ajuste econômico e crise estrutural da indústria · 2 revista eletrônica idealizada e produzida...

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Código ISSN: 2358-0690 ANO 03 JULHO 15 PARTICIPAÇÃO ESPECIAL Mariana Mazzucato | Caetano Penna | Célio Hiratuka | Cristina Fróes de Borja Reis | Fernando Sarti | Marcelo Arend REVISTA Série Especial AUSTERIDADE ECONÔMICA E QUESTÃO SOCIAL 21 Ajuste econômico e crise estrutural da indústria

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  • Cdigo ISSN: 2358-0690

    ANO 03 JULHO 15

    PARTICIPAO ESPECIAL Mariana Mazzucato | Caetano Penna | Clio Hiratuka | Cristina Fres de Borja Reis | Fernando Sarti | Marcelo Arend

    REVISTA

    Srie Especial AUSTERIDADE ECONMICA E QUESTO SOCIAL

    21 Ajuste econmico e crise estrutural da indstria

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    Revista eletrnica idealizada e produzida pela rede Plataforma Poltica Social que rene cerca de 300 pesquisadores e profissionais de mais de uma centena de universidades, centros de pesquisa, rgos do governo e entidades da sociedade civil e do movimento social.

    plataformapoliticasocial.com

    EDITOR Eduardo Fagnani

    EDITOR ASSISTENTE Thomas Conti

    JORNALISTA RESPONSVEL Davi Carvalho

    REVISO Caia Fittipaldi

    PROJETO GRFICO Renata Alcantara Design

    CONSELHO EDITORIAL Ana Fonseca NEPP/UNICAMP

    Andr Biancarelli Rede D - IE/UNICAMP

    Erminia Maricato USP

    Lena Lavinas UFRJ

    Cdigo ISSN: 2358-0690

    APOIO

    www.fes.org.br

    revistapoliticasocialedesenvolvimento.com

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    08Estado vs. Mercados: uma falsa dicotomiaMariana Mazzucato Caetano C.R. Penna16Desafios para o desenvolvimento industrial no BrasilClio Hiratuka Fernando Sarti3038

    Mais 4 anos de ajuste fiscal e 40 anos sem mudana estrutural

    Marcelo Arend

    A crtica do ajuste fiscal sob a perspectiva da indstria, com pingos nos is

    Cristina Fres de Borja Reis

    ndice

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    A J U S T E E C O N M I C O E C R I S E E S T R U T U R A L D A I N D S T R I A

    Nesta edio #21 da Revista Poltica Social e Desenvolvimento, seguimos no debate sobre a gesto macroeconmica ortodoxa e seus impactos na interdio da agenda de desenvolvimento e ameaa s conquistas sociais.

    Mariana Mazzucato e Caetano Penna (Estado vs. Mercados: uma falsa

    Eduardo FagnaniProfessor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Poltica Social (www.platafor-mapoliticasocial.com)

    Apresentao

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    dicotomia) sublinham que, em econo-mias capitalistas, o debate entre Estado e Mercado tende a oscilar ao longo do tempo nas mentes e nos coraes da opinio pblica e dos decisores de pol-ticas pblicas: os perodos em que o Estado defendido por seu papel no desenvol-vimento econmico so sempre substi-tudos por um ataque sua interveno no bom funcionamento de mercados. Para eles, em todas as economias capi-talistas, o Estado fez e continua a fazer o que os mercados no fazem. Alertam que investimentos produtivos exigem capital paciente e comprometido com o longo prazo, fornecido por instituies pblicas. Esse papel ativo encontrado em pases desenvolvidos e em desenvolvi-mento. Atacar e diminuir a importncia destas instituies estatais ser desonesto com a histria, pontificam os autores. Na mesma linha, destacam a inadequao da justificativa liberal segundo a qual o papel do Estado na economia seria de corrigir falhas de mercado. Apontam que nenhum pas jamais conseguiu desen-volver-se e se industrializar baseando suas decises de investimentos pblicos na avaliao de falhas de mercado.

    Em Desafios para o Desenvolvimento Industrial no Brasil, Clio Hiratuka e Fernando Sarti traam um breve pano-rama do comportamento da indstria brasileira nas ltimas dcadas. Para eles, entre 1950 e 1980, o Brasil vivenciou um longo perodo de crescimento econmico liderado pelo processo de diversificao e integrao da estrutura industrial brasi-leira. No obstante, a partir de 1980, com as mudanas nos condicionantes internos e

    externos e a opo por sucessivas polticas econmicas restritivas ao desenvolvimento industrial, observou-se uma perda relativa de dinamismo da indstria brasileira. Na dcada de 1990, houve uma guinada em termos de estratgia de desenvolvimento industrial. Num contexto de abertura e de sobrevalorizao cambial, a proposta liberal para a obteno de maiores ganhos de competitividade centrou-se no estmulo maior competio. Para tanto, adotou-se uma poltica de abertura comercial e finan-ceira, ao mesmo tempo em que o papel do Estado era reduzido, perdendo a capacidade para induzir e coordenar os investimentos empresariais privados. No breve perodo entre 2004 e 2010, vislumbrou-se alguma recuperao da capacidade do Estado para articular e induzir o crescimento. Maiores taxas de crescimento econmico, num cenrio internacional favorvel, benefi-ciado pela crescente influncia da China sobre preos e quantidades de commodi-ties exportadas. Mesmo considerando os impactos da crise de 2008, foi possvel observar estratgias empresariais condi-zentes com maior gerao de empregos, formalizao e crescimento salarial. Isso promoveu a recuperao de um importante mecanismo de retroalimentao din-mica da economia, que ajudou a sustentar o crescimento do emprego, da renda e do consumo, da prpria produo industrial e, finalmente, resultou em elevao dos investimentos. Entretanto, esse meca-nismo foi perdendo fora depois da crise internacional (2008), em razo do acirra-mento da concorrncia internacional e com a deteriorao das expectativas (a partir de 2013), que acabaram por contaminar nega-tivamente o investimento. Neste contexto

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    adverso, a aposta de que um ajuste fiscal duro leve recuperao da confiana e volta dos investimentos pode estar fadada ao fracasso, afirmam os autores. O mais provvel que ficaremos prisioneiros de um ciclo vicioso de menos crescimento, menos emprego, menos renda, menos consumo, menos investimento, menos produtividade e menos crescimento. Para romper este ciclo, Hiratuka e Sarti subli-nham a importncia crucial da construo de consensos em torno da necessidade inadivel de retomada do crescimento econmico.

    Aprofundando este tema, Marcelo Arend (Mais 4 anos de ajuste fiscal e 40 anos sem mudana estrutural), procura evidenciar que um ajuste fiscal, por si s, no garante a retomada do crescimento sustentado. A poltica fiscal restritiva aliada poltica monetria em execuo pode, inclusive, debilitar ainda mais o paciente, ao dificultar a retomada do inves-timento, considerando-se um cenrio de estagnao da demanda interna e externa. Em sua viso, a estrutura produtiva neces-sita de um ajuste estrutural de grande envergadura, tarefa muito distante de ser cumprida por um ajuste fiscal. Para Arend, a insuficincia dinmica do parque industrial brasileiro estrutural: desde 1980, o desempenho da indstria brasileira apresenta um menor dinamismo industrial em relao mdia mundial, s economias desenvolvidas e em desenvolvimento. Nas ltimas trs dcadas, o Brasil apresentou um falling behind manufatureiro em relao totalidade dos grupos de pases que compreendem o sistema mundial. Para ele, a instituio de um padro de

    crescimento sustentado requer a elevao da taxa de investimento. Ao mesmo tempo ser preciso alterar o padro estrutural de inverses, transformando no mdio prazo a matriz produtiva e o padro de comrcio exterior vigente. Alterar o padro estru-tural dos investimentos fundamental, pois, desde a dcada de 1990, os motores do investimento e do crescimento nacional, so os grupos industriais relacionados a commodities agroindustriais e indstria representativa do antigo padro fordista de produo. Houve extrema dificuldade para diversificar sua estrutura industrial em direo incorporao dos novos setores emblemticos da revoluo tecnolgica que irrompeu na dcada de 1980. Finaliza, advertindo que mais 4 anos de ajuste fiscal garantiro o aniversrio de uma indstria quarentona (1980-2020), inerte, estag-nada e defasada tecnologicamente para os padres internacionais.

    Finalmente, em A crtica do ajuste fiscal sob a perspectiva da indstria, com pingos nos is, Cristina Fres de Borja Reis, antes de analisar as consequncias do ajuste fiscal para a estrutura produtiva, faz duas advertncias. Em primeiro lugar, preciso caracterizar a indstria como sendo um conjunto de complexos industriais, nos quais se entrelaam cadeias produtivas que incluem diversas atividades de trans-ferncia e de transformao de insumos apoiadas por servios industriais at a gerao de bens e servios finais. Neste sentido, a defesa da indstria precisa considerar as diferentes possibilidades de participao nestas cadeias produ-tivas e complexos industriais. Tambm preciso qualificar a complexa estrutura

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    das empresas e seus mercados em termos de porte, grau de concentrao, direitos de propriedade, entre outros. Esta advertncia fundamental para orientar a ao das polticas governamentais. Como exemplo, a autora destaca que um segmento signifi-cativo da indstria brasileira corresponde a grandes oligoplios, cujas estratgias seguem dinmicas prprias. Nesse caso, os efeitos da poltica econmica, indus-trial e de tecnologia e inovao tm alcance limitado. Esses oligoplios industriais so grupos financeiros de capital aberto, integrados ao agronegcio e aos servios (destacando o comrcio de atacado e de varejo). O grande capital transita entre a esfera financeira e a produtiva conforme avaliao prpria, correspondendo no somente busca por maior retorno, mas tambm aos interesses geopolticos a que esto associados em um tabuleiro bem mais amplo de disputas de poder e riqueza. Assim, a defesa da indstria precisa estar atenta a quem e a o que est sendo incentivado, para que polticas no se tornem bolsa-empresrio para grandes capitalistas. A segunda advertncia sobre a importncia da indstria para o desenvolvimento. Aprofundando a anlise dessa relao, constata que de maneira geral a histria revela que as naes com melhores ndices de desenvolvimento so industrializadas. O sucesso da industria-lizao em promover desenvolvimento depende de mecanismos complexos. As variadas trajetrias de industrializao atingiram diferentes graus de elevao da renda e bem-estar, a depender da capaci-dade e qualidade da gerao de empregos, da elevao real da renda do trabalho e da sofisticao tecnolgica. No caso do Brasil,

    a defesa da indstria e o fortalecimento de sua posio nas cadeias produtivas globais precisam ser promovidos desde uma postura ativa e altiva frente aos conflitos de classes externos e internos algo bastante difcil, tanto mais factvel quanto mais se aprofundar a democracia. Finalmente, a autora destaca as consequncias do ajuste fiscal para a indstria no Brasil. Na sua viso, o ajuste dever complicar as perspectivas de investimento produ-tivo industrial, por conta da tendncia de queda na demanda. Na sua viso, polticas monetrias e fiscais contracionistas geram perdas em termos de produo e emprego, abalando principalmente o elo frgil da indstria: os trabalhadores assalariados nas posies mdias e baixas da hierarquia administrativa, e os empresrios nacionais de micro, pequenas e mdias empresas.

    Boa Leitura!

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    O debate sobre os papis relativos do Estado e do mercado em economias capita-listas tende a oscilar ao longo do tempo nas mentes e nos coraes da opinio pblica e dos decisores de polticas pblicas: os perodos em que o Estado defendido por seu papel no desenvolvimento econmico so sempre substitudos por um ataque sua interveno no bom funcionamento

    Estado vs. Mercados: uma falsa dicotomia

    Mariana Mazzucato Professora de Economia da Inovao da Science Policy Research Unit (SPRU) da Universidade de Sussex e autora de O Estado Empre-endedor: Desmascarando o mito do setor pblico vs. setor privado (2014, Cia. das Letras).

    Caetano C.R. Penna Professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador associado da Science Policy Research Unit (SPRU) da Universidade de Sussex.

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    Foto: Norbert Vennektter @pixalbay

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    de mercados. Foi assim ao longo do sculo XX (ver REINERT, 2009, para uma anlise de como as oscilaes deste pndulo esto ligadas a mudanas na agenda de inves-tigao predominante da economia). E isso o que aconteceu desde a mais recente crise financeira global e da recesso econ-mica: um breve perodo logo aps a sua erupo, quando era quase um consenso que o Estado tinha um papel fundamental a desempenhar na promoo do desenvolvi-mento e do crescimento atravs da poltica industrial, foi rapidamente apreendido por aqueles que diziam o contrrio. A austeri-dade tornou-se o prato do dia, enquanto as polticas industriais ativas transfor-maram-se no modismo da ltima estao. O Brasil, que foi um retardatrio na adoo de polticas neoliberais na dcada de 1990, chegou novamente atrasado no baile: a austeridade s agora a principal agenda econmica do pas. E com ela vem o ataque usual s instituies do Estado agncias, empresas, bancos que, no Brasil, foram responsveis por permitir que as poucas reas de competitividade internacional surgissem (incluindo a conquista do Cerrado pelo agronegcio, a rea aeroes-pacial, a explorao de petrleo em alto--mar, dentre outros).

    De fato, em todas as economias capitalistas, o Estado fez e continua a fazer o que os mercados no fazem (MAZZUCATO, 2014).Tome-se o setor financeiro, por exemplo. Um sistema financeiro que funcione bem deve financiar o consumo e a produo, promovendo o crescimento econmico e, assim, um aumento do nvel de vida (bem-estar) da populao. No entanto, j h alguns anos o setor no tem financiado investimentos em inovao ou a economia real, mas sim financiado ativos financeiros. Desde os anos 1970, inovaes financeiras juntamente com desregulamentao de mercados tornaram mais fcil obter lucros de investimentos especulativos em ativos financeiros (EPSTEIN, 2005; KRIPPNER, 2005; DORE, 2008; LAZONICK, 2013). No Brasil, a questo assume uma forma idiossincrtica: devido ao alto rendimento, curta maturidade e ao baixo risco relativo de ttulos do Tesouro, bancos comerciais e de investimento preferem comprar dvida governamental a financiar investimentos de longo prazo na indstria, em infraes-trutura, ou em inovao que so ou capi-tal-intensivos ou altamente incertos (ou ambos).Investimento s pr o dutivo s exigem pacincia na forma do que chamamos em outro lugar de capital paciente e compro-metido com o longo prazo (MAZZUCATO, 2013; MAZZUCATO e PENNA, 2015). Nos EUA, capital paciente fornecido atravs da atividade de diferentes instituies pblicas como Defense Advanced Research Projects Agency (Darpa), National Insti-tutes of Health (NIH), National Science Foundation (NSF), National Aeronautics and Space Administration (NASA), os programas de Small Business Innovation

    De fato, em todas as economias capitalistas,

    o Estado fez e continua a fazer o que os mercados no fazem

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    Research (SBIR), a iniciativa nacional de nanotecnologia, dentre muitos outros. Um papel ativo do Estado tambm encontrado em pases como Alemanha, Finlndia, Israel, e, claro, a China, mas em cada pas os tipos de instituies pblicas respons-veis pelo fornecimento de financiamento paciente assumem diferentes formas. No Brasil, ele vem de bancos pblicos, nomea-damente, BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econmica Federal (ver MAZZUCATO e PENNA, 2014, para uma anlise dos papis desempenhados pelos bancos de desenvolvimento estatais), mas tambm de empresas estatais. Sim, suas operaes podem e devem ser melhoradas. Mas atacar e diminuir a importncia destas institui-es estatais ser desonesto com a histria.

    O exemplo da Embraer (BERNARDES, 2000; CASSIOLATO et al, 2002; FORJAZ, 2005) ilustra a importncia do Estado como agente de liderana na promoo da mudana tcnica, industrializao e desenvolvimento, bem como o seu papel de principal financista paciente. A Embraer foi fundada em 1969 a partir de uma viso concebida pelo Estado brasileiro para criar uma indstria aeroespacial a partir do zero. O sucesso da Embraer aps a sua privati-zao, em 1994, frequentemente reco-nhecido como um exemplo paradigmtico

    da superioridade do setor privado sobre o Estado. verdade, as finanas da empresa estavam em condies terminais no incio da dcada de 1990 (muito por conta de como as empresas estatais brasileiras foram usadas na dcada de crise de 1980). Mas suas competncias tecnolgicas bsicas, que foram a chave para o sucesso dos jatos regionais em mercados globalizados, foram adquiridas muito antes, no final da dcada de 1970, quando era controlada pelo Estado e foram firmados acordos de cooperao com outros pases, como a Itlia. Alm disso, quando a Embraer assinou um de seus primeiros grandes contratos de venda, com a American Airlines (AA), a operao no foi financiada por bancos privados, que fugiam de seu perfil de risco e de longo prazo, mas pelo BNDES. Foi esse acordo com AA que colocou em evidncia a Embraer, e a ajudou a se tornar um dos lderes mundiais no mercado de jatos regionais.A importncia das empresas estatais e das finanas pblicas pacientes no exclusiva de pases em desenvolvimento. De fato, outro exemplo da indstria aeroespacial ilustra bem este ponto. Em um pas onde, na imaginao do pblico, se pratica o libe-ralismo por excelncia a Gr-Bretanha foi o apoio do Estado que salvou a Rolls--Royce (LAZONICK e PRENCIPE, 2005). Custos crescentes oriundos de atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) para um novo motor de avio colocaram a icnica empresa em falncia. Em vez de deixar a empresa morrer, o governo britnico fez o que a City londrina no fez: deu o seu apoio, atravs de uma naciona-lizao inicial (em 1971; logo em seguida o Estado britnico se desfez da diviso

    Mas atacar e diminuir a importncia destas

    instituies estatais ser desonesto com a histria.

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    Foto: Geralt @Pixabay

    de automveis para concentrar na rea aeroespacial) e, em seguida, atravs de uma sequncia de emprstimos pacientes. Em 1987, a empresa estava forte o suficiente para ser privatizada. A Rolls-Royce logo se tornaria uma das lderes no mercado global para motores aeroespaciais.Conforme um de ns demonstra (MAZZU-CATO, 2013), o prprio Vale do Silcio na Califrnia (EUA) em si o resultado de uma interveno macia do Estado. Cada tecnologia por trs do iPhone (e de celulares inteligentes em geral) foi finan-ciada diretamente por diferentes organi-zaes governamentais, principalmente no Departamento de Defesa dos Estados

    Unidos, cujo modelo foi copiado mais tarde tambm no Departamento de Sade e no Departamento de Energia. De fato, a atual revoluo do gs de xisto atravs da tcnica de fraturamento hidrulico o resultado de dcadas de investimentos pelo Departa-mento de Energia dos EUA, que tambm foi responsvel por fornecer o financiamento paciente para Elon Musk (o novo heri do Vale do Silcio) para o carro Tesla S.Na verdade, as empresas de Musk Tesla Motors, SolarCity, e SpaceX so muito competentes em surfar a onda de tecno-logia desenvolvida e financiada pelo Estado e em obter a ajuda estatal. Juntos, esses empreendimentos de alta tecnologia

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    beneficiaram-se de 4,9 bilhes de dlares de governos locais, estaduais e federal, incluindo subvenes, incentivos fiscais, investimentos na construo de fbricas, e emprstimos subsidiados. O governo dos Estados Unidos tambm forja demanda cria o mercado para os seus produtos, atravs da concesso de crditos fiscais e descontos para os consumidores de painis solares e veculos eltricos, e assi-nando com SpaceX 5,5 bilhes dlares em contratos com a NASA e a Fora Area dos EUA. Embora este apoio governamental tenha sido recentemente o foco de artigos e notcias (ver HIRSCH, 2015), o que passa relativamente despercebido o fato de que Tesla Motors, SolarCity, e SpaceX tambm se beneficiarem de investimentos diretos em tecnologias radicais pelo Departamento de Energia dos EUA, como no caso de tecno-logias de bateria e painis solares, e pela NASA, no caso de tecnologias de foguetes. Nada disto deve ser visto como surpreen-dente ou injustificado. Pelo contrrio, o Estado est por trs do desenvolvimento da maioria das tecnologias-chave que so posteriormente integrados pelo setor privado em inovaes revolucionrias. Alm disso, essas empresas esto ajudando a empurrar a fronteira da inovao atravs do desenvolvimento posterior de tecnolo-gias concebidas e financiadas pelo Estado, e, crucialmente, contribuindo para uma transio para uma economia ambiental-mente mais sustentvel.Mas como so investimentos pblicos como estes e de fato o papel do Estado na economia justificados e analisados por economistas? Normalmente, eles afirmam que o papel do Estado na economia o de corrigir falhas de mercado: casos em

    que os mercados competitivos falham na alocao eficiente de recursos (ARROW, 1962; STIGLITZ, 1989; MEDEMA, 2003; LEDYARD, 2008). Por exemplo, no caso de bens pblicos aqueles que podem ser consumidos por todos, como o ar limpo ou grandes infraestruturas os mercados no alocam recursos para sua produo. Nesses casos, seria justificvel o Estado intervir na economia para garantir a sua produo. No entanto, ainda que convincente, este arcabouo das falhas de mercado est asso-ciado a muito limitadas anlises de custo--benefcio dos investimentos pblicos, que buscam medir se os benefcios que se obtm a partir deles cobrem eventuais custos (incluindo custos de oportunidade) (MAZZUCATO, 2015).H trs problemas nessas anlises: primeiro, um exerccio analtico esttico do processo intrinsecamente dinmico de desenvolvimento econmico e de mudana tcnica, que cumulativo e se desenrola em direes imprevisveis (quem poderia dizer que as tecnologias desenvolvidas para o exrcito dos EUA acabariam nas mos de milhes de usurios ao redor do mundo sob a forma de smartphones?). Em segundo lugar, tais anlises requerem estimar cada custo e benefcio em valores monetrios, o que no fcil mesmo se for possvel e desejvel (o que o valor monetrio de ar limpo ou de empregos alta-mente qualificados?). Em terceiro lugar, anlises de custo-benefcio podem levar a um resultado semelhante ao que motivou os investimentos em primeiro lugar: a falta de investimento em projetos-chave, devido a elevados riscos e incertezas vis--vis outras oportunidades de investimento existentes. Deveria o Estado agir como

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    um investidor privado e aplicar os seus recursos na melhor oportunidade de inves-timento alternativo (no caso do Brasil, investindo em ttulos do Tesouro de alto rendimento e baixo risco)? Bem, se fosse o caso, hoje no teramos uma Embraer, uma Rolls-Royce, e, possivelmente, uma Apple (uma vez que a maioria das tecnologias de informao e comunicao no existiria) com todas as consequncias em termos de perdas de emprego, capacidade tecnolgica e bem-estar.

    O arcabouo das falhas de mercado no adequado para justificar e analisar casos reais em que o Estado agiu empreendedo-ramente (MAZZUCATO, 2015). Quando o Estado concebeu, deu forma e criou novos mercados e no corrigiu os j existentes. Ou quando investiu em reas devido ao interesse pblico, sejam elas a industrializao e mudana tcnica ou de segurana nacional e capacitao tecnolgica. Nenhum pas jamais conse-guiu desenvolver-se e industrializar-se baseando suas decises de investimentos pblicos na avaliao de falhas de mercado, o que levaria a investimentos minguados e concentrados no mximo em P&D montante (e no em toda a cadeia de inovao pesquisa bsica, pesquisa

    aplicada, e ainda no financiamento de empresas de alto risco como aconteceu no Vale do Silcio, por exemplo). Ignorar esta histria significa usar o arcabouo das falhas de mercado e a associada dicotomia Estado vs. mercados para fins polticos, no econmicos. Sucesso nas economias capitalistas cada vez mais depende de parcerias sinrgicas entre os setores pblico e privado. Como os exemplos acima mostram, ambos tm papis fundamen-tais a desempenhar no desenvolvimento econmico de um pas: Embraer e Rolls--Royce desenvolveram as suas competn-cias tecnolgicas guiadas pela mo visvel do Estado, mas alcanaram sucesso no mercado global sob gesto privada, depois de suas respectivas privatizaes. Apple, Tesla, Solarcity, SpaceX so exemplos--chave da capacidade para inovao das empresas privadas com acesso a tecno-logias inovadoras financiadas publica-mente e ao capital paciente estatal. Os pases mais bem-sucedidos na economia global tm o que se poderia chamar de um ecossistema simbitico de inovao e de produo, em que agentes pblicos e privados se beneficiam e lucram de aes e interaes mtuas. Nestes casos, a inicia-tiva privada no captura o Estado, nem o Estado se torna uma ferramenta para favores polticos.A questo, portanto, no quem deve liderar e guiar a economia, o Estado ou o mercado (setor privado). Ambos so cruciais. A questo como promover essas parcerias sinrgicas. Ainda que no haja receita mgica, uma coisa certa: quanto mais ousado for o Estado em sua iniciativa estratgica, menos provvel que seja captu-rado pela iniciativa privada. Isso significa

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    O arcabouo das falhas de mercado no adequado

    para justificar e analisar casos reais em que o Estado agiu empreendedoramente

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    definir as principais misses societais desde colocar um homem na lua, passando por garantir a segurana nacional e energ-tica, at combater e mitigar as mudanas climticas, por exemplo que iro guiar as polticas pblicas e aes privadas a longo prazo (MAZZUCATO e PENNA, 2015). Em vez de focar em muito duvidosos benefcios de curto prazo de um programa de austeri-dade e esperar que um futuro acontea o Brasil estaria muito mais bem posicionado se definisse as suas misses fundamentais e fizesse o seu prprio futuro acontecer.

    REFERNCIAS

    ARROW, K., 1962. Economic welfare and the allocation of resources for invention, in: Nelson, R.R. (Ed.), The Rate and Direction of Inventive Activity. Princeton University Press, Princeton, NJ:, pp. 609-626.

    BERNARDES, R., 2000. Embraer: elos entre Estado e mercado. Editora Hucitec.

    CASSIOLATO, J.E., BERNARDES, R., LASTRES, H., 2002. Innovation Systems in the South: a case study of Embraer in Brazil. UNCTAD-DITE investment policy and capacity-building branch. New York and Geneva, United Nations.

    DORE, R., 2008. Financialization of the Global Economy. Industrial and Corporate Change 17, 1097-1112.

    EPSTEIN, G.A., 2005. Financialization and the world economy. Edward Elgar Publishing.

    FORJAZ, M.C.S., 2005. The origins of Embraer. Tempo Social 17, 281-298.

    HIRSCH, J., 2015. Elon Musks growing empire is fueled by $4.9 billion in government subsidies, Los Angeles Times, 30 de Maio.

    KRIPPNER, G.R., 2005. The financialization of the American economy. Socio-Economic Review 3, 173-208.

    LAZONICK, W., 2013. The Financialization of the U.S. Corporation: What Has Been Lost, and How It Can Be Regained. Seattle University Law Review 36, 857-909.

    LAZONICK, W., PRENCIPE, A., 2005. Dynamic capabilities and sustained innovation: strategic control and financial commitment at Rolls-Royce plc. Industrial and Corporate Change 14, 501-542.

    LEDYARD, J.O., 2008. Market Failure, in: DURLAUF, S.N., BLUME, L.E. (Eds.), The New Palgrave Dictionary of Economics. Palgrave Macmillan, Basingstoke.

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    E S TA D O V S . M E R C A D O S : U M A F A L S A D I C O T O M I A

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    A J U S T E E C O N M I C O E C R I S E E S T R U T U R A L D A I N D S T R I A

    Durante as dcadas de 1950 a 1980, o Brasil vivenciou um longo perodo de cresci-mento econmico liderado pelo processo de diversificao e integrao da estrutura industrial brasileira. A crescente inter-nalizao dos segmentos da indstria pesada possibilitou uma maior dinmica interindustrial e a reduo da dependncia da demanda externa, enquanto vetor de

    Desafios para o desenvolvimento

    industrial no Brasil

    Clio Hiratuka Professor doutor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp), Campinas, SP, Brasil.

    E-mail: [email protected]

    Fernando Sarti Professor doutor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp), Campinas, SP, Brasil.

    E-mail: [email protected]

  • 1 7S R I E E S P E C I A L A U S T E R I D A D E E C O N M I C A E Q U E S T O S O C I A L

    Foto: DasWortgewand @ Pixabay

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    R E V I S TA P O L T I C A S O C I A L E D E S E N V O LV I M E N T O 2 1

    A J U S T E E C O N M I C O E C R I S E E S T R U T U R A L D A I N D S T R I A

    crescimento. O crescimento sob a liderana da indstria, expresso no crescente grau de industrializao (participao do produto industrial no produto total), possibilitou uma trajetria de convergncia do PIB per capita brasileiro em relao s economias industrializadas. A partir de 1980, com as mudanas nos condicionantes internos e externos e a opo pela adoo de suces-sivas polticas econmicas restritivas ao desenvolvimento industrial, observou-se uma perda relativa de dinamismo da inds-tria brasileira. No s a indstria deixou de ser o motor dinmico da economia, perdendo participao dentro do produto total, como, alm disso, a trajetria de convergncia do PIB per capita brasileiro em relao ao PIB per capita dos pases centrais se inverteu.

    O ambiente de crise e instabilidade, resul-tado da crise da dvida externa, induziu estratgias predominantemente defen-sivas, voltadas manuteno da riqueza patrimonial, pelas grandes empresas nacionais e estrangeiras. Essa estratgia foi marcada, ao longo dos 1980, pela reduo rpida dos nveis de endividamento e por maiores mark-ups, permitidos, por um lado, pela proteo ao mercado interno dada pelas elevadas barreiras importao e pelo cmbio desvalorizado; e por outro, pela percepo de que essa estratgia no representaria risco de contestao pelos rivais atuantes no mesmo setor, ou por concorrentes potenciais, dada a generali-zao das posturas defensivas. Alm disso, parte crescente dos recursos acumulados foi sendo direcionada para aplicaes no mercado financeiro (PEREIRA, 2000; BELLUZZO e ALMEIDA, 2002).

    Do ponto de vista dos investimentos produ-tivos, houve pouca aplicao de recursos em expanso de capacidade e em diversi-ficao horizontal de atividades, sobre-tudo para os setores de maior intensidade tecnolgica, que ganharam espao nas economias avanadas com a difuso da terceira revoluo industrial alicerada nas tecnologias de informao e comuni-cao (TICs). As estratgias corporativas de investimentos visaram aos processos de aquisio, buscando elevar o poder de mercado e/ou buscar uma diversificao empresarial como forma de estabilizar a rentabilidade e o risco geral das operaes produtivas. Vale destacar que alguns grupos econmicos aproveitaram os estmulos dados atividade exportadora e buscaram complementar a rentabilidade obtida no mercado interno com maior insero nos mercados externos, atravs da entrada em segmentos intensivos em recursos naturais ou iniciando um primeiro movimento de internacionalizao produtiva.

    A frustrao acumulada ao longo dos anos 1980 deu flego a uma guinada em termos de estratgia de desenvolvimento industrial. A estrutura produtiva prote-gida, autrquica e diversificada do perodo anterior foi identificada como a grande causadora da estagnao, das ineficincias alocativas e tcnicas (escala) e do baixo desenvolvimento tecnolgico. A proposta liberal para obteno de maiores ganhos de competitividade centrou-se no estmulo maior competio, ou seja, admitia-se implicitamente a hiptese segundo a qual se aprende a competir competindo, independentemente do grau j alcan-ado de capacidade competitiva. Para

    D E S A F I O S PA R A O D E S E N V O LV I M E N T O I N D U S T R I A L N O B R A S I L

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    tanto, adotou-se uma poltica de abertura comercial e financeira, ao mesmo tempo em que o papel do Estado era reduzido, seja diretamente atravs do processo de privatizao, seja atravs da retirada de polticas seletivas que buscavam coordenar e induzir aes ativas do setor privado. Esse processo no pode ser dissociado da perda de capacidade do Estado para investir diretamente na modernizao da infraestrutura tradicional e de cincia, tecnologia e inovao (C&T&I).

    No bojo da fragilidade fiscal e financeira dos anos 1980 e da poltica mais liberal dos 1990, o Estado foi perdendo a capacidade

    para induzir e coordenar os investi-mentos empresariais privados. Da mesma maneira, a utilizao de polticas mais ativas de desenvolvimento industrial foi

    Foto: Pete Linforth @Pixabay

    No bojo da fragilidade fiscal e financeira dos anos 1980

    e da poltica mais liberal dos 1990, o Estado foi perdendo

    a capacidade para induzir e coordenar os investimentos

    empresariais privados

    D E S A F I O S PA R A O D E S E N V O LV I M E N T O I N D U S T R I A L N O B R A S I L

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    A J U S T E E C O N M I C O E C R I S E E S T R U T U R A L D A I N D S T R I A

    deixada em segundo plano, uma vez que se optou por uma combinao de polticas de estmulo competio com polticas horizontais, voltadas basicamente para melhorar o ambiente de negcios, sem a preocupao em aprofundar polticas que partissem do reconhecimento das diferenas das caractersticas produtivas, tecnolgicas, econmicas e financeiras dos setores ou cadeias produtivas, assim como seus diferentes graus de competitividade internacional.

    As estratgias empresariais nos 1990, frente abertura e sobrevalorizao cambial a partir da estabilizao, prio-rizaram a reduo de custos e ganhos de eficincia com o objetivo de manter a rentabilidade operacional, num quadro de crescente presso sobre os preos e as margens industriais. Para tanto, buscou-se uma racionalizao da produo, com a reduo do grau de verticalizao e de diversificao, maior especializao produtiva e substituio de fornecedores locais por insumos importados, bem como o enxugamento da estrutura ocupacional. importante ressaltar que, embora tenha resultado em melhora no grau de eficincia produtiva, os investimentos realizados no perodo continuaram tendo um carter mais defensivo, voltados substituio ou reposio de equipamentos, moder-nizao de processos e s aquisies patrimoniais. A crescente elevao do coeficiente e contedo importados reduziu os encadeamentos intersetoriais e o multi-plicador da renda e emprego. A ausncia de estratgias mais ativas de investimentos na expanso de capacidade e na interna-lizao dos setores mais dinmicos e de

    maior intensidade e contedo tecnolgico, associados s tecnologias de informao e comunicao (TICs), reduziu a capaci-dade para gerao e difuso de inovao de produtos e processos. Estes, quando ocorreram, foram muito mais a exceo do que a regra (LAPLANE e SARTI, 2006). O resultado foi uma ampliao mais que proporcional das importaes em relao s exportaes, promovendo uma cres-cente deteriorao das contas correntes e vulnerabilidade externa, com o financia-mento do balano de pagamentos cada vez mais dependente dos fluxos financeiros especulativos. Portanto, a contrapartida dos ganhos de eficincia corporativos (no plano microeconmico) foi a crescente fragilizao macroeconmica do pas, que se explicitou e se agravou na crise finan-ceira internacional de final dos anos 1990 (LAPLANE e SARTI, 2002 e 2006).

    Apesar dessas mudanas, a economia permaneceu presa a um processo de stop and go, alternando perodos curtos de cres-cimento, logo estancados e substitudos por perodos de estagnao e crescimento baixo. Em grande parte, o incio do sculo XXI representou certa continuidade desse movimento. At 2003, a economia conti-nuou sendo marcada pela instabilidade e baixas taxas de crescimento.

    No perodo 2004-2008, a economia apre-sentou taxas maiores de crescimento, evoluindo 4,8% ao ano, o que contrastou com o desempenho verificado no perodo 1980-2003, que foi pouco superior a 2% ao ano. Se num primeiro momento o setor externo, beneficiado pela crescente influncia da China sobre preos e quantidades de

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    commodities exportadas, puxou a expanso, posteriormente, a dinmica do mercado interno contribuiu positiva e preponde-rantemente para a manuteno do ciclo de crescimento. Embora as exportaes tenham exercido um papel fundamental no acmulo de reservas e na reduo da vulne-rabilidade externa, a demanda interna cumpriu o papel determinante no ciclo de crescimento, que passou a ser liderado pela retomada do consumo, que, por sua vez, acabou estimulando um breve ciclo de investimentos no perodo 2006-2008.

    Alm do autofinanciamento, importante

    destacar tambm a ampliao do crdito para pessoas jurdicas, inclusive de longo prazo, com reduo de taxas e aumento de prazos, com o BNDES assumindo papel decisivo. Tambm foi importante a reto-mada do investimento em infraestrutura e o Programa de Acelerao do Cresci-mento (PAC), que ademais do volume de recursos mobilizados, tambm ajudou na coordenao de expectativas neces-srias para incentivar os investimentos privados. Ou seja, nesse breve perodo vislumbrou-se alguma recuperao da capacidade do Estado para articular e induzir o crescimento.

    Foto: Unsplash @Pixabay

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    R E V I S TA P O L T I C A S O C I A L E D E S E N V O LV I M E N T O 2 1

    A J U S T E E C O N M I C O E C R I S E E S T R U T U R A L D A I N D S T R I A

    Do ponto de vista da indstria, algumas mudanas devem ser destacadas. Em primeiro lugar, o aumento da demanda possibilitou uma recuperao importante das vendas da indstria de transformao, como pode ser verificado no Grfico 1. Este crescimento segue acelerado a partir de 2004 e tem breve interrupo em 2009, em razo da crise internacional, mas volta a crescer de 2010 at 2012 (ltimo ano como dados disponveis).

    A recuperao das vendas significou tambm uma recuperao das margens da indstria, como pode ser verificado

    no Grfico 2. possvel perceber como o perodo 1996-2002, marcado por margens apertadas, significou um forte ajuste em termos de gastos com pessoal. Uma vez que o volume de emprego permaneceu praticamente estagnado no perodo e, em razo da elevao dos salrios abaixo dos demais custos, a participao dos custos com empregados sofreu forte reduo.1

    Por outro lado, o perodo posterior, de maior dinamismo econmico e de recupe-rao das vendas da indstria, foi marcado tambm pela recuperao das margens, por um forte aumento no emprego industrial,

    Grfico 1 Evoluo da receita lquida de vendas da indstria de transformao1996-2012, em R$ de 2012, atualizados pelo IPA industrial

    Fonte: IBGE/Pesquisa Industrial Anual. Cnae 1.0 de 1996 a 2006 e Cnae 2.0 de 2007 a 2012.

    1.000

    1.200

    1.400

    1.600

    1.800

    2.000

    2.200

    2.400

    R$ Bilh

    es

    GRFICO 1 EVOLUO DA RECEITA LQUIDA DE VENDAS DA INDSTRIA DE TRANSFORMAO 1996-2012, em R$ de 2012, atualizados pelo IPA industrial. Fonte: IBGE/Pesquisa Industrial Anual. Cnae 1.0 de 1996 a 2006 e Cnae 2.0 de 2007 a 2012.

    D E S A F I O S PA R A O D E S E N V O LV I M E N T O I N D U S T R I A L N O B R A S I L

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    Grfico 2. Margem das vendas (eixo direito) e participao dos gastos de pessoal no custo total (eixo esquerdo) da indstria de transformao. 1996-2012, em (%).

    Fonte: IBGE/Pesquisa Industrial Anual. Cnae 1.0 de 1996 a 2006 e Cnae 2.0 de 2007 a 2012.

    0,00%

    2,00%

    4,00%

    6,00%

    8,00%

    10,00%

    12,00%

    5,00%

    7,00%

    9,00%

    11,00%

    13,00%

    15,00%

    17,00%

    19,00%

    21,00%

    1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

    Gastos Pessoal/Custo Total Margem das Vendas

    GRFICO 2 MARGEM DAS VENDAS (EIXO DIREITO) E PARTICIPAO DOS GASTOS DE PESSOAL NO CUSTO TOTAL (EIXO ESQUERDO) DA INDSTRIA DE TRANSFORMAO. 1996-2012, em (%).Fonte: IBGE/Pesquisa Industrial Anual. Cnae 1.0 de 1996 a 2006 e Cnae 2.0 de 2007 a 2012.

    pela recuperao da participao dos sal-rios no valor da transformao industrial e por um pequeno aumento na participao dos gastos com pessoal no custo total, ocorrida principalmente em 2009 e 2010. Em 2011 e 2012, porm, observou-se uma tendncia de reduo de margens, embora se tenham mantido ainda em patamares superiores ao verificado no final dos 1990.

    No breve perodo entre 2004 e 2010, mesmo considerando os impactos da crise, foi possvel observar estratgias empresa-riais condizentes com maior gerao de empregos, formalizao e crescimento

    salarial. Isso promoveu a recuperao de um importante mecanismo de retroali-mentao dinmica da economia, que ajudou a sustentar o crescimento do emprego, da renda e do consumo, da prpria produo industrial e, finalmente, resultou em elevao dos investimentos.

    Esse mecanismo foi perdendo fora depois da crise internacional, em razo do acir-ramento da concorrncia internacional e com a deteriorao das expectativas a partir de 2013 que acabaram por conta-minar negativamente o investimento.

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    Como pode ser visto no Grfico 3, antes da crise, a produo industrial acompa-nhava em grande medida o crescimento do consumo domstico. Por sua vez, a formao bruta de capital fixo (FBCF) passou a crescer significativamente, a partir de meados de 2006. No perodo posterior crise, por outro lado, possvel ver claramente o descolamento do consumo das famlias em relao produo indus-trial, ao mesmo tempo em que se acelera o crescimento das importaes. A luta para ocupar a capacidade ociosa criada pela crise internacional tornou a disputa pelos mercados globais muito mais acirrada.

    O forte crescimento do coeficiente e contedo importado transformou o papel complementar das importaes produo domstica em uma contribuio nega-tiva, ao substituir a produo domstica e reduzir o grau de industrializao. E mais, novamente o aumento das importaes no representou aumento proporcional das exportaes. O coeficiente importado, medido pela relao entre as importaes e o consumo aparente, saltou de 10,3% em 2003 para 18,3% em 2008, antes da crise internacional. Com o aprofundamento e generalizao da crise, o coeficiente seguiu uma trajetria crescente, atingindo 23,7% em 2013. A constatao de que quase um

    GRFICO 3 EVOLUO DOS COMPONENTES DO PIB E DO PIB DA INDSTRIA DE TRANSFORMAO. ndices Trimestrais com ajuste sazonal (1. Trimestre de 2000 = 100). 2000 a 2013.Fonte: IBGE/SCN

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    GRFICO 4 EVOLUO DOS COEFICIENTES EXPORTADO E IMPORTADO 2003-2013 (EM %)Fonte: Fiesp

    quarto do mercado domstico de bens industriais atendido por importaes desqualifica as anlises que identificam o Brasil como economia fechada e sua indstria, protegida. Esta crtica poderia se aplicar a uma economia pequena e especia-lizada, mas no com as caractersticas de um mercado continental e uma estrutura diversificada como no caso brasileiro. J o coeficiente exportado, medido pela relao entre a exportao e a produo, cresceu de forma modesta de 15,9% em 2003 para 18,2% em 2013 (Grfico 4), refletindo as condi-es internas (cmbio valorizado e baixa competitividade) e externas (retrao da demanda nos pases centrais) adversas.

    Os dados de comrcio do Brasil, em compa-rao com outros pases, revelam como o pas passou a absorver importaes do resto do mundo em volume muito superior

    10,5%

    11,6%

    12,6%

    14,4%

    16,4%

    18,3%

    16,6%

    20,4%

    21,9%22,3%

    23,7%

    15,9%

    18,3%

    19,4%19,1%

    18,6%

    17,3%

    15,4%15,8%

    16,4%

    17,4%

    18,2%

    10,0%

    12,0%

    14,0%

    16,0%

    18,0%

    20,0%

    22,0%

    24,0%

    26,0%

    2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

    Coeficiente de Importao Coeficiente de Exportao

    D E S A F I O S PA R A O D E S E N V O LV I M E N T O I N D U S T R I A L N O B R A S I L

    Os dados de comrcio do Brasil, em comparao com outros

    pases, revelam como o pas passou a absorver

    importaes do resto do mundo em volume muito superior ao que conseguiu exportar.

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    A J U S T E E C O N M I C O E C R I S E E S T R U T U R A L D A I N D S T R I A

    ao que conseguiu exportar. Muitas vezes, a filiais brasileiras de empresas transna-cionais realizaram este ajuste, utilizando o mercado brasileiro para ocupar a capaci-dade ociosa em outras regies, como ficou evidente no caso do setor automotivo.

    A Tabela 1 apresenta as informaes sobre o volume de comrcio internacional no segundo trimestre de 2014 em relao ao ltimo trimestre antes da generalizao da crise internacional (terceiro trimestre de 2008). possvel perceber como os pases centrais, em especial os Estados Unidos e Europa, buscaram acelerar suas exportaes para compensar a crise no mercado interno, ao mesmo tempo em que apresentaram aumento pouco expressivo ou mesmo reduo, no caso da Europa,

    das importaes do resto do mundo. Por outro lado, o Brasil apresentou um volume de importaes 32% maior, enquanto as exportaes apresentaram elevao pouco menor do que 2%. Apenas a China, entre os pases analisados, apresentou cresci-mento das importaes superior ao do Brasil, com a diferena que no caso chins tambm houve crescimento significativo nas exportaes.

    A reverso no cenrio ps-crise foi, desta maneira, minando lentamente o padro de crescimento industrial observado a partir de 2004 e voltando a posicionar o setor

    empresarial em uma situao de ajuste defensivo. Este fato pode ser visto inclusive pela estratgia de aumento da receita de revenda de mercadorias, buscando explorar seus ativos mercadolgicos (marca e canais de distribuio) para ampliar suas receitas e margens de lucro. A participao das receitas de revenda nas receitas totais praticamente dobrou entre 2004 e 2012 (Grfico 5). Dado que o aumento foi acom-panhado por uma elevao significativa de importaes de bens industriais, possvel

    Tabela 1 Volume do Comrcio Trimestral 2. Trimestre de 2014 em relao ao 3. Trimestre de 2008

    Exportaes Importaes Mundo 8,7% 8,1% Amrica do Norte 13,0% 5,9% Estados Unidos 14,4% 3,8% Canad 2,2% 7,7% Amrica do Sul e Central -0,4% 20,8% Brasil 1,7% 32,1% Europa 1,0% -6,4%

    Total 0,4% -7,4% Intra-UE -6,5% -7,3% Extra-UE 14,7% -7,7% sia 25,5% 27,6% Japo -10,4% 7,1% China 45,2% 59,2% Coria do Sul 49,5% 17,3%

    Outros -2,1% 17,0% Fonte: OMC

    TABELA 1 VOLUME DO COMRCIO TRIMESTRAL 2. TRIMESTRE DE 2014 EM RELAO AO 3. TRIMESTRE DE 2008 Fonte: OMC

    A reverso no cenrio ps-crise foi, desta maneira,

    minando lentamente o padro de crescimento industrial observado a partir de 2004

    e voltando a posicionar o setor empresarial em uma situao

    de ajuste defensivo.

    D E S A F I O S PA R A O D E S E N V O LV I M E N T O I N D U S T R I A L N O B R A S I L

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    aventar a hiptese de que muitas empresas industriais buscaram complementar sua linha de produo com importaes, apro-veitando a estrutura de distribuio no mercado interno j existente. Portanto, alm do aumento do contedo impor-tado, a elevao das importaes passou a fazer parte da estratgia das empresas industriais para enfrentar as dificuldades relacionadas concorrncia internacional, conjugadas com um cmbio desfavorvel produo interna.

    Neste cenrio adverso, a aposta de que um ajuste fiscal duro leve recuperao da confiana e volta dos investimentos

    pode estar fadada ao fracasso. A queda de rentabilidade operacional discutida anteriormente e a falta de uma ao articulada que defina vetores possveis de expanso para o setor industrial, via consumo, investimento e/ou exportao,

    GRFICO 5 INDSTRIA DE TRANSFORMAO. Receita com revenda de mercadorias/Receita bruta total. Em %Fonte: IBGE/Pesquisa Industrial Anual. Cnae 1.0 de 1996 a 2006 e Cnae 2.0 de 2007 a 2012.

    Neste cenrio adverso, a aposta de que um ajuste fiscal duro

    leve recuperao da confiana e volta dos investimentos

    pode estar fadada ao fracasso.

    D E S A F I O S PA R A O D E S E N V O LV I M E N T O I N D U S T R I A L N O B R A S I L

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    R E V I S TA P O L T I C A S O C I A L E D E S E N V O LV I M E N T O 2 1

    A J U S T E E C O N M I C O E C R I S E E S T R U T U R A L D A I N D S T R I A

    faro com que as estratgias empresariais permaneam defensivas. Nesse contexto, maiores juros e importaes so consi-derados menos negativos rentabilidade que maiores salrios e outros custos indus-triais (energia, combustvel e insumos importados). A sustentao das margens de rentabilidade tende a estimular a defesa de polticas esprias visando reduo dos custos salariais via terceirizao e flexi-bilizao do mercado de trabalho. Num cenrio de contrao e/ou de estagnao econmica, salrios maiores passam a ser vistos preponderantemente como custos excessivos e no como expanso de poder aquisitivo. E ficamos presos a um ciclo

    vicioso de menos crescimento, menos emprego, menos renda, menos consumo, menos investimento, menos produtividade e menos crescimento.

    Para romper esse ciclo vicioso, funda-mental construir um consenso e assumir uma agenda de compromissos em torno da necessidade inadivel de retomada do crescimento econmico. So vrias as opes e estratgias a serem adotadas para a recuperao do crescimento, por isso mesmo talvez no haja consenso e convergncia. Uma retomada susten-tada no consumo com aumento da massa salarial e dos salrios reais parece no

    Foto: Tania VdB @Pixabay

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    encontrar apoio nas lideranas empresa-riais e nas posies mais conservadoras. Uma retomada sustentada nas exporta-es, a partir de ganhos de competitividade pela reduo dos salrios reais e da relao salrio/cmbio, tampouco recebe apoio das entidades trabalhistas e das posies mais progressistas da sociedade. Alm disso, as condies de demanda mundial, conjugada com uma concorrncia acirrada no mercado de manufaturados tambm tornam pouco promissor focar exclusiva-mente nessa opo.

    Talvez uma agenda centrada na expanso dos investimentos autnomos, sobretudo em infraestrutura tradicional (transporte, energia e telecomunicaes) e em infraes-trutura mais diretamente associada s condies de acesso servios pblicos para a populao (saneamento, habitao e sade), menos dependentes do nvel de atividade corrente e mais condicionados pelas condies de financiamento e de rentabilidade, e no menos importante, pela forte demanda reprimida, possa ser um ponto de partida para a construo de uma agenda positiva e construtiva em favor do crescimento.

    A expanso dos investimentos como importante instrumento de aumento da produtividade e de eficincia econmica bem menos controversa. Bem menos consensual o nosso argumento segundo o qual sem um novo padro de crescimento h muito pouco espao para se avanar em termos do desenvolvimento industrial.

    NOTA A mesma tendncia poderia ser observada pela reduo da par-ticipao dos salrios no valor da transformao industrial (VTI). No entanto, a perda de participao do salrio no VTI continuou at 2004 (reduo de 46% em 1996, para 30% em 2004) e aumen-tou a partir de 2005, atingindo 37% em 2012.

    A expanso dos investimentos como importante instrumento de aumento da produtividade

    e de eficincia econmica bem menos controversa. Bem

    menos consensual o nosso argumento segundo o qual sem

    um novo padro de crescimento h muito pouco espao para

    se avanar em termos do desenvolvimento industrial.

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    A J U S T E E C O N M I C O E C R I S E E S T R U T U R A L D A I N D S T R I A

    Os ltimos anos marcados por baixo crescimento econmico, infraestrutura deficiente, estagnao das exportaes e reduzido crescimento da produtividade do trabalho revelam que a economia brasileira de fato apresenta restries internas para a instituio de uma trajetria sustentada de crescimento. Ajuste fiscal, elevao da

    Mais 4 anos de ajuste fiscal e 40 anos sem mudana estrutural

    Marcelo Arend Professor Adjunto do Departamento de Economia e Relaes Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina.

    E-mail: [email protected]

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    Foto: Josch13 @pixalbay

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    A J U S T E E C O N M I C O E C R I S E E S T R U T U R A L D A I N D S T R I A

    taxa de juros, estagnao da renda real per capita, presso inflacionria e elevao da taxa de desemprego so sintomas de uma enfermidade cada vez mais aparente, que parecia ter sido curada na primeira dcada do sculo XXI. Certamente o ajuste fiscal trar consigo desemprego e estag-nao econmica ao instituir expectativas de um futuro sombrio que conduzir a uma situao de baixo nvel de investimento.

    O que este breve artigo procura eviden-ciar que um ajuste fiscal, por si s, no garante a retomada do crescimento susten-tado. Antes o contrrio, a poltica fiscal restritiva aliada poltica monetria em execuo pode inclusive debilitar ainda mais o paciente, ao dificultar a retomada do investimento, considerando-se um cenrio de estagnao da demanda interna e externa. Nesse aspecto, procuro trazer baila o debate entre desenvolvimentistas sobre a questo da indstria e o padro de investimento nacional, ressaltando a necessidade urgente de uma reindus-trializao. Defendo a hiptese de que a economia brasileira e, sobretudo, sua estrutura produtiva, necessita de um ajuste estrutural de grande envergadura, tarefa

    muito distante de ser cumprida por um ajuste fiscal. Por a indstria brasileira no passado recente no ter sido capaz de atender a demanda crescente de um mercado interno em expanso, aliado aos seus sucessivos dficits comerciais, muitas conquistas sociais estaro em risco com a implementao de um ajuste fiscal que desconsidera a necessidade urgente de mudana estrutural.

    Em grande medida, o encolhimento da indstria brasileira, fenmeno denomi-nado desindustrializao, vem dimi-nuindo o desempenho da economia como um todo nos ltimos anos, na verdade nas ltimas dcadas. No utilizarei este breve espao para procurar demonstrar o fen-meno; o processo de desindustrializao brasileiro j foi amplamente debatido academicamente e, de fato, concreto, alm de precoce para os padres inter-nacionais. Outra questo que deve ser ressaltada que o fenmeno da desindus-trializao que aflige a maioria das econo-mias capitalistas estrutural, e somente pode ser bem compreendido atravs de uma anlise de longo prazo. O fato que desde a dcada de 1980, passando pelos governos Collor, FHC, Lula e Dilma, em todos ocorreu desindustrializao.

    Apenas para deixar mais evidente o baixo dinamismo manufatureiro, importante sempre relativizar o desempenho da indstria brasileira com demais pases, avanados e em desenvolvimento, espe-cializados em commodities e produtos manufaturados. A Figura 1 apresenta a taxa acumulada de crescimento da indstria de transformao de inmeros grupos de

    Certamente o ajuste fiscal trar consigo desemprego

    e estagnao econmica ao instituir expectativas de um

    futuro sombrio que conduzir a uma situao de baixo nvel

    de investimento.

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    pases que compem o sistema econmico internacional.

    De imediato, surpreende o desempenho da indstria brasileira internacionalmente no perodo ps-1980. Os dados revelam que o Brasil apresenta um menor dina-mismo industrial em relao no s a mdia mundial, mas tambm em relao s economias em desenvolvimento, econo-mias desenvolvidas, frica em desenvol-vimento, Amrica em desenvolvimento, sia em desenvolvimento, Oceania em desenvolvimento, Amrica desenvolvida, sia desenvolvida, Europa desenvolvida, principais exportadores de petrleo e gs, principais exportadores de manufaturados,

    principais exportadores de produtos primrios excluindo combustveis, frica excluindo frica do Sul, Amrica do Sul excluindo o Brasil, Zona do Euro, G8, G20 e Mercosul.

    A insuficincia dinmica do parque indus-trial brasileiro no apenas conjuntural,

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    FIGURA 1 TAXA ACUMULADA DE CRESCIMENTO DA INDSTRIA DE TRANSFORMAO NO PERODO 1980-2012. 1980=100.Fonte: Unctadstat. Elaborao do autor.Obs: Valor Adicionado Manufatureiro, em US$ constantes de 2005.

    A insuficincia dinmica do parque industrial brasileiro no

    apenas conjuntural, mas se arrasta desde a dcada de 1980.

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    mas se arrasta desde a dcada de 1980. Alm disso, sua relativa estagnao no se d apenas em relao ao mundo. Isso que dizer que o processo de desindustrializao brasileiro no pode ser atribudo ao efeito sia, argumento de que somente os pases asiticos com mo de obra barata vm-se industrializando, na contramo do movi-mento do resto do mundo. Excluindo o efeito sia da anlise, percebe-se que nas ltimas trs dcadas o Brasil apresentou, de fato, um falling behind manufatureiro em relao totalidade dos grupos de pases que compreendem o sistema mundial!

    Nos ltimos anos, desenvolveu-se um importante debate acadmico sobre a estratgia de desenvolvimento a ser adotada no Brasil, que reserva papel central indstria brasileira. Correndo risco de simplificao, formaram-se duas correntes desenvolvimentistas de pensamento, as quais vm sendo chamadas de Social-Desenvolvimentismo e Novo--Desenvolvimentismo. Ambas correntes defendem a instituio de padres de crescimento distintos para a economia brasileira, expressos, respectivamente, nos padres de crescimento wage-led e export--led. O primeiro padro de crescimento d destaque indstria brasileira no sentido de que a ela caberia o suporte interno a crescente demanda originada pela elevao dos salrios reais e melhor distribuio de renda. Nesse sentido, defende a diversifi-cao e ampliao do mercado interno. O segundo padro de crescimento d mais nfase especializao e ao equilbrio da balana de pagamentos, colocando no centro da estratgia uma poltica de desva-lorizao cambial capaz de restabelecer

    a competitividade internacional. Perce-bem-se duas estratgias bastante distintas para a economia brasileira.

    A priori, uma anlise pouco profunda da dinmica do balano de pagamentos nos ltimos anos parece dar credibilidade hiptese novo-desenvolvimentista, e colocar dvidas sobre o modelo de cresci-mento que tem na demanda domstica o foco fundamental, pois se agravou a proble-mtica das contas externas. A partir de 2010, os dficits em transaes correntes so crescentes, explicados, sobretudo, por reduzidos saldos na balana comercial e crescentes dficits na conta servios e renda. A relao entre manuteno do crescimento do emprego e salrios, inter-namente, aliado a uma estagnao do comrcio internacional, refletiu-se em uma elevao da taxa de crescimento das importaes e relativa estagnao das exportaes, comprometendo de forma tendencial o saldo exportador.

    Ferrari e Fonseca (2015), procuram desconstruir este trade-off entre padres de crescimento. Para os autores, seja qual for o padro wage-led, export-led ele somente poder reproduzir-se e configurar uma trajetria exitosa caso, respectiva-mente, a elevao dos salrios, das expor-taes ou dos lucros, induzam maior nvel de investimento. Ou seja, a condio neces-sria, mas no suficiente, para a instituio de um padro de crescimento sustentado que a dinamizao das variveis da demanda agregada incite uma elevao da taxa de investimento. A dificuldade para a economia brasileira, alm da necessidade de elevao da taxa de investimento, ao

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    mesmo tempo alterar seu padro estrutural de inverses, transformando no mdio prazo a matriz produtiva e o padro de comrcio exterior vigente.

    Alterar o padro estrutural dos investi-mentos fundamental, pois, conforme identificou Arend (2014), a indstria brasi-leira desde a dcada de 1990 apresenta elevada inrcia em sua estrutura produtiva e no seu comrcio exterior. Os motores do investimento e do crescimento nacional, h dcadas, so os grupos industriais rela-cionados a commodities agroindustriais e indstria representativa do antigo padro fordista de produo, esta ltima limitada pela baixa potencialidade para desen-cadear inovaes tecnolgicas capazes de proporcionar elevao sustentada da produtividade.

    Assim, o Brasil revela extrema dificuldade

    para diversificar sua estrutura industrial em direo incorporao dos novos setores emblemticos da revoluo tecno-lgica que irrompeu na dcada de 1980 (microeletrnica). Tais setores industriais foram decisivos para o processo de rejuve-nescimento industrial e consequentemente pelo salto de produtividade das economias que tiveram capacidade adaptativa para ingressar na terceira revoluo industrial (AREND e FONSECA, 2012).

    Centralizar a estratgia para a retomada do crescimento e da produtividade somente na taxa de cmbio, sem diagnosticar possveis heterogeneidades estruturais internas e o grau de defasagem tecnolgica internacional de setores industriais pode acabar por aprofundar o padro de especia-lizao comercial j alcanado, atualmente ricardiano, assentado em commodities. Esta percepo, sobre os limites da taxa de cmbio para resolver problemas estrutu-rais, assumida at mesmo por Thirlwall (2005), terico emblemtico do padro de crescimento export-led. Segundo o autor, a taxa de cmbio no um instrumento eficiente de mudanas estruturais, pois simplesmente torna os pases (tempora-riamente) mais competitivos nos bens que provocam os problemas do balano de pagamentos (THIRLWALL, 2005: 67). Mais frente, o mesmo autor argumenta: a nica soluo segura para elevar a taxa de crescimento de um pas, em consonncia com o equilbrio do balano de pagamentos da conta corrente, a mudana estrutural (...) Voltamos s ideias de Ral Prebisch e questo da poltica industrial mais apropriada para os pases (THIRLWALL, 2005: 68).

    Os motores do investimento e do crescimento nacional, h dcadas, so os grupos industriais relacionados a

    commodities agroindustriais e indstria representativa do antigo padro fordista de

    produo, esta ltima limitada pela baixa potencialidade

    para desencadear inovaes tecnolgicas capazes de proporcionar elevao

    sustentada da produtividade.

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    A especializao produtiva brasileira e seu padro de investimento no sculo XXI puseram em evidncia a debilidade das polticas industriais nacionais, no sentido de acarretarem mudana estrutural. Shapiro (2013), a despeito de defender o novo protagonismo estatal no sculo XXI, constata que apesar de serem formuladas polticas industriais de cunho transfor-mador (schumpeterianas), na prtica o Estado conseguiu somente minimizar falhas de mercado, com polticas de vis mais corretivo (ricardiano) do que trans-formador. Ou seja, na ltima dcada, o retorno das polticas industriais foi impor-tante para manter a estrutura produtiva

    pretrita, mas incapaz de transform-la. Nesse sentido, a condio necessria para a instituio de um padro de crescimento com distribuio de renda, sustentado em termos do equilbrio do balano de paga-mentos, leva-nos a pensar em dois grandes desafios na formulao de uma poltica econmica que busque concretizar um processo de mudana estrutural virtuoso: 1) a maior presena relativa, tanto na produo como no comrcio internacional, dos setores mais intensivos em conheci-mento e; 2) a diversificao produtiva em direo a setores com rpido crescimento da demanda interna e externa, de forma que esta demanda possa ser atendida

    Foto: Claude Alleva @Pixabay

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    pela oferta interna e que as exportaes e importaes cresam de forma equili-brada, sem gerar presses insustentveis na balana de pagamentos.

    Logicamente, um ajuste fiscal no garante o alcance de nenhum dos desafios colo-cados acima. No garante elevao nem mesmo da taxa de investimento, o que imaginar da mudana estrutural. No momento em que mais se necessita de uma poltica industrial de cunho trans-formador, a poltica econmica dar primazia eficincia alocativa, esttica por definio e mantenedora da estrutura produtiva vigente. Portanto, mais 4 anos de ajuste fiscal garantiro o aniversrio de uma indstria quarentona (1980-2020) inerte, estagnada e defasada tecnologi-camente para os padres internacionais. Nada pior para um pas/populao que cada vez mais almeja superar a barreira do subdesenvolvimento. Na prxima dcada, quando vrios pases j estiverem adentrando numa nova revoluo tecno-lgica, quem sabe institumos de vez uma estratgia nacional de desenvolvimento com distribuio de renda, com papel de destaque para uma nova indstria

    nacional que d suporte para o projeto de nao almejado. REFERNCIAS AREND, Marcelo . A industrializao do Brasil ante a nova diviso internacional do trabalho. In: Andr Bojikian Calixtre; Andr Martins Biancarelli; Marcos Antonio Macedo Cintra. (Org.). Presente e futuro do desenvolvimento brasileiro. 1 ed. Braslia: Ipea, 2014: 375-422.

    AREND, Marcelo ; FONSECA, P. C. D. . Brasil (1955-2005): 25 anos de catching up, 25 anos de falling behind. Revista de Economia Poltica (Impresso), v. 32(1), p. 33-54, 2012.

    FERRARI FILHO, Fernando ; FONSECA, P. C. D. . Which Developmentalism? A Keynesian-Institutionalist Proposal. Review of Keynesian Economics, 2015.

    SCHAPIRO, Mario G. Ativismo Estatal e Industrialismo Defensivo: instrumentos e capacidades na poltica industrial brasileira. Tex-to para discusso n. 1856. IPEA. 2013.

    THIRLWALL, Anthony P. A natureza do crescimento econmico: Um referencial alternativo para compreender o desempenho das naes. Braslia: IPEA, 2005.

    Portanto, mais 4 anos de ajuste fiscal garantiro o aniversrio

    de uma indstria quarentona (1980-2020) inerte, estagnada e defasada tecnologicamente para

    os padres internacionais.

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    A desacelerao da produo industrial desde 2013 clara. No trmino do primeiro trimestre de 2015, encolheu cerca de 12% em relao aos nveis recordes de meados de 2013, aproximando-se ao patamar do incio de 2006 conforme indicam os dados da Pesquisa da Indstria Mensal do IBGE. Entre abril de 2014 e maro de 2015 a reduo da indstria geral de 4,2%,

    A crtica do ajuste fiscal sob a perspectiva

    da indstria, com pingos nos is

    Cristina Fres de Borja ReisProfessora dos Bacharelados de Economia e de Relaes Interna-cionais da UFABC

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    Foto: Unsplash @ Pixabay

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    R E V I S TA P O L T I C A S O C I A L E D E S E N V O LV I M E N T O 2 1

    A J U S T E E C O N M I C O E C R I S E E S T R U T U R A L D A I N D S T R I A

    puxada pela indstria de transformao de maior peso no ndice geral , que caiu 6,1%, enquanto as indstrias extrativas cresceram 7,2% no mesmo perodo. Em termos de pessoal ocupado, os dados do IBGE apontam queda contnua desde a segunda metade de 2011 na indstria de transformao e geral, e h um ano nas indstrias extrativas (aps uma trajetria de elevao de quase 35% de 2003 at o incio de 2013). J a participao brasileira nas exportaes mundiais de manufatu-rados caiu de 0,85% em 2005 para 0,71% em 2013, saindo da posio de 27 maior exportador, para 31. Por outro lado, a importncia relativa nas importaes cresceu de 0,69% para 1,40% no mesmo perodo, passando a ser o 19 importador mundial, ao invs de 31 (OMC).

    Essas estatsticas revelam, ao mesmo tempo, o crescimento do mercado interno brasileiro e o enfraquecimento da compe-titividade internacional ao longo deste sculo. Portanto, apesar da forte expanso em termos absolutos no perodo, em termos relativos a indstria domstica progressi-vamente tem perdido espao a concor-rentes internacionais e no vislumbra no curto/mdio prazo condies de retomada de crescimento.

    Diante de um cenrio j complicado, quais as consequncias do ajuste fiscal para a indstria? Atrever-se a essa anlise impe algumas advertncias, que aqui vo-se resumir a dois pingos nos is. O primeiro para deixar claro quem a indstria; o segundo sobre a sua importncia para o

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    Indstria Geral

    Indstria da Transformao

    Indstrias Extrativas

    NDICE DO PESSOAL OCUPADO NA INDSTRIA COM AJUSTE SAZONAL. 2001=100Fonte: IBGE/Pesquisa Industrial Mensal do Emprego e Salrio.

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    desenvolvimento. Afinal, por que defender a indstria?

    Primeiro pingo: caracterizando indstria

    Indstria pode ser mais bem entendida por um conjunto de complexos industriais, nos quais se entrelaam cadeias produtivas que incluem diversas atividades de trans-ferncia e de transformao de insumos apoiadas por servios industriais, at a gerao de bens e servios finais. Para

    avaliar a produo da indstria geral, o sistema de Contas Nacionais considera o conjunto de relaes produtivas associadas s atividades extrativas e de transfor-mao. Conforme a metodologia da Classi-ficao Nacional de Atividades Econmicas (CNAE Verso 2.0), as empresas e outros tipos de unidades econmicas pertencem a uma determinada CNAE das indstrias extrativas ou de transformao de acordo com sua atividade principal, ou seja, a criao de valor do principal processo de produo. Isso significa que os produtos e/ou servios das outras atividades, sejam secundrias (cuja produo destinada a terceiros, mas cujo valor adicionado menor do que o da atividade principal) ou auxiliares (atividades de apoio, exercidas dentro da empresa, voltadas criao de

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    ndice da Produo Fsica Industrial com Ajuste Sazonal Mdia de 2002=100

    Fonte: IBGE - Pesquisa Industrial Mensal.

    Indstria Geral

    Indstria da Transformao

    Indstrias Extrativas

    NDICE DO PESSOAL OCUPADO NA INDSTRIA COM AJUSTE SAZONAL. Mdia de 2002=100Fonte: IBGE/Pesquisa Industrial Mensal .

    A C R T I C A D O A J U S T E F I S C A L S O B A P E R S P E C T I VA D A I N D S T R I A , C O M P I N G O S N O S I S

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    A J U S T E E C O N M I C O E C R I S E E S T R U T U R A L D A I N D S T R I A

    condies necessrias para a execuo de suas atividades principal e secundrias e desenvolvidas, intencionalmente, para serem consumidas dentro da empresa), so contabilizados na atividade principal.

    No caso da indstria produtora de manu-faturas, so consideradas como suas ativi-dades a transformao, a renovao e a reconstituio de produtos, envolvendo poucas ou muitas tarefas atravs de dife-rentes tipos de organizao da produo, de diferentes graus de integrao vertical, ou alternativamente por meio da subcon-tratao de outras unidades. As atividades contratadas de terceiros no so classifi-cadas na CNAE da contratante, e sim na classificao principal das unidades produ-tivas contratadas. Uma vez que o valor dos bens tangveis inclui vrios servios industriais feitos pela prpria unidade produtora ou via contrataes de terceiros, estabelecem-se complexas cadeias de valor internacionalizadas para a produo de um bem, no identificadas pelo sistema de contas nacionais.

    Assim, a primeira advertncia a de que a defesa da indstria precisa considerar as

    diferentes possibilidades de participao nestas cadeias produtivas e complexos industriais. Isso, porque suas etapas e tarefas representam adies especficas de valor, que tero suas prprias implica-es para o progresso tcnico e o conheci-mento, a acumulao de capital, o emprego e a renda, nesta indstria e nas demais atividades produtivas de uma regio ou pas. Porm, a tarefa de compreenso das cadeias rdua, j que a classificao tradicional das atividades econmicas no permite essa visualizao, restrita fundamentalmente s corporaes.

    Outra qualificao necessria sobre a complexa estrutura das empresas e seus mercados em termos de porte, grau de concentrao, direitos de propriedade, dentre outros. De acordo com a Pesquisa da Indstria Anual (PIA-Empresa, do IBGE), em 2012 no Brasil havia aproxi-madamente 329 mil firmas com uma ou mais pessoas ocupadas, empregando cerca de 8,8 milhes de pessoas, com uma receita lquida total de R$ 2,4 trilhes (o PIB em 2012 foi de R$ 4,4 trilhes). Da receita, 68,3% ficaram nas empresas de 500 ou mais pessoas ocupadas, 17% nas de 100 a 499 e 14,7% nas de 1 a 99 pessoas ocupadas. Ou seja, h uma concentrao expressiva da receita lquida nas empresas de maior porte, em geral transnacionais e oligopo-listas. As empresas transnacionais so as lderes das cadeias produtivas globais que correspondem a 80% do comrcio internacional de bens e servios (OCDE/OMC, 2013). Ento, conclui-se que um segmento significativo da indstria brasi-leira corresponde a grandes oligoplios poderosos, cujas estratgias seguem

    Assim, a primeira advertncia a de que a defesa da indstria

    precisa considerar as diferentes possibilidades de participao

    nestas cadeias produtivas e complexos industriais.

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    dinmicas prprias sobre as quais os efeitos da poltica econmica, industrial e de tecnologia e inovao tm alcance limitado.

    Mais alm, os oligoplios industriais so grupos financeiros, em geral de capital aberto, por vezes integrados ao agrone-gcio e aos servios, destacando o comrcio atacado e de varejo. Perseguem o objetivo genrico de garantir o retorno dos acio-nistas e seu autofinanciamento, apesar de suas vises e misses remeterem qualidade de vida e bem-estar dos consu-midores. Buscam fortalecer seu poder de mercado, visando a lucros extraordinrios. Os maiores acionistas e o corpo diretivo dessas empresas, em geral pertencem aos extratos mais ricos da sociedade. O grande capital transita entre a esfera financeira e a produtiva conforme avaliao prpria, correspondendo no somente busca por maior retorno, mas tambm aos interesses geopolticos a que esto associados em um tabuleiro bem mais amplo de disputas de poder e riqueza.

    Portanto, a segunda advertncia a de que a defesa da indstria precisa estar atenta a quem e a o qu est sendo incentivado, para que polticas no se tornem bolsa--empresrio para grandes capitalistas. Ao contrrio, a defesa da indstria deve visar ao investimento produtivo, com particular ateno ao da micro e pequeno empresa, mas que de maneira geral se traduza em emprego, renda e conhecimento. O planejamento desta poltica complexo e essencial, bem como a coordenao e o monitoramento, no sentido de garantir avanos na direo do desenvolvimento econmico com reduo de desigualdades.

    Segundo pingo: indstria e desenvolvimento

    E qual o papel da indstria no desenvolvi-mento? Associadas desde os tericos do protecionismo, passando pelo estrutura-lismo latino-americano e chegando at os novo-desenvolvimentistas, as crticas posteriores sugeriram que a relao entre industrializao e desenvolvimento no to linear. Sem aprofundar quanto diversidade de interpretaes sobre o que desenvolvimento, de maneira geral a histria revela que, de um lado, as naes com melhores ndices de desenvolvimento so industrializadas. Com raras excees, apenas alguns poucos e pequenos pases que se tornaram centros financeiros por fatores internos e externos, apoiando

    Portanto, a segunda advertncia a de que a defesa da indstria

    precisa estar atenta a quem e a o qu est sendo incentivado,

    para que polticas no se tornem bolsa-empresrio

    para grandes capitalistas.

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    a industrializao de parceiros comer-ciais. Por outro lado, a vasta maioria da populao pobre mundial vive em reas rurais subdesenvolvidas, de limitada din-mica de crescimento cujas atividades resumem-se economia de subsistncia, superexplorao do trabalho e precrias relaes mercantis. Entre os extremos, observam-se pases em desenvolvimento com diferentes trajetrias de industria-lizao, cujas particularidades estrutu-rais (como condies iniciais de fatores e especializao produtiva, entre outros) e institucionais (direitos de propriedade, participao do Estado, regime macroe-conmico, etc.) levaram-nos a atingir com maior ou menor sucesso a elevao da produtividade, dos salrios, da renda da

    populao, da qualidade de vida e a reduzir desigualdades.

    Afinal, a generalizao da produo indus-trial globalmente transformou a antiga dicotomia centro produtor de manufaturas / periferia produtora de recursos natu-rais j que a periferia tambm produz e exporta manufaturas, e o centro tambm produz e exporta recursos naturais. Analo-gamente, no necessariamente a produo de manufaturas intensiva em tecnologia e conhecimento, e a produo de recursos naturais no ; nem mesmo se pode afirmar que a primeira de alto valor adicionado, e a outra, de baixo. Ou seja, a produo de recursos naturais pode ser de alto valor adicionado e intensiva em conhecimento

    Foto: Wilhei @Pixabay

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    e tecnologia, do mesmo modo que a de manufaturas pode ser de baixo valor adicionado e de pouco contedo tecnol-gico e de conhecimento. Nesse sentido, a sofisticao (upgrade) termo preferido nos contemporneos discursos e polticas industriais, de tecnologia e inovao , com adio local de mais valor produo, virtuosa quando capaz de se traduzir em desenvolvimento econmico e social, por estimular dinmicas de oferta e demanda.

    Dentre as de demanda, a sofisticao pode contribuir para uma trajetria de acumulao com reduo de desigual-dades, na medida em que o crescimento do investimento na produo industrial gere empregos e cause aumento sustentado da renda do trabalho, que, por efeito multi-plicador, estimulam o investimento nas demais atividades econmicas. Alm disso, a ampliao do nvel de atividade reverbe-raria em aumento de arrecadao tribu-tria, o que possibilitaria maiores gastos do governo em infraestrutura social e urbana, ampliando a oferta de bens pblicos, como educao e sade. Por sua vez, os estmulos pelo lado da oferta incluem os efeitos de transbordamento da tecnologia em inds-trias especficas para outros processos de produo, elevando a produtividade. E, tambm, a prpria oferta de bens pblicos notadamente em infraestrutura contribuiria para a reduo dos custos de produo, estimulando o investimento privado e a acumulao.

    Contudo esse encadeamento no natural, no se d somente pelo mercado, e nem se garante pela interveno estatal, j que perpassada por conflitos e disputas

    sociolgicas. O desenvolvimento e a distri-buio dependem da mudana conjunta da estrutura e das instituies, transversal-mente aos interesses internos e externos, polticos e econmicos. A poltica macroe-conmica determinante dos rumos da trajetria de mudana estrutural para atividades mais sofisticadas, considerando as dificuldades de superao da restrio externa de uma economia aberta. Afinal, o processo precisa de capital, matrias--primas e tecnologias de produo o meio e o fim do processo de desenvolvimento econmico, cujo gatilho normalmente depende dos interesses das empresas e governos das economias industrializadas.

    Destarte, o segundo pingo no i adverte que o sucesso da industrializao em promover desenvolvimento depende de mecanismos complexos. As variadas traje-trias de industrializao (combinadas com a atuao do Estado e as relaes internacionais da localidade) atingiram diferentes graus de elevao da renda e bem-estar, a depender da capacidade e qualidade da gerao de empregos, da

    A poltica macroeconmica determinante dos rumos da trajetria de mudana

    estrutural para atividades mais sofisticadas, considerando

    as dificuldades de superao da restrio externa de uma

    economia aberta.

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    elevao real da renda do trabalho e da sofisticao tecnolgica. Mas sem inds-tria dificilmente haver desenvolvimento. S que a sua defesa essencial quanto ao investimento produtivo, e deve ter claro o tip