., nome que, convem aclarar, pois ja sao pouqufssimas as pessoas que se interessam por estes saberes inuteis, era o da deusa romana da guerra. Nada mais apropriado, reconhec;a-se. Outras fabricas. mastodont icos imperios industriais armamentistas de peso mundial, se chamarao krupp ou thyssen, mas esta produc;oes belona s.a. goza de urn prest fgio unico, esse que lhe advem da antiguidade, baste dizer-se que, na opiniao abalizada de alguns peritos na materia, certos apetrechos milit ares romanos que encontramos em museus, escudos, courac;as, capacetes, pontas de lanc;a e glad ios, t iveram a sua origem numa modesta forja do t rastevere que, segundo foi voz corrente na epoca. havia sido estabelecida em Roma pela mesmfssima deusa. Ainda nao ha muito tempo, urn artigo publicado numa revista de arqueologia militar ia ao ponto de defender que alguns recem-descobertos restos de uma funda balear provinham dessa mftica forja, tese que logo seria rebatida por outras autoridades cientfficas que alegaram que, em tao remotos tempos, a temfvel arm a de arremesso a que se deu o nome de fund a balear ou catapulta ainda nao havia sido inventada. A quem isso possa interessar, este artur paz semedo nao e nem solteiro, nem casado, nem divorciado, nem viuvo, esta simplesmente separado da mulher , nao porque ele assim o t ivesse querido, mas por decisao dela, que, sendo militante pacifista convicta, acabou por nao suportar mais tempo ver-se ligada pelos lac;os da obrigada convivencia domestica e do dever conjuga l a urn faturador de uma empresa produtora de armas. Questao de coerencia, simplesmente. tinha explicado ela entao. A mesma coerencia que ja a t inha levado a mudar de nome, pois, tendo sido batizada como berta, que era o nome da av6 materna, passou a chamar-se oficialmente felicia para nao ter de carregar toda a vida com a alusao direta ao canhao ferroviario alemao que ficou celebre na prime ira guerra mundial por bombardear paris de uma distancia de cento e vinte quil6metros.»

~ presen~a familiar e omnisciente na obra sa­ramaguiana, avisa a quem o le: «A pruden­cia manda que no passado s6 se deva tocar com pin~as, e mesmo assim desinfetadas para evitar contagios.» Nao saberemos se o despertar etico de Artur acontece, se o ca­sal se reencontra, se a conspira~ao belica se revela: nao existem as paginas finais onde se desenla~am as pistas lan~adas, quase de­tetivescas, ou onde se revela a arquitetura literaria de Alabardas em toda a sua gloria.

9ofs VJS AO 18 DE SETEMBRO DE 2014

E face a promessa brilhante contida nestas linhas, 1emerge uma inevitavel sensa~ao de orfandade.

Escreve~se~pre Regressamos aos sinais de vida do Cader­no: em outubro de 2009, Saramago corri­giu os tres primeiros capitulos de Alabardas • produzidos, sublinhando que «e incrivel como o que parecia bern o deixou de ser», e prometendo t rabalhar no novo livro «com

maior assiduidade». «Saira ao publico no ano que vern se a vida nao me falta», afian~a. Em dezembro, depois de dois meses sem escrever, o au tor confessa nao estar «nada seguro de poder levar o livro a cabo». Em fevereiro de 2010, o entusiasmo ressurge: «AS ideias aparecem quando sao necessa­riaS», declara. A doen~a, essa persegue-o desde 2006. Quando o escritor se lhe ren­de definitivamente, a 18 de junho de 2010,

deixa 22 paginas escritas do novo romance. ~

Page 5: Alabardas, Espingardas.pdf

CULTURA LIVROS

,... Urn ultimo fOlego narrativo que ja exibe a <<musica da prosa» saramaguiana: a orali­dade, OS dialogos celeres e encadeados uns nos outros, a pontua~ao singular, o voca­buhirio rico e justo, as causas humanis­tas, OS conflitOS eticOS, as personagens delineadas ... A ironia «nao sarcastica» e a narrativa «Sem moralismos nem falsos didatismos» de que fala Pilar. Ouve-se, por exemplo, a voz familiar e insurreta do escritor, ao ler sobre a entrada da Belona S.A. no mercado, «COm urn modelo inspirado no [tan­que] merkava do exercito de Israel», rematando as­sim: «Nao podiam ter esco­lhido melhor, que digam os palestinos.»

«Nao entendo Alabardas como uns capitulos soltos, mas como uma obra, por­que estao la a pulsa~ao, os personagens, a trama, os andaimes - ou a alma- que sustem o livro. E, de algurna forma, esta presente a pro­posta de que cada leitor aca­be a hist6ria a sua respon­sabilidade», afirma Pilar del Rio. E ela confessa a VI SAO que, quando leu os tres capf­tulos sobreviventes, foi uma experiencia «demolidora»: «Senti vertigens porque sa­bia que, quando chegasse ao final da leitura, era verda­deiramente o fim.»

Cerimonia do adeus Jose Saramago nao expres­sou o desejo de publicar este livro incompleto, con­firma a sua mulher. «Sim­plesmente, urn dia, deixou de escrever e nao se falou mais de traba­lho», conta Pilar. Mas o escritor, nascido na vila da Azinhaga em 1922, sentia a «ur­gencia moral» de criar uma narrativa litera­ria explicita sobre a «monstruosidade» da guerra.Alabardasvai ser publicado simulta­neamente em portugues, catalao, espanhol e italiano. A edi~ao portuguesa inclui dois textos, alem das palavras suspensas de Sa­ramago, cada urn fulminante a sua maneira. Em Um Livro Inacabado, uma Vontade Firme,

96 VISAO 18 DE SET EMBRO DE 2014

As ideias aparecem quando silo

/' . necessanas, escreveu Jose Saramago no seu Caderno, emfevereiro de 2010

Fernando Gomez Aguilera, poeta, critico e curador da Funda~ao Jose Saramago, escre­ve que, «em ultima instancia, nao se tratava senao de construir a sua visao [de Sarama­go] sobre a banalidade do mal, o ass unto

controverso que Hannah Arendt pos em cima da mesa intelectual». A de­nunda desejada foi traida pelo tempo. «A pulsar,;ao da sua literatura acelerava­-se contra a morte» e, diz o academico espanhol, Jose Saramago transfigurou esse cerco numa «mecifora eloquente»: «Talvez a ana­logia perfeita seja a da vela que lan~a uma chama mais alta no momento em que se vai apagar.» Tam bern Eu Conheci Artur Paz Semedo e urn manifesto do italiano Roberto Saviano, o autor do celebre Gomorra, que aqui recorda aqueles para quem a «arma era uma palavra»: jornalistas assassinados ou perseguidos, como e ainda o seucaso.

0 volume, com grafismo discreto, de Alabardas e pon­tuado pelas ilustrar,;oes de outro Nobel da Literatura, Gunter Grass, num preto e branco de neve suja: caes­-lobos, silhuetas fantasma­g6ricas, soldados em fardas e paisagens que remetem para a Primeira Guerra Mundial, tao recordada por estes dias, conflito fundador de uma

~ violencia global, em que as o; l§ armas eram mais importan-i tes que o pao. Os editores es­~ colheram ainda acompanhar 8 o texto com pequenas frases

destacadas a vermelho, que evocam o gesto das anota~5es manuscritas na pagma. «Objeto belissimo», de «uma mo­dernidade magnifica>>, opina Pilar. E uma preciosidade, sim: o Ultimo material inedito de urn Nobel que nao tern areas por abrir. 0 que torna ainda mais desconcertante e de­sassombrado o final de Alabardas indiciado

, por Saramago no Caderno, a 16 de setembro de 2009: «0 livro terminara com urn sonoro 'Vai a merda', proferido por ela. Urn remate exemplar.>> l1l